\"Visual é só um dos suportes do sonho\": práticas e conhecimentos de vidas com cegueira

June 1, 2017 | Autor: Olivia von der Weid | Categoria: Disability Studies, Blindness
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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia

“Visual é só um dos suportes do sonho”: práticas e conhecimentos de vidas com cegueira

Olivia von der Weid

Rio de Janeiro 2014

“Visual é só um dos suportes do sonho”: práticas e conhecimentos de vidas com cegueira

Olivia von der Weid

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia Cultural.

Orientador: Prof. Dr. Jean-François Véran

Rio de Janeiro 2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

von der Weid, Olivia. “Visual é só um dos suportes do sonho”: práticas e conhecimentos de vidas com cegueira. RJ: PPGSA / IFCS / UFRJ, 2014. Xii, 472f.il.29,7cm Tese (DOUTORADO) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), 2014. Referências Bibliográficas f.459-472. Orientador: Jean-François Véran 1. Cegueira. 2. Corpo. 3. Percepção. 4. Sentido. 5. Imagem. I. Véran, Jean-François (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. “Visual é só um dos suportes do sonho”: práticas e conhecimentos de vidas com cegueira.

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Agradecimentos

Ao meu orientador, Jean-François Véran, pela preciosa sintonia que encontrei na sua orientação. Pela confiança e autonomia que me concedeu, pela clareza na mediação e pela generosidade com que conduziu meus passos nesse caminho. Aos professores: Mirian Goldenberg, minha orientadora querida de graduação e mestrado e presença vital na minha formação; Octavio Bonet, pelos insights ao longo das aulas, pela leitura franca em diferentes momentos de uma troca muito frutífera para mim; Bila Sorj, pelas ótimas sugestões e pelo incentivo quando apresentei o trabalho na Jornada do PPGSA; Luiz Fernando Dias Duarte, pelas indicações bibliográficas e pela riqueza dos seus comentários na ocasião da qualificação. Aos professores membros da banca, pela inspiração e alimento de suas ideias ao meu trabalho, por terem aceito o convite para compor essa banca. Aos professores e colegas do PPGSA, pelo ambiente de troca, aprendizado e reflexão. Às funcionárias do PPGSA, em especial Claudia, Denise e Angela, pela eficiência, boa vontade e pelo carinho. Ao Instituto Benjamin Constant, instituição que acolheu boa parte do trabalho de campo dessa pesquisa, aos profissionais do instituto que partilharam suas práticas e seus conhecimentos. Ao CNPq e à FAPERJ, pelas bolsas de pesquisa, contribuição financeira fundamental nesse processo. Leo Campoy, amizade sincera e reciprocidade em territórios que se cruzam. Pela leitura cuidadosa e o trabalho de revisão das páginas que se seguem. Bianca Arruda e Felipe Agostini, com quem tenho o privilégio de dividir as dores e os sabores dessa e de outras passagens, trilhas que seguimos juntos e em paralelo. Felipe Castelo Branco, futuro não realizado que se torna passado. Presença afetiva essencial partilhada ao longo. Clara de Andrade, pelo presente que é a sua amizade e parceria nos caminhos vitais que juntas percorremos. Por ter agregado a experiência e a força do seu trabalho, alimentos essenciais ao fluxo dessa pesquisa. Igor de Vetyemy, Arno Smedinga, Fernanda Miranda, João Brasil, Nara Ferreira, Jéter Ramos, Ludmila Simões, Maria Souto, João Gabriel Souto, Gustavo Guenzburger, Tiago Lessa Bastos, Julia Franca, Marisol Goia e Luna Yalom, pela força que encontro na amizade de cada um de vocês. Por nunca termos nos perdido de vista. Marina Sodré, minha leitora-cúmplice mais entusiasmada, com quem sempre compartilhei meus rastros, no papel e na vida. Ana Lu Palma, por ter guiado meus primeiros passos em campo e por ter aberto as portas do seu trabalho e da sua vida para mim. A você, meu carinho e admiração. Paulo Rubens, pela sensibilidade de um olhar que tenho o privilegio de receber, nas fotos e na vida.

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A nova geração de crianças que encantam minha existência e a seus pais que os trouxeram ao mundo: Liz, Gael, Benjamin, Inácio, Miguel, Vitor, Iara, Tomás, Marina, Luisa, Elias, Paco, Zé, Caio, Letícia. À minha mãe, Nahyda, de quem herdei o envolvimento e a militância pelas causas sociais. Pela quentura do abrigo nas horas que mais precisei. Ao meu pai, Jean Pierre, de quem em mim reconheço o espírito investigativo e a liberdade das alturas. Por ter me proporcionado as coordenadas 22o22‟22,7‟‟S 43o38‟14,1‟‟O, ponto de força, onde encontrei a paz para escrever boa parte do que se segue. À minha irmã, Aline, pelo acolhimento e pela cumplicidade que temos em nossa irmandade. Pela alegria que me deu de ser tia ao trazer a luz de Caio em nossas vidas. Ao Cadu, presente no princípio e no fim, agora construímos nosso meio. Amor que faz da realidade sonhada o sonho vivido. Em memória de minha avó Regina e meu tio Bernard, que durante esse tempo nos deixaram. Minha profunda admiração pela obra de suas vidas e a saudade dos que ficam. A todas as pessoas que tive o prazer de conhecer ao longo e que tanto contribuíram para esse processo - no Instituto Benjamin Constant, na Oficina de Arte Inclusiva, na oficina Criatividade, Teatro e Imaginação, no projeto Imagens Vivas. A todas as pessoas cegas que me abriram suas vidas e me conduziram nas questões que aqui se seguem, me ajudando a fazer e a moldar esse corpo. Pela paciência e pelo interesse que tiveram em mostrar, dizer, levar, contar, tocar, lembrar, expor, traduzir, trocar. A vocês, meu arrebatamento, meu respeito e meu agradecimento mais profundo.

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Epígrafe

Dentro da sua cegueira, compreendeu que sempre vira com o corpo inteiro. Via com os pés, que lhe indicavam as mudanças de solo; via com as mãos, com a face; via por todos os poros do seu corpo e continuava vendo, todo um espetáculo interior que habitava o seu íntimo, a sua mente, e dialogava com o mundo exterior de um modo próprio, o seu modo de "ver". Percebeu como a experiência da cegueira acha-se ela própria "imunda" de visão, e as tantas vezes em que tivera vergonha disso, as tantas vezes em que negaceara essa visão olfativa, auditiva, todos os "órgãos de ver", espalhados por seu corpo a fora. (Joana Belarmino de Sousa, 2000)

Quem confunde o sonho com o visual confunde o livro com o papel em que está escrito. Visual é só um dos suportes do sonho. (Dora) vi

Resumo

A pesquisa elaborada nessa tese tem o intuito principal de dar passagem a percepções de mundo de pessoas cegas. Tomando o corpo como caminho e como lugar existencial da cultura, procura-se aproximar dos conhecimentos incorporados de pessoas cegas a partir de suas ações, seus deslocamentos e suas práticas. A análise considera as condições de seu estar no mundo tanto por meio de um enquadramento teórico-conceitual em que a cegueira pode ser apreendida, quanto pela descrição de exercícios direcionados da reabilitação que, ao guiar a atenção, ajudam a moldar e a desenvolver as capacidades sensitivas de uma corporalidade que não se constitui pela visualidade do mundo. São abordadas, ainda, as práticas cotidianas, as interações sociais, os hábitos, os deslocamentos e as trajetórias de vidas socialmente marcadas pela diferença. Chegar perto da condição existencial da cegueira e de suas habilidades incorporadas - formas de saber-fazer - nos leva, finalmente, a questionar a centralidade da visão como princípio organizador das experiências. Essa tese resulta de um mergulho no mundo possível expresso na corporalidade e nos saberes desenvolvidos por pessoas cegas.

Palavras chave: cegueira, corpo, percepção, sentido, imagem.

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Résumé La recherche élaborée dans cette thèse a comme objectif principal d´ouvrir le passage aux perceptions du monde de personnes aveugles. Prenant le corps comme chemin et comme lieu existentiel de la culture, le travail s´est approché des connaissances incorporées de personnes aveugles à partir de leurs actions, leurs déplacements et leurs pratiques. L´analyse s´est attachée à mettre en évidence les conditions de leur mode d´être dans le monde, aussi bien par un encadrement théorico-conceptuel dans lequel la cécité a pu être appréhendée, que par la description des exercices de réhabilitation qui, en guidant l´attention, aident à la formation et au développement des capacités sensitives d´une corporalité qui ne se constitue pas par la visualité du monde. Sont encore abordées les pratiques quotidiennes, les interactions sociales, les habitudes, les déplacements et les trajectoires de vies socialement marquées par la différence. S´approcher de la condition existentielle de la cécité et de ses habilités incorporées formes de savoir-faire - nous conduit enfin à questionner la centralité de la vision comme principe organisateur des expériences. Cette thèse résulte d´une plongée dans le monde possible tel qu´il est exprimé dans la corporalité et les savoirs développés par les personnes aveugles.

Mots-clés: cécité, aveugle, corps, perception, sens, image.

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Lista de siglas e abreviaturas

AVD

Atividades da Vida Diária

BPC

Benefício da Prestação Continuada

CIF

Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde

CID-10

10a revisão da Classificação Internacional de Doenças

HB

Habilidades Básicas

IBC

Instituto Benjamin Constant

IBDD

Instituto Brasileiro dos Direitos da pessoa com Deficiência

LOAS

Lei Orgânica da Assistência Social

MEC

Ministério da Educação

NUCAPE

Núcleo de Capacitação e Empregabilidade do IBC

OMS

Organização Mundial de Saúde

RAIS

Relação Anual de Informações Sociais

SENAC

Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

SUS

Sistema Único de Saúde

TO

Terapeuta Ocupacional

UNESCO

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UNICEF

Fundo das Nações Unidas para Infância

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................... 1 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.

A polifonia do objeto ................................................................................................ 2 Localizando a cegueira como um tema de pesquisa ............................................... 10 Primeiros passos em direção à cegueira: um relato etnográfico ............................. 12 Momentos no escuro ............................................................................................... 17 Por uma abordagem polifônica ............................................................................... 23 Descrição metodológica ......................................................................................... 28 Provincializar a visão ............................................................................................. 36 Estrutura da tese ..................................................................................................... 39

1. Corpo e cegueira: modos de perceber .................................................................... 46 1.1. Definindo deficiência ............................................................................................. 47 1.1.1 O modelo médico .................................................................................................. 48 1.1.2 O modelo social .................................................................................................... 50 1.1.3 Indo além: críticas feministas e pós-modernas ..................................................... 52 1.1.4 O modelo biopsicossocial da CIF ......................................................................... 54 1.1.5 Corpo e deficiência ............................................................................................... 56 1.1.6 A deficiência e a cegueira em números: marcas da desigualdade ........................ 58 1.2. Significados e efeitos da cegueira: uma aproximação interdisciplinar ................... 62 1.2.1 Os olhos de quem não vê: a oftalmologia e a definição de cegueira .................... 62 1.2.2 Cegueira a partir do pressuposto do cognitivismo ................................................ 70 1.2.3 Plasticidade cerebral ............................................................................................. 78 1.3. Significados da cegueira nos manuais de educação ............................................... 82 1.3.1 Práticas de desenvolvimento e aprendizagem de crianças cegas e sua aproximação com uma concepção da cognição incorporada .............................................................. 95 1.3.2 Imitação e mediação no desenvolvimento cognitivo de crianças cegas ............. 103 2. Habilitar corpos e pessoas...................................................................................... 110 2.1 A reabilitação ......................................................................................................... 111 2.1.1 A entrada na reabilitação do IBC ....................................................................... 113 2.1.2 O estímulo aos outros sentidos ........................................................................... 117 2.1.3 Universo tátil: a mediação das coisas e dos materiais ........................................ 123 2.2 Formas de saber-fazer: habilidades incorporadas nas práticas cotidianas ............. 130 2.2.1 Técnicas desenvolvidas em práticas diárias ....................................................... 140 2.3 As práticas da cegueira em um paradigma indiciário ............................................ 142 2.3.1 Velocidade, tempo e repetição ............................................................................ 144 2.3.2 Organização e ambiente ...................................................................................... 149 2.4 O corpo estendido de cegos ................................................................................... 153 2.4.1 Marcadores ......................................................................................................... 154 2.4.2 Óculos ................................................................................................................. 157

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2.4.3 Bengala: objeto-corpo perceptivo ....................................................................... 159 2.4.4 Substitutos sensoriais ou suplantação perceptiva? ............................................. 164 2.5 Considerações finais do capítulo ........................................................................... 167 3. Corpo e linguagem: expressão e comunicação em relações de interação ......... 170 3.1 Possibilidades comunicativas áudio-táteis ............................................................. 172 3.1.1 Oralização ........................................................................................................... 172 3.1.2 Braille, a escrita em relevo ................................................................................. 175 3.1.3 Imagens táteis em relevo .................................................................................... 177 3.1.4 A falta de um vocabulário tátil ........................................................................... 180 3.1.5 Braille e leitura em áudio: possibilidades e implicações desse debate ............... 181 3.2 A comunicação nas situações de interação ............................................................ 188 3.2.1 Breve instantâneo etnográfico de uma situação de interação ............................. 188 3.2.2 Horizonte auditivo .............................................................................................. 190 3.2.3 Ver e não ser vista, uma experiência comunicativa ............................................ 193 3.2.4 Ruídos de comunicação ...................................................................................... 194 3.2.5 Convenções sociais na interação: exercícios e estratégias ................................. 198 3.3 Corpo expressivo ................................................................................................... 200 3.3.1 “A palavra vence a cegueira”? ............................................................................ 200 3.3.2 Teatro e expressão corporal ................................................................................ 206 3.3.3 Sexualidade, gênero e relacionamentos amorosos ............................................. 211 3.4 Para além dos cinco sentidos - percepções que comunicam ................................. 224 4. Relações espaciais e deslocamento em ambientes urbanos ................................ 234 4.1 Deslocamento, orientação e mobilidade ................................................................ 238 4.1.1 Corpo como localização do ser no mundo .......................................................... 241 4.1.2 O “som do muro”: a ecolocalização ou percepção de obstáculos ...................... 243 4.1.3 Perder-se ............................................................................................................ 244 4.1.4 Observação de dois atendimentos em OM ......................................................... 245 4.1.5 Estratégias de locomoção e reconhecimento espacial ........................................ 246 4.1.6 Percorrer o ambiente para percebê-lo: rotas, linhas e mapas ............................. 251 4.2 Apreensão e apropriação social do espaço urbano ................................................ 257 4.2.1 A cidade revisitada: pontos turísticos e áreas de lazer do Rio de Janeiro na percepção de pessoas cegas ......................................................................................... 257 4.2.2 Mobilidade em espaços urbanos: o acesso à cidade ........................................... 262 4.2.3 Infraestrutura urbana e deslocamento ................................................................. 266 4.2.4 Transporte público .............................................................................................. 272 4.3 O imperativo da ajuda ............................................................................................ 274 4.3.1 Formas e técnicas de ajuda ................................................................................. 275 4.3.2 Proximidade corporal ......................................................................................... 277 4.3.3 Quando a ajuda atravessa: equívocos ou imposições ......................................... 279 4.3.4 Dois corpos e um par de olhos em deslocamento, coletivo humano urbano ...... 282 4.3.5 A ajuda como vetor de navegação em territórios urbanos .................................. 284

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4.4 Materialidades do mundo e simbolização ............................................................. 291 5. Vidas marcadas: trajetórias sociais da cegueira ................................................. 296 5.1 Narrativas culturais sobre a cegueira ..................................................................... 298 5.2 A cegueira nas políticas sociais para deficientes ................................................... 303 5.2.1 Educação inclusiva: algumas considerações ...................................................... 304 5.2.2 Independência financeira e trabalho ................................................................... 312 5.3 A diferença da cegueira nas relações de interação ................................................ 325 5.3.1 Visibilidade da cegueira ..................................................................................... 328 5.3.2 Invisibilidade da pessoa ...................................................................................... 333 5.3.3 Cego, pessoa-objeto ............................................................................................ 335 5.3.4 Diferença e reações dos outros ........................................................................... 339 5.3.5 A cegueira como angústia corporal de quem vê ................................................. 341 5.3.6 Quando a diferença não é déficit ........................................................................ 345 5.3.7 Passagens mais difíceis de atravessar ................................................................. 346 5.3.8 Multiplicando e distribuindo (d)eficiências ........................................................ 350 5.4 Processos de produção de identidade e diferença na cegueira .............................. 355 5.4.1 Novas redes de sociabilidade .............................................................................. 364 5.4.2 Pontos de convergência ...................................................................................... 367 5.4.3 Bengala, objeto-pessoa ....................................................................................... 373 5.4.4 A diferença da cegueira ...................................................................................... 375 5.4.5 Subvertendo a normalidade ................................................................................ 381 6. “Visual é só um dos suportes do sonho”: produção de imagens na cegueira ... 387 6.1 Visão do olho......................................................................................................... 388 6.2 Entre ver e não ver: sinais de fronteira .................................................................. 394 6.2.1 Sinestesia e dissonância tato/cor ......................................................................... 396 6.3 Visões de cegos ..................................................................................................... 397 6.3.1 Terceiro olho ....................................................................................................... 401 6.4 Imagens e representações na cegueira ................................................................... 402 6.4.1 Memória visual, fabricação de imagens e sonhos .............................................. 407 6.4.2 Os olhos de quem vê ........................................................................................... 414 6.4.3 Imagem elocutória .............................................................................................. 421 6.4.4 Imagem como substância .................................................................................... 427 6.4.5 A suspensão do mundo das aparências ............................................................... 432 Considerações finais .................................................................................................. 439 Anexos ......................................................................................................................... 450 Referências bibliográficas ........................................................................................... 459

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Introdução Esta pesquisa tem por objetivo compreender a particularidade da percepção de mundo de pessoas cegas. Quais as práticas, as estratégias ou os caminhos que moldam sua forma de estar no mundo? Como a realidade é percebida, vivenciada e representada por aqueles que nunca tiveram ou perderam a visão? Busco entender as formas de perceber de pessoas cegas partindo tanto de suas representações quanto de suas práticas. Considerando que a percepção se constrói a partir de um estar no mundo, o que envolve igualmente o corpo e a cultura, as condições desse estar precisam ser consideradas para um entendimento da percepção que se cria do mundo. Procuro relacionar a diferença que se estabelece a partir da ausência da visão com os efeitos que essa diferença produz no corpo, na apreensão do ambiente, nas relações que se estabelece com o outro, no lugar que se ocupa socialmente, nas formas de significação ou imaginário. Ainda que a experiência de mundo do outro seja inalcançável, busca-se compreender as categorias, as condições e os mecanismos que informam sua percepção. Meu objetivo nesta tese é, portanto, me aproximar do mundo possível que se expressa na vida, nas práticas, nas ações e nas percepções de pessoas cegas. Um segundo intento, que não aparece depois mas caminha ao lado, é resgatar o que as experiências de vidas com cegueira podem nos dizer sobre a realidade, para além de seu aspecto visual. Esse último ponto foi também motor da tese – é de um incômodo com o visual que a cegueira aparece como fonte de questionamento. Ao pensar sobre a percepção de mundo de pessoas cegas, me deparo com a pergunta: o que significa ser cego? A resposta simples que nos arremete: “cego é aquele que não vê”. Uma pausa reflexiva nessa resposta desvela uma tripla dificuldade. A definição de algo por uma negação - ser a partir do que não se é; a comparação que se coloca entre dois polos opostos - o que vê e o que não vê; o pressuposto de que o outro lado seja uniforme, dado ou inato. O que a cegueira significa não está dito nessa frase. O imediato do que se diz é aquilo que não se é. Que outras coisas poderiam explicar a cegueira que não a negação da visão? Seria possível definir a cegueira pelo que ela é ou sua existência estaria inescapavelmente marcada pela comparação e a falta, por algo que não se tem ou se deixou de ter? Dada a inevitabilidade da relação dialética visão-cegueira, em que os dois polos se definem por comparação e contraste, ao buscar compreender a cegueira procuro também problematizar a visão. Esse é um movimento que de certa forma estabeleço na 1

tese e que consiste em desestabilizar o estereótipo no sentido etimológico da palavra – a imagem sólida. Problematizar a visão como centro regulador da experiência e das relações. Por isso, no último capítulo, pretendo fechar o ciclo retornando a esse ponto inicial, em que a visão, enquanto uma das capacidades de produção de imagens, é repensada a partir da cegueira. Trata-se de realizar uma experimentação com o mundo de pessoas cegas e, portanto, com o mundo de pessoas que enxergam. Todos os elementos da tese estão constituídos por essa dupla entrada fundamental – como se constrói a percepção de mundo de pessoas cegas, por um lado, e o que essa percepção tem a nos dizer sobre formas mais “convencionais” de perceber e estar no mundo, por outro.

1. A polifonia do objeto

Com Morgan, Boas e, especialmente, Malinowski, no início do século XX, a metodologia de pesquisa em antropologia sofre significativa transformação e o trabalho de campo passa a orientar as pesquisas antropológicas. Entende-se por trabalho de campo as técnicas inicialmente desenvolvidas por esses fundadores da disciplina, ancoradas na ideia de que as sociedades estudadas deveriam ser observadas diretamente. A etapa da observação, posteriormente desenvolvida por Malinowski como a metodologia da observação participante, consistia em um longo período passado pelo antropólogo na sociedade que estava sendo estudada. O pesquisador deveria fazer um mergulho na cultura nativa, procurando ao máximo, por um período de tempo determinado, viver, falar, pensar e sentir como um nativo, deixando-se impregnar, portanto, pela mentalidade nativa. O objetivo do antropólogo com o trabalho de campo, entretanto, nunca foi o de tornar-se nativo, mas colher o máximo de informações contextualizadas que dessem significado aos costumes, às relações, aos hábitos de sociedades ditas “primitivas”. Passar um tempo nessas sociedades, viver como eles vivem, não para se tornar índio, mas para compreender como funciona a vida dentro de sua sociedade, as regras, os valores, os saberes, as formas de fazer. E com isso, compreendendo o “nativo”, chegar a compreender melhor a si mesmo. No início do século XX também surge nos Estados Unidos outra escola que influenciará os métodos e os estudos da cultura e das sociedades, a Escola de Chicago e o interacionismo simbólico (Goldenberg, 2000). As pesquisas realizadas nessa escola (Robert Park, Erving Goffman, Howard Becker) enfatizam a natureza simbólica da vida 2

social, priorizando os pontos de vistas dos indivíduos e a sua concepção do mundo social. Acreditava-se que o meio mais adequado para captar a realidade eram aqueles que propiciavam ao pesquisador ver o mundo através dos olhos dos pesquisados. A Escola de Chicago, desenvolvendo o trabalho de campo na cidade, tinha uma forte preocupação com a resolução de problemas sociais concretos, como a criminalidade, o desemprego ou a situação social dos imigrantes. Tanto a pesquisa de um etnólogo sobre determinado povo indígena quanto a de um antropólogo urbano que pesquisa determinado grupo social, pressupõem o seu deslocamento até a “tribo”. Viver como eles vivem. Participar das atividades cotidianas para tentar compreender os sentidos que atribuem ao mundo, aos objetos, às ações e às relações sociais que desenvolvem. O breve passeio por dois métodos fundantes da pesquisa qualitativa na antropologia tem como intuito apontar para as condições e os limites de acesso ao objeto nesta pesquisa. Trago tanto a experiência de uma sociedade distante quanto a de pesquisa em sociedades complexas justamente pela sua proximidade e ao mesmo tempo afastamento do que constituiu a tentativa de pesquisar qualitativamente a experiência de mundo de pessoas cegas. O encontro entre “eu” e “outro” e a relação que se estabelece a partir dessa diferença - a temática da alteridade - é um dos pontos chaves para a antropologia enquanto ciência ou produção de conhecimento. Considerando a temática da alteridade – as relações que se estabelece com o “outro”, distante ou próximo - como lidar com a diferença que a cegueira institui? Tomar a cegueira como objeto de estudo é fazer uma antropologia do “próximo” ou uma antropologia dos “outros”? Uma pesquisa sobre a percepção de mundo de pessoas cegas não é tanto pesquisar um grupo social urbano que se delimita por condições de proximidade – estilo de vida, forma de compreender o mundo, hábitos e costumes, classe social, local de habitação ou locais que frequentam, por exemplo, “os imigrantes de determinado bairro”, “os músicos de jazz”, “praticantes de yoga”, “adeptos do swing”. Ao mesmo tempo não é percorrer uma distância para viver por um período determinado em uma sociedade que se delimita tanto espacial quanto culturalmente – diversas tribos indígenas, população ribeirinha, quilombolas – viver como eles vivem, fazer as coisas como eles fazem, e depois retornar. Não é nenhuma das duas coisas, mas, por outro lado, tem um pouco das duas. São pessoas que estão na cidade, que vivem as possibilidades e as impossibilidades que a vida urbana de uma sociedade complexa lhes impõe, com locais de encontro significativos como as instituições especializadas ou de 3

reabilitação. Ao mesmo tempo em que participam da mesma vida social que eu ou você participamos e percorrem até os mesmos trajetos, a percebem de outra maneira, os marcos significativos dos seus caminhos são outros, as paisagens são outras. A cegueira por si só não constitui um grupo cultural específico. Os limites territoriais não se colocam, tanto por não ser uma aldeia distante, quanto por não compor um grupo social urbano delimitado por barreiras espaciais, simbólicas ou mesmo socioeconômicas. A experiência do estigma, as projeções que a sociedade deposita em pessoas que são cegas, certamente as une. Mas nem por isso elas têm o mesmo estilo de vida, os mesmos hábitos, frequentam os mesmos lugares ou pensam o mundo de forma parecida. O que as aproxima é uma condição corporal comum, o fato de não enxergarem, que implica em significações, formas de perceber, pedagogias, técnicas, estratégias particulares para se viver em um mundo que majoritariamente enxerga. O ponto em comum entre as pessoas cegas e que as torna foco de interesse para a pesquisa é o compartilhamento de uma condição corporal específica, que afeta seus modos de estar no mundo. Essa foi a primeira dificuldade que enfrentei diante do meu objeto de pesquisa – como delimitá-lo? Deveria procurar uma circunscrição espacial, concentrar-me apenas no Instituto Benjamin Constant (IBC)? Por mais que boa parte da pesquisa de campo tenha sido efetivamente realizada neste local ou com pessoas que em algum momento de suas vidas passaram por ali, cheguei até lá em um momento posterior e a proposta nunca foi a de compreender as formas de institucionalização da cegueira. Moser (2005) considera que deficiente não é algo que alguém é, mas algo que alguém se torna. Para a autora, formas específicas de ordenamento da deficiência estão atuando e são feitas em e através de sujeitos e corpos: assistências técnicas e ambientes fisicamente adaptados, sistemas e práticas de saúde, documentos políticos e regras de previdência social, diretrizes de reabilitação e associações de pessoas com deficiência, entre outros. Todos esses locais estão ao mesmo tempo sendo ordenados e contribuindo para ordenar a deficiência. No horizonte do que significa ser cego atravessam definições e práticas médicas, pedagógicas, sociais, institucionais, entre outras. Outra dificuldade de delimitação era, portanto, de caráter epistemológico. Como “enquadrar” o significado da cegueira? É uma condição social? Uma condição física? Quais os efeitos dessa condição para o aprendizado e para as formas de estar no mundo de quem não enxerga? Como circunscrever o meu objeto de pesquisa a uma determinada área disciplinar e não a outras? 4

Nesta análise não considero a cegueira como um dado da natureza ou como algo que funda qualquer unicidade de um grupo de pessoas que não enxergam. As perguntas levantadas acima colocam uma dupla aproximação em relação ao objeto de estudo, se pensarmos em seu caráter multidisciplinar. Retomando Foucault (2013), podemos nos aproximar da cegueira como efeito de configurações discursivas de saber-poder, onde participam uma complexa série de agentes. O significado da cegueira não pode ser considerado como algo dado antes, depois ou para além do discurso, mas sim como efeito de discursos históricos que moldam determinados sujeitos. Seguindo uma linha foucaultiana e mantendo uma postura crítica, a análise se centraria na desconstrução dos discursos biomédicos, apontando os dispositivos de poder, a regularização de comportamentos e a disciplinarização de corpos cegos. Sem desconsiderar o caráter construído de qualquer definição, procuro também considerar a multidisciplinaridade da questão da cegueira a partir de uma perspectiva relacional com as outras ciências. Nas definições de cegueira apresentadas pela oftalmologia, neurociência ou ciências cognitivas, busco um tipo de entendimento sobre o objeto, para além da desconstrução foucaultiana. O status das outras ciências é também de aprendizado, considerando que o conhecimento produzido por elas, certamente situado histórica e socialmente e produtor de normatividades, também possui positividades, materialidades e efeitos que permitem compreender como as realidades da cegueira são vividas pelas pessoas cegas. Podemos pensar que a cegueira é um objeto de estudo que se encontra entre-saberes (Bonet e Tavares, 2007). Ela se constrói no espaço entre os discursos, entre os corpos, entre as representações e as vivências dos corpos. Pensando com Bonet e Tavares, levar em conta esse “entre” é aceitar que fronteiras possam ser difusas e que a falta de uma segurança disciplinar também engendra possibilidades criativas. As perguntas que faço encontram consonância com as preocupações de uma ontologia prática – de que maneira a cegueira vem a ser no mundo? Como as realidades da cegueira são construídas? Que contornos a cegueira adquire nas práticas? Pensando a partir da abordagem de Mol (2002) a respeito da arteriosclerose, se quisermos entender a cegueira de forma abrangente, o conhecimento biomédico a respeito de suas causas e seus efeitos não parece suficiente. É preciso reconsiderar o caráter das relações entre as ciências. A forma como as pessoas vivem com a cegueira também deve fazer parte. Para a autora, o conhecimento trata principalmente de uma coparticipação em uma realidade. Não seria uma questão de referência, mas de 5

manipulação. Mol (2007) considera que a realidade é tanto feita - localizada histórica, cultural e materialmente - como múltipla. Tratar a realidade como múltipla envolve outro conjunto de metáforas. Não as de perspectiva e construção, mas sim as de intervenção e performance (enact). Ao desenvolver um estudo sobre a medicina e a arteriosclerose, a autora busca compreender como as diferentes perspectivas sobre o corpo ou a doença são feitas nas práticas, de que maneira são coordenadas. A inquietação de Mol ecoa com a de autores como John Law ou Bruno Latour, que procuram pensar a ontologia como fenômeno empírico, como acontecimento. Uma ontologia prática trata o processo de conhecer não mais como um modo de representar o (des)conhecido, mas de interagir com ele. Um modo de criar, antes de um modo de contemplar, de refletir ou de comunicar. A tarefa do conhecimento deixa de ser a de unificar o diverso sob a representação e passa a ser a de multiplicar a quantidade de agências que povoam o mundo. Recusa-se a ideia de que há uma única realidade e muitas perspectivas (ou representações) sobre ela. O uso do termo ontologia na teoria desses autores é uma tentativa de levar a sério os outros em sua diferença. Ontologias não supõem uma coerência interna, mas a realização de mundos que comportam discrepâncias, tensões e distintas formas de associação (Viveiros de Castro, 2007). Repercutindo as preocupações de uma ontologia prática, procura-se abordar a cegueira a partir da multiplicidade de sua realidade, a fim de compreender como essas versões são coordenadas nas práticas. Múltiplas cegueiras são acionadas – nos termos de Mol, de difícil tradução, enacted - em diferentes práticas: no diagnóstico médico oftalmológico, em artigos das ciências cognitivas e da neurociência, em manuais sobre práticas educacionais e pedagógicas para crianças cegas, em atendimentos em centros de reabilitação realizados por profissionais especializados (psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, entre outros), na vida cotidiana de pessoas cegas. Buscase considerar as práticas e as conexões entre humanos e não humanos, saberes e poderes por meio das quais a cegueira é articulada. Diante da compreensão da cegueira como um objeto atravessado por definições biomédicas e sociais, estebeleço um diálogo nessa tese com o trabalho de autores que se propõem repensar a oposição entre natureza e cultura, problematizando as marcações que definem os dois lados como entidades distintas e separadas. São autores que procuram criar novos vocabulários capazes de rearticular a relação em termos não binários. Tanto a definição de cegueira quanto a própria ideia de percepção já evocam essa rearticulação. 6

Qualificando a percepção como um fenômeno a ser compreendido no contexto da ação e da incorporação, como uma palavra que indica uma direção ao invés de uma função primitiva, um dos referenciais teóricos é a compreensão fenomenológica de corpo de Merleau-Ponty (1971), principalmente pela sua influência na obra de autores mais contemporâneos como Pierre Bourdieu, Thomas Csordas e Tim Ingold. Para Merleau-Ponty (1971) o corpo, antes de ser objeto, é um modo próprio de ser-no-mundo. Numa abordagem fenomenológica, os sentidos não se encontram nem na mente nem no objeto, nem no externo, nem no interno, nem na natureza nem na cultura, mas emergem da relação que se estabelece entre eles. Relação que é mediada primordialmente pelo corpo. O conhecimento que se busca decifrar aqui é em grande medida revelado na experiência corpórea do ser no mundo (Merleau-Ponty, 1971). Evoco a noção fenomenológica de corporeidade de Csordas (1994, 2008) para explicitar a aproximação que faço aos conceitos de percepção e de corpo. Csordas (1994) desenvolve um paradigma da corporeidade que considera a experiência corporificada como o ponto de partida para analisar a participação humana em um mundo cultural. O autor distingue entre o corpo como uma entidade biológica e material e a corporeidade como um campo metodológico indeterminado, que se define pela experiência perceptiva e pelos modos de presença e engajamento no mundo. Evocar a corporeidade como um campo metodológico significa dizer que ela constitui a arena em que se realiza um modo de investigação ou um processo de fazer algo. Dentro desse campo, o locus de pesquisa está nos processos de percepção, experiência, presença, no engajamento do self. A aproximação fenomenológica, embora complementar, é distinta de uma aproximação semiótica com enfoque na linguagem, na representação e no modelo da cultura como um conjunto de textos. Csordas considera que o paradigma da textualidade por muito tempo dominou a antropologia e, de forma geral, a teoria cultural, mas acredita que a semiótica e a fenomenologia são formas complementares de se pensar sobre a cultura e que as duas podem ser aplicadas aos dados de pesquisa. Em um estudo sobre a percepção e o engajamento sensório, um recorte que restringisse a análise à linguagem ou à experiência não faria justiça aos dados, e portanto, procuro fundamentar a pesquisa nas duas abordagens, assim como o fazem outros autores que têm o corpo ou a percepção sensorial como foco de análise (Stoller, 1989, Geurts, 2002). Csordas (2008) propõe mudarmos da compreensão da percepção como um processo corporal para a noção de “modos somáticos de atenção”, que podem ser 7

identificados em uma variedade de práticas culturais. O conceito é utilizado pelo autor para se referir aos processos nos quais consideramos e objetificamos nossos corpos. São maneiras culturalmente elaboradas de estar atento ao e com o corpo em ambientes que incluem a presença corporificada de outros. A atenção envolve um engajamento sensório e também um objeto, portanto a definição precisa ser as duas coisas. Estar atento a uma sensação corpórea não é, para Csordas, estar atento ao corpo como um objeto isolado, mas estar atento à situação do corpo no mundo. Os objetivos que proponho na pesquisa buscam avançar na compreensão do papel desempenhado pela percepção sensorial no desenvolvimento de formas de estar no mundo. Uma pesquisa sobre a percepção de mundo de pessoas cegas pode ser entendida como parte de um projeto maior em antropologia proposto por Csordas (1994, 2008), que procura fazer uma aproximação metodológica e analítica do corpo não como um objeto a ser estudado em relação com a cultura, mas antes considerar o corpo como sujeito da cultura ou como o lugar existencial da cultura. O conceito fenomenológico de corporeidade e a noção de modos somáticos de atenção desenvolvidos pelo autor são ferramentas analíticas importantes para compreender a percepção de pessoas cegas, a partir das sensações corpóreas desses corpos no mundo. Ingold (1990) coloca como um dos principais desafios para a antropologia a superação da divisão entre corpo e mente, natureza e cultura. Propõe uma concepção do ser humano como um organismo em que estão mutuamente envolvidos a cultura e a natureza que, num movimento de sinergia dentro de um processo contínuo de vida, dão lugar à ação e à consciência. Para o autor, todo organismo é um sistema aberto, gerado dentro de um campo relacional que atravessa a interface com o seu ambiente. É na articulação do organismo com o ambiente por meio do desenvolvimento de habilidades práticas que Ingold encontra a indissociabilidade entre mente e corpo. O esforço de pensar os seres humanos e o seu lugar no mundo a partir dos seus processos de desenvolvimento e das propriedades dinâmicas de campos relacionais (com outros seres humanos e com o ambiente) aparece em diversos momentos desta tese. Quando busco entender o papel da percepção e da ação no processo de desenvolvimento cognitivo e de aprendizagem de pessoas cegas, por exemplo. Ou quando procuro analisar o papel das práticas e dos materiais no processo de reabilitação de pessoas que ficam cegas. Posso dizer que a noção de pessoa subentendida aqui se aproxima da noção de pessoa-organismo como um processo contínuo de tornar-se, como um focus de agenciamento e experiência em um campo social relacional, proposta por Ingold (1991), 8

embora não tenha sido uma reflexão teórica que pude aprofundar nesse momento. Deixo-a como intuição ou sugestão para futuros desdobramentos. Ao falar da percepção e do estar no mundo de pessoas cegas procuro captar uma lógica que, nos termos de Bourdieu (2011), se efetua diretamente na ginástica corporal e nas práticas. Trato de coisas sensíveis, domínios práticos, disposições que aparecem em ato, na relação com uma situação. Generalidades agidas e não necessariamente representadas, que se engendram no fato de se “agir de forma semelhante em circunstâncias semelhantes” (Bourdieu, 2011: 148). A percepção é uma noção que pode ser pensada como ontologicamente anterior a qualquer diferenciação possível entre os domínios da natureza ou da cultura ou entre a realidade e sua representação linguística-cultural. Corpos físicos, percepções, sensações ou os produtos de nossa imaginação compartilham a mesma origem e a mesma materialidade, como sugere McLean (2009). Pensar a percepção nesses termos leva não só a reimaginar a relação entre natureza e cultura, mas também a repensar a própria problemática da representação, como aprofundaremos no capítulo final. Como lembra Bourdieu (2011), o logicismo inerente ao ponto de vista objetivista converte uma sucessão prática em sucessão representada, uma ação orientada em um espaço objetivamente constituído como estrutura de exigências – coisas “para fazer” – em uma operação reversível, efetuada em um espaço contínuo e homogêneo. Esse seria, para o autor, o “demônio da analogia”, uma construção erudita ou uma explicação reflexiva que submete os princípios da lógica prática a uma mudança de natureza. Sem querer impor uma coerência ou uma forma intencionalmente sistematizada, procuro abordar os modos de significação da cegueira abrindo espaço para a lógica intrinsecamente ambígua e para a indeterminação das práticas de que nos fala Bourdieu. Ao invés de explicar, me proponho a entrar em diálogo com as afirmações ontológicas e metafísicas que as pessoas cegas aqui colocam. Um engajamento com os “informantes” como interlocutores intelectuais completamente desenvolvidos e potenciais coprodutores. Não se trata apenas de modos alternativos de organização social humana, mas de conceptualizações alternativas do universo físico e das várias entidades que ele compreende. Encontros que promovem uma renegociação dos parâmetros do real e, potencialmente, sua expansão. Não é uma questão de relativismo cultural, mas de práticas criativas engajadas, envolvendo tanto a exploração empírica quanto a composição experimental de uma realidade que é entendida como sendo fluida, heterogênea e múltipla. Realidade que é produzida e revelada sob diferentes aspectos na 9

tese, tanto pelo que diz a neurociência ou a oftalmologia, quanto pelas práticas cotidianas de atendimento na reabilitação, manuais de aprendizagem, em exercícios de experimentação, durante o deslocamento e a locomoção ou em atividades da vida diária.

2. Localizando a cegueira como tema de pesquisa Haraway nos lembra que “todos os olhos, incluìdos os nossos olhos orgânicos, são sistemas de percepção ativos, construindo traduções e modos específicos de ver, isto é, modos de vida” (Haraway, 1995: 22). Gostaria de explicitar o lugar de onde falo, a localização da temática da cegueira como foco de investigação, o que também diz algo sobre o tipo de conhecimento que busco produzir aqui e o que não fiz. A cegueira aparece em um momento muito particular de busca por um tema que expressasse meus interesses de pesquisa ou talvez meu próprio “olhar” para o mundo. Compreender as transformações de sentido a partir de uma experiência de perda era uma motivação presente no meu projeto inicial de doutorado. O foco, então, estava em entender essa mudança a partir da experiência da morte para aqueles que ficam. Como pessoas que perdem parentes, cônjuges ou alguém próximo re-significam a sua própria concepção de vida e de morte, o sentido dado para a existência. Questionando meus interesses como pesquisadora, senti a necessidade de uma mudança de tema, mas a (re)significação do mundo a partir de uma ausência permaneceu como foco de atenção e curiosidade. Há alguns anos vinha investindo em outra forma de ver o mundo e representá-lo: a fotografia. Foi justamente em uma aula de fotografia que comecei a espreitar o tema da cegueira. Mais especificamente as afetações dessa experiência na percepção, na imagem de si e do mundo de quem não enxerga. Minha formação em antropologia e os cursos de fotografia que fiz certamente contribuíram para uma inquietação que passei a sentir em torno da imagem visual. Vivemos mergulhados em instantâneas apresentações de si através de imagens captadas por câmeras digitais, de celulares ou web-cam e divulgadas por meio de dispositivos virtuais de todo tipo (por exemplo, sites e aplicativos de relacionamento como facebook, flickr, instagram, whatsupp e uma infinidade de outros). Essa multiplicação de imagens no mundo há algum tempo tem para mim o impacto do excesso, um constante ruído. Escapa à esfera da visão e uma metáfora que possa explicar meu incômodo é certamente

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auditiva. Um burburinho constante e vazio. Uma percepção de mundo excessivamente centrada no olhar me parece sobrepujar formas mais sutis de apreensão desse mundo. Que futuro estará reservado à imaginação individual nessa que se convencionou chamar a “civilização da imagem”? O poder de evocar imagens in absentia continuará a desenvolver-se numa humanidade cada vez mais inundada pelo dilúvio das imagens pré-fabricadas? (...) Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas adquira relevo. Se incluí a visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para advertir que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados (Calvino, 1997: 107)

Haraway (1995) argumenta a favor de políticas e epistemologias de alocação. Posicionamentos e situações nos quais a parcialidade seja a condição para ser ouvido nas propostas de conhecimento, e não a universalidade. A objetividade se revela como algo que diz respeito a uma corporificação específica e particular. Visão a partir de um corpo que é complexo, contraditório, estruturante e estruturado. Para a autora, apenas essa perspectiva parcial promete a visão objetiva e não a visão de cima - visão de lugar nenhum. É com esse intuito de indicar as promessas e os monstros de minha perspectiva parcial que trago a origem da cegueira como tema para essa pesquisa. Esse desconforto e inquietação1 anteriores contribuíram para direcionar de alguma forma minha presença e, ironicamente, meu olhar ao longo da pesquisa. Ao mesmo tempo, o espanto e a ambiguidade entre o visível e o invisível são reminiscências de um ser que enxerga, cuja lógica de mundo é permeada pela visão. Não tinha nenhum contato anterior mais próximo com uma pessoa cega para além de encontros aleatórios pelas ruas de uma grande cidade. Imaginava que a cegueira

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Se, para mim, a metáfora do incomodo com o “excesso do visual” é auditiva, Haraway coloca seu desconforto tendo o paladar por analogia, enfatizando os aspectos políticos de uma visão desencarnada: “As tecnologias de visualização aparentemente não têm limites; o olho de um primata comum como nós pode ser infindavelmente aperfeiçoado por sistemas de sonografia, imagens de ressonância magnética, sistemas de manipulação gráfica vinculados à inteligência artificial, microscópios eletrônicos com scanners, sistemas de tomografia ajudados pelo computador, técnicas de avivar cores, sistemas de vigilância via satélite, vídeos domésticos e no trabalho, câmeras para todos os fins, desde a filmagem da membrana mucosa do estômago de um verme marinho vivendo numa fenda entre plataformas continentais até o mapeamento de um hemisfério planetário em outro lugar do sistema solar. A visão nesta festa tecnológica transforma-se numa glutoneria desregulada; todas as perspectivas cedem passagem a uma visão infinitamente móvel, que parece ser não mais apenas a respeito do truque mítico de Deus de ver tudo de lugar nenhum, mas da transformação do mito em prática comum” (Haraway, 1995: 19).

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não devia ser uniforme e sabia que existem pessoas que são consideradas cegas, mas que podem vislumbrar luz, sombras ou imagens desfocadas. Foi desse lugar que decidi iniciar uma pesquisa sobre a percepção de mundo de pessoas cegas. 3. Primeiros passos em direção à cegueira – um relato etnográfico

Em abril de 2011, procurando dar início à pesquisa de campo, recebo a divulgação da Oficina de Arte Inclusiva, uma oficina de teatro para atores cegos e não cegos. A oficina tinha como objetivo trabalhar as possibilidades de construção cênica para além da visão, como videntes e não videntes representam em cena um sentimento, uma ideia ou um texto. Como se conectar com o outro e com o espaço ao redor sem o apoio do olhar? O que percebemos do contato quando a visão está deslocada dos olhos? O propósito principal da oficina era pesquisar recursos expressivos e criativos para a atuação de atores cegos e não cegos. Ainda que não fosse atriz, intuí que aquela poderia ser uma oportunidade singular de participar de um processo criativo, onde estaria não apenas observando, mas vivenciando junto com pessoas cegas e não cegas a construção desse processo. Pensei que numa pesquisa que pretende compreender como pessoas cegas percebem o mundo, uma disponibilidade corporal que não estivesse apenas situada no olhar fazia sentido. Na primeira parte do dia eram propostos exercícios corporais de sensibilização, conduzidos com o intuito de dar a possibilidade para aqueles que enxergam de se aproximar do universo dos que não enxergam. A intenção era desestabilizar uma forma de estar no mundo situada no olhar e provocar a abertura para outras formas de entender o entorno e se colocar nele. Na segunda parte, a partir da incorporação das diferenças, dificuldades e potencialidades dessas formas de estar no mundo, pensar e criar cenas teatrais. O espaço onde se realizou a oficina era uma sala dentro do prédio da Caixa Cultural, localizado na Avenida Almirante Barroso, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Um espaço retangular, a sala era larga, e no canto do lado esquerdo, ao fundo, tinham mesas com lanche, água e café. No outro canto esquerdo, fazendo quina com a parede da porta de entrada, um tecido tipo filó, preso a uma arara, formava uma espécie de box, com uma fenda para quem quisesse entrar. Na diagonal contrária, outro box semelhante ao primeiro. Ao centro da sala tinham quatro molduras de quadro, vazadas, penduradas em alturas diferentes com fios de nylon amarrados ao teto. Tanto os boxes 12

quanto as molduras eram objetos cenográficos a serem utilizados na montagem das cenas. A sala não tem janelas, a única porta permanece fechada. Invariavelmente as luzes são apagadas como uma estratégia de colocar todos na mesma condição de não visão. O contraste da luz apagada ou acesa é imediato, mesmo que com o passar do tempo os olhos se acostumem e possam vislumbrar sombras. Quando as luzes estão acesas e os olhos abertos, as conversas paralelas e o barulho aos poucos se intensificam. Com as luzes apagadas e a escuridão, o silêncio se espalha e a escuta também se apresenta redimensionada. Naquele momento entendo que a absorção do ambiente, das pessoas e das experiências que se darão naquela sala não deve se basear na observação distanciada. O entendimento do que se passa não se centra no olhar. Com a proposta de imergir na escuridão para a realização dos primeiros exercícios corporais de sensibilização, a sensação do olhar como mediador entre o ser e o mundo, como instrumento de controle, observação e apreensão do ambiente, nos é (para os “enxergantes” que ali se encontram) subitamente interrompida. Os exercícios sugeridos na primeira parte de cada dia de oficina buscavam provocar um contato mais direto com os sentimentos e as sensações físicas que tangenciam o tema da visão. A escuridão, a respiração, o toque, os sons e uma consciência ou despertar do corpo como um todo eram elementos importantes a serem experimentados. Qual o mecanismo a ser utilizado quando as luzes se apagam, os olhos se fecham e o movimento e a interação se fazem necessários? O apagar das luzes como mediação provocou num primeiro momento a paralisia, pela perda de um domínio aprendido e conhecido: o olhar como guia - para o movimento, o equilíbrio, a escolha de direção, o toque, o reconhecimento espacial ou mesmo como ponto de partida para interação entre os presentes. Desprovido desse vetor, afetado por essa ausência, meu corpo precisa reaprender a se orientar. Não contar com o apoio da visão suscitou estranhamento. O corpo inteiro precisa se situar novamente enquanto atende ao comando de percorrer e explorar o espaço. Barulhos de deslocamentos, da respiração individual e dos que estão à volta, suspiros e grunhidos, estalos de partes do corpo. Os sons parecem salientar, como se estivessem mais altos do que de costume, porque irrompem inesperados, fora do controle de sua origem. Ao me aventurar aos primeiros passos o corpo reage e tensiona, com receio de esbarrões em qualquer uma das outras 25 pessoas que vagam a esmo descobrindo o espaço ou nas molduras e objetos ali dispostos. A estratégia primeira foi a de tatear com 13

braços e mãos, que se projetavam a frente e para os lados, numa tentativa de dominar minha circunferência e me certificar que não daria de encontro a nada ou ninguém, que não invadiria o espaço de outros e que meu espaço não seria também invadido por uma proximidade física que não estava pronta para lidar, já que ainda não tinha domínio sobre esse corpo novo que se apresentava. Um corpo que precisa se reorganizar para entender o espaço e as pessoas a sua volta através do que sente, sem a confirmação imediata e cômoda do olhar. Depois de percorrer caminhos escolhidos a esmo, desviados por inevitáveis esbarrões em corpos que não reconheço, não tenho mais certeza se estou virada para a parede ou para a porta, se a mesa está atrás ou a frente de mim. Como se tivesse desaprendido a confiar em qualquer outro sinal físico que não a suposta segurança do olhar. Ao longo do processo me assusto quando dou de encontro a objetos que imaginava estar do outro lado da sala, meu corpo se retrai quando se choca com outros que não controlo, que se movimentam ao redor em uma busca individual de reconhecimento e troca. Depois das mãos, como tentativa de reconhecimento débil e intimidado do espaço, o corpo inteiro se recoloca, a pele emerge como o órgão mais extenso e de maior capacidade de absorção de estímulos. Os toques, intencionais ou não, parecem ficar marcados de forma mais definitiva nessa superfície quando se está de olhos fechados. Parte do tempo em que estivemos ali se concentrou na experimentação e descoberta de novas medidas, não visuais, para si e para o mundo. Com o passar dos dias, a realização de novos exercícios e o aprendizado de outras proporções para o ambiente. Aos poucos o espaço foi sendo descoberto e reorganizado mentalmente, mesmo que no fundo ainda ficasse uma desconfiança da nova forma de entendê-lo. Experimento outros planos, exploro o chão, o meio, a altura dos braços levantados. Os encontros inesperados com outros corpos se transformam em trocas propositais, em exame minucioso de massa, volume, textura da pele, o tipo e o tamanho do cabelo, cheiros diversos, que a princípio não me dizem nada da identidade daquele com quem interajo. Especulo nomes e pessoas, mas nem sempre sei, e fico com a dúvida que essas novas possibilidades de avaliação provocam. Aos poucos, com a repetição e a prática, o corpo absorve e aprende a reconhecer pequenos sinais não visuais de entendimento.

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A entrada no campo teve um viés específico, uma oficina de teatro que se propunha trabalhar recursos corporais expressivos, como os gestos, as mímicas e o movimento e ainda as possibilidades de comunicação e representação em cena de atores cegos e não cegos. Entendendo o teatro como metáfora para a vida social (Goffman, 1975), fazer parte dessa experiência apresentou elementos a serem considerados na abordagem da percepção de mundo de pessoas cegas que talvez não se manifestassem em outras circunstâncias. A participação na Oficina Inclusiva despertou uma aproximação metodológica que foi sendo elaborada ao longo. Para compreender a percepção de mundo de pessoas cegas, o objetivo principal desta pesquisa, mostrou-se indispensável incluir o corpo como foco de atenção. Se, com a ausência da visão, os outros sentidos e o corpo inteiro se colocam como mecanismos de apreensão do mundo, do espaço e das pessoas, na vida cotidiana o conhecimento pelo tato esbarra na restrição social ao toque entre pessoas (Le Breton, 2011). A proposta da oficina interrompe a lógica da restrição ao toque corporal, mas também explicita as diferenças de movimento e expressão por um corpo que não vê, mas está sendo visto. A percepção de mundo de pessoas cegas se constrói nas brechas de uma dupla fronteira – uma limitação física e um impedimento social. O ambiente teatral surgiu desde o primeiro momento como um meio criativo de deslocamento e subversão da segunda fronteira. Técnicas teatrais me pareceram uma maneira bastante particular e direta de abordar questões de pesquisa que diziam respeito muito mais a formas de funcionamento do corpo do que a pensamentos conscientes e elaborados sobre ele. O uso do teatro surge no início, e posteriormente ao longo de diferentes momentos do trabalho de campo, como um meio, uma forma de provocar reflexões incorporadas e de se aproximar das questões elementares da pesquisa. O enfoque na performance é uma das tendências que ganha força entre as perspectivas antropológicas que priorizam os eventos rituais e o teatro como suporte para análise da realidade social. De acordo com Dawsey (2007), uma “virada performativa” ocorre em um conjunto amplo e variado de disciplinas que questionam o texto-centrismo e a primazia das análises de estruturas sociais e simbólicas. Em diversos campos, os pesquisadores voltam suas atenções também para a ação humana e para o modo como os sentidos do corpo são mobilizados na significação do mundo. Associo o interesse e a troca entre antropologia e teatro realizados na pesquisa com uma vertente “dramatúrgica” da performance, pautada em pesquisadores como Victor Turner, Richard Schechner e Erving Goffman. 15

Schechner (1993) demonstra como o ato de playing ou a performance desenvolve sistemas de transformação de uma realidade para outra. A passagem entre realidades pode ser experimentada como um choque ou uma fluidez suave e até mesmo imperceptível. A ênfase do autor na análise de performances recai especificamente sobre um corpo que deve ser reformulado por meio da introdução de um desequilíbrio, um problema a ser solucionado por um novo balanceamento. Uma performance joga com o corpo a fim de desconstruí-lo e reconstruí-lo de acordo com um plano de ação que não é fixo. O corpo desconstruído se torna provisório e aberto para, então, poder ser recriado. Schechner (2011) coloca que em todos os tipos de performance uma certa fronteira definida é cruzada. A “consciência performática” ativa alternativas. Enquanto na vida ordinária as pessoas cumprem destinos e tudo parece predeterminado, a consciência performática é subjuntiva, cheia de potencialidade. É a celebração da contingência. Durante os ensaios, alternativas são mantidas vivas e o trabalho é intencionalmente não fixado. O pensamento da performance implica um respeito pelo “aprendizado do corpo” como distinto do “aprendizado da cabeça”. Para Schechner (2011), os métodos antropológicos e teatrais estão convergindo e um número crescente de pessoas nas duas disciplinas está cruzando fronteiras. O autor acredita que a transmissão de conhecimento performático em técnicas e treinamentos são uma base forte para troca entre as pessoas do teatro e os antropólogos. É nesse sentido que percebo a parceria que realizei com pessoas do teatro e o uso de técnicas teatrais como método no desenvolvimento do trabalho de campo dessa pesquisa. Especialmente nas trocas com a diretora e atriz Ana Lu Palma e com a atriz Clara de Andrade, nas oficinas em que participei ou nas que elaborei em parceria. Considero que os momentos de desenvolvimento de um aprendizado do corpo e de uma consciência performativa foram significativamente ricos como meios para levantar questionamentos na pesquisa e direcionar a atenção aos mais variados temas. Ao descrever sua experiência de participação em uma oficina de três dias na Universidade de Cornell com o shite nô Takabayashi Koji e outros artistas nô2, Schechner coloca que “fazer os movimentos do nô concretamente – mesmo que por um período tão breve – ensinou mais ao meu corpo do que páginas de leitura. E mais,

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O nô é uma forma clássica de teatro japonês, que combina canto, pantomima, música e poesia.

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quando eu retornei à leitura, aos conceitos como jo-ha-kyu ou ko-shi, eu tive um senso mais firme do que estes conceitos eram” (Schechner, 2011: 233). Essa foi a melhor descrição que encontrei para situar o papel do teatro e das performances na metodologia desenvolvida para compreender a percepção de mundo de pessoas cegas – uma forma de aprendizado e questionamento pelo corpo e pelo movimento. O ambiente teatral, as performances e exercícios propostos, são utilizados no campo de investigação desta pesquisa como ferramentas, como “coisas boas para fazer pensar” (Dawsey, 2011: 209). Estímulos e inervações corporais que produzem questionamentos. Modos variados de criar intensidades que se dirijam ao corpo, objeto primeiro de interrogação. Tais mecanismos não são provocados apenas no corpo do outro. Como pode ser notado no relato etnográfico, em diferentes momentos da pesquisa também me submeto a experimentos performáticos em meu próprio corpo junto a outros corpos para que questões enraizadas pudessem surgir desse diálogo.

4. Momentos no escuro Muitos são os cegos que se referem a experiência da cegueira como um “outro mundo”. Não sem momentos de ambiguidade ou suspeição, ouvi essa afirmativa de Camila, Beatriz, Caetano, entre outras pessoas cegas que conheci ao longo da pesquisa. Hull (2001) descreve a experiência da cegueira como um estado corporal que cria um outro mundo.

