VIOLÊNCIA, LIBERTAÇÃO E ESCATOLOGIA (uma leitura da obra de Jorge Melícias

May 28, 2017 | Autor: Ruy Ventura | Categoria: Portuguese Literature
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VIOLÊNCIA, LIBERTAÇÃO E ESCATOLOGIA (uma leitura da obra de Jorge Melícias) por Ruy Ventura “[…] combateste contra Deus e contra os homens e conseguiste resistir.” “[…] vi um ser divino, face a face, e conservei a vida.” Génesis

A leitura dos poemas de Jorge Melícias não deixa ninguém indiferente, muito menos confortável. Perturbantes, os seus textos só podem ser apreendidos se o legente estiver disposto a confrontar-se com um discurso que o vai espicaçar, ferir e revolver. Não deseja menos o seu autor: “Distanciamento e rigor […]. Gostava que cada poema fosse uma dádiva de pura violência. Mas uma violência velada pela esquadria, como se só angularmente fosse possível escorçar o horror. Uma carnificina sem sangue, uma ablação tão exacta que nada extravasasse.” “[…] o poema não é o território da ética e da redenção. […] esse carácter pedagógico, quase salvífico, da escrita é algo que não entendo. Assumo, na minha poesia, essa pura negatividade. E acredito que só pela reiteração do horror algum tipo de comutação da culpa seja possível.” “Para mim a beleza está, inextrincavelmente, ligada à violência. Uma violência irrompente, fundadora, tão latente quanto recidiva. Considero pouco a beleza na sua eloquente passividade, subtraída a toda a dinâmica, como um produto acabado.” “As coisas comezinhas ocupam todas as divisões da minha vida. A poesia tem o discernimento e a delicadeza de ficar à porta, para não incomodar. O quotidiano costuma retribuir na mesma moeda.” “Nada na minha poesia infere da minha vida, da realidade onde me movo, das minhas preocupações sociais ou políticas. Mas só até certo ponto serei, em relação ao que faço, um sujeito ausente. Estão lá todos os meus fascínios, todas as minhas obsessões e medos, tudo aquilo que, em suma, me escreve.” “Não se trata […] de procurar, a todo o custo, uma via de acesso ao sentido mas de aceitá-lo como uma presença invasora e totalizante. Sem qualquer tipo de cedência ou comutação. O paradoxo está em aliar a essa sufusão do sentido uma crescente procura pelo rigor, ainda que toda a exactidão seja sempre aproximativa.” Nestes pontos salientes do diálogo mantido com Valter Hugo Mãe, publicado em 2007 num número da revista Cosmorama (cf. Mãe, 2007), o poeta de alvídrio esclarece os fundamentos da sua poética. Sublinha, também, o elenco dos criadores de que recebeu o testemunho estético. O centro é concedido ao expressionismo alemão, cujo eixo reconhece em Gottfried Benn 1

– o qual “proclamava […] o poema sem fé, sem esperança, esvaziado de qualquer conteúdo moral” –, valorizando ainda Robert Wiene (cujo cinema concorre “para uma sublime sensação de inquietude e desconforto”) e Herman Warm (exímio trabalhador das “sombras desta estética do vago e do indistinto”). Dá, depois, relevo à escultura de Eduardo Chillida que, segundo afirma, trata conceitos “fascinantes” como “o movimento, a inércia e a reincidência”, embora, na minha leitura, esteja subjacente nesta tradução tridimensional da sua poesia “o abandono de uma terra agradável, em que todos os resultados são previsíveis, dando lugar a uma perigosa jornada em direcção ao desconhecido”, preconizado pelo artista basco, bem como a sua defesa da criação como combate com e contra a matéria (cf. Duby & Daval, 2006: 1050 – 1051). Depois de mencionar Heiner Müller, Melícias releva ainda outros parentescos: “nunca mais me abandonaram os céus devónicos de Turner, a antropofagia de Francis Bacon ou as composições de Witkin” (in Mãe, 2007: 10). Não sei até que ponto, hoje, o autor mantém as mesmas referências. O espectro deve no entanto ter-se alargado ou explicitado, como indicam as epígrafes de hybris, que nos obrigam a acrescentar ao rol anterior autores tão distintos quanto E. M. Cioran, Saint-John Perse, Friedrich Nietzsche ou santo Agostinho. Não é possível, neste ensaio breve, esquadrinhar todo o jogo intertextual que envolve estes e outros nomes nos versos de Jorge Melícias. Importa, porém, sublinhar este elenco de criadores e pensadores cuja obra nasceu em períodos conturbados da História e resultou do sopesar de várias facetas da existência humana e da sua condição num mundo devastado e autofágico, manifestando o seu confronto e a sua leitura em obras de arte convulsivas. É essa a sua família – e nela o temor, o horror e o terror vêm obrigando a uma expressão verbal e não-verbal angustiada, perturbada e questionadora, que acaba por tornar-se transversal, como matéria de facto, a várias formas de fazer arte e escrever pensamento. * Se lermos com a devida atenção as declarações de Jorge Melícias registadas por Valter Hugo Mãe, compreenderemos que tudo nasce da percepção horrorizada do mundo, a qual dá depois origem à “violência velada pela esquadria” de um conjunto de textos que desejam “escorçar [esse] horror” de modo a provocar no leitor, como os filmes de Wiene, “uma sublime sensação de inquietude e desconforto” (in Mãe, 2007: 10). (Convenhamos. Melícias tem escassíssimos companheiros na poesia portuguesa das últimas décadas. São raras as obras de poesia lusa que se situam num lugar tão pouco cómodo quanto aquele ocupado pelos seus poemas.) Sem se ficar pela abjecção (rejeitando as propostas de certo sector do surrealismo nacional), o sujeito poético dos seus textos fala a partir do negrume, das trevas, do horror. É portanto compreensível a sua “negatividade”. Os poemas não expressam, assim, virtudes (fé, esperança), moralidade ou ética, as quais seriam incompatíveis com a sua violência nascida num ambiente antropofágico, dominado por uma 2

