Violências contra a mulher e a Lei Maria da Penha: violação de direitos humanos e o desafio interdisciplinar. In: Relações de Gênero e Sistema Penal

June 19, 2017 | Autor: Bárbara Sordi Stock | Categoria: Domestic Violence, Women and Gender Studies, Violencia De Género, Violencia Doméstica
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Relações de Gênero e Sistema Penal violência e conflitualidade nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher

Chanceler

Dom Dadeus Grings Reitor

Joaquim Clotet Vice-Reitor

Evilázio Teixeira Conselho Editorial

Ana Maria Lisboa de Mello Bettina Steren dos Santos Eduardo Campos Pellanda Elaine Turk Faria Érico João Hammes Gilberto Keller de Andrade Helenita Rosa Franco Ir. Armando Bortolini Jane Rita Caetano da Silveira Jorge Luis Nicolas Audy – Presidente Jurandir Malerba Lauro Kopper Filho Luciano Klöckner Marília Costa Morosini Nuncia Maria S. de Constantino Renato Tetelbom Stein Ruth Maria Chittó Gauer EDIPUCRS

Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe

organizador

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Relações de Gênero e Sistema Penal violência e conflitualidade nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher

Porto Alegre, 2011

© EDIPUCRS, 2011 Capa

Vinícius Xavier

Revisão de texto EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Visual

Produções

impressão e acabamento

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (51) 3320 3711 e-mail: [email protected] - www.pucrs.br/edipucrs.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) R382 Relações de gênero e sistema penal : violência e conflitualidade nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher / org. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2011. 200 p. ISBN 978-85-7430-XXX-X 1. Direito Penal. 2. Violência – Mulheres. 3. Relações de Gênero. I. Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de. CDD 341.59 Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

SUMÁRIO Apresentação....................................................................... 7 CONFLITOS DE GÊNERO NO JUDICIÁRIO: A aplicação da Lei 11.340/06 pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Porto Alegre/RS.............................................................................. 11

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Mariana Craidy O SISTEMA PENAL E AS POLÍTICAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER POR MEIO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA............. 41

Marli Marlene Moraes da Costa , Quelen Brondani de Aquino e Rosane Terezinha Carvalho Porto VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER E A LEI MARIA DA PENHA: violação de direitos humanose o desafio interdisciplinar................................... 69

Bárbara Sordi Stock, Germana Vogt Panzenhagen e Raquel da Silva Silveira SISTEMA PENAL E RELAÇÕES DE GÊNERO: violência e conflitualidade nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher na cidade de Rio Grande (rs/Brasil)............................. 93

Elisa Girotti Celmer, Bruna Tavares, Marta Souza e Maurício Castillo HOMICÍDIOS CONTRA MULHERES E CAMPO JURÍDICO: a atuação dos operadores do direito na reprodução das categorias de gênero........... 107

Rochele Fellini Fachinetto

ERA UMA VEZ UM JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER............................................... 137

Carla Marrone Alimena VIOLÊNCIA DE GÊNERO E LEI MARIA DA PENHA: experiências (IM) possíveis?......................................................... 163

Sarah Reis Puthin JUSTIÇA RESTAURATIVA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONJUGAL: aspectos da resolução do conflito através da mediação penal....................... 179

Renata Cristina Pontalti Giongo

Apresentação Os artigos publicados na presente coletânea são resultado do projeto de pesquisa intitulado Relações de Gênero e Sistema Penal: Violência e Conflitualidade nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, aprovado e financiado pelo CNPq no âmbito do Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA nº 57/2008. Em 1995, a partir de temas discutidos em sua IV Conferência Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) passou a considerar a violência de gênero contra as mulheres questão além de uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres: começou a ser entendida como um empecilho para que fossem alcançados objetivos de igualdade, paz e desenvolvimento social, necessários para que direitos humanos e liberdades individuais fossem plenamente gozados pelos cidadãos. No caso brasileiro, as dificuldades de implantação de um novo modelo para lidar com conflitos sociais, no âmbito penal, desde a criação dos Juizados Especiais Criminais, em 1995, levaram diversos setores do campo jurídico e do movimento de mulheres a adotar um discurso de confrontação e crítica aos Juizados, especialmente direcionado contra a chamada banalização da violência que por via deles estaria ocorrendo. A crítica estava centrada na prática de alguns promotores e juízes que, em sede de transação penal, passaram a propor e aplicar medida alternativa correspondente ao pagamento de uma cesta básica pelo autor do fato, em vez de investir na mediação e na aplicação de medida mais adequada para o equacionamento do problema sem o recurso à punição.

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo Org.

O processamento dos casos de violência contra a mulher pelos Juizados Especiais Criminais gerou opiniões contraditórias não apenas no interior do movimento feminista, mas também entre os(as) pesquisadores(as). Alguns perceberam os JECrim como benéficos à luta das mulheres, por darem visibilidade ao problema da violência de gênero, que antes não chegava ao âmbito judicial. Outros entenderam que os Juizados ampliaram a rede punitiva estatal, judicializando condutas que antes não chegavam até o Judiciário, mas em muito pouco contribuíram para a diminuição do problema da violência conjugal, pela impunidade decorrente da banalização da alternativa da cesta básica. Incentivado por uma ampla mobilização, capitaneada pela Secretaria Nacional dos Direitos da Mulher, o Legislativo brasileiro produziu uma verdadeira “revolução” no tratamento da matéria, abandonando o que há uma década era visto como um novo paradigma, pautado pela mediação e pelo consenso, e aderindo à intervenção do sistema penal para dar conta do problema. A Lei 11.340/06 definiu violência doméstica ou familiar contra a mulher como sendo toda ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, em que o agressor conviva ou tenha convivido com a agredida. Ainda, no parágrafo único do referido artigo, há a ressalva de que as relações íntimas mencionadas independem de orientação sexual, do que se pode entender a possibilidade do “agressor” também ser mulher, caso se trate de uma relação homossexual. Da leitura do art. 5º da Lei 11.340/06, depreende-se que os seus dispositivos deverão abarcar não só o delito de lesão corporal (art. 129, § 9º, do CP), mas todos os delitos praticados contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar. Em suma, a apuração de qualquer tipo de violência em que a vítima seja mulher, desde que o sujeito ativo tenha com ela relações íntimas de afeto ou de convivência em uma mesma unidade doméstica, será regulada pela Lei em análise. Ademais, a Lei Maria da Penha, ao enumerar o dano moral e patrimonial como consequência da violência doméstica e familiar, engloba os casos de apropriações indébitas, furtos e outros delitos de cunho patrimonial praticados contra a mulher no âmbito doméstico.

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Em relação às lesões corporais leves, a referida Lei instituiu um aumento da pena máxima em abstrato para o crime de lesão corporal leve (art. 129, § 9º, do CP), que passou a ser punido com três meses a três anos de detenção. Com essa medida, retirou dos JECrim a competência para o processamento desse delito e previu a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Como esses Juizados ainda não foram criados nem o serão na grande maioria das Comarcas, a competência para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher é dada às Varas Criminais, tanto no âmbito criminal como no âmbito cível. Ou seja, retira-se o caso do JECrim, em que era muitas vezes realizada a mediação e homologado pelo juiz o compromisso de respeito mútuo, e encaminha-se para uma Vara frequentemente sobrecarregada com homicídios, roubos, estelionatos e delitos sexuais graves, e exige-se ainda que sejam também resolvidas as questões envolvendo o Direito de Família. Optou-se ainda por prever expressamente, no art. 41, que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099. Agora, caso o juiz entenda necessário o comparecimento do agressor em programa de recuperação e reeducação, a medida é tomada de forma impositiva, e não mais como parte de uma dinâmica de mediação, ou mesmo de transação penal. Com a pesquisa realizada, buscaram-se identificar os elementos que compõem as relações de gênero, nos casos encaminhados aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar estruturados no estado do Rio Grande do Sul, com a finalidade de compor o perfil das partes envolvidas, os motivos que levaram à violência e as expectativas e os resultados obtidos por meio dos Juizados. Também se visa sistematizar o material doutrinário e jurisprudencial relativo ao impacto produzido pela Lei 11.340/06; identificar as alternativas oferecidas no Direito comparado; contribuir para a reflexão sobre os resultados da Lei 11.340/06, assim como para a capacitação dos operadores jurídicos e demais profissionais envolvidos com o tratamento institucional da violência de gênero; e verificar as possíveis dificuldades para a realização de mudanças sociais por meio do Direito, assim como os efeitos imprevistos produzidos pela nova legislação.

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo Org.

Nas páginas que seguem, pretende-se dar publicidade a alguns dos resultados alcançados e das reflexões realizadas pelo Grupo de Pesquisa, tendo claro que os trabalhos aqui apresentados não esgotam a riqueza e a complexidade do tema. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

CONFLITOS DE GÊNERO NO JUDICIÁRIO A aplicação da Lei 11.340/06 pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Porto Alegre/RS

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo1 Mariana Craidy 2

1. Conflitos de Gênero e Justiça Penal A elaboração da Lei 11.340/06 parte, em grande medida, de uma perspectiva crítica aos resultados obtidos pela criação dos Juizados Especiais Criminais para o equacionamento da violência de gênero. Os problemas normativos e as dificuldades de implantação de um novo modelo para lidar com conflitos de gênero levaram diversos setores do campo jurídico e do movimento de mulheres a adotar um discurso de confrontação e crítica aos Juizados, especialmente direcionado contra a chamada banalização da violência que por via deles estaria ocorrendo, explicitada na prática corriqueira da aplicação de uma medida alternativa correspondente ao pagamento de uma cesta básica pelo acusado, ao invés de investir na mediação e na aplicação de medida mais adequada para o equacionamento do problema sem o recurso à punição.

1 Sociólogo e Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais da PUCRS. 2

Advogada e Especialista em Ciências Penais pela PUCRS.

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Mariana Craidy

É o que se verifica, por exemplo, na manifestação da Desembargadora Maria Berenice Dias, em obra publicada sobre a Lei 11.340/06: A ênfase em afastar a incidência da Lei dos Juizados Especiais nada mais significa do que reação à maneira absolutamente inadequada com que a Justiça cuidava da violência doméstica. A partir do momento em que a lesão corporal leve foi considerada de pequeno potencial ofensivo, surgindo a possibilidade de os conflitos serem solucionados de forma consensual, praticamente deixou de ser punida a violência intrafamiliar. O excesso de serviço levava o juiz a forçar desistências impondo acordos. O seu interesse, como forma de reduzir o volume de demandas, era não deixar que o processo se instalasse. A título de pena restritiva de direito popularizou-se de tal modo a imposição de pagamento de cestas básicas, que o seu efeito punitivo foi inócuo. A vítima sentiu-se ultrajada por sua integridade física ter tão pouca valia, enquanto o agressor adquiriu a consciência de que era “barato bater na mulher (DIAS, 2007, p. 8). Nas pesquisas realizadas sobre o funcionamento dos JECrim, não há, no entanto, um consenso sobre o significado de sua implantação para o equacionamento judicial da violência de gênero. Alguns perceberam os JECrim como benéficos à luta das mulheres por darem visibilidade ao problema da violência de gênero, que antes não chegava ao âmbito judicial em virtude da obrigatoriedade do inquérito policial, que acabava não sendo realizado. Outros entenderam que os Juizados ampliaram a rede punitiva estatal, judicializando condutas que antes não chegavam até o Judiciário, mas em muito pouco contribuíram para a diminuição do problema da violência conjugal, pela impunidade decorrente da banalização da alternativa da cesta básica. Em relação às lesões corporais leves, a Lei 11.340/06 instituiu um aumento da pena máxima em abstrato, se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, que passou a ser punido com três meses a três anos de detenção. Com essa medida, retirou dos JECrim a competência para o processamento desse delito e previu a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.

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Optou-se ainda por prever expressamente, no art. 41, que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099/95. Agora, caso o juiz entenda necessário o comparecimento do agressor em programa de recuperação e reeducação, a medida é tomada de forma impositiva, e não mais como parte de uma dinâmica de mediação, ou mesmo de transação penal. A exclusão do rito da Lei 9.099/95, expressa no art. 41 da Lei 11.340/06, para o processamento de casos de violência doméstica, deixa uma reduzida margem para a conciliação. Além disso, reenvia esses delitos para a Polícia Civil, pois agora dependem novamente da produção do inquérito policial. Embora a Lei tenha sido bastante minuciosa ao orientar a atividade policial, são conhecidas de todos as dificuldades existentes, tanto estruturais quanto culturais, para que esses delitos venham a receber por parte da Polícia o tratamento adequado, o que certamente vai implicar uma redução do acesso ao Poder Judiciário. Incluindo a prisão preventiva como medida protetiva de urgência cabível em determinadas circunstâncias, a nova lei concedeu ainda ampla discricionariedade ao juiz para decidir sobre a necessidade da segregação cautelar do indivíduo acusado da prática de violência contra a mulher, valendo-se de relações domésticas e familiares. Com referência às relações das mulheres com o mundo do Direito, Ana Lúcia Sabadell salienta que há algumas décadas pesquisadoras oriundas dos movimentos de mulheres começaram a estudar a possível contribuição do sistema jurídico para a perpetuação das violações dos direitos da mulher. Surgiram, assim, estudos que realizavam tanto leituras internas, relativas à estrutura do Direito positivo, como leituras externas, relativas à eficácia e às relações entre o Direito e a cultura machista/sexista (SABADELL, 2008, p. 259). Salientando as dificuldades para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher, Sabadell lembra os limites do Direito para resolver o problema. Para ela, esses limites tornam-se claros na escassa eficácia secundária das normas que combatem “no papel” a violência doméstica e também no fato de que a eventual punição do agressor quase nunca resolve o problema de forma satisfatória para a mulher.

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Em importante estudo sobre o papel do sistema judiciário na resolução dos conflitos de gênero, Wania Pasinato Izumino conclui, seguindo hipótese elaborada a partir de outros estudos (ARDAILON e DEBERT, 1987), que a Justiça, ao julgar os casos que lhe são apresentados, pauta-se não apenas pelo crime e a presença de elementos que comprovem sua ocorrência (autoria, materialidade e os vínculos pertinentes a esses dois aspectos), mas por motivações extralegais que se referem aos comportamentos sociais das vítimas e de seus agressores. Em relação aos casos que envolveram conflitos de gênero, os papéis sociais são sempre referenciados às instituições família e casamento e aos aspectos definidores desses papéis sociais nessas instâncias: sexualidade feminina e trabalho masculino (IZUMINO, 2004, p. 268).