At first we thought blindness was something which affects the eyes, then the brain, and then the whole body. We begin to see that blindness is something which creates its own world. Of course, this is also true of sight. Sight also creates a world, but sighted people do not know this. After all, sighted people do not generally know that they are sighted; they just think that the world is like that. But the world is not like that. Only its world is like that, and there are many worlds. The existence of the blind person‟s world relativizes the sighted persons world. But to realize this, the sighted person has to begin to think of blindness as a genuine, independent world with its own characteristics, its own wonders and terrors. Blindness affects the whole body when the subliminal bodily gifts, normally obscured by sight, begin to come to the surface of consciousness. When this happens, the blind experience begins to generate a world3.

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Tradução livre: “No começo pensamos que a cegueira era algo que afetava os olhos, depois o cérebro, depois o corpo inteiro. Começamos então a ver que a cegueira é algo que cria o seu próprio mundo. É claro, isso é também verdade para a visão. A visão também cria um mundo, mas pessoas que enxergam não sabem disso. Afinal, pessoas que enxergam geralmente não sabem que enxergam; elas simplesmente acham que o mundo é daquela forma. Mas o mundo não é daquela forma. Apenas o seu

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Dada a impossibilidade de ser nativa, restava a tentativa, seguindo as técnicas clássicas da antropologia, de viver como eles vivem, tentar “ver o mundo pelos olhos dos pesquisados”. Exceto que no meu caso existia uma impossibilidade concreta, palpável, física, material e biológica desse exercício imaginário – “ver o mundo pelos seus olhos” - já que são olhos que não enxergam. As falas de quem perdeu a visão, que ouvi de diferentes pessoas - e que está presente no depoimento de Hull -, se referiam a um momento de passagem entre dois mundos e à sensação de estar agora vivendo nesse outro mundo. Levar a sério a possibilidade tornava ainda mais intrigante essa clivagem, a existência paralela, em um mesmo tempo e espaço, de mundos significativamente distintos. Apesar de fisicamente no mesmo local, participando da conversa, falando a mesma língua e interagindo, eu estava a maior parte do tempo em um estado corporal que me colocava em outro mundo. Era possível entende-lo parcialmente pelas explicações que me davam, mas sentia que algumas perguntas eu nem poderia elaborar a uma tal distância. A cegueira cria outro mundo ou é o mesmo mundo percebido de outra forma? A pergunta permeia toda a tese. Pergunta que é mote, movimento e motivação. No início do campo fecho os olhos motivada por um exercício de experimentação, mas a partir de uma conversa específica que tive com Dora, uma das pessoas cegas pesquisadas, a estratégia de vendar os olhos se transforma em um mecanismo mais consciente de investigação e direcionamento da atenção. Ela me contava sobre o processo gradual de adaptação de uma amiga à perda da visão. Procurando ajudá-la a superar sua insegurança em relação ao deslocamento nas ruas, ela propôs à amiga que realizassem uma experiência. Levou-a para caminhar na calçada de um quarteirão onde havia um muro a frente. Sem alertá-la do muro, deu a instrução para que a amiga caminhasse, batendo sua bengala e prestando atenção aos sons ao redor, e avisou que ela devia parar se escutasse algo diferente. Dora contou que, a partir dessa

mundo é daquela forma, e existem muitos mundos. A existência do mundo das pessoas cegas relativiza o mundo das pessoas que enxergam. Mas para se dar conta disso as pessoas que enxergam precisam começar a pensar na cegueira como um mundo genuíno e independente, com as suas próprias características, suas próprias maravilhas e terrores. A cegueira afeta o corpo inteiro quando dádivas corporais subliminares, normalmente obscurecidas pela visão, começam a saltar para a superfície da consciência. Quando isso acontece, a experiência da cegueira começa a gerar um mundo.

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experiência, a amiga foi capaz de identificar corporalmente o obstáculo a sua frente, conseguiu ouvir o som do muro e parar antes de dar de encontro a ele. Considero que é esse relato que desperta para mim a possibilidade de tratar não exatamente o pensamento, mas a corporeidade nativa, como uma atividade de simbolização ou uma prática de sentido (Viveiros de Castro, 2002). Naquela conversa entendi também que seria fundamental para tentar compreender a forma de estar no mundo de pessoas cegas que eu conseguisse desenvolver corporalmente uma atenção para essa forma, atenção sonora, atenção para o deslocamento. A ideia de que é possível ouvir o som do muro e transformar essa escuta em guia para a locomoção começa a me interessar porque diz algo sobre os seres humanos que fazem isso. Ouvir o som do muro afirma algo sobre a noção de percepção. Afirma que o ato de se locomover inclui, para pessoas cegas, uma atenção e uma escuta de sinais como o som do muro. O que pessoas cegas estão dizendo quando afirmam que é possível escutar o som do muro para se locomover? O que elas estão dizendo sobre a percepção? Sobre o corpo? Sobre o mundo? Quais as consequências de se levar a sério essa afirmativa? Dizer que é possível escutar o som do muro e se orientar a partir disso é dizer algo sobre o muro e sobre a percepção. É dizer algo sobre o que a percepção humana pode ser e é dizer algo sobre como o mundo pode ser a partir de como ele é percebido. Pensando com Viveiros de Castro (2002) e o perspectivsmo ameríndio, o que uma antropóloga deve se perguntar diante dessa afirmativa não é se ela acredita ou não que é possível se locomover a partir do som do muro, mas o que uma afirmação como essa lhe ensina sobre as noções de corpo, de percepção e de mundo de pessoas cegas. Ao contar essa história, Dora não estava me dando uma opinião, mas relatando como ensinou outra pessoa que, para se locomover com mais segurança sem enxergar, é possível ouvir o som do muro. Com essa experiência que realizou com a amiga, Dora demonstrava a ela, de maneira prática, como o som está implicado no muro e no deslocamento de quem por ali passa. A afirmativa também diz algo de não evidente sobre o mundo. “E se a questão não fosse de linguagem, mas de mundo?” (Viveiros de Castro, 2010: 22). O mundo em que é possível ouvir o som do muro para se locomover com mais segurança é o mesmo mundo em que, ao ver o muro, nos desviamos dele? São duas percepções de mundo, mas há um só mundo? Essa história do som do muro me convida a um esforço de determinação do mundo possível expresso por Dora. Um mundo possível no qual corpos humanos sejam capazes de ouvir sons de muros. Um mundo no qual é necessário 19

que corpos humanos ouçam sons de muros para se locomover. Com esse argumento não se procura exprimir uma teoria biológica alternativa – no caso da cegueira a conhecida “teoria da compensação sensorial” – mas sim um uso diferenciado dos corpos. O argumento de que corpos que não enxergam podem escutar o som do muro ao se locomoverem - ou seja, de que corpos que não enxergam têm capacidades ou habilidades desenvolvidas de maneiras distintas daquelas desenvolvidas por corpos que enxergam - tem um substrato biológico – existe efetivamente uma diferença física/biológica entre ver e não ver – mas, também, diz algo sobre como o corpo está implicado no conceito de perspectiva – no ponto de vista – sobre o mundo. Olhos que não enxergam transformam o corpo de quem não enxerga, as propriedades e os usos que se confere aos objetos na vida de quem não enxerga, os sentidos que atribuem ao mundo. Muda o seu ponto de vista ou muda a sua vista do ponto? Estar lá, passar tempo com eles, conhecer sua casa, seus objetos, observar suas ações não me possibilitava entender completamente, porque não me possibilitava acessar corporalmente o estado do “estar junto”. Não me permitia entender as suas medidas ou os seus parâmetros, já que eram fundamentalmente diferentes dos meus e inacessíveis aos meus olhos. A mera co-presença não me parecia suficiente para possibilitar a experiência do “com”. Essa conversa com Dora aconteceu alguns meses depois da experiência de participar da Oficina Inclusiva, cujo relato ilustra a discussão anterior. E considero que foi a partir dela que ficou ainda mais clara a incongruência de se pretender abordar a percepção de pessoas que não enxergam, cuja relação com o entorno não se centra no olhar, a partir de técnicas baseadas exclusivamente na observação visual, ainda que fosse uma observação participativa. Naquele dia entendi que observar visualmente o que faziam não me daria acesso ao seu “ponto de vista”, porque com a minha visão em atuação não ouvia os sons que eles ouvem, não percebia os objetos da mesma forma, não me permitia fazer o que faziam ou entender como faziam, o tempo de seu fazer. A escuridão - no sentido de não ver, não necessariamente do negrume, já que a cegueira para muitos pode ser clara possivelmente também condiciona a experiência de mundo. Com os ecos do som do muro do relato de Dora, como levar adiante a proposta de ser afetada pela cegueira (Favret-Saada, 2005)? Poderia compreender apenas intelectualmente relatos que se remetem diretamente ao corpo? O corpo de alguém que enxerga conseguiria aprender a ser afetado pela mediação de uma ausência, ainda que temporária, da visão? Seria

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possível falar da percepção de quem não enxerga sem que meu corpo visitasse esse lugar, ao menos como tentativa? A estratégia de vendar os olhos nunca me daria acesso à experiência de ser cega, não me colocava nem perto dessa condição, especialmente se pensarmos nos seus aspectos sociais ou psicológicos. Mas vendar os olhos me permitia experimentar o mundo sem ver. Uma vivência fundamentalmente perceptiva, que me pareceu um requisito para a compreensão corporal dos significados e das formas desse estar no mundo. Os momentos em que estive de olhos fechados ao longo da pesquisa permitiram prestar atenção em características, atributos de objetos, sons significativos do ambiente, temperatura, textura, relação de proximidade e distância, temporalidade, sentido de direção, experiência do meu próprio corpo no espaço, de movimento, de locomoção, de comunicação, que eram substancialmente diferentes ao se estar de olhos abertos. Se a cegueira é um estado inatingível para quem enxerga, experimentar corporalmente o entorno a partir da não visão possibilita um redirecionamento da atenção, ainda que de forma temporária. Novas medidas para o mundo: sonoras, olfativas, táteis, de forma e de tamanho, a respeito da distância a partir de uma voz, sobre tipos de materiais pelos sons que emitem, descobrir o que se come pelo gosto e cheiro que tem e não pela aparência. Levando a sério pesquisas da neurociência, 90 minutos de venda nos olhos já seriam suficientes para dar início a processos de plasticidade cerebral em videntes e despertar a acuidade tátil (Facchini e Aglioti, 2003). A disposição corporal dos olhos fechados permitiu o exercício da experimentação. Perceber e apreender corporalmente desde práticas cotidianas, como colocar água no copo, cortar uma cenoura em rodelas, comer uma refeição, acender e fumar um cigarro, tomar banho, entre outras, até treinamentos de deslocamento e mobilidade, estimulação tátil ou medidas da escrita Braille, a partir das sensações físicas que provocam. Não era simples curiosidade de fechar ou vendar os olhos aleatoriamente, mas uma disponibilidade para estar atenta ao corpo e com o corpo (Csordas, 2008) ao seguir, de olhos fechados, as propostas de uma diretora teatral com formação na área de deficiência visual. Ao desempenhar, com venda, atividades comandadas por profissionais da reabilitação que treinam pessoas cegas diariamente a

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prestar atenção em seus outros sentidos como estratégia de conhecimento do que ocorre a sua volta4, entre outros momentos que descrevo adiante. Experimentar o mundo através dos outros sentidos. Momentos de prestar atenção com o corpo, sem os olhos. Processos de aprendizado de conhecimentos práticocorporais que não domino, tendo como guia um praticante habilidoso. Não é um “como se” às avessas - pensando no “as if” de Winance (2007) - a normalidade como se fosse deficiência, mas sim dar credibilidade, por exemplo, à concepção de corpo de Espinosa, posteriormente retomada por Deleuze (2002), corpo como capacidade de ser afetado. Ou considerar, como propõe Ingold (1990), que a relação de um organismo com o meio é sempre significativa e está ligada à ação. Fechar os olhos não dá a possibilidade de estar no mundo como se fosse cega, mas me abre possibilidades de mundos, novos agenciamentos, diferentes campos de relação com as coisas e com as pessoas. E com elas, a criação de um meio. Uma relação que se produz, uma aproximação específica, novos fluxos, reequilíbrio de forças e outras polaridades. Não é a ingenuidade de querer alcançar uma experiência inacessível, mas reconhecer o muito que se tem a aprender com ela, um conhecimento prático desenvolvido a partir de um estado corporal de percepção e atenção não centrado na visualidade.

Sabemos demais dos perigos da linha de fuga, e suas ambiguidades. Os riscos estão sempre presentes, e a chance de se safar deles é sempre possível: é em cada caso que se dirá se a linha é consistente, isto é, se os heterogêneos funcionam efetivamente numa multiplicidade de simbiose, se as multiplicidades transformam-se efetivamente em devires de passagem (Deleuze e Guattari, 1997: 29)

Bloco que involui, corre seguindo sua própria linha “entre" os termos postos em jogo. Involução criadora que segundo Deleuze e Guattari (1997) é a forma de evolução que se faz entre heterogêneos. Modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento. Estar de olhos vendados em momentos diversos da pesquisa significou, portanto, uma tentativa de criar um “entre”, de se aproximar e conceber uma ponte de comunicação ou de entendimento de como o mundo se organiza a sua maneira.

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O próprio curso de formação de técnico em Orientação e Mobilidade do Instituto Benjamin Constant propõe vivências de olhos vendados durante as atividades de formação. A Terapeuta Ocupacional (TO) do atendimento de Habilidades Básicas na reabilitação conta que, antes de passar os jogos e exercícios que desenvolve para os reabilitandos, os experimenta ela mesma de olhos fechados. A TO de Atividades da Vida Diária, outro atendimento, também diz se utilizar da estratégia de fechar os olhos quando quer descrever perceptivamente o ambiente, atribuindo significados a objetos e sons, para ajudar um reabilitando a prestar atenção com o corpo.

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5. Por uma abordagem polifônica

A cegueira é um objeto de estudo que desliza. Como vimos, ela não se encaixa em um lugar preexistente, pelo menos não naquilo que me interessava compreender – a percepção de mundo de pessoas cegas. A polifonia do objeto, seu caráter iconoclasta (Latour, 2008), me instava a uma abordagem polifônica a respeito dele. Law (2004) considera que os métodos de pesquisa que vêm sendo passados ao longo de um século de ciência social trabalham com a suposição de que o mundo é um conjunto de processos bastante específicos, determinados e mais ou menos identificáveis. O autor acredita que, embora os métodos convencionais sejam eficientes naquilo que fazem, estão mal adaptados para o estudo do que é efêmero, indefinido ou irregular. Se a maior parte da realidade é efêmera e evasiva, então não podemos esperar respostas únicas. Para o autor, as regras que nos dizem o que devemos ver e o que devemos fazer quando investigamos são regras que carregam um conjunto de pressuposições contingentes e históricas, especificamente euro-americanas. Nossa tarefa atual seria a de imaginar métodos que não busquem mais o definido, a repetição ou o que é mais ou menos estável. Os métodos, as suas regras e, mais ainda, as práticas que eles engendram não apenas descrevem, mas ajudam a produzir a realidade que buscam compreender. Marcus (2004) também acredita que o mundo atual, com a fragmentação de populações e as culturas móveis e transacionais, leva a uma inexorável desestabilização da modalidade tradicional de pesquisa de campo, que passa a se desenvolver em locais de investigação múltiplos e heterogêneos. Formas de colaboração baseadas na cumplicidade mudam significativamente o que os antropólogos querem dos “nativos” como “objeto” de pesquisa. O autor pensa que as normas de pesquisa de campo devem ser libertadas do imaginário clássico do “estar lá”. Ultrapassando os limites da mise-enscène malinowskiana, a pesquisa de campo contemporânea é multilocalizada. Marcus (2004) defende o uso de experiências e técnicas do teatro para a reinvenção dos limites e das funções da pesquisa de campo em antropologia. O autor analisa o relato de um cenógrafo, Fernando Calzadilla, quem, para fazer a cenografia de uma montagem de “A casa de Bernarda Alba”, de García Lorca, passou três meses em duas comunidades com tradição de 400 anos de vida rural, fechada e conservadora. A pesquisa de campo realizada por Calzadilla tinha a intenção simples e material de 23

produzir objetos e artefatos com os quais planejou a montagem e o aspecto visual da produção. Entretanto, a contribuição mais substantiva para a produção da peça não estava no que a plateia podia literalmente ver, mas na constituição do que chamou de narrativas internas da produção, ignoradas pela plateia, mas que se originam das “matérias primas” que a pesquisa de campo fornece. O reverso também pode ser verdadeiro na relação da antropologia com o ambiente teatral. A contribuição mais substancial das oficinas de teatro que participei ou da que desenvolvi com Clara de Andrade no IBC durante a pesquisa de campo não está explicitamente no texto em formato de descrição etnográfica ou de uma análise dos exercícios e cenas teatrais que montamos 5. Sua presença se faz sentir na constituição de narrativas internas, aproximações, na criação de um ambiente de intimidade e confiança com o tema da cegueira e com pessoas cegas, na provocação de questionamentos que, ainda que nem sempre explicitados textualmente, também se originaram das "matériasprimas" fornecidas pelos encontros e pelo trabalho coletivo realizado nas oficinas. Nesta tese, o processo de pesquisa de certa maneira se assemelha ao do cenógrafo analisado por Marcus, na medida em que coleto colaborações de vários tipos e condições, formando um emaranhado de colaborações progressivas. No espaço multilocalizado, a política do conhecimento é definida por colaborações e cumplicidades. O exercício direcionado de abrir ou fechar os olhos como aproximação metodológica para compreender um estado perceptivo diferente está longe de ser uma ideia inovadora, uma proposta ousada ou mera ingenuidade. Ao invés disso, procuro situá-lo no leque de aproximações aberto pela ênfase na dimensão participativa na pesquisa de campo, por uma antropologia dos sentidos e pelos estudos de performance. Favret-Saada (2005) desenvolve a ideia de ser afetada a partir da pesquisa sobre feitiçaria no Bocage francês. Ao questionar a metodologia da observação participante em antropologia, a autora explicita a necessidade de se redimensionar a participação e não apenas se nortear pela observação no trabalho de campo. Na crítica metodológica aos trabalhos até então realizados sobre feitiçaria, a autora identifica dois gêneros de comportamento, um ativo, o trabalho regular com informantes que são interrogados e observados, e o outro passivo, a observação de eventos ligados à feitiçaria. Os dois comportamentos são considerados por Favret-Saada

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Embora acredite que essa seja uma possibilidade futura, já que temos material de registro fílmico e fotográfico detalhado dessa experiência.

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como observação e não como participação, uma vez que no primeiro é o informante que participa do trabalho do etnógrafo e no segundo a participação equivaleria apenas à tentativa de “estar lá”, o mínimo necessário para que uma observação fosse possível, mas cuja ênfase ainda recai sobre a observação. Ao fazer da participação um instrumento de conhecimento e aceitar ocupar um lugar no sistema de feitiçaria, a autora revela ter sido atingida por intensidades específicas, que chama de afecções ou afetos. São intensidades que acredita que não são significáveis, a única maneira de alcançá-las é por meio da experiência. Ser afetado por algo que afeta os nativos não tem o intuito nem de se colocar no lugar de nativa, nem de desenvolver com eles uma espécie de empatia ligada a emoções ou sentimentos. Tratase de ser afetada pelas mesmas forças que afetam o nativo. E ser afetada por algo que os afeta possibilita o desenvolvimento de uma comunicação específica com eles, involuntária e não intencional, o estabelecimento de certa modalidade de relação, além de mobilizar e modificar o seu próprio estoque de imagens. Favret-Saada defende que tal dispositivo de pesquisa é passível de ser descrito e analisado, mas somente por quem se permitir dele se aproximar, por aqueles que tiverem corrido o risco de participar ou de ser afetado por ele, não pode ser apenas observado. De Favret-Saada quero resgatar a necessidade de se redimensionar a participação no trabalho de campo e a potencialidade da experiência de ser afetada, por seu impacto na comunicação e na compreensão de um fenômeno. Ser afetada pela escuridão (pela não visão) com o intuito de promover uma abertura para o que Goldman chama de devir-nativo, “movimento através do qual um sujeito sai de sua própria condição por meio de uma relação de afetos que consegue estabelecer com uma condição outra” (Goldman, 2003: 464). Para Van Ede (2009), aquilo que vemos quando olhamos, o que ouvimos quando escutamos, ou o que cheiramos, provamos ou tocamos dificilmente é um tópico de investigação. Diferenças na percepção sensorial costumam ser postas de lado, seja como talento pessoal, seja como deficiência neuropsicológica. Segundo a autora, nós aprendemos como ver; aprendemos a observar e a não observar. O mesmo também é válido para todos os outros sentidos. É um processo no qual cada pessoa aprende a colocar em uso sua ferramenta física, biológica, de acordo com as regras e as normas de sua própria cultura e sociedade. Grupos sociais e culturais distintos - com base em sua etnicidade, classe social, preferências culturais, religião, gênero, profissão - diferem

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naquilo que frequentemente acreditam ser a forma “natural” de perceber e construir o mundo. Van Ede enfatiza uma dimensão específica da participação para uma antropologia dos sentidos, um envolvimento do próprio corpo do antropólogo como meio de análise, sugerindo uma metodologia que inclua a postura fenomenológica radical que os sentidos solicitam. Qualquer pesquisa sobre os sentidos é, por definição, multi e interdisciplinar. Os sentidos tocam na essência da percepção humana, do mundo e do self dentro desse mundo, na interpretação e na criação desse mundo. Ao invés de dar voltas em torno de uma discussão que julga infrutífera sobre o que é crença e o que é realidade, a autora acredita que a questão principal deveria ser dirigida a como o mundo é conhecido. Esse “como” pede uma metodologia fundamentada na experiência sensória corporal e diária, não em reflexões meramente teóricas, abstratas ou ideais. Para sinceramente compreender o “outro” em uma antropologia dos sentidos, Van Ede coloca que a observação participante não pode continuar sendo uma mera desculpa para só observar ou, no máximo, fazer algumas entrevistas. A ênfase deve estar na participação, na partilha, na percepção, na experiência, com todos os nossos sentidos. Esses momentos de imersão demandam uma cabeça e um corpo abertos, a aceitação de outros esquemas sensoriais e outras possibilidades de ver, ouvir, cheirar, provar e tocar. O que implica na vontade e na capacidade de abrir mão da distância e confiar na subjetividade. A venda que usei nos olhos era um mecanismo que permitia visitar um mundo fenomenologicamente distinto. Momentos em que podia perguntar e perceber corporalmente o como as coisas eram feitas ou se pareciam nessa condição. Conquergood (2002) compara formas de produção de conhecimento alternativas e dominantes a partir dos estudos de performance. A forma de conhecimento dominante na academia é aquela da observação empírica e análise crítica feitas de uma perspectiva distanciada - "saber o que" e "saber sobre". Essa é uma maneira de olhar o objeto de investigação “de cima”. As epistemologias dominantes que vinculam o conhecimento à visão de cima não estão atentas aos significados mascarados, camuflados, indiretos, embutidos ou que se escondem no contexto. Outra forma de conhecimento se ancora na participação e na conexão pessoal ativa, manual, íntima: "saber como" e "saber quem". Essa é uma visão que parte do chão, presente na espessura das coisas. Para o autor, a liminaridade constitutiva dos estudos da performance se encontra na sua capacidade de construir pontes entre conhecimentos segregados e diferentemente valorizados, reunindo ao mesmo tempo modos de investigação legítimos e subjugados. 26

Tais estudos fariam a sua intervenção mais radical ao abraçarem tanto os escritos acadêmicos quanto o trabalho criativo, papéis e performances e estão especialmente preparados para o desafio de traçar juntos formas de conhecimentos díspares e estratificadas. Conquergood sugere três formas de se pensar com a ideia de performance. A diferenciação me parece pertinente porque ajuda a classificar e compreender o tripé metodológico em que essa pesquisa se sustenta, que apresentarei mais adiante. 1. Performance como um trabalho da imaginação, como um objeto de estudo. Foco na realização. Fazer arte e refazer a cultura; conhecimento que emerge do fazer. 2. Performance como uma pragmática de investigação (tanto como modelo quanto como método), como um operador e uma ótica de pesquisa. Foco na análise. Pensar sobre, através e com a performance; performance como uma lente que ilumina as dimensões criativas, contingentes, colaborativas da comunicação humana. 3. Performance como uma tática de intervenção, um espaço alternativo de luta. Foco na articulação. Ativismo, conexão com a comunidade; pesquisa-ação; projetos que têm alcance fora da academia e que estão enraizados numa ética da reciprocidade e da troca; compromisso social. O principal desafio dos estudos da performance apontado pelo autor é ultrapassar a divisão de trabalho profundamente arraigada, uma espécie de apartheid de conhecimento, que se desenrola na academia na diferença que se coloca entre pensar e fazer, interpretar e construir, conceitualizar e criar. A divisão do trabalho entre teoria e prática, abstração e incorporação é uma escolha rígida e arbitrária e, como todos os binarismos, é uma armadilha. O movimento radical dos estudos de performance consiste em se voltar e retornar, insistentemente, para a encruzilhada. Uma forma experiencial e engajada de investigação que seria, para Conquergood, coextensiva ao método etnográfico da observação participante, promovendo uma conexão epistemológica entre criatividade, crítica e engajamento civil. Embora não tenha sido inicialmente o objetivo, já que em grande medida as coisas foram acontecendo ao longo, acredito que é possível encontrar ressonâncias entre uma certa polifonia metodológica que utilizei na pesquisa e os modos performáticos de produção de conhecimento. Não posso considerar que desenvolvo uma antropologia da performance, já que não realizo uma análise minuciosa das etapas e transformações provocadas por ritos ou eventos performáticos teatrais. O resultado da pesquisa é apresentado no formato 27

tradicional de texto acadêmico, embora sejam linhas que se nutram de práticas e movimentos incorporados e participativos. O teatro e a performance são mais um meio de aproximação do que objeto de análise. Valho-me da performance para promover momentos de interrupção de papéis, que têm como efeito produzir estranhamento em relação a si mesmo, manifestar elementos não resolvidos, abrir fendas em superfícies endurecidas. Nesse sentido, acredito que nas análises que desenvolvo me aproximo da segunda dimensão da performance enquanto forma de conhecimento elaborada por Conquergood (2002). Como uma pragmática de investigação ou um operador, é com e através de eventos performáticos (venda nos olhos) ou teatrais (participação nas oficinas) que desenvolvo uma análise sobre a percepção de mundo de pessoas cegas. A primeira e a segunda dimensão da performance não estão ausentes, como veremos na descrição do que desenvolvi ao longo do trabalho de campo. Entretanto, ainda que sirvam de alimento, elas não entram de forma direta como elementos da escrita, já que uma análise desse tipo desvirtuaria dos objetivos de pesquisa que me coloquei. Law (2004) evoca a influência de autores pós-estruturalistas e as metáforas que mobilizam como as de fluxo e transformação, para defender a necessidade de métodos, ou montagem de métodos, que consigam captar a heterogeneidade e a variação. Formas de conhecimento que não produzam ou demandem explicações definidas, limpas, organizadas. Montagens de métodos detectam, pensam com e amplificam formas particulares de relações, nos fluxos transbordantes e excessivos do real. Uma das possíveis definições das montagens de métodos, para Law, é a combinação de detectores e amplificadores de realidade. Não há uma realidade universal. As realidades não são seguras, mas ao invés disso têm de ser praticadas. O mundo não é passivo, a espera de ser visto pelas pessoas, tudo é feito. Divido o tripé metodológico que montei nessa pesquisa, e os tipos de dados coletados dele, da seguinte forma: 1. aproximações entre teatro e antropologia desenvolvidas no trabalho de campo pela realização de oficinas; 2. métodos mais tradicionais de pesquisa em antropologia que consistiram na realização de entrevistas, etnografia e observação participante; 3. diversos momentos de participação incorporada, que foram as ocasiões em que realizei atividades direcionadas com venda nos olhos.

6. Descrição metodológica

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1. Arte e antropologia Como dito, a primeira entrada no campo se deu com a oficina de teatro ministrada pela atriz e diretora AnaLu Palma e pela atriz Inny Accioly para atores cegos e não cegos. Ocorreu durante o mês de abril de 2011 no prédio da caixa cultural, no centro do Rio de Janeiro e teve 48 horas de duração. Apesar de, logo de início, informar a todos sobre a pesquisa, minha participação ao longo do processo aconteceu como se fosse uma das atrizes. Participei também da Oficina “Imagens Vivas em Movimento”, um desdobramento do trabalho anterior, que se realizou entre os dias 20 e 23 de setembro de 2011 no SESC Santa Luzia, também no centro da cidade, com a posterior apresentação das cenas trabalhadas no dia 27 de setembro. Acompanhei e desenvolvi junto com AnaLu Palma uma oficina de expressão corporal no Instituto Helena Antipoff para cinco crianças que, além da cegueira, também apresentavam algum tipo de deficiência mental, durante o mês de setembro de 2011, com 5 encontros de 3 horas de duração cada um. Participei dos ensaios e do processo de filmagem do curta “Imagens Vivas - uma experiência tátil e artìstica da pessoa que não enxerga”, roteiro de AnaLu Palma e direção de Marcelo Pontes. O filme é uma ficção que teve como intuito apresentar alguns resultados do projeto de pesquisa corporal e expressiva “imagens vivas”. O projeto trabalha a possibilidade expressiva do corpo de quem não enxerga através das artes plásticas. São utilizadas fotografias, pinturas ou esculturas. Pessoas que enxergam assumem a postura corporal das obras e, depois, os deficientes visuais tocam essas pessoas e assumem em seu próprio corpo as formas tocadas. Assim, aprendem em sua própria musculatura as possibilidades corporais e artísticas expressas nas obras. É um trabalho que serve como pano de fundo para a composição teatral, mas também para o conhecimento de artes plásticas daquele que não enxerga, bem como da expansão corporal comunicativa e expressiva. Ter participado como atriz no curta e na montagem teatral que fizemos no SESC Santa Luzia, além de reavivar minha veia artística exercitada em vivências teatrais e circenses passadas, foi também uma oportunidade de participar de processos performáticos com enfoque na criatividade e na imaginação, onde o conhecimento emerge da prática artística. A participação nessas experiências e o contato entre duas maneiras de estar no mundo, a partir da ausência ou da presença da visão, colocaram desafios importantes para a pesquisa e levantaram questionamentos sobre as potencialidades que o 29

desenvolvimento de um dispositivo propositivo de pesquisa poderia trazer para a análise, especialmente para a compreensão de questões relativas aos usos do corpo como recurso expressivo por pessoas cegas e ao estigma advindo da deficiência visual. A ideia era desenvolver uma abordagem que não se ancorasse apenas em um discurso sobre, mas onde fossem propostos exercícios corporais e jogos teatrais que servissem de estímulo para se chegar a estas questões. Propor uma oficina desse tipo foi também uma aposta na premissa de que o conhecimento se constrói por meio da interação e da troca, a partir de experiências vividas e compartilhadas. Juntamente com Clara de Andrade, atriz e mestre em artes cênicas pela UNIRIO, desenvolvemos a oficina “Criatividade, teatro e imaginAção”, como voluntárias, para frequentadores do Instituto Benjamim Constant, localizado na Urca, na cidade do Rio de Janeiro. Mantivemos essa oficina por 1 ano e 3 meses, durante os meses de outubro de 2011 a dezembro de 2012, com encontros semanais de cerca de 3 horas de duração, sendo que nos últimos 3 meses os encontros se intensificaram por ocasião da apresentação final. A proposta da oficina parte de um diálogo entre duas trajetórias, uma marcada pela antropologia e a outra pelo teatro, que por caminhos diferentes chegam a um objetivo comum. Levando a sério a sugestão do sociólogo Erving Goffman, do teatro como metáfora para a vida social, e a ideia do teatrólogo Augusto Boal, de que todo mundo é teatro mesmo que não faça teatro, elaboramos uma proposta onde essas duas linguagens pudessem conversar, contribuindo para a construção dos objetivos. Na oficina, procuramos trabalhar os recursos comunicativos presentes nos gestos, nas mímicas e nas expressões faciais, técnicas corporais que são apreendidas pela visão, e que se tornam menos acessíveis a pessoas cegas especialmente pela restrição social ao toque corporal entre indivíduos na vida cotidiana. Um segundo objetivo deste trabalho foi utilizar técnicas do Teatro do Oprimido 6, um método teatral desenvolvido por Augusto Boal e que se baseia no princípio de que o ato de transformar é transformador, para trabalhar o estigma e os estereótipos relacionados à cegueira. Desenvolvemos diversas dinâmicas e exercícios que tinham como ponto de partida as histórias pessoais de opressão vividas pelos participantes. Com jogos lúdicos e teatrais que conjugam som, imagem e movimento, os convidamos a representar as histórias e

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O Teatro do Oprimido é praticado no Brasil e em mais de setenta países espalhados pelo mundo, com expressiva atuação nas áreas de saúde mental, educação, direitos humanos e diversidade cultural. Para maiores informações ver: www.cto.org.br.

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elaborar coletivamente suas próprias experiências de opressão. A proposta envolve uma dinâmica que parte de questões individuais, mas que se inserem num contexto social mais amplo. Assim, uma situação localizada trazida por um dos integrantes do grupo, a dificuldade de uma família em aceitar a deficiência visual do pai, representa não só a historia daquele núcleo familiar especifico, mas também as tensões e desajustes compartilhados por todos ao terem que lidar com suas cegueiras entre seus familiares. Outras temáticas que surgiram ao longo dos exercícios foram as reações ao uso da bengala, as necessidade de superação e transformação de si a partir da percepção ou trauma da cegueira, as relações de submissão e dominação que se estabelecem entre videntes e cegos, relações de confiança através do reconhecimento do espaço e do corpo do outro. A cena de teatro fórum7 que apresentamos no evento de encerramento das atividades do Instituto no ano de 2012 vinha sendo trabalhada nos 3 meses anteriores e surgiu de uma experiência pessoal de um dos participantes no mundo do trabalho. Sua condição de deficiente visual o colocou vulnerável a sofrer uma situação de opressão. Escolhemos coletivamente trabalhar essa cena pelo apelo e mobilização que a história gerou entre os integrantes do grupo, que se identificaram com a vivência do colega. Percebemos que era um assunto pertinente a ser trazido para a cena e para o debate, por sua capacidade de estimular a reflexão e ações efetivas para a transformação desse cenário. Os alunos demonstraram um grande desejo por compartilhar a reflexão com a plateia e também a necessidade de trazer esse assunto, muitas vezes polêmico, à tona. Ao final de cada semestre os participantes se mostravam desejosos em dar continuidade e aprofundar as propostas da oficina. Percebemos uma forte demanda por um espaço artístico de criação e reflexão sobre as questões decorrentes da sua condição de vida. Um espaço crítico, onde possa existir a fala, a escuta e a elaboração dessas questões através do teatro. A realização da oficina foi mutuamente enriquecedora. Vislumbramos ainda outras dinâmicas que poderiam ser aplicadas de maneira frutífera, como a interface das artes plásticas com o teatro, a realização de atividades temáticas

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"No Teatro-Fórum a barreira entre palco e plateia é destruída e o diálogo implementado. Produz-se uma encenação baseada em fatos reais, na qual personagens oprimidos e opressores entram em conflito, de forma clara e objetiva, na defesa de seus desejos e interesses. No confronto, o oprimido fracassa e o público é estimulado, pelo Curinga (o facilitador do Teatro do Oprimido), a entrar em cena, substituir o protagonista (o oprimido) e buscar alternativas para o problema encenado” (Bárbara Santos em www.cto.org.br).

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direcionadas, a abertura de outros espaços de diálogo com o público. Descobrimos ao longo do trabalho que a oficina se tornava uma potente ferramenta e veículo para a transformação humana e social. É por isso que reconheço na oficina a terceira característica da ideia de performance apresentada por Conquergood (2002), um ambiente de pesquisa-ação criado pela conexão estabelecida com as pessoas. Tática de intervenção baseada na ética da reciprocidade e da troca, espaço colaborativo de engajamento e compromisso social. É possível encontrar aproximações entre a metodologia desenvolvida na oficina por meio do uso de técnicas do teatro do oprimido e a construção de um Teatro-Fórum com o método de intervenção sociológica desenvolvido por Dubet e Tironi (1989), especialmente pela ideia de diálogo. A intervenção sociológica deve ser concebida como um trabalho ao longo do qual os indivíduos debatem entre eles e com os interlocutores e refletem sobre a ação comum. O sociólogo desempenha um papel ativo no desenvolvimento do método. Ambos podem ser entendidos como uma elaboração coletiva, um conjunto de técnicas utilizadas para expor as relações no interior de um movimento, a respeito de uma problemática ou de uma experiência. A tentativa de imergir no universo da cegueira incluiu também a literatura e o cinema, a partir de filmes e livros que tratam do tema ou que têm em seu enredo alguma personagem cega. Na lista de leituras literárias inclui-se: Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, O Olhar da Mente, de Oliver Sacks, Memórias do Brasil, de Evgen Bavcar, Atlas, de Jorge Luis Borges, Édipo Rei, de Sófocles, A História da minha vida, de Helen Keller. Entre os filmes que assisti, destaco: O Milagre de Anne Sullivan, direção de Arthur Penn, A Prova, de Jocelyn Moorhouse, O silêncio, de Mohsen Makhmalbaf, Perfume de Mulher, de Martin Brest, À primeira vista, de Irwin Winkler, A cor do paraíso, de Majid Majidi, Vermelho como o Céu, de Cristiano Bortone, Janela da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho, Ray, de Taylor Hackford, Os cinco sentidos, de Jeremy Podeswa, Black Sun, de Gary Tarn, Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meireles, Abraços Partidos, de Pedro Almodóvar, Dançando no Escuro, de Lars von Trier, Hoje eu quero voltar sozinho, de Daniel Ribeiro. Assisti toda a programação de filmes que tinham a cegueira como tema de discussão no 5º e no 6o Assim Vivemos - Festival Internacional de Filmes Sobre Deficiência. O festival aconteceu entre os dias 16 e 28 de agosto de 2011 e entre os dias 21 de agosto e 1 de setembro de 2013 no Centro Cultural Banco do Brasil-RJ. Estive presente também em dois Encontros Multissensoriais em 2011, um programa 32

desenvolvido através de colaboração entre o Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) e o Núcleo de Pesquisa Cognição e Coletivos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ (NUCC). Os encontros de 2011 aconteceram uma vez por mês entre março e novembro e tiveram como proposta reunir pessoas cegas e videntes para a partilha e a troca de experiências em torno de obras do acervo do museu. O programa procura promover experiências com obras de arte selecionadas que mobilizem os diferentes sentidos e possibilite a cegos e videntes o exercício do ver e do não ver.

2. Pesquisa de campo e entrevistas Para essa pesquisa foram realizadas doze entrevistas em profundidade com nove pessoas cegas, três delas entrevistadas uma segunda vez. Apresento ao final dessa introdução uma tabela com um perfil das pessoas cegas entrevistadas. Foram entrevistados também quatro profissionais do Instituto Benjamin Constant – duas terapeutas ocupacionais, uma psicóloga e a coordenadora do NUCAPE (Núcleo de Capacitação e Empregabilidade). Concluí o curso de formação de 40 horas em técnico de Orientação e Mobilidade pelo IBC em março de 2012. Acompanhei semanalmente pelo período de 5 meses (de outubro a dezembro de 2012 e março e abril de 2013) os atendimentos básicos oferecidos pelo setor de reabilitação do Instituto: Habilidades Básicas (HB), Braille, Atividades da Vida Diária (AVD) e Orientação e Mobilidade (OM). Visitei dois apartamentos onde moram duas das pessoas cegas entrevistadas, para melhor compreender como funcionam as suas estratégias de organização do ambiente doméstico, objetos, utensílios, alimentos, roupas, aparelhos, entre outros, em suas vidas diárias. Incontáveis horas, dias, meses de convivência em que pude exercitar a “observação participante” quando estive com pessoas cegas nos mais diversos tipos de eventos e situações sociais. Desenvolvi um ciclo de relações próximas com algumas pessoas chaves. Destaco especialmente a relação que estabeleci com Dora e, posteriormente, com Beatriz. A proximidade maior com elas me possibilitou a convivência em situações informais, sociais e de lazer, que considero momentos privilegiados para o surgimento de novas ideias e para o aprofundamento das questões de pesquisa analisadas.

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Tenho muitas gravações desses encontros informais, autorizadas desde o início por Dora, que me deu livre permissão para gravar ou anotar o que quisesse. Estava sempre com meu gravador (algumas vezes fiz gravações no celular) ou caderno em mãos. Conversas que tínhamos caminhando por ruas, em bares, restaurantes, durante eventos como o festival de cinema, em inúmeras ocasiões nas oficinas, em aniversários, nas preparações para o workshop que elaborei com Dora, entre outras situações. Foote Whyte (2005), no anexo A de Sociedade de Esquina, descreve suas formas específicas de aproximação com o campo, apresentando como se deu sua entrada e o desenvolvimento de sua pesquisa, que se tornaria uma das etnografias exemplares de antropologia urbana e dos estudos sobre comunidades. Suas formas de aproximação apontam para a importância das relações estabelecidas em campo para o tipo de informação que obteve e para o estudo que construiu. O autor ressalta a preocupação de conseguir uma boa entrada, de aceitar as pessoas e ser aceito por elas a partir das relações pessoais desenvolvidas, de passar tempo com os informantes em situações informais, o apoio de indivíduos chaves, a participação cotidiana na vida das pessoas. Foote Whyte (2005) destaca ainda a particularidade da relação que estabeleceu com Doc, que de informante chave passou a ser o que chamou de “colaborador da pesquisa”. Guiada pelo autor, reconheço a importância das relações que constituí para o processo de pesquisa e, certamente, para a qualidade dos dados levantados, das perguntas feitas, das respostas obtidas, das propostas criadas e desenvolvidas. Nessa pesquisa Dora é a colaboradora que desde o início entendeu e correspondeu à proposta de uma maneira incrivelmente aberta e generosa. Beatriz e Dora, muito mais do que informantes, caminhos que se cruzam e relações que se estabelecem para a vida. 3. Participação incorporada – atividades com venda Em diversos momentos ao longo da pesquisa realizei atividades direcionadas de olhos fechados ou com vendas nos olhos, com a proposta de estar corporalmente atenta às percepções não visuais do mundo. Propus para as profissionais que realizavam o atendimento de Habilidades Básicas e de Braille se poderia, além de observar os atendimentos em um dos horários, fazer as atividades de olhos vendados em outro horário. Obtive receptividade para a proposta e realizei de olhos vendados diversos exercícios e práticas propostos pela TO de Habilidades Básicas, que fez comigo o programa básico que costuma fazer com os reabilitandos que atende. Ana, uma das pessoas cegas entrevistadas e professora de 34

Braille do IBC, se dispôs a me ensinar o Braille pelo tato. Tive seis encontros com Ana. Tendo comprado reglete e punção 8, também pratiquei em casa ao longo de dois meses. Comecei a entender os fundamentos do código mas, embora totalmente possível, ainda não tive folego para dar continuidade a proposta inicial, de aprender o Braille pelo tato. No curso de técnico em OM diversas atividades da formação são feitas de olhos vendados, o que é proposto pela professora e realizado por todos os alunos que fazem a formação. Aprendemos e desempenhamos com venda as técnicas de auto proteção, deslocamento em ambiente fechado, deslocamento em ambiente aberto, técnicas de locomoção com guia vidente (troca de lado, passagem estreita, passagem por porta, detectar e explorar assento), técnicas de uso e locomoção com a bengala longa (toque, lápis, bengala na diagonal, varredura, exploração e detecção de objetos). Subir e descer escada fixa e rolante com guia vidente e com bengala. Entrar e sair de ônibus e de automóvel. Deslocamento na rua com guia vidente e com bengala. Segui a orientação e o auxílio de Dora ao longo de um final de semana em que passei vendada em sua casa. A experiência aconteceu no mês de março de 2013 e durante esses dois dias ela se dispôs a me mostrar corporalmente como realiza as atividades cotidianas e a forma como se organiza, a partir das suas ações no ambiente doméstico. A experiência do final de semana vendada teve um caráter duplo em que eu investigava minhas questões de pesquisa – organização da casa, práticas cotidianas, entender como ela faz, fazendo, observando com o corpo e não com os olhos - ao mesmo tempo em que foi também um laboratório para o workshop “Além da visão” que Dora posteriormente conduziria. A ideia era observarmos como eu, pessoa que enxerga, reagiria ao tempo de olhos vendados, como me sentiria em relação ao meu corpo no espaço, às sensações ou medos que esse estado pudesse ou não provocar, o tempo de readaptação dos olhos à luz depois de retirada a venda. Realizar a experiência e posteriormente participar na elaboração, na construção e no desenvolvimento desse workshop em parceria com Dora foi para mim uma espécie de retribuição da dádiva

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Reglete e punção são os instrumentos considerados fundamentais para o aprendizado do sistema Braille. A Reglete é uma régua formada por linhas com pequenos retângulos vazados, cada retângulo contém marcas dentadas para demarcar a matriz básica dos seis pontos justapostos da célula Braille. Confeccionada em alumínio e plástico, é munida de uma prancha que a ampara. A punção é um artefato formado por uma parte sólida que se encaixa entre os dedos e uma ponta fina de metal que perfura os pontos em relevo no papel. A parte sólida pode ser feita em madeira, plástico ou metal e tem um formato arredondado ou anatómico. Ver imagens em anexo.

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recebida quando ela se disponibilizou com tanta generosidade a se transformar em meu “objeto” de pesquisa. Supervisionei e auxiliei de olhos vendados a realização dos quatro encontros que compuseram o workshop “além da visão”, dessa vez já como uma praticante um pouco mais “habilidosa”. Cada encontro teve duração de quatro horas. O workshop foi uma iniciativa concebida por Dora, que produzimos e desenvolvemos em parceria. Foram criados com a proposta de enriquecer a percepção de mundo e eram compostos por diversas atividades práticas e vivências realizadas em ambiente escuro. As pessoas que enxergavam, ao chegar, recebiam uma venda logo na antessala da entrada. Na meia hora final começávamos o processo de retirada da venda e adaptação gradual à luz. Os encontros aconteceram mensalmente em julho, agosto, setembro e outubro de 2013. Tiveram uma média de 8 a 12 participantes, apenas uma delas era cega.

7. Provincializar a visão

Uma possibilidade para a compreensão da diferença instituída pela cegueira como forma de estar no mundo pode ser colocada a partir das reflexões desenvolvidas pelos chamados estudos pós-coloniais e a crítica que colocam ao modelo ocidental de construção do conhecimento e assimilação das diferenças. Com inspiração nas reflexões e provocações que Foucault, Deleuze e Derrida colocam às ciências humanas, à parcialidade do conhecimento e levando em consideração a proposta desconstrutivista, os estudos pós-coloniais questionam as categorias e os conceitos de pensamento, de identidade e mesmo de humano produzidos pela modernidade no contexto do colonialismo. Chakrabarty (2000) nos convoca a “provincializar” a Europa. O que entende por Europa não é uma região específica do mundo, mas uma figura imaginária que permanece profundamente embutida em clichês e formas reduzidas de alguns hábitos cotidianos de pensamento. Hábitos que invariavelmente estão subentendidos nas análises que endereçam questões de modernidade política no sul da Ásia. O autor acredita que é impossível pensar o fenômeno da modernidade política de qualquer lugar do mundo sem invocar certas categorias e conceitos cuja genealogia vai fundo na tradição intelectual e mesmo teológica da Europa, presente em conceitos como cidadania, estado, sociedade civil, distinção entre público e privado, indivíduo, direitos humanos, entre outros. Todos carregam as fronteiras do pensamento e da história 36

européia. Provincializar a Europa é reconhecer que essa teoria, as suas pressuposições sobre o tempo e a história ou sobre o progresso, está situada no contexto europeu particular de sua produção. Sua crítica aos teóricos sociais do sul da Ásia é por fazerem “vista grossa” a esse contexto situado e aplicar uma teoria localizada como se ela fosse universal. O autor nos pede para considerar que tipo de teoria poderá emergir do sul da Ásia e de outras regiões do mundo quando circunscrevermos a teoria europeia que foi tomada como universal. Chakrabarty (2000) demonstra que a produção de um tipo particular de teoria social se situa num contexto específico e que existem outros contextos nos quais essa teoria não se aplica. A metáfora da provincialização se torna útil ao nos lembrar que domínios simbólicos, propriedades e análises estão sempre circunscritas por - e se abrigam em - um campo semiótico mais amplo. Os anos de pesquisa, envolvimento e as relações desenvolvidas com pessoas cegas e suas formas de conhecimento me ensinaram a valorizar a não-visão. Mergulhar nas perspectivas de pessoas cegas foi instrutivo acerca das riquezas e sutilezas de um mundo não-visual. Aprendi e me surpreendi muito com as capacidades e as práticas diárias de quem não vê. O entrelaçamento com esses corpos e suas formas de conhecimento, ao mesmo tempo, nos coloca diante de um paradigma cultural que, ao sobrevalorizar a visão, também nega valor à vida de pessoas com cegueira. O prestígio da visão na cultura ocidental, como lembra Martins (2006), tem profundas raízes que nos remetem a Aristóteles e sua definição dos cinco sentidos, com a visão no topo da hierarquia. Definição que hoje a antropologia dos sentidos questiona como duvidosa ao sublinhar a importância de percepções como equilíbrio, de temperatura, propriocepção, entre outras, que a cultura ocidental nunca reconheceu como “sentidos”, para a construção de si e de mundo em outras culturas (Geurts, 2003, Van Ede, 2009). Na modernidade ocidental, que toma a iluminação enquanto metáfora para a razão, fica ainda mais explícita essa pregnância e o centrismo do visual enquanto forma de conhecimento de mundo. Nos métodos de produção desse conhecimento, consagrados também na antropologia, figura a centralidade do “visualismo”. Goffman e as minuciosas análises de uma microssociologia em que o olhar define a competência do pesquisador. A observação participante de Malinowski que também se funda no privilégio da visão. “Olhar distanciado” ou “ponto de vista”, novas metáforas que sublinham a competência visual do pesquisador, antes e acima de qualquer outra. 37

Visualismo é o termo cunhado por Fabian (1983) para criticar uma corrente ocidental de pensamento em que a capacidade de “visualizar o outro” se torna equivalente à capacidade de compreendê-lo. Fabian coloca que o visualismo presente na etnografia e na prática da observação participante está relacionado a uma corrente do pensamento ocidental que tem um viés ideológico que coloca a visão como o mais nobre dos sentidos e a conceptualização gráfica e geométrica como a forma mais “exata” de comunicar o conhecimento. Esse visualismo o autor chama de um “estilo cognitivo” particular, que gera uma espécie de preconceito em nosso entendimento de todos os tipos de experiência perceptiva, visuais ou não. Van Ede (2009) sugere que, para uma abordagem dos sentidos e das diferentes formas de perceber o mundo, o método clássico da observação participante precisa estar implicado em algo mais do que a mera observação e escuta. No confronto com o "outro", os sentidos colocam em questão as definições ocidentais sobre o conhecimento e os métodos apropriados para produzi-lo. A autora defende que, para fazer uma antropologia dos sentidos, é necessário ter uma abertura, uma vontade e uma coragem para transformar seu próprio corpo em uma ferramenta de pesquisa. Esse é um passo que cai fora da linha metodológica delineada pela ciência ocidental. Evocar a metáfora da provincialização para a visão é criticar um modelo sensorial inerente à modernidade ocidental, seu visualismo assumido e as tendências anestésicas do mundo moderno. É denunciar essas “figuras imaginárias” embutidas nos hábitos e formas de pensamento. É reconhecer que as teorias e os métodos sobre as formas de produção do conhecimento que privilegiam a visão se situam num contexto e numa tradição particular de pensamento que não pode ser universalizada para todos os meios de produzir conhecimento. Hábitos que estão subentendidos nas técnicas e tentativas que se faz de endereçar questões sobre as formas de conhecer da cegueira. Chakrabarty (2000) nos faz lembrar que métodos hegemônicos de produção de conhecimento se situam em um contexto social específico e que existem outros contextos em que esses métodos não se aplicam inteiramente. Provincializar a visão é também renunciar à distância que nos acostumamos a manter entre o mundo e o nosso conhecimento sobre ele. Uma distância assegurada pela metáfora do olhar “de cima” para produzir conhecimento, pela noção de representação e pelas marcações que definem natureza e cultura como entidades separadas. Renunciar a essa distancia implica, para McLean (2009), em assumir responsabilidade por nossos 38

engajamentos criativos e formadores de mundo numa multiplicidade de presenças humanas e “outras-que-humanas”, presenças que não podemos aspirar nem a controlar, nem a exaustivamente conhecer. No processo desta tese procurei em muitos momentos abrir mão de um mundo de pesquisa que é hegemonicamente visual em seus métodos. Sem esquecer dos limites e possibilidades de sair de onde se veio, procuro experimentar, nesses mesmos métodos e na criação de outros, formas não visuais de observação e participação, com o intuito de criar aberturas para se falar de um outro lugar. Como lembra Law (2004), não estamos lidando simplesmente com métodos, um conjunto de técnicas ou uma metodologia. Nem mesmo estamos lidando apenas com os tipos de realidade que queremos reconhecer ou os tipos de mundos que esperamos construir. Métodos são também, fundamentalmente, um modo de ser. Eles falam sobre o tipo de antropologia que queremos praticar. Sobre o tipo de pessoa que queremos ser, sobre como queremos viver a vida. Método caminha junto com trabalho, com formas de trabalhar, com formas de ser.

8. Estrutura da tese

Divido as reflexões realizadas na tese em torno de seis capítulos. Na questão da cegueira, a relação entre teoria e prática se atualiza em diferentes níveis, que constantemente se cruzam. O conhecimento sobre os processos de desenvolvimento cognitivo e aprendizagem de pessoas cegas produzido por cientistas ou especialistas informa os manuais, as práticas e os modos de atuação de outros profissionais. Esses, por meio de sua atuação com pessoas cegas nos serviços de reabilitação ou no ambiente pedagógico, constituem um corpo teórico-prático, que vai orientar o aprendizado e o desenvolvimento de modos de estar no mundo de pessoas cegas. Finalmente, as próprias pessoas cegas e suas formas de percepção, suas próprias habilidades, modos de ser, de fazer e de estar no mundo, com o espaço para aquilo que digerem das teorias e geram nas práticas ao longo dessas interfaces. Pretendo, no primeiro e no segundo capítulo, me aproximar da malha dessas dimensões (Ingold, 2011). No

primeiro

capítulo,

abordo

a

problemática

da

cegueira

e

sua

interdisciplinaridade primeiramente a partir de um entendimento do conceito mais amplo de deficiência, as transformações do conceito e sua relação com determinadas noções de corpo. Em seguida, procuro uma forma de estabelecer os limites do objeto de 39

análise a partir do conhecimento que outras disciplinas produziram sobre ele. Levo em conta o caráter múltiplo da questão da cegueira fazendo um mapeamento do campo científico envolvido. O que é ser cego e quais as implicações da cegueira do ponto de vista de outras ciências? Procuro trazer para a análise os registros de verdade sobre a cegueira de outros campos disciplinares, buscando entender o que é ser cego em termos médicos, cognitivos, neurológicos e pedagógicos. Passo pela mediação de outras ciências para entender o que significa conhecer com a cegueira, qual a perspectiva cognitivista nesse contexto, qual a concepção de corpo e qual é a entrada médica. Essa é uma reflexão que se justifica pela construção transdisciplinar da questão da cognição e da percepção. Sem esquecer da relação de poder/saber em torno de qualquer definição, procuro descrever esse corpus médicocientífico de saber sobre a cegueira como uma tentativa de melhor compreender e definir o objeto de análise, entendendo que a forma como se define a cegueira por essas disciplinas estrutura as práticas formativas de pessoas cegas. Em um terceiro momento deste capítulo procuro articular o levantamento feito inicialmente aos pressupostos de uma noção de cognição presente em manuais de desenvolvimento e aprendizagem para crianças cegas e algumas de suas consequências conceituais. Volto a atenção para os métodos, as didáticas ou os mecanismos adaptativos sugeridos em tais manuais para uma pedagogia da cegueira. As práticas propostas fazem emergir outra concepção de cognição, implícita nos manuais, relacionada à experiência e à ação de um corpo inteiro em um ambiente. No segundo capítulo, procuro adotar a sugestão de Bourdieu (2011) de retornar às práticas para compreender o social, focando nas atividades reais como tais, nas relações práticas dos agentes com o mundo. Descrevendo ações e atividades observadas em atendimentos da reabilitação ou as formas de fazer de pessoas cegas nas suas relações cotidianas, busca-se o encontro com esse senso prático nas próprias situações em que está localizado, já que, como lembra Bourdieu, a lógica prática não funciona sem lastro. Apresento uma descrição do universo material da cegueira, procurando destacar seus valores diferenciais de uso e seus significados. Com a ausência da visão, procuro compreender como se dá a reorganização corporal, da percepção e dos sentidos, como o mundo é percebido a partir deles e quais as estratégias desenvolvidas para realização de atividades cotidianas. As reflexões elaboradas tiveram o intuito de seguir práticas nas quais pessoas, corpos, sentidos, objetos, manuais, ambiente, dispositivos e estratégias são incorporados, treinados ou 40

desenvolvidos para se viver com a cegueira, tendo como base a vida cotidiana. Resultam de um trabalho etnográfico que procurou acompanhar os conhecimentos práticos desenvolvidos por profissionais e reabilitandos em um centro de reabilitação, mas também por pessoas cegas nas suas atividades cotidianas como comprar e escolher roupa, estratégias e organização do ambiente, a incorporação da bengala para locomoção e tarefas domésticas. Esse conhecimento prático corrobora uma compreensão da cognição e do próprio corpo como estendidos, ao enfatizar o papel do ambiente e dos dispositivos no cotidiano de pessoas cegas. No terceiro capítulo, volto minha atenção para as relações de interação entre as pessoas, especialmente a dimensão da comunicação, e levanto algumas das possíveis implicações que um foco excessivo na funcionalidade na educação de pessoas cegas pode ter para sua expressividade corporal. Quais os efeitos advindos de uma interação que se baseia na dupla condição de ver e não ser visto / não ver e ser visto? A questão principal deste capítulo se localiza na fronteira entre um conhecimento tátil do mundo por um corpo privado da visão e os impedimentos sociais para um conhecimento corporal do outro através do toque. O que essa situação coloca para pensarmos a comunicação ou a própria representação? Dialogando com os estudos de gênero e sexualidade na sociedade brasileira, trato ainda de algumas questões que surgem na interseção entre corpo, cegueira e relações afetivo-sexuais. Neste capítulo também inicio uma reflexão sobre percepções que comunicam para pessoas cegas, que lhes proporcionam informações sobre o lugar ou sobre as pessoas, mas que não estão necessariamente vinculadas a nenhum dos cinco sentidos convencionais da cultura ocidental. A partir da impossibilidade do uso do olhar para se situar no espaço, outros sentidos e outras estratégias se apresentam para compor essa forma. O quarto capítulo tem como foco as representações espaciais e urbanas de pessoas cegas. Trazendo a situação de deslocamento como eixo, busco entender como se constroem seus itinerários urbanos, o que contribui para formarem suas representações dos lugares, os atributos experienciais que participam desse processo. Os atendimentos

que

acompanhei e o curso que fiz em OM são fontes de dados importantes para a análise, a partir das técnicas de uso da bengala e do treinamento corporal dos sentidos para a locomoção sem ver. Abordo o sentido de familiaridade ou distância dos trajetos, maior ou menor autonomia no deslocamento e ainda as relações com a cidade a partir das suas 41

impressões sobre determinados lugares considerados turísticos. Trato das relações que se estabelecem no espaço público a partir do imperativo da ajuda. Procuro entender a importância e o lugar dessa dimensão no acesso de pessoas cegas aos territórios urbanos. Finalmente, continuo uma reflexão iniciada no capítulo anterior, pensando sobre a relação entre sensível e inteligível a partir das materialidades do mundo e das associações que as transformam em sinais significativos que orientam o deslocamento de pessoas cegas. No quinto capítulo, elaboro uma reflexão sobre as relações de identidade e diferença

na

cegueira,

mantendo

como

centro

as

trajetórias

sociais

dos

pesquisados. Procuro abordar essa problemática a partir de uma dupla entrada existencial e social. Passando pelas representações culturais da cegueira, trato das ocasiões sociais e das formas de lidar com a diferença em situações de interação em espaços públicos. Costuro uma discussão sobre inclusão e exclusão e os dados sobre deficiência do censo IBGE 2010 com a narrativa dos pesquisados sobre suas trajetórias de escolarização e trabalho. Enfatizando os aspectos sociais, busco entender como a cegueira é vivida por quem nasce e por quem se torna cego, os pontos em comum e distanciamentos dessas experiências. Por fim, faço um exercício analítico de pensar os binarismos, “nós” e “eles”, “normal” e “anormal”, suas possìveis desestabilizações e os processos de produção de diferença e de identidade na cegueira. No sexto e último capítulo, procuro retomar o ponto de partida da tese - um incômodo com o que chamei de excesso do visual - para pensar as diferenciações da visão a partir da cegueira. Se ao longo do processo de pesquisa estabeleci um movimento de pensar a cegueira contra um pano de fundo de visão, a ideia desse capítulo final é realizar uma mudança de escala e repensar a visão com a cegueira. Apresento as descrições de visualidade de suas cegueiras trazidas pelos pesquisados, trato dos sinais de fronteira, momentos de passagem entre mundos para quem vai perdendo a visão aos poucos, a relação dos pesquisados com suas memórias visuais, sonhos, percepção de cor e o imaginário sobre como seria enxergar. Abordo a variabilidade da visão a partir das descrições de mundo que pessoas que enxergam fazem para pessoas cegas. Ao problematizar a visão a partir da cegueira, esbarramos num ponto de encontro que pode ser condensado na palavra “imagem”. Num segundo momento deste capítulo a proposta é refletir sobre os processos de produção de imagens por quem não enxerga, imagens que não têm necessariamente a visão como base, mesmo que em 42

alguns momentos adquiram contornos que poderiam ser chamados de visuais. Encerro o capítulo e a tese com uma reflexão que aprofunda a discussão iniciada ao longo de outros dois capítulos, sobre as formas de significação na cegueira e a perspectiva, ou o ponto de vista, da não-visão.

