Visita ao velho comediante (2000) { Play}

June 3, 2017 | Autor: Marcus Mota | Categoria: Creative Writing, Comedy, Dramaturgy, Drama, Dramaturgia, Comedia
Share Embed


Descrição do Produto

1 VISITA AO VELHO COMEDIANTE (2000) Marcus Mota

Escuridão total. Ruído de passos pela casa. Preparação de jantar. Móveis sendo arrastados. Tudo ao som de uma música circense. Luz vai surgindo com a correria em torno da arrumação da casa para os visitantes. A casa é velha, abandonada, em ruínas, um asilo sujo e largado. Sobraram apenas duas pessoas: o Senhor Pulha, vestido de pijama e gorrinho na cabeça, escondendo roupas de espetáculo por baixo e a Senhorita Limão, a nobre companheira do Senhor Pulha.

SENHOR PULHA Vamos, senhorita Limão, vamos: se apresse! SENHORITA LIMÃO Quanto movimento nessa casa... SENHOR PULHA Deixe de ser azeda - os meninos já vão chegar! SENHORITA LIMÃO ... e sempre sobra prá mim... SENHOR PULHA Fale menos, faça mais, senhorita. Que horror! SENHORITA LIMÃO Antes tudo era melhor... SENHOR PULHA Arrume esses moveis já que a sua cara... SENHORITA LIMÃO ...agora tenho que agüentar cada coisa... SENHOR PULHA Os meninos estão chegando e tudo tem que estar pronto.

2 SENHORITA LIMÃO Senhor Pulha, qual a razão dessa agitação toda por causa de uns moleques? SENHOR PULHA Ah, senhorita Limão, que maldade, que maldade! Onde já se viu uma coisa dessas! SENHORITA LIMÃO Isso, mesmo, senhor Pulha, isso mesmo: eu tenho trabalhado tanto os últimos dias e nem sem prá que. O senhor pode me dizer... SENHOR PULHA Controle-se, mulher, controle-se! Limpe a baba que escorre da cara! SENHORITA LIMÃO O senhor nunca se preocupou com gente. Se fechou aqui dentro há anos. Sai apenas para as ‘homenagens’. Não recebe ninguém, não fala de ninguém, não comenta nada sobre coisa alguma. SENHOR PULHA Pelo menos não fico resmungando pelos cantos com essa cara de Deus me livre! Vamos, acelere o passo: os meninos daqui a pouco estão aqui e eu quero a casa arrumada. E o jantar? Fez o que eu pedi? SENHORITA LIMÃO Era um cardápio estranho, muito feliz. O senhor pode com essas coisas ainda? SENHOR PULHA Senhorita limão: estou perdendo a paciência! Nem em meus tempos de glória tive de agüentar uma platéia tão difícil como essa... SENHORITA LIMÃO (temor) Me desculpa mas... SENHOR PULHA ... mas o qu? Mas o que? A senhorita quer me ajudar, é ? A senhorita quer me socorrer, hein? . Todos querem, todos tentaram. Agora é diferente. Eu é que quero fazer algo por mim. Não é mais pelos outros. Eu nunca gostei mesmo dos outros. Por isso fui um comediante, por isso deixei de ser um comediante. SENHORITA LIMÃO (ri) Ah, o senhor continua o mesmo. Mais, mais um pouco: interprete mais!

3 SENHOR PULHA Eu estou falando sério, senhorita Limão, muito sério, como sempre! Ah, senhorita, estou vendo tudo, tudo: a senhora não sabe como é terrível ter sido um comediante.... SENHORITA LIMÃO Bobagem, senhor Pulha, bobagem. Olha, eu já estou acabando. Os meninos vão chegar logo, tudo vai dar certo. O senhor vai nos entreter. A casa está cheia e todos gostam do senhor. SENHOR PULHA (Concluindo, balançando a cabeça) Senhorita limão, senhorita Limão... Música circense .Um novo começo. Barulho de relógio. A espera. Idas à janela e/ou à porta para conferir possível chegada dos visitantes. Sons que anunciam falsas sinais dessa chegada e novos desapontamentos. Tudo forma uma sucessão de expectativas frustradas que lentamente vã se encaminhando para o desânimo e do desânimo para a ira. A música cessa, a luz fecha no rosto irado do senhor Pulha petrificado de raiva. Uns instantes depois ele grita: SENHOR PULHA Chega! A música circense retorna menos forte e ele a procura e a interrompe gritando mais forte, seguido do susto da senhorita Limão. SENHOR PULHA Chega! A música retorna agora deformada, demonstrando-se reticente diante da ira do Senhor Pulha. Ele grita e berra novamente, realizando um debate com a música. Ele vai silenciado a música até que ela se extinga, como se tivesse levado um tiro ou fosse enforcada. Daí o Senhor Pulha retorna à sua posição central fixando a platéia com violenta ira mais temível de todas. Depois baixa a guarda e explode falando: SENHOR PULHA Eu bem que disse que eles não viriam, que esperar era inútil! Como eu fui burro, outra vez! Como pude me deixar assim levar por uma esperança, algo assim tão inesperado e impossível!