2. A Lei Maria da Penha no Judiciário – Análise da Jurisprudência dos Tribunais Procurando dar um novo tratamento à violência doméstica contra a mulher, a Lei 11.340/2006 trouxe uma série de inovações, entre as quais a criação de juizados especializados para o julgamento tanto do delito quanto das questões de direito de família, a previsão de medidas protetivas, o aumento da pena para o delito de lesões corporais quando a vítima for mulher e o impedimento de utilização da transação penal e de outras medidas previstas pela Lei 9.099/95. As pesquisas até agora realizadas mostram uma grande diversidade de entendimentos no Judiciário a respeito da aplicação das novas previsões legais. Através do levantamento da jurisprudência dos tribunais, pretendemos identificar as principais tendências interpretativas que vêm moldando a aplicação da Lei 11.340/2006 no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, e os argumentos utilizados para sustentar as decisões. Antes de ser aprovada a Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340/06, as lesões corporais leves e ameaças praticadas contra a mulher, por serem delitos de menor potencial ofensivo (pena máxima até dois anos de reclusão) eram, desde a Lei 9.099/95, de competência dos Juizados Especiais Criminais. Na delegacia, dispensado o inquérito policial, era lavrado um termo circunstanciado, remetido ao Poder

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Judiciário, havendo a possibilidade de conciliação entre a vítima e o agressor e de aplicação de medida alternativa por meio da transação penal. A Lei Maria da Penha, no seu artigo 41, afastou a aplicação da Lei 9.099/95 aos casos em que se configura a violência doméstica contra a mulher. A nova lei também vedou, no artigo 17, a aplicação de penas de cesta básica ou outras penas de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. A Lei 11.340/06 prevê a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, no seu artigo 14, com competência originária cível e criminal. Anteriormente, não havia previsão sobre a possibilidade de prisão preventiva do agressor nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. A Lei Maria da Penha prevê esta possibilidade, conforme disposto em seu artigo 20: Art. 20 da Lei 11.340/2006:  Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.

A Lei nº 11.340/2006 acrescentou ainda o inciso IV ao artigo 313 do Código de Processo Penal, criando uma nova hipótese de prisão preventiva, se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher. A prisão pode ser decretada de ofício pelo Juiz. Conforme a nova redação do artigo 313, IV, do Código de Processo Penal: Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos: IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

Outra inovação da lei é a obrigatoriedade da notificação à vítima dos atos processuais relativos ao agressor, prevista no artigo 21 da Lei 11.340/06: Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e a saída do agressor da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público.

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Esse mesmo artigo, no seu parágrafo único, determina que: “a ofendida não poderá entregar a intimação ou notificação ao agressor”. Antes da vigência da nova lei era muito comum que a própria vítima, após registrar ocorrência na delegacia, entregasse ao seu agressor a intimação ou a notificação para comparecimento à delegacia. Antes da Lei Maria da Penha, existia a possibilidade de a mulher/vítima desistir da denúncia contra o seu agressor na delegacia. Após a edição da Lei Maria da Penha, a mulher/vítima só poderá renunciar à representação perante o Juiz, em audiência designada para tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público, conforme o disposto no artigo 16.

2.1 Sobre a Constitucionalidade da Lei Maria da Penha Muito se tem discutido acerca da inconstitucionalidade da Lei 11.340/2006. A principal alegação é que a lei protege única e exclusivamente a mulher, e somente ela pode ser sujeito passivo de violência doméstica e familiar. Com isso, a lei estaria rompendo com o princípio da igualdade em matéria penal. De fato a Lei Maria da Penha é uma legislação que adota uma perspectiva de gênero. Para os defensores da Lei, a mesma surgiu justamente para sanar a omissão do Estado Brasileiro para com a violência doméstica e familiar contra a mulher. Para Adriana Ramos de Melo, a lei é “uma ação afirmativa em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar”, cuja necessidade era urgente. A autora explica: Só quem não quer enxergar não vê a legitimidade de tal ação afirmativa que, sob aparência de ofensa ao princípio da igualdade de gênero, na verdade, busca restabelecer a igualdade material entre esses gêneros. (...) Para alguns, o Direito Penal não deveria se orientar pelo gênero, e sim se mostrar indistintamente válido a homens e mulheres, ainda que estas venham a ser principais destinatárias de proteção específicas. (...) As mulheres são reconhecidamente mais vulneráveis a esse tipo de violência e as estatísticas demonstram esses dados. (...) Ressalta-se que as mulheres dos mais diferentes segmentos da sociedade passam por iguais agressões, não se tem como delimitar que um tipo de homem

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agride um tipo de mulher; e sim que todas as mulheres que são agredidas têm uma história antiga de violência. Essas mulheres relatam anos de violência psicológica, física, verbal que as deixam sempre com medo e culpa. Nesse contexto, adveio a Lei 11.340/06 para dar à mulher em situação de violência doméstica e familiar um tratamento multidisciplinar e diferenciado, criando mecanismos legais para coibir esse tipo de violência tão endêmica na nossa sociedade (MELO, 2007, p. 48-49).

Na doutrina e na jurisprudência tem prevalecido o entendimento de que a Lei Maria da Penha é constitucional. O fato de que a Lei seja considerada constitucional não invalida as críticas quanto à retirada dos delitos de violência doméstica contra a mulher dos Juizados Especiais Criminais, e a opção por retomar o moroso e nem sempre adequado sistema penal clássico (inquérito policial, denúncia, instrução probatória, sentença, recursos). Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini afirmam que a opção do legislador em afastar a Lei 9.099/95 retrata um “erro crasso”: Ao abandonar o sistema consensual de Justiça (previsto na Lei 9.099/95), depositou sua fé (e vã esperança) no sistema penal conflitivo clássico (velho sistema penal retributivo). Ambos, na verdade, constituem fontes de grandes frustrações, que somente poderão ser eliminadas ou suavizadas com a terceira via dos futuros Juizados, que conterão uma equipe multidisciplinar (mas isso vai certamente demorar para acontecer; os Estados seguramente não criarão com rapidez os novos juizados). De qualquer modo, parece certo que no sistema consensuado o conflito familiar, por meio de diálogo e do entendimento, pode ter solução mais vantajosa e duradoura; no sistema retributivo clássico isso jamais será possível (GOMES e BIANCHINI, 2006).

2.2 Sobre a renúncia ao direito de representação A Lei Maria da Penha, no artigo 16, prevê a possibilidade da vítima de violência doméstica renunciar ao direito de representar contra o seu agressor. O prazo previsto para o exercício do direito de representação é de 6 (seis) meses, contados do dia em que se vier a saber quem é o autor do crime, ou no dia em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia, conforme artigo 38 do Código de

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Processo Penal. Ela pode ser feita, de acordo com o artigo 39 do Código de Processo Penal, perante autoridade policial, pessoalmente ou via procurador com poderes especiais. A renúncia à representação, nos crimes de violência doméstica contra a mulher de ação penal pública condicionada à representação da ofendida, só será admitida perante o Juiz, e em audiência especialmente designada para tal finalidade, desde que antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. De acordo com o artigo 25 do Código de Processo Penal, a retratação só é permitida até o oferecimento da denúncia. Porém, a Lei 11.340/2006 trouxe outra solução para esse caso. Permitiu a retratação, nos crimes de violência contra a mulher, mesmo depois de recebida a denúncia, ficando a critério do juiz aceitar ou não essa retratação. Nesse sentido julgou o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: EMENTA. LEI MARIA DA PENHA. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA ANTES DA AUDIÊNCIA ESPECIAL. ANULAÇÃO. RETRATAÇÃO EM JUÍZO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PRESERVAÇÃO DA PAZ NO AMBIENTE FAMILIAR. DECISÃO IRRETOCÁVEL. A denúncia não deveria ter sido recebida antes da audiência especial materializada à fl.72, na qual a ofendida manifestou o desejo de se retratar/renunciar da representação, exatamente para evitar que seu desejo não fosse considerado, face ao contido no art. 16 da Lei 11.340/2006, que permite a prática do ato antes do seu recebimento e não como disciplinado nos artigos 25 do CPP e 102 do CP, derrogados, no ponto, pela nova disciplina, isto com objetivo de se conseguir a paz no ambiente familiar, restaurando-se a convivência harmoniosa no lar, que não pode ser obstaculizada por intransigência de Juízes ou Promotores, ainda mais quando envolvido casal com seis filhos. No caso, o recorrido sequer foi citado para responder a acusação, através de advogado ou defensor dativo, como preconizado nos artigos 396 e seguintes do CPP, aplicáveis por determinação do artigo 13 da Lei Maria da Penha. Improvimento do recurso (APELAÇÃO Nº 2009.050.04912, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Relator VALMIR DE OLIVEIRA SILVA, julgado em 08/09/09).

Nesse caso, o Magistrado aplicou o disposto no artigo 16 da Lei 11.340/06. A audiência deverá ocorrer no Juizado de Violência Do-

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méstica e Familiar e, na falta do Juizado, deverá ocorrer na Vara Criminal comum. O encaminhamento do pedido de desistência poderá ser feito pela autoridade policial, quando procurada pela mulher/ vítima, ou a mesma poderá comparecer diretamente ao juizado ou vara criminal, solicitando que seja designada audiência para tanto (NUCCI, 2009, p. 1176). Contrariamente à previsão legal e ao entendimento majoritário da jurisprudência, em decisão proferida pela Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, o Desembargador Sérgio da Bizzotto Pessoa de Mendonça entendeu não ser obrigatória a audiência prevista pelo artigo 16 da Lei Maria da Penha, conforme ementa: HABEAS CORPUS. CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL DOLOSA LEVE QUALIFICADA (ARTIGO 129, § 9º, DO CÓDIGO PENAL). OBRIGATORIEDADE DA REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA PREVISTA NO ARTIGO 16 DA LEI 11.340⁄2006. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL OU ANULAÇÃO DOS ATOS PROCESSUAIS A PARTIR DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. ATO PROCESSUAL NÃO OBRIGATÓRIO. AUDIÊNCIA QUE SOMENTE DEVERÁ OCORRER SE A VÍTIMA MANIFESTAR INTERESSE EM SE RETRATAR DA REPRESENTAÇÃO ANTERIORMENTE OFERTADA. ORDEM DENEGADA.  1. O fato da ação penal ser pública condicionada à representação da vítima não autoriza concluir que a audiência, prevista no artigo 16 da Lei 11.340⁄2006, é ato obrigatório. A referida audiência somente deve ocorrer se a vítima manifestar interesse em se retratar, caso em que o Magistrado realizará tal ato antes, obviamente, do recebimento da denúncia. 2. Ordem denegada (TJES, Classe: Habeas Corpus, 100090017649, Relator: SÉRGIO BIZZOTTO PESSOA DE MENDONÇA, Órgão julgador: PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL. Data de Julgamento: 27/01/2010. Data da Publicação no Diário: 12/03/2010).

Parte da doutrina critica a forma como a retratação à representação está sendo tratada. Para Cláudio Calo Souza, o artigo 16 da Lei 11.340/2006 fere o Direito Penal moderno e a Emenda Constitucional nº 45, a qual exige celeridade processual, sendo que ao exigir audiência prévia e específica para

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confirmar se a ofendida mantém o desejo de representar contra o ofensor já denunciado, burocratiza e retarda o rito processual (SOUSA, 2007, p. 77). Maria Lúcia Karam vai mais além. Para ela, o fato de a retratação só poder ser feita perante o Juiz em audiência especialmente designada, com a necessidade de ser ouvido o Ministério Público, inferioriza a mulher, forçando-a a ocupar uma posição passiva e vitimizadora (KARAM, 2006, p. 6-7), tratada como alguém incapaz de tomar decisões por si própria. No mesmo sentido manifesta-se Fernando Lélio de Brito Nogueira, criticando o excesso de formalismo. Para o referido autor a oitiva do Ministério Público exigida para a renúncia da representação pouco ou nada adiantará, pois não há como negar à ofendida o direito de renunciar à representação ou desistir da representação já formulada, antes do oferecimento de denúncia (art. 25, do Código de Processo Penal) (NOGUEIRA, 2006). Em contrapartida, Leda Maria Hermann argumenta que a finalidade expressa do artigo 16 da Lei 11.340/2006 é garantir que a renúncia à representação não resulte de qualquer espécie de pressão ou ameaça por parte do agressor, ou mesmo de algum tipo de intervenção apaziguadora inoportuna na esfera policial. Em juízo, a vítima vai estar devidamente assistida por um profissional habilitado, vai saber quais são os seus direitos e qual tipo de proteção lhe é oferecida. Alega-se que a retratação feita em juízo é menos arriscada do que a mulher em situação de violência doméstica e familiar decidir impulsionada pelo medo, pela insegurança ou até pelas emoções conflitantes e dolorosas afloradas no momento do atendimento policial, habitualmente ocorrido logo depois da agressão (HERMANN, 2007, p. 167). Maria Berenice Dias assevera que a desistência pode ser manifestada pela vítima ou por seu procurador. Poderá ser feita uma petição, e esta será encaminhada ao Juiz que designará audiência para ouvir a vítima. Nada impede que a ofendida comunique pessoalmente e oralmente o seu desejo de retratação no cartório da Vara à qual foi distribuído o inquérito policial. Certificada pelo escrivão a manifestação de vontade da vítima, o Juiz designa audiência para ouvi-la e intima o Ministério Público. A autora descreve que não há necessidade de intimar o agressor, aludindo que essa medida não fere o princípio da ampla defesa (DIAS, 2007, p. 115). Ainda quanto a esse tema, em 24 de fevereiro de 2010, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, por maioria de votos em recurso repetitivo, que

crime de violência doméstica se extingue com retirada da representação. Os Magistrados entenderam que nos crimes de violência doméstica

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e familiar, a ação penal é pública condicionada à representação da vítima. O entendimento foi contrário ao do relator do processo, ministro Napoleão Nunes Maia Filho. O relator considerava não haver incompatibilidade em se adotar a ação penal pública incondicionada nos casos de lesão corporal leve ocorrida no ambiente familiar e se manter a sua condicionalidade no caso de outros ilícitos. Segundo o ministro, não é demais lembrar que a razão para se destinar à vítima a oportunidade e conveniência para instauração da ação penal, em determinados delitos, nem sempre está relacionada com a menor gravidade do ilícito praticado3. Pelo entendimento majoritário no TJ, o artigo 41 da Lei 11.340/06, ao ser interpretado com o artigo 17 do mesmo diploma, apenas veda os benefícios como transação penal e suspensão condicional do processo nos casos de violência familiar. Assim, julgou extinta a punibilidade (cessação do direito do Estado de aplicar a pena ao condenado devido à ação ou fato posterior à infração penal) quando não há condição de instaurar processo diante da falta de representação da vítima. 2.3 A suspensão condicional do Processo A suspensão condicional do processo está regulada no artigo 89 da Lei 9.099/95, a lei dos Juizados Especiais. O artigo 41 da Lei 11.340/06 afastou a aplicação da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica contra a mulher. Com a edição desse artigo surgiram diversos posicionamentos acerca da suspensão condicional do processo e afastamento dos Juizados Especiais. Primeiramente, se faz necessário conceituarmos a suspensão condicional do processo. Guilherme de Souza Nucci explica: Trata-se de um instituto de política criminal, benéfico ao acusado, proporcionando a suspensão do curso do processo, após o recebimento da denúncia, desde que o crime imputado ao réu não tenha pena mínima superior a um ano, mediante o cumprimento de determinadas condições legais, com o fito de atingir a extinção da punibilidade, sem necessidade do julgamento do mérito propriamente dito. É denominado, também, de sursis processual (NUCCI, 2009, p. 819). 3 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. É necessária a representação da vítima de violência doméstica para propositura de ação penal. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2010b.