perturbação extrema que se antevê natural e social, ctónica e uraniana – universal, enfim. São antes uma dicção tensa entre a subjectividade, a objectividade e a metafísica, com reflexos especulares num estilo negativo, negro e agressivo que exige a aceitação de uma dádiva – o sentido “como uma presença invasora e totalizante” – e, em simultâneo, a demanda do rigor e da exactidão que obriga, por sua vez, ao “distanciamento” perante a inefabilidade da devastação e conduz a uma “estética do vago e do indistinto” (in Mãe, 2007: 10). Preferindo a concisão à desmesura, o rigor à imprecisão, o confronto à comiseração perante essa waste land, Jorge Melícias edificou uma estrutura textual de que nunca poderemos aproximar-nos se não formos capazes de abandonar a acédia, o langor e a abulia que nos levam à rejeição, contumaz, de tudo quanto se nos afigure incomum, perturbador ou secreto. Não se trata, quanto a mim, de uma poesia difícil, mas antes de uma poesia exigente. Resulta de um incessante processo de reescrita, rasura e rectificação – e, por isso mesmo, nasce de um “exercício de humildade” (como escreve o autor) que não obstante é expressão da suprema audácia, da hybris, só pelos heróis acometida. Hybris e húmus parecem ser os dois pólos entre os quais o texto se estabelece, num jogo de vida que só se afigura paradoxal e contraditório se não observarmos aí um conflito, uma confrontação do homem consigo próprio, com o meio em que vive e com a divindade. Ler os textos escritos e reescritos por Melícias exige, assim, uma ciência filosófica, onde se associem a antropologia e a cosmologia à teologia. Se a humildade diz respeito ao texto, ou seja, à expressão vocabular, retórica e estilística do poema que aceita uma “dádiva” e procura a “exactidão”, a hubricidade refere-se, sobretudo, à matéria de facto, dizendo a reacção audaz do homem perante a devastação de que é testemunha. Só se compreende, todavia, a associação dos dois termos num mesmo campo se os ligarmos, depois de encontrarmos o elemento pontifício que transforma a dualidade numa tríade. Esse termo é, quanto a mim, rigor, rigor expressivo e rigor na percepção e na avaliação judicativa da realidade, dos seus fenómenos e dos seus motores. Usando termos cabalísticos, a poesia de Jorge Melícias rejeita, explícita e concretamente, a coluna da misericórdia, escolhendo antes a oposta. Ou seja, a hesed (amor, piedade, bondade) prefere gueburah (severidade, punição, rigor), adoptando desde modo a inteligência (binah) em detrimento da sabedoria (hocmah). Ao seguir por esse caminho, separa as águas. Regressa às fontes de uma “violência […] fundadora” (verbal, natural e social). E, nesse acto volitivo, pouco ou nada lhe interessam as narrações, descrições ou representações de um pseudo-realismo que por aí alastra como tendência invasora e daninha (cf. Ventura, 2015: 53), lutando antes contra a contaminação entre a existência do autor empírico e a poesia que este escreve (cf. Mãe, 2007). Embora saiba ser impossível construir poemas de que o sujeito se ausente por completo, afirma ainda assim com toda a convicção, nos seus textos e no seu comentário de

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2007: “Nada na minha poesia infere da minha vida, da realidade onde me movo, das minhas preocupações sociais ou políticas” (in Mãe, 2007). * Para entendermos melhor a associação dos três conceitos como motores da poesia de Jorge Melícias, convém voltarmos todavia a Gottfried Benn e ao seu ensaio intitulado Probleme der Lyrik (1951). Nele, o autor de Statische Gedichte é claro no mapeamento das coordenadas do lirismo que propõe. Uso uma tradução castelhana: “[…] El poeta no sabe nunca bastante, nunca trabaja bastante, tiene que estar cercano a todo, tiene que indagar dónde se halla el mundo hodierno, qué hora es sobre la tierra en este mediodía. Hay que arrimarse al toro, dicen los grandes diestros, y habrá entonces probabilidades de victoria. […] De todo ello proviene el poema […]: el poema absoluto, el poema sin fe, el poema sin esperanza, el poema que no va dirigido a nadie, el poema hecho de palabras […]. […] quien perciba detrás de esta formulación sólo nihilismo y lascívia, pasa por alto el hecho de que, detrás de la formulación y de la palabra, quedan todavía bastantes manchas oscuras y abismos del ser para contentar los espíritus más profundos, y que en toda forma fascinante existen bastantes sustancias relacionadas con la pasión, la naturaleza y la experiencia trágica. Pero, qué sentido tiene entonces esa eterna habladuría acerca de la crisis de principios y de la catástrofe de la civilización, que tenemos que soportar, si ustedes no quieren considerar de qué se trata efectivamente y si no desean tomar una decisión? Sin embargo, es necesario que ustedes tomen esa decisión! Los géneros que no se someten a sus leyes y a su orden intrínseco, pierden su tensión formal y fenecen. Nuestro orden es el espíritu, su ley es la expresión, la característica, el estilo. El resto es decadencia. […] ese poema sin fe, ese poema sin esperanza, ese poema que no va dirigido a nadie, es trascendente, es, citando acerca del asunto a un pensador francés, ‘la ejecución de un devenir que depende del ser humano, pero que al mismo tiempo lo excede’.” (in Abiada, 1983: 203 – 204). Permiti-me a longa transcrição, de modo a enquadrar com maior profundidade o quanto existe entre Benn e Melícias um diálogo sem tempo, mano a mano. Qualquer conhecedor da obra do português reconhecerá a sua vinculação ao mundo contemporâneo, a sua corajosa tomada de posição perante a crise e a catástrofe da nossa civilização, mas também a sua procura do “poema absoluto”, sem destinatários, centrado na palavra e, portanto, distante de qualquer referencialidade sentimental externa. Ao pressentir-se nos seus textos “um Deus omisso que se revela no modo como se renuncia ontologicamente a si mesmo” (Teixeira, 2013: 10), percebemos também que nos seus versos não conseguimos encontrar “nihilismo” ou “lascívia”. Mais facilmente nos vemos obrigados a admitir que, de modo peculiar, a sua obra se apresenta como “poema transcendente”, livro contínuo em permanente construção onde as “manchas escuras e os abismos” correspondem, sobretudo, a uma “experiência trágica”, tal como propunha o expressionista alemão. A hybris corresponde, 4