4 SENHORITA LIMÃO Controle-se, senhor Pulha, controle-se! SENHOR PULHA Que me conter que nada! Eu quero é jogar no mundo o que o mundo me jogou de volta! SENHORITA LIMÃO Devagar, senhor Pulha, muito devagar: não sabemos onde isso vai dar! SENHOR PULHA Não sabemos? Não sabemos o que? O que a senhora sabe? E quem disse que estamos juntos nisso? Prá que time a senhora torce? SENHORITA LIMÃO Olha que eu conto a verdade, olha que eu falo tudo! SENHOR PULHA Não adianta me ameaçar, senhorita Limão, mulher muito azeda e que nem serve prá suco.(argh). Não mude de assunto, não me feche a garganta! SENHORITA LIMÃO Mas tudo isso é a mesma coisa, tudo está junto. Eles não vieram porque descobriram quem é o senhor , o comediante. SENHOR PULHA Que noite horrível, como tantas outras! SENHORITA LIMÃO Aproveite o jantar. Coma todo o sorvete e os salgadinhos. SENHOR PULHA Eu adoro sorvete, sabe, eu adoro sorvete. Sempre quis comer mais sorvete que podia. SENHORITA LIMÃO Tem muito lá dentro, tem todo o sorvete que o senhor sempre quis comer. SENHOR PULHA Tem de limão, senhorita Limão? Tem de limão? SENHORITA LIMÃO Tem do sabor que o senhor quiser.

5 SENHOR PULHA Eu não gosto de sorvete de limão. Eu detesto limão, sabe: eu acho limão uma porcaria, uma porcaria. SENHORITA LIMÃO Sei, sei. SENHOR PULHA Tem sorvete de limão, tem? SENHORITA LIMÃO O senhor vai isso prá me atormentar ou por que gosta? SENHOR PULHA Tem, tem sorvete de limão, hein hein? SENHORITA LIMÃO Senhor Pulha, senhor Pulha: quantas vezes eu tenho de dizer que... SENHOR PULHA Mas eu não gosto, eu gosto de sorvete de limão. Quantas vezes eu preciso repetir, senhorita Limão, limãozão, limãozãozão: quantas vezes eu preciso dizer que eu odeio, eu odeio sorvete de limão. Não compre mais, não me ofereça. SENHORITA LIMÃO Tudo bem, tudo bem, senhor Pulha. SENHOR PULHA Agora guarde tudo. Perdi a vontade de comer sorvete. Feche as portas da casa. Apague a luz. E conte uma história. SENHORITA LIMÃO O senhor não vai mais esperar por eles? SENHOR PULHA O que a senhora quer que eu faça. É tarde da noite, dessa noite horrível. Esperamos, brincamos, tossimos e eles não vieram. A senhora fuma, fuma muito? Quanto? SENHORITA LIMÃO Não, eu não fumo, senhor Pulha. SENHOR PULHA Quer fósforo, heim, quer fogo? Tem cigarros SENHORITA LIMÃO

6 Por quê ? O que senhor quer fumar? SENHOR PULHA Mas dá prá fumar comendo sorvete? Dá heim? Só se for de limão. Eu odeio sorvete de limão. Limão, limãozão, Limãozazão. (sinal de silêncio) Fume baixo, coma pouco. Vá dormir, vá dormir. SENHORITA LIMÃO Fiquei aí velho doido, fique ai com a mesa cheia que eu vou SENHOR PULHA Ah, velho doido, velho doido. Ótimo, ótimo senhorita limão, senhorita sorvete de limão e fósforo. A senhora fuma? Fuma muito? SENHORITA LIMÃO Senhor Pulha, senhor Pulha eu sei que o tudo isso não é verdade. O senhor quer me irritar, me tirar do juízo, o sério negócio. SENHOR PULHA Eu era um comediante, um grande comediante. SENHORITA LIMÃO E dos bons. Minha família ia inteira ver o senhor. SENHOR PULHA Agora ninguém vem aqui. Por que eles disseram que vinham me visitar? Eu nem lembrava que tinha uma irmã . Muito menos que minha irmã fosse casada . E o pior : que tivesse filhos. Acho que o mundo enlouqueceu e eu estava dormindo, de férias, comendo sorvete. Eles se sentam à mesa. Esperam. Música circense que vai se transformando em ruídos de carro com dificuldades para ligar.Depois , um carro que vai brecando enquanto anda. Entram os dois visitantes admirando a casa, esbarrando em coisas logo que caem. Eles atravessam a sala passam por cima do Senhor Pulha e Senhorita Limão como se não houvesse ninguém. Repetem essa investigação da casa dos outros até que o senhor Pulha os interrompe aos brados com música . Ao fim das estrofes os meninos vão passando de assustados para nova admiração, como se estivessem vendo um espetáculo. Os cantores