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Acerca da inaplicabilidade da suspensão condicional do processo, observa-se a decisão da ministra convocada do STJ, Jane Silva: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CRIME DE AMEAÇA PRATICADA CONTRA MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. MEDIDA DESPENALIZADORA. PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. ORDEM DENEGADA. 1. A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da Constituição da República). 2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, os filhos daí advindos dificilmente terão condições de conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição, criando mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato. 3. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei 11.340/2006). 4. A suspensão condicional do processo é medida de caráter despenalizador criado pela Lei 9.099/1995 e vai de encontro aos escopos criados pela Lei Maria da Penha para a proteção do gênero feminino. 5. Ordem denegada. (HC 109.547/ES, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em 10/11/2009, DJe 07/12/2009)

Em contrapartida, Leda Maria Hermann alerta que o artigo 41 da Lei Maria da Penha não alcança a suspensão condicional do processo, pois esse instituto não está vinculado apenas aos crimes de menor potencial ofensivo e à Lei 9.099/95. A autora destaca que a aplicação da suspensão condicional do processo interessa à pacificação do conflito, uma vez que impõe ao agressor período de prova

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e condições específicas, colocando-o sob controle judicial, o que pode ser proveitoso para a segurança e tranquilidade da mulher vítima (HERMANN, 2007, p. 238-239). Em concordância com a autora, decidiu a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: CÓDIGO PENAL. ART. 129, § 9º. LEI 11.340/06. LEI MARIA DA PENHA. ART. 41. AFASTAMENTO DA LEI 9.099/95. Ao vedar a aplicação da Lei 9.099/95 aos casos de violência doméstica, ficaram impedidos os benefícios típicos do JECRIM, bem como a aplicação apenas de penas pecuniárias. Mas a substituição, em suas demais formas, ainda é possível, bem como o sursis, e também a suspensão condicional do processo art. 89, Lei 9.099/95. RECURSO DEFENSIVO PROVIDO (Recurso em Sentido Estrito 70034208470, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 11/02/2010).

Os Magistrados dos Juizados Especiais Criminais e de Turmas Recursais no Estado do Rio de Janeiro concluíram sobre os Juizados Especiais Criminais e a Lei de Violência Doméstica contra a mulher no Aviso 43/20064 que: 83 - São aplicáveis os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 aos crimes abrangidos pela Lei nº 11.340/06 quando o limite máximo da pena privativa da liberdade cominada em abstrato se confinar com os limites previstos no art. 61 da Lei nº 9.099/95, com a redação que lhe deu a Lei nº 11.313/06 (III EJJETR). 84 - É cabível, em tese, a suspensão condicional do processo para o crime previsto no art. 129 § 9º, do Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.340/06 (III EJJETR).

Em novembro de 2009, na Cidade do Rio de Janeiro/RJ, houve o primeiro Fórum Permanente de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (FONAVID), em que concluíram os Magistrados no Enunciado nº 10 que: “A Lei 11.340/06 não impede a PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Aviso TJ nº 43, de 04/09/2006 (Estadual). Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2010a.

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aplicação da suspensão condicional do processo nos casos que esta couber”5. Sintetizando a pesquisa até agora realizada nos Tribunais dos Estados, o resultado encontrado, especificamente quanto à possibilidade de renúncia à representação pela denunciante e de suspensão condicional do processo, é o que consta da tabela a seguir: Tribunais

Renúncia à Representação

Suspensão C’ondicional to Processo

TJRS

33 acórdãos favoráveis 1 contrário

18 acórdãos favoráveis 4 contrários

TJSC

Unânime pelo direito de renúncia à rep.

Unânime pela não aplicação da SCP

TJPR

Unânime pela impossibilidade de renúncia à rep.

2 acórdãos favoráveis 10 contrários

TJSP

17 acórdãos favoráveis 21 contrários

7 acórdãos favoráveis 29 acórdãos contrários

TJRJ

9 acórdãos favoráveis 4 contrários

20 acórdãos favoráveis 14 contrários

TJMG

38 acórdãos favoráveis 3 contrários

7 acórdãos favoráveis contrários

A experiência do Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher na cidade de Porto Alegre Em Porto Alegre, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher está localizado no Fórum Central da cidade e teve seu funcionamento iniciado no mês de abril de 2008. O Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher está localizado no quinto andar do Foro Central, e seu funcionamento ocorre de segunda a sexta-feira, sendo as audiências realizadas sempre no período da tarde. É composto por um cartório, localizado na sala ao lado da sala de audiências; por duas salas de atendimento às partes; pela

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÍBA. Enunciados aprovados no I FONAVID Rio de Janeiro – Nov/2009. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2010.

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sala do juiz responsável pelo Juizado e por uma antessala, onde trabalha a assessora do juiz. A sala de audiências encontra-se no final do corredor de entrada do Juizado, tendo suas mesas dispostas em forma de “u”. Nas mesas, estão os acentos reservados para o magistrado, colocado em uma altura superior em relação aos outros lugares; para a promotoria pública, à esquerda do juiz; para o escrivão, à direita do juiz; para o acusado, a suposta vítima e seus respectivos defensores. Em frente às mesas, estão dispostas cadeiras para acompanhantes das partes e para outras pessoas que tenham interesse em assistir às audiências (normalmente estudantes de Direito, Psicologia, Assistência Social e pesquisadores). Diariamente, costumam ser marcadas cerca de 20 audiências, as quais possuem uma duração uniforme de cerca de 20 a 25 minutos. Nestas, frequentemente estão presentes as duas partes do processo (acusado e vítima) e, na grande maioria das vezes, sua marcação é motivada pelo pedido de medida protetiva de urgência solicitada anteriormente, no momento em que foi realizado o registro da ocorrência na Delegacia da Mulher. Essas audiências são realizadas para que o juiz possa verificar qual a situação das partes, ouvindo ambas as versões, no sentido de buscar maiores informações para que possa decidir quanto à necessidade da utilização de tais medidas. Quanto aos defensores, pode-se verificar que a atuação da Defensoria Pública é substancialmente maior do que a de defensor privado. São raros os casos em que acusado e vítima vêm acompanhados por seus advogados. Porém, ainda que a Defensoria Pública esteja presente em todas as audiências, na expressiva maioria dos casos, somente a parte agredida é assistida, restando a parte agressora sem defesa. O papel da Defensoria Pública nas audiências que ocorrem no Juizado está mais ligado à necessidade de informar às partes sobre o significado dos ritos que ali ocorrem, bem como sobre o significado das expressões utilizadas pelo juiz e os possíveis encaminhamentos dados ao caso. Raramente ocorrem discussões entre defensores, quando ambas as partes estão representadas, a respeito da defesa de interesses de seus clientes.

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No que tange à participação do Ministério Público nas audiências realizadas no Juizado, nas audiências observadas constatou-se que está mais voltada à utilização de medidas alternativas do que para a criminalização das condutas: a opção de frequentar reuniões de grupos de auxílio para dependentes de álcool e/ou entorpecentes, ou ainda de apoio psicológico, é apresentada na expressiva maioria dos casos aos acusados, em troca da suspensão condicional do processo, por um período de até seis meses da data do fato, para, em seguida, ser arquivado. Desde que foi implantado o Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da comarca de Porto Alegre, já passaram por ele três juízes titulares. Com base na observação das audiências foi possível chegar a algumas conclusões a respeito do modo de aplicação da Lei 11.340/06, identificando diferenças relacionadas com a interpretação dos três juízes que atuaram no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Alegre desde a sua criação. A juíza substituta Jane Maria Vidal foi a primeira magistrada que começou a atuar no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, no Foro Central, em dezembro de 2006, antes mesmo da sua criação enquanto Juizado autônomo. Com o objetivo de adequar a lei à demanda, tendo em vista o grande número de casos e de pedidos de medida protetiva (aproximadamente 47 novos pedidos de liminar por dia), a forma encontrada por ela foi a realização das chamadas “audiências mutirão”, que consistiam em reunir semanalmente todas as vítimas no auditório do Foro Central, momento no qual era feita uma triagem, havendo a manifestação do interesse ou não no prosseguimento do feito, com ou sem solicitação de medida protetiva, designando-se assim uma nova audiência para a tentativa de conciliação. Nessa audiência de conciliação, buscava-se um acordo de caráter civil, para a resolução dos conflitos envolvendo dissolução da união estável, pensão alimentícia de caráter provisório, regime de visitas. O processo criminal era de regra suspenso, sob a condição de comparecimento do autor do fato a grupos de acompanhamento para o tratamento para a dependência química, se fosse o caso.

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A juíza Osnilda Pisa foi responsável pelo Juizado de Porto Alegre no período de maio de 2008, quando foi efetivamente implantado o Juizado, até setembro de 2009. Tendo deixado de realizar as “audiências mutirão”, sua atuação buscava soluções para os conflitos através da negociação entre as partes, evitando muitas vezes o prosseguimento do processo criminal e a materialização da culpa criminal, o que, nesse caso, significava procurar espaços de diálogo entre as partes, buscando opções de solução que pudessem evitar a estigmatização do agressor e a repetição da violência, por meio da suspensão condicional do processo. As audiências ocorriam de segunda a quinta-feira na parte da tarde. A juíza sempre perguntava como estava a situação dos envolvidos no episódio de violência, já no momento da audiência preliminar, marcada tão logo viessem os pedidos de medida protetiva encaminhados pela Delegacia da Mulher, para ouvir a ofendida e decidir sobre os pedidos de medida protetiva, principalmente a de afastamento do lar. A magistrada tinha uma preocupação em saber o motivo das agressões, fazendo perguntas para compreender a dinâmica do relacionamento, se o ofensor sempre foi agressivo, se tinha por hábito beber ou consumir drogas. Se afirmativas as respostas, encaminhava o agressor para grupos de apoio, sempre salientando que era uma oportunidade para mudar o rumo de suas vidas, suspendendo o processo até a comprovação de cumprimento da medida, em uma nova audiência, que já ficava designada. Segundo ela, (...) pensando no que as vítimas efetivamente desejam, o Ministério Público está propondo ao demandado, independente de se ter o inquérito policial, em situações em que as partes continuam com o convívio, ou dependendo da não gravidade do fato, a frequência a grupos de autoajuda ou a um tratamento específico. Então, nós estamos fazendo mensalmente o grupo dos que estão aceitando essa proposta. Quem é dependente de álcool está frequentando o A. A. [Alcoólicos Anônimos], quem é dependente de outras drogas o Narcóticos Anônimos, ou o grupo do Amor Exigente para quem tem dependência química, e que tem casos de violência. Em alguns casos também tratamento psicológico ou psiquiátrico como forma alternativa ao processo, que é uma medida mais efetiva para prevenir a causa que está

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Mariana Craidy gerando a violência, como é o caso do alcoolismo ou de alguns transtornos psiquiátricos, isso vai prevenir novas violências e a demora para ser encaminhado para um programa.

Quando havia a possibilidade de chegar a um acordo no tocante às questões de família, a juíza colocava na ata da audiência a decisão, não sendo preciso encaminhar para a Vara de Família o caso. De acordo com a percepção da juíza Osnilda Pisa, ao mesmo tempo em que a lei Maria da Penha trouxe importantes mecanismos para a prevenção da violência contra a mulher, ela representa um retrocesso no que tange à possibilidade legal da solução do conflito através do acordo entre vítima e agressor, anteriormente possibilitada pela atuação dos JECrim: A falha para mim foi que, depois de tantas discussões levantadas em torno da lei Maria da Penha, uma que me parece preocupante é a exclusão da aplicação da Lei 9.099, uma lei que na área criminal foi inovadora, porque permitiu que antecipadamente, sem a instrução do processo, que a acusação, o Ministério Público, pudesse transacionar com o indiciado e, mediante a que ele assumisse uma medida alternativa de imediato, ele não responderia ao processo. Cumprida a medida, o processo seria baixado e, não ficariam antecedentes. O problema da Lei Maria da Penha é que ela não permite isso. Então, ao invés de que se possa aplicar uma medida imediata de encaminhamento a um programa de reeducação e reabilitação, isso vai demorar, por mais rápido que seja um processo, praticamente um ano. Isso, porque esse processo não teve recurso, porque se tiver recurso, vai demorar mais. E ainda se tem mais alguns casos em que, decorrido já mais de um ano, ainda não chegou o inquérito policial. A demanda na delegacia é muito grande e a delegada não está conseguindo mandar os inquéritos dentro do prazo.

Outro problema enfrentado pelo Juizado é o que diz respeito ao trabalho realizado pela Polícia Civil, a partir do registro da ocorrência na Delegacia da Mulher. A demora na produção do inquérito policial, bem como a falta de dados consistentes a respeito de cada caso, acabam por dificultar o trabalho realizado pelo Juizado. Nas palavras da juíza Osnilda Pisa, Os documentos nunca são apresentados, nos pedidos de medida protetiva nunca vêm os documentos necessários anexados,

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como a certidão de nascimento dos filhos, por exemplo. Só vem a palavra da vítima, de uma maneira muito sucinta. Em muitos casos, não vem nenhum documento que comprove a propriedade da casa. E acontece de, em muitos casos, se pedir a medida de afastamento da casa do seu dono e a mulher usa a Lei Maria da Penha para poder ficar numa casa que nem é dela e ela quer lá ficar. Então, é uma situação muito complicada, é muito angustiante e, o que eu tenho feito em casos de medida protetiva de afastamento é que excepcionalmente, como ocorreu nesse caso aqui e que só agora eu vejo que não era necessário, porque ela queria só dar um susto no moço, senão, em todos os outros casos, eu designo a audiência. Então, nesta audiência, eu tenho a oportunidade de ouvir a vítima e ouvir o agressor. E nessa oitiva, a gente pode tirar um embasamento mínimo para deferir ou não, ou encontrar uma medida para ajudar as pessoas a encontrarem uma solução.

