Visões do campo sobre o arquivo (e vice-versa)

June 30, 2017 | Autor: Marcelo Moura Mello | Categoria: Anthropology, Quilombos, Arquivos
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Visões do campo sobre o arquivo (e vice-versa)1 Marcelo Moura Mello Resumo: O objetivo deste texto é refletir sobre o uso de fontes arquivísticas na pesquisa antropológica e sua relação com a produção etnográfica, bem como a implicação das experiências de campo sobre a descrição, manejo e leitura dessas fontes. O artigo expõe os diferentes contextos das pesquisas de campo e em arquivos históricos envolvendo a comunidade negra rural de Cambará, localizada entre os municípios de Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul (região central do estado do Rio Grande do Sul). Durante a pesquisa, a confrontação entre registros escritos e relatos orais abriu novas potencialidades para investigar a memória e a história da comunidade. Para além de uma questão metodológica de tratamento das fontes, busca-se perceber as assimetrias que estão na base dessa confrontação, além de sugerir diálogos entre o campo e o arquivo que objetivem mitigar os efeitos dessas assimetrias. Palavras-chave: memória, oralidade, história, arquivos, remanescentes de quilombos

O objetivo deste texto é refletir sobre o uso de fontes arquivísticas na pesquisa antropológica e sua relação com a produção etnográfica, bem como a implicação das experiências de campo sobre a descrição, manejo e leitura dessas fontes. Na primeira seção, exponho os diferentes contextos nos quais realizei pesquisas de campo e em arquivos históricos envolvendo a comunidade negra rural de Cambará, localizada entre os municípios de Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul, região central do estado do Rio Grande do Sul. Ver-se-á que a confrontação entre registros escritos e relatos orais abriu novas potencialidades para investigar a memória e a história da comunidade. Durante o texto, problematizarei a confrontação entre campo e arquivo para além da metodologia, buscando perceber as assimetrias que estão na base dessa relação, além de sugerir diálogos entre o campo e o arquivo com o objetivo de mitigá-las. ***

Neste primeiro momento, trago o contexto em que se deram as investigações sobre a história de Cambará, tanto em campo como em arquivos.

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Partes dos argumentos aqui reunidos foram expostos em Mello (2007) e Mello (2008a). Agradeço às organizadoras deste livro pela rigorosa leitura e pelas valiosas sugestões.

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Farei isso por meio de uma breve exposição dos projetos de pesquisa que ali tiveram lugar. Como veremos a seguir, a assunção identitária do grupo enquanto comunidade remanescente de quilombo foi determinante para o caráter que as pesquisas – e os procedimentos investigatórios – assumiram. Três projetos de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) foram desenvolvidos em Cambará nos anos de 2002 e 2003. Os dois primeiros – ambos realizados no ano de 2002 – tiveram curta duração. A participação no último deles – desenvolvido durante dez finais de semana entre os meses de setembro e dezembro de 2003 – permitiu minha inserção no grupo. Já nessa época os estudantes que participavam desses projetos tinham por incumbência, entre outras coisas, realizar entrevistas com os moradores e coletar dados que pudessem servir de base para a possível elaboração de uma perícia antropológica, doravante denominada “laudo”. Em 2005 a UFRGS, em convênio firmado com a Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), começou a elaborar um laudo antropológico com vistas a instruir o INCRA sobre os procedimentos administrativos referentes a Cambará, que reivindicava a titulação de suas terras com base no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias2. A UFRGS formou uma equipe que contou com professores e estudantes provenientes da geografia, da história e das ciências sociais, equipe da qual fiz parte. Foi nesse contexto de produção de um laudo que as pesquisas em arquivos se iniciaram. O fato de eu haver travado contato prévio com boa parte do grupo – detendo um conhecimento razoável dos eventos tidos por marcantes para os moradores do local – acarretou em meu envolvimento direto com as incursões aos arquivos desde o princípio. Supunha-se que seria possível localizar documentos que aludissem a esses eventos, o que ulteriormente se confirmou. Foi possível localizar em diversos arquivos farta documentação que reportava a muitos dos 2