assim, à acção decidida e audaz do sujeito contra o horror de uma civilização arrasada; a humildade responde à necessidade de submissão do discurso à ordem espiritual, às leis expressivas e às características estilísticas de um poema que deve ser erigido enquanto entidade verbal autárcica; o rigor é ponte entre os dois pólos da tensão filosófica e expressiva, resultando numa inteireza que afecta a observação, a reacção e a emissão textual como luta contra a decadência existencial e artística. A tríade estruturante tem assim implicações sérias na recepção dos textos do autor d’ a longa blasfémia, na sua leitura e aceitação. Causa em nós uma “inquietante estranheza”, aquele perturbador estranhamento que Sigmund Freud, à boa maneira judaica, esquadrinhou investigando o termo unheimliche (cf. Freud, 1985). * Em Das Unheimliche, ensaio publicado em 1919, sete anos depois desse livro perturbante que Gottfried Benn intitulou Morgue und andere Gedichte (Morgue e outros poemas), o pai da psicanálise sublinha que o sentimento de “inquietante estranheza” é inseparável da desorientação sentida perante um objecto, acontecimento ou texto, caracterizados pela suspeição, pela repulsividade ou pela incómoda falta de familiaridade. O termo alemão, em parte sinónimo do vocábulo grego xénos, chega ao ponto de ter uma conotação demoníaca e arrepiante em hebraico e árabe, na medida em que corresponde a tudo quanto deveria continuar oculto, secreto, na sombra, mas foi indevidamente desvelado (cf. Freud, 1985: 216 – 217, 222). O embate é angustiante: “[…] Le profane se voit là confronté à la manifestation des forces qu’ il ne présumait pas chez son semblable, mais dont il lui est donné de ressentir obscurément le mouvement dans les coins reculés de sa propre personnalité.” (Freud, 1985: 249) A intensidade da inquietação é ainda maior se a estranheza derivar não de uma experiência vivida, mas da leitura de um texto literário ou da observação (ou visionamento) de uma obra artística. Dispensando a prova vinda da passagem do fenómeno pelos cinco sentidos – ao serem desprovidos de carácter apofântico –, permitem a produção de fenómenos e de efeitos que nunca se verificariam na existência chã do receptor (cf. Freud, 1985: 258 – 259). O autor de Der Moses des Michelangelo é peremptório: “[…] un effet d’ inquiétante étrangeté se produit souvent et aisément, quand la frontière entre fantaisie et réalité se trouve effacée, quand se présente à nous comme réel quelque chose que nous avions considéré jusque-là comme fantastique, quand un symbole revêt toute l’ efficience et toute la signification du symbolisé […]” (Freud, 1985: 251). Penso que a poesia de Jorge Melícias entra nesta categoria, tanto na perspectiva de um receptor quanto nas suas idiossincrasias linguísticas, estilísticas e filosóficas.