Nesse sentido, para que este trabalho de atendimento à demanda de grande parte das vítimas seja realizado, a juíza, ao receber os pedidos de medida protetiva de urgência, encaminhados antes da conclusão do inquérito policial exigido pela lei Maria da Penha para que se dê prosseguimento ao processo, passou a marcar audiências com as partes, no sentido de verificar quais suas reais necessidades e tentar realizar um acordo entre elas sem a necessidade de dar andamento ao processo criminal. Dessa forma, o problema enfrentado pela demora na realização do inquérito policial, peça necessária para o andamento do processo, é reduzido, obtendo-se a celeridade necessária para o eficaz atendimento às vítimas. Ainda de acordo com a juíza, Eu vou marcando as audiências sem esperar chegar o inquérito, porque se eu for esperar cinco meses ou um ano para chegarem os autos, o que vai acontecer com essas pessoas nesse meio tempo? Eu estou me desgastando para tentar atender com rapidez essas pessoas. Então, se chega aqui dizendo que depois ele ficou bonzinho e a vítima diz que não quer mais o processo, eu aviso na delegacia, dependendo da situação, ou eu encaminho para o A. A.. Então, eu aviso a delegada que aquele processo não tem mais possibilidade de punibilidade e ela não precisa mais fazer aquele inquérito. Então, o que eu faço aqui, o que eu consigo resolver aqui, a delegada não precisa fazer o inquérito lá. Acabo

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Mariana Craidy eu trabalhando aqui para a delegada, porque o que eu consigo resolver aqui, ela não precisa resolver lá. Toda estrutura é deficiente: então, a minha angustia é poder atender as pessoas e, para mim, atender as pessoas é efetivamente atender as pessoas, e não o papel. O Judiciário, e quando eu falo em Judiciário, não é o Poder Judiciário, mas todo o sistema faz muito papel e pouco resultado. O que há de efetividade, por exemplo, no registro na delegacia de uma ocorrência? A medida protetiva? Bom, se eu deferir uma medida protetiva, o que vai mudar? O que a gente vê é que as pessoas chegam aqui muito desestruturadas. Não importa nem o nível cultural e nem o nível econômico, mas as pessoas quando terminam um relacionamento, o término de um relacionamento é uma coisa muito dolorida. E se não houver uma efetiva intervenção para essas pessoas, não adianta fazer papel, fazer inquérito e um ano depois é muito tarde para decretar uma medida, principalmente quando a situação tem origem na vítima.

Desde outubro de 2009 até o presente momento quem está na titularidade do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é o juiz Roberto Lorea. As audiências ocorrem de terça a quinta-feira, pela manhã e à tarde. O juiz se apresenta para todas as vítimas no começo das audiências preliminares e pergunta como está a situação em relação ao agressor. Escuta a narrativa com atenção e no final pergunta o que ele pode fazer para ela, qual o seu desejo. Quando a vítima que sofreu agressão física (lesão corporal) pede para retirar a representação durante a audiência, o juiz entende e deixa bem claro que não é possível e explica que o Estado tem interesse em proteger a vítima e que ele deve enviar para o Ministério Público analisar. Esclarece, para os acusados, que o seu papel como juiz é fazer cumprir as determinações da lei. Para ele a questão de haver divergência de posicionamento quanto à possibilidade ou não de retirada da representação diz respeito especificamente ao delito de lesão corporal leve, pois entende que não há controvérsia quanto à ameaça e ofensa. Nesses casos é pacífico que é possível haver renúncia à representação. Em entrevista, o juiz Roberto Lorea esclareceu como é realizada a audiência: Esse processo tem uma dimensão criminal e uma dimensão cível. Então a mulher vai à delegacia, faz uma representação e

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pede, por exemplo, o afastamento do lar do agressor, e ao mesmo tempo ela está fazendo uma representação criminal pra que ele seja processado, seja investigado, processado por um delito, por exemplo, de lesão corporal, ou ameaça. É marcada uma primeira audiência, é examinado esse processo no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, deferida ou não, por exemplo, o afastamento do lar; essa é a dimensão cível, e é marcada uma audiência para enfrentar, basicamente, essa questão. Então chega na audiência e se verifica se foi deferido o afastamento do lar, conversa com a mulher para ver se ela está satisfeita, se era isso que ela precisava, ou de repente, o casal se reconciliou nesses 20 (vinte) 30 (trinta) dias que demora para acontecer a audiência, ou foi indeferido o pedido, e eles vêm para a audiência e a gente conversa e vê se chega num acordo sobre se ele vai sair de casa, ou se quer um prazo pra sair de casa, enfim cada caso é um caso.

Desde que Roberto Lorea assumiu o Juizado, nos casos de lesão corporal, independentemente da vontade da mulher, o processo continua, ou seja, ele entende ser a ação penal pública incondicionada, e com isso a mulher não pode renunciar à representação: Mas também, nessa audiência, se é um caso de ameaça, ou de ofensas, de crime contra a honra, se questiona a mulher se ela tem interesse, ou não, em prosseguir o feito. Por princípio, por inércia o processo segue, independente da vontade da mulher. Só se ela manifestar, “olha eu não quero processá-lo criminalmente”, e ai caso a caso a gente vê também como está o discurso da mulher, se eles estão de fato separados. Se ela realmente está preocupada com a agressividade dele, geralmente ela quer prosseguir. Mas eles se reconciliaram, “não, não quero mais prosseguir”. Isso, nos delitos de ameaça e delitos contra a honra (injúria, difamação, calúnia). Nos delitos de lesão corporal há uma controvérsia no campo jurídico, o STJ, o Superior Tribunal de Justiça, agora em 24 de fevereiro de 2010, tem uma decisão dizendo que a ação depende da representação, mas isso não tem sido aplicado aqui no Juizado de Porto Alegre, pelo menos não por mim. Eu continuo me filiando ao grupo cível aqui do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que tem o entendimento de que essa ação penal pública é incondicionada, não depende da representação. E porque eu acho importante isso: primeiro

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Mariana Craidy porque a Lei Maria da Penha traz como proposta uma transformação cultural, que é justamente de combater a violência doméstica. Nas audiências, especialmente quando a mulher está atemorizada, que ela realmente teme por sua vida, teme por sua integridade, é o momento em que ela não pode ser confrontada com a hipótese, a possibilidade de dizer: “vamos deixar isso pra lá, eu desisto”. Porque é isso muitas vezes que o agressor busca; às vezes quando ele (agressor) vem na audiência, eu chamo pra audiência, em conversa, em momentos separados com a mulher e com o agressor, às vezes, a gente sente que ela (vítima) está sendo pressionada, não sei se o termo coagida pode ser um pouco excessivo, às vezes há coação, mas às vezes não chega a ser coação, mas há uma negociação onde ele (agressor) diz: “eu vou pagar pensão alimentícia, mas tu tem que retirar a queixa”, ou “vou fazer tal coisa, mas...” a barganha é “tu acaba o processo”. Então, eu tenho sido bastante didático nesse sentido.

O juiz entende ser a ação penal pública incondicionada, nos casos de lesão corporal e consequentemente defende a legitimidade do Ministério Público para prosseguir com a ação. Lorea esclarece para os acusados, na audiência, que independentemente da vontade da mulher o processo vai prosseguir, e o Ministério Público irá oferecer denúncia, quando a partir de então terá oportunidade de se defender. Deixa claro para o agressor que o processo irá prosseguir por interesse do Estado e não da mulher. Sobre o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que afirmou em 24 de fevereiro de 2010 que nos casos de lesão corporal a ação é penal pública condicionada à representação, Lorea assim se manifestou: Os argumentos usados pelo STJ não me convencem. Pelo contrário, me parece que a mulher precisa sim da proteção, e a Lei Maria da Penha é uma legislação protetiva de gênero, a gente tem que pensar essa lei na perspectiva da mulher. Claro que a gente sabe que há uma controvérsia sobre o quanto nós estaríamos aqui vitimizando a mulher, ou infantilizando a mulher, retirando da mulher a sua autonomia, mas me parece, pela experiência que a gente tem tido aqui na sala de audiência, que há sim a necessidade de uma ampla proteção, e a gente não pode descuidar de situações em que a mulher está

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realmente exposta. O judiciário não tem essa capacidade, nem teria a pretensão de oferecer uma proteção irrestrita. (...) Onde há lesão corporal, transcende a responsabilidade e autonomia da mulher transigir sobre a sua integridade física. Ela não pode se submeter a ser espancada, a ser agredida, e renunciar a isso, no mais das vezes, quando tenta renunciar, porque é ou por temor, ou para conseguir algum benefício em favor dos filhos, uma promessa do agressor de que então ele vai ajudar, se ela tem como pedir a pensão alimentícia, e ele tem a obrigação de ajudar, não é nenhum favor, e por isso não pode ser barganhado pela integridade física, dignidade das mulheres.

Quando defere uma medida protetiva, esclarece ao agressor que se não obedecer ao que está escrito no “papel” ele irá preso. No entanto, acredita que só a punição não resolve, mas que ela é necessária, para reeducar, para impor limites. Dessa forma, condiciona o acusado a pensar que se bater novamente vai mesmo preso, o que deverá, na opinião dele, inibir uma reincidência. Nos casos em que o agressor manifesta ter problemas com álcool ou drogas, o juiz não encaminha para tratamento, de forma compulsória, apenas sugere o comparecimento em algum dos conhecidos grupos de apoio. Nos casos em que é preciso definir pensão alimentícia, dissolução de união estável, guarda e visitas, o juiz resolve de forma provisória, e encaminha o processo para a Vara de Família, onde há uma estrutura que o Juizado não possui, para tratar dessas demandas, esclarecendo às partes que ele é o juiz do Juizado da Violência Doméstica e que não cabe a ele decidir sobre essas questões, embora a lei dê ao Juizado competência para tanto. Lorea entende que não se aplica aos delitos de competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher a possibilidade de suspensão condicional do processo6. Apesar do FONAVID A suspensão condicional do processo foi introduzida no ordenamento jurídico penal brasileiro pela Lei 9.099/95, que no seu art. 89 previu esta possibilidade para delitos com pena prevista até quatro anos de reclusão. Para a suspensão ser proposta e homologada, não pode estar o acusado sendo processado ou já ter sido condenado por outro crime, e devem estar presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena, previstos pelo art. 77 do Código Penal. Aceita a proposta pelo acusado, na presença do juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as condições elencadas no

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(Fórum Nacional dos Juizados de Violência Doméstica) ter aprovado um enunciado dizendo que cabe a aplicação da suspensão em casos de violência doméstica, Roberto Lorea não concorda com essa interpretação, uma vez que a Lei 11.340/06 afasta expressamente a Lei 9.099/95 para os delitos de competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher: Eu entendo que é um enunciado equivocado, evidentemente que fui voto vencido no FONAVID. Eu sei que São Paulo aplica, e outros Estados aplicam, sob o seguinte argumento, que não dá pra gente desconsiderar: de que eventualmente uma sentença penal prolatada lá no final do processo tem menos eficácia, menos poder coercitivo, do que uma suspensão condicional do processo onde o indivíduo pode ficar de 02 (dois) a 04 (quatro) anos em período de prova. Acho ponderável esse argumento, mas ainda não me convenceu. Na dinâmica que estamos desenvolvendo aqui eu estou trabalhando ainda sem admitir a suspensão condicional do processo. O que é importante distinguir é que assim como tem os crimes na Lei Maria da Penha, tem também as contravenções, por exemplo, perturbação do sossego, onde o sujeito fica lá apertando o interfone, incomoda, mas não caracteriza uma ameaça, muito menos uma agressão física, isso é uma contravenção. Para esses casos cabe aplicar a Lei nº 9.099/95, porque a restrição da Lei Maria da Penha é que para os crimes não se aplica a Lei nº 9.099/95, então para as contravenções segue se aplicando. Aqui a gente aplica a transação penal, fica vedada a cesta básica, mas a gente pode fazer uma transação penal onde ele vá frequentar um curso para agressores, onde ele vá prestar serviços à comunidade, ainda não comecei a fazer essas audiências, tem ai umas 300 (trezentas) para serem feitas. Mas, sim, se aplica a Lei nº 9.099/95 às contravenções penais.

Quanto à clientela atendida pelo Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher na cidade de Porto Alegre, pode-se afirmar que esta é composta, em sua expressiva maioria, por homens e mulheres com baixo poder aquisitivo e com baixa escolaridade. Costumam possuir filhos em comum, em grande parte das §1º do art. 89 da Lei 9.099/95.

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vezes menores de idade, vivem em bairros pobres e com pouquíssima infraestrutura, possuem vínculos empregatícios informais, em sua maioria. Muitos dos conflitos que chegam ao Juizado foram acirrados pelo abuso de álcool e/ou entorpecentes. Os problemas gerados pelo alcoolismo também são frequentemente relatados nas audiências. A falta de investimentos do Estado em recursos para tratamento destes problemas é percebida na observação das audiências: são muitos os casos em que é necessária a internação do usuário, mas esta não é realizada pela falta de leitos. Como recurso de tratamento, naqueles casos em que uma medida alternativa é possibilitada ao agressor, o Juizado o encaminha a reuniões de grupos de Alcoólicos Anônimos (em média, de 12 a 36 reuniões), distribuídos por toda a cidade, que devem comprovar a participação do mesmo através de carimbos em um formulário fornecido pelo Juizado, que costuma ser apresentado pelo agressor entre um e dois meses depois da audiência, dependendo do número de reuniões a que deve comparecer. Assim como acontece nos casos de encaminhamento para os grupos de Alcoólicos Anônimos, também pode ser solicitada a participação às reuniões dos Narcóticos Anônimos ou mesmo para atendimento psicológico com horário marcado na Cruz Vermelha, para os casos em que é observada maior gravidade. Tais encaminhamentos eram mais frequentes no período em que a juíza Osnilda Pisa esteve à frente do Juizado. Pode-se perceber que o Juizado acaba por receber uma demanda por atendimento que varia muito. Embora haja casos em que a agredida busca apoio do Juizado para fazer cessar uma situação marcada pela violência física conjugal, grande parte da clientela do Juizado busca uma alternativa para solucionar questões relativas a problemas anteriores à violência que motivou a abertura do processo. São pessoas que já viviam anteriormente um desgaste da relação, seja por falta de recursos materiais, pelo uso de álcool e/ou outras drogas, pela dificuldade de lidar com problemas sentimentais ou mesmo pela falta de interesse de uma das partes em manter o convívio. Logicamente, não podem ser desconsiderados os casos em que a atuação do Juizado é solicitada para a proteção da integridade física e/ou emocional de mulheres agredidas, que necessitam de uma medida protetiva de urgência. Porém, também devem ser considerados

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os casos, em um número substancialmente superior, em que a busca pelo Juizado está ligada a uma maneira de pôr fim a uma relação já abalada por outros fatores, o que nem sempre é verificado como desejo das duas partes, ou mesmo de encontrar uma solução para problemas vinculados ao abuso de drogas. Pode-se observar que são frequentes os casos em que acusado e vítima restabelecem a relação no período entre a queixa prestada na Delegacia da Mulher e a primeira audiência, assim como representam maioria os casos em que a vítima afirma não querer manter o processo criminal contra o agressor, caracterizando-o como “pai dos meus filhos”, “meu filho”, ou afirmando não querer prejudicá-lo. A necessidade de produção do inquérito policial para casos de violência doméstica, exigência que havia sido retirada pela Lei 9.099/95, que criou a figura do Termo Circunstanciado para os delitos com pena prevista até dois anos (delitos de menor potencial ofensivo), representa um expressivo crescimento do volume de trabalho para a Polícia Civil, e as dificuldades enfrentadas crescem na medida em que cresce a demanda por seus serviços. De acordo com a delegada titular da Delegacia da Mulher, Dra. Nadine Farias, A lei trouxe uma demanda muito maior para os nossos atendimentos, aumentando em quase cinquenta por cento o número de ocorrências em relação ao período anterior à lei Maria da Penha, e, infelizmente, a lei fala em equipes multidisciplinares para o atendimento, em rede de atendimento e hoje em Porto Alegre a gente tem pessoas que trabalham em diversos órgãos e que acabam se comunicando para tentar arrumar uma solução para os casos. Mas não existe de maneira efetiva uma rede de atendimento. Infelizmente, hoje a delegacia de polícia é o primeiro órgão que elas procuram e se elas conseguem atingir o objetivo, que pode ser se separar do marido, conseguir alimentos para os filhos, ou afastar o agressor do lar, se tiver sucesso em todo o decorrer do procedimento, na cabeça desta mulher a informação que fica é a de que a delegacia funcionou ou a delegacia não funcionou, quando, na verdade, não depende só de nós.