7 vendo essa resposta positiva reforçam sua agressividade mas que vai se demonstrar inútil. Os que vieram de foram vão dominando a cena, arrefecendo as feras. Música de recepção adversa para causar medo SENHOR PULHA (fala surrada)Meninos,/ meninos tão esperados Filhos /de não sei quem com qualquer um Famintos/ mas cheios de vontade Eu os quero/ bem longe daqui. (canto)Por que/ não vieram antes Por que/ vieram então Voltem/ e não voltem Saiam por favor SENHORITA LIMÃO (gritado)Ouviram seus moleques? Rua rua rua Aqui não é sua casa Aqui não é seu lugar SENHOR PULHA Meninos sujos imundos Meninos do esgoto podrão Limpem esses narizes Comam os restos do chão. Por que não vieram antes Por que vieram tão depois Eu disse que era inútil

8 Eu disse que era em vão SENHORITA LIMÃO Ouviram seus moleques Rua rua rua Aqui não será sua casa Aqui não será seu lugar (dueto) por que vieram então por que chegaram tarde aqui não será sua casa aqui não será seu lugar eu disse que era inútil eu disse que era em vão.

Os moleques aplaudem os cantores. Estão felicíssimos. Que noite maravilhosa: casa comida e espetáculo. Eles vão falando e provando do jantar. MENINO UM Lindo, lindo! MENINO DOIS Mais, mais, toca essa radiola. MENINO UM Eu te disse que era bom, eu te disse. MENINO DOIS A gente podia ter vindo antes. SENHOR PULHA Vocês não estão esquecendo de nada? MENINO UM

9 Continue, continue a dança que a gente come tudo. MENINO DOIS Tem sorvete, sorvete de limão. SENHORITA LIMÃO Rapazinho sujo, rapazinho sujo, vocês devem uma explicação. SENHOR PULHA Eu que estou esperando senhorita limão, é o que eu estou esperando. MENINO UM Senhorita limão? (olham entre os garotos e riem) que negócio é esse? MENINO DOIS (para Senhorita Limão)Esse sorvete é seu? (riem) SENHOR PULHA Garotos, garotos se contenham, se contenham. SENHORITA LIMÃO Eu já vou acabar com isso MENINO UM Quer sorvete também? MENINO DOIS Mas isso é já é propaganda ...(riem) SENHOR PULHA (rindo) Ótimo, garotos, ótimo. Está no sangue. SENHORITA LIMÃO Até o senhor, senhor pulha, até o senhor? MENINO UM Pulha? (riem até se acabar) MENINO DOIS Isso nome de que, de tempero? SENHOR PULHA É o nome da nossa família, os senhores não sabiam? Eu estou esperando meus queridos sobrinhos há horas, há dias, há anos e é isso que vocês têm prá me oferecer:

10 bagunça, sujeira, gozação. Isso aqui parece meus antigos shows? Estamos de volta para a comédia? Os senhores querem é espetáculo? MENINO UM Desculpe tio, nos perdoe. MENINO DOIS É a emoção do reencontro. MENINO UM Faz tanto tempo que a gente não se via MENINO DOIS Que a gente se esquecer do senhor. SENHORITA LIMÃO Não sei não, senhor Pulha, não sei não... MENINO UM Senhor pulha....(rindo) SENHOR PULHA Senhorita Limão, controle-se. Deixe que a família se entenda, deixe. Apesar de tudo ainda somos uma família. MENINO UM É o que sempre eu digo. MENINO DOIS E uma família das melhores MENINO DOIS Mais sorvete senhorita Limãozãozão. SENHOR PULHA Viu? A gente se entende(abraçando-os) SENHORITA LIMÃO(canta) Uma coisa é dizer muito obrigado Outra coisa é pegar tudo que pode Quem souber o que mais importa

11 Por favor siga esse caminho Uma coisa é nadar embaixo d’água Outra coisa é remar dentro do barco Quem souber o que mais importa Cale a boca e diga obrigado. Por favor entenda esse caminho Conte até dois e sopre bem baixinho Que o resto é o que mais importa Saber nadar não afasta o oceano.

