VISÃO TRÁGICA DO MUNDO: A ESTÉTICA DE NIETZSCHE

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Admitimos que a questão do niilismo não é abordada explicitamente em O Nascimento da Tragédia. Essa questão, que "só aparece explicitamente a partir de 1881, é compreendida tardiamente por Nietzsche como já estando presente em sua primeira obra publicada" (ARALDI, 2004, p. 36), e adquire maior profundidade com o projeto e a doutrina da vontade de potência. Ou seja, a questão do niilismo é prenunciada no NT, principalmente pela extensiva leitura das ideias e propostas schopenhauerianas, as quais deixam inequivocamente entrever o problema do niilismo como algo a ser enfrentado seriamente.
Essas ideias foram desenvolvidas apenas posteriormente, em especial em Além do Bem e do Mal e em Genealogia da Moral, porém o germe delas encontra-se já nos escritos de 1872-74.
Ver explicação de Araldi (2009, p. 125): "A vinculação do Uno-Primordial aos mistérios dionisíacos permanece obscura nos escritos de juventude de Nietzsche, apesar do caráter positivo a ele atribuído. Schelling, no entanto, na sua obra tardia Filosofia da mitologia afirma que o espírito absoluto teria se manifestado no mundo pré-cristão em três estágios dialéticos, ligados a Dioniso [...]", esses estágios seriam o do Dioniso-Zagreus (o selvagem), o do Dioniso-Bakchos (o pós-selvagem) e o do Dioniso-Iakchos (o espiritual).
"Cf. Gesammelte Briefe, KSB 8, n. 1009, com livre tradução nossa.
Optamos pela expressão "metafísica de artistas", ao invés da "metafísica da arte" [Metaphysik der Kunst] que consta no livro, conforme alerta de Araldi (2009, p. 130): "[...] criações são apenas representações. Com isso, há apenas a reafirmação dos interesses da Vontade em obter, através do gênio artístico, a 'contemplação sem dor', o puro gozo estético. Assim sendo, o termo 'metafísica de artistas' é mais apropriado do que 'metafísica da arte', pois Nietzsche tem como principal foco de sua estética o processo de criação genial."
Ver tese de Vladimir M. Vieira (2009), capítulo 2, no qual concentra a análise sobre a estética contida no NT, vinculando a metafísica de artistas à argumentação inteira do livro e ratificando posições de comentadores estudados neste texto, como Rosa M. Dias e R. Machado: "[...] ainda acredito que uma abordagem sistemática do texto, que procure acompanhar o desenvolvimento dos argumentos de Nietzsche sem saltar passagens relevantes, não permite deixar de lado o seu comprometimento metafísico" (VIEIRA, 2009, p. 174).
O aforismo "Belo e feio" ilustra esse antropomorfismo, ou seja, a projeção dos anseios humanos nas coisas observadas: "[...] No fundo, o ser humano se espelha nas coisas, acha belo tudo o que lhe devolve a sua imagem: o juízo 'belo' é sua vaidade de espécie..." (NIETZSCHE, 2006, p. 52).
Em "Qual pode ser a nossa doutrina" Nietzsche recusa a teleologia: "Nós é que inventamos o conceito de 'finalidade': na realidade não se encontra finalidade", mais a frente fica claro o motivo dessa recusa radical: "Nós negamos Deus, nós negamos a responsabilidade em Deus: apenas assim redimimos o mundo" (NIETZSCHE, 2006, p. 35), o que reafirma o privilégio dos valores estéticos sobre os morais.
Cf. Nachgelassene Fragmente, KSA 12, 10[167], com livre tradução nossa.


VISÃO TRÁGICA DO MUNDO: A ESTÉTICA DE NIETZSCHE
André Nor Filho*

Resumo: A estética de Nietzsche está vinculada a uma visão trágica do mundo, explicaremos neste trabalho como se deu o processo dessa formulação e os principais aspectos dessa estética. A influência do romantismo e do idealismo alemães foi marcante para seu pensamento estético, adentrando inclusive em outras áreas filosóficas. Nas obras da juventude, Nietzsche elaborou a metafísica de artistas para poder dar conta do jogo de contrários que caracterizou a tragédia grega. Mais tarde, ele vai desenvolver uma fisiologia da arte, na qual a disciplina do corpo aparece como uma necessidade que dê estilo a um caráter, dentro de um plano artístico que valorize a beleza e que agrade ao próprio indivíduo. A arte se mostra uma via privilegiada para o enfrentamento da passividade, da uniformidade e do niilismo no mundo moderno.
Palavras-chave: Estética; Nietzsche; Tragédia; Niilismo.

Abstract: Nietzsche's aesthetics is tied to a tragic vision of the world, in this work we will explain as occurred this formulation process and the main aspects of this asthetic. The influence of German Romanticism and Idealism was striking for its asthetic thinking, entering even in other philosophical areas. In his early works, Nietzsche has elaborated the metaphysics of artists to take care this game of opposites which characterised the greek tragedy. Further, he will develop a physiology of art, in that the body's discipline shows up as a necessity that gives style to a character, inside an artistic plan to valuing the beauty and pleasing the individual himself. Arts show up as a privileged way to fight against passivity, uniformity and nihilism in the modern world.
Keywords: Aesthetics; Nietzsche; Tragedy; Nihilism.

Introdução

Apresentaremos neste texto a estética de Nietzsche, que está vinculada a uma visão trágica do mundo – visão que aparece de forma mais forte e explícita em seus textos iniciais, mas também nos últimos. Poderão surgir passagens obscuras e ambíguas, pois os textos de Nietzsche são difíceis de compreender, o que se dá por basicamente dois motivos: falta um sistema que permita ao leitor se guiar por conceitos sem tropeçar neles e as suas visões mudam constantemente – posições são afirmadas, negadas, reafirmadas e deslocadas. É difícil saber o que ele quer dizer com várias noções e ideias – isso explica, em parte, a abundância de comentadores dos seus escritos. Apesar de seu aviso de não ser confundido, no início da sua autobiografia irônica (prólogo de Ecce Homo), é comum haver interpretações das mais diversas sobre seus textos, ou seja, não há um cânone do pensamento nietzschiano.
Apesar desse embaraço, perguntamos: qual é a ideia que se destaca durante seus anos de escritor/pensador? Consideramos seu projeto de superação da moral e de suas implicações niilistas a sua maior ideia e sua principal contribuição à filosofia. Conforme Araldi (2004, p. 67): "O niilismo é assumido por ele como um movimento descomunal e decisivo que permeia todos os âmbitos do pensamento e da ação do homem moderno, constituindo o 'problema propriamente trágico do nosso mundo moderno'". Logo em seu primeiro livro é possível entrever o exercício desse projeto: como enfrentar e superar o perigo do niilismo moderno, entendido como fastio da vida, perda dos valores e ausência de sentido do mundo, e consequente redução a nada? Eis como podemos esboçar o esquema: o niilismo ativo serve de contraponto ao niilismo reativo (do cristianismo) e ao niilismo passivo (do cientificismo). Segundo Nietzsche, só após desmistificar as imposturas da moral seria possível transvalorar os valores em voga e fazer nascer um novo homem, atento aos embutes e às promessas do além-mundo, que não passam de construtos humanos.
Seguindo uma abordagem histórica, apontaremos para os nomes e as tradições que inspiraram o jovem filólogo. Um ponto importante nessa análise é mostrar que houve um entusiasmo juvenil com a tese principal da Crítica da Razão Pura: a razão esbarra em limites para se conhecer o mundo, ela não atinge a coisa em si, exigindo a suspensão do juízo nesse ponto ou então outro tipo de abordagem (não-objetiva). E qual foi precisamente o entusiasmo com essa ideia? "A enorme bravura e sabedoria de KANT e de SCHOPENHAUER conquistaram a vitória mais difícil, a vitória sobre o otimismo oculto na essência da lógica, que é, por sua vez, o substrato de nossa cultura" (NIETZSCHE, 2007, p. 108). Safranski (2010, p. 253) nos descreve o contexto: "Nietzsche lida com uma época na qual a ciência festeja triunfos imensos. Positivismo, empirismo, economismo, ligados a um pensamento utilitário excessivo, determinam o espírito do tempo [Zeitgeist]. E principalmente, se está otimista". As sociedades industriais, defensoras da primazia da técnica e do capital, se fortaleciam. Predominavam ali: a burguesia, com seus interesses quase que exclusivamente materiais; o asceticismo, com seu requisito de impessoalidade; e a industrialização, com sua padronização de processos. Essa conjuntura de fatores estava levando o povo alemão a introjetar valores de uniformidade e conformidade, retransmitindo a mensagem ideológica recebida. O trabalho de Nietzsche transmitiu o alerta de que esses valores retiram a possibilidade de uma vivência mais plena e vigorosa. A arte aparece como via privilegiada tanto a esse enfrentamento quanto ao do problema mais geral, o do niilismo.
Dividiremos este trabalho em três partes: a primeira trata das influências mais marcantes de Nietzsche em sua primeira fase; a segunda foca no primeiro livro, explicando a metafísica nele contida; a terceira trata da estética em sua última fase, a dos escritos mais críticos e mordazes, em que ele tenta se livrar da carga metafísica da juventude.