No sentido de aperfeiçoar o atendimento às vítimas de violência doméstica que procuram a Delegacia da Mulher, a delegada acredita

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ser necessária a criação de serviços que as amparem em um momento anterior ao contato com a autoridade policial. Eu acho que deveria ser diferente. Eu acho que essa mulher deveria ser recebida, primeiramente, por um assistente social ou por um psicólogo e, aí sim, seria encaminhada para a defensoria pública para resolver todos os problemas cíveis, como separação, pedido de alimentos, enfim. Só depois para a delegacia para resolver o problema criminal, para ver se realmente o agressor cometeu um crime. Gostaria que fosse uma coisa em que, na mesma porta que ela entrou, que ela pudesse ter acesso a todos esses órgãos. Um acompanhamento psicológico, um tratamento de saúde tanto para ela quanto para o agressor, que são duas pessoas que precisam de tratamento. Isso é o mundo ideal. Isso é o que a lei prevê.

O acompanhamento das audiências no Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Porto Alegre, bem como as entrevistas já realizadas, permite concluir que o conflito de gênero que está por trás da violência doméstica não pode ser tratado pura e simplesmente como matéria criminal. O retorno do rito ordinário do processo criminal para apuração dos casos de violência doméstica não leva em consideração a relação íntima existente entre vítima e acusado, não sopesa a pretensão da vítima nem mesmo seus sentimentos e necessidades. A leitura criminalizante apresenta uma série de obstáculos para a compreensão e intervenção nos conflitos interpessoais, não corresponde às expectativas das pessoas atendidas nas delegacias da mulher, no Juizado e tampouco ao serviço efetivamente realizado pelas policiais naquela instituição. A partir da observação realizada no Juizado, é possível pensar que o mais adequado seria lidar com esse tipo de conflito fora do sistema penal, radicalizando a aplicação dos mecanismos de mediação, realizada por pessoas devidamente treinadas e acompanhadas de profissionais do Direito, Psicologia e Assistência Social. Os Juizados Especiais Criminais abriram espaço para experiências bem-sucedidas nesse âmbito, como as várias alternativas de encaminhamento do caso (compromisso de respeito mútuo, encaminhamento para grupo de conscientização de homens agressores, etc.) dão conta. No entanto, a falta de adesão normativa e institucional a

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mecanismos efetivos para a mediação dos conflitos e o equívoco da banalização da cesta básica deflagraram a reação a que agora assistimos. Verificou-se, pelas entrevistas realizadas e a observação de audiências, uma atuação voltada à resolução dos conflitos através da experimentação de práticas que não ocorrem, necessariamente, de acordo com o previsto pela Lei 11.340/06. Pode-se dizer que a atuação da juíza responsável pelo Juizado de Porto Alegre, bem como do Ministério Público, tem buscado soluções para os conflitos através da negociação entre as partes, evitando assim o prosseguimento de um processo criminal e a materialização da culpa criminal, o que, nesse caso, significa procurar espaços de diálogo entre as partes, buscando opções de solução que possam evitar a estigmatização do agressor. A falta de uma rede de atendimento que ligue as instituições com a área da saúde e que proporcione serviços e atendimento tanto às vitimas quanto aos agressores dificulta a solução de grande parte da demanda. Tanto os profissionais que atuam no Juizado quanto aqueles que atuam na delegacia reconhecem a necessidade de tratamento médico e psicossocial para a clientela que costumam atender diariamente no cumprimento de suas atividades profissionais.

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O SISTEMA PENAL E AS POLÍTICAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER POR MEIO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Marli Marlene Moraes da Costa1 Quelen Brondani de Aquino2 Rosane Terezinha Carvalho Porto3 A violência de gênero é um problema de relevância social, pois se refere não só às questões de criminalidade como principalmente às de saúde pública, destacando-se como uma verdadeira afronta aos direitos das mulheres.

1 Pós-Doutora pela Universidade de Burgos/Espanha, Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, professora da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Coordenadora do Grupo de Estudos Direito, Cidadania e Políticas Públicas da UNISC, Psicóloga com Especialização em Terapia Familiar. E-mail: [email protected] 2 Especialização em andamento em Políticas Públicas e Desenvolvimento Local. Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do grupo de pesquisas Direito, Cidadania e Políticas Públicas do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da UNISC. E-mail: [email protected]

Professora e mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Integrante do grupo de pesquisas Direito, Cidadania e Políticas Públicas coordenado pela Pós-Doutora Marli Marlene Moraes da Costa. E-mail: [email protected]

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A proposta deste trabalho representa, nesse contexto, uma iniciativa de procurar no discurso do Direito a sua função social, enquanto ferramenta pacificadora de conflitos. Não se pode falar em discurso humanizador e integral se a linguagem permanecer inapropriada e estigmatizada, restringindo-se a um campo meramente tradicional de reprodução de pensamentos e culturas, distantes da realidade social. Nesse diapasão, abordar-se-ão os principais aspectos da violência contra a mulher cometida no âmbito doméstico e familiar, bem como far-se-á uma análise de como esses delitos eram tratados pelo ordenamento jurídico brasileiro antes da promulgação da Lei nº 11.340/06. Somente na última década a violência doméstica recebeu uma tipificação própria no Código Penal Brasileiro, embora continue até hoje como forma qualificada da lesão corporal. A competência para processar e julgar esses delitos era dos Juizados Especiais Criminais, o que acabava colaborando para a banalização da violência, afinal, a violência contra a mulher tinha um preço, bastava que o agressor pagasse esse preço para que continuasse agredindo sua vítima. Em seguida, busca-se compreender a inserção da Lei nº 11.340/06 no ordenamento jurídico, a qual representa uma conquista para homens e mulheres da modernidade. A nova Lei, batizada de Lei Maria da Penha, além de alterar dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal, afastou a competência dos Juizados Especiais Criminais e possibilitou a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Porém, a lei foi muito além, trouxe novas possibilidades de prevenção e de medidas para combater essa forma de violência. Assim, estudar-se-ão as novas práticas da justiça penal diante da Lei Maria da Penha, a possibilidade e a não obrigação da implantação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, bem como o caráter provisório de competência para processar e julgar os delitos de violência doméstica para as Varas Criminais, enquanto os Juizados não forem instalados, cabendo a elas decidir, principalmente, sobre questões unicamente de Direito de Família, como separação, partilha de bens, guarda dos filhos, alimentos, entre outras. Por fim, analisar-se-á a Lei Maria da Penha como incentivadora para a promoção de novos recursos, que alcancem tanto a vítima

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como o agressor, e que tem por objetivo a erradicação da violência doméstica. A Lei permite que o Estado, através de seus órgãos e instituições, em parceria com a sociedade e a família, crie mecanismos de atendimento às vítimas e aos agressores. Diante desse fato, tem-se na Justiça Restaurativa uma nova possibilidade para o tratamento aos casos de violência familiar.

Violência contra a mulher: uma afronta aos direitos fundamentais A palavra violência, por si só, tem sido muito utilizada para expressar comportamentos e modos de viver em sociedade. Ela aparece, frequentemente, nos meios de comunicação, nas escolas, no dia a dia de todas as pessoas. De acordo com Strey, “aparentemente, a violência passou a ser um predicativo do jeito humano de ser” (2001, p. 47). Guimarães (2009) afirma que a violência é um fenômeno que está interligado à vivência em comunidade, nos mais distintos níveis, nas palavras do autor “desde aquele delimitado pelo que se bem pode denominar de comunidade protossocial – a família – até a extensão melhor acabada de grupamento humano, que é a sociedade civil” (GUIMARÃES, MOREIRA, 2009, p. 11). Diante desse contexto, a violência contra a mulher também se tornou cotidiana. Ao contrário do fenômeno da violência presente na modernidade e que se desencadeia numa constante insegurança social, o drama da violência perpetrada contra vítimas do sexo feminino parece pouco comovente quando praticado no ambiente doméstico; por ser deveras banalizado, tratar essa forma de violência como algo natural, que faz parte da vida humana, demonstra uma cultura preconceituosa com as feridas sociais. Uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo apontou que a cada 15 segundos uma mulher é agredida no Brasil. Esse dado revela a gravidade do problema e a necessidade de imediatamente buscar-se me4

Violência contra a Mulher. Pesquisa Fundação Perseu Abramo. Outubro de 2001. Disponível em: Acesso em 15 jun. 09.

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canismos que visem a coibir a violência contra a mulher em todas as suas formas. Ao se realizar uma digressão acerca do tratamento jurídico dispensado aos autores de violência praticada contra a mulher ou aquela cometida no ambiente doméstico, verifica-se que somente em 2004 ela passou a ter no ordenamento jurídico uma tipificação específica para essas formas de violência. Com a forte tendência do mundo moderno de adotar um Direito Penal Mínimo, os Constituintes de 1988 inseriram no art. 98, I, a criação dos Juizados Especiais, competentes para promover a conciliação, o julgamento e a execução das causas cíveis de menor complexidade das infrações penais de menor potencial ofensivo, por meio de lei especial que regulamentasse o assunto. Entretanto, mesmo com a previsão constitucional, somente após sete anos foi publicada a Lei nº 9.099, em 26 de setembro de 1995, que definiu a infração de menor potencial ofensivo e estabeleceu regras para a transação penal e o procedimento sumaríssimo. Assim, a nova lei foi recebida como um dos maiores avanços da legislação, em virtude da proposta despenalizante, pois introduziu importantes mudanças na política criminal brasileira, como, por exemplo, a aplicação de penas não privativas de liberdade para os crimes de menor potencial ofensivo. Cavalcanti (2007) observa: Surgida, por um lado, no contexto internacional de informalização do Poder Judiciário e, por outro, na constatação da complexidade da sociedade moderna em que a repressão é incapaz de resolver determinados conflitos sociais, bem como em razão de que essa criminalidade “menor” atrapalhava o andamento dos chamados crimes maiores e de alta lesividade. Assim, com a instituição dos juizados, os magistrados puderam dedicar mais tempo aos crimes mais graves (CAVALCANTI, 2007, p. 165).

Nesse contexto, a violência doméstica, que ainda continuava sem tipificação no Código Penal, era tratada como delito de lesão corporal, sendo os Juizados Especiais Criminais competentes para processar e julgar tais infrações. Após quase uma década da promulgação da Lei nº 9.099/95, foi editada, em 17 de junho de 2004, a Lei nº 10.886, que

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criou a figura qualificada da lesão corporal praticada contra familiares. Surge, então, pela primeira vez no Brasil, o tipo especial denominado violência doméstica, portanto, efetivamente tipificada no ordenamento jurídico brasileiro (CAVALCANTI, 2007, p. 166). A Lei nº 10.886/045 acrescentou no artigo 129, do Código Penal Brasileiro, os parágrafos 8º e 9º6, que disciplinam a violência doméstica praticada no âmbito das relações familiares. Nesse sentido, ocorre a violência doméstica, se a lesão corporal for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem o agente conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. Logo, será sujeito passivo do delito qualquer das pessoas elencadas no § 9º, seja homem ou mulher. Assim, a forma qualificada de lesão corporal, tipificada como violência doméstica, foi recepcionada pela Lei nº 9.099/95, sendo que esses delitos devem ser processados e julgados pelo rito sumaríssimo do juizado especial criminal. Conforme Campos e Carvalho (2006): Comparando-se o novo procedimento ao procedimento pré-processual anterior, sobretudo o histórico e arcaico Inquérito Policial, poderia ser constatado que esse novo procedimento, no qual há determinação de remessa obrigatória do Termo Circunstanciado (TC) ao Poder Judiciário, permitiu a visibilidade (publicidade) da violência contra as mulheres, visto que anteriormente essas condutas encontravam-se nas cifras ocultas da criminalidade. No entanto, esse ‘desvelamento’ da violência doméstica não contribuiu para minimizá-la ou para encontrar outras formas diversas de tratamento preventivo ou repressivo (CAMPOS, CARVALHO, 2006, p. 412-413).

Ocorre que os Juizados Especiais Criminais foram criados para desafogar a justiça e não foram pensados a partir das relações de gênero. Assim, Lei nº 10.886/04. Disponível em: Acesso em 31 mai. 09.

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§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano. § 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).” (NR) 6

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Marli Marlene Moraes da Costa et al A grande maioria dos delitos apurados pelos juizados especiais são lesões corporais consideradas “leves”, ou seja, aquela que não causa incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias, perigo de vida, debilidade permanente de membro, sentido ou função, aceleração de parto, incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade incurável, perda ou inutilização de membro, sentido ou função, deformidade permanente e aborto, art. 129, parágrafos 1º e 2º, do Código Penal (CAVALCANTI, 2007, p. 168).