MENINO UM Não gostei. Não entendi e não gostei. MENINO DOIS Prefiro mais sorvete, mais sorvete. SENHOR PULHA Só se for de limão, de limãozão. SENHORITA LIMÃO (para Senhor Pulha) Antes quando era só eu e o senhor, e todos sabem lembram disso, o senhor Pulha odiava sorvete de limão. Os freezers estão cheios de sorvete. Daí deu na sua cabeça que alguém viria nos visitar. Quem iria visitar um velho comediante? Seu fôlego é fraco, suas pernas tropeçam uma nas outras. Para ver nem toda a luz do mundo é suficiente. E quando fala se perde no abandono de quem não pára mais para ouvir. É um espetáculo pior o seu: antes fazia rir, agora o sorriso é uma esmola. MENINO UM Agora eu entendi, entendi mesmo. MENINO DOIS Mas não sei se gostei do que entendi.

12 SENHOR PULHA Obrigado, senhorita limão, obrigado por me mostrar todo o dia o que eu sei. A comédia sem interesse que pareço ser. Eu nunca posso esquecer disso pois a senhorita cuida bem de mim. Arruma minha cama e me veste e me faz a sopinha. MENINO UM Sopinha! SENHOR PULHA É uma vida ótima. É boa prá falta de dentes. Já que não se pode mais morder, por que ser comediante? MENINO DOIS Mas o senhor velhinho ainda é bom. Gostei da valsinha. SENHORITA LIMÃO Não era uma valsinha! MENINO UM Eu também não sou parente dele. SENHOR PULHA Como assim? E a minha irmã? Eu preciso ter uma irmã, viva ou morta. SENHORITA LIMÃO Então vocês vieram atrás da comida, da casa? Senhor Pulha, veja a nossa situação, veja a nossa desgraça. Por que eu arrumei tanto essa casa? MENINO DOIS Tem um quarto pra gente? Já arrumou uma cama pra nós? MENINO UM Eu não quero sopinha. Eu posso morder e muito. Tem sorvete? MENINO DOIS A senhora torce pra que time? SENHOR PULHA E fuma, heim?, heim? Quer fósforos? SENHORITA LIMÃO (para senhor pulha)

13 Chega! (música circense. Ela repete os mesmo gestos que o Senhor Pulha fazia para enforcar a música) SENHOR PULHA Bem, me digam, sem pressa, meus sobrinhos: por que vocês se atrasaram? MENINO UM Eu posso cantar uma música? MENINO DOIS Eu posso cantar também? SENHORITA LIMÃO Quando tudo isso acabar o senhor me chama, por favor. SENHOR PULHA Precisamos ter paciência, muita paciência com a senhorita Limão. Coitada dela, sabem. Não tinha onde morar, passava fome e suas roupas eram piores que sua cara. Tem sido uma boa ajudadora, mas é tão braba, tão braba MENINO UM Pede prá ela tocar que a gente canta. MENINO DOIS Pede prá ela chorar que a gente goza. SENHOR PULHA Ainda bem que vocês vieram. Não sei se agüentaria mais essa da vida. A gente já nem se pergunta mais nada. Ainda bem que vocês estão aqui. SENHORITA LIMÃO Eu sempre estive aqui: eu recebi o senhor desde a primeira vez. Lembra-se SENHOR PULHA Viram? Coitada, já me serve há tanto tempo que confunde tudo. MENINO UM Eu quero cantar, como vocês fizeram MENINO DOIS Ensina prá gente, senhor Pulha, ensina prá nós, velho estranho. SENHOR PULHA Minha irmã não disse nada para vocês? Não contou como eram as coisas?

14 SENHORITA LIMÃO Tudo vai se acabar, logo, eu sei. As coisas em seu devido lugar. MENINO UM A gente lá de fora sempre ouve os gritos do senhor. MENINO DOIS Todos têm medo dessa casa. A casa cheia de vozes e luzes , que dança na escuridão da noite MENINO UM Quando uma mãe quer assustar seu filho ela canta essa canção: (sussurrando) Quem te deu esses olhos, meu bem Quem te deu essa boca, neném Quem te deu esses braços, amor Quem te deu as perninhas também (mais afetivo) Quem vai tirar esses olhos, meu bem Quem vai calar essa boca, neném Quem vai cortar esses braços amor Quem vai quebrar as perninhas também (mais agressivo e conclusivo) Quem vai perder tudo tudo, meu bem Quem vai sofrer lentamente neném Quem vai chorar para sempre amor Quem vai dormir sem bercinho também