A Influência do Romantismo e do Idealismo Alemão

"A esfera da poesia não se encontra fora do mundo [...]: ela quer ser exatamente o oposto, a indisfarçada expressão da verdade, e precisa, justamente por isso, despir-se do atavio mendaz daquela pretensa realidade do homem civilizado" (NIETZSCHE, 2007, p. 54).

Neste capítulo destacaremos os autores que influenciaram o pensamento da primeira fase de Nietzsche. Começamos com seu "mestre e educador" Arthur Schopenhauer, aquele que é "o guia que conduz, da caverna do desânimo cético ou da abstinência crítica à altura da consideração trágica, o céu noturno com suas estrelas sobre nós até o infinito, e que conduziu a si mesmo, como o primeiro, por esse caminho" (NIETZSCHE, 1999, p. 290); aquele que "foi o primeiro filósofo ateu convencido e inflexível que tivemos na Alemanha" e que esvaziou o conteúdo divino da existência (Cf. Nietzsche, 2005b, p. 207). Considerar a música como expressão imediata da Vontade e vincular a Vontade com a coisa em si foram as grandes influências de Schopenhauer sobre o jovem Nietzsche; porém, as ideias da negação da vontade (castidade e resignação) e da ataraxia como o grande objetivo do homem, como a redenção às dores do mundo, não havia como ele aceitar. Pelo contrário, essa vida de asceta é-lhe insignificante, uma vez que a vida deve ser afirmada na íntegra, em especial através da sexualidade, "a mais antiga e primordial forma de embriaguez" (NIETZSCHE, 2006, p. 47), da dança e da própria musicalidade que emana da natureza. Em O Nascimento da Tragédia, "os conceitos mais abrangentes da análise nietzschiana da tragédia, o dionisíaco e o apolíneo, são pensados a partir dos conceitos schopenhauerianos de vontade e representação, transformados [...] em uno originário e aparência" (MACHADO, 2009, p. 216), mas a figura do deus Dioniso simboliza o afastamento ao mestre de Nietzsche, uma vez que a licenciosidade sexual e a selvageria existentes nas festas dionisíacas, presentes em quase toda parte do mundo antigo, estão muito longe do agrado do filósofo de Frankfurt. Este seria representante do niilismo passivo, de um pensador que refletiu e concluiu que o mundo não possui sentido e por isso o melhor a ser feito é não lutar por ele e nem pela própria existência.
Richard Wagner é a outra grande inspiração do jovem Nietzsche. Wagner serviu-se da mitologia para expressar a peculiaridade da identidade alemã, para além do cristianismo dos latinos e dos eslavos. Ele buscou arrebentar as fronteiras do meramente estético a fim de despertar nas pessoas a consciência mítica, um tipo de experiência que se abre a significados antes inimagináveis a uma consciência presa ao cotidiano e ordinário. Através do drama musical wagneriano essa mitologia insigne seria sentida, explica-nos Safranski (2010, p. 246): "Não só o sujeito que vivencia as experiências se transforma; também o objeto ganha profundidade e significado. Nós nos transformamos, o mundo se transforma, ele brilha. Num sentido figurado, os deuses realmente retornam." Além disso, na obra teórica Ópera e Drama havia críticas incisivas aos espetáculos pomposos e despolitizados, defendendo uma arte, como a de Beethoven, que fosse referência aos artistas e músicos do futuro e mais condizente com uma nação forte e espiritualizada. Posteriormente, Nietzsche critica o contato do músico com a filosofia de Schopenhauer, a partir dela "Wagner modificou rudemente seu juízo sobre o valor e o status da música mesma: que lhe importava que até então tivesse feito dela um meio, [...] para crescer necessitava absolutamente de um fim, um homem – isto é, um drama!" (NIETZSCHE, 2009, p. 85). O "renascimento da tragédia no espírito da música" é particularmente devedor do fascínio exercido pelo compositor sobre Nietzsche, o qual crê no papel distinto da arte e julga haver na obra wagneriana um retorno às origens helênicas. Havia em ambos uma tentativa megalomaníaca de transformar a arte e a sociedade modernas – ou, mais especificamente, de revigorar a cultura da época, fortalecer o povo alemão e intensificar a música e o teatro europeus. Todavia, esse resgate não passou de um sonho romântico.
Outro autor de influência patente é Schiller. Segundo o filólogo, o poeta alemão "ofereceu-nos alguma luz através de uma observação psicológica [...], ele confessou efetivamente ter tido ante si e em si, como condição preparatória do ato de poetar, não uma série de imagens, com ordenada causalidade dos pensamentos, mas antes um estado de ânimo musical" (NIETZSCHE, 2007, p. 40). Além dessa defesa da música, ambos aceitam a estética como tipo de cultura superior ao homem moderno, para além da selvageria dos apetites e da erudição verborrágica. Na proposta schilleriana, a educação estética seria o grande eixo capaz de trazer equilíbrio ao homem dominado tanto pelo sentimentalismo quanto pelo racionalismo – daí a obrigação moral de se educar por meio da arte. Esse meio-termo pode ser visto como a tentativa de sair do nível ordinário, que não reflete sobre a arte, bem como do nível abstrato, que praticamente só reflete sobre ela, deixando de se pôr no lugar do artista. A grande diferença entre os autores é que o dramaturgo vislumbra uma vitória moral pela via estética, pois somente nela a autêntica liberdade é exercida, enquanto que o filólogo não acredita em liberdade, o que inviabiliza um projeto ético sensato dentro do seu pensamento.
Apesar dessa conclusão, o filósofo de Röcken insiste em defender uma autolegislação do indivíduo como um modo de criar valores que escapem a uma existência alienada: "Com Nietzsche, depurando-se a modernidade de suas ilusões humanistas e racionalistas, surge a necessidade da autodeterminação: o humano que supera a moral é aquele que experiencia a autolegislação" (ALMEIDA, 2009, p. 29). Essas leis a serem criadas servirão à vida enquanto potência ascendente, o que chegou a ser feito na Antiguidade, pois "os gregos e depois os romanos formularam uma estética da existência, no sentido de uma arte de viver entendida como cuidado de si, de uma elaboração da própria vida como uma obra de arte, da injunção de um governo da própria vida que tinha por objetivo lhe dar a forma mais bela possível" (MACHADO, 2006, p. 180). O artista de sua própria existência é alguém interessado, alguém que vive sua vida como obra de arte, nessa linha: "A arte deve antes de tudo e em primeiro lugar embelezar a vida, portanto, fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros [...] Em seguida, a arte deve esconder ou reinterpretar tudo o que é feio, [...] fazer transparecer o significativo" (NIETZSCHE, 2008b, p. 83).
Nietzsche ansiava por um resgate de elementos e valores pagãos para dentro da sociedade europeia, assaz cristã, o que se pode perceber pela apropriação de ideias de dois autores alemães: Goethe e Schelling. Há, inclusive, menções ao poeta e dramaturgo de Frankfurt. O filólogo, após transcrever um trecho do poema Prometeu e elogiá-lo, diz que "seu pensamento básico constitui o próprio hino da impiedade, é o profundo pendor esquiliano para a justiça [...] que vê a Moira tronando, como eterna justiça, sobre deuses e homens" (NIETZSCHE, 2007, p. 63). E, ao extrair um trecho se sua correspondência com Schiller, as loas retornam: "Aquela descarga patológica, a katharsis de Aristóteles [...] lembra um notável pressentimento de Goethe: 'Sem um vivo interesse patológico', disse ele, 'jamais consegui tampouco tratar de uma situação trágica, preferindo por isso evitá-la a ir procurá-la'" (NIETZSCHE, 2007, p. 130). Também há uma influência das filosofias da arte e da mitologia de Schelling, seja pela primazia da arte sobre a ciência ao lidar com o mundo – a tragédia representaria o conflito de forças antagônicas e primordiais em direção à unidade – seja pelo panteísmo, cujas raízes remetem a Spinoza – o Uno-primordial seria o princípio metafísico do mundo e atuante, devendo a pessoa buscar nele a justificação para seus sofrimentos e prazeres –, ou ainda pelo simbolismo de Dioniso no mundo pagão.
O autor do Nascimento da Tragédia não assume na edição original da obra seu prestígio pelo Romantismo e o Idealismo alemão, com isso a "opção metodológica de não citar fontes e influências na sua 'obra de primícias' é questionável e ofusca a originalidade de suas teses, p. ex., a descoberta do dionisíaco" (ARALDI, 2009, p. 118). Inclusive a importância dos cultos dionisíacos já havia sido observada; senão vejamos: "Os românticos haviam pressentido, antes de Nietzsche, essa corrente escondida, dionisíaca do grego, e sentiam-se atraídos por ela. Novalis fala, de modo sutil, do 'espírito da melancolia de Baco'" (SAFRANSKI, 2010, p. 150) e "Na concepção dos românticos, de Friedrich Schlegel a Nietzsche, energias dionisíacas atuam na arte; elas não estão direcionadas para um além brilhante, e sim para o claro-escuro do processo vital, grandioso e dinâmico" (SAFRANSKI, 2010, p. 262). A própria ideia de renascimento da tragédia através da música foi um projeto semelhante ao aventado pelos românticos alemães – talvez a principal causa de também omitir isso tenha sido a tentativa do filólogo de provocar um impacto entre os leitores logo em sua estreia, tentando parecer um mistagogo que adentrou nos mistérios do mundo e agora se acha pronto para transmitir sua sabedoria esotérica aos iniciados dispostos a segui-lo. Sem dúvida, o Romantismo enquanto movimento havia terminado décadas atrás, conforme exposto no capítulo anterior, e as suas ideias já figuravam no senso comum; Nietzsche se limita, então, a retransmitir sobre o grupo clichês do seu tempo. Apesar dessa superficialidade, seu combate ao positivismo e ao otimismo pelas recentes descobertas das ciências é uma atitude inegavelmente romântica.
Tomado pelo ímpeto juvenil, "mais intensamente do que ele mais tarde poderá tolerar, Nietzsche, em sua crítica ao sentido prosaico de seu tempo, adentra águas românticas. Já como estudante ele havia comprado briga com seu professor ao defender seu poeta predileto, Hölderlin" (SAFRANSKI, 2010, p. 254). Era preciso sonhar, era preciso lutar pela grandeza de uma cultura ou de uma nação, era preciso inventar sentidos elevados para se viver – algumas ideias do jovem Nietzsche, sem dúvida, devidas ao ideário dos românticos e dos idealistas. A vinculação à tradição metafísica alemã é comentada por Vieira (2009, p. 75):