O artigo estabelece que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

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fatos narrados por homens e mulheres de Cambará. O dito e o escrito confirmavam-se, até mesmo em pormenores. Durante

a

elaboração

do

laudo,

privilegiou-se

perceber

as

correspondências entre dito e escrito. Isso porque o investimento nos arquivos estava diretamente condicionado ao gênero de saber que estávamos produzindo. Ora, a peça que elaborávamos visava reconhecer direitos. Embora haja uma crescente flexibilização da legislação, há que se percorrer caminhos tortuosos para que os direitos previstos na Constituição tenham efetividade plena. As narrativas dos moradores de Cambará por si só não eram garantia da validade do pleito. Passa-se algo diferente quando, por exemplo, os relatos sobre o roubo de terras encontram equivalência no escrito. Como notou Oliveira (2002:258), a intervenção de antropólogos em processos judiciais e administrativos deve ser tomada enquanto exercício de uma competência técnico-científica em meio a um complexo jogo de pressões e negociações que envolvem diferentes agentes. Na situação de perícia, o papel e a competência que antropólogos são chamados a cumprir estão imersos em um campo de disputas. Os quesitos a serem respondidos são elaborados num contexto no qual diversos agentes, investindo seus interesses e pré-concepções, dialogam com o perito (e porventura o pressionam): a situação de perícia interfere na formulação e formatação das comunidades científicas e não-científicas (Anjos, 2005:111). Por maior que seja o rigor conceitual, analítico e ético investido neste tipo de intervenção, caberia perguntar se os efeitos de autoridade dos laudos não resultam na institucionalização de um estado do cenário das lutas. Destarte, a busca e a localização de documentos estiveram diretamente condicionadas a essa situação prática. Está-se diante da constituição de um campo eminentemente político onde representações autorizadas sobre o presente e seus significados para diferentes atores estão particularmente sinalizadas e visíveis nos arquivos (Cunha, 2005). Se o passado é um campo de disputas, as mediações com os arquivos podem oferecer ferramentas para autorizar os

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discursos e versões do passado, além de fornecer subsídios que permitam estabelecer continuidades com o campo de disputas que se configura no presente. Mais fundamental ainda é saber se a análise dos relatos a partir dos documentos não acaba por desembocar numa postura assimétrica na qual não se problematizam os pressupostos que estão na base da confrontação entre oralidade e escrita, sendo aquela avaliada apenas em função desta. Para tratar deste ponto, introduzirei alguns exemplos que possibilitarão discutir metodologia de pesquisa na reconstituição do passado.

*** A descrição da trajetória histórica de Cambará, no laudo, não se restringiu a uma adequação ao contexto prático mencionado acima. Com o tempo, novas questões e novos problemas foram surgindo. Em minha pesquisa de mestrado, as urgências práticas do laudo não se faziam mais presentes, embora a localização de dados históricos sobre Cambará continuasse sendo importante para sustentar os pleitos locais3. O conteúdo registrado nos documentos correspondia às narrativas dos membros de Cambará em diversos pontos, divergia em outros tantos e remetia a fatos não contemplados por elas. Mas o contrário também é verdadeiro: as fontes apresentavam lacunas preenchidas apenas pelo socorro às fontes orais. Esses aspectos são exemplificados no que toca aos antecessores do grupo. A memória genealógica dos mais velhos em geral não ultrapassa três gerações. Em arquivos, foi possível remontar a até cinco gerações. A partir de assentos de batismo, descobriu-se o nome de bisavós e tataravós dos atuais moradores do local, que não lembravam os nomes de alguns de seus predecessores. A reconstituição de árvores genealógicas e tramas de parentesco esteve sujeita a diversas dificuldades e empecilhos, entretanto. Em alguns casos, não foi possível estabelecer vinculações genealógicas seguras senão através do 3

De fato, meus “achados” nos arquivos históricos continuaram a ser transmitidos aos moradores do local, em especial às lideranças.