MENINO DOIS Depois ela conta a história de um homem que andava pelas ruas recolhendo as crianças pobres como a gente. Todas as crianças, as que fugiram de casa , as que foram abandonadas pela cidade. Ele levava todas para uma casa velha que ficava em cima do morro. Em volta da casa tinha uma floresta cheia de bichos e pregos enferrujados. Ninguém

15 sabe o que acontecia lá dentro. Mas era só erguer os olhos e lá em cima estava essa casa. Daí a ruas começaram a se encher novamente de crianças, jovens, adultos, jovens e velhos, homens e mulheres. Quando isso acontecesse era que o homem que recolhia crianças tinha ficado velho e morreu. MENINO UM Agora não há mais o medo. E mãe parou de contar história e cantar coisas horríveis. Já faz um tempo que nada mais é triste ou alegre. Todos estão nas ruas. MENINO DOIS Então a gente quis vir aqui. E vocês cantam, dançam e dão medo. SENHOR PULHA (indignado)Então vocês não são meus parentes? Senhorita Limão, Senhorita Limão: como a senhora deixou que esses meninos sujos da rua entrassem aqui dentro. SENHORITA LIMÃO Não temos portas, Senhor Pulha, não temos janelas. SENHOR PULHA Então não temos nada, viu, não temos nada. Por que a senhora não me avisou que estava faltando algo em casa? Eu teria feito umas compras, arrumado essa bagunça. SENHORITA LIMÃO Tudo se acabou há muito tempo, Senhor Pulha. O senhor não tinha onde morar e achei que alguém da sua idade assim andando por aí? SENHOR PULHA Mas essa é a sua história, como a desses garotos aí. Estamos todos aqui, um velho, uma mulher boba e dois meninos sujos. O que dá para fazer com isso? MENINO UM E o jantar? Estamos com muita fome. MENINO DOIS Vocês esperavam alguém mesmo. SENHOR PULHA (desapontado, armando sua ira) É, eu esperava alguém. E vocês são alguma coisa, algo assim de se gostar e querer bem? Não vocês são uma platéia, outra platéia, como as que eu larguei no meio do show.

16 Eu esperava alguém para mim, e o que veio? Isso, um público para essa noite. Mas então vai ser assim eu vou tratar vocês como vocês merecem.(Os dois meninos se alegram, comemoram a resolução do Senhor Pulha. Senhorita Limão começa a arrumar a cena. Ele vai acuando os dois meninos em direção ao público. Enquanto fala para os dois meninos, o Senhor Pulha vai tirando seu pijama, revelando sua roupa de palhaço) Vocês vão receber o que uma platéia merece receber. Vocês querem espetáculo, querem a vida inteira ali diante de seus olhos? Querem se divertir, não é? Querem rir comigo e de mim? Pois é isso que eu vou fazer, vou retribuir essa vontade louca de diversão. Vou fazer com que essa noite seja inesquecível. Vou trazer vocês para o mundo do comediante. A comédia começa agora, meus amigos. E eu estou de volta! Soa a música circense em sua completa exibição. Os atores dão meia volta e marcham em volta do picadeiro ao som da música saudando a platéia. O palhaço empurra os dois meninos que esbarram entre si, rolam e ficam em pé novamente, acenando para a platéia. A Senhorita Limão vai batendo palco e girando na frente do Público. Todos fazem a sua volta de apresentação para o público três vezes. O público acompanha com palmas. Ao fim o Senhor Pulha interrompe a música e começa a cantar sua história (narrativo, em oposição ao fim do verso final) Todo menino gosta de festa E uma festa / tem que ter dinheiro E eu não tinha nem uma casa E uma festa tem que ter dinheiro. Mas a vizinha, fez uma festa E o seu filho era meu amigo. Eu fui na festa cheia de gente E salgadinho e refrigerante. Eu gargalhava estava feliz

17 E já limpava a toalha no nariz Veio o bolo que maravilha Era a festa toda para mim. Então cantaram os parabéns O meu amigo estava tão feliz. Mas a mãe dele tão assustada Correu em minha direção: (a Senhorita Limão sem música, sussurrando) Saia daqui, volte prá rua! não é seu aniversário Saia, saia daqui, saia já Não é seu aniversário. Coro(vão cantado todos em cena com o público. Depois vão repetindo o último verso para acabar a música.) Todo menino gosta de festa E uma festa/ tem que ter dinheiro.

SENHORITA LIMÃO E assim o Senhor Pulha nunca mais comemorou aniversários. O medo da festa fez com que agisse contra a festa. Daí virou comediante, e dos bons. SENHOR PULHA(vai andando por entre o público, acompanhado pelos dois meninos, dirigindo-se a um ou outra membro da platéia. A cada nova piada Senhorita Limão bate em um sino.)