"Sob a vasta rubrica do 'romantismo', a interpretação metafísica tornou-se uma das vertentes teóricas mais comumente associadas ao pensamento estético alemão do século XIX. Em diversos autores deste período, supõe-se que a arte de modo geral, e a tragédia em particular, sejam compreendidas como documentos ontológicos capazes de revelar a verdade sobre o mundo ou a essência das coisas."

O papel do gênio na arte e o apelo ao inconsciente (ou o correlato romântico a esse conceito de E. von Hartmann imortalizado por Freud), ao aspecto oculto que pulsa em cada pessoa, são outras posturas românticas, defensoras de um tipo de conhecimento para além do controle consciente das coisas. Em 1886, é elaborada a Tentativa de autocrítica, na qual o filósofo lamenta ter sido um romântico, mas em carta de 1888 seu lamento é em sentido oposto: "Eu temo que eu seja músico em demasia, para não ser romântico. Para mim, sem música a vida seria um erro" (NIETZSCHE, 2010, pp. 293-4).
No parágrafo em que Nietzsche exorta a seus leitores para que sejam homens trágicos armados contra uma cultura formada por intelectuais que chegaram à renúncia dos ideias helênicos ao invés de defendê-los – como o filólogo o fez entre seus pares –, nessa parte do texto o crédito ao Classicismo de Weimar é explícito:

"Conviria que alguma vez se pesasse [...] em que tempo e em que homens o espírito alemão se esforçou mais vigorosamente por aprender dos gregos; e se admitirmos com confiança que esse louvor único deveria ser atribuído à nobilíssima luta de Goethe, Schiller e Winckelmann pela cultura, haveria em todo caso que acrescentar que, desde aquele tempo e depois das influências imediatas daquela luta, tornou-se cada vez mais fraca, de maneira incompreensível, a aspiração de chegar por uma mesma via à cultura e aos gregos [grifos nossos]." (NIETZSCHE, 2007, p. 118)

Pois "O povo dos Mistérios trágicos é o que trava as batalhas contra os persas e [...] tem a tragédia como necessária beberagem curativa" (NIETZSCHE, 2007, p. 121). A Grécia clássica deveria voltar a ser o modelo ético e estético aos alemães; a nobreza e a energia contidas naquela cultura iriam revigorar a modernidade adoecida, conforme antigo projeto de Winckelmann. Prosseguindo na argumentação, ele condena, de forma mordaz, a cultura alemã de seu tempo pela perda do ideal grego: "Entendemos por que uma cultura tão raquítica odeia a verdadeira arte; pois teme que se dê através dela o seu ocaso" (NIETZSCHE, 2007, p. 119). Nessa segunda parte do texto, "embora não haja referências explícitas ao Romantismo alemão [...], pode-se perceber a influência de autores como F. Schlegel, F. Creuzer, F. Hölderlin, Jean Paul, e de outras obras e comentários lidos por ele [...]" (ARALDI, 2009, p. 126).
Os pensamentos burgueses, ascéticos e industriais em voga desagradaram Nietzsche fortemente, taxando seus representantes de filisteus da cultura, como havia escrito o poeta Heine décadas antes. Urgia uma alternativa a esse cenário de uniformidade e conformidade; os românticos chegaram a fornecer uma resposta ao mal-estar de se viver numa cultura superficial: a arte como um estilo de vida mais pleno de sentido do que o mecânico, acelerado e alienado do trabalho e do mundo moderno. Foram incluídos por Nietzsche como seus inimigos: a resignação religiosa e o cientificismo – este era, segundo ele, uma forma moderna de asceticismo. Esse aspecto romântico permeou o livro début, em especial na esperança do renascimento da tragédia na modernidade. Além disso, é apontado claramente o aprofundamento da separação entre homem e natureza pela razão dialética, a qual divide as coisas em categorias como se pudesse suspender o lado natural do homem enquanto certos problemas são resolvidos. A superação dessa cisão com vistas à unidade é outro anseio evidentemente romântico e que fica nítida nesta passagem:

"[...] o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza. O consolo metafísico [...] de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria [...]" (NIETZSCHE, 2007, p. 52).