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Se se dispõe a esquadrinhar os seus meandros, respondendo ao desafio proposto com altivez por cada um dos versos, o leitor não pode deixar de sentir-se desorientado, inquieto, angustiado e até arrepiado, ao deparar-se com a associação do húmus com a hybris através do rigor extremo e, também, ao confrontar-se com uma visão especular, com o seu duplo mais radical e audaz que, de repente, deixa de ser Isso para se transformar num Tu ou, melhor dizendo, num Eu-Tu. Como refere Martin Buber, ao estabelecer-se enquanto relação, o objecto transforma-se em sujeito-outro, entrando em incessante e irreversível metamorfose de modo a permitir e a intensificar o encontro (cf. Buber, 2014: 15 – 22). Só as grandes obras de arte chegam a esse ponto. O processo psicológico é apresentado em Das Unheimliche: “[…] Dans le moi se spécifie peu à peu une instance particulière qui peut s’ opposer au reste du moi, qui sert à l’ observation de soi et à l’ autocritique, qui accomplit le travail de la censure psychique et se fait connaître à notre conscience psychologique comme ‘conscience morale’. […]” (Freud, 1985: 237). O filósofo judeu falecido em Jerusalém em 1965 vai mais longe, explicando o processo de construção da angustiante estranheza que provocam experiências semelhantes à que se vive na leitura, beneditina, dos textos de Melícias: “[…] O mundo que assim te aparece não é de confiança, pois surge-te sempre novo, e não podes fiar-te da sua palavra; não tem densidade, porque tudo nele penetra tudo; carece de duração, porque aparece sem ser chamado e, quando agarrado, desvanece-se; é inabarcável: se pretendes torná-lo inapreensível, perde-lo […]” (Buber, 2014: 35) Vai mais longe, relevando a violência do processo, ao compará-lo com a relação do homem primigénio com a sua envolvência: “As vivências de encontro do homem primevo não eram, decerto, de um deleite afável; mas mais vale a violência perante seres que realmente se experimentaram do que a solicitude espectral para com números sem rosto! Dos primeiros há um caminho que leva a Deus, destes últimos só há uma senda para o nada.” (Buber, 2014: 27 – 28). Recordo os propósitos expostos pelo autor de agma na sua entrevista de 2007: “Para mim a beleza está, inextrincavelmente, ligada à violência. Uma violência irrompente, fundadora, tão latente quanto recidiva. Considero pouco a beleza na sua eloquente passividade, subtraída a toda a dinâmica, como um produto acabado.” Uma violência fundadora, irrompente. Começar de novo – parece ser a proposta de Melícias. As idiossincrasias linguísticas, estilísticas e filosóficas da poesia que vamos estudando propiciam, elas próprias, o nascimento dessa “inquietante estranheza”. Sobretudo as duas primeiras. Não se tendo instituído pour épater le lecteur e muito menos le bourgeois, revestem-se de uma distinção formal, sintáctica e vocabular que não é produto do acaso nem de uma arrogância verbal, mas corresponde a uma necessidade intrínseca da descomedida, insolente e transgressora matéria tratada. Concretizam, de certo modo, uma “poesia transumana”, tal como foi concebida por Dalila Pereira da Costa,

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caracterizada por uma linguagem afastada dos usos quotidianos e coloquiais da língua (cf. Ventura, 2014: 12). A análise de José Rui Teixeira é eloquente: “[…] não são as palavras que se rarefazem na poesia de Jorge Melícias, que se silenciam, que se extinguem em silêncio. O poeta condena a complexidade sintática [a hipotaxe], não a palavra; e condena-a à parataxe, não ao silêncio. Este processo de redução, de restrição sintática, resulta numa sobrevalorização da função estrutural do semantema. A palavra não se rarefaz, nem se multiplica. A palavra fica isolada na aridez paratática do poema. O vocábulo adquire uma densidade muito rara […]. […] possibilita-lhe um tom árido e sapiencial […]” (in Melícias, 2014: 178). * “[…] o que perturba e torna perplexo o pensamento do lusíada é que a existência de Deus seja compossível com a existência do mal. […] eis o que causa perturbação, perplexidade e escândalo de todos quantos afirmam a existência de Deus” (Ribeiro, 1953: 47). A constatação, expressa por Álvaro Ribeiro em Apologia e Filosofia, pode aplicar-se ao fundo teológico da poesia de Jorge Melícias. Não deixemos no entanto toldar o nosso entendimento pelo vocábulo “lusíada”. O filósofo d’ A Razão Animada, ao escrevê-lo, conhecia bem os escritos do cabalista Isaac Lúria, cujo centro da obra reside, precisamente, na indagação das causas da existência do mal (cf. Roob, 2006: 263), bem como os de Sampaio Bruno, através do seu mestre Leonardo Coimbra. Pensador etimológico, cuja leitura pode desorientar os incautos e os lentos de entendimento, decerto não menosprezou nessa opção vocabular o parentesco existente entre luz, lusíada e luciferino. Recordo que, em latim, lucifer não é, na verdade, o nome próprio de um ser demoníaco, mas um adjectivo: “luminoso”, “transportador” ou “propiciador de luz”. “O vocábulo adquire uma densidade muito rara […]. […] possibilita-lhe um tom árido e sapiencial […]”, referiu com capacidade de observação e de penetração José Rui Teixeira (in Melícias, 2014: 178). Concordo. Gostaria, todavia, de atribuir à poesia que venho abordando outra qualificação, complementar ou esclarecedora da sua densidade, aridez e sapiência. Na minha leitura, estamos perante um pensador hierático, veraz e temerário. Se a “forma […] é o traço deixado pelo pensamento”, como defendeu Sousândrade em 1876 (in Campos, 2002: 194), não devemos estranhar o rigor na nomenclatura usada pelo autor de alvídrio, ainda que a sua inclusão no discurso poético escolhido por Melícias, levada quase ao paroxismo, gere em nós uma reacção de inquietante estranheza (unheimliche). Poeta, filósofo e arqueólogo se pode qualificar o autor textual, imagem especular do autor empírico, cuja voz se faz ler em hybris. Arqueólogo? Álvaro Ribeiro esclarece-nos: “[…] o arqueólogo pretende comparar a cultura do seu tempo, não com a cultura do passado, mas com os princípios que a transcendem, porque é esse o seu processo de realizar obra de filosofia. […] o arqueólogo arquitecta, isto é, desenha de dentro para fora, o movimento gerador da alta cultura” (Ribeiro, 1953: 44). 7