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Perfil dos entrevistados 1. Caetano tinha 56 anos de idade e 22 anos de cegueira. É paraibano, mas veio para o Rio de Janeiro aos 17 anos para servir o exército e trabalhar. Ficou cego em 1990, aos 34 anos, devido a um acidente de carro. Antes do acidente, trabalhava como autônomo, tinha um caminhão e era motorista agregado de uma distribuidora de bebidas. Não tinha o primeiro grau completo. Devido ao acidente, precisou tirar os dois globos oculares. Atualmente é viúvo e mora com um dos filhos no bairro de Belford Roxo. Foi casado por 20 anos e tem dois filhos deste casamento. Depois que ficou cego retomou os estudos, completou o segundo grau, ingressou na faculdade de direito. Concluiu a faculdade em 2010, em seguida prestou a prova da OAB e foi aprovado. Hoje em dia vive da aposentadoria por invalidez (salário mínimo) com acréscimo de 25%. Às vezes faz alguns “bicos” cobrindo o plantão de um amigo como operador de câmara escura em um hospital em Niterói. Estuda para passar em concurso público. 2. Ana nasceu cega, em 1962, num lugarejo chamado Riacho das Almas, no interior de Pernambuco, município de Caruaru. Veio para o Rio de Janeiro aos 6 anos de idade para estudar. A família (pai, mãe e irmão) se mudou para o Rio e moravam na favela do Jacarezinho. Ela estudou no Instituto Benjamin Constant, foi interna até completar o ensino fundamental. Depois fez o segundo grau em uma escola estadual, mas ganhou bolsa por desempenho no IBC e continuou como interna, morando durante a semana no alojamento até os 18 anos. Fez faculdade de psicologia. Hoje em dia é professora concursada do IBC de Braille e mora sozinha num apartamento na Tijuca. Foi casada três vezes. O primeiro marido tinha baixa visão e os outros dois também eram cegos. Não teve filhos. 3. Dora tinha 60 anos e sua cegueira é considerada congênita, um tipo específico de retinose pigmentar. Embora considerada cega de nascença ela teve uma porcentagem muito baixa de visão periférica. Nunca viu cores, mas conseguiu diferenciar claro e escuro e ter noção de perspectiva. Foi perdendo essa baixíssima visão periférica até cerca dos 30 anos. Dora estudou 2 anos como interna do IBC, porque sua família morava na Penha e não dava para leva-la até lá todos os dias. Dos 6 aos 8 anos. Depois completou os estudos em uma escola de ensino regular. Se formou em psicologia pela UFRJ e hoje em dia atende como psicóloga, mas também tem uma empresa de acessibilidade na web. Já trabalhou na DataPrev e também fez parte da equipe de psicólogos da penitenciária do Carandiru, em São Paulo, entre outros trabalhos que teve. Na década de 1970 Dora ajudou a criar e fez parte do “Movimento de cegos em luta por sua emancipação social”. Se casou aos 30 anos com o primeiro marido, que era “cego novo”, mas ficou pouco tempo casada porque ele faleceu por complicações de uma diabete. Depois morou por cerca de um ano com um cara da República Dominicana, também cego, que acabou voltando para o seu país. Se casou novamente, seu último marido também era cego congênito e eles ficaram 13 anos juntos, tendo se separado em 2010. Dora não tem filhos e atualmente mora sozinha em um apartamento na Glória. 4. Jair tinha 51 anos e ficou cego aos 30 anos. Foi ficando cego por conta de seu trabalho na padaria. Era confeiteiro, trabalhava de madrugada, na época não recebeu nenhuma orientação sobre proteção ou segurança. Saía de um ambiente muito quente e tomava banho gelado, diz que isso foi dando problema na vista. O diagnóstico de sua cegueira é glaucoma e ele estava há 12 anos na fila para transplante de córnea. Ainda adolescente começou a trabalhar numa fábrica de explosivos e largou os estudos. Estudou até a 6 a série. Mora com o irmão, a ex-mulher e um dos filhos numa casa em Caxias. Mora na mesma casa que a ex-mulher, mas não estão mais juntos. Ela é 15 anos mais velha que ele, tinha 3 filhos quando eles se casaram, ficaram juntos por mais de 20 anos e ele criou os filhos dela, que considera seus. Tem 14 netos. Jair também é músico e de vez em quando toca cavaquinho ou pandeiro em uma banda de pagode. 5. Renata ficou cega com um ano e meio de idade por complicações de um parto muito prematuro (nasceu de 5 meses e meio). Tinha 27 anos quando a entrevistei. Ela diz que não tem nenhuma memória visual. Estudou no Instituto Benjamin Constant desde a estimulação

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precoce - entrou com 3 anos - até o ensino fundamental e depois fez o segundo grau no colégio Pedro II. Se formou em letras português-inglês na UFF e fez mestrado também na área de letras, com ênfase em latim, na UFF. Quando a entrevistei (2012) ela tinha passado há um ano em concurso para o IBC para dar aulas de Braille. Renata mora com a mãe, a irmã e o irmão na Tijuca. 6. Beatriz tinha 45 anos. Aos 4 anos teve o diagnóstico de retinose pigmentar e na adolescência começou a perder a visão. Perdeu primeiro a visão central, mas manteve uma porcentagem razoável de campo visual durante algum tempo. Hoje em dia é considerada cega, tem menos de 5% de visão periférica e ainda consegue discernir entre claro e escuro. Tem três irmãos, mas ela é a única da família que teve retinose. Quando passou para o segundo grau, que cursaria numa escola Normal, a visão de Beatriz piorou bastante e ela foi convidada a se retirar da escola. Só completou os estudos alguns anos mais tarde quando foi fazer a reabilitação no Instituto Benjamin Constant. Beatriz se casou em torno dos 24 anos e ficou 12 anos com o marido. Se separaram e ela tem uma filha de 15 anos desse casamento. Trabalha no setor de compras de uma grande empresa. Está terminando a faculdade de administração na Estácio e atualmente mora com a filha no Engenho Novo. 7. Camila tinha 47 anos quando a entrevistei e foi perdendo a visão desde os 17 até os 45, quando ficou cega. Ela teve essa baixa visão progressiva por causa de uma retinose pigmentar. Camila tem duas irmãs, uma delas também tem retinose. Fez o ensino médio em uma escola técnica em administração de empresas. Conseguiu se formar com muita ajuda dos amigos porque no final do segundo grau já não conseguia ler nada no quadro nem no seu próprio caderno. Completou a formação em massoterapia no IBC em 1988, uma das primeiras turmas. Trabalhou por muitos anos como massoterapeuta, atendendo no particular. Se casou aos 25 anos e ficou casada 20 anos. Seu ex-marido enxerga. Tem uma filha de 20 anos e mora no bairro de Madureira. 8. Pedro tinha 68 anos e perdeu a visão aos 55. Era portador de glaucoma e não sabia. Perdeu primeiro a vista esquerda e menos de 3 anos depois a direita. Morou 22 anos com a mãe de seus filhos. Teve quatro filhos, dois meninos e duas meninas. A mais nova tem 25 anos. Tem um neto. Pedro é militar reformado da marinha como terceiro sargento. Atualmente mora no centro de Mesquita e tem uma acompanhante que mora na sua casa. 9. Angela tinha 58 anos e ficou cega aos 42 devido a retinose pigmentar. Já tinha o diagnóstico de que ficaria cega desde pequena, os médicos disseram que deveria ser em torno dos 22 anos, mas ela só perdeu a visão aos 42. Mora em Nova Iguaçu e tem dois filhos e uma neta. Até ficar cega, trabalhava de costureira e também como cozinheira em casa de família. Não tinha o primeiro grau completo. Depois que perdeu a visão, completou os estudos e fez curso de operador de câmara escura. Hoje em dia trabalha em um hospital no bairro de Botafogo.

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1. Corpo e cegueira: modos de perceber Quais seriam as consequências corporais, perceptivas e cognitivas da ausência ou da perda da visão? Como este corpo cego é compreendido, avaliado, ensinado e construído pelas diversas disciplinas que interagem no processo de formação e orientação de pessoas cegas? Primeiramente, busco situar a cegueira em um campo mais amplo dos estudos sobre deficiência, realizando um breve histórico do conceito, descrevendo sua relação com determinados arranjos político-sociais e concepções de corpo e as transformações decorrentes em sua definição. Em um segundo momento, a proposta é considerar as teorias que formam e informam práticas profissionais e que servirão de base para pedagogias e modos de atuação. Busca-se entender o que é ser cego do ponto de vista médico oftalmológico, da neurociência e das ciências cognitivas, observando que a maneira como essas disciplinas tratam a questão estrutura o discurso sobre a cegueira e para os cegos. Ao fazer um levantamento dos modos de perceber a cegueira por outras áreas não estou me propondo a realizar uma antropologia crítica do campo científico ou mesmo fazer um levantamento exaustivo, mas sim trazer outros saberes para a análise como forma de delimitação e aprendizagem sobre o objeto. A forma como se compreende o corpo cego pelos diversos campos científicos envolvidos fundamenta modos de atuação com pessoas cegas e o desenvolvimento de técnicas, objetos, intervenções, pedagogias específicas que guiam sua percepção de mundo. O objetivo neste terceiro momento é, por meio da análise de textos e manuais pedagógicos voltados para a educação de crianças cegas, entender as categorias, as condições e os mecanismos que informam a percepção de mundo de pessoas cegas. Investigar as definições de cegueira pelas diversas disciplinas envolvidas é um modo de reconhecer que essas definições que entram em jogo têm efeitos de realidade. A maneira como a cegueira é definida – como uma falta, como algo a ser superado, como uma forma de estar no mundo, por exemplo – faz diferença para a forma como a própria cegueira será feita pelas pessoas que vivem essa realidade. E não é só a realidade da cegueira que está em jogo. Muitas outras realidades estão aí envolvidas. A cegueira traz consigo os modos e modulações de outras definições, como de corpo, (a)normalidade, (d)eficiência, autonomia e visualidade, para mencionar apenas algumas.

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1.1 Definindo deficiência “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (Artigo 1 da convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência, 2006)

A citação acima está no primeiro artigo da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, proclamada pela ONU em 2006 que, em seguida, se tornou o primeiro tratado de direitos humanos internalizado no sistema jurídico brasileiro com o status de norma constitucional, através do Decreto Federal nº. 6.949 (2009)9. A convenção pode ser vista como um marco de mudança conceitual, que retira a deficiência da pessoa e a coloca como resultado da interação entre um corpo “com impedimentos” e as “barreiras” do meio social. Como observa Law (1999b), nós intencionalmente partimos, aqui e ali, das constituições. Constituições são princípios que reivindicam generalidade, que governam, que regulam. A despeito do fato de que nem sempre fazem o que se reivindica, são ficções muitas vezes úteis. O autor considera que, independente das narrativas e modelos constitucionais, muitas - talvez a maioria - das pessoas com deficiência são substancialmente privadas de seus direitos nas democracias liberais. A principal razão é que se supõe uma homogeneidade das características de uma pessoa competente nas constituições. Parte-se do princípio de que uma pessoa capaz é ou deve ser: centrada; cognitivamente (textual e verbalmente) orientada; autônoma em relação ao ambiente que a circunda; e que as oportunidades disponíveis para ela sejam amplamente equivalentes as que estão disponíveis para qualquer outra pessoa. Se uma pessoa corresponde - ou pode ser preparada para corresponder - a essas circunstâncias, então ela se torna competente. Senão, ela falha. É isso que conta nas grandes narrativas constitucionais para uma pessoa ser considerada compatível, muito embora tais narrativas sejam apenas parcialmente performatizadas, mesmo para aqueles que têm êxito em se passar como capazes.

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Toda a legislação brasileira sobre os direitos de pessoas com deficiência citada nesta tese pode ser encontrada em FEDERAL (2012).

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Apresento a seguir algumas concepções de deficiência que emergem e se transformam a partir de certos arranjos político-sociais. Sem a superação de uma pela outra, tais definições convivem, se articulam e se misturam. A forma de compreender a deficiência presente na convenção de 2006 da ONU - como uma relação do indivíduo com o meio - é fruto de um movimento social e político de pessoas com deficiência que lutou para transformar a concepção conhecida como modelo médico de deficiência para o modelo social.

1.1.1 O modelo médico

A concepção de deficiência como uma variação daquilo que seria o normal do ser humano foi, segundo Martins (2006), uma criação discursiva do século XVIII que estabelece um parentesco até então inédito entre pessoas que só tinham a pobreza em comum. O conceito emerge da biomedicina como uma formação patológica por oposição a um modelo de normalidade corporal que rege os discursos e as práticas médicas. Foucault (2010), ao realizar uma genealogia dos anormais, localiza no final do século XVIII e ao longo de todo o século XIX, o surgimento dessa categoria de indivíduos, constituída na correlação de um conjunto de instituições de controle e mecanismos de vigilância. O grupo dos anormais teria se formado a partir de três elementos: o monstro humano, o indivíduo a ser corrigido e o onanista. O indivíduo a ser corrigido é apontado por Foucault como sendo contemporâneo à instauração das técnicas de disciplina. Os novos procedimentos de disciplinamento do corpo, do comportamento e das aptidões colocam o problema daqueles que escapam a normatividade, não mais soberana da lei. Surgem no período uma série de instituições de correção destinadas a certas categorias de indivíduos, nas quais um conjunto de técnicas e de procedimentos são utilizados para tentar disciplinar quem resiste ao disciplinamento e corrigir os incorrigíveis. Trata-se do nascimento técnico institucional da cegueira, da surdo-mudez, dos imbecis, dos retardados, dos desequilibrados, dos nervosos, enfim, dessas noções de anormalidade 10.

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O Instituto Real dos Jovens Cegos de Paris, por exemplo, a primeira escola do mundo destinada à educação de pessoas cegas, foi criado na França em 1784 (como aluno deste instituto, em 1829, Louis Braille inventou o Sistema Braille). Já o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, antigo nome do Instituto Benjamim Constant, foi criado no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, pelo Imperador D. Pedro II através do Decreto Imperial nº 1.428, no ano de 1854.

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O corpo com deficiência será delineado em contraste com uma representação do que seria o corpo sem deficiência. Ser deficiente, a partir dessa concepção, é experimentar um corpo anormal, fora da norma. Como aponta Garcia (2008), deficiências eram consideradas aquelas exteriorizações notáveis – aos olhos, aos ouvidos, ao tato, ao olfato, ao raciocínio – por seu afastamento do que se considera normal: algo que falta, algo que não foi bem feito, incompleto, algo que foi alterado em virtude de intervenção, violenta ou não. Para Foucault (2010), o indivíduo se apresenta como alguém a corrigir em razão, justamente, do fracasso de todas as técnicas, procedimentos ou investimentos familiares corriqueiros de educação pelos quais se pode ter tentado corrigi-lo. O que define o indivíduo a ser corrigido é que ele é incorrigível. O paradoxo é que o incorrigível, na medida em que é incorrigível, demanda certo número de intervenções específicas em torno de si, de sobre-intervenções em relação às técnicas familiares e ordinárias de educação e correção, isto é, uma nova tecnologia da reeducação. O anormal do século XIX é um incorrigível que vai ser posto no centro de uma aparelhagem de correção. É o nascimento de um saber que, de acordo com Foucault, vai se constituindo vagarosamente, um saber que nasce das técnicas pedagógicas, das técnicas de educação coletiva e de formação de aptidões. O modelo médico de deficiência pode ser entendido pela polarização normal e anormal e na tentativa de correção dos incorrigíveis (nos termos de Foucault) ou de cura dos considerados anormais. Garland-Thomson (2002) indica que a meta da medicina tem sido de curar, fixar, eliminar ou controlar os corpos ostensivamente desviantes. Essa ideologia da cura não está isolada em textos médicos ou campanhas de caridade, mas delineia, de fato, as atitudes culturais e as práticas sobre a deficiência. Ultrapassa as fronteiras da saúde, entrando em domínios como educação, mercado de trabalho e serviço social, entre outros. Ainda considerado hegemônico, o modelo médico avalia que a origem da exclusão social vivida pelas pessoas com deficiência estaria no seu próprio corpo, nas suas sequelas e limitações físicas, intelectuais, sensoriais e múltiplas. A abordagem médica da deficiência parte de um conjunto de teorias e práticas assistenciais em saúde que pressupõe uma relação de causalidade entre a lesão ou a doença e a experiência da

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deficiência. 11 A deficiência, no modelo médico, expressa uma limitação corporal do indivíduo para interagir socialmente. O corpo com lesões experimentaria restrições de habilidades, o que levaria a pessoa a vivenciar situações de desvantagem social. A desvantagem seria resultado das lesões, por isso a necessidade de conhecer, curar ou reabilitar os corpos anormais. A narrativa da normatização é considerada por Law (1999b) a filosofia política dominante nos discursos sobre deficiência das democracias liberais ocidentais durante a maior parte do século XX. Corresponde à visão descrita antes de que, se a pessoa deficiente não é como uma pessoa normal, é porque a ela falta algo: controle motor, visão, audição, a habilidade de falar, a capacidade da razão, entre outras. Esses desafortunados são pessoas que tem um déficit, uma falta, que destrói sua competência constitucional. Nesse caso a coisa certa a ser feita seria o princípio bastante direto de intervir e reparar o déficit, para que a pessoa deficiente se torne física ou mentalmente competente, o mais próximo possível de uma pessoa normal.

1.1.2 O modelo social

Em contraste com o modelo médico de deficiência, o modelo social, fruto do movimento pelos direitos dos deficientes, considera a deficiência como uma relação entre o indivíduo e seu ambiente social, que se traduziria na exclusão de pessoas com certas características físicas ou mentais dos domínios principais da vida social. A retirada da deficiência do campo da natureza e a sua transferência para a sociedade é uma transformação que se inicia no século XX, a partir da década de 1960. O amplo impulso cultural na direção da libertação das minorias, que produziu o movimento dos direitos civis na década de 1960 e o movimento feminista na de 1970, também levou ao movimento pelos direitos dos deficientes. Na década de 1970, surge no Reino Unido a UPIAS 12 (em português, Liga dos Lesados Físicos Contra a

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A primeira tentativa da OMS de organizar uma linguagem universal sobre lesões e deficiências, a International Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps (ICIDH), foi publicada em 1980 e trazia a marca do modelo médico de deficiência. De acordo com Diniz, Medeiros e Squinca (2007), a ICIDH coloca uma relação de causalidade entre impairments (perdas ou anormalidades corporais), disabilities (restrições de habilidade provocadas por lesões) e handicaps (desvantagens resultantes de impairments ou disabilities). 12 Como esclarece Diniz (2007) a UPIAS é uma das primeiras organizações de deficientes com objetivos especialmente políticos, e não apenas assistenciais, e seus fundadores eram sociólogos e deficientes

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Segregação), que pode ser considerada a origem do modelo social e do campo de estudos sobre a deficiência. O ponto de partida do modelo social, como explicitam Oliver (1990) e Diniz (2007), é entender a deficiência como resultado da interação entre características corporais do indivíduo e as condições da sociedade em que ele vive, ou seja, relaciona limitações impostas a um corpo que tem algum tipo de perda ou redução de funcionalidade (lesão) a uma organização social pouco sensível à diversidade corporal (deficiência). A deficiência, para o modelo social, não está localizada nos indivíduos, mas na incapacidade da sociedade de antecipar e se ajustar à diversidade. Ressignificar o conceito de deficiência seria colocá-lo em um contexto social, mostrando que os problemas sociais e julgamentos de inferioridade que pessoas com deficiência enfrentam são produzidos pela interação com um ambiente cultural - tanto material quanto psicológico - que estaria em desacordo com o funcionamento ou a configuração de seus corpos. A condição de ter uma deficiência passa a ser vista como uma relação social caracterizada pela discriminação ao invés de um infortúnio pessoal ou uma inadequação individual. A deficiência passa a ser entendida como uma forma particular de opressão social, similar a sofrida por outros grupos minoritários, como as mulheres ou os negros. A intenção dos estudos realizados nesse período era destacar que não havia, necessariamente, uma relação direta entre lesão e deficiência, transferindo o debate da esfera da saúde para a esfera da organização social e política. O resultado da revisão na semântica dos conceitos propostos pelo modelo social foi uma separação radical entre lesão e deficiência: a primeira é objeto da discussão sobre saúde, enquanto a segunda é da ordem dos direitos e da justiça social e, portanto, essencialmente normativa. Não poder enxergar, por exemplo, seria a manifestação de uma lesão, mas a deficiência consistiria na inacessibilidade imposta às pessoas que não enxergam quando não se coloca sinais sonoros nas ruas, acessibilidade nos teatros e museus, programas acessíveis em sites ou pisos táteis em prédios públicos. Em uma sociedade ajustada para incorporar a diversidade, seria possível ter uma lesão e não experimentar a deficiência.

físicos (Paul Hunt, Michael Oliver, Paul Abberley e Vic Finkelstein estão entre os fundadores). Apesar de existirem, na época, instituições para cegos, surdos ou pessoas com restrições cognitivas há mais de dois séculos, a UPIAS foi a primeira organização política sobre deficientes formada e gerenciada por deficientes.

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Diniz (2007) argumenta que, mesmo havendo uma inversão na lógica da causalidade da deficiência entre o modelo médico e o social, ambos coincidiam em um ponto: a lesão era um tema de competência dos cuidados biomédicos. O modelo social não ameaçou a soberania do modelo médico no controle do corpo com lesões e, segundo a autora, ainda hoje é um objeto do poder disciplinar médico e um espaço de tensões. A concepção de deficiência apresentada pelo modelo social pode ser considerada, para Law (1999b), uma forma de política e uma versão de ação afirmativa. Para assegurar a autonomia e a expressão apropriada da escolha discricionária – para estender os direitos – é necessário investimento social e material. A pessoa constitucionalmente competente é a pessoa no ambiente apropriado. É preciso, portanto, começar a trabalhar o ambiente para corrigir sua discriminação. Tal programa político tem sido amplamente realizado e apoiado por aqueles que buscam a igualdade de oportunidade para grupos minoritários.

1.1.3 Indo além: críticas feministas e pós-modernas

A partir dos anos 1990 e 2000, os estudos feministas, as abordagens pósmodernas e pós-estruturalistas delineiam algumas críticas ao modelo social de deficiência. Os teóricos do modelo social já haviam se pautado na primeira onda dos estudos de gênero e do feminismo, ao considerarem a desigualdade como imoral e ao lutarem contra a opressão. A analogia entre a opressão do corpo deficiente e o sexismo foi uma das bases para sustentar a tese dos deficientes como minoria social. Assim como as mulheres eram oprimidas por causa do sexo, os deficientes eram oprimidos por causa de um corpo com lesões, tal é a aproximação que auxiliava na tarefa de dessencializar a desigualdade (Garland-Thomson, 2002). A premissa do modelo social era a da independência como um valor ético para a vida humana, e os principais impeditivos para a independência dos deficientes seriam as barreiras sociais, em especial as barreiras arquitetônicas e de mobilidade. O cuidado ou os benefícios compensatórios eram princípios que não constavam na pauta de discussões, pois partia-se do pressuposto de que o deficiente seria uma pessoa tão potencialmente produtiva quanto o não-deficiente, sendo apenas necessária a retirada das barreiras para o desenvolvimento de suas capacidades. Diniz (2007) e Nuernberg e Mello (2012) esclarecem que o destaque dado a temáticas como a capacidade produtiva, 52

a inclusão no mercado de trabalho e a ênfase na independência pelo modelo social foram questões associadas pela crítica feminista a um grupo específico de deficientes: homens com lesão medular. Foram apontados por essas teóricas como membros da elite dos deficientes, que reproduziam discursos dominantes de gênero e de classe na sociedade. Apostavam na inclusão, ao invés de realizarem uma crítica contundente aos pressupostos morais da organização social em torno do trabalho e da independência. As teóricas feministas dos estudos sobre deficiência trouxeram à tona temas como o cuidado, a dor, a lesão, a dependência e a interdependência, que seriam centrais à vida da pessoa deficiente. Trouxeram o debate sobre as restrições intelectuais, sobre a ambiguidade da identidade deficiente em casos de lesões não aparentes e sobre o papel das cuidadoras dos deficientes (Kittay, Jennings e Wasunna 2005, Diniz, 2007). Shakespeare e Watson (2002) argumentam que a lesão é a “ausência presente” no modelo social da deficiência. Assim como no feminismo, a negação da diferença é um grande problema para os estudos sobre a deficiência. Quando se trata da experiência, a lesão é, para muitos, proeminente. Como mulheres feministas deficientes colocam, a lesão é parte da sua experiência pessoal diária e não deve ser ignorada, nem pela teoria social nem como estratégia política. Não se trata apenas de pessoas com deficiência, mas de pessoas com lesões. Pretender que seja diferente seria ignorar a maior parte de suas biografias. Diferentes lesões têm implicações diversas para a saúde e a capacidade individual e também geram respostas diferentes de um meio social e cultural mais amplo. Com a distinção entre indivíduos desacreditados ou desacreditáveis, Goffman (1976) demonstra que lesões aparentes provocam respostas sociais, enquanto lesões invisíveis podem não provocar. Lesões congênitas tem implicações diferentes para a construção da identidade do que lesões adquiridas. Algumas lesões são estáticas, outras são episódicas ou degenerativas. Algumas afetam, sobretudo, a aparência, outras restringem o funcionamento. Para Shakespeare e Watson (2002), o argumento não tem o intuito de desagregar todas as deficiências e se referir apenas a diagnósticos clínicos, mas de reconhecer que diferentes grupos de lesões, devido aos seus impactos funcionais e na apresentação de si, têm implicações individuais e sociais diversas. Ainda sobre a temática do reconhecimento das diferenças, Law (1999b) também aponta para uma onda mais recente do movimento das pessoas com deficiência que diz que a deficiência não seria absolutamente um déficit. Por um lado, seria errado colocar o direito dos indivíduos corrigindo seus supostos déficits (modelo médico). Por muitas 53

razões, também não faria muito sentido re-edificar a sociedade para atingir uma homogeneidade individual (modelo social). Numa tonalidade que ressoa com – e seria um exemplo de – multiculturalismo, essa concepção diz que a “deficiência”, que agora seria considerada um nome impróprio do modelo médico, não é absolutamente deficiência, mas uma questão de diferenças culturais 13. E as diferenças devem ser respeitadas. Essa seria uma versão do multiculturalismo constitucional. A igualdade de oportunidades agora se aplica ao nível individual dentro da subcultura e o espaço para o indivíduo homogêneo desaparece. Para Shakespeare e Watson (2002) seria o tempo de uma nova mudança de paradigma na concepção de deficiência, em direção a um modelo que leve mais em conta a experiência. Uma teoria social adequada da deficiência consideraria todas as dimensões da experiência de pessoas com deficiência: corporal, psicológica, cultural, social, política, ao invés da afirmação de que a deficiência seria médica ou social. Criticar o modelo social, entretanto, não significa negar que, na maior parte das vezes, a prioridade continua sendo a de identificar as barreiras sociais e combate-las.

1.1.4 O modelo biopsicossocial da CIF

Entre as duas definições de deficiência, a médica e a social, aparecem definições que declaram que o dano individual e o ambiente social são, em conjunto, causas de limitações. A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), publicada pela OMS em 2001, enfatiza que a deficiência é uma interação dinâmica entre condições de saúde e fatores ambientais e pessoais. A necessidade da CIF se coloca ao se reconhecer que o diagnóstico sozinho não prevê a necessidade de serviços, tempo de hospitalização, nível de cuidados ou resultados funcionais, indicadores que passam a ser considerados importantes para gerenciamento e planejamento em saúde. A CIF seria complementar a décima versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Enquanto a CID-10 forneceria uma estrutura

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Para um exemplo desse tipo de concepção que enfatiza a cultura e as diferenças ver, no Brasil, o caso dos surdos, especialmente a tese de doutorado de Silva (2011), que faz uma análise sobre o processo de constituição da surdez como particularidade étnico-linguística traduzida em normatividade jurídica no interior do Estado-nação brasileiro. Para outro exemplo ver também Ortega (2008) e sua análise sobre o movimento da neurodiversidade, organizado por autistas chamados de alto funcionamento que consideram que o autismo não é uma doença a ser tratada ou, quando possível, curada, mas sim uma diferença humana que deve ser respeitada como outras diferenças (sexuais, raciais, entre outras).

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etiológica para a classificação, através de diagnósticos, de doenças, distúrbios e outras condições de saúde, a CIF classificaria a funcionalidade e a deficiência associadas com estados de saúde. A CIF é uma revisão do sistema classificatório da OMS que resulta de 20 anos de debate (desde a publicação da ICIDH14 em 1980) entre o modelo médico e o modelo social. Considera que deficiência é sempre uma interação entre os atributos da pessoa e os atributos do contexto geral em que a pessoa vive. Enquanto alguns aspectos da deficiência são apontados como sendo quase inteiramente internos à pessoa, outros aspectos são considerados quase inteiramente externos. A CIF entende que ambas as respostas, médica e social, seriam apropriadas aos problemas associados à deficiência. A OMS se propõe a inaugurar uma nova linguagem na CIF, que combinaria os dois modelos, médico e social, para instaurar um terceiro, o modelo biopsicossocial de deficiência. A síntese pretende fornecer uma concepção coerente de diferentes perspectivas da saúde: biológica, individual e social. De acordo com o relatório “Rumo a uma linguagem comum para Funcionalidade, Incapacidade e Saúde”, publicado pela OMS em 2002, a CIF combinaria uma classificação da saúde com a de domínios relacionados à saúde. Tais domínios ajudariam a descrever tanto as alterações ou mudanças na função e estrutura corporal - o que uma pessoa com determinada condição de saúde pode fazer em um ambiente considerado padrão (seu nível de capacidade) - quanto o que essa pessoa realmente faz no seu ambiente real (seu nível de desempenho). Pode-se identificar aí o esforço da OMS para combinar as duas perspectivas de deficiência, a médica e a social. Os termos que sintetizariam os dois domínios são funcionalidade e deficiência15. Ambos seriam termos abrangentes que indicam a interação da condição de saúde de um

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International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps. Diniz e colegas (2007) fazem críticas a tradução brasileira de disability por “incapacidade” na CIF porque consideram que seria pouco coerente com os fundamentos teóricos do documento da OMS. Apesar de ser um termo carregado de conteúdo normativo para o universo biomédico, que compreende deficiência como um corpo que está fora da norma, manter o termo propondo sua redefinição tem justamente o objetivo de desestabilizar a hegemonia biomédica no campo. Portanto, a única tradução possível para disability, para os autores, seria o termo deficiência. Outro indicativo dessa incoerência na versão brasileira seria a tradução de impairments por deficiência quando, para o modelo social, impairments representariam lesões, as variações corporais, enquanto disability é que expressaria a interação do corpo com a sociedade. A tentativa de redescrição acadêmica, política e moral da deficiência que aparece nas escolhas dos termos na versão original é um esforço conjunto de diferentes saberes em reconhecer a deficiência como expressão de uma desigualdade social. É nesse sentido que se incorpora aqui a sugestão dos autores de assumir que a categoria-chave do documento é deficiência e não incapacidade. 15

55

indivíduo (suas funções e estruturas do corpo) com os fatores contextuais (ambientais e pessoais). Enquanto funcionalidade se refere aos aspectos positivos dessa interação, abarcando as funções corporais, atividades e participação, deficiência diz respeito aos aspectos negativos da interação, englobando incapacidades ou lesões, limitações de atividades e restrições à participação. Um corpo com lesões, na definição biopsicossocial, pode experimentar maior ou menor grau de deficiência de acordo com o treinamento recebido de adaptação funcional às suas condições, a maior ou menor abertura social para sua integração naquela sociedade e as condições ambientais em que vive, que podem ser mais ou menos propícias às suas necessidades.

1.1.5 Corpo e deficiência

Podemos perceber no movimento oscilante entre os modelos médico e social da deficiência, suas críticas e, mais recentemente, a terceira via proposta pela OMS, que um dos pontos em jogo, em uma disputa de poder, intelectual e discursiva, é uma definição de corpo. No polaridade médico/social estão embutidas outras polaridades equivalentes, natureza/cultura, indivíduo/sociedade, interno/externo, corpo/mente. O que parece permear as discussões é um recorte do corpo em dimensões aparentemente autônomas e independentes, a esfera biológica, a esfera psicológica e a esfera social ou cultural, que classicamente funda as disciplinas da biologia, da psicologia, da sociologia e antropologia e, ainda, uma disputa por qual dessas concepções prevalece, qual delas teria mais autoridade e mais força na definição de deficiência. Shakespeare e Watson (2002) colocam que a deficiência é direta e incontroversa, advindo tanto de barreiras sociais, quanto dos corpos. A distinção entre lesão (diferença corporal) e deficiência (criação social) é insustentável o que, para eles, pode ser demonstrado pela pergunta: “onde termina a lesão e começa a deficiência?”. A abordagem biopsicossocial proposta pela CIF apontaria para um terceiro caminho, sugerindo uma definição de corpo capaz de rever e ultrapassar antigas fronteiras. Na conciliação proposta, percebe-se que a problemática de definir a deficiência coloca o imperativo do corpo e a necessidade de integração multidisciplinar na sua abordagem. Entretanto, quando define os componentes relacionados à funcionalidade e deficiência, a CIF coloca novamente duas dimensões, uma fisiológica (funções dos sistemas e estrutura do corpo) e outra relacionada à atividade e 56

participação (domínios que revelariam os aspectos da funcionalidade numa perspectiva individual e social). Na tentativa de um modelo conciliatório, recoloca-se a dicotomia na definição das linhas de domínios relacionadas à saúde - enquanto uma permanece pautada no indivíduo, nas funções e estruturas do corpo (interno), a outra é relacionada a fatores pessoais e sociais (externo). Mesmo os componentes da CIF que se referem ao contexto são divididos em “fatores ambientais” e “fatores pessoais”. Ingold (1990) considera que a tarefa mais urgente para a antropologia contemporânea seria a de superar essa separação entre biológico e social (indivíduo e pessoa) e reincorporar o sujeito humano no contínuo da vida orgânica. Uma das questões fundamentais que a problemática da deficiência coloca é o desafio de se pensar um ser integrado em suas múltiplas dimensões. O próprio nome do modelo de definição da deficiência proposto pela OMS – biopsicossocial – indica a necessidade de ir além das fronteiras disciplinares, ainda que o simples ato de agregar suas iniciais também não seja uma superação. Uma vez que a experiência da deficiência atravessa barreiras, não poderia ser medida apenas por uma concepção biológica do corpo lesionado ou por uma concepção social da pessoa socialmente excluída. Ao se colocar que o próprio ambiente pode ser um facilitador ou impeditivo fundamental para a maior ou menor deficiência de um corpo lesionado, pode se pensar na necessidade de um alargamento da própria definição de corpo que ultrapasse sua concepção como uma entidade autônoma, absolutamente distinta e independente do meio onde vive. As divisões binárias entre biológico e social, por analogia à divisão entre sexo / gênero nos estudos feministas, podem ser identificadas no par lesão / deficiência. Como na segunda onda do feminismo, passa a se considerar que a deficiência só pode ser entendida em contextos sócio-históricos específicos, que é uma situação dinâmica e que pode ser transformada. Ao se observar que o sexo é ele mesmo social, a distinção sexo/gênero foi amplamente abandonada no feminismo 16. Tudo já é sempre social. Não há um corpo puro ou natural que exista fora do discurso. Da mesma forma, a lesão é sempre vista pelas lentes das relações sociais de deficiência. No quadro critico dos estudos feministas, Garland-Thompson (2001) revela que a deficiência se torna sistema representacional ao invés de problema médico, construção social ao invés de infortúnio pessoal ou defeito do corpo e tema para ampla investigação

16

Ver, por exemplo, Butler (2003).

57

intelectual ao invés de um campo especializado da medicina, reabilitação ou serviço social. Para a autora, deficiência e gênero são historias que contamos sobre os corpos e são nossas formas sistemáticas de representar o corpo. Narrativas que dão forma ao mundo material, informam as relações humanas e moldam o sentido de quem somos. Shakespeare e Watson (2002) consideram que deficiência é a quintessência de um conceito pós-moderno, justamente por ser tão complexo, tão variável, tão contingente, tão situado. Assenta-se na interseção entre biologia e sociedade, entre agência e estrutura. Não podendo ser reduzida a uma identidade singular, deficiência seria, portanto, multiplicidade. Os autores acreditam que uma ontologia alternativa para a deficiência teria implicações não apenas para os estudos da deficiência, mas para as formas mais amplas em se concebe o corpo.

1.1.6 A deficiência e a cegueira em números: marcas da desigualdade Relatórios mais recentes da ONU 17 apontam que a deficiência está diretamente relacionada a questões de pobreza, saúde pública e vulnerabilidade. Cerca de 15% da população mundial, uma estimativa de 1 bilhão de pessoas, vive com alguma deficiência. São a maior minoria do mundo. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 80% das pessoas com deficiência estão em países em desenvolvimento. Dados do Banco Mundial apontam que 20% das pessoas mais pobres do mundo têm algum tipo de deficiência. A questão também tem um viés de gênero, já que mulheres com deficiência estariam em uma situação de múltipla desvantagem, experimentando a exclusão por conta do gênero e da deficiência. Mulheres e meninas com deficiência também estão particularmente vulneráveis a abusos. Pessoas com deficiência são mais propensas a serem vítimas de violência ou estupro e têm menor probabilidade de obter ajuda da polícia, proteção jurídica ou cuidados preventivos. A UNICEF diz que cerca de 30% dos meninos ou meninas de rua têm algum tipo de deficiência e a UNESCO aponta que, nos países em desenvolvimento, 90% das crianças com deficiência não frequentam a escola. Em países onde a expectativa de vida ultrapassa os 70 anos, os indivíduos passam uma média de 8 anos (ou 11,5% do seu tempo de vida) vivendo com alguma deficiência.

17

Os dados podem ser encontrados em: http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-e-as-pessoascom-deficiencia/ e http://www.un.org/disabilities/default.asp?id=18. Acesso em 29.05.2014.

58

Os números relacionados à cegueira não fogem a essa tendência. No começo dos anos 1990 foi estimado que, globalmente, cerca de 80% das deficiências visuais poderiam ter sido prevenidas ou tratadas. Buscando diminuir o percentual de pessoas cegas ou com baixa visão no mundo, em 1999 a OMS lança o programa Visão 2020 com a missão de “eliminar as principais causas de cegueira evitável a fim de dar a todos os povos do mundo, especialmente aos milhões de pessoas desnecessariamente cegas, o direito de ver”18. Em relatório de 2012, estima-se que cerca de 314 milhões de pessoas sejam deficientes visuais no mundo, das quais 45 milhões são cegas. As principais causas da cegueira por doença em adultos são a catarata (39%), anomalias de refração (18%), glaucoma (10%), degeneração macular relacionada à idade (7%), opacidade córnea (4%) e retinopatia diabética (4%). Hoje em dia, a cada cinco segundos uma pessoa fica cega no mundo e uma criança perde a visão a cada minuto. Das crianças que ficam cegas, 60% morrem durante o ano seguinte à perda da visão. Mais de 90% das crianças cegas não recebe educação e a grande maioria não terá a possibilidade de desenvolver todo o seu potencial. A cegueira em crianças representa cerca de um terço do custo financeiro total da cegueira. Segundo a OMS, as principais causas da cegueira na infância variam de região para região e são determinadas, em grande medida, pelo desenvolvimento socioeconômico e pela disponibilidade e eficácia dos serviços de atenção primária e de cuidado ocular. As causas da cegueira em crianças e em adultos são diferentes. As principais causas evitáveis são: deficiência de vitamina A (VAD), sarampo e oftalmia neonatal (conjuntivite do recém nascido). Os casos tratáveis incluem retinopatia de prematuridade (ROP), catarata e glaucoma. Em pelo menos metade das crianças que estão cegas hoje, a causa inicial poderia ter sido prevenida ou a condição ocular poderia ter sido tratada para preservar a visão ou mesmo restaurá-la. Descrevemos anteriormente as transformações no conceito de deficiência, saindo de uma definição exclusivamente médica para adquirir contornos sociais ao ser definido em função da interação de um individuo com a sociedade e o ambiente em que vive. Essa mudança se expressa, por exemplo, na forma como a OMS entende a deficiência

18

Os número tomam como base relatórios do programa “Vision 2020: the right to sight”, uma parceria da OMS e da Agência Internacional para a Prevenção da Cegueira (IAPB, sigla em inglês). Os documentos estão disponíveis em: http://www.iapb.org/. Acesso em 29.05.2014.

59

na CIF, com foco na funcionalidade e participação social. Pode ainda ser identificada na tendência de expansão do conceito de deficiência para outras situações em que a lesão não é aparente, para situações de incapacidade temporária e ainda como uma decorrência provável do envelhecimento. Em 2001, a OMS revisou o catálogo internacional de classificação da deficiência para adequar-se a perspectiva social. Nessa revisão, toda e qualquer dificuldade ou limitação corporal, permanente ou temporária, é passível de ser classificada como deficiência. De idosos a mulheres grávidas e crianças com paralisia cerebral, a CIF propõe um sistema de avaliação da deficiência que relaciona funcionamentos com contextos sociais, mostrando que é possível uma pessoa ter lesões sem ser deficiente (um lesado medular em ambientes sensíveis à cadeira de rodas, por exemplo), assim como é possível alguém ter expectativas de lesões e já ser socialmente considerado como um deficiente (um diagnóstico preditivo de doença genética, por exemplo). A Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência de 2006 vai no mesmo caminho. O reconhecimento de que uma grande parte da população experimenta a deficiência implica dizer que a incapacidade da sociedade se ajustar à diversidade resulta na exclusão de muitas pessoas da vida social cotidiana. De acordo com Diniz (2003), até a segunda metade da década de 1990 o modelo médico ainda dominava as definições de deficiência no Brasil. Os levantamentos demográficos que reúnem informação sobre deficiência no país desde o final do século XIX e os textos legais que tratam do assunto com maior especificidade ao longo do século XX refletem a visão de que a deficiência se define por um conjunto específico de defeitos corporais. Embora isso ainda ocorra, existe nos últimos anos uma tendência de se perceber a deficiência a partir do modelo social que se manifesta, por exemplo, nas mudanças nos questionários dos censos a partir de 1991 e na legislação de atenção aos direitos dos deficientes, como o Decreto-Lei n° 5.296/2004, conhecido como a lei da acessibilidade. No Censo Demográfico 2010 do IBGE 45.606.048 milhões de pessoas declararam ter pelo menos uma das deficiências investigadas, correspondendo a 24% da população brasileira. No último censo, em 2000, esse percentual foi de 14,5% e no censo anterior, de 1991, foi de 1,4%. Esse aumento no percentual de pessoas com deficiência acompanha as transformações no conceito observadas anteriormente e o censo de 2010 procura se adequar às recomendações da CIF. Busca-se avaliar a dificuldade e não mais a deficiência ou capacidade, retirando-se também o termo 60

“incapaz”, presente no censo de 2000. A pergunta para avaliar a deficiência visual em 2000 era “como avalia a sua capacidade de enxergar?”, com as opções de resposta “i) nenhuma deficiência ii) alguma deficiência iii) grande deficiência e iv) incapaz; em 2010 passa a ser, “tem dificuldade permanente de enxergar?”. No censo 2010 a deficiência foi classificada pelo grau de severidade de acordo com a percepção das próprias pessoas entrevistadas sobre como as suas deficiências provocavam limitações. Vale considerar que quem respondeu às perguntas do questionário não era, necessariamente, a pessoa com deficiência (a sugestão do censo de 2000 era de que as perguntas, sempre que possível, fossem respondidas pelo próprio). A avaliação foi feita levando em consideração o uso de facilitadores como óculos e lentes de contato, aparelhos de audição, cadeiras de roda, bengalas e próteses. As perguntas foram organizadas em categorias de respostas que buscaram identificar as deficiências visual, auditiva e motora, captando o espectro de habilidades funcionais, das mais leves às mais severas, pelos seguintes graus de dificuldade: i) sim, não consegue de modo algum; ii) sim, grande dificuldade; iii) sim, alguma dificuldade, e iv) não, nenhuma dificuldade; além da deficiência mental ou intelectual. A investigação dos graus de severidade de cada deficiência permite conhecer a parcela da população com deficiência severa, que constitui o principal alvo das políticas públicas voltadas para a população com deficiência. São considerados deficientes visual, auditivo ou motor severos as pessoas que declararam ter grande dificuldade ou que não conseguiam ver, ouvir ou se locomover de modo algum, e aquelas que declararam ter deficiência mental ou intelectual. Pessoas com pelo menos uma deficiência severa ou total representam 8,3% da população brasileira. Quando se inclui no percentual de pessoas com deficiência visual aquelas que responderam ter alguma dificuldade de enxergar mesmo com o uso de óculos ou lente, temos que 18,6% dos brasileiros afirmam ter deficiência visual, a maior ocorrência entre as deficiências investigadas. Ao se considerar apenas os deficientes visuais severos, 3,2% declararam ter grande dificuldade para enxergar e 0,3% eram cegas. Se considerarmos o contingente de pessoas com deficiência, 1,6% são cegas 19.

19

Cartilha do Censo 2010: a deficiência no Brasil. Disponível em: http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/cartilha-censo-2010pessoas-com-deficienciareduzido.pdf. Acesso em 30.05.2014.

61

1.2 Significados e efeitos da cegueira: uma aproximação interdisciplinar

1.2.1 Os olhos de quem não vê: a oftalmologia e a definição de cegueira

Ao recuperar o histórico e as redefinições do conceito de deficiência e suas implicações para a concepção de corpo, a intenção é acompanhar as reverberações desse debate na questão da cegueira. Pretende-se, a seguir, compreender a cegueira e suas consequências para o desenvolvimento corporal e cognitivo de pessoas consideradas cegas do ponto de vista de disciplinas da área biomédica e de outras áreas envolvidas no processo de habilitação/reabilitação. Esse debate informa determinadas metodologias, práticas e intervenções que têm por função educar e formar corpos e pessoas ou, para adotar o sentido proposto por Ingold (1990), pessoas-organismos. Apesar do alargamento do conceito de deficiência que, pelo movimento de contínuas redefinições, passa da esfera médica para a esfera social, ou ao menos se considera a interseção entre elas, o campo biomédico ainda parece deter a autoridade última na classificação de uma pessoa como deficiente. No caso da cegueira, no Brasil, as Portarias GM 793 e GM 835 20, do Ministério da Saúde, instituem a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e dão as diretrizes para tratamento e reabilitação/habilitação de pessoas com baixa visão e cegueira. As portarias indicam que as ações de reabilitação/habilitação devem ser realizadas por equipes multi e interdisciplinares, em consonância com as recomendações da CIF, mas os critérios de indicação são medidos de acordo com resultados de exames clínicos oftalmológicos, sendo o diagnóstico da consulta oftalmológica o único pré-requisito para o encaminhamento do indivíduo para a reabilitação/habilitação. A oftalmologia é, então, a principal disciplina responsável pela classificação de uma pessoa como cega. Em conversa com uma das funcionárias que trabalha no departamento de reabilitação do IBC, ela indica que o primeiro passo para se ingressar na escola ou na reabilitação é passar por um exame oftalmológico (que pode ser realizado no próprio Instituto) onde o médico vai dizer se a pessoa é ou não é cega ou se tem visão subnormal (baixa visão).

20

As portarias datam de 24 e 25 de abril de 2012.

62

Até o início da década de 1970, a CID só considerava a diferenciação entre visão e cegueira. Nos preparativos para o CID-9 a categoria “visão subnormal” (ou baixa visão) foi adicionada, definida principalmente em termos de perda da acuidade visual. Os critérios de classificação da cegueira e os exames que vão determinar o grau de deficiência visual levam em consideração principalmente duas escalas oftalmológicas: a acuidade visual, aquilo que se enxerga a uma determinada distância, e o campo visual, a amplitude da área alcançada pela visão. A acuidade visual mede a agudez da vista de um indivíduo e é expressa por uma fração: o numerador indica o máximo de distância (em metros ou pés) que uma pessoa, em pé, pode discriminar entre dois objetos dados, enquanto o denominador se refere à distância usual que uma pessoa sem déficit visual pode discriminar os mesmos objetos. Valores de acuidade visual refletem apenas a necessidade de ampliação. A maior parte das doenças que afetam a visão afeta a acuidade visual. Campo visual se refere à área total que um alvo de teste padrão pode ser detectado pela visão periférica, enquanto o olho está focado em um ponto central. Segundo a 10ª revisão da CID (1996) uma pessoa é considerada cega se corresponde a um dos critérios a seguir: a visão corrigida do melhor dos seus olhos é igual ou menor que 20/400 (6/120), ou seja, se ela pode ver a 20 pés (6 metros) o que uma pessoa de visão normal pode ver a 400 pés (120 metros), ou se o diâmetro mais largo do seu campo visual subentende um arco não maior do que 10 graus, ainda que sua acuidade visual nesse campo estreito possa ser superior a 20/400. A tabela a seguir, recomendada pela OMS, apresenta a classificação da gravidade do comprometimento visual.

TABELA - Graus de comprometimento visual e valores de acuidade visual corrigida (OMS / CID-10) Acuidade visual com a melhor correção visual possível Graus de comprometimento visual 1

2

3

4

Máxima menor que:

Mínima igual ou maior que:

6/18 3/10 (0.3) 20/70 0/60 1/10 (0.1) 20/200 0,05 1/20 (0.05) 20/400 1/60* 1/50 (0.02)

0/60 1/10 (0.1) 20/200 0,05 1/20 (0.05) 20/400 1/60* 1/50 (0.02) 5/300 (20/1200) Percepção de luz

63

5 9

5/300 (20/1200) Ausência da percepção de luz Indeterminada ou não especificada

* capacidade de contar dedos a 1 m

Pela definição apresentada acima, as pessoas com comprometimento visual de grau 3, 4 ou 5 podem ser consideradas cegas. Ao contrário do que se poderia supor, o termo cegueira não nos dá uma definição absoluta, pois entre as extremidades visão normal e cegueira total - ou visão zero, como também se usa em oftalmologia - existe um número significativo de pessoas com diferentes graus de visão residual que são consideradas cegas. Ao invés da cegueira ser plana, ela se multiplica. Os chamados resíduos visuais podem ser a percepção de luminosidade, quando se consegue fazer a distinção entre claro e escuro, a percepção da projeção luminosa, quando se identifica também a direção de onde provém a luz ou a percepção de vultos, por exemplo. O critério que diferencia visão subnormal de cegueira passa a ser, então, se a pessoa usa ou é potencialmente capaz de usar a visão (ou os resíduos visuais) para o planejamento e a realização de atividades. A cegueira não significa, necessariamente, uma incapacidade total para ver, mas o comprometimento dessa aptidão a níveis considerados incapacitantes para o exercício de tarefas rotineiras. Em um movimento que pode ser associado à combinação entre o modelo médico e o modelo social de deficiência, a funcionalidade passa a ser o critério fundamental na definição de cegueira e de outras deficiências. Do ponto de vista educacional, a definição de cegueira já levava em consideração o desempenho funcional. Para essa área, mais do que a acuidade visual, importa o uso real que o aluno faz da visão. Cegos são aqueles que precisam se utilizar do Sistema Braille no processo ensino/aprendizagem, além de outros recursos didáticos e equipamentos especiais para sua educação, como mapas em relevo e soroban21. O exame oftalmológico é o instrumento que mede as respostas visuais, considerando elegíveis para o atendimento em reabilitação/habilitação visual os indivíduos com deficiência visual que forem classificados, de acordo com a definição da CID-10, em: H 54.0 (cegueira, ambos os olhos), H 54.1 (cegueira em um olho e visão subnormal em outro) e H 54.2 (visão subnormal de ambos os olhos).

21

Instrumento para cálculo utilizado no ensino da matemática para crianças cegas.