Ao falar sobre os estudos em mitologia oriental de Joseph Görres, que influenciaram Wagner e Nietzsche, Safranski (2010, p. 149) indica a ideia central desse resgate da unidade para o homem civilizado: "O homem primitivo ainda está sob a força da terra, mas quando vai para o espaço aberto e acorda para a consciência, torna-se um ser que cria a caverna artificial da cultura: uma caverna cheia de rastros da memória sobre a sua unidade com o céu e a terra".
Após tratarmos das grandes influências do jovem Nietzsche, em especial dos românticos e demais autores que orbitaram em torno do Romantismo, explicaremos a seguir o cerne de O Nascimento da Tragédia, dando enfoque à metafísica contida nesse livro.

Metafísica de Artistas

"Aqui nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou mau." (NIETZSCHE, 2007, p. 33)

Como é concebida a arte por Nietzsche? A arte é a máscara da vida. Só que ela está para além da mímesis (artesanato ou téchnè), que foi o conceito aristotélico vigente durante a maior parte do tempo. A imitação da natureza ou de normas técnicas é algo limitador ao homem; a arte deveria ser algo diverso e mais significativo: uma "experiência estética" e uma "espiritualização dos instintos". A grande proposta está no sentido de que "a arte deixou de ser esfera autônoma para julgar obras e artistas, e se converteu em expressão da capacidade de criar. Criar não novas obras, mas sim novas possibilidades de vida. Nietzsche eleva a capacidade do artista ao status equiparado ao de um deus [...]" (MARTINS, 2010, p. 599). Através dela seria possível superar o niilismo e inverter a sabedoria de Sileno, que consiste em: viver é ruim, pois sofrimento sem cessar, o melhor seria não ter nascido e, depois disso, logo morrer. Através dela seriam resgatados critérios para se combater a indolência moderna e o relativismo cultural.
Tendo em vista que o relativismo é uma forma de niilismo, e que este é o oposto de vínculo, temos que ambos induzem à indiferença, ao tédio, ao cansaço – posturas nocivas à vivência. Vínculos são criados com o intuito de combatê-los, sendo que a experiência estética é capaz de vincular o indivíduo ao mundo, uma vez que foi ele mesmo quem criou os valores e as leis da sua vida. Conforme Dias (2011, p. 60): "[...] o valor que damos às coisas sempre se relaciona, de algum modo, com as condições de existência. O mundo criado por nós é resultado de um processo orgânico que se manifesta como criador de produtos, como criador de valores". Não há desculpas, não há arrependimentos, essa pessoa é responsável pelo estado em que se encontra, afinal sua vontade criou seu próprio sol. Liberta de guias morais externos, ela não sente culpa, o único sentimento ruim é pelo sofrimento das más escolhas ou dos acasos da vida, que podem vir a ser transformados em aprendizado ou obra de arte.
Onde encontrar critérios contra o relativismo, contra o "tudo vale igual, logo tudo é em vão"? Nietzsche propõe que o pensamento mítico fornece referências que hierarquizam a vida. Coadunado com Schelling, ele pensa que o mito é uma forma de conhecimento distinta do objetivo e que é mais comprometido com a vida que a ciência. Para o homem moderno, que conhece o mundo "através de abstrações mediadoras" com seu "vaguear desregrado, não refreado por nenhum mito nativo", um homem não-teórico seria alguém inacreditável e hostil à sua cultura. Eis a sua polêmica apologia do mito:

"Sem o mito, porém, toda cultura perde sua força natural sadia e criadora: só um horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo um movimento cultural. Todas as forças da fantasia e do sonho apolíneo são salvas de seu vaguear ao léu somente pelo mito. [...] nem sequer o Estado conhece uma lei não escrita mais poderosa do que o fundamento mítico [...]." (NIETZSCHE, 2007, p. 133)