Um autor assim só poderia dar-nos textos dominados pela densidade e pela veracidade, pela aridez e pela audácia, pelo hieratismo e pela sapiência. Fixemo-nos na audácia, pobre sinónimo da hybris que Melícias escolheu para dar título à nova edição da sua obra reunida. Devo começar por recordar a tríade antes apresentada como estrutura óssea que sustenta o corpus poético deste autor: humildade e hubricidade relacionando-se por intermédio do rigor. Recorro, mais uma vez, aos ensinamentos de Apologia e Filosofia: “Conceber a verdade como via, e não como ponto de partida ou de chegada, é esforço de humildade da inteligência que não se compadece com a atitude repousada dos positivistas ou fixistas” (Ribeiro, 1953: 58). A procura da verdade, como via humilde mas temerária que leva a inteligir e obriga ao movimento, confrontada com a perturbação, a perplexidade e o escândalo, gera a hybris, a qual terá consequências expressivas e filosóficas. Se algo pode resumir o pensamento expresso nos poemas de Melícias (melhor diria: no “poema incessante” de Melícias…) é a resposta, de um alto representante da espécie humana, à “existência de Deus […] compossível com a existência do mal” (Ribeiro, 1953: 47). E que resposta é essa? O tradutor de Leopoldo María Panero parece qualificá-la como a longa blasfémia, designação de uma das sequências inclusas neste volume. Note-se que é esse o único título que se alarga além de um vocábulo isolado, definindo-se em supremacia com a aposição do determinante e em vastidão com a atribuição do adjectivo, anteposto. A expressão recupera o final do derradeiro poema-fragmento desse livro, o que lhe confere um carácter circular: “Vi as crias à solta pela insídia. / Na fonte ostentavam / a longa blasfémia.” De certo modo, há no mesmo conjunto outro poema que explica e intensifica o excerto que acabei de transcrever: “O animal sobreleva-se do que sangra. // Canta se na raiz do bafo / surdem as mós da blasfémia. // Ele está diante do abismo // e projecta-se inteiro na heresia.” Se hybris sintetiza uma atitude descomedida do sujeito poético / autor textual perante a humanidade, o mundo e a divindade, verificamos o cenário observado em profligação (devastação, derrube, abate, destruição), as suas consequências em agma (fragmento, fractura) e em incŭbus (terror nocturno, sufocação no sono, pesadelo provocado pelo demónio da fornicação). Esses ingredientes, tão ponderosos, levam à felonia, ou seja, à insubmissão do vassalo ao seu senhor, à traição, à maldade, à crueldade e à ferocidade. Confrontados com o maligno espalhado pelo mundo e dominando os homens, outros autores da nossa língua procuraram dar-lhe resposta, escrevendo obras perturbadoras. Raul Brandão – “o maior poeta de Portugal”, na opinião do autor de Duplo Passeio (Brandão & Pascoaes, 1994: 226) – registou nas primeiras décadas do século XX um cenário de horror que, embora expresso de outro modo, numa

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prosa medida, mas torrencial, não fica atrás do que encontramos em Melícias um século depois: “Este mundo em que vivemos é uma mentira monstruosa. […] Como é possível isto? Como é possível que esta gente que trabalha toda a vida acabe a vida a pedir? […] enquanto uns penam e falam em temerosas realidades, ou pela sua boca ou pela boca dos mortos, os outros, os lá de baixo, falam em coisas abstractas que estão ao lado da vida. § Cada vez o mundo me mete mais medo… […]” (Brandão, s/d: 20) “[…] Há obscuridades, desalentos; clarões d’ incêndio iluminam os quatro cantos do globo. Urros de prazer, urros de besta aniquilada. Desesperos. Grotesco. Infâmias. Ouve-se num fundo remoto o telintar do dinheiro… Depois mais ânsia, um remexer admirável – ferro e sonho. Paragens, inquietações, renúncias. Luta e tragédia – para deparar com Deus… […]” (Brandão, 1912: 12). José Régio, que via no teatro a mais alta expressão do seu pensamento e da sua poesia, levou toda a sua existência a questionar o mesmo problema central da vida humana: a coexistência do mal e da divindade. De entre as obras em que desvelou o seu confronto com essa questão, as melhores respostas foram dadas em duas peças com títulos elucidativos: Jacob e o Anjo e A Salvação do Mundo. O primeiro designativo é, aliás, deíctico de uma tradição ancestral. Resume, de certo modo, o confronto do homem com o Ser transcendente, a luta por vezes encarniçada entre a criatura e o Criador, que encontramos tanto no conhecido passo do chamado Ciclo de Jacob, incluso no livro do Génesis (Gn 32, 25 – 33), quanto na logomaquia registada no extraordinário Livro de Job. Seja qual for a resposta encontrada e/ou proposta pelos diversos autores para as causas do mal, para as suas consequências e para a sua coexistência com Deus, não há dúvidas de que levam o poema a aproximar-se da suprema Poesia, elevando-o ao mais alto grau, assumindo-se o texto enquanto expressão do inconsciente e do sobrenatural, como afirmou Álvaro Ribeiro, apurando o seu mestre portuense Teixeira Rego (cf. Ventura, 2015: 54). Jorge Melícias pertence, quanto a mim, a esta família, articulando a tradição portuguesa (judaico-cristã) com alguns pontos salientes do testemunho do expressionismo benniano e com laivos do simbolismo de Eugénio de Castro (sobretudo no rigor inaudito do vocabulário). Escrevendo desde finais do anos ’90 do século passado, o seu desassombro é no entanto muito mais intenso e audaz, parecendo responder a Paul Celan, ao afirmar que, afinal, é possível escrever poesia depois do horror e perante o horror. Interpela, ao mesmo tempo, os paradigmas vigentes de beleza, bondade e verdade, talvez dando novo vigor à Scena do Odio escrita por Almada Negreiros. Por isso inscreveu como eixo da sua obra em construção o termo grego hybris, associando-o a blasfémia e felonia. Com raízes no hebraico obrh (agitação, emoção, arrogância, ira, raiva) (cf. Espírito Santo, s/d: 197), o termo grego hybris traz consigo a violência, o descomedimento, a insolência, a presunção, a paixão exagerada oposta à 9