64

A mesma classificação será o critério adotado no Brasil para a cegueira legal, que determina a obtenção de benefícios sociais pelos indivíduos considerados deficientes visuais, de acordo com o decreto 5.296 de 2004: isenção tarifária de transporte municipal e interestadual, isenção de IPI na compra de carro e acréscimo de 25% na aposentadoria (esse último apenas nos casos de cegueira bilateral). Relatórios recentes do Conselho Internacional de Oftalmologia (CIO) procuram se adaptar e discutir as novas classificações da CIF, incorporando conceitos que estariam além da especialidade médica propriamente dita, e questionando sua viabilidade prática. A discussão gira em torno da incorporação dos conceitos de funcionalidade, atividade e participação propostos pela CIF. Com base em relatório feito para o CIO, Colenbrander (2010) aponta os quatro aspectos a serem considerados para medir as consequências da perda da visão. Os dois primeiros estariam relacionados ao órgão da visão e os dois últimos à pessoa. Em primeiro lugar, os oftalmologistas devem considerar como as diversas causas externas podem resultar em mudanças estruturais no órgão da visão. O foco é na integridade anatômica e estrutural do órgão e em mudanças como cicatrizes, atrofia, degeneração, perda. Mas, as mudanças estruturais não diriam como o órgão efetivamente funciona. Seria então necessário ampliar o olhar para o órgão como um todo, medindo suas funções, tais como acuidade, campo visual, percepção de cores, sensibilidade ao contraste. Mesmo sabendo como os olhos funcionam, isso não diria nada sobre como a pessoa funciona. Seria preciso ampliar novamente a perspectiva, dessa vez para o nível da pessoa, descrevendo as competências e habilidades relacionadas à visão que ela consegue desempenhar nas atividades da vida diária. Além disso, seria preciso olhar para a pessoa em um contexto social, descrevendo as consequências econômicas e sociais de qualquer déficit funcional da visão. Como essas mudanças impactam na participação da pessoa na sociedade, na capacidade de realizar tarefas necessárias, na satisfação geral com sua qualidade de vida? Muitas atividades poderiam abranger mais de um dos quatro aspectos levantados. Na leitura, por exemplo, o tamanho mínimo da letra estaria no aspecto do funcionamento do órgão (resolução da retina), a velocidade de leitura (palavras por minuto) e a duração da atividade (horas por dia) definiriam habilidades da pessoa. O gosto pela leitura estaria no aspecto da qualidade de vida. Com essa avaliação estariam contempladas, no campo da oftalmologia, as quatro dimensões colocadas pela CIF – funções e estruturas do corpo, atividades e participação 65

da pessoa. Todas elas permeadas pelas noções opostas de funcionalidade ou incapacidade do órgão ou do indivíduo na realização de tarefas. A atenção se estende da prevenção e tratamento de doenças para as suas consequências funcionais e reabilitação. A indicação é de que sejam considerados tanto os aspectos das funções visuais, que descreve como o olho funciona, quanto os aspectos da visão funcional, que descreve como a pessoa funciona em atividades relacionadas à visão. No relatório “Causes vs. consequences of functional loss” (2010) indica-se que, para os oftalmologistas, um dos impactos das modificações implantadas na CID-10 e na CIF é a forma como a acuidade visual deve ser medida e divulgada nas estatísticas de saúde. Se a meta é detectar a doença do olho, como normalmente é feito pelo modelo médico, as medidas devem ser realizadas e reportadas para cada olho separadamente. Uma vez que erro de refração não é considerado uma doença ocular, a classificação se baseia na melhor visão corrigida. Geralmente se considera que a condição da pessoa se reflete pela condição do melhor olho. Mas, se a meta é traduzir o ônus da perda da visão para a pessoa, as medidas devem ser feitas com os dois olhos abertos e apresentando a correção, já que é assim que a pessoa se encontra na vida cotidiana. A metodologia vai incluir a deficiência visual que resulta de erros de refração não corrigidos ou subcorrigidos. O relatório alerta que as consequências estatísticas dessa mudança são significativas, uma vez que a nova metodologia dobra a incidência mundial de deficientes visuais de 150 para 300 milhões de pessoas. Uma necessidade que aparece nos relatórios é a de diversificar o próprio exame médico, incluindo a medição de outras funções visuais além da acuidade e campo visual. Por exemplo, o fato da pessoa conseguir detectar luz ou distinguir cores tem um grande impacto para as atividades que pode realizar cotidianamente, mas não influencia sua acuidade visual. Oftalmologistas clínicos normalmente ficam satisfeitos com estimativas tais como contagem de dedos e percepção de movimento das mãos. A acuidade visual é a função medida com maior frequência, o que gerou o mal entendido de ser tomada como um indicador geral da qualidade global da visão. Os relatórios também apontam para um movimento de inserção, na avaliação clínica de um paciente com perda visual, de aspectos considerados mais individuais e subjetivos, relacionados às habilidades e à participação social, especialmente para fins de reabilitação. São levantados alguns critérios para essa avaliação, mas, quanto mais perto do que seriam os aspectos sociais da perda visual, menor seria a objetividade, enquanto os critérios médicos, que avaliam o órgão independente da pessoa, são 66

considerados mais precisos. Avaliações de qualidade de vida são entendidas como avaliações essencialmente subjetivas. O esquema a seguir, retirado de Colenbrander (2010), busca precisar esses critérios de avaliação em seus diferentes aspectos, os que se relacionam ao corpo e os que se relacionam à pessoa. TABELA 2 – Inventário para os diferentes aspectos Estrutura Etiologia →

do Órgão

Função → do órgão ↙

Itens

Dimensão Avaliação

FUNÇÕES VISUAIS Acuidade procura, fixação Contraste brilho Campo visual em movimento, estático Detecção de cores Adaptação ao escuro Etc. Testes de funções visuais 1 parâmetro por vez Desempenho Limiar Preciso, objetivo

Competências →

e habilidades

Consequências → sociais

↓ VISÃO FUNCIONAL Cuidado pessoal Administração do lar Comunicação reconhecimento de rostos Leitura Mobilidade Preparo de refeição, alimentação Compras, hobbies Competências vocacionais Atividades da Vida Diária

←Meio

↓ QUALIDADE DE VIDA Auto confiança Fazer, manter amizades Medo de quedas Habilidades de enfrentamento Organização da vida, assistência Preenchimento de papéis família, trabalho comunidade Depressão Participação na Sociedade

Parâmetros múltiplos e Bem-estar psicossocial interativos Critério Desempenho sustentável Satisfação individual Exatidão Elementos objetivos e Altamente subjetivo subjetivos Fonte: Relatório “Assessment of functional vision and its rehabilitation”, tradução nossa.

É pelo conceito de funcionalidade que se busca reunir numa mesma abordagem – biopsicossocial - tanto o ponto de vista médico quanto o ponto de vista social. Vale a pena resgatar que o conceito de função foi central para a analogia entre vida social e vida orgânica realizada pelas abordagens funcionalistas na sociologia e na antropologia, em autores como Durkheim, Malinowski e Radcliffe-Brown. As abordagens funcionalistas descreviam as diferentes partes de uma sociedade e a relação entre elas por meio de uma analogia orgânica. A sociedade era vista como um organismo vivo em que cada parte tem uma função específica e contribui para o funcionamento do todo. A biologia afirmava que o organismo pode viver, reproduzir e funcionar por meio de um sistema organizado de suas diversas partes e órgãos. Já a sociedade, como 67

um organismo biológico, mantém seus processos essenciais pela forma como suas diferentes partes interagem conjuntamente. Para Durkheim (1999), a função seria a correspondência entre as instituições sociais e a necessidade da organização social. Instituições como religião, parentesco ou a economia são como os órgãos e os indivíduos seriam as células do organismo social. As análises funcionalistas, baseadas na analogia entre orgânico e social, examinam o significado social de um fenômeno, a função que desempenha em uma sociedade particular para a manutenção do todo. Talvez a analogia entre vida orgânica e vida social e a definição do conceito de função feita por Radcliffe-Brown seja a que melhor traduz essa passagem entre físico/orgânico para individual/social, proposta no quadro acima. Para Radcliffe-Brown (1935), concebe-se a vida de um organismo como o funcionamento de sua estrutura. Ao considerar qualquer parte recorrente do processo vital, sua função seria o papel que tal parte representa na vida do organismo como um todo, a contribuição que faz a essa vida. Um órgão tem uma atividade e tal atividade tem uma função. O conceito de função envolve, assim, a noção de uma estrutura que consiste em uma série de relações entre entidades unitárias, sendo mantida a continuidade da estrutura por meio de um processo vital formado pelas atividades das unidades constituintes. Ao passar para a vida social, a mesma lógica se aplica, a continuidade da estrutura se manterá pelo processo da vida social, que consiste nas atividades e interações dos seres humanos individuais e dos grupos organizados. A vida social define-se, para Radcliffe-Brown, como o funcionamento da estrutura social, onde a função de uma atividade recorrente será o papel que ela representa na vida social como um todo, a contribuição que faz para a manutenção da continuidade estrutural. A noção de visão funcional e os conceitos correlatos à ideia de funcionalidade apresentada pela CIF – estrutura, atividade, participação – nos remetem às analogias entre orgânico e social e às abordagens funcionalistas da sociologia e antropologia. A continuidade de uma estrutura, seja ela no nível orgânico ou social, depende do desempenho de certas atividades pelas partes que a compõem (órgão ou indivíduo), que contribuirá para a atividade total de que participam. A baixa visão e a cegueira passam a ser definidas em termos funcionais levando em conta se o indivíduo depende predominantemente do incremento visual ou da substituição da visão (uso de outros sentidos) para dar continuidade a sua estrutura orgânica e social, para utilizar a analogia funcionalista. Essas definições delineiam a visão funcional, as capacidades visuais e as habilidades do indivíduo no desempenho 68

das atividades no seu cotidiano. A visão funcional pode então ser descrita como a habilidade de se realizar determinadas atividades, quer se use ou não a função visual nessa realização. O melhor ou pior desempenho vai depender da relação entre a estrutura fisiológica, as condições individuais e as condições sociais. A noção de visão funcional aparece nas avaliações médicas pela necessidade de se desenvolver um plano individual de reabilitação. O plano deve se basear não somente na presença de um órgão considerado deficitário, mas também levar em conta as necessidades do indivíduo, a relevância das tarefas para a sua vida cotidiana e seus objetivos. Devem ser planejadas metas individuais a partir das quais os resultados da reabilitação possam ser posteriormente medidos. A formação de equipes multidisciplinares no domínio da reabilitação, como aparece indicado nas portarias do ministério da saúde, promove uma espécie de divisão de trabalho no atendimento às pessoas com perda visual, onde a parte mais “subjetiva” acaba sendo delegada para outros profissionais da saúde, como terapeutas ocupacionais ou fisioterapeutas, que são os que realizarão atendimentos semanais com os usuários, enquanto os critérios considerados mais objetivos são avaliados pelos oftalmologistas. As causas da perda da visão são consideradas foco de interesse médico, enquanto a proposta da CIF seria a inclusão, nos critérios de avaliação médicos, das consequências dessa perda. Apesar dos critérios legais para a definição de deficiência visual serem definidos por parâmetros médicos relacionados a funções visuais22, a acuidade e o campo visual, aspectos mais ligados a visão funcional tem sido considerados na concessão de benefícios sociais como a aposentadoria por invalidez ou a concessão do Benefício por Prestação Continuada (BPC)23. Um dos requisitos para a obtenção de aposentadoria por invalidez pelo ministério da Previdência Social, é incapacidade para o trabalho insuscetível de reabilitação para o exercício da atividade. Essa incapacidade deve ser

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O decreto 5296 de dezembro de 2004 define deficiência visual como: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60 o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores. 23 O BPC é uma política brasileira de assistência social que garante a transferência de renda mensal equivalente a um salário mínimo aos idosos e às pessoas com deficiência pobres, regulamentada pela Leio Orgânica de Assistência Social (LOAS).

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comprovada pelo exame médico pericial que, no caso de danos à visão, é feito por um oftalmologista. A biomedicina detém a autoridade última nas classificações e demarcações dos corpos deficientes e não deficientes (eficientes?), ainda que os critérios para a definição venham incorporando noções relacionadas à esfera social, como participação e atividade. Enquanto a categoria atividade está relacionada à vida diária, à esfera do cotidiano, que também pode ser associada ao corpo civilizatório descrito por Elias (1994) - costumes ligados à higiene, vestimentas, alimentação - a categoria participação fica relacionada à vida pública que se resume à vida escolar, no caso das crianças e ao trabalho, no caso de adultos. Um dos significados utilizados por Malinowski (1978) para o termo “função” como uma relação positiva entre as necessidades primárias dos homens e os sistemas sociais – pode ser comparado à noção de funcionalidade ou visão funcional colocada pela CIF e pelos relatórios do CIO. Apesar dos danos ao organismo biológico, as outras partes podem interagir para o seu bom funcionamento numa estrutura social. Se, por um lado, a ênfase na funcionalidade traz a preocupação de autonomia, independência e inclusão de corpos considerados diferentes na sociedade, por outro, não questiona as próprias bases em que essa sociedade se constrói, voltada para um corpo único. O bom funcionamento do corpo deficiente é uma adaptação desse corpo a regras e padrões que se constroem a partir do funcionamento de outro corpo, aquele considerado “capaz”.

1.2.2 Cegueira a partir do pressuposto do cognitivismo

Ao trazer alguns saberes produzidos sobre o processo cognitivo e de aprendizagem de crianças cegas não tenho a pretensão de esgotar uma longa discussão acerca das bases fisiológicas do conhecimento e as origens do processo cognitivo. Entretanto, algumas distinções se justificam, já que orientam estudos e testes realizados com pessoas cegas que irão sustentar práticas profissionais e pedagógicas. O primeiro foco recai na ciência cognitiva – mais especificamente, a psicologia cognitiva e a neurociência - a partir de uma breve revisão dos resultados apontados por testes conceituais e cognitivos realizados com pessoas cegas e videntes. Em seguida, apresento algumas descobertas recentes que vem sendo realizadas pela neurociência a respeito da cegueira a partir do conceito de plasticidade cerebral.

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A principal corrente das ciências cognitivas e da neurociência parte de um modelo de cognição conhecido como cognitivismo computacional, baseado nas noções de representação e computação. O processo cognitivo é concebido como um sistema de recepção e processamento de informações, cuja base estaria numa divisão entre dentro e fora, em que o fora seria o ambiente fornecedor de inputs. Os inputs vão se transformar no cérebro em representações mentais internas que guiam as ações e o comportamento. O sistema sensorial seria responsável por captar esses inputs do ambiente, que podem ser informações auditivas, visuais, táteis, olfativas, gustativas, cenestésicas. Já o sistema nervoso processaria esses inputs, gerando representações mentais internas daquilo que estaria fora do corpo. Representações que, nesse modelo, localizam-se no cérebro. Determinadas regiões do cérebro seriam responsáveis por processar determinados tipos de informação captados pelas vias sensoriais. Com base nessas premissas, estudos que tem por objetivo medir os efeitos da cegueira para o desenvolvimento e o funcionamento do sistema cognitivo vêm sendo realizados. Baseiam-se em testes que, em sua maioria, são realizados com três grupos de pessoas: cegos congênitos ou precoces, cegos tardios e videntes. Os testes procuram avaliar as consequências da ausência ou perda da visão para processos cognitivos. Por um lado, comparam a realização de determinadas tarefas por pessoas que não enxergam e os meios que se utilizam para realiza-las e, por outro, procuram analisar em que medida pessoas que não enxergam desenvolvem mecanismos compensatórios pelo uso de outros canais perceptivos na realização de determinadas atividades. No primeiro caso, o desempenho de quem não enxerga é medido a partir da maior ou menor aproximação com o que seria o desempenho médio de pessoas que enxergam. No segundo caso, é testada a chamada hipótese da compensação sensorial, procura-se determinar se pessoas que não enxergam desenvolveriam capacidades dos outros sentidos consideradas “acima do normal” ou se a compensação sensorial seria fruto de um treinamento e direcionamento da atenção. Com base no fenômeno da plasticidade cerebral alguns pesquisadores levantam a hipótese de que pessoas cegas seriam capazes de gerar imagens mentais internas que possam conter características visuais. Tal hipótese é levantada no livro “Blind Vision”,

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no qual Cattaneo e Vecchi (2011)24 fazem uma ampla revisão bibliográfica de estudos realizados pela ciência cognitiva e neurociência com pessoas cegas. Segundo os autores, estamos acostumados a pensar o significado da visão estritamente como "ver com os olhos", mas, na realidade, ver não requer apenas o funcionamento do olho e dos nervos óticos, mas também de estruturas cerebrais. Embora pessoas cegas não possuam o input visual, o seu “hardware” central estaria intacto. A partir dessa perspectiva, perguntar se o cérebro de uma pessoa cega pode ver pareceria menos paradoxal, ao menos quando se considera ver como a capacidade de gerar representações mentais internas que possam conter detalhes visuais. O sentido da visão é descrito por Cattaneo e Vecchi como o mais preciso e acurado. Segundo os autores, com um simples olhar podemos abarcar simultaneamente uma quantidade enorme de informações e nossa acuidade fóvea nos permite focar em características muito detalhadas daquilo que estamos percebendo. A visão nos permite graduar e coordenar movimentos no espaço, tais como a locomoção e os gestos das mãos. De todos os sentidos, seria o de maior resolução espacial e constuma ser a modalidade sensória primária na cognição espacial e identificação de objetos. Ofereceria também um quadro de referência padrão para a integração multissensorial e sensório motora. A visão permitiria um processamento paralelo de inputs múltiplos e distintos, assim como a sua integração em uma única e significativa representação, mantendo um alto poder de descriminação. Hatwell (2003) acrescenta que a visão tem um papel predominante nos humanos graças ao seu fluxo sensorial contínuo, rico em informações sobre o exterior. A visão é descrita nos estudos analisados como o sentido mais preciso, mais acurado, de maior abrangência e profundidade espacial (ou o sentido da distância), mais geral (no sentido de reunir diferentes informações numa única imagem mental), mais veloz no processamento das informações. Rangel, Pereira e colegas (2010) afirmam ainda que a visão teria um componente “hedônico” bastante valorizado. Na revisão bibliográfica feita por Cattaneo e Vecchi, o interesse principal parece ser o de saber se pessoas cegas podem gerar representações mentais, como geram (através de que outra modalidade sensória principal) e como seriam suas representações

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Parte-se desse livro como uma das referências principais dessa sessão, justamente pela extensa revisão bibliográfica sobre o tema realizada pelos autores. Tendo esse livro como uma espécie de rota da área, outras referências também foram mapeadas.

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mentais (teriam características visuais? 25). Os estudos também realizam testes que procuram medir o desempenho de cegos e videntes e os meios utilizados por cada um dos participantes para a realização de tarefas que têm como foco especialmente a percepção auditiva e a percepção tátil. Buscam entender como, por meio de informações táteis e auditivas, pessoas cegas se localizam no espaço, reconhecem e desenvolvem imagens mentais de objetos ou espaciais. Cattaneo e Vecchi apontam a existência de poucos estudos sobre a experiência gustativa e olfativa de pessoas cegas nas ciências cognitivas. As experiências háptica e auditiva são descritas como sendo necessariamente sequenciais e, portanto, mais lentas do que a visual. Os autores dizem que pessoas cegas parecem se basear em processos mentais sequenciais, devido ao caráter eminentemente sequencial da sua experiência perceptiva dominante (auditiva ou tátil). Acrescentam que a superfície que pode ser simultaneamente tocada por nossas mãos é limitada e que a experiência tátil seria restrita ao espaço peripessoal (espaço imediatamente ao redor do corpo). Hatwell (2003) coloca que a audição, ainda que também seja uma percepção à distância, seria limitada, uma vez que nem todos os objetos são sonoros. Já o tato seria menos atuante que a visão por ser uma percepção de contato, portanto seu campo perceptivo seria muito pequeno, mesmo acrescido do movimento. Quando se referem a testes realizados com o tato como experiência perceptiva dominante, faz-se a distinção já realizada por Gibson (1962) entre tato passivo e tato ativo. O tato passivo se refere à percepção de um estímulo tátil por um observador passivo, enquanto o tato ativo se refere à exploração ativa de objetos pelo indivíduo, onde a motricidade se coloca a serviço da percepção na execução de movimentos exploratórios. O tato ativo ou sistema háptico é considerado por Ochaita e Rosa (1995) como o sistema sensorial mais importante para a pessoa cega conhecer o mundo. Ao medirem as habilidades táteis e auditivas de pessoas cegas, os testes experimentais encontram algumas vantagens no desempenho de cegos congênitos se comparados a cegos tardios ou videntes. As vantagens são atribuídas ao chamado fenômeno da compensação sensorial – a acuidade tátil e auditiva de pessoas cegas poderia ser aprimorada devido à cegueira. Entretanto, como apontam Cattaneo e Vecchi, os achados experimentais nem sempre são consistentes a respeito da extensão e do

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Esse ponto a respeito de características visuais nas representações mentais de cegos será discutido mais profundamente no último capítulo.

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significado dessa compensação sensorial. A observação do fenômeno da compensação sensorial no nível do comportamento pode depender tanto do fenômeno da plasticidade cortical quanto das mudanças nas estratégias de processamento das informações. Desvincular as consequências comportamentais dessas duas variáveis seria quase impossível uma vez que, por um lado, o uso de estratégias diferentes de processamento pode causar uma mudança na amplitude em que um sentido particular é utilizado, induzindo uma reorganização cerebral dependente do uso; e, por outro lado, a reorganização cortical por si só poderia influenciar estratégias comportamentais. Cattaneo e Vecchi levantam os mais recentes estudos e descobertas reportados pela neurociência para explicar ou medir o fenômeno da compensação sensorial em tarefas auditivas e táteis. Um importante aspecto de como o nosso sistema auditivo processa as informações acústicas está na capacidade de discriminar mudanças ou diferenças de intensidade e frequência. Outro aspecto crítico da experiência auditiva é a localização pelo som. A origem de um som pode ser localizada nas três dimensões espaciais em função da capacidade do sistema auditivo de processar o som que emana de uma fonte. O termo "eco" se refere à percepção de dois sons distintos que resulta da diferença do tempo de chegada das ondas sonoras navegando por diferentes caminhos, mas vindo de uma única fonte. De acordo com o levantamento feito pelos autores, estudos comparando cegos congênitos e videntes não mostram diferenças significativas no sistema auditivo elementar, tais como frequência, percepção da altura e limiar de escuta. O desenvolvimento da percepção auditiva em cegos congênitos pode ser notado em tarefas perceptivas auditivas mais complexas. Muitos estudos sugerem que indivíduos cegos podem ser superiores em discriminar temporalmente sons significativos como a fala. Hertrich, Dietrich e colegas (2009), por exemplo, mediram em sua pesquisa que pessoas cegas seriam capazes de entender um discurso sintético ultra rápido na velocidade de 25 sílabas por segundo, enquanto o desempenho máximo de ouvintes videntes normais é em torno de 8-10 sílabas por segundo. Existiriam também evidências de um processamento do eco desenvolvido e de um melhor uso do eco como pista para fins de deslocamento em cegos congênitos ou precoces. Outros desempenhos aprimorados em cegos se comparados a videntes foram em testes de memória auditiva e capacidade de memória verbal. Um teste de memória verbal que pedia que os sujeitos memorizassem uma lista de palavras e sua ordem revelou que participantes cegos lembravam de mais palavras do que videntes (indicando melhor memória de itens) e foram notadamente 74

superiores em lembrar sequências maiores de palavras de acordo com sua ordem original (Amedi e colegas, 2003, Raz e colegas, 2007). Os estudos ressaltam que orientar a atenção tanto no espaço quanto no tempo melhora a eficiência do processamento tátil, auditivo e visual. Portanto, um melhor desempenho em tarefas auditivas pode refletir tanto um funcionamento perceptivo básico mais eficiente quanto pode também resultar de uma maior atenção espacial devotada a inputs auditivos. Outros autores como Hatwell (2003) e Kastrup, Monteiro e Manhães (2007) consideram que o que se aperfeiçoaria em pessoas cegas seria a capacidade de atenção aos estímulos táteis e auditivos e não uma modificação da capacidade sensorial em si. Exercícios de estimulação sensorial permitiriam um novo uso da atenção mediante aprendizagem. Essa discussão também está presente na avaliação da acuidade tátil. Quando tocamos uma superfície ou manipulamos objetos nos engajamos em uma experiência háptica. De acordo com Lederman e Klatzky (2009), a expressão "percepção háptica" se refere ao uso combinado do sentido cutâneo e cinestésico e é, geralmente, uma experiência ativa, controlada pelo próprio indivíduo. A precisão com que um estímulo tátil é detectado depende tanto da densidade dos receptores quanto do tamanho do campo receptivo. Quanto maior a densidade e quanto menor o campo receptivo, maior seria a acuidade tátil. No nível cortical, partes do corpo densamente inervadas são representadas por um número maior de neurônios que ocupariam uma parte desproporcionalmente grande do sistema de representação corporal somatossensório. A ponta dos dedos e os lábios seriam as regiões que forneceriam ao córtex cerebral informações mais detalhadas sobre um estímulo tátil. Cattaneo e Vecchi (2011) mencionam ainda as vias proprioceptivas, que seriam responsáveis pela detecção do movimento. São vias aferentes de condução rápida que proveem informações sobre a posição dos membros estáticos e das articulações ou dos movimentos dinâmicos dos membros. Localizam-se nos músculos, tendões e cápsulas articulares e a percepção que advém delas é chamada de cenestésica. A informação sensorial codificada pelos receptores cutâneos e proprioceptivos é convergida para o cérebro através do caminho da coluna dorsal lemnisco-medial. Esse caminho abrange a capacidade para discriminar formas finas e texturas, o reconhecimento de objetos tridimensionais e a detecção de movimento e está também envolvido na transmissão de informação sobre a posição consciente do corpo no espaço.

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Pessoas cegas demonstraram melhor desempenho do que videntes em testes de discriminação de texturas e mostraram acuidade tátil superior nos quatro dedos das duas mãos. Em estudo realizado por Goldreich and Kanics (2003) pessoas cegas mostraram ter uma maior acuidade tátil, independente do grau de visão na infância, do nível de percepção de luz ou das diferenças na leitura em Braille. O participante cego médio mostrou ter, neste estudo, uma acuidade tátil comparável a de um vidente em média 23 anos mais jovem. Outro teste foi feito por Legge, Madison e colegas (2008) com participantes cegos e videntes entre 12 e 85 anos. Em participantes cegos, verificou-se a retenção de uma acuidade tátil alta mesmo nas idades avançadas, não foi encontrado nenhum declínio relacionado à idade. A acuidade tátil não apareceu correlacionada com a rapidez de leitura em Braille, a quantidade de leitura diária ou a idade em que aprenderam o Braille. Os autores concluem que, ao se medir o tato ativo, pessoas cegas retém uma acuidade tátil elevada até uma idade avançada, diferente dos participantes idosos videntes. Propõem que a preservação da acuidade tátil ao longo da vida em pessoas cegas seria decorrente do uso ativo do tato feito por elas em atividades da vida diária, não apenas na leitura em Braille. Como na questão da acuidade auditiva, os estudos discutem se a cegueira por si só significaria um aumento da acuidade tátil ou se esse aprimoramento dependeria da experiência, ou seja, do aumento em intensidade e do tipo de uso do tato. Wong e colegas (2011) testaram as duas hipóteses que procuram explicar a causa do aprimoramento tátil: a hipótese da experiência tátil (confiar no senso do tato leva a um aprimoramento da acuidade tátil) e a hipótese da privação visual (a ausência da visão por si só levaria ao aprimoramento tátil). Os autores realizaram testes que comparam cegos e videntes em tarefas de acuidade tátil passiva e ativa envolvendo os três dedos médios e os lábios. Pela hipótese da experiência tátil, participantes cegos superariam videntes nos dedos, mas não nos lábios. Já pela hipótese da privação visual, teriam que superar nos dois. Os resultados encontrados foram consistentes com a hipótese da experiência tátil, já que os participantes cegos tiveram melhor desempenho que videntes nos dedos, mas não houve diferença nos lábios, demonstrando que confiar no senso do tato seria o gatilho para o aprimoramento da acuidade tátil ativa em cegos. Kauffman, Théoret e Pascual-Leone (2002) fizeram experimentos que demonstram que, após cinco dias de treinamento em Braille, a acuidade tátil passiva no dedo indicador direito não foi afetada em um grupo de pessoas videntes, entretanto, a 76

acuidade tátil desse mesmo dedo foi significativamente aprimorada após um período de cinco dias de uso de máscara. Em outro estudo, Facchini e Aglioti (2003) evidenciam que, mesmo um período de 90 minutos de uso de máscara pode induzir ganhos na acuidade tátil passiva em videntes. Destaca-se a importância do componente ativo da experiência háptica para a determinação das capacidades táteis superiores em pessoas cegas. Legge e colegas (2008) argumentam que pessoas cegas precisam confiar continuamente em formas táteis e na descriminação de texturas nas atividades diárias (escolha de determinada roupa pela textura do tecido, reconhecimento de moedas, seleção de chaves, etc). Tais experiências táteis ativas, quando prolongadas no tempo, resultariam no aprimoramento da capacidade de reconhecer objetos e os materiais de que são feitos pelo tato. Cattaneo e Vecchi (2011), junto com outros pesquisadores como Grant e colegas (2000), Hatwell (2003) e Collignon e colegas (2006) consideram que, similar ao que ocorre com as habilidades auditivas, capacidades táteis superiores em cegos dependeriam mais de mecanismos de atenção aprimorados por meio de práticas contínuas e/ou pelo uso de estratégias sensório-motoras mais eficientes do que de mudanças no processamento sensório em estágios sensoriais mais baixos. Se pensarmos sobre o modo como se apresenta a percepção de mundo com base na visão, de um lado, e audição e tato, de outro, pelos estudos da ciência cognitiva e da neurociência descritos anteriormente, percebe-se que a visão é considerada precisa, acurada, englobante, rápida, abrangente, enquanto audição e tato são sequenciais, lentos, parciais, limitados. É possível identificar nessas diferenciações um contraste que está explicitamente relacionado a um modo de compreender a percepção - como uma operação que ocorre no cérebro e que vai gerar uma representação mental. É como se o formato ideal e apropriado de uma representação mental fosse preenchido por informações do tipo visual. Na ausência desse “input”, precisariam ser encontradas formas alternativas e menos adaptadas de suprir essa falta. Os estudos analisados, que pretendem medir o impacto da cegueira no desenvolvimento cognitivo de cegos, fazem uma analogia com a experiência de pessoas que não teriam sofrido impacto algum – as que enxergam. As suas formas de realizar determinadas

atividades

são

sempre

consideradas

subdesenvolvidas

ou

superdesenvolvidas – como reflexo do atraso ou como compensação desta desvantagem. Os padrões avaliados são padrões de quem enxerga e o próprio propósito do que se quer medir. A compensação sensorial, seja ela uma sensibilidade elevada desenvolvida por 77

meio da experiência, um aprimoramento da atenção despendida a determinados estímulos ou reflexo da reorganização cerebral pela cegueira, é entendida como uma estratégia necessária diante de uma falta a ser superada. Garland-Thomson (2001) coloca que tanto mulheres quanto pessoas com deficiência são imaginadas na tradição ocidental como sendo puramente corpo, desprovidos de mente ou espírito. Essa sentença de corporalidade é concebida como falta ou excesso – mulheres são castradas ou histéricas ou, ainda, tem hormônios hiperativos. Já as diferenças da deficiência são concebidas como sendo atrofia significando degeneração - ou hipertrofia - significando aumento. No caso da cegueira, pode-se pensar a discussão a respeito da “compensação” a partir da mesma marca – capacidades extraordinárias destinadas àqueles que não possuem a modalidade sensória ideal para o desenvolvimento “normal” dos processos cognitivos. A aprendizagem ou educação da atenção aos estímulos auditivos ou táteis seriam, portanto, completamente dispensáveis às pessoas que enxergam, uma vez que, tendo a visão, os outros sentidos seriam secundários para o seu processo cognitivo.

1.2.3 Plasticidade Cerebral

Uma das propriedades fundamentais e intrínsecas do cérebro humano que vem sendo intensamente pesquisada nos últimos anos é a sua plasticidade. Entende-se por tal fenômeno a suscetibilidade do cérebro a mudanças advindas da experiência: as partes que não estariam sendo utilizadas devido à ausência de um perceptivo relevante - tais como o córtex visual nos cegos ou o córtex auditivo nos surdos – se reorganizam para dar suporte a outras funções perceptivas e cognitivas. A neuroplasticidade reflete a habilidade do cérebro de mudar sua estrutura e funcionamento no decorrer da vida. Inicialmente, considerava-se que essa propriedade se manifestava apenas após uma perda sensorial ou em contextos considerados patológicos. Descobertas recentes sobre o fenômeno indicam que o cérebro tem uma capacidade extraordinária de se reorganizar em resposta a variáveis externas, tais como a qualidade da experiência sensorial disponível, o alcance em que uma atividade específica (música, esporte, etc) é praticada, recuperação de fenômenos traumáticos ou, simplesmente, pelo processo natural de desenvolvimento e envelhecimento. Tal propriedade do sistema nervoso é visível em diferentes níveis de funcionamento cerebral que incluem o genético, neuronal, sináptico, assim como o nível das redes cerebrais e do sistema nervoso com um todo. 78

Consequentemente, a plasticidade aparece

em dinâmicas de processos cognitivos

emergentes e em comportamentos manifestos. Cada um desses níveis incorporam diferentes tipos de mudanças (Amedi e colegas, 2010). Embora útil, a separação em níveis de mudanças plásticas é, de certa forma artificial, porque os níveis individuais de organização cerebral não são mutuamente independentes, mas sim direta ou indiretamente influenciados por todos os outros níveis. King e Calvert (2001) dizem que a maior parte da percepção de eventos cotidianos é registrada ao mesmo tempo por mais de uma modalidade sensorial de forma integrada e unificada, ou seja, recebe-se, simultaneamente, estímulos táteis e visuais, por exemplo, ou olfativos e auditivos. A convergência multissensorial passou a ser considerada por muitos pesquisadores como uma característica geral das áreas sensoriais, já que ocorre mesmo nas áreas primárias ou zonas de projeção, que são as que primeiro recebem o estímulo ou sensação. Técnicas que medem a ativação de áreas primárias por estímulos de outras modalidades sensoriais demonstram a convergência multissensorial (Ghazanfar e Schroeder, 2006; Martuzzi e colegas, 2007). O

próprio

potencial

para

transformação

não

é

estático,

variando

significativamente no curso da vida. Considera-se que esse potencial estaria em seu ponto máximo na primeira infância e entraria em uma fase mais estável depois da puberdade. Entretanto, é necessário levar em consideração a natureza multifacetada da plasticidade, que inclui diferentes tipos de mudanças ocorrendo em diferentes escalas de tempo e em diferentes níveis de funcionamento neural. Atualmente, a plasticidade não seria mais considerada um estado extraordinário do sistema nervoso, mas um mecanismo latente capaz de se transformar continuamente durante toda a vida (PascualLeone e colegas, 2005). Os estudos realizados com pessoas cegas são considerados uma oportunidade de conhecer mais sobre a capacidade plástica do cérebro humano. Um dos achados das últimas décadas foi o de que as mesmas áreas occipitais que facilitam processos visuais em pessoas videntes são recrutadas em pessoas cegas durante a codificação tátil e auditiva. Cattaneo e Vecchi (2011) analisam testes realizados com pessoas cegas que se referem essencialmente à plasticidade cortical e, mais especificamente, aos fenômenos de reorganização funcional intramodal e crossmodal. Plasticidade intramodal – se refere a mudanças que ocorrem na mesma região cortical normalmente dedicada a processar informações em uma modalidade sensória especifica. 79

Na cegueira, devido aos efeitos combinados de privação visual e práticas auditivas e táteis aprimoradas, essas áreas podem ser reorganizadas. A representação expandida do dedo de leitura no córtex somatosensório de leitores de Braille cegos é um exemplo de plasticidade intramodal. Plasticidade crossmodal - ocorre quando uma área normalmente dedicada a processar informação visual é recrutada a processar informação tátil ou auditiva. A ativação frequentemente reportada do córtex occipital durante a leitura de Braille em pessoas cegas é um exemplo de plasticidade crossmodal. Plasticidade funcional - pode ser induzida tanto pela perda visual por si só quanto pelo aumento da prática nas modalidades tátil ou auditiva. A separação entre esses dois elementos não é óbvia e eles interagem no cenário da cegueira. Uma pessoa que fica cega tem que confiar massivamente em informações táteis ou sonoras para lidar com suas atividades cotidianas, os efeitos da privação visual e da prática perceptiva tátil/auditiva intensa interagem desde o início da cegueira.

Diversos estudos empregando testes discriminatórios táteis e auditivos reportaram a ativação de áreas visuais do cérebro em pessoas cegas. O recrutamento das áreas visuais para processamentos não-visuais em cegos não é apenas um epifenômeno: o grau de recrutamento visual encontra correlação com a performance comportamental, tanto para tarefas auditivas quanto táteis (Stilla, Hanna e colegas, 2008). Os estudos demonstraram que a leitura do Braille, assim como outros testes de discriminação tátil ativa (de ângulo, largura e de caracteres romanos em relevo), ativam o córtex occipital estriado (áreas V1 e V2) em cegos precoces e congênitos. Tanto cegos precoces quanto cegos tardios foram melhores que videntes em localizar corretamente estímulos sonoros dependendo da posição em que eram apresentados (Voss, Gougoux e colegas, 2008). Cegos tardios, similarmente aos cegos precoces, podem possuir uma sensibilidade elevada para eco-pistas se comparados aos videntes (Dufour, Déspres e Candas, 2005). Essas descobertas sugerem que mesmo uma perda visual tardia pode induzir alguns fenômenos compensatórios no plano perceptivo, embora pareçam mais limitados se comparados aos associados à cegueira precoce. Cegos tardios e cegos precoces tiveram melhor desempenho que videntes em testes de discriminação de textura, não tendo sido encontrada nenhuma diferença devido ao período de início da cegueira (Alary, Duquette e colegas, 2009). Esses dados, junto com a descoberta de que mesmo um curto período de privação visual pode induzir um 80

ganho de acuidade tátil passiva (Kauffman, Théoret e Pascual-Leone 2002), parecem sugerir que a cegueira, em qualquer idade, pode resultar em um aprimoramento da acuidade tátil. Amedi e colegas (2010) ressaltam que a idade da perda da visão é um fator importante que influencia o tipo e a extensão das mudanças cognitivas e neurais subsequentes, assim como o potencial para a reabilitação. Resultados de danos tardios ou precoces não são tipicamente comparáveis porque o potencial para a reorganização neuroplástica difere qualitativa e quantitativamente no desenvolvimento e no cérebro adulto. Os autores acrescentam que a experiência anterior de visão em indivíduos que se tornam cegos tardiamente na vida molda de maneira significativa o seu desenvolvimento, o que pode limitar o potencial para a reorganização do funcionamento, tanto cognitivo quanto neural, que se segue à perda sensorial. Uma vez que perdem a função visual, cegos tardios precisam reaprender e reorganizar o processamento de informação para compensar a falta de inputs. Embora a informação visual não esteja mais disponível, ainda podem confiar em algumas estratégias visuais tais como as imagens visuais, que podem ser mediadas pelo córtex visual (Buchel e colegas, 1998). Amedi e colegas (2010) apontam que o grau em que cegos tardios usarão estratégias visuais e a natureza da reorganização cortical que segue à perda sensorial são determinados pela importância de sua experiência visual anterior, pelo estágio de desenvolvimento em que ocorreu a perda da visão e pelas experiências subsequentes. Já em cegos congênitos não se pode falar de reorganização do córtex visual porque as regiões occipitais do seu cérebro nunca tiveram experiência com informação visual, podendo se integrar a outras redes cerebrais de forma mais flexível. Não seria uma reorganização, portanto, e sim a forma como se organiza. Um dos pontos que permanece em discussão é sobre a idade que delimitaria cegos precoces e cegos tardios. Segundo Cattaneo e Vecchi (2011), diferentes estudos adotaram critérios heterogêneos para essa classificação: em alguns casos, indivíduos que perderam sua visão depois de dois ou três anos de vida foram considerados cegos precoces, em outros casos, cegos tardios. Esse é um ponto problemático quando se tenta comparar a produção experimental disponível, já que as consequências perceptivas e cognitivas associadas com a perda da visão em pessoas que se tornam cegas aos 30 anos ou mais tarde podem ser muito diferentes daquelas que entram em jogo quando se perde a capacidade visual depois de poucos anos de vida.

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Apesar de se referirem às mudanças que ocorrem no cérebro como efeito da plasticidade em termos de inputs e processamento de informações, e considerarem que as regiões cerebrais se dividem por áreas especializadas em processar determinados tipos de informações sensoriais (auditivas, táteis, visuais), cuja ativação só dependeria da entrada do input necessário, os estudos na área da neurociência que procuram medir os efeitos da plasticidade cerebral reconhecem cada vez mais o papel do ambiente na formação e transformação do cérebro e também a flexibilidade e a intercomunicação entre as áreas. Mesmo que sejam mantidas as oposições interno e externo, corpo e ambiente, inato e adquirido, a interdependência e a influência mútua entre os polos passam a ser cada vez mais reconhecidas. Destacam-se nos estudos realizados nessa área palavras como plasticidade, adaptabilidade, transformação, mudança, habilidade. Os achados recentes da neurociência a respeito do fenômeno da plasticidade cerebral talvez seja o que mais se aproxima de uma teoria incorporada da cognição, que entende o desenvolvimento cognitivo não como a capacidade do cérebro de processar informações e gerar representações mentais, mas como um processo que resulta da ação de um corpo inteiro em um ambiente. Entraremos em mais detalhes sobre essa forma de compreender a cognição a partir da discussão sobre desenvolvimento cognitivo e aprendizagem em crianças cegas nos manuais de educação na área da deficiência visual.

1.3 Significados da cegueira nos manuais de educação

A partir das ideias apresentadas sobre como a oftalmologia, parte das ciências cognitivas e da neurociência compreendem a cegueira e os seus efeitos no processo de desenvolvimento de pessoas cegas, pretende-se identificar a forma como tais ideias são absorvidas e norteiam manuais e textos referenciais para a educação de crianças cegas. A proposta é realizar uma análise de textos que partem de práticas ou orientam outras práticas, para compreender quais teorias ou conceitos são mencionados e o tipo de uso que é feito deles. Conforme necessário, serão retomadas referências que já foram aludidas ou novas correntes serão incorporadas a fim de desvendar essa malha práticoteórica que sustenta o conhecimento sobre cegos e a formação para cegos. A partir das práticas pedagógicas sugeridas, identifico outra forma possível de se compreender a cognição e o processo de aprendizado de pessoas cegas, dialogando com as contribuições de autores que procuram articular corpo, mente e ambiente por meio de uma teoria da cognição incorporada. 82

Quatro dos manuais analisados foram desenvolvidos no Brasil por iniciativa da Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação (MEC)26 e um deles pela Secretaria de Educação à Distância, também do MEC27. Além dos manuais, foram selecionados textos que tratam do que se convencionou chamar de programas de “estimulação precoce”, “intervenção precoce” ou “estimulação essencial”. De acordo com Navarro e colegas (1999), a estimulação precoce seria uma intervenção terapêutica educacional e social utilizada por uma equipe multidisciplinar 28 para habilitar deficientes visuais por meio da exploração de outros canais perceptivos. Carletto (2008) acrescenta que a necessidade de atendimento precoce, de preferência a partir das primeiras semanas de vida da criança que nasce cega ou fica cega no início de sua vida, seria diretamente proporcional às suas chances de ter um desenvolvimento motor, social, cognitivo e afetivo considerado normal. A meta geral dos programas de estimulação precoce29, segundo Navarro e colegas (1999), seria a de tornar a criança com deficiência visual independente e integrada à sociedade. Já o objetivo do tratamento seria o de propiciar um desenvolvimento neuropsicomotor o mais adequado possível, através do estímulo dos sentidos remanescentes e da visão residual. Todos os manuais mencionam a necessidade de uma avaliação funcional da visão, em consonância com o que foi descrito nos relatórios de oftalmologia. A avaliação, entretanto, não precisaria ser feita pelo médico, podendo ser realizada pelos demais profissionais da equipe multidisciplinar. Além das medidas oftalmológicas da acuidade e campo visual, coloca-se a necessidade de avaliar o uso eficiente do potencial da visão (Brasil, 2007). O objetivo da avaliação funcional seria o de estimar o aproveitamento do potencial visual de acordo com as condições de estimulação e ativação das funções visuais. No caso de crianças com baixa visão, a avaliação

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Atendimento educacional especializado em Deficiência Visual (2007); Saberes e práticas da inclusão: dificuldades de sinalização e comunicação – deficiência visual (2006); Programa de Capacitação de Recursos Humanos do Ensino Fundamental: deficiência visual vol. 1, 2 e 3 (2001); Orientação e mobilidade: conhecimentos básicos para a inclusão da pessoa com deficiência visual (2003). 27 Cadernos da TV Escola – deficiência visual (2000). 28 Os autores mencionam a necessidade dos seguintes profissionais para formar as equipes multidisciplinares: médico oftalmologista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social, professor. 29 A atenção precoce foi garantida como direito na Constituição Federal brasileira de 1988, mas a obrigatoriedade da educação precoce foi expressa em 1996 na Lei de Diretrizes e Bases da educação (LBD) e, posteriormente, nas Diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica (Brasil, 2001).

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privilegia o uso que o aluno faz do seu resíduo visual nas atividades educacionais, nas atividades de vida diária, de orientação e mobilidade. Estabelecer uma relação entre a mensuração e o uso prático da visão se coloca necessário porque, como aparece em Brasil (2007), mais de 70% das crianças identificadas como legalmente cegas possuiriam alguma visão útil. O objetivo da avaliação funcional seria, então, o de compreender o funcionamento da criança, cega ou de baixa visão, para verificar as necessidades específicas de adaptação e as dificuldades que intervêm no seu processo de desenvolvimento e aprendizagem. A partir disso, desenvolver atividades e estratégias metodológicas que favoreçam o seu processo de aprendizagem, desde a utilização de recursos óticos específicos até a adaptação de brinquedos, jogos, materiais escolares, estruturação e organização do ambiente. A partir da avaliação funcional, o objetivo da intervenção precoce se concentra no estímulo dos chamados sentidos remanescentes30 com o objetivo de diminuir dificuldades ou defasagens. Como indica Carletto, “o trabalho de intervenção neste período precisa ser voltado essencialmente para o desenvolvimento dos demais sentidos físicos, buscando a superação da cegueira através deles” (Carletto, 2008: 9). Ao abordarem o treinamento dos sentidos remanescentes, aparece a ideia de que o seu refinamento em pessoas cegas seria decorrente da prática e do uso, e não uma consequência imediata da cegueira. Parecem concordar com a vertente das ciências cognitivas que entende a compensação sensorial em pessoas cegas não como uma modificação da capacidade sensorial em si, mas como um aprimoramento da capacidade de atenção. A pessoa cega não dispõe de “sexto sentido”, nem de “compensação da natureza”. Isto são conceitos errôneos. O que há na pessoa cega é simples desenvolvimento de recursos latentes que existe em todas as pessoas. (Brasil, 2001: 144) O desenvolvimento aguçado da audição, do tato, do olfato e do paladar é resultante da ativação contínua desses sentidos por força da necessidade. Portanto, não é um fenômeno extraordinário ou um efeito compensatório. (Brasil, 2007: 15)

A primeira questão que emerge da leitura dos manuais gira em torno da palavra remanescente, que segundo o dicionário Aurélio, significa: “Resto, sobra, sobejo; o que

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Nos manuais eles são descritos como sendo a audição, o tato, o paladar e o olfato. Já Carletto define sentidos remanescentes como “sentidos que envolvem percepções não visuais como a audição, o tato (todo o sistema háptico, não somente as mãos), o olfato, a cinestesia, a memória muscular e o sentido vestibular” (Carletto, 2008:15).

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fica de um todo depois de retirada uma parte”. A aplicação sistemática da palavra ou mesmo da expressão “resìduo 31 visual” para indicar o uso que se faz da visão por pessoas cegas ou com baixa visão, ao invés de remeter a um todo completo, a algo que se tem ou se é, nos remete ao que falta, ao que se perdeu. Ainda que o sentido visual nunca tenha estado, como no caso de cegos congênitos, o que se tem – todos os outros sentidos – é o resto, é aquilo que sobra, remetendo a uma perda irremediável do que nunca se teve. Mesmo que a parte não tenha sido retirada, esse todo não é considerado inteiro. O incômodo com o uso recorrente da palavra “remanescente” levou a uma busca simples pela palavra nos cinco manuais de deficiência visual analisados, e ela foi encontrada 23 vezes32. Como fator de comparação e analogia, procurou-se pela mesma palavra em quatro manuais, todos eles desenvolvidos pelo MEC 33, sobre deficiência auditiva. Sendo uma deficiência também sensorial, a hipótese foi a de que a visão, o tato, o olfato, a propriocepção, seriam considerados os sentidos remanescentes do indivíduo que nasce com deficiência auditiva. Entretanto, nos quatro manuais pesquisados não foi encontrada nem uma única vez a palavra “remanescente”. O destaque da ausência, perda ou falta em pessoas cegas parece associado à predominância que se dá à visão na hierarquização dos sentidos. Em Brasil (2007) menciona-se que “a visão reina soberana na hierarquia dos sentidos”, “é o elo de ligação que integra os outros sentidos”, “sem a visão, os outros sentidos passam a receber informações de forma intermitente, fugidia e fragmentária” (Brasil, 2007: 15). Essa preponderância, que também aparece nos artigos das ciências cognitivas, é reforçada nos manuais sobre a educação de crianças cegas e textos sobre estimulação precoce, a partir da afirmação de que 80% das informações que recebemos do ambiente nos chegam pela visão34: “a visão exerce papel fundamental no conhecimento, controle e adaptação ao meio. É sabido que a visão transmite com rapidez e precisão, antecipa e coordena os movimentos e ações e responde por 80% do relacionamento do indivíduo

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“O que resta. O que resta de substâncias submetidas à ação de diversos agentes”, segundo o Aurélio. Já em um dos textos sobre estimulação precoce (Carletto, 2008), a palavra surge 11 vezes. 33 Foram consultados os seguintes manuais: Série Atualidades Pedagógicas: Educação Especial – deficiência auditiva (1997); Saberes e Práticas da Inclusão - Desenvolvendo competências para o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos surdos (2006); Educação infantil: saberes e práticas da inclusão: dificuldades de comunicação e sinalização: surdez (2006); Atendimento Educacional Especializado – pessoa com surdez (2007). 34 Outros manuais ou artigos que utilizam o mesmo percentual: Brasil (2001) e Dias (1998); Figueira (2000), Lima e Silva (2000) e Cobo, Rodriguez e Bueno (2003). 32

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com o mundo” (Brasil, 2001, v.3: 50). O pressuposto, apresentado sem problematização ou controvérsia e que poderia ser relacionado à “caixa preta” de Latour (2001), foi criticado por diversos autores35 que questionam a origem de tal afirmação, já que em nenhum dos estudos em que aparece se designa a fonte ou o método de pesquisa aplicado. Além do predomínio da visão no desenvolvimento cognitivo, outras características da vertente cognitivista clássica estão presentes nos manuais: a separação entre interno e externo e o processo cognitivo como uma operação inicia pela transmissão de informação através dos canais perceptivos, tendo como resultado a emissão de representações pelo cérebro. No caso da cegueira, não existindo a principal via de transmissão de informação - a visão - coloca-se a necessidade de uma estimulação mediada dos outros sentidos. Tais aspectos podem ser identificados nas seguintes passagens:

A visão é o canal mais importante de relacionamento do indivíduo com o mundo exterior. (...) A criança deficiente visual (cega ou com baixa visão) desde o início sofre limitações em suas possibilidades de apreensão do mundo externo e de adaptação ao meio. (Brasil, 2000: 21) Para que o aprendizado seja completo e significativo é importante possibilitar a coleta de informação por meio dos sentidos remanescentes. A audição, o tato, o paladar e o olfato são importantes canais ou porta de entrada de dados e informações que serão levados ao cérebro. (...) O sistema háptico é o tato ativo, constituído por componentes cutâneos e sinestésicos, através dos quais as impressões, sensações e vibrações detectadas pelo indivíduo serão interpretadas pelo cérebro e constituem valiosas fontes de informação. (Brasil, 2007: 21)

Como aponta Ormelezi (2000), muitas pesquisas sobre a estruturação cognitiva específica da cegueira se baseiam na teoria de Piaget. Um destaque especial é dado ao período que o autor chama de sensório-motor, que vai do nascimento até aproximadamente os dois anos de idade. O mesmo período marca a atuação dos programas de estimulação precoce (Brasil, 2001), ainda que alguns programas recomendem o atendimento de crianças cegas na idade de até cinco anos (Navarro e colegas, 1999).

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Kastrup, Carijó e Almeida (2009), Batista e Enumo (2000), Monteiro (2009), Batista (2005), Moraes e Arendt (2011), são alguns deles.

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O processo de desenvolvimento humano para Piaget (2010) é evolutivo e tem uma origem biológica, os reflexos hereditários, que são ativados pela ação e interação do organismo com o meio ambiente - físico e social - que o rodeia. Segundo o autor: A inteligência verbal ou refletida repousa na inteligência prática ou sensório-motora, que se apoia em hábitos e associações que são adquiridos para se tornarem a combinar. Estas associações pressupõem, por outro lado, o sistema de reflexos cuja relação com a estrutura anatómica e morfológica do organismo é evidente. Há, pois, uma certa continuidade entre a inteligência e os processos puramente biológicos de morfogénese e de adaptação ao meio (Piaget, 2010: 27).

Piaget sustenta que o pensamento lógico não é inato ou mesmo externo ao organismo, mas é fundamentalmente construído na interação homem-objeto. Existiria uma relação de interdependência entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer. Para Piaget, o conhecimento é fruto das trocas entre o organismo e o meio. Essas trocas são responsáveis pela construção da própria capacidade de conhecer. A alteração organismo-meio ocorre através do que o autor chama de processo de adaptação, com seus dois aspectos complementares: a assimilação e a acomodação. A adaptação do ser humano ao meio ambiente se realiza através da ação que, segundo Cavicchia (2010), seria o elemento central da teoria piagetiana, o centro do processo que transforma a relação com o objeto em conhecimento. O desenvolvimento cognitivo na concepção piagetiana compreende quatro estágios: o sensório-motor (do nascimento aos 2 anos), o pré-operacional (2 a 7 anos); o estágio das operações concretas (7 a 12 anos) e o estágio das operações formais (dos 12 em diante). Cada período definiria um momento do desenvolvimento como um todo, ao longo do qual a criança constrói determinadas estruturas cognitivas. O conhecimento se constrói pelas sucessivas reorganizações, que compreendem a assimilação e a acomodação. A criança se desenvolve e percorre de maneira evolutiva e unidirecional os diferentes estágios de conhecimento até chegar às formas mais abstratas de raciocínio. A teoria desenvolvimentista de Piaget parte de um ser constituído para aprender/conhecer a linguagem. O primeiro estágio é denominado sensório-motor porque "à falta de função simbólica, o bebê ainda não apresenta pensamento nem afetividade ligados a representações, que permitam evocar pessoas ou objetos na ausência deles" (Piaget e Inhleder, 1986, p.11). Piaget destaca que a principal conquista do período seria o desenvolvimento da noção de permanência de objeto. É também nesse momento que a

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criança elabora o conjunto das subestruturas cognitivas que irão orientar as construções perceptivas e intelectuais posteriores. Ao longo dos dois primeiros anos de vida, a criança vai diferenciar o que é dela do que é do mundo, adquirindo a noção de causalidade, espaço e tempo, interagindo com o meio e demonstrando uma inteligência fundamentalmente prática. É a inteligência prática que organiza e constrói as grandes categorias de ação que servirão de base para as futuras construções cognitivas da criança. Farias (2004a) considera que o desenvolvimento da criança até os dois anos de idade se dá por meio do movimento e seria esse o motivo de Piaget ter dado o nome de sensório-motor ao primeiro estágio. As pesquisas realizadas com crianças cegas no período sensório-motor indicam que é em torno de quatro a nove meses que aparecem as diferenças e atrasos no desenvolvimento em relação às crianças que enxergam (Ormelezi, 2000). Apresentamos a seguir uma tabela que descreve como seria o desenvolvimento do bebê considerado normal e o de um bebê cego, conforme exposto em um dos manuais (Brasil, 2001) e um dos textos analisados (Ochaita e Rosa, 1995).

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MESES

Bebê vidente (Brasil, 2001)

Antes de nascer

Pesquisas recentes têm demonstrado que os bebês já nascem programados para enxergar do ponto de vista anátomofisiológico. Ainda na vida intrauterina, por volta da 33ª semana de vida, o bebê já apresenta a capacidade de fixação. Entretanto, essa habilidade só será desenvolvida se ele tiver oportunidade de realizar experiências visuais. (Brasil, 2001) A acuidade visual aos três meses é de 0,1, o que Durante os primeiros quatro meses após o já permite fazer algumas discriminações. Aos nascimento, o desenvolvimento de um bebê cego quatro meses, com o desenvolvimento da é muito semelhante ao de um vidente: exercita os capacidade de focalização e acomodação ocular, reflexos de que é dotado de forma inata e, o bebê começa a explorar os objetos e ambiente posteriormente, constrói seus primeiros hábitos ou a seu redor. Inicia nessa fase a coordenação esquemas de ação em relação a seu próprio corpo, olho-mão, movendo suas mãos para pegar os com exceção aos relativos à visão. Conseguirá, por objetos e sacudi-los, começando assim a exemplo, aperfeiçoar o esquema de segurar, provocar pequenos espetáculos. coordenar a sucção e a preensão, bem como sorrir, quando ouve a voz de sua mãe. Aos seis meses, a visão central e periférica já se Enquanto a partir do quinto mês, desenvolveu o suficiente para permitir o aproximadamente, as crianças videntes já são seguimento por todo o campo visual, realizando capazes de segurar objetos sob o controle visual, seguimento de 180 graus na linha horizontal e realizando uma constante exploração das vertical, realizando o que Piaget chama de busca características dos mesmos e do lugar que ocupam dirigida pelo olhar. Entre o sétimo e o oitavo no espaço, os bebês cegos somente têm mês, o bebê é capaz de localizar objetos no consciência da existência dos objetos e do espaço espaço, tanto perto quanto mais longe, que está fora do alcance de suas mãos, se esses desenvolvendo também a visão de emitem algum tipo de som. Ao problema óbvio de profundidade, o que o impulsiona a deslocar-se que o som não é uma propriedade de todos os em busca dos objetos. Por isso é o momento da objetos, deve-se acrescentar o fato de que a descoberta: agora ele vai explorar visualmente o coordenação audiomanual e, consequentemente, objeto de todos os ângulos, vai manipular, a busca dos objetos mediante o som ocorre com bater, sacudir, jogar, puxar, experimentar com a um atraso de cerca de seis meses em relação à boca, observando as mudanças e resultados coordenação visual-manual. O bebê cego imediatos. raramente começa a agarrar um brinquedo ou qualquer objeto antes dos oito meses. Só no final do primeiro ano, graças à Aos 12 meses, é capaz de buscar um objeto independência adquirida pela locomoção, é que guiando-se somente por seu som, o que pressupõe os objetos são procurados depois que saem do a coordenação definitiva entre o ouvido e a mão. campo visual. Isto ajuda a construir a noção do Durante o primeiro ano de vida, as crianças cegas objeto. Em relação às funções visuais, podemos têm problemas na localização dos objetos e do dizer que o bebê aos doze meses, apresenta espaço externo ao seu próprio corpo, originados nível de desenvolvimento visual próximo ao por terem que substituir a visão por um sistema adulto. A acuidade visual é muito boa, os sensorial muito menos adequado para detectar movimentos oculares são suaves e contínuos, a objetos à distância, a audição. A falta de interesse acomodação ocular é satisfatória e o pelo mundo exterior faz com que o engatinhar desempenho visual para longe já é eficiente, (quando existe) e o andar sofram um atraso de seis possibilitando a marcha. ou sete meses em relação às crianças videntes. Existem atrasos importantes em todos os aspectos que se referem à movimentação auto-iniciada; as crianças cegas praticamente não engatinham e começam a andar sem ajuda aos 19 meses.