Seria o autor dessas frases um obscurantista? Ou seria ele um reacionário romântico pregando o retorno dos homens a um paganismo extinto? Na realidade, o que havia por trás da defesa do pensamento mítico e da crítica ao pensamento abstrato e teórico da ciência era uma tentativa de mudar a sociedade moderna, para que ao menos fosse questionada a adoção de critérios universais e impessoais. Percebemos, aqui, a ameaça do niilismo. Quem é o niilista típico? É aquele que tem uma vontade profunda de destruição, e por conta disso deixa-se seduzir por idolatrias – ele "precisa de um objetivo – e preferirá ainda querer o nada a nada querer" (NIETZSCHE, 2009, p. 80) –, uma vez que as pequenas autoridades fornecem um mínimo de poder e valores que o indivíduo desgarrado aceita se submeter. Compreende-se que a sedução por narrativas será ubíqua, resta saber qual é a narrativa preferível. É quando Nietzsche aventa a ideia da tragédia helênica, e dos mitos e valores a ela relacionados, como arte superior.
A tese central do livro début é: "[...] nossa suprema dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte, pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente" (NIETZSCHE, 2007, p. 44). Acompanha a tese a proposta da metafísica de artistas: a arte como representante da avaliação crítica do saber, capaz também de valorar e transvalorar, ou seja, de criar valores; ela é capaz de substituir a metafísica tradicional (religião e filosofia) naquilo que ela sempre realizou (dar consolo e esperanças ao homem em busca de uma perfeição arbitrária) e ainda proteger e dignificar o homem. Mais tarde, o filólogo modificará a tese retirando seu misticismo e excesso metafísico: "Enquanto fenômeno estético, a existência conserva-nos suportável e a arte dá-nos os olhos, as mãos, sobretudo a boa consciência que é necessária para poder fazer dela este fenômeno por meio dos nossos naturais recursos" (NIETZSCHE, 2005b, p. 100). O que se mantém é a ideia da vida do homem ganhar potencialidades quando ele "ultrapassa os limites de sua animalidade, alcançando uma singularidade para além das determinações do biológico, desponta a experiência do tempo e com ele a vivência de instantes para os quais se necessita inventar sentido." (ALMEIDA, 2009, p. 75). Para tanto, é indispensável combater a ideia de felicidade universal via pensamento lógico-instrumental (socrático e técnico), deveras estéril e tacanho, pois ela forma um homem fraco, covarde e sem imaginação; essa ideia defende o desinteresse e promete dignificar o homem, mas ignora as necessidades de uma vida forte e expansiva.
Em outras palavras, o mundo não possui um significado intrínseco, independente das intenções humanas; o mundo se justifica apenas enquanto fenômeno estético. Posto isso, o pathos da existência torna-se ethos da arte, ou seja, a arte recebe dignidade metafísica, ao contrário da noção filisteia de arte como passatempo. A metafísica torna-se fenômeno estético, uma área a serviço dos desejos humanos, ao contrário da metafísica platônica,voltada ao bom e ao verdadeiro. Nietzsche interpreta a tragédia em torno da "metafísica de artistas" e da música, assim "o mito trágico deve convencer o espectador que mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que a vontade joga consigo própria, fenômeno primordial que só pode ser captado pela dissonância musical [...]. O que torna o 'ouvinte estético' da tragédia, na verdade, um ouvinte metafísico" (MACHADO, 2009, p. 240).
Vimos que a sabedoria de Sileno deve ser invertida. Para tanto, é mister uma potência afirmativa que faça ver a vida como algo bom, apesar do sofrimento inerente a ela. É importante notar que não se deve ignorar a dor, mas transfigurá-la em alegria e força, o que é possível com a marca de sacralidade da tragédia e com o encantamento do mundo produzido pela arte autêntica, que supostamente o indivíduo deverá encontrar. Segundo Nietzsche, os deuses olímpicos, ou a "vontade helênica", são capazes de legitimar a existência para os humanos, pois eles próprios a vivem, assim ela "é sentida como algo em si digno de ser desejado e a verdadeira dor dos homens homéricos está em separar-se dessa existência [...] de modo que agora, invertendo-se a sabedoria de Sileno, poder-se-ia dizer: 'A pior coisa de todas é para eles morrer logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia'" (NIETZSCHE, 2007, p. 34).
Vimos, também, que a tragédia grega é privilegiada por Nietzsche. Esse gênero artístico representaria a luta entre o coro musical (Vontade) e a retórica coerente (Razão), ela seria a Gesamtkunstwerk, unindo música, poesia e drama. Através dessa arte seria realizado aquilo que na filosofia jamais se conseguiu: dar sentido ao mundo sem desfazer seu caos, sua multiplicidade e sua indiferença. A originalidade de Nietzsche foi, "inspirado na concepção schopenhaueriana da música e na ideia wagneriana de drama musical, valorizar a música para pensar a tragédia grega como uma arte fundamentalmente musical [...]" (MACHADO, 2005, p. 180). A arte para além da mímesis valoriza as aparências oníricas e o artista se regozija com isso – notemos que essa alegria unida à dor é paradoxal, mas não ilusória. Sendo assim, "devemos compreender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo" (NIETZSCHE, 2007, p. 57).
Destruir e criar podem ser processos igualmente estimados, dependendo da perspectiva, e tal intuição "Apenas o homem estético [...], que descobriu com o artista e com o surgimento da obra de arte como o conflito da multiplicidade, pode trazer, em si, lei e direito, como o artista, contemplativamente, põe-se a operar sobre a obra de arte, como necessidade e jogo, conflito e harmonia [...]" (NIETZSCHE, 2008a, p. 67). Como em um combate ou disputa (âgon), a vitória só dura até o reinício da partida, portanto não é capaz de fundar uma moral; quem quiser continuar vencendo, deverá perseverar e se reinventar. O livre jogo de forças tem como meta a sua própria perpetuação. Nietzsche elabora sua visão "partindo do pressuposto de que esse jogo se estabelece sobre a tragicidade inevitável da existência humana, baseada na injustiça primordial, de regras ilógicas e caóticas, que sempre se reconfiguram" (TOLENTINO, 2007, pp. 22-3). A visão trágica do mundo consiste, portanto, em aprender a conviver com o inerente aspecto trágico da vida (finitude, sofrimento e vir a ser das coisas).
Como contraponto a essa arte temos a arte socrática, que elimina o mito e que honra o herói dialético, tentando garantir a razão como fonte exclusiva de esclarecimento do mundo. Os afetos, as paixões e os mistérios são dispensáveis ali. As prescrições de Sócrates foram adotadas por inúmeros seguidores e moldou cultura do Ocidente, conforme análise abaixo:

"Todo o nosso mundo moderno está preso na cultura alexandrina e reconhece como ideal o homem teórico, equipado com as mais altas forças científicas, que trabalha a serviço da ciência, cujo protótipo e tronco ancestral é Sócrates. Todos os nossos meios educativos têm originalmente esse ideal em vista: qualquer outra existência precisa lutar penosamente para pôr-se a sua altura [...]." (NIETZSCHE, 2007, p. 106)

Nessa linha, a vontade de verdade é a força predominante e norteadora do mundo moderno. Como Eurípedes, que em suas tragédias serviu-se do deus ex machina, que surgia de tempos em tempos em cena para falar e explicar os motivos da trama, e acabou por expulsar o coro musical do teatro – coro que antes cantava e exprimia em linguagem mística as intenções do autor tomado pelo pensamento mítico. Nascia o otimismo socrático (supremacia do princípio apolíneo), cujo grande objetivo era amenizar o sofrimento até que as dores fossem eliminadas, por serem consideradas nocivas à existência. Fica nítida, pois, a oposição entre essa visão (como a do sacerdote cristão ou ao do monge budista) e a do pessimismo grego característico, que tinha na dor algo tão fundamental como o prazer.
Segundo o filólogo, o povo grego era forte por natureza, seus deuses e heróis mostravam aos homens o modelo de caráter e os lembravam de sua condição mortal e passageira. No entanto, era preciso encontrar obstáculos para esse povo provar sua força; a tragédia servia inclusive para este intento: testar a fortaleza do espírito grego. Após a remoção desses obstáculos, os gregos entraram em declínio, o que durou até a sua conquista definitiva pelo Império Romano. Era o fim da visão trágica do mundo e o início da visão positiva, com sua crença no progresso. Esta é a grande crítica do livro début: uma visão de mundo foi substituída por outra, que se arrogava superior, mas que serviu mais para acelerar o ocaso do povo grego que para desenvolvê-lo.
Consideremos agora os impulsos antagônicos que formam a tragédia: o apolíneo e o dionisíaco. A arte apolínea é a epopeia, seu objetivo é a glória (kleos), conforme explicação de Araldi (2008, p. 44): "Os mitos do mundo homérico e sua criação onírica dos deuses olímpicos são a materialização do impulso apolíneo à beleza. É Apolo quem conduz Homero, o artista ingênuo, para a glorificação do prazer da aparência"; o sonho (a "aparência da aparência") é o belo espetáculo desse deus. Seu mundo de imagens oníricas traz alegria de viver, mas não é suficiente à experiência estética, pois se restringe à superfície. E quando essa experiência se completa? Quando, após mergulhar nos horrores da essência do mundo, o indivíduo busca nas belas formas uma redenção que impeça seu aniquilamento. No jogo entre os dois impulsos fundamentais do Cosmos está o segredo: Apolo (o principium individuationis) troca de lugar com Dioniso (impulso informe e vontade primordial). A fim de se manter a sanidade mental e a integridade física essa troca deve ser sucessiva.
O impulso dionisíaco simboliza o êxtase, a desmedida (hybris), o anseio de querer sempre mais, enquanto que o apolíneo simboliza a justa proporção, a bela forma e a própria representação. Rituais apolíneos serviam-se da música, mas a ideia por trás do mito de Apolo é a clareza, sendo que a lira, um símbolo de harmonia e moderação, era o instrumento musical usado nesses ritos. Os rituais dionisíacos, ao contrário, envolvem a música do coro e o movimento do corpo (a dança, em especial), expressam a linguagem da vontade e celebram a vida em intensidade, ignorando belezas, simetrias e coesões. O espírito grego captou o lado sombrio do Cosmos, o infinito que rompe com a individualidade, mas ele pôde dominar esse aspecto terrível graças a sua "serenojovialidade", e salvando-se através da arte.
Lembremos que nesse conflito agônico não haverá vencedor definitivo, o que é eterno é precisamente o embate entre as divindades, ou melhor, temos na "aliança fraterna de Apolo e Dioniso, o cimo dos propósitos artísticos, quer apolíneos, quer dionisíacos" (NIETZSCHE, 2007, p. 137). Todo artista destrói para poder criar. Vemos, portanto, que Nietzsche toma partido pelo obscuro Heráclito, na polêmica contra o rígido e implacável Parmênides: o princípio do devir versus o da permanência. Afirmar o devir "é dizer que tudo está sujeito às leis da destruição e que algo permanece apesar da destruição. Permanece o insistente ato criador. Uma ação criadora contínua imprime ao devir o caráter de ser" (DIAS, 2011, p. 72). Não há síntese, há um jogo de sombras sem significado intrínseco, mas inventado por quem observa o fluxo das coisas e se projeta para afirmar sua própria potência. E esta é