sofrósina (prudência, bom senso, comedimento). É uma atitude dirigida contra os deuses por seres humanos que subvertem a ordem social ou, então, por heróis que assumiram a transgressão como via de acesso à plenitude das suas capacidades e do seu ser ou como concretização do seu destino. Poderemos lembrar as acções e o destino de personagens míticas como Heitor, Édipo ou Héracles, mas também Adão e Eva ou, mesmo, Lúcifer. Não esqueçamos contudo que, na leitura de Heraclito, a “guerra é comum” e “as coisas vêm a ser segundo discórdia e necessidade”, sendo a tensão bélica entre os opostos um mecanismo gerador de vida (cf. Heraclito, 2005: 143 e 170). Desse movimento de confrontação e do seu choque parece, assim, nascer uma nova energia vital. O confronto e a reversão dos paradigmas parecem, portanto, necessários para que a dualidade se quebre e estilhace, podendo assim nascer uma via de libertação. Jorge Melícias diz-nos precisamente isso. Levando o sujeito à afirmação do máximo expoente da sua condição de homem, desafia Deus e comunica aos outros seres que o lêem em felonia: “À asseidade de deus / eu aponho a minha autarcia.” “A sedição é o meu único preito.” “[…] a apostasia é um privilégio dos justos.” O sujeito persegue, constrói e propõe uma arte levada às suas últimas consequências, ao querer trabalhar “a crueldade / pelo lado da exuberância” e, em simultâneo, laborar a ideia de um Deus rarefeito, fixando “sobre a paisagem / o despojamento / que o horror persegue” (felonia). Deseja alcançar, assim, por uma via ascética, o “poema absoluto” do expressionismo que, como avisou Gottfried Benn, se afasta do nihilismo, encontrando-se, por detrás da palavra expressa em máximo rigor conceptual, áreas obscuras e abismos, ou seja, enigmas e mistérios com que o ser escrevente se confronta. Seguindo o poeta alemão, nas propostas supracitadas, a acção verbal deve ser consequente, para dar sentido prático ao “eterno falatório sobre a crise de princípios e a catástrofe de civilização” (cf. Abiada, 1983: 203 – 204). Aí se escreve e se inscreve a blasfémia artística proposta por Melícias nos seus poemas. Numa “fábula” onde andam à solta “cabeças munidas da sua própria loucura” (a longa blasfémia), o sujeito poético ousa ser como Deus, ao apor a autarcia humana à asseidade divina e, também, ao pensar e redigir um poema que, sendo daqui, se eleva acima da humanidade contida na sua autoria e na sua linguagem. Percebendo até que ponto é funda a crise de um sistema antes consensual, ousa reverter os conceitos de bondade, beleza e verdade, expondo a oposição, o conflito e o confronto de modo a provocar um choque que produza novos paradigmas de salvação. Aí reside o cerne da sua hybris que, como vimos, não dispensa a humildade, pelo menos a expressiva, a que chega por intermédio do rigor. *

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Ainda que conhecendo as consequências trágicas dos seus actos verbais, pelo efeito da némesis que fará retornar o indivíduo aos seus limites, mesmo assim o sujeito assume a sua parte de heroicidade. Como o estrangeiro que conversa com Diotima num diálogo publicado por Agostinho da Silva, entre Sócrates e Héracles, a escolha recai sobre o segundo, cuja nobreza e grandeza residem no combate “corajoso e forte”: “[…] parte a combater o mundo que sabe cheio de enganos e de perfídias e de perigos […]; se tem as violências, a fúria dionisíaca que tudo arrasta na sua passagem, sabe também sustentar o peso do mundo sobre os seus ombros […]” (Silva, 1944: 32). É uma escolha entre a verborreia e a vida, preferindo-se a força vital do heroísmo à cobardia de “uma fraqueza inconfessada perante o duro existir” (Silva, 1944: 34), representada por filosofia inconsequente. Sem grandes laivos narrativos, a “fábula” proposta por Melícias apresenta-nos, assim, o registo de uma catábase, de uma descida aos infernos ou ao inferno deste mundo em que existimos em perigo, como seres tresmalhados. Há um certo tom gnóstico ou cátaro nos seus versos, na medida em que a materialidade humana, nas suas diferentes dimensões, nos surge, de certo modo, sob um ponto de vista muito negativo. Execrando-a, o sujeito parece querer arrasar a physis em que subsistimos, como condição prévia para a concretização de uma metanóia. Nada nos diz, contudo, que esta “fábula” tenha chegado ao fim… Ao lermos, absortos, este longo poema, dificilmente deixaremos de vislumbrar/recordar, no nosso confronto com as imagens emanadas de uma descida aos infernos, a grande tradição de obras catabáticas, com a Commedia, de Dante Alighieri, à cabeça. Embora parecendo centrar-se na superfície terrestre, também Jorge Melícias afirma, com outras palavras: “Deixai toda a esperança, vós que entrais”. Resta-nos saber se a essa descida sucederá uma assunção ao paraíso, semelhante à que nos revelou o poeta medieval. O autor de Vita Nuova regista a recta interpretação do letreiro existente sobre a porta do Hades: “Convém deixar aqui temor secreto; / convém toda a vileza seja morta” (Alighieri, 1998: 43; Inferno, canto III, vv. 9 a 15). Ou seja, o abandono da esperança não consiste no desespero, mas no surgimento de uma coragem transcendente, acompanhada por uma purificação espiritual que se concretiza no apagamento da abjecção e da degradação. Melícias propõe/apresenta uma poética da reversão, no exercício da sua autarcia, virando do avesso o conceito de teodiceia, as vias tradicionais de acesso à redenção e, até, a imagem filosófica de uma divindade moral e necessária ou de um Deus como princípio e motor da existência (cf. Cuvillier, 1997: 59 – 60). Trata-se de uma filosofia, de uma poesia e de uma teologia radicais, ao retornarem às raízes arcaicas, pré-cristãs, da relação entre a natureza e a sobrenatureza. Recupera, assim, a violência inicial, fundadora. Daí o apreço pelos “céus devónicos” de Turner, ou seja, por um empíreo convulsivo dominando sobre uma terra ainda em formação, sem humanidade. “Fé” e “esperança” são demasiado humanas para serem consideradas num “poema 11