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cruzamento de diversas fontes. Ocorre que os registros de batismo, óbito e casamento são, comumente, imprecisos. Não raro, o sobrenome de um mesmo indivíduo é grafado diferentemente em um mesmo tipo de fonte, seja pela supressão de parte do sobrenome, seja pela própria grafia. No caso de escravos, libertos e seus descendentes, a situação complica-se mais ainda. As informações sobre cativos em geral se limitavam a seu nome, idade e proprietário. Os nomes de libertos e livres podiam variar de uma fonte para outra. Via de regra, eles incorporavam o sobrenome dos antigos senhores. Contudo, como demonstraram Moreira (2008) e Weimer (2008), essa não foi a única alternativa na vida em liberdade. O apadrinhamento com outra família branca, a homenagem a santos católicos ou a conversão de um nome em sobrenome (por exemplo, Rosa) foram outras opções. As informações oferecidas pelos membros de Cambará permitiram estabelecer diversas vinculações genealógicas. A referência à família que era proprietária de escravos rendeu muitos frutos. Na maior parte dos casos foi o cruzamento entre fontes orais e escritas que permitiu definir essas relações. Em outros casos, porém, não existia equivalência entre o dito e o escrito. A referência às famílias escravocratas da região se faz a partir da rememoração dos patriarcas destas famílias, ou de menções vagas como dizer que tal pessoa era escravo “dos Lopes”, por exemplo. As narrativas conferem menor importância às ramificações de parentesco entre as próprias famílias brancas. Nas narrativas locais, um proprietário de escravos poderia ser tido como pertencente “aos Lopes” sem que tivesse tal sobrenome. Além do mais, uma pessoa pode ser identificada, em Cambará, a partir de seu “nome de casa” ou apelido, e nem sempre os indivíduos são referidos de tal maneira nos documentos. Em Cambará, certos eventos são rememorados com freqüência pelos “sabedores” (aqueles que detêm o conhecimento do “tempo dos antigos”). À parte as diferenças entre alguns aspectos rememorados por cada narrador, há um núcleo comum de histórias de conhecimento geral, mas que apenas alguns sabem

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contar4. As primeiras pesquisas em arquivos foram uma tentativa de localizar documentos que fizessem referência aos fatos tidos por marcantes para o grupo. Segundo as narrativas, a comunidade originou-se de uma “sobra de campo” de uma medição judicial “dada” pelos senhores a seus escravos. Com esta informação em mãos, localizou-se no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) uma medição judicial, transcorrida entre 1886-1888, requerida por um antigo senhor de escravos da região. Neste documento de mais de mil folhas, diversos antecessores de Cambará fazem parte deste registro. Lendo-o, descobriu-se outra forma de territorialização das famílias negras. Ao invés de uma doação dos senhores aos seus escravos, tal como salientam as narrativas, o documento refere três compras de terras efetuadas por dois pretos-forros5 na primeira metade do século XIX (mais especificamente nos anos de 1835, 1845 e 1855). Esses dois pretos-forros não estão presentes na memória genealógica do grupo e seus nomes nunca foram mencionados. Mesmo assim, foi possível definir a ascendência genealógica dos atuais integrantes do grupo em relação a esses antepassados com base principalmente em fontes documentais, mas também por meio dos cruzamentos destas com as informações constantes nos relatos. Levando-se em conta que dois pretos-forros e suas respectivas famílias viviam em espaços próprios desde a primeira metade do século XIX e que os atuais moradores do local não guardam lembranças desta época e destes fatos, impunha-se a reconstituição das condições de vida dos predecessores da comunidade durante boa parte do século XIX. O conhecimento obtido no arquivo expandiu minha pesquisa para novos fundos documentais. De fato, caso ativesse4

A idade é fator preponderante na definição de alguém como contador, mas não só. Saber contar envolve um uso bem específico das palavras, de gestos, das entonações, etc. Evidentemente, não são todos os moradores do local que conhecem todas as minúcias do “tempo dos antigos”. Há um núcleo comum de histórias de conhecimento geral no sentido de que as pessoas conhecem algo sobre determinados fatos, mas não necessariamente todos os detalhes. 5 Ou seja, escravos alforriados. Um deles certamente era africano (Benguela); nenhuma referência é feita à naturalidade do outro, mas tudo indica que também era africano, pois até a metade do século XIX “preto” era uma denominação geralmente dada a africanos, por oposição a crioulo (nascido no Brasil).