"[...] uma metafísica para a qual a ideia de conflito assume papel central. Para esta perspectiva teórica, a ética não é um experimento de aperfeiçoamento moral que visa à perfeição conforme a natureza racional, tampouco um processo de esclarecimento ao longo do qual a razão oportuniza o controle absoluto das paixões e a extirpação do ódio e da agressividade – e, portanto, do mal. A ética não é o gozo da liberdade, da autodeterminação e da autonomia subjetiva. Tal metafísica não acredita na naturalização das virtudes e nos esforços de alcance de critérios universais para fundamentar o agir moral. [...] surge a desconfiança de que não há propósitos e finalidades universais, legítimos desdobramentos de uma pretensa natureza humana." (ALMEIDA, 2009, p. 25)

Outra ideia que tem papel central na metafísica de artista é a do Uno-primordial [das Ur-Eine]. No livro ele é identificado com o Ser, o fundamento do mundo, "o âmago eterno das coisas", algo tão inacessível como a coisa em si, o númenon ou a Vontade, só que ainda mais obscuro, pois é preciso recorrer a mistérios para ele fazer algum sentido. Esse princípio é o "eterno-padecente e pleno de contradição" e precisa, "para a sua constante redenção, também da visão extasiante, da aparência prazerosa – aparência esta que nós [...] somos obrigados a sentir como o verdadeiramente não existente" (NIETZSCHE, 2007, p. 36). Próximo a isso, o dionisíaco é prazer primordial que engendra e destrói aparências, que rompe com a individuação e é a causa da redenção do artista. A Vontade é o sujeito e objeto no processo de vir a ser do mundo, sendo os gregos apenas um meio para, artisticamente, ela se realizar e se libertar de suas contradições, uma vez que apenas no mundo fenomênico o prazer é possível. Ou seja, o Ser se redime nas aparências, enquanto o homem só se redime ao entrar em contato com esse princípio, retornar de lá e, des-individuado, manter sua integridade.
Há no livro uma extrapolação dos limites da tragédia enquanto gênero dramático e palco de encenações artísticas, em direção à inserção no dionisismo, cujo "coro ditirâmbico é um coro de transformados, para quem o passado civil, a posição social são inteiramente esquecidos; tornaram-se os servidores intemporais de seu deus, vivendo fora do tempo e fora de todas as esferas sociais" (NIETZSCHE, 2007, p. 57); o homem, ou epopta, desprendido de si "deseja exprimir-se simbolicamente naquelas forças: o servidor ditirâmbico de Dioniso só é portanto entendido por seus iguais!" (NIETZSCHE, 2007, p. 32). Dito de outro modo, o "consolo metafísico da tragédia não está num plano puramente estético e imanente, visto que está entranhado no âmbito religioso, do culto e da iniciação aos 'mistérios dionisíacos'" (ARALDI, 2008, p. 40). Nesse culto a Dioniso, só o artista livre de vontades individuais poderá agir como médium entre a Vontade e os homens, uma vez que o sujeito egoísta é adversário da arte. Na verdade,

"[...] todo o nosso saber artístico é no fundo inteiramente ilusório, porque nós, como sabedores, não formamos uma só e idêntica coisa com aquele ser que [...] prepara para si mesmo um eterno desfrute. Somente na medida em que o gênio, no ato da procriação artística, se funde com o artista primordial do mundo, é que ele sabe algo a respeito da perene essência da arte; [...] agora ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto, ao mesmo tempo poeta, ator e espectador." (NIETZSCHE, 2007, p. 44)

A partir dessa consideração pessimista do mundo, a individuação é vista como a origem do mal, do sofrer, mas a arte, "qual feiticeira da salvação e da cura" surge como "a esperança jubilosa de que possa ser rompido o feitiço da individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida" (NIETZSCHE, 2007, p. 67). O pensamento trágico seria uma forma rebuscada da verdade dionisíaca – verdade privilegiada pelo coro satírico dos ditirambos –, acessada apenas por aqueles que sofreram o aniquilamento da própria identidade, resgataram-na através da arte apolínea da bela aparência e tornaram a mergulhar no cerne da horrenda verdade, retornando assim à natureza primordial, como se o sentido da vida fosse restabelecer uma unidade perdida, superando assim o absurdo do ser. O processo é resumido assim por Dias (2011, p. 96): "A arte trágica demonstra, assim, uma notável capacidade alquímica de transmudar o estado de náusea [...] em afirmação, de modo que esse horror possa ser experimentado não como um horror, mas como algo sublime, e esse absurdo possa ser vivenciado [...] como cômico".
A arte é o caminho desse triunfo do prazer da aparência e da ilusão sobre a verdade dionisíaca, terrível ao indivíduo. Apesar dessa metafísica de artistas ser uma invenção humana, ela não nega o caráter fundamental da vida e do mundo: a básica falta de sentido neles. O que a visão trágica do mundo faz é chamar o homem para tomar ciência da sua condição efêmera de mero mortal, ratificando estes versos de Heinrich Heine, um dos poetas favoritos de Nietzsche: "Den Himmel überlassen wir/ Den Engeln und den Spatzen" [Deixaremos o céu/ Para anjos e pardais]. Essa visão também alerta para o conflito perpétuo entre forças, repelindo posturas complacentes, pois um indivíduo sofre e luta contra o curso das coisas. Não poder se contentar com a bela aparência (impulso apolíneo) nem se redimir em dores e prazeres primordiais (impulso dionisíaco) é o que caracteriza o conflito (trágico) no qual se deve viver. É a partir disso que o homem pode criar propósitos e valores que afirmem sua existência, ao contrário da mensagem tradicional de entregar seu destino nas mãos de Deus – crença de que apenas Deus sabe o que é melhor para a vida de cada um, por ser o monopólio da justiça e da verdade. Salta aos olhos o comprometimento metafísico de Nietzsche para sua tese e propostas fazerem sentido, resta investigar até que ponto foi esse compromisso e se houve sucesso em impedir contradições ao longo da sua argumentação.
Veremos na sequência a estética de Nietzsche denominada "fisiologia da arte", que é desenvolvida em seus últimos escritos. Sua intenção, com ela, era eliminar todo traço romântico, e principalmente metafísico, do seu pensamento, focando na "sabedoria do corpo".