Pode-se concluir, então, que a mulher poderia ser espancada e ficar à beira da morte, mas se recuperasse a saúde, num período inferior a 30 dias, sem deixar sequelas, o delito seria considerado de menor potencial ofensivo, sujeito ao rito sumaríssimo dos juizados especiais, com previsão de pena restritiva de direito ou multa, podendo ser convertido em prestação de serviços à comunidade ou pagamento de cestas básicas. Nesse contexto, o agressor percebia, ao sair do juizado especial criminal, que a violência contra a mulher era permitida, bastava pagar o preço. Assim, a vítima acabava absolutamente frustrada com essa situação, em virtude da banalização com relação ao seu conflito. Na visão da vítima, a justiça foi negada, ela deveria buscar respaldo e satisfação com relação ao sistema judicial, mas acontecia o contrário e ela se sentia duplamente vitimizada (TELES, 2003, p. 90). Consoante a isso, importa analisar o conceito de delito de menor potencial ofensivo. A Lei considera de menor potencial ofensivo os delitos cuja pena máxima não ultrapasse dois anos. Campos e Carvalho reconhecem que “a potencialidade da ofensa é medida pela quantidade da pena cominada”. Esse critério desrespeita, conforme os autores, “a valoração normativa do bem jurídico tutelado”, pois quando aos casos de violência doméstica é aplicada de forma indistinta, observa-se a “negação da tutela jurídica aos direitos fundamentais das mulheres” (CAMPOS, CARVALHO, 2006, p. 414). O fato de ser aplicado o rito da Lei nº 9.099/95 nos delitos de violência doméstica torna-se problemático por se tratar de um comportamento reiterado e cotidiano, as inúmeras idas e vindas, tanto à delegacia quanto ao juizado, as reconciliações, rompimentos e reatamentos, fazem parte do ciclo da violência. Isso provoca um com-

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prometimento emocional na vítima, que a impede de romper com a situação violenta e de evitar outros delitos. A noção de delito de menor potencial ofensivo ignora, portanto, a escalada da violência e seu verdadeiro potencial ofensivo. Inúmeros estudos têm demonstrado que a maioria dos homicídios cometidos contra as mulheres, os chamados crimes passionais, ocorre imediatamente após a separação. Nesses casos, as histórias se repetem: inúmeras tentativas de separação, seguidas de agressões e ameaças, culminam em homicídio (CAMPOS, CARVALHO, 2006, p. 414).

Ao levar o conflito familiar até o Poder Judiciário, observa-se um significado simbólico importante para a mulher agredida. Significa, acima de tudo, um grito de socorro, pois a mulher vítima de violência entende que sozinha não conseguirá terminar com as agressões. No entendimento de Campos e Carvalho, “A interferência de atores externos ao conflito (juiz, Ministério Público, advogados) representa importante variável para a vítima, (re)capacitando-a em condições e potencialidades de fala” (CAMPOS, CARVALHO, 2006, p. 415). Na violência conjugal, apesar do foco ser dado à violência propriamente dita, observa-se, principalmente, que além do fim das agressões, a mulher espera uma mudança de atitude do agressor, ou seja, ela quer uma medida capaz de acabar com a violência, garantindo-lhe a segurança. Porém, a conciliação não atinge esse objetivo, pois, necessariamente, precisa ser aceita pelo agressor (CAVALCANTI, 2007, p. 173). A transação penal, por sua vez, acaba excluindo a vítima, pois não há momento opinativo sobre as condições aplicadas ao autor do fato. As condições impostas na transação não cessam a violência nem previnem novos conflitos, gerando, portanto, insatisfação e insegurança às vítimas, conforme descreve Cavalcanti: A transação penal, medida de aplicação imediata à pena não privativa de liberdade sem os danos advindos da culpabilidade, proposta pelo Ministério Público, também era um instituto que excluía a vítima, bem como a suspensão condicional do processo, pois consideravam unicamente os interesses do autor do fato. A mulher não podia opinar sobre o tipo de pena de multa ou de prestação de serviços à comunidade não tinha surtido

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Marli Marlene Moraes da Costa et al o efeito desejado nos casos de violência doméstica. Em geral, as vítimas saiam frustradas da audiência porque não lhes era dada a oportunidade de opinar e, porque a pena imposta não era compatível com a gravidade do delito que chegou ao judiciário (CAVALCANTI, 2007, p. 173-174).

Nesse diapasão, os juizados representaram uma tendência para a sumarização dos procedimentos, com o objetivo de simplificar e reduzir os procedimentos de natureza processual, produzindo, assim, celeridade e eficiência ao processo. Entretanto, no que se refere à violência doméstica, a Lei nº 9.099/95 representou uma dissonância com relação à proteção dos direitos humanos das mulheres, principalmente, pela ausência de medidas que fossem capazes de garantir sua integridade física e emocional (CAMPOS, CARVALHO, 2006, p. 419). Assim, a Lei nº 9.099/95, quando definiu os delitos em virtude da pena cominada, e não em razão do bem jurídico protegido, não alcançou a natureza diferenciada da violência contra a mulher. Essa incompreensão resultou na banalização da violência de gênero. De acordo com Campos e Carvalho, “As possibilidades de escuta da vítima mostraram-se falaciosas devido à diminuição de sua intervenção na discussão sobre os termos da composição civil e, sobretudo, da transação penal” (CAMPOS, CARVALHO, 2006, p. 419). Portanto, no que se referia à violência doméstica, a Lei nº 9.099/95 não contribuiu para a punição do agressor. O pagamento de cestas básicas ou de multa em dinheiro representava a comercialização da violência cometida contra a mulher, pois se o agressor pagasse o preço poderia voltar a agredi-la. Diante desses fatos, observa-se uma perspectiva crítica obtida com a criação dos Juizados Especiais Criminais, que abarcaram a competência para processar e julgar os crimes de violência doméstica. Segundo Azevedo (2008), os problemas que surgiram com essa demanda levaram vários setores jurídicos e, principalmente, movimentos de mulheres a criticar os juizados, em razão da banalização da violência que era possível constatar, na prática, quando se aplicavam ao agressor medidas alternativas, tais como o pagamento de cestas básicas (2008, p. 125). De acordo com o autor, no que se refere às questões de violência de gênero, os Juizados Especiais Criminais apresentavam pontos positivos e negativos. As pesquisas demonstraram que alguns estu-

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diosos entendem que a luta das mulheres vestiu-se de visibilidade e o problema da violência doméstica foi, finalmente, trazido à tona. Os casos de violência contra a mulher, geralmente, não chegavam até a justiça, em razão da obrigatoriedade do inquérito policial, que, raras vezes, acabava sendo realizado. Outros doutrinadores entenderam que os Juizados Especiais Criminais acabaram aumentando a rede punitiva do estado, “judicializando condutas que antes não chegavam até o judiciário”. Isso acabava não contribuindo para a diminuição da violência doméstica (AZEVEDO, 2008, p. 126). Pelo que já foi referido e em virtude de várias reivindicações por parte de movimentos de mulheres, além da ampla discussão com entidades de proteção aos direitos humanos das mulheres, encaminhou-se ao Congresso Nacional, através da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, o Projeto de Lei nº 4.559/04, propondo-se mudanças para a realidade brasileira, quando se incluía em uma única lei dispositivos civis, penais e processuais que visam à proteção das mulheres contra a violência doméstica. O Projeto de Lei foi aprovado pela Câmara e encaminhado ao Senado, onde, após algumas modificações, foi sancionado e publicado como sendo a Lei nº 11.340/06, conforme passar-se-á a discorrer (CAVALCANTI, 2007, p. 174).

O Sistema Penal e a Inserção da Lei Maria da Penha no Ordenamento Jurídico Brasileiro Antes de se adentrar especificamente na análise da Lei nº 11.340/06, importa relembrar alguns fatos que antecederam a nova legislação. O primeiro se refere à publicação da Lei nº 10.445, no ano de 2002, que acrescentou ao parágrafo único do artigo 69 da Lei nº 9.099/95, a possibilidade de uma medida liminar, consistente no afastamento do agressor do ambiente doméstico na hipótese de violência doméstica, que poderia ser decretada pelo Juiz do juizado especial criminal. Note-se que somente com a Lei nº 10.886, editada em 2004, a violência doméstica passou a ter uma tipificação própria no ordenamento jurídico, mesmo que na forma qualificada na lesão corporal (CAVALCANTI, 2007, p. 174). Ocorre que em abril de 2001 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA),

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órgão responsável pelo recebimento de denúncias de violação aos direitos previstos no Pacto de São José da Costa Rica e na Convenção de Belém do Pará, atendendo denúncia do Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), publicou o Relatório nº 54, o qual estabeleceu recomendações ao Brasil com relação ao caso Maria da Penha Maia Fernandes, em razão de flagrante violação dos direitos humanos (CAVALCANTI, 2007, p. 174). A Comissão relatava que o Brasil não cumpriu o previsto no artigo 7º da Convenção de Belém no Pará e nos artigos 1º, 8º e 25 do Pacto de São José da Costa Rica, pelo motivo de ter passado mais de 19 anos sem que o autor do crime de tentativa de homicídio de Maria da Penha fosse levado a julgamento. Recomendou-se, portanto, o prosseguimento e intensificação do processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra a mulher no Brasil e, em especial recomendou “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias do devido processo” e “o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito a sua gravidade e as conseqüências penais que gera” (CAVALCANTI, 2007, p. 174-175).

A partir desse momento, iniciaram-se muitas discussões com o intuito de elaborar uma proposta de lei que incluísse, além de políticas públicas de gênero, medidas que promovessem a proteção às mulheres vítimas de violência e a punição mais rigorosa aos seus agressores. A iniciativa de inserir no ordenamento jurídico uma nova legislação foi do Poder Executivo, com a apresentação do Projeto de Lei nº 4.550, no final de 2004. Mas não se pode esquecer de que ele foi fruto de várias discussões entre o Governo brasileiro, a comunidade internacional e organizações governamentais e não governamentais. Também se ressalta o apelo de milhares de mulheres brasileiras vítimas de violência de gênero, agressões físicas, psicológicas e sexuais ocorridas no ambiente familiar (CAVALCANTI, 2007, p. 175).

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Nesse contexto, o projeto de lei foi encaminhado ao Congresso Nacional, onde encontrou ambiente favorável para ser aprovado, primeiro na Câmara e depois no Senado Federal. A nova lei surgiu, então, para atender ao clamor contra a sensação de impunidade despertada pela aplicação das leis dos Juizados Especiais Criminais, aos casos de violência doméstica e familiar praticada contra a mulher. Nesse sentido, a Lei nº 11.340/06 foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro, em 7 de agosto de 2006, e acabou representando um marco na luta pelos direitos da mulher. A Lei demonstra, de acordo com Guimarães, o encerramento de um programa constitucional que prevê o combate à violência doméstica. Em suma, o estado brasileiro, parece-nos, deu cumprimento, ao menos no aspecto jurídico-legal, à regra programática contida no § 8º do art. 226, CR, instituindo um amplo sistema político-jurídico de atenção à criança e ao adolescente, ao idoso e à mulher, onde se destacam mecanismos jurídicos de combate à violência ocorrido no meio doméstico (GUIMARÃES, MOREIRA, 2009, p. 22).

A nova legislação criou mecanismos para coibir e prevenir todas as formas de violência doméstica e familiar, nos termos do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. Já em seu artigo primeiro, podem ser extraídas algumas impressões acerca de seus objetivos, pois ao incluir as palavras “doméstica” e “familiar” o legislador procurou dar ampla abrangência ao fenômeno da violência, assim, ela não deve estar restrita apenas às pessoas que coabitam o ambiente familiar, mas a todas aquelas vinculadas ao grupo familiar (GUIMARÃES, MOREIRA, 2009, p. 27-28). Guimarães e Moreira complementam: a violência de que trata a Lei é aquela perpetrada no local de convívio, contra qualquer das pessoas desse meio, aparentadas ou não, bem como os atos danosos dirigidos às pessoas da família, que não serão necessariamente casadas (podendo a violência ocorrer com ascendentes ou descendentes do

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Marli Marlene Moraes da Costa et al agressor), nem mesmo obrigatoriamente de sexos distintos (o agente da agressão não será necessariamente homem. Mas, a vítima será sempre do sexo feminino) (GUIMARÃES, MOREIRA, 2009, p. 28).

Outro aspecto importante são as vastas normas que auxiliaram o legislador, “indo da Constituição à Convenção Interamericana (a Convenção de Belém do Pará), passando, de um modo geral, por todos aqueles tratados ratificados pelo Brasil”. Pode-se interpretar que essas normas servirão, de certa forma, como “suplemento ideológico-político-jurídico para as lacunas da Lei, (...) capazes de intervir no equacionamento de eventuais tensões entre dispositivos da Lei”. (GUIMARÃES, MOREIRA, 2009, p. 28). Ao se interpretar a gama de direitos trazidos pela nova legislação e direcionados à mulher, deve-se analisar de um ponto de vista humanístico, referido à pessoa humana, não se limitando aos conceitos biológicos da mulher. Com essa interpretação, será possível afirmar que a Lei alcança outros interesses ou direitos que, embora não estejam diretamente relacionados, estarão entrelaçados ao universo feminino, como, por exemplo, a proteção aos filhos. Sintetizando, o “objeto de tutela legal” estará relacionado com os “interesses e direitos pertencentes à mulher” (GUIMARÃES, MOREIRA, 2009, p. 31). De modo geral, a Lei define como objetivos a prevenção da violência doméstica e familiar, a sua repressão e a assistência e proteção à mulher vítima de violência. A repressão concretiza-se através de uma política criminal que, em primeiro lugar, torna mais gravosa a conseqüência jurídico-penal contra o agressor que não poderá ser beneficiado com a imposição de pagamento de “cestas básicas ou outras de prestação pecuniária” (art.17). (...) A prevenção da violência doméstica e a assistência à mulher operam-se através das ações articuladas entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como pelas ações não-governamentais, que se pautem por certas diretrizes, como a integração das instituições legitimadas a tratar da violência doméstica, a promoção de estudos sobre violência doméstica, o aperfeiçoamento das polícias (capacitação de seus agentes e

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criação de polícias especializadas) ou as campanhas educativas (art. 8º); pelo atendimento por equipe multidisciplinar (art. 30). A proteção da mulher opera-se pela ação policial dirigida à salvaguarda da mulher e dos filhos sob sua dependência (art. 11), pela aplicação (e efetivação, inclusive com a decretação, quando necessária, da prisão cautelar, na forma dos arts. 312 e 313, IV, CPP) das medidas protetivas de urgência de caráter pessoal (arts. 22 e 23) e de caráter patrimonial (art. 24). (Grifo do Autor) (GUIMARÃES, MOREIRA, 2009, p. 31-32).

Nesse sentido, a lei define a violência doméstica em seu artigo 5º, considerando-a como qualquer ação ou omissão que é baseada no gênero, que possa causar à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico. Da mesma forma considera violência doméstica aquela que provoque dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família e em qualquer relação íntima de afeto. A Lei não tratará, pois, apenas de violência doméstica contra a mulher, mas de violência que ocorra no âmbito da família, que em conformidade com o art. 5º, II, será “[...] a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” (GUIMARÃES, MOREIRA, 2009, p. 43).

Importa ressaltar que a lei é taxativa em seu artigo 6º, considerando que a violência praticada contra a mulher “constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”7. De acordo com as características penais trazidas pelas normas em geral, padronizou-se o entendimento de que o termo violência, quando se trata dos tipos penais incriminadores, aqueles representados simplesmente pela violência física. E é por essa razão que vários tipos penais trazem, além da expressão violência, a expressão grave ameaça. A Lei 11.340/06 dá enfoque à violência em sentido lato (constrangimento físico ou moral) contra a mulher (NUCCI, 2006, p. 859-860).