De 0 a 4

5 a 11

12 meses

Acima de 12 meses

Bebê cego (Ochaita e Rosa, 1995)

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Destacamos o estágio sensório-motor porque ele é privilegiado pelos manuais e pesquisas sobre programas de estimulação precoce. Algumas ideias apresentadas anteriormente merecem ser sublinhadas antes de avançarmos com o argumento. A primeira é a noção de estruturas inatas, presente no conceito de reflexos hereditários. A segunda é a concepção do conhecimento como resultado de experiências de troca e interação com pessoas e objetos. A terceira é a noção de inteligência prática que se forma no período sensório-motor a partir da ação do bebê no ambiente. Um dos principais pontos que se destaca na comparação proposta nessa tabela é uma sobreposição do processo de desenvolvimento cognitivo humano ao processo de maturação da capacidade visual do organismo. Tanto Piaget (1974) quanto Vygotsky36 (1991) consideram o período de 0 a 2 anos de idade como a fase em que a ação ou o comportamento se originam, predominantemente, por reflexos hereditários inatos (em Piaget), ou processos elementares de ordem biológica (em Vygotsky). Em Brasil (2003) fica clara a influência dessa concepção para explicar o processo de desenvolvimento: “Até os dois anos e meio os processos psicológicos do homem são elementares, suas ações, principalmente de ordem biológica, visam satisfazer suas necessidades imediatas” (Brasil, 2003: 22). Os subestágios do período sensório-motor descrito por Piaget tem uma relação direta com o exercício do sentido visual, como se percebe nos exemplos descritos na tabela dos estágios que vão sendo gradativamente alcançados – antecipação de movimentos relacionados à trajetória de um objeto, coordenação visãopreensão, busca de objetos ocultos atrás de anteparos, entre outros (Cavicchia, 2010). É possível que a naturalização do processo de desenvolvimento visual como motor do desenvolvimento cognitivo estivesse presente nas observações de Piaget, mas de qualquer forma é algo que certamente se sobressai nos manuais ou estudos que referem ao desenvolvimento cognitivo de crianças cegas. Na tabela, o processo de desenvolvimento do bebê vidente é inclusive justaposto ao desenvolvimento de funções visuais. Não por acaso, exatamente as duas que são as principais funções medidas para a classificação médica oftalmológica da cegueira: a acuidade e o campo visual. A capacidade visual é que impulsiona o movimento e, na ausência da visão, o bebê cego não teria motivação para explorar um ambiente que não pode ser visto, seu mundo ficaria restrito (Rodrigues e Macário, 2006), tem um contato limitado com o ambiente

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Vygotsky é outra referência fundamental nos estudos analisados sobre o processo de desenvolvimento cognitivo em pessoas cegas.

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(Brasil, 2007), falta o estímulo visual para despertar o interesse pelo deslocamento ou movimento (Figueira, 2000, Carletto, 2008), falta interesse pelo mundo exterior (Ochaita e Rosa, 1995), enfim, seu mundo se torna pobre e ele se mantém ocioso e passivo diante do mundo que o cerca (Rodrigues e Macário, 2006). Como contraponto, é significativa a análise de Bateson e Mead (1985) sobre os primeiros anos de vida de uma criança na cultura Balinesa, quando passa a maior parte do tempo dentro do círculo dos braços ou ao redor do quadril de outro ser humano, envolta em um tecido. As experiências significativas de mundo humano do bebê serão derivadas menos da relação com objetos e mais das sensações do contato com diferentes superfícies de pele, odores diversos, variados ritmos corporais, formas diferentes de ser carregada. Montagu (1988) é um dos autores pioneiros que procura abordar a importância da pele, enquanto órgão tátil, no crescimento e no desenvolvimento do organismo, desde as experiências intrauterinas do embrião humano. Como possìvel consequência do “reinado soberano da visão na hierarquia dos sentidos”, o predomìnio do visual acaba tendo um efeito de naturalização, como se a capacidade de ver também não fosse fruto de estímulo e aprendizado. Numa aparente confusão entre inato e adquirido, a capacidade visual vai se tornando equivalente à natureza, e o seu uso, a forma “natural” do desenvolvimento cognitivo. Ter um desenvolvimento cognitivo considerado “normal” por meio do uso dos outros sentidos ou seja, equivalente ao de pessoas que enxergam e medido de acordo com seus parâmetros – é considerado absolutamente possível sem a visão, mas apenas alcançável através do aprendizado, de cultura. Conhecer o mundo por meio dos outros sentidos, ao contrário do imediatismo da visão, é uma habilidade a ser estimulada e aprendida. A justaposição da capacidade de enxergar com a habilidade de ver tem o efeito de apagar o processo de educação da atenção aos estímulos visuais, como se apenas os outros estímulos sensoriais fossem aprendidos. Compreender o mundo pela visão já não é aprendizagem, mas um processo automático, natural, inato: “tudo que as outras crianças aprendem naturalmente deve ser ensinado passo a passo, pouco a pouco, desde o nascimento, nas diferentes situações de vida, a uma criança cega” (Farias, 2004a:2). A oposição entre inato e adquirido relacionada à visão e cegueira pode ser exemplificada na seguinte passagem: “A descoberta sobre as propriedades dos objetos que a criança vidente realiza de forma automática e espontânea, ao observar e relacionar as diferenças de cores, formas, tamanhos, proporções, pesos e encaixes dos objetos, a criança com deficiência visual não faz” (Brasil, 2006: 46). 91

Na comparação entre o desenvolvimento cognitivo de crianças videntes e cegas aparece embutida a noção de que a criança que enxerga apreende o mundo de forma automática, direta e espontânea, enquanto para a criança que é cega o mundo tem que ser ensinado, trabalhado, mediado. Na naturalização da habilidade de enxergar, os outros sentidos em pessoas que têm a visão passam por um processo de apagamento, onde as referências ou experiências dos objetos e do mundo são traduzidas como visuais, ainda que suas qualidades possam ser percebidas em conjunto por mais de um sentido ou nem mesmo possam ser percebidas pela visão. Na passagem mencionada, as propriedades referidas do objeto, à exceção talvez da cor, também podem ser observadas pelo tato – a forma, o tamanho, a proporção, o peso, o encaixe. Sendo que o peso não é um atributo diretamente percebido pelo aspecto visual de um objeto. Na oposição entre natureza e cultura, inato e adquirido, visão e cegueira, e com o apagamento do processo de aprendizagem de mundo da criança que enxerga, vai se constituindo um quadro nos manuais em que o desenvolvimento de uma criança cega, se comparado ao de uma criança vidente, tem a propensão “natural” de ser considerado “atrasado”, “empobrecido” e tendendo à “passividade”, caso não haja uma intervenção da “cultura” – estímulo, trabalho, ensino. Tudo se passa como se o interesse pelo mundo só pudesse ser despertado pela visão, e o que fica apagado nesse jogo de naturalização do ver é o quanto a sociedade se organiza fundamentalmente em torno da visão – os brinquedos, as brincadeiras, os jogos, os estímulos são centrados basicamente em sua visualidade. Ao transformar em inatismo uma habilidade também aprendida, a de enxergar, transveste-se de natureza a desvantagem da deficiência:

Se a audição e o tato oferecessem tantas possibilidades de conhecimento do mundo como o sentido da visão, a criança cega não teria tantas desvantagens em relação à vidente. (...) As crianças de visão normal têm um desejo inato de colocar em uso imediatamente os movimentos que vão adquirindo, sentem prazer no aperfeiçoamento de suas habilidades motoras. Na criança cega este desejo é inibido pela ausência do estímulo visual. As formas e cores não lhe provocam qualquer interesse de aproximação, além disso, sente medo diante do vazio. (Figueira, 2000: 10)

Com uma educação predominantemente fundada no visual e que “visualiza” tudo ao tornar todas as percepções equivalentes da visão, nosso corpo se torna menos capaz de ser afetado, no sentido dado por Latour (2004), pelas diferenças percebidas por meio de outros sentidos. O próprio ato de representar privilegia os aspectos relacionados à visualidade dos objetos - forma, cor, tamanho – ainda que alguns desses também

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sejam táteis ou sinestésicos (forma ou tamanho, por exemplo). Ao mesmo tempo, não se valoriza que outras inúmeras possibilidades e características dos objetos - cheiro, textura, temperatura, função, barulho – possam ser percebidas de forma independente ou conjugada ao seu aspecto visual. Como lembra Wagner (2010), se desejamos levar a invenção a sério, devemos estar preparados para abandonar muitas de nossas suposições sobre o que é real e sobre porque as pessoas agem como agem. Os vários contextos de uma cultura obtém suas características significativas uns dos outros, por meio da participação de elementos simbólicos em mais de um contexto. Eles são inventados uns a partir dos outros, e a ideia de que alguns contextos reconhecidos em uma cultura são "básicos" ou "primários", representam o "inato" ou de que suas propriedades são de algum modo essencialmente objetivas ou reais é, para o autor, uma ilusão cultural. Wagner considera que todos os nossos procedimentos de treinamento e educação, as teorias de desenvolvimento infantil e as expectativas que despertam não são outra coisa além de “máscaras” para a invenção coletiva de um eu “natural”; invenção que não se limita à infância ou à educação, mas se estende a um vasto leque de controles. Os programas de intervenção ou estimulação precoce têm por objetivo incentivar o desenvolvimento de crianças cegas congênitas a fim de, de acordo com Rodrigues e Macário (2006), aproximá-lo o máximo possível dos padrões de “normalidade”, permitindo e facilitando a adaptação e integração social dessas crianças. O objetivo parece ser o de socializar uma criança em um mundo em que os outros são diferentes dela, cujos padrões não se baseiam (ou não incluem) a sua experiência de mundo. Não coloco em questão a validade e a necessidade de uma estimulação diferenciada para uma criança que nasce cega, mas sim o ponto de onde se parte (visão inata, outros sentidos aprendidos) e o fim que se busca alcançar (equivalência, aproximação ou substituição de uma experiência de mundo visual). Como aponta Moser (2000), em um regime de normalização, pessoas com deficiência são medidas e constituídas em contraste com uma norma que estão destinadas a não alcançar, sendo, portanto, sempre definidas como “outro”. A característica de incorrigibilidade do indivíduo a ser corrigido, ressaltada por Foucault (2010). Moser entende que essa construção - a norma - é quase idêntica ao que ficou conhecido como “sujeito liberal moderno”: o sujeito independente, autônomo, centrado, singular, competente. A situação de uma criança cega, ou de qualquer pessoa com deficiência, sempre será constituída como falta, como perda ou como dependência num 93

tal regime. A estratégia da normalização é uma tentativa de inclusão por meio de uma manobra excludente. A autora identifica uma ambivalência que acredita ser uma consequência lógica, um efeito esperado, quando políticas, inciativas e práticas de cuidado se baseiam na estratégia da normalização. Ambivalência que pode ser associada a que estamos apontando: o desejo de ajudar pessoas com deficiência e efetivamente melhorar suas vidas, por um lado, e o fato de que as diferenças são definidas como faltas ou desvios que devem ser corrigidos, por outro. As noções de atraso, dificuldade, superação e substituição ficam marcadas no processo de desenvolvimento de crianças cegas, quando o objetivo que se coloca é a aproximação de uma experiência de mundo que nunca tiveram. Ochaita e Rosa afirmam

Independentemente da quantia exata de atraso que os cegos tenham nas condutas referentes à permanência dos objetos, é óbvio que lhes será muito mais difícil elaborar imagens desses objetos e de sua posição no espaço. O tato somente permite conhecer os objetos próximos e o som não é, em absoluto, um substituto ideal da visão. (Ochaita e Rosa, 1995: 190)

No caso de crianças que nascem cegas, como é que se pode substituir algo que nunca se teve? Para essas pessoas, a visão não pode ser substituída, perdida, ou considerada algo que falta, ela simplesmente não está lá. Na comparação do bebê cego em relação ao vidente, ao se tomar o último como parâmetro, o resultado será sempre o atraso. Se o padrão é o de crianças videntes (os “normais”), a criança cega sempre estará em desvantagem (os “anormais”). Não se trata de negar a necessidade de estìmulos e de um programa de desenvolvimento físico, motor e sensorial específico e direcionado, a questão é o fim que se busca: a meta de, sem a visão, se igualar ao máximo possível a padrões visuais. Na aproximação ou analogia com a visão, o tato - e mais especificamente as mãos - recebe destaque:

As mãos são os olhos das pessoas com deficiência visual. O uso das mãos como instrumento de percepção deve ser intensamente estimulado, incentivado e aprimorado. Cada vez mais, a principal adaptação requerida pela cegueira consiste em transformar a mão em um órgão também de percepção. • A mão deve ser „educada‟ para se transformar em órgão de percepção, em instrumento de exploração e de conhecimento. • A coordenação bimanual (das duas mãos) e a coordenação ouvido/mão precisam substituir a coordenação olho/mão estabelecida pelas crianças que enxergam. (Brasil, 2000: 26) Quando um cego está explorando com as mãos um objeto estranho, para reconhecêlo, ocorre algo parecido a quando um vidente olha uma forma complexa e

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desconhecida para posteriormente desenhá-la. As mãos, como os olhos, embora de forma mais lenta e sucessiva, movem-se de forma intencional para buscar as peculiaridades da forma e poder obter uma imagem dela. (Ochaita e Rosa, 1995: 185)

As mãos, por meio de um processo de aprendizagem, podem se tornar valiosos instrumentos de percepção ou recursos de conhecimento em pessoas cegas, como mencionado nas passagens acima. Mas esse aprendizado, das mãos como órgão perceptivo, não precisa se tornar o equivalente funcional da visão. Ao comparar tatovisão ou audição-visão na realização de tarefas em que a visão alcança um desempenho superior, uma vez que é o mote da atividade - discriminação de formas, percepção de objetos à distância, noção espacial, relação entre os objetos - as diferenças entre os sistemas perceptivos, ao invés de exploradas em suas potencialidades, usos e particularidades, sofrem uma redução a desvantagens de um frente ao outro. A crítica de Bourdieu (2011) à razão analógica dos sistemas de análise de ritos e mitos pode ser retomada para pensar o papel que uma racionalidade centrada na visualidade atribui às mãos de cegos, como substitutas funcionais dos olhos. Compreender a cegueira pela lógica da visualidade seria incorrer no perigo da analogia. Buscar um substituto do sistema visual ou uma superação da cegueira por meio do sistema tátil ou auditivo é realizar uma comparação incomparável, ou, nos termos de Bourdieu, “decidir o indecidìvel”, tendo como consequência um resultado sempre falho, lento ou atrasado. Com a reprodução sistemática de uma norma hierárquica dos sentidos que privilegia a visualidade, o que se perde é a possibilidade de compreensão de experiências outras de mundo e o caráter múltiplo da realidade.

1.3.1 Práticas de desenvolvimento e aprendizagem de crianças cegas e sua aproximação com uma concepção da cognição incorporada

Tudo o que a criança vidente compreende automaticamente pela visão, a criança com deficiência visual necessita vivenciar com seu próprio corpo, de forma integrada. (Brasil, 2001: 104)

À ausência da visão, os outros sentidos são estimulados na criança cega no seu processo de desenvolvimento. A apreensão do mundo acontece fundamentalmente pela dimensão da experimentação, que é considerada essencial para o seu desenvolvimento.

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Se, nos manuais, o aprendizado pela visão é percebido como natural, a aprendizagem de quem é cego precisa de experiência, de mediação, de atribuição de significado. A falta da visão acarretaria uma “escassez de informação” que só poderia ser compensada por meio de vivências diversas e significativas. Destaca-se a necessidade de estimular o bebê, desde os primeiros meses de vida, ao movimento, ação e exploração do ambiente. Enquanto o bebê que enxerga apreende o mundo “de fora” basicamente por suas propriedades visuais e, motivado por elas, se lança à ação, o bebê cego precisa estar em contato com o mundo com o corpo inteiro. “Para a criança com deficiência visual o contato pele-pele e o diálogo corporal são formas primárias de comunicação e interação; são fronteiras vitais para a construção do eu e do outro e motivador essencial para despertar o desejo de busca das pessoas e objetos” (Brasil, 2001: 105). A construção das noções de permanência do objeto, antecipação de movimento, sucessão, comportamento de busca, que foram descritas como conquistas específicas dos subestágios do período sensório motor em Piaget (Cavicchia, 2010), também são referências para o desenvolvimento de crianças cegas, mas o caminho para alcança-las, como não pode ser estabelecido pela visão, é relacionado a uma “vivência corporal significativa”, que está vinculada à ação.

As crianças com deficiência visual necessitam de vivências corporais significativas e contextualizadas para a construção do eu e do objeto. Para construir a noção do objeto, ela precisa agir sobre os mesmos: manipulá-los, saber seu nome, como funcionam, para que servem, fazer experiências. Desde pequena ela precisa aprender a fazer coisas: pegar a mamadeira, o copo, beber água, pegar o biscoito, a fruta, apreciá-los, descobrir de onde saem, onde ficam, tirar a meia, a roupa, o sapato. (Brasil, 2006: 24)

Macário e Rodrigues elaboraram um “Roteiro de procedimentos e atividades próprias da estimulação precoce”, a partir da aplicação em sua prática profissional. As autoras propõem atividades que estimulem, além do sistema tátil e auditivo, o sistema proprioceptivo e vestibular de bebês cegos. Alguns exemplos das atividades práticas: a) Sistema sensorial Objetivos: Favorecer o desenvolvimento da sensibilidade corporal para a diferenciação e percepção de suas partes, limites e possibilidades. Propiciar o desenvolvimento da percepção tátil-cinestésica. Promover a regularização do tônus muscular. Sugestões de atividades: - Realizar atividades que promovam o contato corporal com materiais de texturas variadas: escovas com cerdas plásticas macias, para escovação corporal dos

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membros inferiores, pés, membros superiores, mãos, região posterior do tronco (costas) e cabeça. - Submeter a criança a massagem corporal com vibrador ou massageador manual ou de pequeno porte, com creme ou óleo de suave fragrância, desde que não provoque alergias. - Estabelecer atividades que envolvam água: piscinas de pequeno porte (infláveis) ou bacias grandes, para estimular o contato corporal da criança com este meio. - Organizar atividades com utilização de piscina de bolas ou similar. - Selecionar atividades com utilização de bolas suíças com superfície em relevo e/ou com estímulos auditivos (guizos), para estimular a sensibilidade corporal através do contato e da audição, em movimentos variados. (Macário e Rodrigues, 2006: 6-7)

Ao receber constante estimulação dos sentidos em atividades direcionadas, a criança cega desenvolve uma sensibilidade à percepção desses estímulos, o que também facilita a sua integração sensorial. A integração sensorial é definida pelas autoras como “um processo neurológico que organiza as sensações do corpo e as influências ambientais sofridas por ele, de modo que possam ser integradas, percebidas e ajustadas, adequada e eficientemente às situações exigidas” (Macário e Rodrigues, 2006: 14). A visão é descrita como o sentido que, por excelência, realiza essa integração, como também fica explícito em Carletto: “a visão tem o papel de estruturar todas as outras percepções em um todo significativo” (Carletto, 2008: 15). A mesma autora reforça a ideia da necessidade do incentivo e da variabilidade de experiências que facilitam o desenvolvimento da criança cega, ao passo que a criança que enxerga, pelo fato de enxergar, não tem a mesma necessidade.

A criança cega, mais do que as que enxergam, no período pré-escolar, necessita do estímulo adequado para o desenvolvimento de funções motoras, de mobilidade independente, de apropriação dos mecanismos para a leitura tátil, e tantas outras habilidades que a criança que enxerga desenvolve somente por enxergar. Tendo nascida privada do sentido da visão, mais do que as outras, a criança cega necessita de contato com tudo que a cerca. (Carletto, 2008: 4)

Na concepção de Piaget e Inhleder (1986) sobre o desenvolvimento cognitivo de crianças, os autores destacam a importância da ação, do movimento, da interação em um ambiente, a importância do vivido e do experenciado. Ainda que na descrição das etapas do desenvolvimento infantil o papel da percepção se sobreponha essencialmente à visão, no período sensório-motor o autor concebe o conhecimento como sendo produzido a partir da ação do sujeito em um meio e a inteligência simbólica como um processo que evolve de uma inteligência prática. A antecipação de movimentos, uma das conquistas do subestágio sensório-motor piagetiano, na criança cega ocorrerá mais tarde, através de indícios não visuais

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organizados significativamente. Assim, em Brasil (2001), aconselha-se que o professor utilize sempre o mesmo perfume ou desodorante, uma vez que o cheiro, para a criança com deficiência visual, seria um forte indício de antecipação e reconhecimento das pessoas. Outra recomendação é a instalação de uma rotina diária, que permite à criança perceber indícios que a ajudam a antecipar o que vai acontecer. Tais indícios podem ser a voz, os passos, os cheiros, os barulhos dos objetos, o movimento e a maneira de pegar, que a ajudarão a se organizar para a ação. Outra noção destacada como fundamental é a construção da autoimagem e a imagem do outro que permitem a participação em jogos simbólicos e brincadeiras com outras crianças. Segundo Ochaita e Rosa (1995), em crianças deficientes visuais ela também se desenvolve com atraso, superado a partir dos seis anos. Em Brasil (2006) ressalta-se que tais noções, na ausência da visão, também devem ser construídas a partir das experiências corporais:

As experiências corporais no trocar, no banho, no vestir-se, a qualidade do toque, a verbalização, o movimento e as brincadeiras com o corpo é que permitirão a formação da imagem corporal, a construção da autoimagem, da noção do eu e do outro. Como a criança não pode se ver no espelho, ela precisa conhecer bem o seu próprio corpo, o toque, a pele, o brincar com os diferentes movimentos. Conhecer, tocar e brincar com outras crianças da mesma idade permite a reflexão da imagem de si e do outro, ajuda na formação da identidade e na construção da autoimagem. (Brasil, 2006: 19)

No desenvolvimento das crianças cegas também se atribui um papel destacado ao ambiente que, para ser favorável, deve ser estimulador, incentivar à ação, ao comportamento exploratório com o corpo todo, à observação através da pesquisa de características táteis, sonoras, cinestésicas. “A criança cega inicia suas próprias descobertas no ambiente, onde objetos e pessoas se fazem necessários e a riqueza dos estímulos auditivos e táteis seja uma constante. (...) É da percepção e ação da criança sobre o ambiente que se forma a representação mental da realidade” (Farias, 2004b: 5). O interessante é que a justificativa do conhecimento de mundo a partir da experiência, da ação de um corpo inteiro em um ambiente, que também forma a base de uma teoria da corporeidade que entende o corpo como sujeito da cultura (Csordas, 2008) ou de uma teoria da cognição incorporada (Varela e colegas, 1991), não pressupõe, nos manuais e textos analisados, o abandono da noção de representação do cognitivismo. Por falta de input visual é que a criança cega será incentivada à exploração corporal do ambiente, para ter acesso a informações de outros tipos, outros

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inputs táteis, auditivos, etc., a fim de integrá-los para formar uma representação mental: “A escassez de informação restringe o conhecimento em relação ao ambiente. Por isso, é necessário incentivar o comportamento exploratório, a observação e a experimentação para que esses alunos possam ter uma percepção global necessária ao processo de análise e sìntese” (Brasil, 2007: 21). É como se, à ausência da visão, a cognição encarnasse. O cognitivismo, para Varela e colegas (1993), pressupõe um comportamento inteligente que decorre de uma capacidade de representar o mundo de certa maneira. A suposição é a de um realismo cognitivo, de que o mundo poderia ser dividido em regiões de elementos e tarefas. A cognição consistiria na resolução de problemas que, para ser bem sucedida, deve respeitar os elementos, propriedades e relações dessas regiões previamente dadas. O modelo cognitivista pressupõe a incorporação do conhecimento de um mundo anteriormente existente sob o formato de uma representação, onde representação pode ser entendida no seu sentido forte, como uma re-presentação de um mundo anteriormente dado. Pode-se pensar que essa divisão do mundo em regiões de elementos e tarefas feita pelo cognitivismo e questionada por Varela e colegas (1993) também estaria sendo superada pela neurociência, a partir do conceito de plasticidade cerebral. A noção de plasticidade pressupõe que regiões cerebrais que seriam especificadas para decodificar determinados tipos de inputs recebidos do ambiente externo, quando não são utilizadas por não receberem tais inputs, são recrutadas para decodificar outras informações - a ativação do córtex visual de cegos na realização de tarefas de discriminação tátil, como a leitura em Braille. A plasticidade, entretanto, não estaria presente apenas em pessoas que possuem alguma deficiência sensorial, mas também ocorreria na realização de tarefas que exigem alto grau de treinamento – o caso da música ou do esporte – e ainda foi identificada mesmo depois de curto período de privação visual em pessoas que enxergam. Nos textos analisados, a noção de plasticidade cerebral também é mencionada para justificar a importância da intervenção precoce em crianças cegas (Carletto, 2008 e Rodrigues e Macário, 2006). Varela e colegas (1993) propõem inverter a atitude representacionista tratando o saber dependente do contexto não como um artefato residual que pode ser progressivamente eliminado pela descoberta de regras mais sofisticadas, mas como, de fato, a essência mesma da cognição criativa. O conhecimento dependeria de um estar no

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mundo que é inseparável do nosso corpo, língua, ou história social - em resumo, da nossa incorporação. A concepção de cognição proposta pelos autores não seria a recuperação de um mundo externo previamente dado (realismo) nem a projeção de um mundo interno previamente dado (idealismo), mas uma ação incorporada. A cognição dependeria dos tipos de experiência que advém de se ter um corpo com suas diferentes capacidades sensóriomotoras. Tais capacidades, individuais, estão elas mesmas embutidas em um contexto biológico, psicológico e cultural mais abrangente. Ao usar o termo ação, Varela e colegas enfatizam que os processos sensoriais e motores são fundamentalmente inseparáveis na cognição vivida. Não estão contingencialmente relacionados nos indivíduos, mas também evoluem juntos. Quando analisamos as práticas propostas pelos manuais, a importância que se atribui à ação em um ambiente, à exploração, à variabilidade de experiências e ao movimento para incentivar seu processo de desenvolvimento cognitivo, estaria mais próxima dessa concepção da cognição como enação: como uma ação incorporada. Entretanto, tais autores, ou outros, que desenvolvem uma abordagem da cognição que supera a noção de representação, vinculando-a ao ambiente através da ação e da prática (Clark e Chalmers, 1998, Ingold, 2010), não são mencionados em tais manuais. Além disso, como vimos, se mantém no material analisado a dicotomia entre indivíduo/interno X meio/externo. Por um lado, coloca-se que o processo cognitivo da criança cega precisa se desenvolver a partir da ação de um corpo em um ambiente, mas, ao mesmo tempo, se mantém a noção de que o conhecimento se dá por meio do processamento de informações de um mundo externo já dado pela mente interna de um indivíduo. O que se busca, a partir das noções de exploração, movimento, ação no ambiente, presentes nos textos, é dar oportunidade à criança que não enxerga, de colher o máximo de informação possível, auditivamente, tatilmente, etc., para construir internamente uma representação do mundo que seja ao máximo aproximada de como ele “realmente” é. Tal paradoxo presente nos textos e manuais analisados pode ser relacionado ao paradoxo identificado por Varela e colegas (1993) e, posteriormente, resgatado por Arendt (2000) no pensamento de Piaget, claramente uma das principais referências teóricas desses textos. Varela e colegas (1993) alegam que as estruturas cognitivas emergem de tipos de modelos sensóriomotores recorrentes que possibilitam à ação ser perceptivamente guiada. Os autores apontam que essa noção já tinha sido formulada na epistemologia genética de Piaget, que procura explicar o desenvolvimento de uma 100

criança desde a imaturidade de seu organismo biológico por ocasião do nascimento até se tornar um ser com pensamento abstrato na idade adulta. Para Varela e colegas, no sistema de Piaget, a criança recém-nascida não é nem objetivista nem idealista; ela tem apenas sua própria atividade, mesmo o simples ato de reconhecimento de um objeto pode ser entendido apenas em termos de sua própria atividade. Esse seria, para os autores, um exemplo claro de estruturas que emergem de modelos recorrentes. A crítica de Varela e colegas é que, como teórico, Piaget nunca pareceu duvidar da existência de um mundo previamente dado e de um conhecedor independente com um ponto final lógico, também previamente dado, para o seu desenvolvimento cognitivo. As leis do desenvolvimento cognitivo em Piaget, mesmo no período sensório motor, são a assimilação e a acomodação de um mundo previamente dado. Os autores identificam uma tensão curiosa no pensamento Pigetiano: o seu sujeito de interesse, a criança, é postulado como um agente enativo, mas um agente enativo que evolui inexoravelmente para se tornar um teórico objetivista. Arendt (2000) reformula esse paradoxo percebido pelos autores em Piaget: um agente que age pela enação, mas que visa atingir um realismo objetivo. O autor propõe que, para superar a dicotomia do sujeito e do objeto em Piaget, os referenciais kantianos sejam retirados do seu pensamento. Arendt considera que o próprio Piaget teria dado um passo na direção de uma filosofia contemporânea para superar a dicotomia sujeitoobjeto ao realizar uma reversão de ênfase em seus últimos escritos: "recomeçar a análise do desenvolvimento cognitivo, mas situando-se do ponto de vista do objeto e já não do sujeito" (Piaget, 1974, apud Arendt, 2000: 235). Aproximando o desenvolvimento cognitivo em Piaget com a noção de enação em Varela, Arendt dá algumas orientações para escolhas metodológicas em programas de pesquisa, entre elas a de que se insista mais nos aspectos da ação do sujeito e menos nos aspectos epistemológicos do conhecimento, o que também é sugerido por Law, Mol, Latour, entre outros autores. Sem a busca cartesiana do rigor frente à realidade já dada, o que exige uma constante crítica do conhecimento, o pesquisador daria maior relevância à ação encarnada e ao pensamento não como um conhecimento obtido, mas como indício do amadurecimento e da autonomia do agente percebedor. Outra orientação seria uma postura metodológica de implicação entre organismo e o meio, no qual um especifica o outro. O aprendizado de crianças cegas, pela contingência da falta da visão, ocorrerá de uma maneira próxima à abordagem enativa, da cognição como ação incorporada. Por outro lado, ocorre num contexto onde se pressupõe um ponto final do desenvolvimento 101

cognitivo, dado pelo processo de aprendizagem de crianças que enxergam, ainda enraizado em uma concepção de cognição como uma operação de processamento de informações que vai gerar uma representação mental interna de um mundo externo já dado. As duas suposições podem ser pensadas a partir das seguintes passagens: A criança cega só poderá pensar o que significa a palavra “bola”, depois que tiver tocado ou brincado com ela. Caso não tenha a oportunidade de usar os sentidos remanescentes, tato, audição, gustação e olfato, para conhecer a realidade, terá dificuldades para representa-la simbolicamente. (Farias, 2004b: 5) A criança cega é tão dependente do tato que fica difícil projetar imagens mentais além da periferia de seu alcance. Além disso, a cegueira impõe um maior grau de dificuldade na percepção do próprio corpo; este se mistura ambiguamente com as roupas, cobertas e móveis. O bebê cego não conta com a visão para fazer a distinção entre seu eu anatômico e todas essas contingências ambientais. (Figueira, 2000: 7)

Varela e colegas (1993) consideram que uma das atividades cognitivas mais fundamentais que todos os organismos realizam é a categorização. Por categorização entendem que a singularidade de cada experiência é transformada em um conjunto mais limitado de categorias significativas, aprendidas, para as quais humanos e outros organismos respondem. Na concepção enativa, embora a mente e o mundo surjam juntos na enação, a maneira como surgem em uma situação particular qualquer não é arbitrária. Os autores exemplificam: ao responder uma pergunta sobre o nome do objeto em que você eventualmente está sentado, se você está sentado em uma cadeira, as chances maiores são de que você responda cadeira, e não mobília ou poltrona. O nível básico de categorização, para Varela e colegas, parece ser o ponto no qual a cognição e o ambiente são simultaneamente enactados. O objeto aparece proporcionando certo tipo de interação para o percebedor e ele usa o objeto com o seu corpo e mente da maneira proporcionada. Forma e função, normalmente investigadas como propriedades opostas, são aspectos do mesmo processo, e os organismos são altamente sensíveis a sua coordenação. A coordenação entre forma e função da abordagem enativa também pode ser identificada na passagem anterior quando Farias (2004b) coloca que a criança cega só pode compreender e, nesse caso, categorizar o objeto “bola”, a partir do uso que faz do objeto com o seu corpo e mente, ou seja, ao tocar a bola e brincar com ela. Forma e função de “bola” são aspectos do mesmo processo de categorização de um objeto para uma criança cega. Nos textos analisados, entretanto, a cognição incorporada de cegos está submetida ao cognitivismo, entendido como a forma verdadeira de compreender uma

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realidade que está lá - aquela que vai gerar uma representação mental interna dessa realidade (fundamentalmente visual).

É possível identificar uma abordagem

reducionista do processo de desenvolvimento cognitivo de crianças cegas, análoga àquela identificada por Arendt no âmbito das ciências: “se há apenas uma forma verdadeira de definir os sistemas que configuram a realidade, tratar-se-á sempre de definir o nível mais forte (que detém essa forma verdadeira) numa hierarquia que fornecerá a referência para a qual outros discursos cientìficos deverão ser reduzidos” (Arendt, 2000: 227).

1.3.2 Imitação e mediação no desenvolvimento cognitivo de crianças cegas

A imitação é uma das ações que, no desenvolvimento cognitivo de crianças videntes, é apontada como fundamental e como algo que ocorreria de forma “natural”, enquanto crianças cegas precisam de intervenção. O ato de imitar o que se vê é percebido como automático em crianças videntes, e é por meio dele que se desenvolveria o processo cognitivo. Em Piaget, como aponta Cavicchia (2010), a atividade imitativa é mencionada no quinto subestágio do período sensório motor e será em torno da imitação que se realizará a passagem da inteligência sensório-motora para a inteligência representativa. A importância da imitação, e a consequente dificuldade para crianças cegas em atingi-la, é um tema recorrente nos textos analisados. A dificuldade em relação a ela seria um dos principais elementos que determina o atraso no desenvolvimento cognitivo de cegos em relação a videntes. Algumas alternativas para compensar essa dificuldade são apontadas uma vez que, apesar de não acontecer de forma “natural” como em videntes, a imitação poderia ser aprendida por crianças cegas por meio do uso conduzido de seu próprio corpo no ato de imitar.

Em relação à função simbólica, as crianças cegas encontram-se bastante atrasadas nas etapas de desenvolvimento do jogo simbólico, se comparadas às videntes, embora superem o atraso, aproximadamente, a partir dos seis anos. Isto se explica, por um lado, devido à dificuldade apresentada pela construção de uma imagem de si mesmo e dos demais (necessária para imaginar-se e imaginar os outros no jogo) e, por outro, devido aos problemas que, na ausência da visão, a criança tem para imitar as ações da vida diária que constituem o argumento dos jogos. (...) As dificuldades que uma criança apresenta para imitar os modelos de postura e locomoção, na ausência da visão. (Ochaita e Rosa, 1995: 190) A criança que não enxerga, ou que enxerga pouco, necessitará que as pessoas que cuidam dela lhes mostre no próprio corpo como são os gestos sociais, dar tchau,

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jogar beijo, cantar parabéns, bater palmas. Mostrar como os objetos funcionam, como se brinca, como pode subir, descer escadas, entrar e sair de espaços pequenos, vencer os obstáculos são atividades que não necessitam ser ensinadas às outras crianças, pois elas as aprendem naturalmente pela imitação na convivência social. (Brasil, 2006: 22)

Dada à impossibilidade da imitação pela visão, os manuais instruem que tanto o professor como os pais devem mediar a relação da criança com o ambiente. O mediador seria aquele que faria a leitura do contexto em que a criança cega está inserida, mediando sua compreensão social do meio (Brasil, 2003). A noção de mediação aparece relacionada à concepção de desenvolvimento e aprendizagem em Vygotsky, especialmente ao conceito de zona de desenvolvimento proximal. Na chamada perspectiva sócio-interacionista, sociocultural ou sócio-histórica, trazida por Vygotsky (1991), a relação entre desenvolvimento e aprendizagem se dá pelo fato do ser humano viver em meio social, que seria a alavanca para os dois processos. As atividades da criança, desde os primeiros dias de seu desenvolvimento, adquirem significado em um sistema de comportamento social. O caminho do objeto até a criança e da criança até o objeto acontece através de outra pessoa. O desenvolvimento, para Vygotsky, está profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social. O pressuposto de Vigotsky, segundo Silva e Davis (2004), é o de que existe, no indivíduo, dois níveis diferentes de desenvolvimento: um efetivo (real) que se refere ao que a criança sabe fazer sozinha, sem nenhum tipo de acompanhamento de outra pessoa; e um proximal, que se caracteriza por aquilo que a criança não consegue, ainda, fazer sozinha, mas obtém êxito se contar com o auxílio de outras pessoas ou outros tipos de recursos. A educação, principalmente a formal, deve atuar nessa zona de desenvolvimento proximal, atribuindo, assim, à escola e ao professor, importante função no desenvolvimento da criança. Ao tentar compreender o desenvolvimento humano de pessoas com deficiência Vygotsky (1997) enfatiza um processo que chama de compensação social. Considerando que o conhecimento não é mero produto dos órgãos sensoriais, ainda que estes possibilitem vias de acesso ao mundo, o autor propõe compreendê-lo como resultado de um processo de apropriação que se realiza nas/pelas relações sociais por meio da interação. O conceito de mediação semiótica sustenta essa ideia ao explicitar que o acesso à realidade parte da intersubjetividade e se realiza por meio da significação e mediação do outro.

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Na compreensão da compensação social especificamente relativa à cegueira, Vygotsky (1997) aponta que a principal limitação de pessoas cegas se encontra na liberdade de movimentos. O que seria mais característico na personalidade do cego é a contradição entre uma relativa impotência com relação ao espaço e a possibilidade, através da linguagem, de uma comunicação completa e absolutamente adequada, e de uma compreensão mútua com os videntes. A fonte de compensação da cegueira, não seria o desenvolvimento do tato ou a maior sutileza do ouvido, mas sim a linguagem. Por linguagem o autor se refere, explicitamente, à utilização da experiência social, da comunicação com os videntes – “a palavra vence a cegueira”. Voltaremos nesse ponto em outro capítulo, onde nos deteremos numa discussão sobre a linguagem. Nesse momento nos interessa frisar a noção da mediação do outro como compensação social da cegueira. Em um manual coloca-se: No caso do deficiente visual, uma vez que pouco ou nada vê, se não tem possibilidade, por exemplo, de imitar, as ações socializadas ficarão prejudicadas, uma vez que os objetos por si só não indicam o seu uso. Portanto, essas relações (mediações), adulto/criança e também criança/criança, são imprescindíveis para compreenderem o seu meio e participarem ativamente dele. (Brasil, 2003: 29)

As mediações mencionadas se referem ao uso da linguagem – “remediação verbal” (Ochaita e Rosa, 1995), mas também aos movimentos. No primeiro caso, as orientações são a de nomear os objetos com os quais a criança brinca, destacando-se a importância do uso da voz, da descrição verbal das coisas e do que acontece à volta, do canto, da entonação da voz para que a criança perceba os estados de humor (Brasil, 2001, Rodrigues e Macário, 2006). No segundo caso, menciona-se a mediação do professor para que a criança realize ações, deslocamentos, movimentos que, por não poder enxergar, não realizaria espontaneamente. O professor deve mediar a construção do real, incentivando e encorajando a criança a fazer novas descobertas com seu próprio corpo: subir, entrar em espaços apertados, transpor obstáculos, agachar, rastejar. Usar os membros superiores para fortalecêlos, dependurar-se, balançar-se, empurrar, puxar, para desenvolver a força muscular. (Brasil, 2001: 157)

A mediação do professor, dos pais ou de outros colegas é para incentivar a criança cega à ação e ao movimento, dando significado a essa ação que a criança realiza. A ênfase na noção de imitação no processo de desenvolvimento cognitivo pode ser compreendida a partir da abordagem de Ingold (2010) sobre o que considera o

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problema do desenvolvimento. Com as propostas do autor, podemos então re-situar a noção de mediação em crianças cegas como um processo de educação da atenção que também passa pela imitação, ainda que não possa se dar pelo sentido visual. Ingold é um autor que, assim como Csordas e Varela, reconhece a influência da fenomenologia, mais especificamente do trabalho de Merleau-Ponty, em sua obra. Sua abordagem também se propõe uma alternativa ao modelo clássico ou representacionista da cognição que, para ele, continua sendo a perspectiva dominante em psicologia cognitiva, apesar de identificar um forte contra movimento na ciência cognitiva que se aproxima do caminho que propõe. A crítica de Ingold à ciência cognitiva em sua roupagem clássica se direciona ao postulado de que todo ser humano deve vir ao mundo pré-equipado com mecanismos cognitivos especificados independentemente e antes de qualquer processo de aprendizagem ou desenvolvimento. Para o cognitivismo, os aparatos cognitivos que supostamente possibilitam a transmissão de representações já devem existir ao nascimento, segundo Ingold não apenas na forma virtual de um desenho, mas no circuito concreto dos cérebros humanos. O autor propõe ir além da dicotomia inato / adquirido, argumentando que os mecanismos que garantem as capacidades não são construídos em um vácuo, mas emergem no contexto de envolvimento sensorial da criança em um ambiente altamente estruturado. Aprender a lançar, agarrar ou subir escada não é uma questão de retirar do ambiente representações que satisfaçam as condições de input de módulos préconstruídos, mas sim de formar, dentro do ambiente, as condições neurológicas necessárias, junto com os aspectos auxiliares de musculatura e anatomia, que estabelecerão essas diversas competências. A concepção de Ingold se aproxima da abordagem enativa exposta anteriormente, da cognição como ação incorporada em um ambiente. Mauss ressaltou o papel fundamental da aprendizagem das técnicas do corpo na socialização, as “maneiras pelas quais os homens, de sociedade em sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (Mauss, 2003: 401). O autor chama de técnica um ato tradicional e eficaz, pois considera que não há técnica nem transmissão se não houver tradição. Ao mesmo tempo é um ato sentido por quem o pratica como sendo de ordem mecânica ou físico-química. Em seu célebre artigo, Mauss faz um inventário de algumas dessas técnicas, como a marcha, a posição dos braços e das mãos

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enquanto se anda, a educação do andar, as técnicas do consumo, como comer e beber, as técnicas do cuidado com o corpo, como higiene e cuidados da boca. Mauss atribui um papel destacado à noção de imitação prestigiosa na interiorização das técnicas do corpo. A criança e também o adulto imitam atos bemsucedidos que viram ser efetuados por pessoas nas quais confiam ou que tem autoridade sobre elas. Mesmo um ato relativo ao corpo, exclusivamente biológico, se impõe de fora, do alto. Na noção de imitação prestigiosa estão indissoluvelmente misturados os elementos psicológico, social e biológico. O conceito de técnica do corpo e o papel da educação na montagem desses atos em Mauss podem ser aproximados do que Ingold (2010) entende por processo de habilitação e por educação da atenção. Nos dois autores a noção de imitação adquire importância crucial. Ingold sugere que a arquitetura da mente é um resultado de cópia, mas cópia para ele é uma questão de seguir, nas ações individuais, aquilo que outras pessoas fazem e não uma transcrição automática de dispositivos cognitivos de uma cabeça para outra. Mais próximo do sentido de imitação do que de transmissão é que copiar seria um aspecto da vida de uma pessoa no mundo, envolvendo a repetição de tarefas e exercícios. As capacidades específicas de percepção e ação que constituem uma habilidade (ou, nos termos de Mauss, uma técnica corporal), são, para Ingold, desenvolvimentalmente incorporadas no modus operandi do organismo humano através de prática e treinamento, sob a orientação de praticantes já experientes, num ambiente caracterizado por suas próprias texturas e topografia. Tanto em Ingold quanto em Mauss encontramos a presença de um praticante experiente ou de prestígio, que orienta a aprendizagem das habilidades ou técnicas. A imitação encontra-se, portanto, inseparável da mediação. O ato de imitar é mediado, seja ele realizado pela visão ou não. No caso de cegos, o que ocorre é a necessidade de desenvolver formas de seguir o que os outros fazem não baseadas em modelos visuais de repetição. Sendo essa última a forma mais comum de imitação, a ponto de ser descrita como automática ou natural nos manuais, no processo de aprendizagem de crianças cegas o aspecto da mediação se torna mais proeminente. O que ocorre é a criação de formas de imitação que não passam pela visão, mas que serão tão mediadas quanto as visuais. O aprendizado pelo corpo adquire, então, um papel fundamental na educação de crianças cegas que precisam entender os gestos, os movimentos, as funções dos objetos, através de ações práticas, da realização e repetição de atos corporais.

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Ajudar a criança pequena a construir significados - brincar junto, fazer coisas junto, ajuda-la nas ações de rotina – alimentação, higiene. Levá-la a participar da elaboração do lanche, do brinquedo. (Brasil, 2001: 104) A criança com deficiência visual necessita participar do processo de preparação e elaboração dos alimentos, recebendo informações tátil-cinestésico-auditivas para poder observar o processo de transformação dos alimentos, fazendo experiências para comprovar suas hipóteses perceptivas. (Brasil, 2001: 160) O melhor é que a professora cante junto com a criança, pequenas cantigas, ensinando por detrás os gestos para poder compreender e imitar. A expressão gestual ajuda a criança a compreender os significados reais das palavras e a representação simbólica. (Brasil, 2001: 101) Os movimentos de cabeça, dos braços e das mãos são gestos imitados precocemente quando a criança começa a identificar os quadros sensoriais e coordenar as ações sensóriomotoras. Para a criança com deficiência visual poder imitar esses movimentos, ela necessita percebê-los globalmente e parcialmente, vivenciando-os, para poder também representa-los. O professor necessita intermediar essa relação interpessoal. A criança precisa tocar os colegas e ao professor cabe ajudá-la a observar tátilmente as posturas e os movimentos para poder imitá-los. (Brasil, 2001: 158)

Para Bruno (2009), as crianças com deficiência visual precisam ser incentivadas a utilizar os movimentos corporais, as expressões fisionômicas e gestuais como forma de comunicação pré-verbal, de imitação e representação que são elementos importantes para a socialização. A autora usa a expressão “movimento coativo” para se referir ao modo de ensinar a imitação para uma criança cega:

A criança com deficiência visual aprenderá a imitar, cumprimentar e a brincar se encontrar pessoas disponíveis para interagir, com movimentos coativos. Esses movimentos são importantes para a compreensão da ação, permitindo o jogo imitativo de um modo diferente daquele que a criança vidente realiza. Para produzir movimentos coativos, pode-se encaixar a criança no meio do corpo do educador (pais, professor ou outros profissionais) e pelo contato físico ela compreenderá tátilcinestesicamente os movimentos e ações realizados pelo outro. (Bruno, 2009: 133)

O papel do tutor (mediador, educador, experiente ou “prestigioso”) seria o de criar situações nas quais o iniciante é instruído a cuidar desse ou de outro aspecto, para poder “pegar o jeito” da coisa, como indica Ingold (2010) e, com isso, através de treinamento e prática, desenvolver uma habilidade. Aprender seria então equivalente a uma educação da atenção. O ambiente é inteiramente parte do aprendizado. A formulação do autor se afasta da cognição como representação já que considera que, ao invés de ter suas capacidades evolutivas recheadas de estruturas que representam aspectos do mundo, os seres humanos emergem como um centro de atenção e agência, cujos processos ressoam com os de seu ambiente. Ingold considera que a contribuição

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de cada geração para a cognoscibilidade da seguinte acontece pela criação, por meio de suas atividades, de contextos ambientais dentro dos quais as sucessoras desenvolvem suas próprias habilidades incorporadas de percepção e ação. Nossa aprendizagem, desenvolvimento e ação no meio estão fundamentalmente estruturados pela noção de imitação, como demonstram Mauss, Ingold ou Piaget. Entretanto, como vimos nos manuais, imitar visualmente é percebido como natural, automático, imediato, inato ou como o processo “normal”. A falta da visão provoca outro modo de aprendizagem, onde o corpo inteiro precisa estar implicado no processo de conhecimento. A reformulação da aprendizagem via outros estímulos, a necessidade de desenvolvimento de outras técnicas corporais, não visuais, vai ao encontro, nos próprios manuais, a uma concepção de cognição que se distancia do modelo cognitivista da representação e se aproxima da enação, da cognição incorporada, da educação da atenção. Ainda que não de modo explícito, já que os autores dessa abordagem não são referenciais teóricos dos manuais. Permanece, portanto, um contraste nos manuais e textos analisados, que pode ser entendido, de forma resumida, como a manutenção da concepção de cognição via a abordagem do cognitivismo clássico no caso de videntes e a adoção, nas direções de práticas de ensino e desenvolvimento de cegos, de uma concepção da cognição incorporada, fruto da ação orientada de um organismo em um ambiente. O paradoxo que surge daí é a manutenção de duas concepções de cognição – uma explícita em pressupostos, a outra implícita em práticas - contraditórias entre si e que parecem ancoradas em mecanismos de naturalização do ver e de culturalização da cegueira.

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2. Habilitar corpos e pessoas Após um mapeamento sobre o que significa ser cego pelas diversas disciplinas envolvidas na definição da cegueira, procuro restituir as experiências de pessoas cegas. Partindo de suas práticas, busca-se uma aproximação de como esses corpos interagem no ambiente e o tipo de vivência e conhecimento de mundo que se produz. Com a falta ou a perda da visão, os outros sentidos e o corpo inteiro se colocam como mecanismos de apreensão do mundo, do ambiente, das pessoas. A proposta é entender como se dá a (re)organização corporal a partir dessa ausência ou dessa perda e quais habilidades, práticas e estratégias são criadas ou desenvolvidas. Bourdieu (2011) considera que cada sistema individual é uma variante estrutural de outros, daí o peso particular das experiências primitivas. Quem é cego tem uma trajetória que desde o seu início, no caso de quem nasce, ou em algum momento de sua vida, no caso de quem fica, se diferenciará fundamentalmente do entorno, seus esquemas de percepção e de apreciação não poderão ser inteiramente comuns aos daqueles que os cercam. Quem perde a visão passa por uma ruptura significativa em sua trajetória que impacta diretamente seus esquemas incorporados de percepção e de apreciação do mundo. Precisarão incorporar um novo habitus, o que não é de forma alguma uma decisão instantânea da vontade, mas um lento processo de cooptação e iniciação que, como indica Bourdieu, poderia ser equiparado a um segundo nascimento. Nesse momento me aproximo das formas de conhecimento de mundo de pessoas cegas a partir das práticas. Tanto as práticas formativas da reabilitação quanto as práticas cotidianas são fonte de observação, participação e análise para entender as suas formas de saber-fazer e de conhecimento de mundo. Para falar sobre as suas percepções é preciso passar pela mediação de instituições no desenvolvimento desse corpo, seja para quem nasce cego ou para quem se torna. Invariavelmente, todas as pessoas cegas que conheci ao longo da pesquisa disseram ter passado por alguma instituição ou programa de desenvolvimento e aprendizagem específico ao longo de suas vidas. Estimulação precoce, programa de reabilitação ou treinamentos de Atividades da Vida Diária (AVD) e Orientação e Mobilidade (OM) introduzidos em programas pedagógicos. Os manuais de formação de professores produzidos pelo MEC e os textos de estimulação precoce analisados no capítulo anterior já abrangem algumas noções e fundamentos para essas práticas. Procura-se incluir nesse capítulo a dimensão didática e

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funcional do ser ou tornar-se cego, a partir de um acompanhamento de como esse processo acontece no dia a dia, na interação entre profissionais e pessoas atendidas em um programa de reabilitação. Considerar o trabalho de fabricação de corpos e materiais implica em mudar a atenção para o que nos faz agir (Latour, 1996). Nas instituições e nos programas de (re)habilitação para pessoas cegas encontramos uma série de práticas que têm como finalidade ajudar o indivíduo nesse processo de desenvolvimento de novas formas de fazer coisas, novos princípios organizadores e geradores de atividades. Como lembram Bonet e Tavares (2007), ao se perseguir a prática da atividade humana busca-se ter em conta a infinidade de conexões mobilizadas pelos atuantes. Não se trata de opor a ação instrumental à simbólica, mas de considerar habilidades e técnicas que desencadeiam a ação através de mediações, deslocamentos e transformações que propiciam a circulação da verdade. Pensado na forma sugerida pelos autores, o espaço da prática, na medida em que produz mediações, é o espaço da criação de sentido. O exame das atividades cotidianas da reabilitação e das práticas diárias de pessoas cegas faz emergir uma série de mediadores entre ver e não ver (na escola eles estão nas técnicas de ensino especiais, nos materiais, nos programas de estimulação precoce, etc.). Acompanhar tais processos é considerar que gestos – aparentemente, os mais insignificantes - contribuem para a construção social dos fatos (corpo cego, bengala, mobilidade, (in)dependência) e coloca em evidência o caráter idiossincrático, local, heterogêneo e contextual das práticas de cegueira. Com essa leitura, pretende-se escapar da distinção entre sujeito e objeto, ativo e passivo, indo à busca da pista de Latour (1999) de perseguir a cadeia de mediadores, a proliferação de objetos, propriedades, seres, receios, técnicas que nos levam a fazer coisas aos outros. Considerar a natureza daquilo que nos faz ser. Não é mais uma questão de opor ligamento ou desligamento, mas, ao invés disso, de questionar quais são os laços favoráveis ou desfavoráveis. Ao interrogar sobre essa distinção, deslocamos nossa atenção para os próprios vínculos. Para Latour só há uma forma de decidir a qualidade desses vínculos – investigar no que consistem, o que fazem e como se é afetado por eles.

2.1 A Reabilitação

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O campo da reabilitação e a sua implantação em hospitais ou centros especializados tem sua origem associada ao contexto da segunda guerra mundial. Até então a noção em voga era a de compensação e reparação financeira para vítimas de acidentes de trabalho, conjuntura do final do século XIX, desenvolvimento da sociedade industrial moderna. O objetivo da nova noção de reabilitação passa a ser o de restaurar a capacidade funcional e o desempenho ocupacional, naquele momento especialmente dos lesados físicos vítimas da guerra. A preocupação era a de como retornar a uma situação normal, o que significava basicamente como obter independência econômica e social por meio de um trabalho. A reintegração social envolvia reabilitação médica, buscando tornar o corpo novamente funcional. A pessoa deficiente era uma pessoa a ser readaptada (Winance, 2007; Moreira, 2008)37. Com a influência do modelo social de deficiência, a área da reabilitação redimensiona as relações entre saúde, qualidade de vida e trabalho, universalizando a assistência, incorporando o atendimento comunitário e trazendo para suas ações práticas o compromisso com as necessidades objetivas e subjetivas da população atendida. A reabilitação é incluída em políticas públicas como responsabilidade do Estado no atendimento integral à saúde, através de ações de promoção, prevenção e reabilitação. Facilitar o desempenho funcional continua a ser um ponto importante da intervenção, mas passa a não ser mais o único fim. A melhora do desempenho funcional e o uso de tecnologia assistiva são agora meios para facilitar ações de participação social. Busca-se aproximar do processo de reabilitação os interlocutores que convivem no mesmo espaço - família, colegas de trabalho, comunidade -, além de incluir o reconhecimento das condições objetivas do território (condições de moradia, transporte coletivo, barreiras geográficas e arquitetônicas). Na portaria GM 793 do SUS o termo reabilitação surge como referência aos “processos de cuidado que envolvem medidas de prevenção da perda funcional, de redução do ritmo da perda funcional e/ou da melhora ou recuperação da função; e medidas da compensação da função perdida e da manutenção da função atual”. Na mesma portaria se questiona o prefixo "re", que remete à noção de voltar atrás, tornar ao

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De acordo com Moreira (2008), um dos primeiros centros de reabilitação no Brasil, o Instituto Nacional de Reabilitação (INAR) foi implantado em 1956 no hospital das Clínicas de São Paulo, após a visita de uma comissão da ONU à América Latina. Com a reabilitação surge a disciplina da Terapia Ocupacional, que inicialmente formava técnicos que, junto com a área da fisioterapia, atendiam os pacientes. Em 1969, a Terapia Ocupacional é reconhecida como profissão de nível superior no Brasil.

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que era. Aponta-se que no plano do processo de saúde/doença, a ideia de re-abilitar passa a ser problemática quando se considera que o sujeito é marcado por suas experiências e pelo constante processo de mudança do entorno, das relações e das suas condições históricas. O desafio seria então o de “habilitar um novo sujeito a uma nova realidade biopsicossocial”. Entretanto, se reconhece a existência de um sentido estrito de volta a uma capacidade legal ou pré-existente, o que nesses casos justificaria a manutenção do prefixo “re”. O enfoque principal dos programas de reabilitação, desde a sua origem, é na recuperação ou desenvolvimento da funcionalidade da pessoa com deficiência. Especialmente a partir das discussões que deram origem a CIF, o termo “funcionalidade” passa por um alargamento, abrangendo não apenas a funcionalidade física, mas incorporando as noções de atividade e participação social, como foi apresentado no capítulo anterior. Mol, Struhkamp e Swierstra (2009) indicam que os programas de reabilitação buscam ajudar pessoas com deficiência a viver sua vida diária com um corpo lesionado. A pergunta seria: como sintonizar um corpo e o seu entorno de forma que a vida diária de uma pessoa se torne suportável, ou mesmo prazerosa, apesar da deficiência que, em alguns casos, pode ser seriamente perturbadora? Na fala de uma das TOs que realiza atendimentos na reabilitação do IBC: “a gente sabe que eles vivem... muitos deles tem condições financeiras complicadas, condições de vida complicadas, saúde complicada, e a gente tenta aqui, a cada dia que passa, tornar essa vida deles melhor”.