Fisiologia da Arte

"Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida." (NIETZSCHE, 2005a, p. 11)

A "fisiologia da arte" privilegia as impressões do apaixonado – ou do afetado, no sentido de quem assume seu pathos – em detrimento às reflexões do complacente (o des-afetado), que quer estender seu ideal para todas as pessoas, como se elas devessem concordar com seu juízo "desinteressado". Mas ao invés de sair em defesa da anarquia dos afetos, Nietzsche defende o autocontrole e a disciplina do corpo. Conforme ilustrado a seguir:

"Pois não haja engano acerca do método: uma mera disciplina de sentimentos e pensamentos não é quase nada [...]: deve-se primeiro convencer o corpo. A estrita manutenção de gestos significativos e seletos, a obrigatoriedade de viver somente com pessoas que 'não se deixam ir' bastam perfeitamente para alguém se tornar significativo e seleto [...]. É decisivo, para a sina de um povo e da humanidade, que se comece a cultura pelo lugar certo – não na 'alma' [...]: o lugar certo é o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia [...] o cristianismo, que desprezava o corpo, tem sido até agora a maior desgraça da humanidade." (NIETZSCHE, 2006, p. 69)

E por que a disciplina do corpo é uma necessidade? Porque ela acaba por dar estilo ao caráter, em um plano artístico que tem por intenção valorizar a beleza e agradar o próprio indivíduo:

"'Dar estilo' ao seu caráter é uma arte realmente considerável que raramente se encontra! Para exercê-la é necessário que o nosso olhar possa abranger tudo o que há de forças e de fraquezas na nossa natureza, e que as adaptemos em seguida a um plano concebido com gosto, até que cada uma apareça na sua razão e na sua beleza e que as próprias fraquezas seduzam os olhos. [...] Foi a unidade, a pressão de um mesmo gosto que dominou e afeiçoou no grande e no pequeno: [...] que esse gosto seja bom ou mau importa menos do que se pensa, basta que tenha existido um." (NIETZSCHE, 2005b, p. 154)