Lei nº 11.340/06. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/ lei/l11340.htm> Acesso em 25 Mar 10.

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Para tanto, em seu texto, no artigo 7º, considera formas de violência praticada contra a mulher, não só a agressão física8 como também a psicológica9, a sexual10, a patrimonial11 e a moral12. Observa-se que, atualmente, diversas organizações têm desenvolvido ações para identificar e dar o devido apoio às vítimas da violência doméstica. Essas medidas são o resultado da compreensão de que a violência contra a mulher, realmente, representa uma violação dos direitos humanos, constituindo-se numa importante causa de sofrimento e num fator de risco para diversos problemas de saúde, tanto no aspecto físico como, principalmente, no psicológico. Nesse contexto, o Título III da Lei Maria da Penha que define as questões referentes à assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar de imediato passa a tratar da criação de políticas públicas que visem a coibir todas as formas de violência contra a mulher, através da união de esforços da União, Estados e Municípios para promover a integração do Poder Judiciário, do Ministério Público e das Defensorias Públicas com os órgãos de segurança pública, assistência social, saúde, educação, entre outros. Possibilita também a promoção de estudos, pesquisas e estatísticas que dizem respeito às causas, às consequências e à frequência dos atos de violência contra a mulher, além da veiculação e da reali“I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal”.

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“II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.

9

“III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.

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“IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. 11

“V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”.

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zação de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade, com o intuito de difundir os instrumentos de proteção previstos na referida legislação que objetivam a proteção aos direitos humanos das mulheres. A Lei nº 11.340/06, definitivamente, veio para assegurar à mulher o direito a uma vida sem violência, para transformar pensamentos e hábitos. A exemplo disso, observa-se a série de medidas protetivas de urgência trazidas no texto legal que possibilitam a efetivação dos direitos fundamentais inerentes à mulher. Cabe a elas deter o agressor, garantindo a segurança pessoal e patrimonial da vítima e de seus filhos – como o próprio nome diz, são de urgência, e para tanto devem ser deferidas com maior brevidade possível, cabendo a própria mulher a iniciativa de solicitá-las, quando do registro da ocorrência policial. Diante dessa inovadora legislação, verifica-se que existem maneiras para que de fato a norma seja aplicada em toda a sua amplitude, possibilitando que a prática de violência contra a mulher, se não erradicada, pelo menos comece a ser diminuída, principalmente proporcionando às vítimas uma assistência integral e humanizada para que ela não seja duplamente vitimizada, primeiro pelo agressor, depois pelo Estado. A dignidade humana é valor imperativo da República Federativa do Brasil, representa, juntamente com os direitos fundamentais, a própria razão de ser da Constituição Brasileira, tendo em vista que o Estado é apenas meio para a promoção e defesa do ser humano. Entende-se que ela é mais que um princípio, é norma, regra, valor que não pode ser esquecido em nenhuma hipótese, é irrenunciável; e os direitos humanos decorrem do reconhecimento da dignidade do ser humano. Assim, combater a violência doméstica é uma das formas de garantir os direitos fundamentais da mulher. Como a Lei nº 11.340/06 trouxe alterações significativas no que se refere à aplicação da Lei nº 9.099/95, sendo taxativa em seu art. 41, quando afasta expressamente a competência dos Juizados Especiais Criminais para os delitos de violência doméstica, coube o reenvio dos delitos de violência contra a mulher à Delegacia de Policia, para que seja realizado o Inquérito Policial. Entretanto, Azevedo en-

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tende que essa medida, embora a lei tenha sido cuidadosa, no sentido de orientar a autoridade policial quanto ao tratamento adequado dispensando aos casos de violência doméstica, acarretará a redução do acesso ao Poder Judiciário, em virtude das já conhecidas dificuldades existentes na polícia, tanto estruturais como culturais (AZEVEDO, 2008, p. 127-128). Na visão de Dias (2007), o afastamento dos casos de violência doméstica da Lei dos Juizados Especiais, em razão da maneira absolutamente inadequada com que a Justiça cuidava desse tipo de violência, se fez necessário a partir do instante em que a lesão corporal leve passou a ser delito de menor potencial ofensivo. De acordo com a autora, surgiu a possibilidade de os conflitos serem solucionados de forma consensual, praticamente deixou de ser punida a violência intrafamiliar. O excesso de serviço levava o juiz a forçar desistências impondo acordos. O seu interesse, como forma de reduzir o volume de demandas, era não deixar que o processo se instalasse. A título de pena restritiva de direito popularizou-se de tal modo a imposição de pagamento de cestas básicas, que o seu efeito punitivo foi inócuo. A vítima sentiu-se ultrajada por sua integridade física ter tão pouca valia, enquanto o agressor adquiriu a consciência de que era “barato bater na mulher” (DIAS, 2007, p. 08).

Com o advento da Lei nº 11.340/06, aumentou-se a pena máxima dos delitos de lesões corporais para três anos, quando essa for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. Essa medida, além de afastar o Juizado Especial Criminal do processamento desses delitos, possibilitou a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. A Lei apenas previu a possibilidade de criação dos juizados, o que não enseja a obrigatoriedade de sua criação, também sequer determinou qualquer prazo para serem instalados. Nas palavras de Dias: Até na ementa da Lei Maria da Penha está prevista a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – JVDFM. Mas desgraçadamente não foi determinada sua instalação. Sequer foi imposto prazo para os Tribunais estru-

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turarem tais varas especializadas, nem ao menos nas capitais e nas grandes cidades. Essa omissão certamente trará sérios percalços à efetividade da lei, por não tornada obrigatória a implantação da mais importante arma contra a violência doméstica (DIAS, 2007, p. 148).

Ainda são poucas as cidades em que existem os Juizados Especializados, a tendência é de que eles sejam criados apenas nos grandes centros. Por ocasião disso, nos locais em que não forem implantados os juizados especiais, a competência para processar e julgar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher será das Varas Criminais13, ou seja, afasta-se o caso dos Juizados Especiais Criminais e encaminha-se para uma Vara que, frequentemente, está sobrecarregada de processos envolvendo delitos de homicídio, roubo, estelionato, entre outros, exigindo-se que sejam resolvidas questões que envolvam, principalmente, Direito de Família. Nesses casos, deparar-se-á com juízes e promotores criminais tendo que lidar com procedimentos e questões referentes ao Direito de Família, uma vez que o Titulo IV da Lei Maria da Penha, que trata “Dos Procedimentos”, em seu artigo 13, dispõe que ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais, que decorrem da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil. Conforme Dias: Às claras que os juízes, promotores, defensores e servidores afeitos a matéria criminal terão dificuldades em apreciar questões cíveis e de Direito das Famílias, que são o objeto da maioria das medidas protetivas. Ao depois, é indispensável que as varas que atendam a violência doméstica contenham uma equipe de atendimento multidisciplinar (art. 29), suporte técnico inexistente nas Varas Criminais (DIAS, 2007, p. 149).

Nesse contexto, questiona-se se o legislador acertou em determinar que enquanto não forem instalados os Juizados de Violên“Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente. Pa rágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput.” 13

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cia Doméstica, a competência para processar e julgar esses delitos será das Varas Criminais, já que haverá um aumento significativo na quantidade de processos nos juízos criminais. Como bem recorda Dias, não se pode esquecer de que nas varas criminais muitas ações são de réus presos e por isso têm preferência de tramitação. Ocorre que aos casos de violência doméstica também é assegurado o direito de preferência, o que deixaria o juiz diante de um impasse (DIAS, 2007, p. 149). Diante de tudo que já foi exposto, o Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em parceria com diversas instituições de ensino do Estado do Rio Grande do Sul, tais como Universidade de Santa Cruz, Universidade de Caxias do Sul, Universidade Católica de Pelotas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal de Rio Grande, entre outras, elaborou o Projeto de Pesquisa intitulado “RELAÇÕES DE GÊNERO E JUSTIÇA PENAL: Violência e Conflitualidade nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”14. O Projeto15 tem por finalidade “Identificar os elementos que compõem as relações de gênero, nos casos encaminhados aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar estruturados no Estado do Rio Grande do Sul, buscando compor o perfil das partes envolvidas, os motivos que levaram à violência e as expectativas e resultados obtidos por meio dos Juizados”. Com relação aos recursos metodológicos utilizados para se alcançar os objetivos da pesquisa, ressalta-se a realização de uma “pesquisa de campo sobre a percepção de mulheres vítimas de violência e seus agressores sobre o tratamento dado ao caso pelas delegacias e Projeto financiado com recursos do CNPq (Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA N° 57/2008); início em jan. 09, término em dez. 10.

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Integrantes: Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (PPGCCrim PUCRS); Marli Marlene Morais da Costa (UNISC); Carmen Hein de Campos (PPGCCrim PUCRS); Giovani Agostini Saavedra (PPGCCrim PUCRS); Ney Fayet Jr. (PPGCCrim PUCRS); Carla Marrone Alimena (PPGCCrim PUCRS); Cristina Lima (PPGCCrim PUCRS); Renata Giongo (PPGCCrim PUCRS); Fernanda Bestetti de Vasconcellos (PPGCS PUCRS); Sarah Puthin (PPGPsicologia PUCRS); Gabriela Freitas (Fac. Direito PUCRS); Cristiane Russomano Freire (UCS); Elisa Girotti Celmer (FURG); Luiz Antônio Bogo Chies (UCPEL); Bárbara Stock (UniRitter); Rochele Fellini Fachinetto (UFRGS); Rosane Teresinha Carvalho Porto (UNISC); Quelen Brondani de Aquino (UNISC)

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Juizados de Violência Doméstica e Familiar, nas principais comarcas do estado do Rio Grande do Sul”. Diante disso, realizaram-se as atividades de pesquisa de campo, na 2ª Vara Criminal da Comarca de Santa Cruz do Sul, a qual abarcou a competência para processar e julgar os delitos de violência doméstica e familiar praticados contra a mulher, com o advento da Lei nº 11.340/06. De um modo geral, foram realizados acompanhamentos às audiências na 2ª Vara Criminal, que tenham referência com a Lei nº 11.340/06, durante o mês de maio de 2009, bem como a aplicação de um questionário, tanto para as vítimas de violência quanto para os agressores. Assim, diante dos resultados obtidos, podem-se desenhar os traços da prática forense nos crimes de violência contra a mulher, no município de Santa Cruz do Sul. A primeira impressão, quiçá a mais importante, que se verifica no funcionamento da 2ª Vara Criminal, quando se está lidando com casos de violência doméstica e familiar, é que o que menos acontece é a discussão sobre o delito cometido, as próprias vítimas não estão preocupas com o fato delituoso, mas sim em resolver conflitos familiares, que acabaram fazendo com que elas chegassem até o Poder Judiciário. Observam-se, portanto, juízes criminais, promotores criminais e funcionários da justiça criminal, tendo que resolver questões de Direito de Família. Acaba o juiz criminal, muitas vezes, decretando a separação do casal, definindo alimentos, guarda de filhos, partilha de bens, entre outros. Outro episódio cotidiano na vara criminal é o grande número de retratação por parte das vítimas. O motivo predominante para a desistência da vítima em prosseguir com a ação é a reconciliação com o agressor. Outros fatores, não menos relevantes, são o fato de as mulheres acharem que os companheiros mudaram seu comportamento ou que não desejam ver o pai de seus filhos sendo processado criminalmente ou correndo o risco de acabar preso, e o fato de os conflitos familiares terem sido solucionados. Durante o acompanhamento às audiências, constatou-se que apenas duas mulheres resolveram dar prosseguimento ao processo criminal.

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Outra característica que se observa, e talvez a mais lamentável, é que quando vítima e agressor não estão mais juntos – separados de fato – o que importa é a solução das questões familiares. Assim, quando se chega a um acordo com relação ao pagamento de pensão alimentícia, separação de bens, guarda dos filhos, a mulher, então, desiste da ação criminal. Entretanto, se não houver acordo, principalmente com relação ao pagamento de alimentos, a mulher acaba optando por dar continuidade à ação penal. Atente, nesses casos, para a completa banalização do motivo-crime que levou vítima e agressor até a justiça. É como se a prática da violência não tivesse a mínima importância. Essa situação é lastimável, pois se conclui que a Lei não está atingindo o seu objetivo máximo de “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. A pesquisa ratificou a ideia de que para a violência contra a mulher não tem idade, cor, raça ou classe econômica, não sendo possível definir vítimas potenciais, ou o perfil das mesmas. Diante dessas informações, como garantir a efetividade da Lei Maria da Penha, de modo que se proporcione, de fato, a diminuição da prática de violência contra a mulher? O assunto é complexo, e talvez por isso a imprescindível necessidade de intervenção estatal no mundo privado. É fundamental que se analise o conflito social que se esconde atrás da violência doméstica. Para isso, não se pode dispensar tratamentos como se fossem apenas conflitos de matéria criminal. Importa levar em consideração a relação íntima que existe entre vítima e acusado, e deve-se buscar investigar as necessidades e sentimentos de cada um desses atores sociais.

A necessidade de políticas voltadas para a vítima e o agressor com fundamentos na Justiça Restaurativa Em razão de tudo que foi exposto, percebe-se a necessidade de se recorrer a mecanismos modernos que possibilitem a efetivação dos direitos fundamentais das vítimas de violência doméstica e familiar. Assim, as práticas restaurativas representam elementos capazes de romper com os paradoxos punitivos definidos pela norma, quando esta, por sua vez, torna-se símbolo da retributividade presente no processo de con-

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versações da comunidade. A Justiça Restaurativa é o espaço de diálogo, que, como recurso tecnológico, possibilita práticas de cidadania. Sabe-se que a Jurisdição é uma conquista constitucional, pois é o caminho que serve como garantia do processo. Nesse viés, está-se discorrendo sobre a justiça tradicional, e ao se visualizar um triângulo que tem na sua base os conflitos sociais, nota-se que no processo ocorre a artificialização do conflito social, quando os atores tornam-se vítima e réu. Esse espaço é constituído por pessoas que nas suas relações interativas, ricas em significados e significantes, de acordo com os signos convencionados como objetos comuns e mecanismos de comunicação também são instituídos pelos conflitos, que podem ser ruídos e quando não compreendidos e absorvidos se alastram vindo a contribuir para a violência. Há de se levar em consideração que nas interações sociais a produção dos sentidos também procede por meio dos gestos e, estes, para valerem ou ser substituído o seu significado, precisam ser conhecidos e aceitos pelos participantes do diálogo. Nesse contexto, para que as práticas restaurativas façam parte da cultura de uma comunidade como possibilidade de resolução de conflitos, é importante que os seus membros a reconheçam, ou seja, que pelo agir também decorrente da reação-estímulo consigam a interação comunicativa com o outro. Observe que a interação comunicacional passa por gestos, depois transforma o comportamento dos envolvidos e, por último, produz a relação interpessoal entre aquele que fala e o que escuta. Disso resulta o aprendizado entre os atos de entendimento e as ações orientadas para o êxito (HABERMAS, 2003, p. 19-20). Na esfera pública, os participantes dos fluxos de conversação envolvidos por ações de natureza cognitiva e emocional quando abrem possibilidades de interação, retomando procedimentos de diálogo, como o da Justiça Restaurativa, desejam alcançar o entendimento. Para tanto, a Justiça Restaurativa é uma prática comunicativa que contribui para que os agentes comunicativos se localizem no espaço social e no contexto histórico-cultural, pelas exposições narrativas do que ocorre no mundo da vida. De acordo com Zher (2008), “a Justiça Restaurativa trata de danos e necessidades, bem como de obrigações decorrentes, e envolve todos os que sofrem o impacto ou têm algum interesse na situação” (2008, p. 258).