absoluto” como aquele que vem construindo. Hybris, humildade e rigor exigem algo de mais alto. (Seja-nos permitido reparar, entre parêntesis, num ponto em que o paratexto parece auxiliar e ampliar a leitura. Se o apelido do autor empírico – Melícias – parece resumir a sua poética, sendo parónimo de “milícia”, ou seja, da mole humana que pratica o combate, o seu nome – Jorge –, sendo o de um miles Christi, é também ele revertido na sua legenda, para que a hybris tenha lugar na sua plenitude. Jorge, o cavaleiro santificado, lutou contra as forças abissais, ctónicas, simbolizadas pelo dragão vencido. Jorge, o poeta húbrico, põe em prática uma logomaquia, sendo impiedoso na sua apreciação do mundo, da humanidade e da divindade. Vislumbra o inferno entre nós, à superfície, e já não num lugar inferior. Propõe como arma de refrega contra um cosmos envenenado a toma do seu próprio veneno. A figura titânica que domina esta epopeia do nosso tempo não se limita a afrontar os poderes subterrâneos, agora à solta entre nós; como Jacob, combate de igual modo as potências urânicas, confrontando-as com a sua terribilitas e ousando vê-las em todas as suas dimensões. Aí se encontra a insolência suprema do sujeito deste livro infinito, o seu descomedimento, a sua presunção: ver Deus, não negando a sua asseidade, e ser como Deus, sobrepondo-lhe a sua autarcia.) * Referi, há linhas atrás, o termo logomaquia. Sendo, na minha leitura, uma fábula espraiada por vários livros ou cantos, a obra de Jorge Melícias, parecendo, não se trata de um monólogo. Embora a maior parte dos fragmentos-poemas seja dominada por uma mesma voz equipolente, à qual ninguém parece responder, há alguns passos em que a colocação das aspas nos revela outra presença que, não distante da principal na sintaxe e no vocabulário, nos faz pensar no confronto do sujeito com o seu duplo. Se estivermos atentos, verificaremos no entanto a intensidade do contraponto, nomeadamente no poema final de felonia. Onde essa voz-outra mais se torna evidente é, todavia, em profligação, sequência dividida nos três momentos retóricos. É ela que contrapõe a tese no início da antítese, esclarecendo abertamente as suas palavras na síntese, que domina por completo. Sabendo nós o quanto o encontro Eu-Tu torna os dois pronomes inseparáveis, a ponto de se poder considerar essa palavra fundamental, composta, como um indício ateoteísta, esse Outro pode ser visto como uma resposta interior da divindade às imprecações do sujeito poético. Se o homem é no texto uma figura quase imaterial, dominada pela hybris, essa voz superna vem ao seu encontro, ao ver-se perante alguém que, afinal, “Arrim[a] o [s]eu desamparo na altivez”, sentindo-se cobarde no “modo como a ternura ainda supura / nas ínguas”. Desejou “uma arrogância macerada pela lucidez, / proba na sua torpeza”, mas chegou a um momento em que “Não se trata já de mensurar a dúvida / mas de calibrar a fé”. A proximidade desse Outro parece pôr 12