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me exclusivamente aos relatos, não poderia ter reconstituído parte considerável da história de Cambará. No caso mencionado acima, há que se ter cuidado para não confundir a ausência de lembranças com incapacidade de lembrar. Se levarmos em conta que o fundamental para o grupo não é tanto traçar uma ascendência genealógica o mais profunda possível, mas sim rememorar as alianças entre as diversas famílias que foram se estabelecendo na região ao longo dos anos, percebe-se que lembrar os parentes prescinde da rememoração de indivíduos isolados. Assim, saber do nome de um parente por si só não tem tanta importância como saber com quem ele casou e teve filhos, ou quais famílias se uniram através do matrimônio. Outro acréscimo no conhecimento histórico advindo das pesquisas em arquivos foi facilitar minha interlocução com homens e mulheres da Cambará, pois me muni de informações e pistas valiosas para minha investigação. Em algumas ocasiões procurei sanar minhas dúvidas falando sobre meus “achados” em arquivos – e o conteúdo dos documentos –, perguntando-lhes o que sabiam a respeito. Em outros momentos, podia tocar em assuntos sem necessariamente ter ouvido, em campo, nada, ou muito pouco, a respeito. Certa vez, localizei três processos-crimes, transcorridos entre 1916 e 1917, em que o réu era um negro que morava na região, chamado Bida. Quando iniciei a leitura dos processos, tive a nítida impressão de que eu já o conhecia. Consultei algumas entrevistas e percebi que em uma delas Bida tinha sido mencionado por dois senhores de Cambará. Dias depois, fui a campo e perguntei aos mais velhos se já haviam ouvido falar dele. Todos eles sabiam algo sobre Bida e contaram-me algumas histórias

por ele protagonizadas. Novamente foi

possível

aprofundar

o

conhecimento histórico através da complementaridade de fontes; desta vez, como em muitas outras, foi o conhecimento obtido no arquivo que me fez lançar uma nova luz sobre os relatos orais. Este caso incita-me a problematizar algumas questões. A primeira delas diz respeito ao estatuto conferido a este tipo de história na descrição etnográfica. No caso em pauta, os processos e relatos envolvendo Bida guardam uma particular

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importância, levando-se em conta que nos anos imediatos após a abolição diversos conflitos entre negros e brancos tiveram lugar em Cambará6. Nesse sentido, são elementos importantes na reconstituição do contexto da época. O ponto é saber qual a importância dos eventos por ele protagonizados. Ou seja, há um risco de se confundir a influência do etnógrafo na conformação de lembranças com a importância atribuída aos fatos pelos próprios sujeitos da pesquisa. Os sujeitos não evocam um passado acabado; as indagações do etnógrafo são também “provocações” que participam ativamente do “processo de produção da memória” dos agentes, como salientou Arruti (2006:218). Valer-se de informações obtidas em arquivos no campo coloca também um problema ético. Alguns fatos, dado seu caráter traumático e/ou constrangedor, podem ser silenciados pelos sujeitos da pesquisa por uma série de razões. Há que se estar atento para saber em quais momentos é possível obter mais informações, complementar as descrições com novos elementos e preencher lacunas sem causar constrangimentos aos “informantes”. O silêncio é antes um dado fundamental da pesquisa do que um obstáculo para a reconstrução do passado. Os exemplos trazidos ao longo desta seção demonstram a potencialidade do cruzamento de fontes na reconstituição do passado. Durante as diversas pesquisas realizadas em Cambará, empreendidas em diferentes contextos e com objetivos específicos, meu transitar entre o campo e o arquivo descortinou novas potencialidades, abrindo um novo leque de questões e revelando aspectos multifacetados dos fatos. Propor diálogos entre o campo e o arquivo não se resume apenas a uma metodologia de tratamento das fontes, incluso problematizar a prevalência dada ao universo escrito, perguntando pelas assimetrias surgidas a partir daí.