2.1.1 A entrada na reabilitação do IBC

À Divisão de Reabilitação, Preparação para o Trabalho e Encaminhamento Profissional compete: I - desenvolver atividades para o uso do Sistema Braille, de equipamentos para cálculos, orientação e mobilidade e de outras técnicas para a integração social do reabilitando e a integração do educando; II - realizar pesquisa de mercado de trabalho com vistas a preparação para o trabalho e encaminhamento profissional do educando e do reabilitando; III - supervisionar estágios e treinamento do educando e do reabilitando em entidades que propiciem atividades profissionalizantes; IV - desenvolver programas de estimulação da visão funcional do educando e do reabilitando; V - estabelecer procedimentos e indicar recursos para melhor utilização da visão reduzida;

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VI - manter atualizado catálogo das atividades profissionais que podem ser desempenhadas por pessoas portadoras de deficiências visuais. (Regimento Interno do Instituto Benjamin Constant 38)

O Instituto Benjamin Constant é um centro de referência nacional para questões da área de deficiência visual no Brasil. Dentre as atividades que acontecem no IBC encontram-se: escola com atendimento em estimulação precoce, educação infantil e ensino fundamental, capacitação de profissionais de diversas áreas na temática da deficiência visual, assessoria a escolas e instituições, realização de consultas e cirurgias oftalmológicas, reabilitação de jovens e adultos, desenvolvimento de programas especiais, desenvolvimento de pesquisas na área da deficiência visual, além da produção de material especializado em Braille e publicações científicas. A divisão de reabilitação foi criada para atender a demanda de pessoas que se tornam cegas na idade adulta e está ligada ao Departamento de Estudos e Pesquisas Médicas e de Reabilitação. Além de reabilitar, tem o objetivo da preparação para o trabalho e encaminhamento profissional, que nos remete à preocupação dos primeiros centros de reabilitação, a capacidade funcional e desempenho ocupacional. A partir de entrevistas com profissionais da divisão busquei compreender a sua organização interna e o passo a passo de quem procura esse serviço. A primeira pessoa que atende um possìvel “reabilitando”39 em sua chegada é um profissional da área de assistência social que preenche a ficha de inscrição e encaminha para o atendimento médico-oftalmológico. Pela ficha de inscrição o reabilitando é matriculado no setor, abre-se um prontuário, gera-se um número e ele será avaliado pelo oftalmologista que vai atestar a cegueira ou baixa visão e a necessidade da reabilitação. O mesmo se dá no caso da entrada na escola, é o médico oftalmologista que atesta a cegueira ou o grau de perda visual e faz o encaminhamento. O reabilitando então volta para a assistente social

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Disponível no site http://www.ibc.gov.br/?catid=129&blogid=1&itemid=76. Acesso em 24.09.2013. A escolha do termo reabilitando pelos profissionais do Instituto para se referir às pessoas atendidas não é aleatória. Segundo uma das profissionais entrevistadas, o termo reabilitando é uma alternativa aos possíveis termos “paciente” ou “aluno”. Paciente remeteria a uma instituição hospitalar, o que não é o caso do IBC, apesar de haver atendimento médico em suas dependências. Além de também ser um termo traz a ideia de doença. Em alguns casos a cegueira pode ser consequência de uma doença, mas como pode ter muitas outras causas, como acidentes ou o processo de envelhecimento, a cegueira em si não é considerada uma doença. O termo aluno remete ao processo de aprendizagem de tipo escolar, diferente do que ocorre nos atendimentos da reabilitação e que, se usado, poderia confundir com a própria escola que funciona no Instituto. Reabilitando, segundo a entrevistada, é um termo que agrada porque dá a noção de aprendizado e seu uso no gerúndio remete à ideia de se estar em processo. 39

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que faz uma entrevista para saber a respeito da sua condição social, se precisa de ajuda da caixa escolar ou de almoço fornecido pelo IBC, além de auxiliar no pedido do BPC/LOAS, caso se aplique. A assistente social também pede ao reabilitando que se consulte com um médico clínico para fazer exames de sangue, fezes, urina e raio-x do tórax. Quando traz o resultado dos exames é encaminhado para a psicóloga para montar, com a sua orientação, o quadro de atividades que realizará no primeiro semestre. A proposta do atendimento da reabilitação é que o programa seja planejado individualmente. Na conversa com a psicóloga, a partir de perguntas como “Há quanto tempo ficou cego? Como? O que está acontecendo? Porque procurou o IBC agora? Quem indicou? Quais são as maiores dificuldades que encontra no dia a dia e que atribui à deficiência visual?”, procura-se montar um plano de reabilitação que satisfaça as necessidades da pessoa atendida e que a motive. Posteriormente, em alguns atendimentos, também são montados planos de acordo com as atividades de interesse específico do reabilitando. O foco é exclusivamente no desenvolvimento de habilidades funcionais, ou novas formas de fazer coisas, não há atendimento psicológico individualizado, por exemplo. O ciclo básico da reabilitação inclui cinco atendimentos – Habilidades Básicas, Atividades da Vida Diária, Orientação e Mobilidade, Braille e Escrita Cursiva - sendo que esse último estava sem professor na ocasião. Além desses atendimentos, o centro de reabilitação também oferece oficinas, que em alguns casos são ministradas por voluntários – informática, artesanato, cestaria/jornal, violão, cerâmica, afinação de piano, piano. Há também curso de alfabetização de jovens e adultos, o Núcleo de Capacitação e Empregabilidade (NUCAPE), que atua em parcerias com instituições como o SENAC e o Instituto Empreender, e um programa específico de atendimento à Surdocegueira. A decisão sobre o tempo de duração da reabilitação parece ser a difícil solução de uma equação que envolve: a indicação de respeitar o tempo individual e as necessidades de cada um; a percepção do profissional de que aquele reabilitando atingiu um planalto, ou seja, que, por diversas razões, seu ritmo de desenvolvimento ou aprendizagem é horizontal e não mais vertical; o aumento da demanda; a insegurança ou o apego de reabilitandos que não querem se tornar “reabilitados” por terem encontrado

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ali um lugar de reconhecimento e sociabilidade que não encontram “lá fora” 40. A negociação entre fatores aparentemente tão díspares na realidade da decisão sobre o encerramento da reabilitação nos remete ao que Mol (2002) coloca a respeito da decisão sobre o tipo de tratamento da aterosclerose, realidade que envolve a extensão da estenose, mas também a extensão de dias de permanência no hospital, a situação financeira que isso representa, entre tantos outros elementos. Como lembra a autora, a realidade nunca é tão sólida a ponto de ser apenas singular, em qualquer circunstância sempre há alternativas. Apesar de não ter um tempo de duração formalmente determinado para a reabilitação, informalmente costuma durar de 2 a 4 anos. A frequência aos atendimentos é de duas vezes por semana (2ª e 4ª ou 3ª e 5ª), turno da manhã ou da tarde. Para os que não podem frequentar duas vezes, existe a opção de ir às sextas feiras. Reconhecendo o papel da instituição enquanto local de convívio, encontro e sociabilidade criou-se o grupo de convivência, onde são oferecidas, às sextas-feiras, oficinas para reabilitados que ainda mantêm o vínculo com a instituição, em geral ministradas por voluntários. Se a saída é ralentada, a entrada também é. Chegar até o IBC não é, para muitos, um processo imediato, pois simboliza o reconhecimento do problema e da necessidade de ajuda. O médico indica, o vizinho fala, escuta-se o anúncio no rádio, mas a decisão de ir até lá leva um tempo, às vezes anos, porque, no relato de uma das profissionais, “é o atestado da deficiência”. Fala-se que uma pessoa que perde a visão passa por três fases emocionais: choque ou negação, luto e aceitação41. Os profissionais dizem que é comum que a chegada ao IBC ocorra na fase do luto. Entretanto, esse discurso não é problematizado, não há uma atenção específica aos aspectos emocionais da perda da visão e isso é algo que os próprios profissionais apontam como uma lacuna. No caso de crianças que nascem cegas relata-se que a passagem pelas três fases emocionais também

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A dificuldade dos reabilitandos de finalizar o processo de reabilitação é um ponto de constante preocupação entre os profissionais do setor. Acreditam que tal dificuldade se relaciona ao fato de terem encontrado ali um grupo de amigos, um lugar de acolhimento, sociabilidade e de reconstrução da sua identidade. Ali se sentem “em casa”, “protegidos”. Entretanto a orientação é de que, uma vez que a pessoa se encontre preparada, incentivá-la a “ir para o mundo”, “para a rua”, conquistar outros espaços, se tornar independente também do Instituto. A tensão entre esses papéis da Instituição – formação, treinamento e preparo para inserção social e lugar natural de encontro, troca e proteção - é latente. Longe de ser um problema que exige solução, parece ser um trabalho de constante articulação, imbricado em relações sociais mais amplas. 41 No capítulo 5 entraremos em mais detalhes a respeito da “carreira moral” (Goffman, 1975) de pessoas que ficam cegas e das emoções associadas à perda da visão tendo como base o relato dos entrevistados.

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acontece, não pela criança, mas pelos pais, especialmente a mãe. A

partir

dessa

entrevista inicial com a psicóloga, o reabilitando monta o seu horário e começa a frequentar os atendimentos que escolheu.

2.1.2 O estímulo aos outros sentidos

Prestar atenção no ambiente com o corpo. Aprender a discernir lugar fechado de lugar aberto pelo som ao redor e pela temperatura. Saber se está passando em frente a uma farmácia, uma padaria ou um posto de gasolina pelo cheiro característico desses estabelecimentos. As TOs com quem conversei, que realizam atendimentos de OM e AVD, observam que uma das primeiras transformações na pessoa que fica cega é que seus outros sentidos ficam “aguçados”. Uma sensibilidade maior que derivaria de uma reação natural do corpo, que passa a recorrer ao que tem – os outros sentidos – para controlar o ambiente. A princípio um mecanismo de sobrevivência, a sensibilidade aumentada dos outros sentidos deve ser estimulada e incentivada na pessoa cega, ela deve ser treinada a utilizá-los nas tarefas cotidianas. A partir desse treinamento é que os sinais significativos do entorno se tornam guias para a ação.

A pessoa quando fica cega passa a recorrer mais ao ouvido e desenvolve uma sensibilidade. Antigamente pessoas cegas eram queimadas porque eram mais sensitivas, achavam que era guru ou bruxa. Mas hoje a gente sabe que quando perde a visão, é uma questão de sobrevivência, recorre aos sentidos remanescentes. Primeiro é o ouvido, depois a pele, que se estende pelo corpo todo, mas também os pés, as mãos. Memória cenestésica também. Fica tudo mais aguçado, a pele fica mais sensível. Tem alguns que quando você toca, a pessoa já treme. O corpo se adapta à perda antes mesmo do cérebro aceitar. O corpo humano se adapta muito rápido. Aí a gente tem que abrir a mente dele para aquela nova condição de vida. Falar para observarem o corpo, perceberem o que sentem, estimular o ouvido. Alguns têm medo do barulho porque levam susto com o ouvido que já está se adaptando. (TO de OM)

A medida para as coisas passa a não ser mais a mesma medida visual de antes, o mundo não se parece mais com o que se parecia antes. Mas esse mesmo mundo novo, num primeiro momento caótico, assustador, pode ser percebido, controlado, manipulado, organizado, por meio de indícios – táteis, sonoros, de temperatura, de movimento, etc. – significativos. É uma questão de aprender a ler sinais – aprender a repará-los, a senti-los, a escutá-los. „Já que você não está vendo... ó, eu vou fechar os olhos também. E aí, o que você está percebendo do ambiente? O que o ambiente está te dizendo?‟, „tem um vento

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passando à minha direita, um perfume que passou à minha esquerda, uma bengala que passou andando lá longe... tem uma folha de planta passando pelo meu braço... o quê que o ambiente está te dizendo? O que está acontecendo ao seu redor através dos outros sentidos?‟, isso é super importante. Todos os sentidos, fora a visão, eles são aguçados na maioria das vezes. Nós como TOs, a gente incentiva muito isso, a percepção. (TO de AVD)

Aprender a utilizar uma nova realidade corporal, a que não enxerga, para perceber proporções diversas para as coisas e saber emprega-las. Incorporação de novos jeitos, novas habilidades, no desempenho de tarefas conhecidas – colocar água num corpo, fazer comida, limpar o armário, andar na rua com o mínimo de ajuda possível. Para Varela (2003), costumamos operar em uma espécie de imediatismo em relação a uma situação dada. O mundo em que vivemos está tão pronto e à mão que absolutamente não deliberamos sobre o que ele é e de que forma o habitamos. Apresentamos uma prontidão-para-ação adequada para cada situação específica vivida. Maneiras novas de se comportar e as transições ou pontuações entre elas correspondem, para o autor, a microcolapsos que sofremos constantemente. Pessoas que ficam cegas precisam redescobrir, reaprender ou reinventar os tipos de interações direcionadas perceptivamente a partir de uma modificação significativa na estrutura sensório-motora de seus corpos. Um processo de modificação/criação/ampliação das suas formas básicas de atividades e de interações sensório-motoras. Aquisição de um novo habitus corporal, novos esquemas de percepção e apreciação (Bourdieu 2011). No caso de pessoas que nascem cegas não é tanto um processo de tradução – a forma como fazia antes e a forma como fará agora as mesmas coisas - mas um trabalho de treinamento e desenvolvimento de formas sensório-motoras próprias para realizar tarefas algumas vezes criadas por outros42. A diferença entre quem nasce e quem se torna cego em relação ao uso que se faz dos outros sentidos aparece, no discurso dos pesquisados, relacionada ao tempo de treinamento e ao desenvolvimento da atenção. Se uma criança que nasce cega teve oportunidade de desenvolver experiências diversificadas e foi incentivada a interagir com as coisas e com o mundo desde cedo, é possível que, quando adulta, ela tenha desenvolvido uma boa orientação espacial e um bom uso da percepção tátil em atividades como a locomoção ou a leitura do braile, com mais destreza e habilidade do

42

Certas práticas cotidianas, como cortar no prato alimentos como a carne, por exemplo, junto com outros tipos de alimento, são tarefas que contam com a visualidade para sua execução e se tornam reconhecidamente penosas de serem executadas por quem não está vendo.

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que conseguirá uma pessoa que perde a visão em uma idade mais avançada. Mesmo que a diferença seja significativa ela não é determinante, muitos fatores podem intervir para que a criança cega congênita ou o adulto cego tardio desenvolvam mais ou menos os outros sentidos – grau de estímulo ou de proteção familiar, por um lado, motivação, forma de reagir ao trauma, experiência e consciência corporal anterior, por outro. O treinamento dos sentidos na reabilitação se dá por um processo de educação da atenção, no sentido dado por Gibson (1979), durante a realização de atividades práticas. Não se trata de transmitir informações sobre como uma pessoa que fica cega deve passar a fazer essa ou aquela coisa, mas de efetivamente guiar sua ação para que, por meio da prática, do movimento do fazer, ela redescubra suas próprias formas de perceber o mundo e de realizar coisas. Um senso prático que se desenvolve por um processo de aquisição como simulação, de mimesis (ou mimetismo) prático, como indica Bourdieu (2011). O senso prático - linguagem do tato, da habilidade, da delicadeza, da destreza ou do saber fazer, entre tantos outros nomes possíveis - está fundamentalmente relacionado à ação em uma situação determinada. Esse parece ser um princípio que orienta ou estrutura todo processo de (re)habilitação de uma pessoa cega: os atendimentos se organizam essencialmente em torno de situações práticas, de ações orientadas, de disposições em atos. A lógica prática de que nos fala Bourdieu e que pode ser relacionada ao fazer proposto aos reabilitandos nos atendimentos, está presa por aquilo do que se trata, totalmente presente no presente e nas funções práticas que ali se descobre na forma de potencialidades objetivas. O trabalho da reabilitação se aproxima ao da estimulação precoce em dois pontos principais: o foco no estímulo aos outros sentidos – prestar atenção com o corpo todo - e a mediação, não de um professor, mas de um profissional da área de terapia ocupacional, psicomotricidade ou fisioterapia, para o aprendizado da ação - do fazer, se movimentar, criar. A gente aqui enfatiza o quê? Os outros sentidos. Na pessoa cega ela precisa, quanto mais ela desenvolver a audição, o tato, a coisa motora, o corpo no espaço... Desde a estimulação precoce. É a piscina de bola, é a criança sentir as coisas. Esses outros sentidos são muito estimulados, esse é o nosso trabalho aqui. É o que a gente mais... em tudo. Então eu acho que é isso, é estimular os outros sentidos. Aí cada um vai por um caminho, é a questão da individualidade. (Psicóloga, IBC)

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Em muitos momentos das entrevistas se enfatiza a diferença, a particularidade de cada um no processo de ser ou tornar-se cego. “Não tem receita de bolo”. Estar atento especialmente com a audição, por exemplo, é algo que as pessoas cegas precisam constantemente fazer para perceber ou controlar o ambiente, mas não significa que toda pessoa cega desenvolve uma capacidade extraordinária para discriminar vozes, ou uma aptidão natural para virar músico. Dora fala sobre essa questão.

As pessoas dizem que as pessoas cegas ouvem melhor, eu não ouço melhor. Muito pelo contrário eu acho que eu tenho uma dificuldade auditiva de discriminar a voz humana. Eu sinto que eu tenho uma dificuldade de discriminar, não é de reconhecer o som, é de discriminar o que a pessoa está falando. Nossa, tem pessoas cegas que eu fico impressionada, ficam anos sem encontrar uma pessoa e quando encontra diz “fulano”. Eu não sou capaz de fazer isso, eu nunca tenho certeza de quem é que está falando, eu tenho essa dificuldade. (Ao mesmo tempo) eu também estou muito treinada a ficar muito ligada no barulho né, porque pelos sons eu descubro o que está acontecendo no mundo, em volta de mim, é como eu tenho possibilidade de ter algum controle do ambiente. Então é uma coisa que até por uma questão de sobrevivência tem que ficar ligada.

O limite é tênue e a questão parece girar em torno de onde traçar a linha entre natureza e cultura. Na análise sobre o desenvolvimento cognitivo de pessoas cegas, vimos como a resposta para essa questão só pode ser especulativa, dificilmente se consegue isolar a variável “comportamento” para compreender se a mudança na amplitude em que um sentido particular é utilizado é que ocasiona a reorganização cerebral ou se é essa reorganização que influencia as diferentes estratégias comportamentais utilizadas. O que nos interessa não é tanto uma participação na polaridade traçando a linha mais à esquerda ou à direita, mas o borrão, a emergência do opaco. Nos relatos de situações vivenciadas por pessoas cegas ou na observação a partir de ocasiões de interação, determinar se a percepção que desenvolvem é a de um corpo social ou um corpo biológico é uma disputa que não corresponde aos seus múltiplos modos de ouvir. Eles emergem entrelaçados a práticas e conhecimentos locais e situados. Ao se polarizar a discussão corre-se o risco de abandonar a riqueza e a variabilidade dessas práticas. Elas apontam para questões que merecem ser consideradas: a indissociabilidade do que se convencionou chamar de percepção visual ou auditiva, a ampliação ou diminuição da capacidade perceptiva como resultado de foco, a visão como um sentido que distrai, as diversas formas de relação com o ambiente a partir de sua sonoridade.

Questão de foco - a visão distrai 120

Renata, cega congênita: A pessoa pode ser mais atenta não é nem pela compensação não, é porque... por exemplo, eu sou cega, você tá fazendo as perguntas, mas você está vendo a estante, a parede, as mesas. Você pode de repente, sei lá, olhar pra janela não dá, porque a janela está muito alta, mas você pode olhar para qualquer coisa que te chame a atenção, que te distraia, aquela flor que está ali, qualquer coisa. Eu já não tenho isso para me distrair, então eu acho que isso talvez faça com que eu fique mais atenta. Mas não é uma compensação, entendeu? Não é „todo cego é mais atento que vidente‟, não. As pessoas ficam, acabam ficando mais atentas, porque não tem com o que se distrair. É uma questão de foco.

Olhos que escutam: surdez da cegueira? Pedro diz que ter ficado cego afetou os ouvidos. “Olha só, tudo é um conjunto. Se você está enxergando, você ouve, você ouve porque está enxergando. Se você não está enxergando, você não ouve. É um problema sério. Ouve, mas não os 100%. Por exemplo, em ambiente fechado eu não consigo escutar o que a pessoa está falando, eu ouço assim „bloubloublou‟, mas entender? Não estou entendendo”.

A visão acomoda os outros sentidos Ana, também considerada cega congênita, relata: Eu tenho uma percepção bastante aguçada, até mesmo em relação a algumas pessoas cegas. Porque eu sou muito... eu sou abusada, né, como se diz, e eu procuro, quanto mais aguçada eu tenho a percepção, aguçar mais ainda. Eu tenho me comportado um pouquinho porque eu sei que determinadas coisas talvez eu não deva falar porque assusta algumas pessoas cegas que acham que isso não é verdade. Então eu tenho me controlado um pouco, tenho ficado para mim. Mas eu acho que talvez algumas pessoas que enxergam não tenham aprendido a usar os outros sentidos como eu uso. Eu acho que muitas pessoas que enxergam não desenvolvem porque a visão ela é quase tudo, ela te dá noção de quase tudo, então acaba acomodando os outros sentidos, você sobrecarrega um, que é o que está mais visível. Se eu for fazer uma acuidade auditiva com uma pessoa que enxerga, eu e ela vamos ouvir 100%, se nós não tivermos nenhum problema auditivo. Mas uma pessoa que enxerga e que é uma pessoa comum talvez ela não tenha o uso dos outros sentidos tão aguçado quanto eu.

Ouvir o que outros veem – surdez da visão? Em uma ocasião, com Dora, fomos ao banheiro de um restaurante. Corredor estreito, uma cabine só. Ela entra e eu a aguardo do lado de fora. Na saída, ela esbarra com a bolsa no interruptor e a luz se apaga. Antes que eu pudesse passar e reacender o interruptor, ou explicar-lhe o ocorrido, ela mesma comenta “ih, apaguei a luz”. Me pergunto como poderia saber que tinha apagado a luz, já que é cega e atualmente não tem mais a percepção de luz. Seria possível que tivesse sentido que a bolsa esbarrou no interruptor? Pergunto e ela me diz que escutou que o barulho do exaustor do banheiro

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tinha cessado, então deduziu que, sendo o mesmo botão ou próximo, a luz também teria apagado. Fico surpresa, definitivamente não havia notado a existência do exaustor ou escutado barulho algum. Acendo a luz e o exaustor volta a roncar.

História contada por Ana. Uma vez estava na casa de um amigo, entrei lá e eu tô ouvindo (faz um barulho suave). A esposa dele, desse meu amigo, ela é muito atenta, aì ela „Ana, o quê que é?‟, eu falei „gente, eu estou ouvindo um barulhinho...‟, aì a irmã do meu amigo „barulhinho?‟, eu falei „é, eu estou ouvindo‟, „mas não tem barulho nenhum‟, e ele „que barulho? não tem barulho nenhum‟, „gente, eu tenho certeza, psit, fica quieto, deixa eu ouvir‟, eu tenho bastante intimidade com eles para brincar assim, né, aì fiquei. Aí eu levanto, vou na direção do barulho e então eu falo „é ali ó, ele vem dali‟, „ah, é a torneira que está... meu Deus, você está ouvindo esse barulho?‟, „tô‟, „nossa, como é que pode?‟. Era a torneira da cozinha que ela tinha deixado um pouquinho aberta, então sai aquele filetezinho de água.

Corpo enactado pela cegueira - perceber as coisas pelos sons que emitem Camila, a partir dos treinamentos recebidos na reabilitação e da prática de prestar atenção com a audição, fala sobre a surpresa de passar a controlar movimentos do mundo a partir de sua sonoridade. Quando eu comecei a me dispor a andar sozinha, foi no segundo ano que eu já estava aqui, eu comecei a ficar muito mais perceptiva na minha audição, porque eu precisava muito dela... comecei a perceber que para mim ia facilitar a minha vida observar, assim, portas se abrindo, barulhos. Eu comecei a observar a porta do metrô, ruídos do metrô. Um dia a minha irmã estava na estação do metrô e estava falando no celular comigo, eu estava em casa. Foi incrível, ela estava falando, falando e eu falei „olha, o metrô tá vindo aì‟, ela „não tá não‟, eu falei „tá sim‟, aì ela olhou „tá vindo, meu Deus, mas como é que você fez isso?‟, eu falei „o barulho‟. E não foi chute não, eu ouvi do telefone celular dela. Porque eu me habituei com o barulho do metrô. Foi incrível, até eu me espantei com isso, mas foi real.

Desenvolver uma maior capacidade auditiva, escutar mais ou melhor que outros, é entendido como diferente de ser treinado para interpretar os sons do ambiente e identificar sua origem, ou seja, reconhecer objetos e movimentos, próximos ou distantes – torneira vazando, abertura de uma porta, barulho característico da chegada do metrô, relação luz, exaustor e som –, para citar alguns exemplos de acoplamento corporal com o ambiente por sua sonoridade presentes nos depoimentos. O estímulo aos sentidos na reabilitação parece direcionado para o segundo objetivo, apesar de que, nos depoimentos em que se atribui o adjetivo “aguçado” à percepção sensorial de pessoas cegas, as duas dimensões se misturam.

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Podemos pensar que não estamos diante de um indivíduo ou uma pessoa, corpo ou aprendizado, biologia ou cultura, natureza ou sociedade, mas de uma lógica da relação, que desfaz dualismos e que constitui a multiplicidade (Deleuze e Parnet, 1998). Considerar, como sugere Ingold (1990), que o organismo é menos uma entidade individual do que a incorporação de um processo de vida. Nesse sentido, o ambiente não pode mais ser visto como a soma de pré-condições exógenas ou a pessoa ser vista como a soma de traços endógenos. O comportamento não é um simples efeito de causas endógenas e exógenas. Ao invés disso, revela um momento do processo de desenvolvimento contínuo dentro de um campo relacional, cujo resultado é a complementariedade mútua da pessoalidade e do ambiente.

2.1.3 Universo tátil: a mediação de coisas e materiais

O atendimento de Habilidades Básicas (HB) é principalmente centrado no objetivo de estimular o tato. Por ter esse foco, especialmente em atividades realizadas com os dedos das mãos, o atendimento também é considerado “pré-Braille”. Os outros sentidos também são trabalhados, mas de forma secundária – audição ou olfato. Em HB são exercitados conceitos corporais importantes não só para o aprendizado do Braille, mas para o deslocamento e a locomoção ou mesmo as AVDs, como lateralidade, coordenação motora (dupla, grossa, fina), movimento de encaixe, pinça e esquema corporal. Os atendimentos consistem basicamente em fazer coisas com materiais. Ou talvez, por meio da ação direcionada, deixar que materiais façam coisas com os corpos. As atividades são realizadas principalmente com as mãos. A sala é pequena, tem uma mesa redonda ao centro e seis cadeiras em volta. Na parede esquerda de quem entra, prateleiras onde ficam guardados os materiais. Uma janela alta na parede oposta a da porta. Na lateral direita, encostada na parede, uma mesa retangular, com algumas pastas e papéis das TOs que usam a sala e um som portátil. Os atendimentos que acompanhei tinham em torno de 3 a 5 reabilitandos. A própria TO que realizava os atendimentos sugere que eu deveria experimentar fazer alguns exercícios com os olhos fechados, antes mesmo que eu manifestasse o interesse em fazer com a venda. Me conta que ela mesma já experimentou todos os jogos e materiais da sala. Quando comento da proposta com a venda, ela diz que fará um programa para mim, começando do início e que podemos ir desenvolvendo aos poucos.

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Ao invés de pensar no fazer como um projeto, Ingold (2013) sugere que o pensemos como um processo de crescimento. Isso significa colocar o fazedor, desde o princípio, como um participante entre um mundo de materiais ativos. Esses materiais são aquilo que ele precisa trabalhar com. No processo de fazer ele une suas forças com eles, reunindo-os ou separando-os em pedaços, sintetizando ou destilando, em uma antecipação do que pode emergir. O autor propõe uma leitura longitudinal do fazer, como uma confluência de forças e materiais, ao invés de uma leitura lateral, como uma transposição da imagem para o objeto. Entender o fazer dessa maneira é considera-lo um processo de geração da forma – ou morfogenia. Significa atenuar qualquer distinção que possamos traçar entre organismo e artefato. Pois se organismos crescem, artefatos também. E se artefatos são feitos, organismos também são. O estímulo ao tato e o desenvolvimento das habilidades a ele associadas é realizado pela mediação de vários tipos de “coisas” (Ingold, 2012) e materiais - grãos, formas geométricas, miçangas, jogos diversos – de encaixe, dominós, de memória, letras do alfabeto emborrachadas, jogo da velha. Ao longo do processo, materiais trabalham com corpos em uma espécie de desenvolvimento morfogênico perceptivo. O que interessa nos mediadores não é apenas o seu formato, mas também suas texturas, o tamanho, a sensação que provocam ao toque. O propósito que são utilizados nem sempre é o mesmo para o qual foram criados. Mesmo que haja uma proposta previamente colocada, não é a proposta que cria o trabalho. É o engajamento com os materiais, com as coisas, com os jogos. Jogos como dominó, além da função lúdica, ganham novas atribuições, mesmo que sua fabricação não tivesse originalmente esse propósito: estimular a memória espacial, a discriminação tátil, além de ser classificado de acordo com o grau de dificuldade que oferece a partir do material e do design que foi construído. A TO me mostra quatro tipos de dominó, de níveis de dificuldade tátil crescente: -

Primeiro tipo – o mais fácil, peças grandes, inscrição das unidades em relevo.

-

Segundo tipo – o tamanho da peça é maior que o primeiro, mas as unidades são inscritas em cavidades circulares (furos ao invés dos pontos saltados).

-

Terceiro tipo – peças menores, unidades em cavidades.

-

Quarto tipo – o mais difícil, peças ainda menores e do tipo vazadas com as unidades em cavidades. A TO diz que só um reabilitando que atende conseguiu jogar com o quarto tipo.

O propósito de jogar em grupo é a etapa final entre propostas intermediárias de 124

atividades com as peças. Ela primeiro pede para que, tateando, percebam as peças e reconheçam as quantidades que estão marcadas em cada uma delas. Depois, ela joga com eles. Em um terceiro momento é que efetivamente se joga em grupo. Alguns dos jogos utilizados no atendimento foram intencionalmente desenhados para crianças, como o jogo conhecido por “60 segundos”, mas são redimensionados e resignificados quando incorporam a nova função que desempenham – a de ajudar a habilitar corpos a uma nova realidade. Ingold (2013) considera que materiais não existem na forma de objetos, como entidades estáticas com atributos diagnosticados. Ao invés disso, como substâncias - tornando-se - eles continuam ou perduram, sempre ultrapassando os destinos formais que, de um tempo a outro, foram atribuídos a eles, experimentando uma modulação contínua ao passarem por isso. O processo descrito por Ingold se aproxima da noção de acoplamento estrutural de Maturana e Varela (1995), que sugere que as interações entre organismo e ambiente são como perturbações recíprocas, que tem como resultado mudanças estruturais mútuas. O organismo e o meio devem ser pensados a partir dos processos que lhes dão forma. Outros objetos e materiais cotidianos também podem desempenhar funções originalmente imprevistas. A professora de Braille recomenda aos reabilitandos que identifica que precisam estimular mais o tato para suas aulas, pegar cartelas vazias de remédio e exercitar retirar a parte de alumínio que as reveste. Com isso estão treinando o movimento de pinça, para segurar a pulsão, mas também a sensibilidade dos dedos, para facilitar a leitura dos pontos. Materiais importam. A relação de pessoas e materiais na reabilitação parece mais próxima da ideia de materiais como coisas, desenvolvida por Ingold (2012). Ao contrário do objeto, que se coloca diante de nós como um fato consumado, oferecendo suas superfícies externas e congeladas para a nossa inspeção, a coisa é um lugar onde vários aconteceres se entrelaçam. Observar uma coisa é ser convidado para uma reunião. Nas atividades propostas de reunião com as coisas na reabilitação, espera-se que elas ajudem a intervir em corpos, a desenvolver e moldar a percepção, a sensibilidade. Descrevo algumas atividades que são propostas no atendimento de Habilidades Básicas e levanto algumas questões corporificadas pela mediação tátil de texturas e materiais na realização de atividades com olhos vendados.

Atividades com mediação de miçangas

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A TO entrega para a reabilitanda uma miçanga de formato, textura e tamanho específico e pede que procure em uma travessa cheia de miçangas e contas de formatos variados outras iguais a que recebeu inicialmente, e que vá separando. Outra atividade, segundo a TO das mais difíceis, é encontrar o par de pequenas miçangas de formatos diversos - florzinha, bolinha, cubo, etc. - que se encontram misturadas em uma travessa. A dificuldade é pelo tamanho diminuto das peças e pelos formatos, algumas vezes semelhantes, como florzinha e estrela ou tipos de flores muito parecidas, o que exige uma acuidade tátil já bem desenvolvida.

Jogo 60 segundos (ver imagem em anexo) Peças de encaixe com formatos variados, com aproximadamente 1 cm cada - lua, meia lua, estrela de 4, 5 pontas, quadrado, círculo, retângulo, losango, trapézio, hexágono, etc. A proposta é encaixar cada peça no buraco correspondente ao seu formato num suporte. O jogo original é pensado para a pessoa fazer em 60 segundos, caso contrário as peças pulam da base e é preciso começar de novo. Um botão lateral, se girado, conta o tempo. Mas ali a proposta é encaixar o maior número de peças possível ao longo do tempo de duração do atendimento - 50 minutos – sem a ameaça do pulo. A TO diz que esse é um dos exercícios mais avançados. Quando o reabilitando consegue acertar o encaixe da maior parte das peças desse jogo considera que é um sinal de que está preparado para seguir adiante. Jogo da memória tátil43 (ver imagem no anexo) Formas esculpidas em células quadradas de madeira, feitas de reentrâncias ou desníveis, redondos ou pontudos, que apontam em diferentes direções. Todas têm pares e, na proposta feita pela TO, o reabilitando tem que encontrar o par de cada uma. Trabalha a percepção tátil, a coordenação motora fina e a memória tátil. Alguns efeitos da concentração tátil – acuidade, ambiente sonoro, postura corporal, cansaço

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Alguns modelos de jogos, produtos e materiais pedagógicos para a educação inclusiva também podem ser encontrados no catálogo de uma loja virtual que comercializa materiais para deficientes visuais. O endereço é www.artigosespeciais.com. Acesso em 07 de outubro de 2013.

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Experimentação do jogo de memória tátil. Algumas peças de madeira tinham relevos em formato de ondulações, outras de cortes mais afiados, outras em formato mais achatado - retangular. Era difícil perceber, porque uma mesma peça podia misturar reentrâncias com essas características. Notei diferenças de: - Profundidade dos cortes na madeira; - Distância maior ou menor entre um relevo e outro; - Formato do relevo - se pontiagudo, arrendondado, retangular; - Número de reentrâncias; - Direção dos relevos - se pontiagudos em diagonal, para qual lado, ou retos. No princípio fui agrupando as peças que me pareciam iguais, com uma leve sensação de facilidade. À medida que foram restando menos peças, comecei a reparar mais cuidadosamente nas diferenças entre elas e percebi que não tinha sido nada detalhista no começo e, possivelmente, tinha me equivocado ao parear várias peças. Quanto mais me dava conta da real dificuldade do exercício, mais exigia minha atenção e eu já não acompanhava a conversa da TO com outros dois reabilitandos que estavam na sala. No início participei um pouco, respondendo perguntas sobre quem era e o que fazia ali. Aos poucos senti necessidade de me concentrar mais no que estava fazendo e automaticamente fui ficando não só mais calada, como abolindo o ambiente sonoro. Já nem distinguia mais o conteúdo da conversa, ouvia apenas como um barulho, um ruído de fundo que inclusive atrapalhava a concentração. Em determinado momento reparei na minha própria postura corporal e percebi que estava praticamente debruçada sobre a mesa, com a cabeça inclinada para baixo, tendendo a me aproximar das peças. Me ajustei na cadeira, endireitei a coluna, coisa que já tinha escutado ela falar para reabilitandos em outras ocasiões. Percebi que tinham peças sobrando e que algumas eu tinha pareado sem ter certeza e, nesse momento, começo a desconfiar que poderiam não ser. Comento com a TO e ela confirma a sensação me devolvendo três pares e dizendo para observar novamente. Começo a experimentar certa angústia ao tocar nas peças e considera-las todas iguais. Não conseguia mais perceber as diferenças. Levanto a possibilidade de ter errado todas as anteriores. Observo que algumas peças tinham características muito difíceis de notar ou de ter certeza se eram realmente diferentes das outras. A dúvida se instala e de repente não consigo identificar mais nenhum par. Uma pausa com respiração profunda ajuda a recuperar a calma. Recomeço a avaliar as peças, vagarosamente. Às vezes a diferença estava na mudança de direção de uma das 127

reentrâncias agudas do relevo de uma peça, ou então apenas uma das reentrâncias era arredondada. Algo muito sutil e muito flutuante, não sentia total confiança em nenhuma das decisões de pares que formei dali pra frente, me certificava diversas vezes antes de definir que agruparia realmente aquelas duas. Depois que revi aqueles pares e praticamente todos os outros que tinha feito, a TO me volta com mais três pares. Reagrupei tentando perceber as minúcias daquelas peças, passando a unha entre cada reentrância, depois tentando pegar na peça como um todo, observando a distância entre um relevo e outro. Por fim, sobram duas peças que não foi possível agrupar e, ainda por cima, eram completamente diferentes entre si. A TO diz para retirar a venda e esclarece que aquelas duas peças sobravam mesmo, era uma “pegadinha”. Me mostra os erros e acertos e aponta as peças que me confundiram mais. Saí de lá exausta pelo esforço do foco e da concentração mental naquela tarefa. Fiquei pensando sobre a questão do barulho. Por estar focada ao extremo naquela atividade, fui capaz de anular completamente a conversa ao meu redor.

*** Seguir o insight semiótico, como esclarece Law (1999a) a respeito da teoria atorrede, é priorizar o caráter relacional das entidades, o que se aplica inelutavelmente a todos os materiais. As entidades alcançam suas formas como consequência das relações nas quais estão localizadas. São performadas por, através e dentro dessas relações. As divisões sujeito e objeto, natureza e cultura, são efeitos, consequências, não estão previamente dadas na ordem das coisas44. Uma das propriedades levantadas por Deleuze (1991) sobre o barroco nos ajuda a entender a sensação tátil das peças de madeira no jogo da memória tátil, a maneira pela qual as dobras de uma matéria constituem a sua textura. Textura que se define menos pelas suas partes heterogêneas e realmente distintas do que pela forma como essas partes se tornam inseparáveis em virtude de dobras particulares. Os fragmentos somados das peças não constituem uma totalidade unificada, mas talvez a totalidade “ao lado” de que nos fala Deleuze. No jogo da memória tátil, encontrar a unidade de cada

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Kastrup e Tsallis (2009) fazem uma aproximação das obras de Varela e Latour que indica uma ressignificação da ideia de relação. Tanto Varela nas ciências da cognição, quanto Latour nos estudos sobre a ciência deslocam a noção de relação, entendida previamente como ligação entre dois polos préexistentes, em favor de noções como acoplamento estrutural, rede e vínculo. Estas últimas possibilitariam pensar processos de invenção da cognição e de mundo.

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peça é encontrar uma totalidade ao lado das suas partes, uma unidade que não as unifica, e que se lhes junta como uma nova parte. O todo de um objeto percebido tatilmente, produzido como uma parte ao lado das partes, quando se aplica sobre elas instaura unidades transversais entre elementos que conservam toda a sua diferença nas suas dimensões próprias. Por meio do engajamento corporal com materiais na reabilitação, nos acoplamentos que se cria com eles, os materiais ajudam a criar um novo corpo, ao mesmo tempo em que são recriados nesse vínculo. A miçanga não é mais uma conta para fazer um colar ou pulseira. Ela escapa, excede. Como lembra Ingold (2012), as coisas vazam, transbordam das superfícies que temporariamente se formam em torno delas. Características de vários conjuntos de peças de dominó são descobertas e reclassificadas, de acordo com o que provocam no engajamento tátil com elas. Se engajar, fruir, interagir e seguir o fluxo de materiais para que eles possam atuar no corpo, promover uma espécie de abertura perceptiva e modifica-lo. O fazer de reabilitandos com jogos, objetos e materiais na reabilitação está próximo à ideia de invenção de novos vínculos, aprendizagem de ser afetado ou o processo de adquirir um corpo, num paralelo que pode ser feito com a maleta de odores desvendada por Latour (2004), onde a maleta e o corpo são transformados no processo de criação de um nariz. Na prática de treinamento de narizes para a indústria de perfumes, um nariz “mudo”, após uma semana de treinamento onde o instrutor e o kit de odores desempenham um papel fundamental, passa a ser capaz de discriminar um número crescentes de diferenças sutis que antes não podia perceber – aprende-se a ter um nariz que permite habitar um mundo olfativo amplamente diferenciado. A mudança não é apenas da desatenção para a atenção, mas um aprendizado de ser afetado, efectuado pela influência das coisas e dos materiais, de ser posto em ação por eles. Aprendizagem que se dá pelo corpo. Para Latour esse é um processo de articulação contextualizado. O termo articulação enfatiza a necessidade de trazer à tona os componentes artificiais e materiais que permitem, gradativamente, adquirir um corpo. Outra característica da ideia de articulação é a possibilidade de sua proliferação, sendo absolutamente desnecessária a correspondência. Não se espera que os relatos dos sujeitos articulados convirjam numa versão única, apenas que sejam articulados pelo kit (dominós, miçangas, texturas das peças, etc.), ser capaz de ser afetado por mais e mais diferenças.

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A proposta inicial nos atendimentos de habilidades básicas é de que se articule movimentos e gestos aos jogos e materiais que ali são apresentados, mas depois, as marcas dos acoplamentos e articulações são levadas para a própria vida. Uma atividade criativa de crescimento, onde a criatividade pode ser entendida “para frente”, como sugere Ingold (2012), como uma reunião improvisada com processos formativos. Seguir o fluxo e as forças dos materiais conduzem os corpos a outras formas de fazer e de perceber, à fruição. Corpos que são feitos pelos materiais. Materiais que ressurgem como efeitos dessas outras formas de aproximá-los. Desenvolvimento de um histórico de novos acoplamentos estruturais com o meio, a fim de reinventar a existência. É preciso lembrar que esses mediadores são principalmente pensados, desenvolvidos ou utilizados com o fim de “habilitar” a cegueira em um mundo visual, mas parecem atuar em uma única direção. Necessário ainda, se quisermos seguir um caminho de simetrização sugerido pelo coletivo AbaEté45, multiplicarmos formas de nos deixar - a nós videntes, majoritários - habilitar pela cegueira minoritária, pelos seus conhecimentos e suas práticas incorporadas, a fim de multiplicar espaços de contato, desestabilizar modelos dominantes, criar afetos.

2.2 Formas de saber-fazer: habilidades incorporadas nas práticas cotidianas

A

aprendizagem

das

técnicas

do

corpo,

para

Mauss

(2003),

está

indubitavelmente relacionada à cultura da qual se faz parte e é comandada pela educação, pelo convívio nas circunstâncias da vida em comum. Técnicas como comer e beber, cuidados da boca, cuidados do corpo, andar, dormir, entre inúmeras outras são atos montados, e montados no indivíduo, não apenas por ele próprio, mas por toda a sua educação, por toda a sociedade da qual faz parte e de acordo com o lugar que ocupa. Entre os princípios de classificação das técnicas do corpo, Mauss destaca o rendimento como resultado de um adestramento. Considera que as técnicas, elas próprias e a sua transmissão, podem ser comparadas a adestramentos e classificadas por ordem de eficácia. A noção de destreza aí embutida poderia ser mais bem compreendida pela palavra latina habilis, que designaria

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Texto “Simetria, reversibilidade, reflexividade”, que se encontra no site https://sites.google.com/a/abaetenet.net/nansi/Home/simetria-reversibilidade-e-reflexividade. Acesso em 17.10.2013.

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as pessoas que têm o senso da adaptação de seus movimentos bem coordenados a objetivos, que têm hábitos, que „sabem como fazer‟. É a noção inglesa de craft, de clever (destreza, presença de espírito e hábito), é a habilidade em alguma coisa. Mais uma vez, estamos claramente no domínio técnico (Mauss, 2003, pp. 411).

O ensino e as formas de transmissão dessas técnicas é, para Mauss, um campo de estudos que considera essencial. O atendimento Atividades de Vida Diária (AVD) da reabilitação tem esse objetivo de ensinar e descobrir com os reabilitandos novas montagens para atos cotidianos, novas técnicas ou formas de realizarem atividades que antes realizavam com o apoio da visão. No IBC, esse atendimento é feito em uma casa, composta de sala, quarto, cozinha, banheiro, área de serviço, varanda e jardim. Uma réplica de uma “casa de verdade” (a cozinha, por exemplo, tem eletrodomésticos, geladeira, fogão, panelas, potes com alimentos, armários, prateleiras, etc.), para que possam treinar ali, sob a supervisão das TOs, o que posteriormente farão sem acompanhamento na sua própria casa. O atendimento é montado de acordo com o interesse do reabilitando, aquilo que fazia antes, não consegue mais realizar, mas quer voltar a fazer: a gente vai conversando e isso tudo depois de ter perguntado quais são os interesses dele. „ah, eu cozinhava, eu era dona de casa agora a famìlia não deixa mais eu entrar na cozinha, não posso ligar o fogão, eu estou desesperada...‟, „eu quero, mas eu tenho medo‟. „ah é? olha, a gente tem uma atividade aqui chamada Atividades de Vida Diária, que eles dão dicas, você vai chegar lá e vai dizer o que você quer aprender dentro da sua casa‟, aí são as coisas mais... o que eu fazia antes e coisas, dicas, né, como lidar com o fogão, saber se servir da jarra para não derramar, coisas básicas, mas que estão fazendo falta. Lá aprende, chega, fala com a professora, lá é para isso. É uma casa só para isso, é como se fosse uma casa, é uma casa de verdade, na realidade. Então vai lá e vai aprender. Às vezes é uma pessoa que mora sozinha, às vezes é uma pessoa que cozinhava para a família, que agora está encontrando dificuldade... (psicóloga do IBC)

A decisão do programa de atendimento é tomada em uma conversa inicial entre a TO e o reabilitando, onde é preenchida uma ficha de anamnese e avaliação. É necessário conhecer as atividades relevantes para o reabilitando, para decidir as atividades que irá realizar de um ponto de vista operacional. A ficha se baseia em dois instrumentos criados para medir a independência funcional de pessoas com deficiência – a Medida Canadense de Desempenho Ocupacional e o Protocolo de Práticas da Terapia Ocupacional (EUA). Como esses instrumentos foram desenvolvidos tomando como base um programa de reabilitação para uma pessoa com deficiência física, mais especificamente, cadeirante, foram feitas adaptações. A TO de AVD relata:

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A avaliação que eles fazem para AVD tem um parâmetro, tem uma visão maior para um deficiente físico, para um cadeirante, algumas coisas para um idoso, mas para deficiente visual ainda não tinha sido feita. Aí a gente adaptou. Algumas coisas tornaram-se desnecessárias, a gente foi descartando e outras a gente foi incluindo porque viu que era importante. Então além da nossa anamnese a gente faz essa primeira entrevista, colhe essas informações e aí depois é que a gente vai para a avaliação em si que é na prática.

Os instrumentos permitem que o profissional registre o nível de independência funcional de uma pessoa em diferentes categorias de performance, distribuídas, no caso do atendimento em AVD, em seis áreas: 1) Orientação e Mobilidade - noção de frente e trás, em cima e embaixo, longe e perto, andar carregando objetos nas mãos, pegar objetos que caíram no chão, etc.; 2) Higiene, Vestuário e Costura - lavar as mãos, colocar a pasta na escova de dente, usar o vaso sanitário, tomar banho, arrumar o guarda roupa, colocar linha na agulha, dar nó de arrematar, etc.; 3) Limpeza - limpar coisas derramadas/migalhas, arrumar a cama, usar a vassoura, passar pano no chão, tirar o pó, organizar armários e estantes; 4) Lavanderia - lavar à mão/à máquina, passar roupa, dobrar roupas, dosar quantidade de sabão; 5) Cozinha - manusear o fogão e forno, cozinhar com segurança, picar, descascar, ralar, higienizar legumes, frutas e vegetais, servir-se de líquidos e comida, manusear o garfo e faca, etc.; 6) Gerais - manusear telefone, identificar dinheiro, colocar e retirar tomada do interruptor. Nem todos os reabilitandos passam por todas as atividades. Depende dos hábitos de cada um e do que desejam. São atendidas cerca de cinco pessoas por horário, mas os programas são individualizados, cada um está em uma etapa ou realiza atividades específicas. A TO exemplifica: Esse senhor nunca tinha feito nada em casa. Ele era promotor público, tinha uma boa aposentadoria, pagava alguém para ficar com ele, nunca lavou um talher, nunca fez comida. Ele queria só umas dicas de algumas coisas que ele estava começando a perder em relação a seus hábitos, de lazer principalmente. A gente fez, passou por isso rapidinho, porque era pouquinha coisa que ele tinha que ver, e ele foi liberado.

A avaliação é feita em três momentos de um período anual, depois da entrevista de entrada. Uma linha do tempo linear é acionada. Compara-se a situação da pessoa na admissão e ao fim de cada semestre, realizando a terceira avaliação ao final do período de um ano, para medir se o programa individual precisa continuar, se está resultando em melhora, se precisa ser modificado ou se foi atingido um benefício máximo e o desempenho do reabilitando atingiu um platô. As chaves de gradação, no caso dessa

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ficha aplicada na AVD, são: Não Aplicável (NA) – quando, por exemplo, a pessoa não lavava sua própria roupa antes e não pretende lavar a partir de agora; Dependente (D) – quando não consegue realizar sozinha; Semi-Independente (SI) – realiza com auxílio; Independente (I) – realiza sozinha. Para Mol, Struhkamp e Swierstra (2009), o que resulta de instrumentos desse tipo é uma impressão da quantidade de cuidado que uma pessoa vai precisar. Primeiro, no próprio centro – o quanto de reabilitação é necessário? O que parece plausível? O que parece fora de questão? Ao final do período de reabilitação, a ficha ajuda a perceber se a pessoa está preparada, por exemplo, para morar sozinha, ou se precisa de suporte de outra pessoa. As autoras apontam que esses instrumentos ajudam a quantificar a independência funcional - para além da dificuldade que isso representa para a pessoa para facilitar a comparabilidade: entre um momento e outro na trajetória de reabilitação de uma pessoa; entre situações de diferentes pessoas com necessidade; entre programas de tratamentos. A crítica feita é que uma medida como a independência funcional pode indicar bem o grau em que uma pessoa depende ou não dos outros, mas diz muito pouco sobre o alcance de uma vida significativa após a reabilitação. As autoras ressaltam que tais instrumentos só medem uma dimensão – mais ou menos. A pontuação mais alta é para a pessoa que é capaz de performar atividades sem usar tecnologia assistiva e sem o auxílio de outra pessoa e se torna mais baixa se a pessoa precisa, primeiro, de um dispositivo técnico e, depois, se precisa de assistência de outra pessoa. Entretanto, na vida diária de pessoas com deficiência, existem dimensões mais relevantes. Ajudar um paciente no contexto clínico depende de um conhecimento que é complexo, fluido, adaptável. A TO de AVD fala sobre o desenvolvimento desse tipo de conhecimento prático nos atendimentos para pessoas com deficiência visual:

Não existem dicas básicas em manual nenhum, a nossa prática é que faz acontecer. Na prática, no dia a dia, a gente vendo o deficiente visual lidar com a casa, o nosso olhar terapêutico é diferente, a gente já chega abordando de maneira diferente, isso eu acho que é quase instintivo. A gente chega e vê como ele realmente poderia estar fazendo aquilo de maneira diferente para ele não se por em risco e não por em risco as outras pessoas, a gente vê postura, a gente vê a questão da atenção, da cognição.

Pols (2010) considera que o conhecimento prático associado ao atendimento clínico existe de forma tácita em rotinas, tecnologias, experiências e reflexões dos profissionais que interferem na vida de seus pacientes. Esse saber-fazer é por vezes

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conhecido por se caracterizar pela lógica do “remendo” ou “bricolagem”. Como lembra Moser (2005), os sistemas de saúde contêm os atores que traduzem princípios teóricos em cuidado ou atenção práticos. Tal conhecimento aparece na AVD na forma de dicas desenvolvidas no cotidiano profissional e na relação estabelecida a partir das necessidades e adaptações de cada reabilitando. As adaptações podem se inscrever no próprio design ou arquitetura material da casa: “a gente ajuda a adaptar algumas coisas na casa deles também, a colocar pistas que podem ser fixas, para poder ajudar eles a transitarem. Pistas sensoriais ou, propriamente ditas, táteis”. Algumas dicas desenvolvidas ao longo da prática profissional são mais ou menos universalizantes, servem para todos que querem aprender a realizar aquela atividade, sempre com as devidas acomodações à circunstância individual, que envolve, entre outros fatores, a situação financeira, o ambiente doméstico, os tipos de utensílio que a pessoa dispõe em casa. Detalhes aparentemente improváveis aparecem como pontos relevantes nessa reeducação de técnicas corporais, como cozinhar, por exemplo.

Uma das dicas é como você vai posicionar a panela no fogão, que é uma coisa básica e que se ele errar pode queimar o cabo, pode queimar a mão, pode queimar a roupa, o braço, pode até incendiar a casa. Eu sempre falo „nunca levanta a panela do fogão‟, uma vez posicionada, você não vai zanzar como muitas vezes nós que somos videntes fazemos né, mexe o cabo para a direita, para a esquerda, fica mexendo no cabo e isso é perigoso. Isso pode tirar o centro da panela do lugar correto da boca do fogão. O cabo da panela para o lado externo do fogão. Então você passa a mão lateralmente ao fogão, vai depender se ele é canhoto ou destro, vai depender de que mão ele vai mexer a panela. Cabo longo. Cabo curto é bom evitar, mas quando não tem outro jeito, a gente também ajuda a utilizar. Não utilizar muitas bocas do fogão, no máximo duas, uma longe da outra. Fritura - uma boca só do fogão e geralmente a do fundo. Existem alguns itens na cozinha que facilitam a vida deles e aí a gente orienta, quem pode comprar pode, quem não pode a gente tenta adaptar. As panelas com aquele fundo antiderrapante, que tem um frisozinho no fundo da panela, isso evita que fique sambando em cima do fogão. Tem umas panelas que já têm um fundo emborrachado, que é feita de silicone, dependendo do fogão que você usa também pode utilizar... Quer dizer isso tudo a gente vai desenvolvendo na prática.

O aparecimento e a relevância das dicas não pode ser antecipado ou previamente lido em um manual, estão intrinsecamente relacionados com as práticas, com o que acontece ao longo do processo. São nessas atividades situacionais que se transmite uma série de princípios práticos coerentes, que depois podem ser reaplicados em práticas organizadas segundo a mesma razão (Bourdieu 2011). A própria pessoa, no cotidiano da sua vida com cegueira, produzirá outras formas de saber-fazer, adaptando aquilo que vivenciou na reabilitação, criando novas estratégias para superar dificuldades que antes não tinham aparecido. Caetano, por exemplo, diz que para cozinhar primeiro acende a

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boca do fogão e depois, com a mão esquerda, pelo calor do fogo, encontra o local onde tem que colocar a panela para não ficar fora da boca. Prefere deixar o cabo da panela para dentro - nunca para fora - que é para não esbarrar e entornar tudo. A Terapia Ocupacional seria uma das disciplinas que se especializou no ensino e adestramento de técnicas do corpo quando elas não podem ser adquiridas com base em pacotes técnico-corporais relativamente padronizados (Law e Moser, 1999). O saber como fazer, a habilidade nas técnicas do corpo que se convencionou chamar de AVDs deve ser alcançada a partir da especificidade de corpos cujo rendimento não corresponde ao modelo dominante dos “normativamente competentes”, para utilizar a terminologia de Law e Moser. Como enfatizam os autores, pacotes padronizados preferem imaginar e performar a si próprios como categorias não marcadas. São imaginados e performatizados como corpo invisível, organismo técnico-corporal que é “naturalmente capaz”, normalizado como centro. No caso da cegueira esse contraste – marcado, não marcado, formas padronizadas e formas remendadas - aparece nas nuances de atividades cotidianas. Os conhecimentos práticos ou remendos, desenvolvidos nos atendimentos de AVD e pelas próprias pessoas cegas, nos levam a problematizar as noções de eficiência e deficiência, evidenciam a extensão da padronização visual que se supõe invisível e revelam formas múltiplas de se relacionar com as variações do mundo na vida diária. Trato a seguir de dimensões do conhecimento prático que aparecem entremeadas no dia a dia de pessoas com cegueira a partir de necessidades ou situações específicas, efêmeras, corriqueiras, localizadas. São temas que reaparecem em momentos da reabilitação, em algumas entrevistas, em situações transitórias de campo.

Lidar com dinheiro Aspectos táteis das moedas ressaltados nos atendimentos de AVD: R$ 1 - moeda grande, sua lateral tem sequências de tracinhos, interrompidas por partes lisas. R$ 0,50 - moeda mais grossa, menor que a de R$ 1, tem a borda com a frase "ordem e progresso". Mesmo que não dê para ler, dá pra sentir o tipo da arranhadura. R$ 0,25 - moeda grande, com toda lateral preenchida de tracinhos, sem partes lisas. R$ 0,10 - também com tracinho na lateral, mas a de menor tamanho de todas.