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Marli Marlene Moraes da Costa et al Como bem esclarece Ferreira (2006): A Justiça Restaurativa não deve ser entendida como uma forma privada de realização da justiça – ao lado da vindicta privada ou da negociação direta entre as partes envolvidas num conflito, mesmo quando também estas se mostrem regradas, controladas e não brutais -, nem como uma justiça pública ou “oficial”, tal como a que resulta do funcionamento do sistema judicial, mas como uma justiça tendencialmente comunitária, menos punitiva, mais equilibrada e humana (FERREIRA, 2006, p. 24-25).

Por sua vez, o Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, conforme a Resolução 99/2002, define a Justiça Restaurativa como um processo em que todas as partes envolvidas em um ato que causou ofensa. Reúnem-se para decidir coletivamente como lidar com as circunstâncias decorrentes desse ato e suas implicações para o futuro. Para Costa e Porto (2007), a Justiça Restaurativa, além de reduzir a criminalidade, tem como objetivo maior restaurar os danos causados pela violência, principalmente aqueles de cunho psicológico e emocional. Ao utilizar-se da comunicação, identifica os atores sociais que compõem o processo, como verdadeiros cidadãos (2007, p. 156). Por outro lado, não existe um conceito acabado de Justiça Restaurativa, ela não precisa ser definida, pois cada comunidade tem seus sinais comunicativos. Importa destacar, no seu entendimento, como ponto de partida para compreender e restabelecer a sua práxis nas relações, que se faz necessário reconhecer que há identidade entre a teoria e a prática; ambas não são distintas nem fragmentadas. Assim, a Justiça Restaurativa oferece práticas como, por exemplo, a mediação e a comunicação não violenta para a resolução de alguns conflitos via diálogo. Para tanto, os recursos restaurativos são adaptáveis e flexíveis aos modelos e categorias que se instauram. Com o fim de que as práticas restaurativas sejam efetivas no contexto em que são adotadas, é importante que se remova das relações sociais o hábito de punir, pois não está em discussão a violação da norma, e, sim, a relevância de se abrir espaços públicos para suprir déficits de comunicação que são alimentados cotidianamente pela linguagem. A adoção de uma

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linguagem não violenta é primordial para o sucesso dessas práticas. Porto (2006) complementa: O conceito de Justiça Restaurativa, por ser um novo paradigma que está em fase de construção, requer da sociedade maior ousadia e reflexão para a sua compreensão e, porque não dizer, deve estar mais voltado para as necessidades e obrigações oriundas da violação e do trauma causado na vítima, na comunidade e no infrator que deve ser restaurado (PORTO, 2006, p. 86-87).

Assim, para que o restabelecimento harmônico do campo familiar seja construído, recorre-se, muitas vezes, à figura do Juiz; mas esse, sozinho, às vezes não consegue restabelecer a ordem social. Daí a importância de se proporcionar à sociedade os princípios e valores das práticas restaurativas, adotando-as como um processo de mediação de conflitos, denotando ser mais proveitoso para as partes envolvidas no conflito familiar. Por isso que a Justiça Restaurativa torna-se uma alternativa pacificadora para que se resolvam os conflitos, pode ser empregada em diversas situações e, portanto, ser aplicada na resolução dos conflitos domésticos, quando, através do diálogo, proporciona à vítima e ao agressor a possibilidade de restaurar as cicatrizes deixadas pela violência. Não se está propondo o restabelecimento do vínculo conjugal, o que se busca são alternativas, que podem ser eficientes, de acordo com cada caso. A abordagem restaurativa nas relações de gênero requer a propositura de se articular estratégias de diálogo, que avancem para os círculos de convívio interpessoal. Com efeito, se objetiva a pacificação de conflitos, pois quando uma mulher sofre de violência doméstica, constata-se que sua voz foi silenciada pela dor e o seu direito de lamentar tal perda, juntamente com outras reivindicações também foi subtraído ou violado pelo ato violento. Embora a Justiça Restaurativa seja a possibilidade de aproximar a vítima, o ofensor e a sua comunidade para exercitarem o seu direito de lamentação, de informação e de sobrevivência ao dano sofrido, sabe-se da complexidade e, inclusive, da dificuldade de transformar esse cenário em realidade, quando a violência é de natureza doméstica. Portanto, compreender que a mulher e o homem (seu agressor) são vítimas da violência merecendo a escuta e a devida responsa-

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bilização, quando de um crime, é o primeiro passo. A garantia dos direitos fundamentais, do devido processo legal, do cumprimento da Lei Maria da Penha, na sua efetividade, sinaliza para uma justiça da experiência, transformadora, que devolve principalmente à vítima o empoderamento. Como bem explica Zher: “Um fio condutor que une tudo isto pode ser descrito como a necessidade de uma experiência de justiça. (...) Com efeito, a experiência de justiça é tão básica que sem ela a cura poderá ser inviável” (2008, p.176-177). Nesse sentindo, a restauração da justiça possibilita que não apenas à vítima seja proporcionada a reparação dos traumas causados pelos atos de violência, mas que alcance também ao agressor. Zehr enfatiza: “também ofensores precisam de cura. É claro, eles devem ser responsabilizados pelo que fizeram. (...) Mas essa responsabilização pode ser em si um passo em direção à mudança e à cura” (2008, p. 177). Esse modelo de restauração da justiça possibilitará que seja instaurada a reinserção da cidadania e da dignidade humana, calada pelo ciclo da violência, pelas diferenças de gênero e pela dominação masculina. A mobilização em torno desse tema fará com que alterações imprescindíveis se instalem no comportamento social, transformando-se, dessa maneira, a prática da justiça, produzindo, nesse viés, mudanças profundas nas relações interpessoais.

Considerações Finais A violência contra a mulher atinge não apenas a sua dignidade como também representa afronta aos vários direitos fundamentais abrigados pela Constituição Federal de 1988 e por diversas convenções e tratados internacionais. Em razão disso, é fundamental o combate à violência em todas as suas formas, principalmente aquela cometida no interior dos lares, que culmina na desestruturação do núcleo familiar, ou seja, acaba com qualquer possibilidade de afeto e respeito dentro do convívio doméstico. Em razão disso, a violência doméstica e familiar deve ser combatida em todas as suas formas, e embora já se tenha verificado um grande avanço no que se refere à inserção no ordenamento jurídico de legislação específica – Lei Maria da Penha – capaz de dar uma resposta adequada às peculiaridades da violência praticada contra

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a mulher, outros mecanismos devem ser utilizados para a prevenção dessa forma de violência. Deve-se levar em conta que os conflitos familiares, quando chegam ao Judiciário, é porque se esgotou qualquer tentativa de diálogo e reconciliação, sem o auxílio e mediação de equipe capacitada. Trata-se, pois, de pessoas que trazem no seu âmago uma série de transtornos, frustrações e desilusões. O litígio, na esfera judicial, representa, nesses casos, a patologia de uma relação afetiva. Esse cenário revela, por si só, a dificuldade no enfrentamento a essas questões, o que leva à imprescindível conclusão de que realmente é fundamental um atendimento qualificado e humanizado, praticado por profissionais de diversas áreas, quais sejam: psicólogos, assistentes sociais, advogados, entre outros. As vítimas, principalmente, esperam que para o seu casamento, sua família, sua história, e aos conflitos decorrentes dessa vivência, não seja dispensado o mesmo atendimento dado a um assalto sofrido na esquina por um ladrão qualquer. São relações humanas que estão em discussão. Importante, portanto, que haja vontade política do Estado para que, em conjunto com a sociedade, busquem-se novas estratégias para o enfrentamento a esse problema. Nesse sentido, a aplicação das práticas restaurativas, que podem ser empregadas tanto às mulheres como aos homens, demonstram poderosos aliados para a reabilitação desses agentes. Essas experiências possibilitarão um exame detalhado das atitudes e sentimentos nutridos pela vítima e pelo agressor, permitindo que o self seja reconstruído e que um conjunto de medidas reparatórias seja adotado. Esse modelo de restauração da justiça possibilitará a reinserção da cidadania e da dignidade humana, rompida pelo ciclo da violência. A mobilização em torno dessa temática deve causar alterações expressivas no comportamento social, transformando a prática da justiça e produzindo mudanças fundamentais nas relações de gênero, colaborando para a cultura da paz.

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NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. PORTO, Rosane T. C. A Justiça Restaurativa: uma nova proposta de política pública de cidadania ao adolescente infrator à vítima e à comunidade. In: COSTA, Marli M. M. Direito. Cidadania e Políticas Públicas. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2006. STREY, Marlene Neves. Violência e Gênero: um casamento que tem tudo para dar certo. In: GROSSI; Patrícia Krieger; WERBA, Graziela C. Violências e Gênero: coisas que a gente não gostaria de saber. Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 47-69, 2001. TELES, Maria Amélia de Almeida; TELES, Mônica de Melo. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 314, 2003. Violência contra a Mulher. Pesquisa Fundação Perseu Abramo. Outubro de 2001. Disponível em: Acesso em 15 jun. 09. ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.

VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER E A LEI MARIA DA PENHA: violação de direitos humanose o desafio interdisciplinar

Bárbara Sordi Stock1 Germana Vogt Panzenhagen2 Raquel da Silva Silveira3 Com a entrada em vigor da “Lei Maria da Penha” (Lei nº 11.340/06), a temática violência doméstica ganhou maior visibilidade social no Brasil. O Poder Judiciário do Rio Grande do Sul está empenhado em tratar o tema de forma diferenciada, sendo exemplo disso a criação do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em funcionamento no Fórum Central da capital gaúcha. O presente artigo propõe a análise da parceria formada entre o mencionado Juizado e o Ensino Superior (Núcleo de Direitos Humanos 1 Professora, mestre em Ciências Criminais, coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos e integrante do projeto Violências contra a Mulher e a Lei Maria da Penha: Violação de Direitos Humanos e o Desafio Interdisciplinar. 2 Advogada e integrante do projeto Violências contra a Mulher e a Lei Maria da Penha: Violação de Direitos Humanos e o Desafio Interdisciplinar.

Psicóloga, coordenadora do Núcleo de Relações Comunitárias e integrante do projeto Violências contra a Mulher e a Lei Maria da Penha: Violação de Direitos Humanos e o Desafio Interdisciplinar.

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e de Relações Comunitárias) para o desenvolvimento do projeto Violências contra a Mulher e a Lei Maria da Penha: Violação de Direitos Humanos e o Desafio Interdisciplinar. Este foi realizado durante os seis primeiros meses de funcionamento da Vara especializada, dentro de uma perspectiva essencialmente interdisciplinar, que une saberes do Direito e da Psicologia e que pretende intervir sobre realidades jurídicas estanques imprimindo consequentes mudanças na realidade social. As linhas que seguem abordarão, além do projeto e de seus resultados, os desafios enfrentados pelo grupo de trabalho com a finalidade de, por meio da socialização do conhecimento, contribuir com o processo de efetivação dos direitos humanos da mulher.

Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher na cidade de Porto Alegre: diagnóstico e análise da realidade a ser trabalhada O Conselho da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul4, com a promulgação da “Lei Maria da Penha”, em agosto de 2006, autorizou a instalação de um Projeto-Piloto com prazo de 180 dias, a contar de 12.12.2006, para o processo e julgamento de todos os feitos referentes à violência doméstica e familiar contra a mulher da cidade de Porto Alegre. Os processos continuaram sendo distribuídos às varas criminais dos Foros Regionais da capital, mas passaram a ser encaminhados para tramitação e julgamento ao anexo cartorário, instalado no Foro Central, com retorno à vara de origem somente para arquivo. O projeto durou em torno de um ano e meio e, se por um lado, diagnosticou a necessidade de uma vara única para um enfrentamento multidisciplinar da questão, por outro, foi alvo de críticas. As inconformidades podem ser assim resumidas: 1. local de funcionamento dos juizados, uma vez que as mulheres e os homens ficavam no saguão do Foro Central expostos ao olhar de todos os transeuntes, o que contribuía para a estigmatização do homem e para a fragilização da mulher; RIO GRANDE DO SUL. Conselho da Magistratura. Edital nº 116, de 6 dez. 2006. Disponível em http://www.tj.rs.gov.br/legisla/publ_adm_xml/result.php.

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2. quantidade de processos em pauta, uma vez que todas as demandas da capital foram concentradas em uma única vara, sendo criadas alternativas pouco eficazes para a solução das lides, como a “audiência mutirão” realizada uma vez por mês com 300 (trezentas) mulheres aproximadamente no auditório do Foro; 3. desarticulação do poder público com o poder judiciário para oferecer atendimento psicossocial às partes do processo. Nesse sentido, em 25 de março de 2008, o Conselho da Magistratura resolveu pela instauração definitiva do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, o qual foi solenemente instituído em 25 de abril do mesmo ano. Ficou determinado que a 1.ª Vara de Delitos do Trânsito (situada no 5º andar do Foro) seria transformada no Juizado com competência para apreciar os processos oriundos da “Lei Maria da Penha” e ficou registrado no ato de instauração que a nova unidade jurisdicional contaria com uma equipe multidisciplinar composta por assistente social e psicólogo para o atendimento da demanda.5 A partir da compreensão da violência doméstica como um problema macrossociológico, contatos com a Rede Pública de Serviços foram realizados durante o mês de maio pela nova magistrada titular da Vara, a fim de montar uma rede de articulação para possíveis encaminhamentos oriundos do Judiciário. Neste momento é que, em razão da trajetória delineada nos anos anteriores no Foro da Restinga6, a parceria entre o Ensino Superior, por meio dos Núcleos de Extensão do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), e o Poder Judiciário tomou corpo para a construção de um projeto multidisciplinar. Para definir os objetivos do projeto, o primeiro passo foi conhecer a realidade a ser trabalhada, que se apresentou da seguinte forma: RIO GRANDE DO SUL. Conselho da Magistratura. Dispõe sobre a transformação da 1.ª Vara de Delitos de Trânsito em Juizado de Violência Doméstica e Familiar, e dá outras providências. Resolução nº 663/2008. Disponível em
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