18 Esse é meu humor, esse é o meu show: a vingança. -Nossa, minha querida, quantos anos você tem? Vamos resolver isso agora, deixa eu pegar minha calculadora aqui... -E o que que é isso? O que fizerem com você? Isso é um nariz? Não, não me esconda nada, estou sem ar, tá um sufoco aqui... -Nossa como a senhora emagreceu! Perdeu uns cento e vinte quilos não é mesmo?. Antes não tinha mais lugar para estacionar nessa cidade... -Não, não se preocupe, seus cabelos não vão voltar. Que alívio! Ninguém agüentava mais eles escorrendo pelos ombros, a gente vivia tropeçando neles. Ainda bem que eles caíram... -Ora, você não é baixinha não, até põe a mão no bolso. Ah isso não é bolso, desculpe... -E você, tá esperando alguém? Por que tá ocupando a fileira inteira ?Você é isso tudo aí? -Você não entendeu? Não se preocupe, nunca vai entender nada mesmo. -Do que você tá rindo? Ah, não tá rindo? É assim mesmo? Fazer o que não é ... -Quando eu falo eu pareço idiota? Tudo bem, já podemos conversar agora, já podemos nos entender, sem amigos... -Você tem certeza que é daqui mesmo, que não veio de outro lugar? Eu tô me esforçando, eu tô me esforçando prá entender... -Você já viu uma pessoa feia, feia mesma, dessas que escurecem a vista. Não deu tempo não é... -Sabe, até que essa sua roupa é bem legal assim com essas cores, esses riscos. É diferente, não é ? É sua mesmo? Você comprou aonde? Por favor me diga, me diga onde você comprou isso. -Quanto você calça? Pelo amor de Deus, me diga quanto você calça. Eu não posso morrer com essa dúvida. Eu preciso saber quanto você calça. Se eu disser os outros não vão acreditar.

19 -E quantos dentes você tem? Todos? É por isso que eu preciso de implantes. É por isso que tem tanta gente por aí de boca fechada, com vergonha. Você precisa humilhar é? Feche a boca. Não mostre mais nada. -Me aponte alguém aqui que tem as orelhas mais diferentes, mas estranhas. Não vale as suas, não vale. E agora vocês dois (para os meninos. Na medida que as agressões vão se sucedendo, os meninos vã saindo tristes de cena.), em que esgoto tomaram banho? Nossa tem um cheiro horrível aqui. Meninos, não falem, nada, não abram a boca porque o resto...Senhorita Limão, me de a vassoura: eu vou devolver esses garotos prá onde eles vieram. Quantos vocês são? Só dois? Mas fazem um estrago... Humm, como o ar está pesado, escuro. Será que vai ter uma tempestade de merda aqui em casa? Nossa, já caíram uns pingos, dois. Sorte que não molha. Mas em vez de resfriado a gente pode pegar ... Vocês estão respirando ou soltando alguma coisa? Sorte de vocês que o nariz fica perto da boca. O cheiro ruim já está passando. A gente se acostuma. É questão de sobrevivência Como foi com vocês? Vocês nasceram aos poucos ou veio tudo de uma vez só? As fezes é melhor de uma vez , as fezes é melhor aos poucos. No fim tudo vai fora mesmo. Vocês não falam nada? Estão aí em pé, como montinhos... A boca fala do que o coração está cheio. Quem sabe o seu coração esteja mais cheio daquilo que a boca... Isso, vão embora, é uma questão de saúde pública! O ar já está bem melhor e a casa vazia de novo. O Show acabou, entenderam, a comédia é essa. E ela tem seu fim. Música de circo. Em ritmo mais desfigurado, perto de uma marcha fúnebre. O Senhor Pulha está cansado. Senta-se no chão, e lamenta-se por tudo que aconteceu. Coloca a cabeça no colo da Senhorita Limão. SENHOR PULHA Por que eles não vieram? Por que vieram esses? SENHORITA LIMÃO Agora estamos nós aqui como sempre. SENHOR PULHA Por que ninguém veio mais me visitar? Por que eu sou um velho? Por que eu morri?