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Bida foi processado por abigeato em um processo e em outros dois por lesão corporal grave. Esfaqueou alguns vizinhos negros certa feita e dois fazendeiros brancos noutra. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Cachoeira. 1916. Cartório do Júri. Processo-crime e outras. Maço 37, Prédio 2, Estante 143G, caixa 178, n°3666; APERS. Caçapava. Cartório 1° Cível e Crime (1916-1917), M 56, E 91, n°1725; APERS. Cac hoeira. Processo-crime e outras. Júri. M 39, caixa 181, n° 3694. 1917. Para mais informações, ve r Mello (2008b:161-187).

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O uso de evidências externas às tradições orais é válido e acresce substância na leitura e interpretação das mesmas7; o problema consiste no tipo de interface que é proposto. A oralidade não deve ser avaliada em face ou em função do escrito, tampouco em razão de suas supostas “carências” em face dele. Como notaram Goldman e Lima (1999), a projeção é um dos mecanismos responsáveis pela confusão entre juízo de relação e atributo do objeto: a transposição para outro domínio de discriminações operadas no dia-a-dia de sociedades letradas e baseadas em sistemas culturais particulares alimenta a partilha entre oral e escrito, implicando em assimetrias expressas em termos como ausência e presença (ausência e presença de cronologia, profundidade histórica, criatividade etc.). Deste modo, as características negativas (ausências e “incapacidades”) normalmente atribuídas à oralidade são antes uma causa do ponto a partir do qual se estabelece a relação (o universo escrito tomado como juízo de relação) do que um atributo dela. Talvez uma das formas de contornar essas assimetrias consista em pensar sobre o arquivo e aquilo que tende a ser excluído dele. ***

Amparando-se em Foucault (2003 [1969]), é possível pensar o arquivo não só como espaço repositório do conhecimento sobre o passado, mas também como local onde ele se produz8. Trata-se, a partir de Foucault, de conceber o arquivo, e os documentos, segundo o contexto de relações de força onde surgiram. Supressões,

ausências, lacunas

e silenciamentos

são fatores

constitutivos do arquivo. Como nota Trouillot (1995:48), as presenças e ausências incorporadas nas fontes ou nos arquivos não são neutras ou naturais; elas são 7

Um bom exemplo disto são os instigantes livros de Price (1983; 1990). Ou, com Derrida (2001:28-9): “O arquivo, como impressão, escritura, prótese ou técnica hipomnésica em geral, não é somente o local de estocagem e de conservação de um conteúdo arquivável passado, que existiria de qualquer jeito e de tal maneira que, sem o arquivo, acreditaríamos ainda que aquilo aconteceu ou teria acontecido. Não, a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento”. 8

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criadas. O poder e o “silenciamento do passado” (Trouillot, 1995) estão na base de qualquer empreendimento historiográfico. Pode-se pensar a formação de grandes repositórios do passado como os arquivos como conseqüência de uma era condenada ao esquecimento, para utilizar uma interessante idéia de Nora (1984). “Há lugares da memória porque não há mais meios de memória” (Nora, 1984:23); esta afirmação, embora um tanto enfática, induz a pensar o arquivo não apenas como um repositório no qual as potencialidades de reconstituir o passado são praticamente inesgotáveis, dada a imensa massa documental que capturou o tempo, mas também o contrário: lugar que sintomaticamente revela a fugacidade da memória numa época cada vez mais acelerada. Num famoso conto, Borges (1996) recorda a história de um personagem dotado de uma rara capacidade de memorização, Funes. Recordações que sozinho teve-as mais que todos os homens, a memória de Funes é um despejadouro de lixos, pois é incapaz de esquecer diferenças, generalizar e abstrair. Com o tempo foi ficando evidente para mim que minha pergunta deveria ser por que lembrar determinado evento (e não outro) é importante para os integrantes de Cambará, e não quais suas limitações mnemônicas. Os rastros do passado respondem antes a um trabalho de seleção e fixação de relevância do que a uma incapacidade. Assim, é importante dar um passo atrás e perguntar por que não se lembra. Como nota Fabian (2007:72), esquecer que outros povos lembram é um mecanismo para deixá-los esquecidos. Ironicamente, continua Fabian, esquecer que outros povos lembram é um risco premente justamente nos estudos de tradições orais que só as levam em conta desde que correspondam ao mesmo tratamento metodológico dado às fontes escritas. A constatação de Fabian é fundamental não só por expor o (recorrente) etnocentrismo, mas principalmente por apontar para um problema metodológico que consiste no pouco preparo em identificar distintas formas de lembrar, na medida em que a rememoração não necessariamente se dá através da verbalização. De acordo com Finnegan (1992),