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Naquele dia, Celso apareceu atrasado para o atendimento de AVD. Chegou e só ficou um pouco. Quando já estava saindo perguntou para a TO se a nota em sua mão era de R$ 20. Não era, era de R$ 50. Ela fala que ele não pode fazer isso, que precisa ter um jeito próprio de organizar a carteira, não pode sempre perguntar para as pessoas, porque algum dia alguém que não é confiável vai enganá-lo confirmando que é de R$ 20. Ele precisava ter um sistema, uma forma de organizar as notas para saber qual é o valor. Sugere colocar em ordem crescente, a de menor valor pra de maior. Ou então separar em compartimentos diferentes da carteira. Ou dobrar de um jeito diferente, com dobras de tamanhos distintos para as notas de cada valor. Na entrevista com Caetano, ele conta uma experiência ruim que teve com dinheiro e a estratégia de arrumação das notas que criou posteriormente: Eu tinha começado (a reabilitação) há pouco tempo, deve ter sido em 1995. Tem um grêmio aqui e eles fazem rifa - era de um ventilador na época - aí a garota chegou pedindo para eu ajudar, pra eu comprar rifa. Eu comprei, acho que era R$1 naquela época. Duas rifas, R$ 2. Eu não estava lidando muito bem com dinheiro ainda e eu sei que eu tinha assim uma cédula de R$ 10, no meio de umas de R$1. Como eu não tinha certeza onde estava a de R$ 10, que eu estava com dinheiro menor separado, aí eu pedi para ela ver, a garota, que ela era baixa visão. Aí ela pegou uma de R$ 10 e uma de R$ 2, ao invés de duas de R$ 1. Ela me deu uma volta. Eu me lembro bem. Agora eu sou mais organizado. Quando eu pego o dinheiro eu organizo da cédula maior pra menor. A maior por dentro e a menor por fora. Exemplo, se eu tenho uma cédula de 50 e uma de 20, duas de 10, uma de 5, eu vou botando na ordem de tamanho, decrescente. Da maior para a menor, que a menor sempre acabe por fora. Porque assim, mesmo que eu me engane com alguma coisa, eu tenho certeza que não é um valor grande. Se eu tiver dúvida eu peço para alguém, aí pra experimentar então eu digo assim „quanto é essa cédula aqui?‟, quando eu pago alguma coisa, „é 2‟, „e essa outra?‟, „2‟, „a seguinte?‟, „5‟. Aì eu sei que está falando a verdade, tá mais ou menos na sequência. Vez por outra eu faço esses testes, para a pessoa ir me dizendo na sequência, para ver se está dizendo direito.

Com que roupa? Escolher uma roupa nova para comprar em uma loja. Sozinho? Acompanhado? Como escolhe? Selecionar diariamente as peças de roupa que irá vestir. Organizar o guarda-roupa. Durante um atendimento, ao fazer a atividade do guarda roupa com uma reabilitanda, a TO conta que uma conhecida sua tem uma irmã que é cega e que pede para uma costureira marcar todas as suas peças com bordado - com um V se for vermelha, por exemplo. Comenta que acha isso “fora da realidade”. Bordar a cor e a condição da roupa não faz parte da condição financeira da maior parte do público do IBC. Como profissional de TO, não aconselha fazer isso. Acha que é muito mais proveitoso a pessoa detalhar suas roupa: trabalha a memória, a destreza, a atenção. É 136

mais funcional para a pessoa do que mandar bordar. Sugere que seus reabilitandos tirem todas as roupas do armário, coloquem na frente e estudem, conheçam os detalhes de cada uma, para depois separar e organizar no armário. Aconselha a marcação apenas no caso de duas peças iguais. Uma das pesquisadas, Ana, conta que identifica suas roupas pelos detalhes, mas no caso de peças iguais, ao invés do bordado, desenvolveu outra forma de marcação. “Uma vez ganhei duas bermudas iguais, uma era azul e a outra era branca. Atrás tem uma etiqueta, aí eu cortei uma, daí eu sabia que aquela que estava aberta em duas era a azul”. Note-se que o adjetivo “igual” nos casos mencionados se refere a um atravessamento de características táteis e visuais. Sendo do mesmo modelo - idêntico ao toque - não seria possível discernir também a cor específica de uma bermuda ou de outra. A marcação seria para diferenciar exclusivamente o aspecto visual da cor. Quando a similitude completa entre duas peças não acontece, as mais diversas características táteis das próprias peças servem como referencial de identificação. Camila explica: “eu vou vendo os detalhes da roupa, essa aqui eu sei que é preta, porque tem esse bordado. A outra eu sei que é clarinha, porque tem um botão e tem um negócio aqui do lado, aí é jeans clarinho... aí eu vou sabendo as coisas”. Renata acrescenta novas distinções táteis para as roupas “às vezes uma tem uma etiqueta a outra não tem, ou uma tem uma alça mais virada do que a outra, ou uma tem uma plaquinha e a outra não tem...”. E Caetano diz que identifica cor e modelo das suas camisas por atributos tais como costura, detalhe na manga, abertura na lateral. A TO dá dicas para uma reabilitanda sobre organização de armário: 

Posição do cabide - gancho com a ponta voltada para dentro, fica mais fácil de tirar e botar.



Organizar a roupa por ordem de tamanho. Paletó primeiro, mais perto da parede do armário, depois camisa de manga comprida, manga curta, calças. Na parte feminina - vestidos longos primeiro, vestidos curtos, saias. Sempre do maior para o menor. Vai diminuindo.



Decorar as roupas pelos detalhes. Exemplificou com a blusa que estava vestida. O tipo de tecido específico, os detalhes da blusa que a identificavam como sendo a blusa do fluminense. O brasão, o símbolo da Unimed, o símbolo da Adidas, as listras, a posição do escudo. Só o emborrachado do sìmbolo da Adidas já “mata” a blusa. A gola, que é em V.

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A reabilitanda que estava sendo atendida disse que toma o maior cuidado para não vestir blusa do lado avesso: passa a mão na costura, na etiqueta, no tipo de tecido de dentro e de fora para se certificar que não está do lado errado. Camila criou suas próprias estratégias de arrumação do armário depois que perdeu a visão. Entre elas, organizar as roupas de acordo com o material dos cabides se de plástico ou de madeira. Pendura alguma coisa diferente no cabide - um cordão, um barbante, um colar - para identificar, entre dois vestidos semelhantes, que o estampado é o que está com cordão pendurado. Segundo ela: "tudo tem saída. Por isso que a gente tem que ter tempo e ter uma memória boa, estar sempre memorizando aquilo". Dora desenhou ela mesma o seu closet e desenvolveu uma gaveta com 15 subdivisões internas para arrumar coisas menores, peças íntimas, bijuterias. Beatriz vai me mostrando o seu armário e diz que é mais bagunça do que organização, igual a qualquer outro. Não faz marcação na roupa e evita comprar peças iguais. Vai tocando em cada uma, reconhecendo e me descrevendo: "essa aqui é preta, cheia de coisinha dourada, essa é uma jaqueta jeans, essa meio amarrotadinha é listadinha de preta com verde, essa outra eu sei que é estampada, aquela é azul". Mas diz que às vezes erra, acha que é uma coisa, mas é outra. Para ela é suficiente saber se é estampada ou se é lisa e azul. Na hora que compra sempre pergunta exatamente como é, mas esquece depois. Lembra se é estampada ou não, mas o tipo exato de estampa não importa tanto. De vez em quando, no trabalho, pergunta para alguém - 'gente, que cor é essa blusa mesmo, hein?'. Cada um parece criar suas próprias estratégias na hora de escolher a roupa que quer comprar em uma loja. Dentre os critérios que participam na seleção de uma boa ou má combinação, não é necessariamente o visual que predomina. Camila conta muito com a irmã. Ela mesma percebe o tecido das roupas, mas diz que sua irmã sabe identificar aquelas que têm a “sua cara”. Só que a parceria não é de mão única, a irmã também conta com sua ajuda para comprar as roupas dela e Camila dá sua opinião: “ó, posso falar uma coisa? Isso aqui não vai ficar legal em você não, não tem bom caimento, esse pano é muito grosso, quer ver? Vai lá e experimenta”. A irmã volta e fala “ih, é mesmo, não teve não”. A irmã se surpreende e conta para as pessoas que acha incrível Camila saber se a roupa vai ficar boa, se vai ter caimento ou não, pelo tato e pelo tipo de tecido. Ao longo das conversas, pelos próprios exemplos que os pesquisados vão me mostrando, pelas histórias que vão se lembrando, vai aparecendo uma estética tátil, que 138

nem sempre condiz com critérios de beleza estritamente visuais, e outras vezes mesmo contradiz. Ana gosta de tecido de laise, um tecido leve de algodão, com aplicação de bordados, que pode ser vazado. Ou então gosta de tecidos com bolinhas, que tenha uns babadinhos. Segundo ela não é nada que chame a atenção, não é nada enorme, gosta de roupa suave. Mas com alguma aplicação de miçanga, uma textura, um broche ou então umas pedrinhas. Pela estética, acha bonito. A blusa pode até ser lisa, mas que tenha algum lacinho, algum detalhe. Já Dora gosta de inventar as combinações das suas roupas - cores, bijuterias, aspectos táteis. Tem dias em que está mais alegre ou mais ousada, com vontade de misturar. Descobre se a ousadia saiu ou não do jeito que queria pelos comentários. Mas se fica em dúvida e quer saber antes de usar, pergunta para alguém. O alguém, entretanto, não pode ser qualquer um. Geralmente pergunta para mais de uma pessoa e de acordo com o que chama de “estilo” ou “personalidade” dela. Algumas são mais rígidas, só vão falar que está combinando quando estiver muito “em cima”. Outras são mais tolerantes, tem uma gama maior para poder combinar. Algumas vão pra umas combinações mais modernas, determinadas pessoas vão ficar nas mais antigas... E se tem aqueles dias em que todo mundo está vestido com uma mesma cor no trabalho ou num encontro social, ela geralmente está nesse grupo. Um dia Ana, se vestindo com pressa, pegou uma blusa e uma calça cujas cores sabia que combinavam, digamos que fosse azul e branco, não lembrava. Mas alguma coisa lhe pareceu estranha: o tecido da blusa não estava combinando com o tecido da calça. Ninguém repara nisso, ninguém falou nada o dia todo, mas para ela tem tecido que combina e outros que não e naquele dia não estavam combinando. Não se vai a uma festa com calça de malha e uma blusa "linda, toda social". A cor pode até combinar, mas o tecido não. "Já imaginou você pegar uma blusa assim de seda e botar com uma calça de malha? fica esquisito". Dora foi pegar um exemplo vivo de um efeito que estava me explicando: quando visualmente algo tem uma aparência, mas no tato é outra. Voltou com uma saboneteira. "O pessoal diz que essa saboneteira, quando é novinha, não parece que é de plástico, parece que ela quebra, que é de vidro, entendeu?". A saboneteira é o exemplo de algo que visualmente é uma coisa, mas que no tato jamais daria a impressão de que pudesse ser nada semelhante a vidro. Mesmo que dissessem que é toda transparente ela nunca acharia, pegando, que visualmente parece vidro para ninguém, nem para os mais distraídos. O mesmo "efeito saboneteira" acontece com as pessoas e com muitas outras 139

coisas que visualmente dão uma aparência e no tato é outra. Às vezes acontecia de implicar taltilmente com alguma peça sua e as pessoas dizerem que visualmente estava legal - uma roupa, uma bijuteria, uma caixinha de guardar. Lembra que ficava se obrigando a achar que estava legal só porque visualmente diziam que estava. De uns tempos para cá se libertou: “não, peraí, mas quem manda aqui sou eu!”. Se o tato não está legal, não quer saber se visualmente está, problema de quem vê. Quando é o contrário e as pessoas dizem “olha, está desbotada, não ficou bom”, ela também não usa. Então, quando no tato não está bom, visualmente pode estar ótimo para quem quiser. Para ela não.

2.2.1 Técnicas desenvolvidas em práticas diárias Líquidos – jato, pingo, ouvir e sentir uma gota Dora me mostra o procedimento que criou para contar as gotas dos remédios que eventualmente precisa tomar. “eu pego um copo descartável (de plástico) e pingo direto no copo, depois eu boto a água, porque quando a gente pinga no copo ele faz „tac, tac‟, dá para ouvir. Você ouve e além de ouvir você sente o impacto da gota. O copo é muito levinho, você sente o impacto. Você ouve e sente a gota”. Comenta que a técnica não serve para pingar adoçante no café, porque teria que tomar sempre no copo descartável, ou passar de um copo para outro, o que acha chato. Como não usa adoçante no café, não desenvolveu a técnica, mas acredita que cegos que usam devem ter desenvolvido suas técnicas ou então usam pozinho ou pílula. A solução de Camila para seu café é dar “jatada” de adoçante. Como não vê os pingos, ela aperta e solta. Depois derrama da garrafa devagarzinho, já sabe mais ou menos a quantidade. Se ficar muito doce, derrama mais um pouco de café. Sólidos – hábitos relacionados à comida e higiene Primeiro dia do final de semana que passei vendada na casa de Dora. Primeira refeição. Um lanche com pães, queijos, cenoura que cortamos em rodelas, entre outras coisas. Acontecimentos que suscitam uma compreensão encorporada de formas de fazer. De repente, no meio do jantar, me dou conta que não tinha nem considerado a

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hipótese de usar o garfo, tinha deixado de lado e comia tudo usando as mãos46. A conversa que surge daí versa sobre acessibilidade e a forma ocidental de comer de garfo e faca. Naquela situação parece muito mais natural comer com as mãos. Impossível não lembrar da análise de Elias (1994) sobre as práticas alimentares e os hábitos relacionados aos atos de comer como fenômenos socioculturais historicamente constituídos, que variam de acordo com a cultura, as convenções sociais, as condições geográficas. E do efeito do processo civilizador sobre os hábitos alimentares e costumes à mesa: quanto mais avançado o estágio de civilização mais o alimento e as práticas a ele associadas se distanciam das formas naturais. A psicóloga do IBC conta sobre uma atividade da escola chamada “cardápio vivo” - aquilo que a criança vai comer na hora do almoço vem primeiro na bandejinha, cru. “Como a criança vai saber que o feijão que ela está comendo no prato não é daquele jeito, se ela não viu?”. A vivência é o canal de conhecimento nessa atividade. O feijão é um grão duro, que vai na panela, fica cozinhando um tempão, para virar aquilo que ela vai comer na hora do almoço. Aprender o formato dos legumes. A carne? Não é a carne do ensopadinho, que vem toda pronta, é aquela coisa lá que a criança pega, que vem mole, esquisita, com outro cheiro. Como lembra Lévi-Strauss (1979), a comida não é apenas “boa para comer”, mas também “boa para pensar”. O ato de cozinhar representa a tìpica transformação da natureza (cru) em cultura (cozido) e na atividade do “cardápio vivo” é pela vivência tátil que a criança cega acompanha como é feita essa transformação em sua própria cultura. Camila conta que teve dificuldade de aprender a comer depois que perdeu a visão, ficava se perguntando como ia fazer. Quando estava em casa, a irmã alertava “Camila, chega o garfo, pega um pouquinho do lado direito senão vai cair do seu prato”. Hoje, está sempre arrumando a comida para não cair para fora do prato. Ela mesma desenvolveu seu método – rodar o prato - o melhor jeito que arrumou. Exercitou em casa e deu certo. Deu a dica para uma amiga que dizia que nunca mais comeria fora porque tinha vergonha de botar comida pra fora do prato – é um exercício, me disse. Depois que conto para Dora que estou comendo com as mãos, ela comenta:

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Mauss (2003), na enumeração biográfica que faz das técnicas do corpo, cita as técnicas do consumo, especificamente a de comer, mencionando a surpresa de Napoleão III quando, mesmo diante de sua insistência, o xá recusa o uso de um garfo de ouro, preferindo o prazer de comer com as mãos.

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Agora é que você viu porque que eu ando com aquele alquinho (álcool gel), porque é tão importante lavar a mão toda a hora. As minhas toalhinhas de secar a mão ficam todas imundas, nojentas, porque toda a hora eu lavo e enxugo, lavo e enxugo, não tem outro jeito. Não tem. Eu tenho que lavar a mão mesmo, bem lavada, eu tenho escovinha nos dois banheiros, sabe aquela escovinha de lavar a unha? Quando eu sinto que entrou alguma coisa, que eu mexi muito com pó de café, com alguma coisa... ou peguei um lixinho ali da pia, ou meti o dedo na terrinha ali da planta para saber se estava boa... quando eu sinto que alguma coisa pode ter entrado um pouco mais eu vou lá e passo escovinha. Não tem jeito, na cozinha eu vou controlar mesmo as coisas com a mão. Porque eu vou fazer o quê?

2.3 As práticas da cegueira em um paradigma indiciário

Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições ele aprendeu a reconstruir as formas e os movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas. (Ginzburg, 2009: 151).

Ao associar os métodos de Morelli para a identificação de quadros originais na arte aos do detetive Sherlock Holmes, famoso personagem de Conan Doyle, e aos de Freud, nos rudimentos do método psicanalítico, Ginzburg (2009) delineia um saber de tipo venatório que faria parte de um modelo epistemológico comum, articulado em disciplinas tão diferentes quanto a medicina, as práticas de adivinhação ou as ciências humanas. As origens de tal saber são remetidas pelo autor às técnicas dos caçadores. O que o caracteriza é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar uma realidade complexa não experimentável diretamente. O caçador teria sido o primeiro a “narrar uma história”, por ser o único capaz de ler uma série coerente de eventos nas pistas mudas deixadas pela presa. O método indiciário é centrado sobre resíduos, dados marginais, pormenores normalmente considerados sem importância ou mesmo triviais que fornecem a chave para captar realidades mais profundas. Formas de saber caracterizadas pela presença ineliminável do qualitativo, sutilezas não-formalizáveis, um conhecimento que nasce da concretude da experiência. Os conhecimentos, as técnicas, as dicas, as pistas desenvolvidas nas práticas de reabilitação e pelas próprias pessoas cegas nas suas atividades cotidianas parecem se aproximar aos métodos desse modelo indiciário apresentado por Ginzburg. Reconhecer as roupas pelos detalhes, a boca do fogão pela temperatura do fogo, deduzir que a luz

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apagou pelo barulho do exaustor, prever a chegada do metrô pelo seu som, entre tantos outros exemplos de conhecimento do todo pela parte, das causas pelos efeitos. Uma história contada por Dora delineia a aproximação. Um dia chegou em casa e sentiu um cheiro de queimado. Sua amiga que morava com ela e outras pessoas presentes na ocasião não sentiram nada. Ela insistiu que sentia o tal cheiro de queimado. Depois de algumas associações, descobre o que aconteceu:

Eu tinha deixado a chave do apartamento com uma ex-vizinha minha, muito amiga, que já tinha se mudado. Ela tinha um neném pequeno, ele tinha nascido temporão, tinha problema de saúde e o médico dela era perto de lá. Eu tinha deixado uma chave com ela para quando ela fosse ao médico e precisasse lavar o garoto, trocar ele, usar um banheiro, alguma coisa assim, ela poder ir lá em casa. E ela tinha botado o bico da mamadeira para ferver e deixado queimar. Foi no banheiro dar o banho no garoto, esqueceu e o bico queimou. Só eu que senti o cheiro de queimado. Já tinha resolvido tudo, já tinha limpado. Mas o cheiro tinha ficado. Ninguém descobriu que tinha acontecido aquilo, só eu. Tem umas coisas assim.

Sousa (2004) considera que, em uma análise semiótica, a comunicação do indivíduo cego com o mundo se serve abundantemente de signos indiciais - olfativos, sonoros, cinestésicos - que surgem como pistas variadas, portas informativas, pontos de referência que indicam lugares, atualizam espaços, denunciam perigos ou confirmam informações. Em um paradigma indiciário o rigor não só é inatingível como também indesejável, já que é uma forma de saber ligada à experiência cotidiana, onde a unicidade e o caráter insubstituível dos dados são decisivos (Ginzburg, 2009). Trata-se de formas de saber tendencialmente mudas, pois suas regras não se prestam a serem formalizadas. No conhecimento prático desenvolvido por pessoas cegas em experiências cotidianas podemos reconhecer essa capacidade de passar do desconhecido ao conhecido com base em indícios. Formas de discernimento e sagacidade que, mesmo superando-os, está arraigada nos sentidos. A exploração tátil de um determinado objeto quando estive vendada na casa de Dora, o telefone sem fio, revela características específicas desse conhecimento por meio do tato, que difere fundamentalmente de sua apreensão visual. Dora fala da relação das partes com o contexto para identificar o botão de “ligar” em seu telefone.

As pessoas às vezes querem mostrar uma coisa para a gente e aí já pegam a mão da gente e botam num detalhe, de repente bota em um outro detalhe, mas aquilo fica um pouco sem sentido se a gente não tiver o tempo de se relacionar com o contexto. Tipo agora, entendeu? Eu já ia pegar o teu dedo e já dizer assim „olha, é esse botão aqui que você tem que apertar‟. Você nem sabe direito, não adianta eu botar o seu

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dedo naquele botão. Interessa você saber aquele botão em relação aos outros. Eu acho que as pessoas fazem isso pela referência visual delas, porque para quem está vendo, você aponta ali. Mas não é a mesma coisa, porque o tato não é igual à visão, o tato é analítico, a visão é sintética.

Os conhecimentos práticos-cotidianos desenvolvidos por pessoas cegas – organização da geladeira, escolha de roupa, lidar com dinheiro – e as suas formas áudiotáteis de atuação e exploração do mundo, parecem próximas do paradigma indiciário proposto por Ginzburg (2009). Um corpo de saberes locais em que indícios mínimos são elementos reveladores de fenômenos mais gerais, onde estão envolvidas as operações intelectuais de análise, comparação, classificação. Outro aspecto desse conhecimento, o fato de ser analítico, insinua contornos que podemos relacionar a uma temporalidade específica.

2.3.1 Velocidade, tempo e repetição

Nos atendimentos da reabilitação, nas experimentações de olhos vendados, nos textos das ciências cognitivas e neurociência, nas entrevistas e conversas com pessoas cegas, um ponto aparece como fundamental e que talvez condicione as diferenças nas experiências perceptivas em um paradigma visual ou não visual - o tempo do fazer. A TO de AVD fala sobre essa questão: Tem uma coisa que eu digo que é fundamental para qualquer deficiente visual, a calma. Falo pra eles que eles precisam estar sempre na velocidade número 1 do créu, nunca na número 5. Se batia um bolo em 10 minutos, agora vai bater em meia hora. As coisas tem que ser feitas com calma, tem que ser lento, tem que ter paciência.

A TO coloca referenciais comparativos de velocidade e tempo - 5 para 1, 10 para 30. As duas medidas, ainda que aleatórias, comparam formas de desempenhar uma ação a partir de dois estados corporais específicos: com mais calma, vagarosamente, depois que se perde a visão, mais ágil, mais veloz, quando a experiência perceptiva dominante era a visual. O depoimento nos remete ao que foi dito no capítulo anterior sobre as experiências háptica e auditiva em trabalhos das ciências cognitivas. Elas são descritas como sendo necessariamente sequenciais e mais lentas do que a visual. A superfície que pode ser tocada simultaneamente pelas mãos é limitada (em uma comparação com a

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experiência visual) e a experiência tátil se restringiria ao espaço imediatamente ao redor do corpo (Hatwell, 2003). Tanto o depoimento da TO quanto os testes que medem o desempenho cognitivo de cegos, trabalham com uma relação entre velocidade, tempo e movimento na realização de uma ação. Comparam formas de realizar a ação, com ou sem a experiência perceptiva visual. O fator que varia é fundamentalmente a velocidade, se a pensarmos enquanto uma relação entre o tempo e a ação. O conceito de velocidade na física mecânica relaciona a variação da posição de um corpo no espaço em relação ao tempo, significando a distância percorrida por um corpo num determinado intervalo. A ideia de movimento é, portanto, fundamental para esse conceito. Pensando na física, uma medida que pode nos dar um parâmetro de comparação entre a realização de atividades com base numa experiência perceptiva visual e numa experiência perceptiva auditiva seria a diferença entre as velocidades da luz (aproximadamente 300.000 km/s) e do som (340m/s). O biólogo Uexküll (2010), um dos pioneiros da biossemiótica, considera que não pode haver nem tempo nem espaço sem um sujeito vivo. O autor relaciona o conceito de tempo ao ritmo ou estrutura do processo vital. A contribuição da biologia ajudaria a superar a alternativa entre a posição subjetivista (experiência humana, tempo vivenciado) ou objetivista (tempo da física) ao colocar a relatividade do tempo como uma função de fatores biológicos. O tempo não seria subjetivo nem objetivo, mas decorre de ambos em um relacionamento mútuo. A experiência de tempo tem uma profunda influência sobre a experiência do mundo. Dora, algumas horas antes iniciarmos a experiência com venda, alerta sobre o que chama de mudança de paradigma em relação à percepção eminentemente visual ou áudio-tátil do mundo.

Um dos parâmetros que eu acho que é diferente, quando você muda da visão para o tato, ou para a audição, eu acho que muda sabe o quê? Muda o tempo. Porque o tempo que você vai levar para reconhecer, para estabelecer o teu procedimento, é diferente do tempo da visão. Entendeu? Essa variável tempo é que eu acho que as pessoas não sacam que é diferente. É outra coisa. É outro parâmetro. Muda mesmo. Para mim é mudança de paradigma. O tempo é diferente. Quando as pessoas começam a querer me explicar as coisas no tempo delas me dá uma certa agonia, porque eu sei que o tempo que eu vou demorar é diferente do tempo das pessoas, do visual. Aí as pessoas começam a botar a minha mão nas coisas, mas não é botando a minha mão nas coisas, entendeu, porque não tem a ver, eu é que tenho que colocar, é no meu tempo, não é no tempo delas. Eu não tenho que ver pelo tato no mesmo tempo que elas estão vendo pela visão. É outra coisa.

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A prática de ver um objeto pelo tato exige uma temporalidade específica. Como aponta Bourdieu (2011), uma prática se desenvolve no tempo; sua estrutura temporal, seu ritmo, seu andamento e principalmente sua orientação, é constitutiva de seu sentido. O autor compara o tempo da prática ao tempo da música, comparação que nos ajuda a entender a importância da relação entre ação e tempo para a percepção tátil de pessoas cegas. Qualquer manipulação da estrutura temporal de uma música, quer se trate de uma simples

mudança de andamento,

aceleração

ou desaceleração,

impõe uma

desestruturação irredutível por causa de uma mudança de eixo de referência. As práticas perceptivas, tátil ou visual, estão ambas ligadas ao tempo e à ação, mas são temporalidades eminentemente diferentes. Nos agenciamentos que se cria com as coisas ao tocá-las para percebê-las, uma temporalidade não visual estaria possivelmente mais próxima de Aion do que de Cronos. Enquanto o último é o tempo da medida, que fixa as coisas e as pessoas, desenvolve uma forma e determina um sujeito, o primeiro, para Deleuze e Guattari, é "o tempo indefinido do acontecimento, a linha flutuante que só conhece velocidades" (Deleuze & Guattari, 1997: 42). O tempo não pulsado flutuante que é próprio ao Aion é o tempo do acontecimento puro ou do devir, que enuncia velocidades e lentidões relativas, independentemente dos valores cronológicos ou cronométricos que o tempo adquire em outros modos. Aion e Cronos não são o mesmo tempo ou a mesma temporalidade. Aion, infinitivo-devir, tempo interior, envolvido no processo e Cronos, presente-ser, um tempo exterior que remete à distinção das épocas. Na reabilitação e nos manuais de educação de crianças cegas, além da mudança na velocidade das ações e na experiência de temporalidade, fala-se ainda da importância da repetição na aprendizagem - percorrer várias vezes o mesmo caminho, refazer as mesmas atividades. A repetição tem a função de tornar algo conhecido e esse conhecimento – do caminho, de um objeto – é um conhecimento encorporado. Pode também ser associada ao papel da imitação no desenvolvimento de crianças que enxergam. Repetir ou imitar, entretanto, nunca é fazer igual, não é uma réplica ou cópia, tem um caráter inventivo. A repetição está próxima ao papel desempenhado pela reprodução na incorporação de um habitus, de que nos fala Bourdieu (2011) – um processo de reativação prática que se opõe tanto a uma lembrança quanto a um saber. O corpo não representa ou memoriza o passado, ele age o passado, ele o revive.

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No guia “Living and learning with blind childrens”, Harrison e Crow (1993) destacam alguns aspectos que consideram importantes na educação de crianças cegas, sugerindo, entre outras coisas: que sejam usados pontos de referência permanentes para a orientação da criança cega; a necessidade de planejar a exploração da área para a criança se tornar familiar e de repetir a exploração; fazer tudo lentamente; ser paciente, a criança precisa de tempo para praticar, o que inclui a possibilidade de cometer e corrigir erros. Na reabilitação, a TO de OM diz que “a rotina, a repetição, é essencial para o deficiente visual, para ele conhecer e memorizar. Por isso a gente precisa repetir a rotina várias vezes, fazer o mesmo percurso, para ficar habitual, usual”. A repetição se realiza na prática, é memorizada pela ação, estando nesse sentido mais próxima de uma encorporação do que de uma lembrança. Como coloca Bourdieu, o modus operandi que define o domínio prático é transmitido na prática, na condição prática. A hexis corporal fala imediatamente à motricidade. Não se imitam modelos, mas ações.

Dissimetria de tamanho entre tato e visão Um participante de uma das oficinas teatrais que acompanhei, cego congênito, se mostrou absolutamente surpreso quando, nas explicações dadas por outros participantes que enxergam sobre a experiência da visualidade, descobre que existe uma mudança na relação de tamanho, conforme os objetos estejam longe ou perto de quem vê. Para ele não era clara a relação de tamanho, distância ou proximidade das coisas e das pessoas numa tela de TV.

Abrir os olhos depois de um dia e meio vendada. Um fenômeno estranho que observo pela visão em cada pedaço de ambiente percorrido anteriormente com o tato: a desproporção de tamanho. A bancada da cozinha me parecia muito maior antes, do que agora com os olhos abertos. A mesma coisa a pia do banheiro. Quando eu percorria com o tato, parecia mais extensa. O percurso do fim da bancada até o início da pia dava a nítida sensação de ser mais largo, pouco parecia com o caminho curto que o visual agora me apresentava. Não correspondia - o tamanho vivenciado antes e o tamanho que agora via. Tinha inclusive comentado com Dora, ao lavar louça com olhos vendados, que o escorredor parecia estar distante da pia, como se o espaço ali fosse amplo. Quando observo sem a venda o que a visão me diz é que o escorredor fica praticamente colado a pia. O tamanho era diferente. É como se pelo tato as coisas fossem maiores.

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Essas passagens revelam momentos de espanto com a descoberta de uma mudança de escala, uma diferença métrica de distância, entre a percepção visual e tátil de mundo, que tem esse efeito de desproporcionar o tamanho das coisas para alguém que, no meu caso, está muito mais adaptada ou treinada a percebê-las visualmente47. O tato como o olhar aproximado de Bavcar (2003), a indissociabilidade entre sujeito e objeto, entre a percepção tátil e a própria coisa percebida. Acontece na fronteira, acontece no contato. Os olhos precisam de alguma distância para que o visual seja percebido. Mesmo que um fragmento de objeto e não o todo, ele não pode estar colado ao rosto. Quando botamos uma venda e abrimos os olhos não se enxerga a própria venda, não se percebe muito mais do que luminosidade.

*** O mosaico de conhecimentos práticos de pessoas com cegueira e o que foi dito sobre um paradigma áudio-tátil de percepção de mundo, que envolve as ideias de pistas, velocidade, repetição, sequência, lentidão, tempo e distância, podem ser aproximados ao que dizem alguns autores sobre a experiência do barroco. O barroco trabalha desfazendo fronteiras. Tendo como exemplo a escultura “o êxtase de Santa Teresa”, que se encontra na Capela Cornaro, Law (2011) afirma que, ao contemplá-la, é mais ou menos impossível ter uma visão geral da capela: não se pode chegar o suficientemente longe para vê-la como um todo ou fotografá-la. A declaração expressa a relação de proximidade que o barroco coloca. Proximidade que também faz elidir a divisão entre dentro e fora. O artifício da dobra separa dentro e fora, mas também desfaz a separação. Experimentar, no barroco, é estar fora e dentro ao mesmo tempo. É aceitar e apreciar isso como a condição do conhecimento. Um conhecimento que pode ser comparado ao conhecimento tátil como o define Bavcar (2003). O tato seria como um olhar aproximado, chegado ou encostado, aquele que não provoca uma separação inevitável entre o sujeito e o objeto do conhecimento. O toque tátil seria o sentido da verdade, uma vez que não pode negar a materialidade das coisas, não pode confundir a imagem com o seu substrato material. A proximidade tátil seria o sinal mais seguro de uma existência real.

47

Em um teste realizado em estudo da área de neurociência, Vanlierde e Wanet-Defalque (2005) descobriram que o uso que cegos tardios fazem do processo de imagem visual é similar ao de videntes, com a diferença que cegos tardios tendem a imaginar os objetos de um ponto de vista mais aproximado, o que os autores atribuem à interferência da experiência tátil extensiva dos objetos.

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A perspectiva aproximada de um olhar tátil pode ser identificada em algumas das imagens registradas por fotógrafos cegos que participaram da exposição Sight Unseen48, entre eles o próprio Bavcar. O motivo fotografado muitas vezes está próximo de quem fotografa, à distância de um braço, ou mesmo o próprio toque aparece explicitado na foto. Proximidade do clique, ausência de uma preocupação com o enquadramento, diluição de fronteiras, indistinção entre parte e todo. Imagens que manifestam um engajamento e também evocam percepções além da visão. A percepção tátil de um objeto o apresenta ao conhecimento aos pedaços pedaços materiais e pedaços, ou instantes, temporais. O barroco histórico, como aponta Kwa (2002), insiste em um realismo fortemente fenomenológico, uma materialidade sensível. Essa materialidade não está confinada a, ou presa dentro, de um único indivíduo, mas flui em muitas direções, embaçando a distinção entre o indivíduo e o ambiente. Há ainda a inventividade barroca, a habilidade de produzir muitas combinações novas a partir de um conjunto limitado de elementos (a blusa azul já não é apenas azul, mas aquela blusa com a alça em formato “nadador”, o pano de algodão, detalhes em miçanga na frente, uma gola em “U” e que também é azul).

2.3.2 Organização e ambiente

A composição do ambiente tem uma importância fundamental no cotidiano de pessoas cegas. Dizer isso não significa que todas as pessoas cegas sejam necessariamente organizadas, mas sim que a organização externa, aquilo que está fora do corpo, interfere na organização interna. Caetano diz que tem que ter um mínimo de organização em casa, para quando busca alguma coisa, saber onde ela está. Embora não se ache uma pessoa assim tão organizada. Muitas vezes coloca as coisas de qualquer jeito, acha que vai encontrar, mas quando procura não lembra onde colocou. Quando acontece isso, espera. Procura em um lugar. Pensa. Procura de novo em outro lugar. Depois em outro... deu o exemplo da bengala. Quando chega em casa, um dia deixa em um lugar, outro dia deixa em outro. No dia anterior à entrevista disse que procurou uma bengala para sair e não encontrou a

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A exposição teve curadoria de Douglas McCulloh e foi realizada no California Museum of Photography entre os meses de maio e agosto de 2009. Algumas das fotografias que se somam ao argumento desenvolvido acima podem ser vistas no anexo, no item “imagens barrocas”.

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que queria. Como mora com outra pessoa ainda pode perguntar 'viu minha bengala por aí?', mas quando morava sozinho ele mesmo tinha que procurar e não tinha mais de quem reclamar 'tiraram isso daqui, caramba!'. Às vezes cego bota a culpa nos outros e a culpa é dele mesmo. Agora vai tentar deixar as duas bengalas sempre no mesmo lugar quando estiver em casa. Dora conta que sua casa também fica bagunçada, mas que existem diferentes tipos de bagunça. A dela é uma bagunça organizada: A bagunça da minha casa ela não é ostensiva. Bagunça ostensiva é aquelas casas que você não pode se mexer, porque onde você se mexe vai derrubar coisa. Ou por bagunça ou porque as pessoas colocam mesmo muita coisa. Geralmente são as duas coisas. Me dá falta de ar aquilo, não pode abrir os braços, não pode se movimentar. Isso eu chamo de ostensivo, isso eu não gosto não. A bagunça da minha casa ela é diferente, é assim, você abre uma gaveta, ela pode estar bagunçada, o armário pode estar bagunçado. Está dentro da onde tem que estar, mas está bagunça. É uma bagunça setorial. Meu quarto você entra, você anda, pode passar o aspirador. É uma bagunça, mas é uma bagunça organizada. As minhas bagunças são desse porte.

A importância da organização do ambiente vai se tornando mais explícita em práticas cotidianas, como as estratégias para cozinhar, a forma de organizar a geladeira, o jeito de lavar a louça. Jair conta que é ele quem faz a comida em casa, mas para cozinhar tem que estar sozinho na cozinha. Se alguém quiser entrar para beber água ele pede para a pessoa esperar na porta e ele mesmo leva o copo d‟água até lá. Se alguém mexe, desorganiza. Quando faz compras no mercado é ele mesmo quem arruma. Sabe tudo o que está na geladeira porque coloca tudo organizadamente. Tempera a carne, corta e divide em saquinhos. Coloca uma parte embaixo e outra parte no congelador; organiza as coisas nas prateleiras; escolhe um lado para a carne, outro para o frango, carne seca no meio. Beatriz me mostra a sua geladeira. Na prateleira do congelador estão empilhados pratinhos de isopor, com carne, frango, carne moída. Ela tinha ido ao mercado naquele dia, então até o momento sabia o que era porque ela mesma tinha guardado. Mas diz que é terrível porque os pratinhos são iguais e quando está congelado não tem como diferenciar. Se alguém mexe (a filha, a diarista) complica, ela já não sabe mais nada. Para evitar, antes de congelar, costuma tirar as carnes dos pratinhos e colocar em potes, porque assim, pelo formato ou tamanho dos potes, lembra onde colocou cada coisa. Jair diz que hoje em dia dia quem mora com ele não tira mais as coisas do lugar, porque ele pede muito. Até o chamam de chato por causa disso. A geladeira, por exemplo, claro que pode abrir para beber água - se ele não estiver cozinhando - mas 150

terminou de beber água? É para botar a garrafa d'água no mesmo lugar, lavar o copo e colocar de volta. No lugar. Para ele tem que ser desse jeito, porque se mexer não sabe mais como é que está. A sua casa toda é assim, pelo menos na parte que ele mora. Se quer uma agulha, vai até o lugar certo e lá está ela. O que poderia parecer chatice na verdade é um ponto primordial na vida de uma pessoa cega. Uma das TOs de AVD disse que a organização é fundamental para a segurança, para a proteção no dia a dia, para saber onde as coisas estão. É importante que a própria pessoa organize ou esteja junto quando alguém estiver arrumando as coisas dentro de casa, acompanhe o lugar onde colocou, diga de qual jeito prefere. Se mudar algo de posição, tem que avisar para que lugar mudou. Comenta que qualquer um fica nervoso quando tiram as suas coisas do lugar, imagina como é para uma pessoa cega? Nesse ponto, deficiente visual que mora sozinho consegue se virar melhor do que aquele que mora com muita gente. Ele mesmo organiza as coisas como quer, sabe dar o seu próprio jeito. Quando mora muita gente nada fica do jeito que deixou, ainda mais em casa com criança. Enquanto a TO discorre sobre o assunto, a reabilitanda que está junto conosco entra na conversa e diz que naquela mesma semana a pessoa que trabalha em sua casa tinha arrumado a cozinha e mudado todas as coisas de lugar, até o lugar de colocar os talheres. Contou que ela, quando entrou na cozinha, ficou arrasada; não encontrava nada, ficou nervosa e até chorou. Disse que “essas coisas „piram‟, o sistema nervoso fica abalado, aí mesmo é que eu perco tudo, esbarro em tudo, quebro coisa”. Podemos entender a dramaticidade do último relato se levarmos a sério o que já dizia Bateson (1989) a respeito da separação artificial entre mente e matéria. O autor considera monstruoso tentar separar o intelecto das emoções e igualmente monstruoso querer separar a mente externa da mente interna, ou a mente do corpo. Para Bateson, o mundo mental, a mente, é um mundo de diferenças e de processamento de informações que não se limita pela pele. As vias de mensagens que estão fora da pele devem, junto com as mensagens que transportam, ser incluídas como parte de um sistema mental. O autor sugere que a flexibilidade do ambiente deve ser incluída na flexibilidade do organismo, pois a unidade mínima de sobrevivência é o organismo-em-seu-ambiente. A mente individual é imanente, mas não só ao corpo. É imanente também às vias de mensagens que se dão fora. O autor sustenta uma ideia de mente que se expande ao que é externo ao corpo. As fronteiras do "eu", para Bateson, foram equivocadamente traçadas. 151

Clark e Chalmers (1998) são autores que seguem um questionamento parecido – onde é que termina a mente e o resto do mundo começa? Defendem uma resposta para a pergunta a partir do que chamam de externalismo ativo, baseado no papel ativo desempenhado pelo ambiente na condução de processos cognitivos. Os autores acreditam que o organismo humano pode se vincular a uma entidade externa criando um sistema acoplado que pode ser visto como um sistema cognitivo. Todos os componentes desse sistema desempenham um papel causal ativo e em conjunto eles governam o comportamento da mesma forma que a cognição usualmente faz. Se removermos o componente externo, ou, trazendo para a questão da organização do ambiente para pessoas cegas, se mudarmos as coisas de lugar sem avisá-los, a competência comportamental do sistema acaba. A tese dos autores é que esse tipo de processo de acoplamento conta, de forma equivalente, como um processo cognitivo, seja ou não realizado inteiramente na cabeça. Quando Jair cozinha, os aspectos externos relevantes estão ativos, desempenhando um papel crucial no aqui e agora. A organização da geladeira de Jair ou de Beatriz e da cozinha da reabilitanda, com os lugares específicos para água, copo, talheres, carnes, os potes de formatos diferenciados, todos esses elementos, mesmo que Jair, a reabilitanda ou Beatriz não estejam diretamente interagindo com eles naquele momento, estão acoplados aos seus organismos, tendo um impacto direto neles e em seus comportamentos. Juntos, podem ser considerados sistemas acoplados, como sugerem Clark e Chalmers. Os aspectos externos de um sistema acoplado desempenham um papel não eliminável – se mantemos a estrutura interna, mas alteramos os aspectos externos, o comportamento pode mudar completamente. Ver a cognição como estendida não é tomar uma decisão meramente terminológica, faz uma diferença significativa para a metodologia da investigação científica. Clark e Chalmers indicam uma expressiva consequência, moral e social, quando se leva a sério esta concepção que, para pessoas cegas, parece absolutamente pertinente. Em alguns casos, interferir no ambiente de alguém pode significar o mesmo que interferir na sua pessoa. Uma vez que a hegemonia da pele e do esqueleto for ultrapassada os autores sugerem que poderemos ver a nós mesmos como criaturas do mundo. Criaturas que formam sistemas estendidos: acoplamentos de organismos biológicos e recursos externos.

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2.4 O corpo estendido de cegos

Como poderia ser ameaçado pelas máquinas? Ele as criou, transportou-se nelas, repartiu nos membros das máquinas seus próprios membros, construiu seu próprio corpo com elas. Como poderia ser ameaçado pelos objetos? Todos eles foram quasesujeitos circulando no coletivo que traçavam. Ele é feito desses objetos, tanto quanto estes são feitos dele. Foi multiplicando as coisas que ele definiu a si mesmo. (Latour 1994, 136)

Em 1991, antes da disseminação generalizada de computadores, internet, tablets, celulares com câmaras digitais e inúmeras outras invenções que redimensionam a ideia de acoplamento organismo-máquina, problematizando fronteiras como natureza e cultura, Haraway (1991) já escrevia sobre as tecnologias de comunicação e as biotecnologias como ferramentas cruciais no processo de remodelação de nossos corpos. Para a autora, no final do século XX já éramos todos quimeras, híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; já éramos todos ciborgues. Clark (2003) também defende que somos todos ciborgues, não meramente no sentido superficial de combinar carne e ferro, mas no sentido mais profundo de sermos simbióticos humano-tecnológicos. Sistemas de pensamento e razão cujas mentes e corpos estão espalhados por cérebros biológicos e circuitos não-biológicos. Para o autor, seres humanos são ciborgues desde o nascimento. Nos dias atuais é difícil imaginar corpos que não sejam já marcados, equipados e estendidos por dispositivos. A proliferação de objetos híbridos que não podem ser considerados nem totalmente sociais nem totalmente naturais foi apontada por Latour (1994) como efeito colateral de um paradigma que já não mais se sustenta – a de uma separação radical entre natureza e cultura, humanos e não-humanos. A teoria do ator-rede considera a sociedade, as organizações, os agentes e as máquinas, todos como efeitos gerados por redes de materiais diversos, não apenas humanos. Como indica Law (1992), nesta teoria qualquer agente pode ser visto como um produto ou efeito de uma rede de materiais heterogêneos. Essas redes são compostas não apenas por pessoas, mas também por máquinas, animais, textos, dinheiro, arquiteturas – quaisquer materiais. Law insiste que quase todas as nossas interações com outras pessoas são mediadas por objetos. Utilizando a comunicação como exemplo, o autor aponta o computador, o livro (na comunicação autor-leitor), o telefone, a carta, como alguns dos objetos mediadores que participam da interação. Para a teoria do ator-rede essas várias

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redes participam do social. Elas o moldam. E, de forma mais fundamental, elas são necessárias para diversos tipos de relacionamentos sociais. Moser (2005) acredita que ciborgue é uma metáfora para aquilo que é mais de um, mas menos que muitos. Uma metáfora para uma entidade que é ao mesmo tempo máquina e humana, mas é também uma entidade única, uma entidade encorporada. Nas páginas precedentes exploramos a participação de diversos tipos de objetos na formação de um corpo cego, destacando especialmente qualidades específicas dos materiais que provocam determinados efeitos - a habilidade de perceber diferenças e ser afetado por elas - quando em interação com os corpos. A intenção nesse momento é considerar algumas hibridizações locais dos organismos com instrumentos, tecnologias, máquinas, técnicas, objetos, em relações cotidianas da cegueira. Nessas interações, (d)eficiências são criadas, atuadas, deslocadas, adaptadas, transformadas.

2.4.1 Marcadores

Na linha das formas de organização do ambiente, alguns acessórios podem ser utilizados por pessoas cegas para marcar objetos e aparelhos, especialmente quando não trazem embutidos em seu design original uma forma não visual de identificação dos controles ou comandos. Interruptores de luz, CDs, botões on/off em aparelhos como climatizador de ar, botões de contagem dos minutos do microondas são alguns exemplos. Há maneiras mais artesanais ou mais tecnológicas de fazer as marcações. Formas especialmente desenvolvidas para isso ou formas adaptadas. Depende não só de preferências individuais, mas também das possibilidades financeiras para comprar determinados aparelhos ou mesmo do acesso à informação para saber que eles existem. Dora me mostra como faz para marcar aparelhos dando o exemplo de um climatizador de ar. Ela usa fitas para rotulador do tipo rotex, onde escreve o que precisa em Braille. Explica que o rotex original é utilizado para escrever com letras do alfabeto em alto relevo em fitas adesivas coloridas. Um pequeno aparelho com as letras dispostas em um círculo que a pessoa vai rodando e marcando na fita. Costumava-se usar para marcar informações em diferentes pastas de arquivo, na lombada das pastas. A fita não foi pensada originalmente para ser utilizada como marcador Braille, mas foram feitas adaptações. Ela tem uma reglete, que chama de moderna, em que uma das quatro fileiras dispõe de orifícios especialmente para encaixe da fita. Usa para marcar botões de diversos aparelhos ou então para marcar as caixas dos seus CDs. De vez em quando 154

consegue de pessoas que vão aos Estados Unidos fitas rotuladoras transparentes que são vendidas pela “American Foundation for the Blind”49. Com elas pode rotular aparelhos sem cobrir a parte visual, para uso de outras pessoas. Beatriz me mostra seu microondas e diz que as bolinhas que estão marcando algumas teclas foram trazidas por um amigo dos EUA. Coloca na geladeira e no microondas ou em qualquer outro aparelho em que os controles não possam ser identificados tatilmente. No microondas ela marca o 5 e o 0, o ligar e o desligar. Ao lado do 0 já sabe que fica o botão de 1 minuto. Se quiser botar, por exemplo, 30 segundos, aí tem que calcular o 3 pela posição do 0 ou do 5. O problema é que nem todos os aparelhos podem ser marcados. A sua máquina de lavar ela comprou pela internet e veio com o visor digital que não tem como adaptar. O próprio ciclo de lavagem da máquina tem que ser programado através do visor completamente digital, onde a informação é mostrada virtualmente por trás de um vidro. Já reclamou com a empresa, mandou carta para o setor responsável, quer uma versão acessível, mas até agora não teve sucesso. Sempre fez tudo dentro de casa e agora com essa máquina tem que pedir ajuda para lavar roupa. Com aparelhos eletrônicos também é um problema. Ela adora música e ganhou da mãe um home-theather, mas não consegue utilizar sem ajuda porque os comandos dados pelo usuário via controle ou pelo próprio aparelho aparecem no visor da TV. Não vêm com leitor de tela. Aparelhos eletrônicos, principalmente os digitais, “é tudo dentro de vidro, sem acessibilidade nenhuma”. Para ouvir música em um programa com diversas rádios de um canal de TV precisa selecionar a rádio que quer pelo tipo de música que está tocando, o que às vezes pode levar um tempão. Nesses casos a deficiência é mais difìcil de ser “remendada”. Há ainda as tecnologias específicas. Haraway (1991) já alertava que as novas tecnologias afetam as relações sociais, tanto da sexualidade quanto da reprodução, mas nem sempre da mesma forma. As novas tecnologias desenvolvidas para pessoas cegas também afetam as pessoas de forma desigual: nem todos têm acesso a elas ou sabem de sua existência; nem sempre são disseminadas nacionalmente; a maior parte é desenvolvida em países como EUA ou Reino Unido e depende de importação ou de pessoas conhecidas que viajam e tragam, ou seja, é preciso fazer parte de um círculo

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Organização sem fins lucrativos criada em 1921, com sede em Nova Iorque. Site: http://www.afb.org/default.aspx

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social específico para se ter acesso a elas; dependendo da tecnologia, o seu custo pode ser bastante alto. Segundo Kendrick (2011) um dos desafios mais universais e abrangentes para qualquer pessoa cega é identificar objetos não discerníveis pelo tato. Em qual frasco de compridos está o antibiótico para sinusite e em qual deles está o remédio para pressão alta? Dilemas desse tipo podem ser resolvidos com formas próprias de marcação ou com o auxílio de determinados materiais. Mas, recentemente, foi lançado um produto desenvolvido especificamente para ajudar a resolver esse tipo de problema. O dispositivo tem o formato de uma caneta, que vem com cerca de 200 etiquetas de tamanhos variados50. A caneta pode ser descrita como a conjunção de um escâner de código de barras com um gravador de voz digital. Para usá-la, aponta-se a caneta para uma etiqueta vazia para fazer uma gravação. Cada gravação pode conter até 600 palavras e será associada ao código de barras da etiqueta. O dispositivo tem uma capacidade para armazenar cerca de 70 horas de gravação. A pessoa grava e depois fixa a etiqueta no objeto em questão. Quando quer identificar o objeto, aponta a caneta para a etiqueta, o código de barras é lido e a gravação é tocada. São emitidos sinais sonoros para indicar a execução das operações, os botões são facilmente diferenciáveis pelo tato e a caneta desliga sozinha quando não está em uso por mais de 2 minutos. Dora usa a sua TouchMemo para diversas finalidades. Uma delas é marcar as comidas no congelador. Ela prende uma etiqueta em volta de um pote ou de um saquinho plástico com um barbante ou elástico e grava o tipo de comida e a data em que congelou: "filé mignon ao molho madeira, março de 2012" ou "peru de natal 2012". Além das etiquetas do congelador, tem outras menores que prega na roupa. O modelo de etiqueta para roupa é lavável, só não pode passar a ferro que estraga. Ao invés de bordar letra ou cortar a etiqueta original para identificar a cor de uma blusa, ela usa o dispositivo-caneta - "camisa azul escuro com letras brancas". Vem com um conjunto razoável de etiquetas reutilizáveis, o que é bom já que às vezes calha de "dar um mole" e uma ir para o lixo. Foi o que aconteceu em um de seus aniversários. Tinha algumas garrafas de vinho marcadas com etiquetas e, depois de consumidas, as garrafas

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PenFriend, TouchMemo ou VoiLa foram versões encontradas do mesmo tipo de dispositivo. Kendrick (2011) diz que a PenFriend foi introduzida no mercado em 2009 pela RNIB (Royal National Institute for the Blind) no Reino Unido. Atualmente todas as versões podem ser compradas online e os preços variam de U$ 99 a U$ 189 (verificado em dezembro de 2013).

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acabaram indo embora com as etiquetas junto. Não quis tirar antes porque se não consumissem todas as garrafas ela não saberia mais qual era o vinho que tinha sobrado. Como indica Law (1992) tradução é um verbo que implica transformação e a possibilidade de equivalência, a possibilidade de que uma coisa possa representar outra. As formas de marcação de objetos são recursos que auxiliam numa espécie de tradução de informações originalmente apresentadas em formato visual para informações táteis – saber se a luz está acesa, programar os minutos do microondas, a velocidade alta, média ou baixa do climatizador, identificar o grupo musical de um CD, a cor da roupa, o tipo de vinho, a comida no congelador.

2.4.2 Óculos

Com lentes escuras ou em alguns casos mesmo transparentes, os óculos são objetos constantemente presentes nos rostos de muitas pessoas cegas. Junto com a bengala, um objeto que sinaliza a cegueira. Proteger, sinalizar, disfarçar, embelezar. Muitos são os motivos apresentados para utilizá-lo ou não. Motivos que diferem, outros que se aproximam da forma como é utilizado por qualquer pessoa. Argumentos que deslizam demonstrando o significado escorregadio desse objeto e seu uso entre pessoas cegas. A TO de OM diz que muitos reabilitandos resistem quando ela sugere o uso dos óculos. A resistência é porque ainda não aceitaram a cegueira, já que os óculos é um objeto marcante em pessoas cegas. Para meninos jovens uma alternativa é o uso do boné. Os dois seriam objetos cujo uso ela indica não só por questões estéticas, mas por proteção, para proteger o globo ocular e o rosto de esbarrar em eventuais objetos ou folhagens no deslocamento na rua. Outra alternativa seria a de andarem com a mão levantada, como a técnica da proteção superior que se desenvolve em OM51, mas, além de ser desgastante ficar com o braço levantado, acha que é mais esquisito e seria ainda mais estigmatizante. Caetano não tem globo ocular, teve que tirar por conta do acidente de carro que sofreu. No lugar colocou prótese. Olhos verdes. Usa óculos para proteger os olhos, se

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Como aprendi no curso de técnico de OM, nas técnicas de auto-proteção a pessoa usa o seu corpo como recurso de proteção e segurança. Na proteção superior o braço é colocado paralelo ao chão, na altura dos ombros; o antebraço é flexionado, formando um angulo obtuso de, aproximadamente, 120 graus (altura do rosto); os dedos devem estar relaxados e a palma virada para fora.

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entra muita poeira a possibilidade de irritação é maior. Caetano joga com o tipo de lente dos seus óculos de acordo com o papel que quer desempenhar. Quando quer se "caracterizar de cego", usa óculos escuros. Segundo ele "bengala na mão, óculos escuros, está caracterizado, todo mundo já identifica". Outras vezes sai com óculos de lente clara e aí tem muita gente que confunde, acham que seus óculos são de grau e nem acreditam que ele seja cego. Já Pedro fala que o uso que faz dos óculos não tem a ver com proteção porque acha inclusive que é prejudicial. Se sai andando e por acaso esbarra em alguma coisa, bate com o rosto em um orelhão, por exemplo, os óculos virão de encontro aos olhos e poderão quebrar a lente, machucar os olhos ou ferir o rosto. Conta que com ele já aconteceu e que as lentes daquela mesma armação que usava precisaram ser trocadas quatro vezes. Usa óculos por vaidade. Uma vaidade que relaciona à estética, acha que seus óculos são bonitos e combinam com seu estilo - armação discreta, lentes verdes. Mas uma vaidade que ele também associa à cegueira - usa os óculos para ocultá-la. Como as lentes são escuras, os óculos escondem os olhos. Renata costuma usar óculos escuros por dois motivos. Por proteção, mas no seu caso não somente pela eventualidade de esbarrar em algo, mas para proteger da luz, função original dos óculos escuros – a de proteger do sol. Ela tem fotofobia e qualquer luz muito forte a incomoda. Se estiver no sol sem óculos escuros seu olho arde, fica lacrimejando. O segundo motivo é a aparência. Acha que visualmente sua aparência fica melhor, mais composta. Com os óculos a roupa fica mais arrumada. Mas a aparência não é só pela roupa, é também por esconder os olhos. Embora ache que seus olhos não tenham uma aparência “feia feia”, diz que fica um pouquinho melhor com os óculos. Pergunto o que seria uma aparência “feia feia” e ela responde “ah, não sei, muito sem cor, muito para fora, muito grande”. No entanto, ela diz que ela mesma não acha uma pessoa cega sem óculos feia. Jamais acharia. Dora, Ana, Beatriz e Camila não costumam usar óculos de forma recorrente. Dora não acha que teria um ganho estético, no sentido de ser vista como mais bonita, por usar óculos. Quando usa é ocasional, como alguém que eventualmente coloca um chapéu para "tirar uma onda". Ainda comparando os óculos escuros com o chapéu, identifica uma diferença nos tipos de uso que podem ser feitos desses objetos: "uma coisa é você botar um dia para tirar uma onda. A outra coisa é você ter uma cabeça tão feia que é melhor que você use sempre chapéu". No seu caso, não considera que o seu

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comprometimento nos olhos seja tão sério a ponto de chocar as pessoas e, por isso, não sente necessidade de usar constantemente óculos escuros. Em alguns casos o uso dos óculos pode ter a consequência de encobrir o estigma (Goffman 1975). Encobrimento que pode ser uma estratégia intencional, como no caso de Pedro, ou um encobrimento involuntário e momentâneo, como o efeito eventual percebido por Caetano quando escolhe sair com óculos de lente transparente que, somado à sua prótese, faz com que seja percebido como alguém que enxerga. E ainda é esse encobrimento que colore as ponderações de Renata e Dora sobre o efeito estético de olhos cegos para quem enxerga. Os óculos, escuros ou não, pode ser compreendido como um objeto desidentificador, símbolo que o indivíduo estigmatizado lança mão e que, deliberadamente ou não, manipula uma atribuição negativa e a desvincula dele ao encobrir, ainda que momentaneamente, o seu estigma. Os óculos aparecem como objetos liminares, na fronteira da interação entre visão e cegueira, cuja justificação de proteção celebra bem a sua ambiguidade. Proteger no sentido de “tomar a defesa de” 52 – no caso a sua própria, um autocuidado médico e de segurança. Proteger no sentido de “preservar de incômodo”, “favorecer” a visão dos outros, poupar os videntes do choque, da imagem da deformidade, do monstruoso, daquilo que foge aos seus padrões estéticos de boa aparência. Proteger no sentido de se “resguardar”, de “cobrir” o estigma social da cegueira. 2.4.3 Bengala: objeto-corpo perceptivo53

A bengala, o bastão ou a vara são objetos que serviram como auxiliares de movimento para deficientes visuais ao longo da história. No início do século XX, a bengala começa a ser usada como a conhecemos hoje, na cor branca, como um símbolo para alertar os outros para o fato de que aquele indivíduo é cego54. O desenvolvimento de um método de uso sistemático da bengala branca para locomoção é associado ao esforço do médico oftalmologista americano Richard Hoover

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As expressões entre aspas foram significados apresentados para a palavra “proteger” no dicionário Michaelis de língua portuguesa. 53 Retomarei uma discussão sobre a bengala no capítulo 5, ao refletir sobre a identidade social na cegueira. No momento, portanto, não me deterei nesse tema, preferindo focar nos usos e articulações que se fazem com os objetos. 54 As informações sobre o histórico da bengala branca estão no relatório da conferência "The cane as a mobility aid for the blind" (1972).