o rigor em contacto com a misericórdia, edificando no texto a coluna do meio da árvore sefirótica: “É um longo caminho este que o desespero / descreve por dentro da gusa, / à revelia do refrigério da fé. // E a ideia de deus vai-se depositando / como escória / que se eduz ao desengano”. São compreensíveis estes movimentos “narrativos”, que tornam essa parte da fábula – profligação – uma sequência essencial na compreensão do conflito inconsciente, consciente e preternatural que domina, como fundo, a poesia de Melícias. Afinal, se atentarmos nas epígrafes desse livro, verificaremos que, perante a devastação, se recuperam afirmações desse cátaro nihilista chamado Cioran. Incapaz de deixar a sua humanidade, que tanto lhe pesava, não foi capaz de abandonar o desejo de “chegar a Deus” sem “passar pela fé”, enquanto ia “destrui[ndo] em [si] o orgulho de ser homem”, vagueando “na periferia da Espécie como um monstro temeroso”. Sabendo que os versos são “chaves falsas”, como afirmava o autor de Cabo da Boa Esperança (Gama, 1993: 28), o sujeito parece entender o quanto há de luciferino nessa “contenda” ou logomaquia que é a “poesia absoluta”, quando levada ao extremo. Ou seja, conhece o perigo que pode nascer da descoberta do númen na lux divina, quando um momento de theoria se transforma no prometeico transporte dessa luz até à humanidade, como se fosse perpétua propriedade da espécie e não dádiva momentânea e fugaz. Por isso mesmo, essa voz do Outro que parece ser de Deus tenta reconduzir o homem ao seu destino e a uma mais lata humildade. Diminuindo-se, em vez de impor ou de castigar severamente, propõe-lhe, a ele e aos seus semelhantes (nomeadamente àqueles que usam a palavra numa expressão “transumana”), uma némesis que será regresso ao bom-senso, à prudência e ao comedimento, ou seja, à sofrósina: “– Resigna-te: / A tua contenda é com o eco. / E dela sobrará apenas a bravata / da elocução, / a empáfia / que abafas no medo, / a solércia de que te vales / para lidimares a referta. // Mas no fim, quando sobre essa porfia / já não pesar o encómio dos homens, / emendarás sem pejo / a mão que pensaste explicar-te / pela que te garante” (profligação). Conhecemos a proposta do Outro, do Tu. Só não sabemos que resposta lhe dará ou lhe deu o Eu-sujeito. Nem isso é da nossa conta. Como refere o filósofo obscuro, “[o] senhor, de quem é o oráculo, […] não diz nem oculta, porém, assinala” (Heraclito, 2005: 154). É certo que a poesia, ao confrontar-se com o ineffabilis, gera o effabilis. No entanto, para que seja deveras poiésis e não somente mimésis, tem “de imergir, de se recolher, de voltar ao lugar subterrâneo ou supraterrâneo de onde proveio” (Ventura, 2014: 14). Se o desencontro entre Rimbaud e as “potências da fé” foi de facto reivindicado pela generalidade da poesia moderna “como consciente, orgulhoso ponto de partida” (Cesariny, 1985: 85) – o que, na minha leitura, está ainda por demonstrar –, então temos de reconhecer nesta poética da reversão desenvolvida e aprofundada por Jorge Melícias não uma proposta anacrónica, mas uma verdadeira expressão da pós-modernidade, dominada pela acronia e bem distante do relativismo filosófico, artístico e social que está no cerne do 13

chamado pós-modernismo. Ao contrário dessa onda muito surfada (em que a facilidade se tornou utensílio de rebaixamento e de alienação, ao aceitar tudo, nada valorizando), a obra do autor de felonia toma partido, escolhendo a exigência como expressão do rigor que medeia entre o húmus e a hybris. Não deverá ser outro o caminho, outra a via – “até que o sangue / corra no interior da gusa // e contra todas as evidências // arboresça”, como refere o nosso poeta n’ a longa blasfémia. Bibliografia: Abiada, José Manuel López de (1983) – Gottfried Benn [antologia]. Barcelona, Ediciones Júcar. Alighieri, Dante (1998) – A Divina Comédia, Rio de Mouro, Círculo de Leitores Brandão, Raul (1912) – El-Rei Junot. Lisboa, Livraria Brazileira de Monteiro & Cª. [edição fac-similada]. Brandão, Raul (s/d) – Vale de Josafat – Memórias, volume III. Lisboa, Perspectivas e Realidades. Brandão, Raul & Pascoaes, Teixeira de (1994) – Correspondência. Lisboa, Quetzal Editores. Buber, Martin (2014) – Eu e Tu. Prior Velho, Paulinas Editora. Campos, Augusto e Haroldo de (2002) – Re Visão de Sousândrade. 3ª edição revista e aumentada, São Paulo, Editora Perspectiva. Cesariny, Mário (1985) – as mãos na água, a cabeça no mar. Lisboa, Assírio & Alvim. Cuvillier, Armand (1997) – Vocabulário da Filosofia. Lisboa, Livros Horizonte. Duby, Georges & Daval, Jean-Luc (2006) – Sculpture – From the Renaissance to the Present Day. Köln, Taschen. Espírito Santo, Moisés (s/d) – Dicionário Fenício-Português. 2ª. edição, Lisboa, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões – Universidade Nova de Lisboa. Freud, Sigmund (1985) – “L’ inquiétante étrangeté”. L’ inquiétante étrangeté et autres essais, Paris, Éditions Gallimard: 209 – 263. Gama, Sebastião da (1993) – Cabo da Boa Esperança. 3ª edição, Lisboa, Ática. Heraclito (2005) – Fragmentos Contextualizados. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Mãe, Valter Hugo (2007) – “Escrever com preconceitos [uma entrevista a Jorge Melícias]”. Cosmorama 07 – Poetas e Poéticas, Jorge Melícias, Maia, Cosmorama Edições: 7 a 11. Melícias, Jorge (2014) – alvídrio. (Posfácio de José Rui Teixeira), Maia, Cosmorama Edições. Ribeiro, Álvaro (1953) – Apologia e Filosofia. Lisboa, Guimarães & Cª. Editores. Roob, Alexander (2006) – O Museu Hermético – Alquimia e Misticismo. Köln, Taschen. Silva, Agostinho da (1944) – Conversação com Diotima. Vila Nova de Famalicão, edição do autor. Teixeira, José Rui (2013) – O vazio que persiste à minha beira – Sobre o lugar de Deus na poesia contemporânea. Porto, Universidade Católica do Porto, Cátedra Poesia e Transcendência. Ventura, Ruy (2013) – “O surrealismo e as suas consequências absolutas”. A Ideia – revista de cultura libertária, Évora, nº. 71/72, Novembro: 206 – 210. Ventura, Ruy (2014) – “Do (in)efável na poesia”. Prefácio a Inefável – Antologia 2007 – 2013, org. Pedro Silva Sena, Porto, Seda Publicações: 7 – 17. Ventura, Ruy (2015) – “Realismo? Que realismo?”. Devir – Revista Ibero-Americana de Cultura, s/l, nº. 1: 52 – 55.

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