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os estudos das formas orais não se caracterizam por uma terminologia comum ou claramente delimitada, mas pelo conjunto de questões que atraem o foco investigativo dos pesquisadores. O interesse deve recair, portanto, nas formas de lembrar – que não se limitam apenas à verbalização, incluindo músicas e cantos, imagens visuais, práticas corporais, performances, rituais, etc. A maneira de escapar à avaliação da oralidade em função do escrito parece-me ser inserir os relatos orais no interior das formas de lembrar e do trabalho da memória específicos (não exclusivos, note-se bem) a Cambará. Como demonstrei alhures (Mello, 2008a; 2008b), o “trabalho da memória” (Godoi, 1999) em Cambará está diretamente referido a uma série de elementos que geralmente não são expressos em documentos escritos. Ao traçar as raízes históricas do “paradigma indiciário”, Ginzburg (1989:157-158) salientou a progressiva “desmaterialização do texto”, continuamente depurado de todas as referências sensíveis ligadas à oralidade e à gestualidade. Esse processo, em grande medida tributário de duas cesuras históricas decisivas – a invenção da escrita e da imprensa – reflete, também, uma “escolha cultural”. Quer pensemos nas funções decisivas da entonação da voz, dos gestos ou mesmo dos silêncios nas tradições orais, vemos que o texto escrito relega ao mutismo os aspectos sensíveis que estão na base da produção de documentos. Se aceitarmos o pressuposto de Ong (1998:16) de que a escrita nunca existe sem a oralidade, cabe perguntar qual o estatuto da oralidade quando o historiador se debruça sobre documentos, tentando perceber os diferentes tempos que ficam subsumidos pelo tempo cronológico, para utilizar outra idéia de Fabian (1983). O registro de transmissão de terras revelava não só padrões de acesso a terra, estatísticas fundiárias, a correlação entre capital fundiário e ocupação territorial, mas também uma dramaticidade da existência. Os locais apontados em mapas, medições e registros fundiários eram menos uma localização geográfica e mais um palco onde pessoas construíram suas casas, freqüentaram festas, trabalharam sua lavoura, criaram seus filhos, plantaram árvores. A escritura de compra e venda estava circundada por outras versões, outras visões do fato. Por

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trás de termos regimentais, afiguravam-se meandros ausentes na memória oficial, mas que estavam prementes hoje, no presente cotidiano do grupo. Uma alforria remetia às políticas de liberdade de certo período; mas remetia também a um “causo” protagonizado por seu beneficiário. Muitos documentos tratavam de eventos protagonizados por pessoas que eu conhecia por meio de relatos. Nesses encontros com o arquivo, visualizava os gestos, as expressões, as reações e falas dessas pessoas filtradas pelos narradores do presente. Esses efeitos de conhecimento, transmitidos por homens e mulheres de Cambará, acresceram uma maior sensibilidade para os fatos que lia e ouvia nos encontros com o campo e com o arquivo. A produção de um texto descritivo sobre esses encontros tornou-se o registro de várias historicidades: a dos artefatos que capturam o tempo, a das memórias e lembranças compartilhadas em um momento específico e aquela produzida pela narrativa antropológica9. São esses diferentes encontros e relações de conhecimento que descortinam outras possibilidades na produção de uma narrativa sobre o passado. O passado compartilhado pelos homens e mulheres de Cambará com pesquisadores coloca a possibilidade de trazer à lembrança memórias e narrativas que estão ausentes justamente nos espaços e lugares repositórios do passado, oferecendo uma possibilidade ímpar de pensar distintos tempos e registros da história.

Marcelo Moura Mello é doutorando em Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ. Possui experiência de pesquisa em comunidades remanescentes de quilombos e em arquivos históricos, trabalhando com os seguintes temas: memória, arquivos, relações raciais, etnicidade e escravidão.

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Cunha (2004) oferece reflexões interessantes sobre esses aspectos.

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