20 SENHORITA LIMÃO Controle-se, senhor Pulha, controle-se. Isso já vai passar. SENHOR PULHA Sabe quem visita os velhos, senhorita Limão, sabe quem vai nos visitar? SENHORITA LIMÃO Sei, todos os últimos dias eu tenho esperado essa visita. O senhor sabe melhor que eu o quanto eu desejo essa visita. SENHOR PULHA Eles nunca vão me ver. Nem sei se tenho sobrinhos. Mas minha irmã poderia bem vir aqui. Ela sabe onde eu estou. A vida inteira todos foram me ver. (Rindo). E pagavam. O pior é que pagavam. SENHORITA LIMÃO Eles pagavam para ver o senhor? Mas o senhor é o pior espetáculo que alguém pode Ter. É o melhor pior espetáculo da cidade. SENHOR PULHA Isso é que torna toda essa confusão a coisa mais louca da minha vida. Isso é que torna a minha vida a melhor comédia que eu vi. SENHORITA LIMÃO Um velho em uma casa aos pedaços, com a cabeça no colo de alguém. SENHOR PULHA (Erguendo-se do colo, se arrumando) Isso mesmo Senhorita Limão, um velho em um asilo fechado, que expulsou uns moleques da rua, conversando com o vazio da noite. Acho que as pessoas pagariam por isso? Acha que alguém viria aqui de verdade? SENHORITA LIMÃO Todo menino gosta de festa E uma festa tem que ter dinheiro. SENHOR PULHA Só você, Senhorita Limão, só você para me lembrar disso. SENHORITA LIMÃO Quem te deu esses olhos, meu bem

21 Quem te deu essa boca, neném Quem te deu esses braços, amor Quem te deu as perninhas também SENHOR PULHA Mais, Senhorita Limão, mais. Não me faça esquecer de nada. SENHORITA LIMÃO Uma coisa é dizer muito obrigado Outra coisa é pegar tudo que pode Quem souber o que mais importa Por favor/ siga esse caminho SENHOR PULHA Essa noite para um velho como eu é a melhor que poder existir. Eu vi pessoas, briguei, cantei, ouvi músicas. Nada me prende nessa vida mais, nada. Podem ter largado o velhinho ali no asilo sujo mas eu estou com tudo isso, com toda essa gente, com toda essa música SENHORITA LIMÃO Meninos,/ meninos tão esperados Filhos /de não sei quem com qualquer um Famintos/ mas cheios de vontade Eu os quero/ bem longe daqui SENHOR PULHA Não, não eles podem ficar aqui. Há lugar para eles, não é Senhorita Limão? SENHORITA LIMÃO Em lugar cheio de buracos quem não cabe aqui? Vou buscar sua sopinha. SENHOR PULHA E o sorvete, e o sorvete? Menos de limão, menos de limão, Senhorita limanzãozão. SENHORITA LIMÃO

22 Eu vou buscar comida. Deve haver comida em algum lugar sobrando. SENHOR PULHA. Cante, Senhorita Limão, cante. A senhor fuma? A senhora fuma muito? Quer fósforos...(vai adormecendo no chão, dormindo. A senhorita Limão coloca o pijama sobre Senhor Pulha) Toca a música de circo em atmosfera espacial, de sonho. Retornam os garotos pobres. Armados. MENINO UM Vamos lá roubar o velho. MENINO DOIS Velho sacana, velho doido. MENINO UM Quero ver ele goza da gente agora. MENINO DOIS Quero que é a piada da vez. MENINO UM A gente acaba com o velho e com a comida. MENINO DOIS Eu tô com fome, eu tô com fome. MENINO UM A gente acaba com tudo de uma vez. MENINO DOIS Simbora, simbora logo. MENINO UM Não tem ninguém, a casa tá vazia. MENINO DOIS O velho é esperto, tá se escondendo. MENINO UM Não vai adiantar nada, velho doido, não vai adiantar.

23 MENINO DOIS Eu quero é que se exploda aqui ó na minha mão. MENINO UM Olha ali, o cara deitado. MENINO DOIS Tá descansando depois do que fez com a gente. MENINO UM Tirou um sarro da nossa cara MENINO DOIS E agora dorme no chão. MENINO UM (engatilhando) Vai dormir prá sempre o velhote MENINO DOIS (colocando balas na arma) Vai fazer piada com o diabo no inferno. MENINO UM Por essa não esperava o comediante MENINO DOIS Morrer antes de dizer adeus. (apontam juntos as armas para o velho) SENHOR PULHA Senhorita Limão, senhorita Limão MENINO UM Acordo, desgraçado, MENINO DOIS Acordou para morrer. SENHOR PULHA Senhorita limão, me ajude, senhorita limão traga comida. MENINO UM (olha procurando)Velho doido, tá chamando quem heim