Para falar sobre a fisiologia da arte, entendemos ser forçoso comparar alguns pontos do pensamento de Nietzsche com o de Kant e indicar o fundo da divergência entre os dois filósofos, demonstrando que para o primeiro a arte tem como função afirmar a vida, enquanto que para o segundo ela rebaixará a vida, pois a serviço de uma moral decadente. Em Kant, apesar de todos os esforços deste pensador, a sensibilidade é algo passivo e patológico que a lei moral deve domar, pois esta sim exige a atividade do sujeito (consciência). Para esse filósofo, belo é o que agrada desinteressadamente, e assim "Kant imaginava prestar honras à arte, ao dar preferência e proeminência, entre os predicados do belo, àqueles que constituem a honra do conhecimento: impessoalidade e universalidade" (NIETZSCHE, 2009, 85). Agora, "Compare-se esta definição com uma outra, de um verdadeiro 'espectador' e artista – Stendhal, que em um momento chama o belo de 'une promesse de bonheur'. [...] Quem tem razão, Kant ou Stendhal?" (NIETZSCHE, 2009, p. 86). Nietzsche toma partido pelo antropomorfismo do escritor francês: "Para ele o que ocorre parece ser precisamente a excitação da vontade ('do interesse') através do belo" (NIETZSCHE, 2009, p. 87). O agrado juvenil com a estética kantiana se transforma em asco, pois chega-se à conclusão de que complacência sugere negação da vida. Na "Tentativa de autocrítica" (NIETZSCHE, 2007, p. 13), Nietzsche aplica sua proposta de "ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida" e incita a repudiar a visão estética kantiana. Então a consciência deixa de ser o guia moral do homem e passa o corpo a ser o guia existencial.
O primado da razão prática com seu imperativo categórico, que o juízo estético auxilia, é substituído pelo primado da posição estética (vida como obra de arte), assim como o primado das representações é substituído pelo dos afetos. Senão vejamos: "se a ética de Kant é compatível com uma noção liberal de dignidade, a ética de Nietzsche aparece [...] como elitista, uma defesa intransigente da individualidade e da singularidade, incapaz de fundar um pacto político com pretensões de validade universal", sendo assim, "a genealogia nietzschiana da moral tem se demonstrado compatível com as propostas éticas não normativas, nas quais ethos é entendido como forma de vida, como estilística da existência [...]" (GIACÓIA, 2012, p. 27). Exigir que se faça da vida uma obra de arte pode até ser um critério para uma vida "melhor" que a ordinária, contudo, a força desse critério será muito menor que a da moral tradicional, fundamentada num além-mundo.
Posto que não há fatos últimos da realidade, que verdade é interpretação de um sujeito histórico e que esse processo de desvelamento da verdade se baseia em pulsões, deparamo-nos com a implicação dos afetos valerem mais que as representações da razão. Um juízo de gosto pode e deve ser instintivo, pois promove a afirmação da vida; um juízo intelectual que se opõe ao instintivo, por mais que possua coerência interna, é decadente, pois negará a vida. Os instintos fundamentais do homem, segundo Nietzsche, são capazes de "filosofar", já que "cada um deles bem gostaria de se apresentar como finalidade última da existência e como legítimo senhor dos outros impulsos. Pois todo impulso ambiciona dominar e portanto procura filosofar" (NIETZSCHE, 2005a, p. 13). Enfim, nada é mais condicionado do que o sentimento do belo, e como sentimentos intensos significam afirmação da vida, temos que a beleza é a afirmação da vida por excelência. O aforismo intitulado "A beleza não é acaso" retrata essa posição em prol dos impulsos em longo processo de formação e direcionamento: "[...] as coisas boas são sobremaneira custosas: e sempre vale a lei de que quem as possui é diferente de quem as conquista. Tudo que é bom é herdado; o que não é herança é imperfeito, é começo..." (NIETZSCHE, 2006, p. 69).
A razão legisladora em Kant é o que permite ao sujeito exercer a liberdade, mas a crítica de Nietzsche advém justamente no sentido de ela aniquilar as demais vontades que concorrem dentro de um indivíduo; sendo assim, permitir que a razão domine é se deixar reduzir, principalmente quando ela exige que inclinações ou afetos do sujeito não se manifestem. A grande repulsa é pela moral kantiana que postula o sujeito como um ente moral possuidor de faculdades que lhe conferem um poder de resistir e combater as ameaças do mundo fenomenal. Essa moral, assim como a socrática, buscam eliminar a trágica e conflituosa condição humana. Em Nietzsche, o imperativo categórico é rechaçado para dar lugar a vontades aptas a expandir o indivíduo. "Puro sujeito", "vontade pura" ou "lei moral" são tolices, pois o sujeito, na realidade, é um amontoado de forças em conflito e a consciência é a emergência de uma vontade qualquer – grosso modo, essa é a doutrina da "vontade de potência". Em cada ação há sempre intenções que não podem ser descobertas completamente, portanto uma afirmação no sentido de sujeito desinteressado ou no sentido de se estar plenamente consciente é absurda. O perspectivismo não deixa de ser um delírio, uma afirmação arbitrária do indivíduo que vai contra a lucidez extrema que reduz a importância de um caso para o todo. Só que esse perspectivismo ganha solidez quando se alia à doutrina da vontade de potência: assumir posições é selecionar, admitindo-se a limitação e a finitude dos homens, e é exercer a injustiça, preferindo o que eleva e desprezando o que rebaixa.
Em Nietzsche, a antinomia do gosto solucionada por Kant é anulada; a questão retorna após se duvidar do valor de um juízo de gosto desinteressado à vida do sujeito, que de um lado (o kantiano) é tido como racional e do outro (o nietzschiano) é tido como desejante, e então é feita outra proposta. Sugerem-se outros tipos de juízos, aquém dos científicos e racionais: "Os juízos da beleza e da feiura são míopes – eles têm sempre o entendimento contra si –: mas são persuasivos no mais alto grau; eles apelam aos nossos impulsos lá onde se decide mais depressa, e se diz o sim e o não, antes que as palavras venham à mente" (NIETZSCHE, 1970, p. 221). E se "os instintos são juízos porque criam valores, modificam outros valores, funcionam como avaliações ou depreciações [...]. Assim, o gosto 'no seu nível mais baixo' não é senão um conjunto de juízos instintivos que discriminam e avaliam segundo o valor 'belo' [...] e o valor 'feio' [...]" (CONSTÂNCIO, 2013, p. 484), temos com isso um antípoda dos juízos kantianos. Posto isso, somos levados a concluir que tudo o que retira as forças do homem e leva a sua decomposição é feio, enquanto que o belo é seu oposto, aquilo que leva à plenitude, à saúde e ao aumento de forças vitais. A arte convém, por conseguinte, por sua capacidade de reavaliar e ampliar o conceito de belo – aquilo que é útil e benéfico à vida –, ela no fim elevará o indivíduo que se fez obra de arte.
Salta aos olhos a crítica e a aversão às "ideias modernas": em prol cada vez mais da vida gregária, do animal de rebanho, do sujeito massificado inserto no grupo, o homem se submete a uma moral que lhe apequena. A premissa "nós somos todos iguais" da sociedade democrática é repelida, pois se a minha perspectiva fosse imparcial ela não teria privilégio sobre as demais, mesmo quando a questão envolve a minha vida e os meus anseios. Essa crítica pode ser resumida assim: a moral da sociedade moderna busca nivelar as pessoas, formando um rebanho indolente de imensas proporções, como se houvesse somente um objetivo a perseguir e como se a vida medíocre fosse a única boa. Sai o niilismo cristão, entra o niilismo moderno e o fim não muda: restringir as possibilidades da existência, em especial a forte e autêntica. Como a experiência estética é a única capaz de enfrentar o niilismo, é imprescindível que o indivíduo busque o conflito e seja um artista, um criador, um agente desencantado para além do bem do mal, ou seja, negador de toda e qualquer transcendência. O "mundo do vir a ser" como o único que existe, agora está aberto a inúmeras interpretações, daí o chamado à invenção de sentido por uma narrativa 'essencialmente' ficcional.
O mundo das aparências é o do vir a ser, e sua pertinência se faz no sentido do indivíduo ter tanto uma experiência estética quanto uma experiência de aceitação dos acasos da vida (dores e alegrias). Sem o mundo das ideias (o verdadeiro, bom e belo) devem ruir as eternas perfeições nele contidas; essa grande censura dirigida a Platão reverbera em toda metafísica condicionada ao suprassensível. O mundo do vir a ser se torna fonte de experimentação e de criação incessante de valores, e que assim "Façamos sempre brilhar de forma grandiosa o nosso exemplo. Obscureçamos o nosso vizinho com o fulgor da nossa luz" (NIETZSCHE, 2005b, p. 171). Este mundo se torna cenário para relações de forças que escapam à pretensiosa e decadente vontade de verdade, ou simplesmente ele se torna algo para ser afirmado em proveito da vida.
Falemos, agora, sobre a obra Assim Falou Zaratustra. Podemos vê-la como o canto trágico (linguagem figurada) que a "alma mística" no livro de estreia não se atreveu a cantar, uma vez que Nietzsche ainda estava vinculado às linguagens conceituais e sistemáticas da Academia. Esse livro narra em estilo aforismático o aprendizado trágico de um herói que começa numa postura apolínea, mas que, após enfrentar o perigo do pessimismo/niilismo e tomar ciência de seu sinistro destino (a dissolução), termina em postura dionisíaca, ou seja, afirmando a vida para além de sua individualidade, exatamente como fizeram os gregos, ao inventar o gênero da tragédia. Zaratustra ensina a ganhar mesmo quando se perde e anuncia o além-do-homem [Übermensch], aquele que não sente qualquer culpa, pois diz sim e amém para tudo o que vive. Ele tem a inocência preservada, por isso é capaz de jogar como a figura Aion, do gnosticismo: amontoa a areia da praia e, após um instante de contemplação, destrói o castelo de areia para seu próprio prazer e capricho, "assim como jogam a criança e o artista, joga também o fogo eternamente vivo, erigindo e destruindo, em inocência – e esse jogo o Aion joga consigo próprio" (NIETZSCHE, 2008a, p. 67). Ele não ignora seus desejos mais íntimos em prol de um guia moral ou finalidade metafísica (teleologia como engodo ultraterreno), e então pode ir contra a corrente que os homens sempre nadaram. Para vivenciar a falta de propósitos, o fluxo e a mudança das coisas Zaratustra dança e conclama seus seguidores ("os bons dançarinos"), como no culto das bacantes, a levantarem seus corações e suas pernas, afinal ele "acreditaria somente num Deus que soubesse dançar" (NIETZSCHE, 2014, p. 67).
Por trás dessa linguagem lúdica há uma preocupação com a educação do homem, com sua formação [Bildung]. A formação cultural é, na verdade, uma concorrência entre inúmeras forças, que passa, basicamente, por dois caminhos: afirmação da singularidade em prol da expansão ou afirmação da comunidade em prol da conservação. A consciência se desenvolveu pela necessidade do homem em se comunicar e por sua utilidade na vida em comunidade, enquanto que "o homem que vivia solitário, como animal de presa, poderia ter passado sem ela" (NIETZSCHE, 2005b, p. 200). No aforismo intitulado "Do gênio da espécie", Nietzsche elabora sua genealogia para demonstrar que o aumento da consciência entre os europeus é uma doença e que a própria noção de utilidade é "um produto da nossa imaginação, e talvez da mais fatal estupidez, a que nos há de, certamente, fazer perecer um dia" (NIETZSCHE, 2005b, p. 202). Combater essa vida ascética, típica da sociedade de massas, é uma das grandes propostas nietzschianas. É por isso que o cientificismo é tido como a "versão nobre e moderna do cristianismo" e a vontade de verdade, um empecilho, um perigo à vida. O método científico exige neutralidade, algo que é impossível, considerando-se a doutrina da vontade de potência, e algo indesejável, considerando-se o efeito da complacência de reduzir a vontade de se autoafirmar. Entre os verdadeiros filósofos, os que não são "operários filosóficos", "Seu 'conhecer' é criar, seu criar é legislar, sua vontade de verdade é – vontade de poder" (NIETZSCHE, 2005a, p. 106). Nessa visão, a verdade decorre de um ato de criação, de um longo e cauteloso processo de escuta que, "por sua vez, viu-se, é corpo [...]. Enquanto e como incorporação faz-se devir, estória, ou seja, o movimento da experiência (afeto, interesse), apropriação, interpretação – em suma, criação. Vida enquanto e como criação" (FOGEL, 2005, p. 215). Combater essa postura, parte do grande problema do niilismo, foi um dos principais objetivos do filósofo de Röcken.
Que tipo de moral valoriza dores que limitam a existência e desvaloriza prazeres que instigam à vida? Que tipo de moral defende a impassibilidade e condena a realização de desejos como os sexuais? Que tipo de moral exige o bem comum em detrimento das idiossincrasias? Que tipo de moral defende a senilidade e critica a juventude? Esse tipo de moral certamente é uma que Nietzsche chamaria de decadente e que não desejaria para uma sociedade pronta para gerar o 'além-do-homem', o homem do futuro anunciado pelo personagem Zaratustra. O 'último-homem' deve dar lugar a um tipo superior, o que envolve ultrapassamento de si, e até mesmo da própria espécie. A 'superação de si' está atrelada ao 'tornar-se o que se é', apesar das contradições que envolvem o conceito de identidade. Quem se ultrapassa constantemente reafirma o projeto inicial de assumir o devir como grande fundamento da realidade. Nietzsche chega a defender o sacrifício individual em nome do além-do-homem – sem dúvida algo polêmico, e até mesmo incoerente, considerando sua afirmação de que não há teleologia. O projeto ético da modernidade é condenado, contudo o retorno ao passado medieval não é solução, decorre disso o mal-estar na leitura dessas radicais teses, como se não houvesse alternativa no horizonte. De fato, levar até as últimas consequências a negação de um critério superior que condiciona a vida terrena, como é o caso da fisiologia da arte, é chegar ao seguinte impasse: negar qualquer valor das coisas, pois elas caem numa circularidade que somente um critério externo poderá legitimar um valor como superior, ou acreditar nesse critério externo e vincular sempre o valor das coisas terrenas a ele, como faz a metafísica tradicional. Resta investigar se a doutrina da vontade de potência é o critério metafísico encontrada por Nietzsche capaz de conferir valor às coisas.
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* Bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Referências

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