24 MENINO DOIS Tá maluco, velho, tá maluco. Há anos ninguém vem aqui. SENHOR PULHA Vocês não estão me entendendo. Hoje, ontem, há um tempo eu ... MENINO UM (Coronhada na cabeça do velho) A gente não quer te ouvir, velho. A gente quer se vingar. MENINO DOIS (empurrando o velho) Cadê a comida? Cadê a merda da comida? SENHOR PULHA Vocês são meus sobrinhos? Como está minha irmã? MENINO UM Que irmã que nada, velho. Esse barraco aqui tem um não tem comida. MENINO DOIS Eu tô com fome, cara, eu tô com fome. SENHOR PULHA O que eu posso fazer, de verdade, o que eu posso fazer? MENINO UM Um velho doente largada nesse barraco não pode fazer nada mesmo. Não serve prá nada. Mesmo que cante umas coisas e faça a gente rir. MENINO DOIS Mas toda vez que a gente se aproximava daqui o senhor mandava pedrada. Era sempre a mesma coisa. Quanta vezes a gente quis vir aqui e o senhor não deixou. SENHOR PULHA Quando, quando foi isso. Eu não lembro de nada. Se a Senhorita Limão estivesse aqui ela poderia... MENINO UM (Outra coronhada na cabeça do velho) Escuta aqui velho louco. Não tem ninguém só a gente. Daqui a pouco vai ter menos um prá contar a história. MENINO DOIS

25 A casa sempre tá vazia. Foi a música , foi a música que trouxe a gente. Pelas janelas quebradas a gente via o senhor falando com a paredes. SENHOR PULHA Isso não! Vocês não sabem de nada. Eu fui um comediante famoso. Eu ainda sei fazer rir. MENINO UM O senhor é uma piada ruim que vai se acabar agora. MENINO DOIS Por que, por que não quis a gente? SENHOR PULHA Quando foi isso, quando? MENINO UM Se é comediante , faça a gente rir. MENINO DOIS Eu não quero rir , eu... Em um salto, jogando para os lados as partes do pijama colocando o gorro na cabeça , exsurge O velho comediante. (5/7, como uma canção infantil, brincando com a escala musical, subindo e descendo) Todos têm cabeça, olho, boca, mão e pé Todos têm barriga, coxas, tronco e chulé Quem não vem de frente volta e meia vem de ré Quem não compreende reze a deus e peça fé Um velho abandonado vivia com a ralé Vieram dois garotos um Zé chamando um Zé E agora que estão juntos encheu-se a maré Nem resta prá eles uma casinha de sapé. Quem quer que eu repita diga diga qué qué qué.(bis)

26 (ao fim do bis os meninos estão no chão, se revirando de dor) MENINO DOIS Ai que dor de barriga, ai como dói. Diz para ele parar, diz. MENINO UM Eu não consigo, eu não consigo. MENINO DOIS Ai, o que foi que eu não comi, o que foi? MENINO UM Eu não sei, eu não sei. MENINO DOIS Minha barriga virou sopa fugindo do prato. MENINO UM Eu não tenho copo, garfo, colher ou guardanapo. MENINO DOIS E só porque viemos dar no velho uns sopapos. MENINO UM Agora não podemos dar pipoca aos macacos. (Os dois meninos cantam, como um trem de ferro) Mas/ sempre sobra pouco, muito pouco/ prá quem não tem nada E todo dia é longo, muito longo / prá quem não tem nada E se o dia é longo e pouco resta/ por que não se acaba? Mas longo é o dia pros que nunca comem/nunca se acaba? E a gente fica louco sem comida/ onde está uma casa? E a gente gosta muito de comida/ onde está uma casa? Mas sempre sobra pouco, muito pouco/ prá quem não tem nada E todo dia é longo muito longo, não basta beber água

27 Não basta beber água, não basta beber água (desmaiam). SENHOR PULHA (aproxima-se e os toma no colo. Fala feliz,rindo)Meus meninos, meus meninos. Vocês finalmente chegaram. Senhorita Limão, Senhorita Limão, arrume a casa, esquente a janta: eles chegaram, eles chegaram. Todos esperam por alguém a vida inteira. A minha espera acabou. Meus meninos, meus meninos finalmente chegaram. SENHORITA LIMÃO(para o público) Vamos fazer tudo como o senhor Pulha ordenou. Há espaços na casa. Um velho pode ainda viver com essas crianças. Tudo foi jogado aqui nessa casa. Onde mais poderiam se encontrar o que a gente joga fora? O velho recolhe as sobras das ruas e com elas faz sua sopa, sopa de velho, a boca banguela. Onde mais se encontrariam o velho esquecido por todos e os meninos das ruas senão nas ruínas dessa casa abandonada? Eu não sei, eu sou apenas uma lembrança de algo que não se esquece. Sorvete, quem quer sorvete de limão? Limãozão zão. Sorvete, quem quer sorvete. Limão, limãozão, limão zão zão. (canta saindo)

Quero duas bolas grandes E uma casquinha diferente Vou comer tudo depressa Com meu refrigerante.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.