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para auxiliar veteranos da Segunda Guerra Mundial que haviam ficado cegos. O treinamento no uso da bengala para detectar objetos e prover proteção é uma fase importante no processo de reabilitação ou na formação de uma pessoa cega. A técnica do toque com a bengala foi desenvolvida por Hoover como uma técnica segura e eficiente de locomoção. Quando executada corretamente fornece proteção contra objetos situados na calçada; transmite características da textura das superfícies em contato com sua ponta ao conduzir as vibrações para o dedo indicador, a mão e os ouvidos; alerta o usuário para mudanças verticais na superfície, tais como declínio, buracos, inclinações. Qualquer omissão ou desvio da execução prescrita da técnica do toque reduz sua efetividade, pondo em risco a segurança do indivíduo. A bengala branca é descrita não apenas como uma ferramenta ou um dispositivo que pode ser utilizado por cegos para alcançar independência, mas também como um símbolo da cegueira. O duplo papel – funcional e simbólico - coloca o objeto numa posição liminar e ambígua de pureza e perigo (Douglas, 1991). Pureza porque o seu uso organiza a locomoção de cegos, a sua incorporação promove a autonomia, a liberdade de ir e vir. Perigo porque, ao mesmo tempo, o uso contamina a sua identidade social, marcando-o como cego e imediatamente acionando os estigmas e preconceitos sociais da cegueira. Procurarei dar conta desses aspectos em diferentes momentos, conforme a pertinência da discussão colocada. Nesse capítulo, enfatizo o caráter humano desse objeto pelo processo de sua inscrição como corpo. A introdução e as técnicas de uso da bengala longa são apresentadas para a pessoa cega nos treinamentos de Orientação e Mobilidade. No caso da criança que nasce cega é indicado o seu envolvimento, desde cedo, em atividades conhecidas como “prébengala”, envolvem experiências preliminares com o objetivo de facilitar a compreensão do uso e a posterior manipulação eficiente da bengala. Dentre essas atividades encontram-se, principalmente, brinquedos de empurrar - carrinhos de boneca, bastão com rodinhas na ponta, banquinhos e cadeirinhas, raquete grande feita com bambolê, carrinho de feira, vassouras, etc. –, os quais exploram posições do braço e do punho, o deslocamento com o auxílio de um objeto e a relação entre o chão, o objeto e o corpo durante o movimento. Bateson (1998) propõe pensar a conduta de locomoção de um cego usando uma bengala como um sistema cibernético, onde a bengala é a via ao longo da qual se transmitem informações de diferenças do caminho. Para o autor, a pergunta sobre o limite do "Eu" - se estaria na fronteira da pele ou situado em algum lugar no meio da 160

bengala - não faz sentido, sendo necessário levar em conta o sistema como um todo - a rua, a bengala, a pessoa, a rua, a bengala, a pessoa e assim sucessivamente. Para alcançar o funcionamento ótimo desse sistema é preciso que a pessoa passe por um treinamento sistemático. Por meio do aprendizado de uma série de técnicas e de sua repetição com o acompanhamento de um profissional, a bengala e o corpo vão aos poucos se tornando uma mesma entidade no processo de locomoção. As técnicas da bengala longa tem a finalidade de habilitar pessoas com deficiência visual a se locomoverem com segurança, eficiência e independência, tanto em ambientes familiares como desconhecidos. A TO que acompanhei diz que alcançar a mobilidade independente e segura é o objetivo máximo dos atendimentos de OM, nem sempre possível para todas as pessoas cegas. O sucesso depende de uma série de fatores, mas o principal é se a pessoa consegue se adaptar corporalmente à bengala e encorporar as técnicas relativas ao seu uso. O primeiro passo, a forma como se segura a bengala. Duas maneiras possíveis são utilizadas para diferentes movimentos e finalidades: (a) empunhadura de lápis: segura-se o cabo da bengala como se segura um lápis, a bengala fica em posição vertical; (b) empunhadura de toque: o cabo da bengala é apoiado sobre a palma da mão, o dedo indicador se estende sobre o corpo da bengala. Os dedos polegar, médio, anular e mínimo se fecham contornando o punho da bengala. Com a bengala em lápis, a pessoa deve erguer a ponta da bengala a poucos centímetros do solo, realizando esporadicamente alguns toques no chão para verificar a distância entre o solo e a ponta da bengala. É utilizada para medir a altura de degraus ao subir escadas ou checar a altura de um meio-fio. A técnica da varredura proporciona à pessoa uma exploração imediata e completa do solo na área próxima ao corpo. Desliza-se a ponta da bengala à frente, verticalmente, e retorna-se até a linha dos pés descrevendo semicírculos. A TO diz que quando o reabilitando tem muito medo de cair em buracos na rua, por exemplo, ela logo ensina a técnica da varredura para que ele possa detectar o buraco e se sentir mais seguro. Quando a pessoa detecta com a bengala algum objeto à sua frente e quer ter mais informações sobre ele, aconselha-se que aproxime o seu corpo da bengala, que permanece em contato com o objeto. Em seguida, deve deslizar a mão livre sobre o corpo da bengala até tocar no objeto e então se faz a exploração. A principal técnica para a locomoção com a bengala, e que garante maior segurança no caminhar, é a técnica do toque, originalmente desenvolvida por Hoover. O 161

objetivo é permitir que a pessoa cega detecte diferenças de níveis e objetos que se encontram no plano do solo à linha da cintura, em ambientes internos e externos, familiares ou desconhecidos. Durante este procedimento, segura-se a bengala com a empunhadura de toque: o dedo indicador apoiado no corpo da bengala, como se ela fosse a sua extensão, a mão inclinada à frente da linha média e afastada do corpo, e o dorso da mão voltado para fora. O movimento da bengala é determinado pela ação do punho, não se deve mexer o braço. Desta maneira, o toque será feito no solo com uma amplitude de aproximadamente cinco centímetros além de cada ombro. Ao deslocar a bengala de um lado para o outro, a ponta da bengala deve ficar rente ao solo. Um dos pontos mais difíceis dessa técnica, ao mesmo tempo fundamental para sua correta execução, é a coordenação pé-bengala (ou toque-passada). Ao caminhar, a pessoa deve sempre deslocar a bengala para o lado oposto do pé que está em movimento. Deve estabelecer um ritmo, sincronizando o toque da bengala no solo com a passada do pé do lado oposto à bengala. A coordenação pé-bengala é a única garantia de que o chão está sendo pré-rastreado antes da pessoa pisar, o que previne o esbarrão com algum objeto ou a queda em um buraco. Quando precisa ter mais informações sobre o solo à frente, a pessoa deve fazer a técnica da varredura. A TO diz que no começo é muito difícil a coordenação entre pé e bengala, exigindo extrema concentração e muitas correções. Aos poucos, com a repetição e a prática, a técnica começa a fluir. Aprender a utilizar a bengala é uma readaptação fisiológica. Não se costumava andar o tempo inteiro com um objeto nas mãos. A bengala interfere em tudo – na tomada de direção, na postura, no posicionamento. Muda o ponto de equilíbrio. Jair sente que depois que ficou cego mudou a sua forma de caminhar. A postura quando anda com a bengala é diferente, o movimento é diferente, diz que balança mais. A bengala, quase-objeto mudo que, no entanto, articula muitas coisas. Sobre ela se diz que vira um prolongamento do corpo, do braço, do dedo. Ela te diz que tem espaço e que você pode andar, que o caminho na frente está livre. Renata conta que andar com ela dá a segurança de que, “antes de você esbarrar, a bengala vai ver o obstáculo”. Camila diz que se alguém levanta a bengala de um deficiente visual na rua é a mesma coisa que colocar, de repente, uma venda nos olhos de quem enxerga. É uma interrupção que interfere diretamente no coletivo híbrido corpo-bengala-caminho, interrompendo a percepção. A reação imediata, segundo Camila, é de não se saber mais onde está, a pessoa fica perdida, o que pode provocar nervosismo e instabilidade. A 162

bengala, no caminhar do cego, faz parte do seu espaço corporal, é como se fosse uma extensão da pele ou do órgão perceptivo do tato. Interferir numa bengala em pleno uso, na comparação de Camila, é cortar uma experiência sensorial e perceptiva que estava em andamento. Para Latour (1994), o humano só pode ser captado e preservado se devolvermos a ele essa outra metade de si mesmo - a parte das coisas. Deveríamos falar em morfismo. São suas alianças e suas trocas como um todo que definem o antropos. Camila, quando chega a um local onde vai ficar por algum tempo, fecha a bengala e escolhe um lugar para colocá-la, sempre à mão. Se está conversando e alguém muda a sua bengala de lugar sem avisá-la, quando coloca a mão para procurar e ela não está lá, fica inquieta. Pede ajuda para encontrar, começa a procurar em todos os lugares. Antes os amigos riam, diziam para se acalmar, comentavam que parecia que ela entrava em pânico. Ela explicava “gente, não é pânico, é que se eu não estiver com ela na minha mão eu não saio daqui. Eu vou para onde sem bengala, vocês podem me dizer? Se vocês me largarem aqui, eu sem bengala, saio por aí dando cabeçada. Sem ela eu não sou ninguém”. Acostumou-se a andar com a bengala e hoje em dia não sai do lugar sem ela, até na cadeira da dentista fica com a bengala dobrada na mão. O processo de encorporação da bengala é resultado do treinamento, mas Camila acha que não é só isso. A bengala se tornou parte inseparável de si a partir da experiência de andar sozinha e descobrir que com ela poderia ir a qualquer lugar. Trouxe liberdade. Não vive sem ela – “Deus me livre” - comenta. A bengala já a livrou diversas vezes de cair em buraco. Antes de começar a usá-la tinha horror de descer qualquer degrau, mesmo que tivesse só 2 cm. Hoje em dia vai com a bengala – “ela „vê‟ para mim a altura do degrau” – e desce direitinho, diz que não tem mais dificuldade nenhuma. A bengala, em uma metáfora perceptiva, é comparada ao prolongamento do braço e das mãos, ao sentido do tato – as oscilações, interrupções e variações do caminho são transmitidas pela ponta e pelo cabo às mãos do cego e, através dela, é como se o seu tato se estendesse ao chão 55. Mas a bengala também recebe, nessa articulação antropomórfica, habilidades “visuais” privadas ao indivíduo que a manipula – ela “vê” o obstáculo, “vê” a altura do degrau. Para que se chegue até lá, para que esse

55

De acordo com Bach-y-Rita (2002), uma pessoa cega quando usa uma bengala experimenta a estimulação na ponta da bengala, ao invés de em sua mão, onde o estímulo tátil é recebido.

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híbrido corpo-bengala adquira tais capacidades, é preciso passar por um processo de treinamento físico, de encorporação, no qual é fundamental aprender técnicas e seguilas, desenvolver uma habilidade. Mas é necessário, ainda, desenvolver uma relação de confiança corpo-dispositivo: descobrir, pela prática e pela experiência pessoal, que essa hibridização pode ser útil. Como lembra Vandenberghe, o ser humano é feito daquilo que ele inventa: são os óculos, os marca-passos, os computadores, as bengalas que fazem o homo sapiens: “jamais fomos humanos” (Vandenberghe, 2010: 220). Nem todos os acoplamentos são bem-sucedidos, nem todas as experiências são de libertação. Pedro acha que a bengala tem um problema: ela não ouve nem fala. Diz que no Instituto Benjamin Constant se exalta muito a bengala, mas a pessoa pode bater o rosto em um orelhão, mesmo com a bengala na mão, situação já vivenciada por ele. Se a pessoa vem andando batendo a bengala na parte baixa do chão, ela vai detectar o espigão do orelhão, mas a altura do rosto bate direto na cúpula. Experiência comum a muitos cegos, o orelhão tornou-se um dos principais inimigos da mobilidade independente e segura. Outra coisa que incomoda Pedro em relação à bengala é estar sempre com uma das mãos ocupada. Quando possível, prefere andar com guia vidente. Outro pesquisado, participante da oficina no IBC, deu o seguinte depoimento sobre o seu processo de acoplamento com a bengala: “quando comecei a usar a bengala achei que todos os meus problemas estavam resolvidos. Até que um dia, caminhando por uma rua, pisei numa poça d'água. Aí descobri que a bengala não resolve todos os nossos problemas - ela não enxerga água”. O processo de ajuste da pessoa com o dispositivo é um processo ambivalente – é um movimento duplo de abertura e fechamento do mundo de uma pessoa (Winance, 2006). O ajuste produz uma materialidade comum que, ao mesmo tempo, é o que capacita e descapacita, permite e proíbe. A encorporação da bengala na materialidade viva implica no ganho de independência na locomoção, mas também na proibição da livre movimentação com os dois braços e mãos. Outros efeitos físicos resultantes da encorporação da bengala relatados pelos pesquisados são a modificação da postura, dores no punho ou nos ombros, além do efeito de estigmatização social que o uso do objeto carrega. É pela experimentação e pela prática, a partir de um processo de treinamento sistemático, que se descobre as capacidades perceptivas e as limitações desse novo híbrido locomotivo.

2.4.4 Substitutos sensoriais ou suplantação perceptiva? 164

Se o uso da bengala é percebido como uma extensão do corpo e, mais fundamentalmente, de capacidades sensoriais – tátil e visual – alguns dispositivos vêm sendo criados especificamente com esse fim. Um dos mais célebres foi desenvolvido no final dos anos 1960 pelo neurocientista americano Paul Bach-y-Rita (1972): uma prótese perceptiva conhecida como sistema de substituição tátil-visual (TVSS). O TVSS transforma estímulos visuais em estímulos elétricos com o auxílio de uma matriz de estimulação tátil. Segundo Kastrup (2013), o dispositivo é composto por quatro elementos: 1) uma câmera que capta o sinal visual; 2) um computador; 3) um conversor que transforma a energia luminosa em sinais elétricos; e 4) uma matriz de estimulação elétrica ou mecânica sobre a pele. Em um primeiro momento, a câmara se encontra fixa, imóvel. Nessas condições o usuário do dispositivo adquire somente habilidades muito limitadas de discriminação do estímulo recebido. Quando é dada a ele a oportunidade de segurar a câmara e manipulá-la, realizando diversos movimentos, ele se torna capaz de perceber o objeto com o dispositivo. Depois de um período de treinamento com o TVSS o usuário passa a não ter mais a experiência de uma imagem tátil em sua pele, mas atribui diretamente a causa dos estímulos a um objeto distante. Conforme indica Kastrup, os padrões estimulados na pele formarão imagens que são percebidas no exterior, na frente do percebedor, como uma espécie de visão. Ao aprender a usar o dispositivo, o sujeito passa a ver uma imagem na sua frente, o que a autora chama de uma imagem tátil distal. As experiências com esse dispositivo vão posteriormente constituir um forte questionamento ao modelo computacional de cognição, ao demonstrar que a percepção é indissociável da ação. Lenay (2006) propõe uma concepção enativa (enactive) da percepção espacial, tanto para a localização quanto para o reconhecimento de formas. Para o autor, os dispositivos incialmente chamados de substitutos sensoriais são sistemas de acoplamento sensório-motor que modificam o próprio corpo, redefinindo os repertórios de ação e sensação acessíveis ao sujeito. Defende uma concepção de percepção espacial que não é nem externalista nem internalista, uma vez que o espaço perceptivo e seus conteúdos são constituídos no acoplamento entre o organismo vivo e seu meio. Auvray e Myin (2009) argumentam que a necessidade da ação para a percepção com o dispositivo de Bach-y-Rita e com outros dispositivos de substituição sensorial revela que o acesso à informação visual por estímulos táteis não é imediato. Perceber 165

por meio desses dispositivos não corresponde a uma transferência passiva de informações de uma modalidade sensória a outra, mas requer aprendizado perceptualmotor. Os autores rejeitam a suposição de que a percepção após a substituição sensória seja equivalente a uma percepção que ocorre em uma modalidade já existente (tato para visão ou audição para visão). Ao invés disso, defendem que os dispositivos de substituição sensorial (SSD) transformam e estendem as capacidades perceptivas. Congruentes com uma visão mais ampla de que a cognição pode ser aprimorada por meio de dispositivos externos (por exemplo a de Clark, 2003), propõem que ao invés de substitutos sensoriais, os dispositivos sejam chamados de extensão, suplantação ou transformação sensorial. A crescente ativação do córtex visual de usuários cegos treinados no uso de SSDs pode sugerir que a percepção com o dispositivo se torna visual. Entretanto, como apontam Auvray e Myin (2009), essa visão implicaria a suposição de que as mesmas regiões anatômicas de cegos e de videntes desempenham a mesma função, ou seja, que o córtex visual necessariamente sustenta uma função visual. Como apontamos no capítulo anterior, estudos da neurociência demonstram que o córtex visual de cegos é recrutado no desempenho de atividades de estimulação tátil, como a leitura do Braille, o que originará uma experiência tátil. Auvray e Myin colocam que a experiência associada com dispositivos visuo-táteis de substituição sensorial, por outro lado, não pode ser considerada exclusivamente tátil porque os conteúdos espaciais da experiência têm características que são típicas da experiência visual – os objetos percebidos são sentidos pelos usuários do dispositivo como localizados à distância, tal como na experiência visual e ao contrário da experiência tátil. Auvray e colegas (2007), quando perguntam aos participantes de outro estudo que desenvolveram qual das modalidades sensoriais (nesse caso, auditiva ou visual) a experiência do uso do dispositivo mais se assemelhava, recebem como resposta que as sensações pareciam pertencer a um novo sentido. Os participantes cegos de sua pesquisa também enfatizam que a sensação é de estar, simplesmente, controlando uma nova ferramenta. A interpretação de Auvray e Myin (2009) sobre o uso dos SSDs se baseia, então, na ideia de adição, aumento ou extensão das nossas capacidades perceptivas. Para eles os SSDs devem ser vistos como ferramentas que estendem a percepção para modalidades inteiramente novas. Acreditam que o caminho da novidade tem estado ausente ou sido insuficientemente desenvolvido nas interpretações existentes dos SSDs. Propõem que os SSDs pertencem à categoria chamada por Clark (2003) de ferramentas 166

que ampliam a mente (mind-enhancing tools), onde entrariam computadores ou mesmo cadernos de anotação. Tais ferramentas, e a cognição proporcionada por elas, não podem ser reduzidas a algo que já estivesse disponível antes de seu uso. Da mesma forma, SSDs proporcionam novas maneiras de interagir com o ambiente que não podem ser reduzidas à percepção em uma das modalidades sensoriais tradicionais. Como sugere Clark (2003), uma ferramenta que aprendemos a utilizar de maneira fluida se torna transparente. A transparência se refere ao fato de que, depois de um ciclo de treinamento com a nova ferramenta, os usuários passam a se sentir imersos na atividade que a ferramenta permite, em vez de permanecerem conscientes de estarem manipulando a própria ferramenta. Nesse sentido podemos também pensar a bengala: como um instrumento que expande não exclusivamente a mente ou a percepção, mas o próprio corpo, incluindo suas capacidades cognitivas e perceptivas.

2.5 Considerações finais do capítulo

A partir da análise dos manuais voltados para a educação de crianças cegas vimos como o aprendizado de certas técnicas como vestir-se, os cuidados com o corpo, ou a alimentação, é naturalizado em crianças consideradas normais, enquanto em crianças cegas o mesmo processo é culturalizado, passando pela noção de mediação. A montagem ou o adestramento do corpo em crianças cegas ou pessoas que se tornam cegas no caso das AVDs na reabilitação, explicita o caráter cultural, disciplinar e normalizante do corpo e da sociedade. A crítica que precisa ser feita não é à existência do foco na funcionalidade em programas de reabilitação ou ao importante desenvolvimento de estratégias, técnicas e um conhecimento prático que auxiliam pessoas com deficiência a executar suas tarefas do dia a dia de forma mais autônoma e independente. O ponto paradoxal de programas de reabilitação ou do discurso sobre a cegueira nos manuais de educação é uma aparente resignação à ideia de uma normalidade como meta ou parâmetro, que acaba por reinstituir relações de poder entre corpos eficientes e deficientes. É essa normalização que fornece a proporção da autonomia e da independência, medida que determinados corpos, por mais treinados que estejam para se aproximar dela, estão fadados a nunca alcançar – ou pelo menos não pela maneira “natural” que nos fala Foucault (2002), quer dizer, da norma.

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Como lembra Wagner (2010), todo empreendimento humano de comunicação, toda comunidade, toda “cultura”, encontra-se atada a um arcabouço relacional de contextos convencionais. O autor considera que a comunicação só é possível mediante o compartilhamento de associações derivadas de certos contextos convencionais por aqueles que desejam se comunicar. Para que um ator possa testar e estender as regras por meio da construção de um mundo de situações e particularidades às quais elas se aplicam, para que possa “fazer as coisas do seu próprio jeito”, ele precisa ao menos conhecer o contexto convencionalizado. Para Wagner, os significados convencionais, coletivos, do homem e de sua socialização, são aspectos implícitos ou explícitos da ação humana e, portanto, da própria invenção. Em vez da normatização como fim, seria interessante se o aparato cognitivo de manuais, programas de estimulação precoce e práticas da reabilitação pudessem ser entendidos e postos em funcionamento como espécies de ferramentas para a mediação e tradução do universo de videntes para quem não enxerga. Uma maneira de traduzir contextos convencionalizados para que a própria invenção se desenvolva. Como sugere Wagner, a invenção só pode resultar em expressões efetivas e dotadas de significado quando sujeita às orientações da convenção. Com o que foi apresentado a respeito da suplantação perceptiva e mecanismos de ampliação da mente, pode-se entender a bengala como um veículo que permite uma nova forma de locomoção pelo mundo para pessoas cegas. Quando se torna transparente o usuário para de pensar na coordenação pé-bengala ou na empunhadura. Quando o movimento se torna fluido a bengala se torna membro, se torna corpo; o próprio chão ou os obstáculos passam a ser percebidos diretamente – a altura do degrau, o caminho livre ou obstruído. Clark e Prinz (2004) colocam que qualquer conhecimento que nos diga como as coisas se parecem pode potencialmente ser usado para conduzir a ação. As informações perceptivas fornecidas pela bengala carregam disposições motoras. Entender a bengala como corpo estendido de cegos é uma possibilidade de apresentá-la partindo dos usos que são feitos dela. Com uma análise da literatura feminista, Haraway (1991) identifica uma transformação liminar presente no movimento de se reconhecer como ser plenamente implicado no mundo, sem necessidade de privilegiar um retorno à inteireza. Considera mulheres e outros ciborgues do tempo-presente, que recusam os recursos ideológicos da vitimização de modo a ter uma vida real. Esses ciborgues da vida real, através da 168

encorporação de bengalas, marcadores, softwares leitores de tela, ou quaisquer outros recursos ou acoplamentos criativamente desenvolvidos em práticas cotidianas, nas relações que se estabelece em um ambiente, estão ativamente reescrevendo os textos de seus corpos e sociedades.

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3. Corpo e linguagem: expressão e comunicação nas relações de interação Apresentamos como se coloca o papel do corpo, do ambiente e da ação na aprendizagem e no desenvolvimento de crianças cegas, bem como nas práticas de reabilitação de pessoas que ficam cegas. Conhecer e apreender o mundo a partir de “vivências corporais significativas”, do contato e da experiência com os objetos, o entorno e as pessoas. Um processo onde se estimulam os sentidos para além do visual, com destaque especial ao tato e à audição, mas também ao movimento e às práticas. A importância do aprendizado pelo corpo está presente no próprio processo de leitura e escrita no sistema Braille. Autores como Monteiro (2009) e Masini (2003) enfatizam a relação entre desenvolvimento motor e alfabetização em crianças cegas, com destaque para o papel das experiências perceptivas na elaboração de conceitos como dentro e fora, lateralidade, em cima e em baixo, esquema corporal ou a coordenação motora fina. Na estimulação precoce a preocupação se volta para o desenvolvimento motor do bebê, incentivando movimentos como rolar, engatinhar, saltar, correr, pular, agarrar, jogar, empurrar, puxar, entre outros (Farias, 2004b). Até os 5 anos de idade, a criança está em pleno desenvolvimento físico e o trabalho do profissional de estimulação precoce com uma criança cega deve priorizar, de acordo com Carlleto (2008), o desenvolvimento dos demais sentidos. Autores como Ochaita e Rosa (1995), Figueira (2000) ou Rodrigues e Macário (2006) apontam que, sem visão, o desenvolvimento motor e cognitivo da criança cega provavelmente apresentará atrasos se comparado ao de uma criança que enxerga. Entretanto, ainda que siga por “rotas alternativas”, o desenvolvimento pode ocorrer na ausência do input visual (Batista, 2005) e pessoas cegas podem adquirir um conjunto de habilidades intelectuais perfeitamente comparáveis às dos videntes (Ochaita e Rosa, 1995). Essa “reparação”, “compensação” ou “substituição” é atribuìda especialmente à aquisição da linguagem. À medida que a criança cega cresce e aprende a falar, a linguagem passa a ocupar um papel central em seu desenvolvimento. Ochaita e Rosa indicam que é por meio de veículos linguísticos que pessoas cegas conhecerão e aprenderão a manipular mentalmente a realidade que as cerca. A teoria de Vygotsky (1997) acerca da deficiência e os mecanismos que chamou de compensação social exercem reconhecida influência nestes textos. O autor aponta

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que as possibilidades compensatórias devem ser a força motriz do processo educativo da criança deficiente. No caso da cegueira, a fonte de compensação não seria o desenvolvimento do tato ou a maior sutileza do ouvido, mas a utilização da experiência social, da comunicação com os videntes. Para Vygotsky, a linha diretriz do desenvolvimento psíquico do cego deve se orientar para a superação da deficiência pela compensação social, a incorporação da experiência dos videntes mediante a linguagem. “A palavra vence a cegueira” (Vygotsky, 1997: 107). A ênfase dada ao corpo e às práticas surgirá posteriormente com um direcionamento específico: prioriza-se o aspecto funcional dos movimentos e das ações, centrando-se nas atividades técnicas e diárias. Vestir-se, lavar-se, cozinhar, locomoverse, reconhecer e fazer uso de objetos ou se orientar espacialmente são alguns exemplos. Tais ações também serão priorizadas nos atendimentos de reabilitação – formas alternativas para o desempenho de atividades cotidianas. Nuernberg (2008) sublinha os dois sentidos que o termo mediação assumirá na teoria de Vygotsky, que vão influenciar as práticas pedagógicas com crianças cegas. O primeiro é a noção de mediação social como forma de apropriação da experiência social de videntes - uso de formas de percepção "funcionalmente equivalentes à visual" em atividades como Orientação e Mobilidade e Atividades da Vida Diária. O segundo é a noção de mediação semiótica, onde se considera que a palavra promove a superação dos limites impostos pela cegueira ao dar acesso a conceitos baseados em experiências visuais - como cor, nuvem ou horizonte – por meio de suas propriedades de representação e generalização. Os dois pontos – a ênfase em uma funcionalidade corporal e a importância que se atribui à linguagem verbal como forma de compensação social da cegueira – e algumas desestabilizações possíveis, serão desenvolvidos nesse capítulo. A questão principal considera os elementos, meios discursivos e não discursivos, que mediatizam e estruturam a relação entre expressividade e comunicação por pessoas cegas numa situação de interação. Quais as implicações advindas de uma interação que se baseia na dupla condição de ver e não ser visto / não ver e ser visto? O que essas condicionantes colocam para pensarmos a comunicação nas relações de interação? Outro ponto que desenvolvo se localiza na fronteira entre um conhecimento tátil do mundo por um corpo privado da visão e os impedimentos sociais para um conhecimento corporal do outro através do toque. A restrição social ao toque entre as pessoas traz implicações para a apreensão, por pessoas cegas, de uma linguagem 171

corporal como forma de conhecimento do outro ou como recurso de comunicação. Pretende-se também abordar no capítulo as consequências desse hiato a partir das possibilidades que se abrem de resgate e construção da linguagem expressiva em um ambiente teatral.

3.1 Possibilidades comunicativas áudio-táteis

3.1.1 Oralização

Recorrer à oralização, formal ou informalmente, sempre foi uma alternativa à falta de livros em Braille ou de materiais táteis especializados. Dora precisou contar com o auxílio de ledores voluntários do IBC para se formar na faculdade. Seus primos também gravavam em fita cassete alguns dos livros mais importantes56. Caetano também precisou muitas vezes dos ledores voluntários do IBC durante a sua faculdade de direito que concluiu no ano de 2009. Menciona as provas orais. Foi com um ledor que Caetano fez a prova da OAB e foi aprovado na primeira tentativa. Mas não foi fácil. Eram mais de 100 questões de uma prova altamente técnica. O ledor lê o enunciado e depois as cinco opções de reposta. Ele tinha que processar tudo, internalizar e escolher. Terminou extremamente cansado. Beatriz lembra de suas provas orais e diz que preferia que a professora lesse uma vez só, se repetisse muitas vezes o enunciado e as opções, ela se enrolava. Camila conseguiu se formar no segundo grau graças ao auxílio de seus amigos que, ao mesmo tempo em que copiavam, ditavam a matéria que o professor escrevia no quadro. Com a informática e as novas tecnologias surgem alguns programas que, ao interagir com o sistema operacional do computador ou celular, capturam as informações apresentadas na forma de texto e as transformam em uma resposta que é falada por meio de um sintetizador de voz. A navegação é pelo teclado, dispensando o uso de mouse57.

56

Existem atualmente acervos em audiolivros ou livros falados, gravados em formato de CD ou MP3, com voz humana, por meio de técnicas específicas de leitura. A fundação Dorina (http://www.fundacaodorina.org.br/o-que-fazemos/livros-acessiveis/) e o Programa Livro Falado (http://www.livrofalado.pro.br/programa.html) são duas iniciativas que desenvolvem regularmente livros nesse formato. 57 Alguns dos programas mais conhecidos são o Jaws, o Virtual Vision, o Dosvox, o NVDA e o Orca. O Virtual Vision e o DosVox são brasileiros. O Dosvox é desenvolvido pelo Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ e a maior parte das mensagens que emite são gravadas em voz humana, o que reduz

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O Dosvox, apesar de mais simples, é bastante utilizado. Seu diferencial é ser um ambiente computacional composto de um conjunto de aplicativos, como editor de texto, email, gravador, jogos e um navegador próprios, que permite que qualquer pessoa cega, mesmo sem conhecimento prévio em informática, avance no uso e domínio com pouco tempo de utilização. Muitas pessoas que se tornam cegas não tiveram oportunidade de aprender informática antes e a mediação do Dosvox facilita duplamente o acesso, não apenas de um deficiente visual ao computador, mas de um deficiente visual até então excluído digitalmente. Entre os pesquisados, foi o caso de Angela, Jair e Camila, que passaram a ter aulas de informática depois que ficaram cegos em Instituições como o próprio IBC ou a fundação Oscar Clark. Dora explica um pouco melhor o funcionamento do Dosvox em comparação com outros softwares: Não é um ambiente que vai interagir com o Windows, ele desenvolve os aplicativos dele. Ele não vai ficar fazendo o que os outros leitores de tela fazem que é ficar dando nó em pingo d‟água para conseguir se entender com as coisas, se entender com o word, com o excel, ele usa lá os dele. Então ele tem as suas limitações. Ele fica desatualizado, o navegador dele é muuuito rudimentar, entendeu? O webvox é um navegador que você não consegue entrar num banco e dar a sua senha, ele não trabalha com protocolo de segurança, por exemplo. Você não vai poder fazer uma compra na internet. Ele não executa javascript. Qualquer coisa que tenha alguma inteligência, o webvox não rola. Agora se for uma coisa que não tenha muito formulário, muita interação, uma coisa mais tranquila dá. E ele tem uma grande vantagem, a pessoa que ficou cega e nunca mexeu em um computador, ela aprende o dosvox primeiro que é muito mais fácil, ela não vai ter que se meter em aprender como é que funciona o Windows e como é que funciona o leitor de tela para interagir com o Windows. A pessoa que não mexe para começar a mexer enxergando já é difícil, se ela não enxerga, vai ser duplamente. O dosvox é bom também para a criançada começar. Você tem uma criança cega de 4 anos, pô, os outros de 4 anos já vão mexer no computador, ela tem que mexer também.

Para celular existem aplicativos como o Nuance Talks ou o VoiceOver. Há diferentes velocidades de leitura e teclas de atalho. Conforme o uso e a adaptação ao aplicativo, a pessoa aumenta a velocidade da fala, num intervalo que no aplicativo Nuance Talks varia entre – 9 (extremamente lento) e + 9 (extremamente rápido). Como apontado anteriormente, em experimento realizado por Hertrich, Dietrich e colegas (2009), na área de neurociência, pessoas cegas foram capazes de entender discurso sintético ultrarrápido na velocidade de 25 sílabas por segundo, enquanto pessoas que enxergam tiveram desempenho máximo entre 8 e 10 sílabas por segundo.

o índice de estresse no uso. Dosvox, NVDA e Orca são softwares livres, sendo o Orca o único que roda em sistema operacional Linux.

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Quando Camila começou a usar o Talks ficou maravilhada. Percebeu que com o aplicativo ganhava independência, não precisava de mais ninguém para discar para ela nem para ler as mensagens. Com o uso foi se habituando à interface do programa e o seu ouvido também foi se habituando. Passou a mexer tão rápido que não dava o tempo da voz falar. O celular dizia "tecla 1", "aperte a tecla 1" e, antes dele terminar de falar, já ia apertando, o que, segundo ela, é o sinal de que a pessoa já está habituada com a voz e pode aumentar a velocidade em mais um nível. A voz do celular tem que acompanhar os movimentos da pessoa no telefone e não o contrário. No início escutava o celular do seu professor de informática e achava impossível, mas agora já está na velocidade + 7. O ouvido vai se acostumando junto com a prática. Caetano acha que o desenvolvimento dos softwares leitores de tela ajudou muitíssimo, especialmente no quesito independência para pessoas cegas. Antes, se recebia um email ou uma mensagem tinha que confiar a alguém algo que nem sabia o que continha, uma coisa que poderia ser íntima. Agora pode fazer isso - ler emails, trocar mensagens - sem depender de ninguém, sem ter que passar pela mediação de ninguém. Minha experiência de estar com pessoas cegas enquanto checavam mensagens no celular ou procuravam o telefone de alguém na agenda de contatos é de, na maior parte das vezes, não compreender absolutamente nada do que a voz sintetizada dizia ou então, com muito esforço ou por acaso, compreender uma ou outra palavra – “agenda”, “mensagens”. A dificuldade de entender não é só pela velocidade extremamente rápida que as palavras são ditas, mas também pela falta de costume da minha audição com a voz sintetizada e, ainda, porque muitas pessoas cegas não precisam nem escutar a palavra inteira de um comando lido para já passar para outro. Atualmente, portanto, a mediação do ledor não é mais a única alternativa para pessoas cegas terem acesso aos textos que não foram traduzidos para o Braille. Renata lembra que, se a pessoa cega tiver um escâner ou alguém que digitalize e passe o texto para o computador, existe a opção de usar o leitor de tela. Sousa (2004) indica que os avanços tecnológicos propiciaram para as pessoas cegas novas formas de leitura, acesso, registro, codificação e decodificação de informação. O desenvolvimento de softwares leitores de tela possibilita uma ampliação significativa do acesso à informação, mas, ainda assim, o pleno exercício dessa possibilidade no contexto da internet brasileira, por exemplo, é uma realidade ainda distante. A pesquisa “Dimensões e características da Web brasileira: um estudo do 174

.gov.br”58 aponta que 98% das 6,3 milhões de páginas HTML dos órgãos públicos brasileiros analisadas não apresentaram nenhuma aderência aos padrões de acessibilidade. Estima-se que o indicador para as páginas web do setor privado, ainda em levantamento, seja semelhante ao do setor público. Mesmo assim, a inserção de pessoas cegas em um mundo digital e tecnológico por meio de ferramentas de comunicação como a internet combinadas com os softwares leitores de tela, ainda que distante do acesso amplo e irrestrito ideal, já provoca transformações profundas. Alguns exemplos são a troca de livros digitais e a criação de bibliotecas virtuais, que aumenta o seu acesso a um acervo bibliográfico, a visibilidade e a ampliação das possibilidades de trocas e articulações não só de pessoas cegas entre si, mas dessas com outras pessoas por meio da criação de blogs e da participação em redes sociais como o facebook ou o twitter. Sousa (2013) destaca que, se nos anos de 1980 as reivindicações de pessoas cegas eram encaminhadas principalmente por documentos feitos por suas organizações sociais, hoje as reivindicações por melhores condições de vida, acessibilidade na web, mobilidade urbana, acesso a terminais bancários, etiquetagem em Braille nos produtos de consumo, nos cardápios de restaurantes, entre tantas outras, ocupam as redes sociais, seja individualmente ou em grupo. Para a autora, a experiência do uso da rede social cria um novo espaço de experiência inventiva 59 para pessoas cegas. Um espaço onde se pode recriar virtualmente o espaço real em que as pessoas se movem, reinventando uma nova sintaxe, novos gestos e novos modos de conduta.

3.1.2 Braille, a escrita em relevo

Primeira aula de Braille que realizei sob a tutela de Ana no IBC. De olhos abertos, observando a reglete à minha frente, me parece improvável perceber pelo tato cada diminuto retângulo daqueles e, mais ainda, perceber, pela ponta da punção, as subdivisões feitas pelas ondulações ou micro dentes, que é o que determina os espaços de cada um dos seis pontos de uma célula Braille. Depois que os olhos estão vendados,

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A pesquisa é de 2010 e foi realizada pelo W3C.br/NIC.br. Os resultados da pesquisa podem ser acessados em: http://www.cgi.br/publicacoes/pesquisas/govbr/cgibr-nicbr-censoweb-govbr-2010.pdf 59 Conceito que Sousa pega emprestado de Kastrup (2007b) para falar não da criação artística, mas das possibilidades inventivas que o ambiente virtual abre para pessoas com deficiência e, mais especificamente, para pessoas cegas.

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o retângulo me parece aumentado. Não é um delírio, tenho a nítida sensação de que aquele retângulo cresceu de tamanho. A invenção do código Braille é um passo fundamental em direção à ampliação do acesso à linguagem e à cultura por pessoas cegas. Como indica Sousa (2004), o Braille permitiu que os indivíduos cegos saíssem do seu mundo específico para compartilhar de forma mais abrangente esferas comuns de realidade e da cultura com os outros indivíduos. Não cabe aqui um resgate do contexto histórico da invenção do código tátil por Louis Braille, já realizado de forma rigorosa pela autora. O que interessa ressaltar é a importância do sistema para a alfabetização, comunicação e formação de pessoas cegas. O Braille é um código simbólico de escrita e leitura em relevo. Criado por Louis Braille em torno de 1825, permitiu que pessoas cegas tivessem acesso à cultura alfabetizada. Vygotsky (1997) considerou o Braille um instrumento de adaptação de pessoas cegas ao ambiente social que as permite atingir, através de outro caminho, o mesmo desenvolvimento dos demais seres humanos. Habitar o mundo das culturas alfabéticas promove um impacto significativo nas formas como esses indivíduos organizam sua visão particular do mundo, como ressalta Sousa (2004). A também chamada escrita pontográfica é uma espécie de substituta da linguagem escrita alfabética de qualquer língua, uma transliteração da escrita convencional que promove a sua tradução em uma base completamente nova. O sistema de tradução intersemiótica viabilizado pelo Braille funciona como um importante ampliador de uma visão de mundo que antes era marcada fundamentalmente pela experiência cotidiana e pela oralização. A conquista da escrita pelas pessoas cegas se alarga para além de suas fronteiras, permitindo pensar na cegueira não mais como uma realidade paralisante e mutiladora, mas como uma forma de perceber e estar no mundo. A análise de Sousa amplia o campo de estudos da comunicação que usualmente prioriza abordagens voltadas eminentemente à comunicação visual (escrita em tinta, imagens visuais). Sua proposta é de compreender o Braille como um mecanismo semiótico da cultura. A pessoa cega, ao se tornar usuária desse código, se constitui como sujeito intelectual, deixando de ser um sujeito apenas linguístico oral para se converter em um “homo-táctilis-literário” (Sousa, 2004: 92). As novas tecnologias aumentam as possibilidades para a expansão de acervos em Braille por meio de sistemas informáticos de produção de texto em relevo em escala média e em escala industrial. As impressoras Braille para uso doméstico ou de médio 176

porte permitem a impressão em Braille e tinta simultaneamente, possibilitando o acesso de pessoas com ou sem deficiência visual ao mesmo documento. Ainda imprimem gráficos e desenhos em relevo e convertem imagens para relevos de volume variável. Um novo folego para a leitura e escrita tátil é a invenção do Braille digital, que permite a leitura de textos via interface com a tela do computador. O display Braille, também conhecido como linha Braille, é um dispositivo periférico acoplado ao teclado e que pode ter 18, 40 ou 80 caracteres. Conecta-se ao computador via USB ou Bluetooth. Possui opções que podem ser facilmente configuradas com um leitor de tela, possibilitando total controle de navegação pelo ambiente Windows. Com a linha Braille é possível navegar rapidamente por documentos, ler e-mails, trabalhar com planilhas e navegar pela internet com os movimentos naturais das mãos e com grande produtividade. O usuário entra no texto e, conforme vai passando as mãos pela linha, os pontos das células Braille vão levantando em seus dedos. Uma espécie de touch em relevo. Além de pessoas cegas, o livro em Braille ou o uso de tecnologias como a linha Braille são as principais formas de acesso à linguagem, cultura e informação de surdocegos, que não podem fazer uso de audiolivros ou softwares leitores de tela.

3.1.3 Imagens táteis em relevo

Em um dos manuais analisados (Brasil, 2007) é possível encontrar indicações a respeito da confecção e adaptação de materiais didáticos para alunos cegos. Audição e tato

são

os

sentidos

privilegiados

na

tradução/transcrição/transposição

de

conhecimentos. Indica-se que, enquanto esquemas, símbolos ou diagramas devem ser descritos oralmente, desenhos, gráficos, mapas e ilustrações devem ser adaptados e representados em relevo. Quando se transpõe a informação visual para informação tátil, as mãos adquirem função privilegiada. Certas orientações são colocadas para a confecção de materiais didáticos em relevo: A confecção de recursos didáticos para alunos cegos deve se basear em alguns critérios muito importantes para a eficiência de sua utilização. Entre eles, destacamos a fidelidade da representação que deve ser tão exata quanto possível em relação ao modelo original. Além disso, deve ser atraente para a visão e agradável ao tato. A adequação é outro critério a ser respeitado. As dimensões e o tamanho devem ser observados. Objetos ou desenhos em relevo pequenos demais não ressaltam detalhes de suas partes componentes ou se perdem com facilidade. O exagero no tamanho pode prejudicar a apresentação da totalidade dificultando a percepção global. O relevo deve ser facilmente percebido pelo tato e, sempre que possível, constituir-se de diferentes texturas para melhor destacar as partes componentes do

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todo. Contrastes do tipo liso/áspero, fino/espesso, permitem distinções adequadas. O material não deve provocar rejeição ao manuseio e ser resistente para que não se estrague com facilidade e resista à exploração tátil e ao manuseio constante. (Brasil, 2007: 27)

Darras e Valente (2010) levantam reflexões semióticas pertinentes a respeito da produção de imagens táteis para cegos nas publicações, destacando os conflitos que resultam da transposição de conteúdos visuais para a comunicação háptica. Na maioria dos casos as imagens táteis que são disponibilizadas em programas de acessibilidade de museus, instituições, livrarias especializadas e editoras são produzidas por designers e ilustradores videntes. Para escolher suas estratégias ao lidar com a comunicação háptica eles devem navegar constantemente entre o que são, para os autores, duas culturas e dois mundos semióticos diferentes. Darras e Valente apontam alguns dos maiores conflitos contextuais, perceptivos e de comunicação que encontraram, e que alteram as interfaces hápticas de livros táteis. As imagens táteis são desenhadas para dar acesso a conteúdos visuais ao se aprender a ler, ao descobrir a literatura, arte, cultura, mas também biologia, história e geografia. Mesmo que os objetivos variem, todos os projetos editoriais se colocam a mesma questão: como pessoas que não enxergam podem ter acesso a mundos que foram desenhados para serem vistos? Em dois livros que analisam, os designers se limitaram a realçar as imagens em relevo, um deles em alto relevo e o outro com linhas de contorno. A transposição, no primeiro caso, ignora as diferenças entre as experiências de mundo, como se essa operação fosse suficiente para tornar o conteúdo visual da imagem disponível pelo tato. Nessa aproximação, os dedos são considerados os olhos do cego, mas apenas se continuamos a considera-los como olhos de videntes. É como se o único problema para os cegos fosse relativo ao meio. Um segundo caso analisado pelos autores é o que chamam de superposição de figuras. As imagens ilustradas escolhem posições do corpo que requer o mascaramento de certas áreas ou membros. Na experiência de mundo direta e móvel, videntes estão acostumados com tais descontinuidades e não costumam ter problemas para compreendê-las em uma imagem fixa. O processo da superposição de objetos do mundo é também conhecido e percebido pelos cegos, mas não é construído a partir de um ponto de vista, e sim pela experiência das relações entre objetos e corpos em um espaço de ação. A fusão de diferentes níveis de informação

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exigida pela superposição em um espaço bidimensional fixo constitui, portanto, um problema. Os dois casos parecem suficientes para demonstrar o argumento dos autores. A proposta que desenvolvem é que os designers responsáveis pelo trabalho de transposição devem ser capazes de se colocar na posição de cegos para aprimorar a utilidade das interfaces que produzem. Para tanto, não seria suficiente fechar os olhos, mas projetar constantemente uma teoria da mente do usuário e desconfiar das suas próprias crenças construídas no contexto da percepção visual. Por teoria da mente, Darras e Valente (2010) entendem a capacidade de meta representação de estados mentais de outros. Ao se construir uma teoria da mente informada tanto em mundos de videntes quanto de cegos, seria possível se tornar vigilante sobre as diferenças de cultura, tornando-se também possível evitar certos erros cometidos por videntes devido ao seu oculocentrismo (termo cunhado por Jay, 1999). Estudos realizados na área da neurociência apontam que quem é cego estaria menos familiarizado do que quem enxerga com as convenções que governam a tradução do espaço 3D para um plano de imagem 2D. As dificuldades encontradas por pessoas cegas em tarefas desse tipo refletiriam diferenças nas experiências e no grau de familiaridade com o meio. Mas os estudos também destacam a capacidade de pessoas cegas compreenderem as regras subentendidas nas representações em 2D de objetos e as aplicarem (Heller, 2006 e Kennedy e Jurevic, 2006). Para Cattaneo e Vecchi (2011), o que é mais interessante no reconhecimento tátil de figuras e sua reprodução é perguntar se pessoas cegas seriam capazes de compreender e aplicar algumas regras perceptivas específicas que aparentemente se restringiriam à percepção visual, tais como as leis de perspectiva ou a dependência do ponto de vista. A forma dos objetos é feita de superfícies que podem ser experimentadas tanto pelo toque quanto pela visão, já que as bordas das superfícies são ao mesmo tempo visíveis e tangíveis. Tato e visão fornecem informações similares sobre contorno, direção e outras características espaciais de uma cena (Kennedy e Jurevic, 2006). A percepção tátil não é diretamente afetada pela perspectiva. Ao segurar um objeto, o agente costuma perceber ao mesmo tempo todos os seus possíveis planos, desde que ele seja pequeno o suficiente para ser explorado como um todo. O observador visual, ao contrário, só pode olhar seletivamente para lateral, frente, parte de cima ou de baixo do objeto, independente do seu tamanho. Por isso pode não ser tão familiar para uma pessoa cega a noção de ponto de vista. Um importante fator a ser considerado é a 179

experiência anterior dos participantes cegos com desenhos em relevo (Dulin, Hatwell e colegas, 2008). Segundo Cattaneo e Vecchi (2011), alguns estudos da neurociência indicam que pessoas cegas não aplicam espontaneamente as regras da perspectiva em suas representações mentais, mas podem aprender pelo relato de pessoas que enxergam. Por outro lado, são capazes de visualizar objetos e demonstrar sua representação interna através de desenhos altamente detalhados que são inequivocamente compreensíveis para pessoas que enxergam (Amedi, Merabet e colegas, 2008). A preocupação de Darras e Valente (2010) com a tradução de imagens visuais para interfaces táteis ecoa com Sousa (2004), quando fala de uma munditactência a ser considerada e ampliada. A autora coloca que as sociedades civilizadas, por meio da estratégia de normalização da cegueira, acabaram desenvolvendo um modo sutil de encobrimento da especificidade da percepção tátil, ignorando as suas diferenças e/ou buscando homogeneizar a realidade da cegueira aos modos de percepção visual. O discurso humanista que preconiza a normalidade da cegueira agrega um apelo importante em favor dos direitos de cidadania e acesso aos bens culturais, mas também se assenta em uma base eminentemente falsa, ao não reconhecer a diferença da munditactência em relação à percepção visual, ou visuocentrismo, como forma de estar no mundo. Sousa indica que a ideia de normalidade da cegueira invadiu os campos científicos voltados à Educação, Assistência Social, Sociologia, Psicologia e ainda se disseminou nas instituições e serviços voltados ao atendimento de pessoas cegas e nas suas associações reivindicatórias.

3.1.4 A falta de um vocabulário tátil

Na primeira atividade que realizei com a venda no atendimento de Habilidades Básicas, a TO pediu para que eu tocasse em partes de quatro quadrados relativamente grandes (deviam ter entre 8cm e 10cm cada um) que estavam espalhados na minha frente, sentisse as diferenças e as descrevesse. Cada quadrado se dividia em duas partes. Além de perceber as texturas, tinha que procurar a metade correspondente a cada quadrado e encaixá-los numa fôrma. Uma das texturas parecia uma lixa, a outra uma espécie de borracha, mas não era exatamente borracha, tinha relevos mais acentuados e parecia um pouco o material daqueles quadrados que se coloca no chão para um bebê engatinhar. Não lembrei o nome do material, mas sabia que devia existir um nome 180

melhor para descrevê-lo. O terceiro quadrado era totalmente liso e lembrou o liso de um ladrilho, apesar de não ser do mesmo material, não tinha o peso ou consistência de um ladrilho. Procuro, mas não consigo encontrar palavras exatas para designar as coisas que toco. Começo a me dar conta de uma dificuldade que se repetiu em outros momentos, não saber como descrever aqueles materiais, como era difícil detalhar as diferenças entre as texturas. O quarto quadrado também lembrava uma lixa, só que mais fina, poderia ser lixa de unha, talvez? Dava para notar as diferenças, mas era difícil caracterizar, explicar ou mesmo pensar em signos que pudessem expressá-las. Faltava vocabulário ou talvez o costume mesmo de qualificar as coisas pela sensação tátil delas. Essa dificuldade classificatória foi depois remetida ao que coloca Verine (2013) sobre as representações sociais e culturais de pessoas com deficiência visual na França. O autor considera que na sociedade atual, a uma experiência humana maciçamente multissensorial, intermodal, e mesmo holista, correspondem representações quase exclusivamente visuais. Haveria o que chama de pregnância sociocultural do visível, fenômeno também subentendido em termos como “oculocentrismo” (Jay, 1999) e “visuocentrismo” (Sousa, 2004). Em sua pesquisa literária com pessoas deficientes visuais, o autor se surpreende ao constatar que uma dominância da visão repercute nos discursos das próprias pessoas cegas ou com baixa visão – seja diretamente, pela frequência dos referentes e dos tropos visuais, seja indiretamente, pela quase ausência de notações auditivas, táteis, olfativas e gustativas. Tal silêncio sobre sensações não visuais é considerado pelo autor como uma obnubilação pelo visível. A hipótese levantada por Verine é que o não dito estaria ligado a uma ausência – na formação discursiva tiflográfica (a escrita em relevo) e no interdiscurso dominante – de modelos textuais socialmente valorizados para a expressão de percepções e representações não visuais. Existiria um círculo vicioso entre a pregnância do olhar nas práticas e nos discursos valorizados e a dificuldade das pessoas, cegas e não cegas, em falar sobre suas experiências não visuais. Cada um, à sua maneira, silencia sobre as alternativas à visão, ora remetendo o perceptível e o percebido a equivalentes visuais ou a abstrações, ora inferiorizando ou depreciando os outros sentidos.

3.1.5 Braille e leitura em áudio - possibilidades e implicações desse debate

A linguagem oral como compensação social tem sido amplamente utilizada na educação de cegos, não só em atividades pedagógicas, mas como forma de acesso à 181

cultura. A prática da audiodescrição 60 vem sendo cada vez mais difundida como recurso para a acessibilidade de pessoas cegas a produções artísticas e culturais como filmes, peças de teatro, espetáculos de dança, programas de tv, etc. O recurso consiste na descrição clara e objetiva das informações que são compreendidas visualmente e que não estão contidas nos diálogos, tais como expressões faciais e corporais, informações sobre o ambiente, figurinos, efeitos especiais, mudanças de tempo e espaço, além da leitura de créditos, títulos ou outra informação contida na tela61. Pode ser feita ao vivo ou gravada previamente, permitindo que o usuário receba a informação sobre a imagem ao mesmo tempo em que essa aparece. As descrições devem acontecer nos espaços entre os diálogos e nas pausas entre as informações sonoras do filme ou espetáculo, para não se sobreporem ao conteúdo sonoro relevante, de maneira que a informação descrita se harmonize com os sons do filme. O enfoque no canal sonoro se explica, por um lado, pelo uso que pessoas cegas fazem da audição como forma de controle do ambiente e interação com as pessoas, mas também parece se justificar pelo aspecto facilitador da interação com videntes, por ser algo que de certa forma os aproxima. Entretanto, como lembra Sousa (2004), há todo um mundo tátil relevante, uma munditactência, que necessita ser considerada pelas abordagens pedagógicas, psicológicas, neurofisiológicas, artísticas, entre outras. Um mundo relevante que a autora associa ao sistema Braille, o código tátil de leitura e escrita, e que Deras e Valente evocam para a construção de livros táteis. Um mundo que não pode ser sobreposto ao mundo relevante da visualidade, mas, antes, precisa ser revelado em toda a sua especificidade e complexidade. A habilidade para se comunicar tatilmente é também uma das capacidades que diferencia pessoas cegas de pessoas que enxergam. Ao invés de segregar ou de excluir, a proposta de Sousa e a que também se descortina nesse trabalho, é que essas habilidades sejam reconhecidas em sua diferença e que se possa investigar, incentivar e desenvolver esse conhecimento como um legado para todos, cegos ou não cegos.

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A portaria 188 de março de 2010 do Ministério das Comunicações institui prazos para as emissoras de TV de canal aberto do Brasil veicularem o recurso de acessibilidade da audiodescrição, em um primeiro momento por 2 horas semanais até alcançar, gradativamente, 20 horas semanais no limite total de 120 meses. 61 As informações descritas aqui estão no site: www.audiodescricao.com.br. Acesso em 05.01.2014.

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No âmbito da arte, algumas iniciativas vêm sendo realizadas onde a acessibilidade para pessoas com deficiência visual não se restringe ao canal auditivo em um processo unilateral de transmissão de informações visuais por quem enxerga para quem não vê. Vergara e Kastrup (2013) entendem o programa Encontros Multissensoriais 62 como uma zona de risco ético-estético que ultrapassa o sentido funcionalista das práticas de mediação e acessibilidade. A mediação é entendida como uma performance de saberes e sabores entre espaços e corpos. Nesse contexto, quando se atua no espaço da arte e da prática contemporânea com uma perspectiva multissensorial, o significado de acessibilidade se recoloca como a criação de condições para a invenção de múltiplos sentidos na experiência com a arte. Nos Encontros Multissensoriais, a experiência do impedimento da visão é o ponto de partida para a proposição de exercícios sensoriais e motores que envolvem corpos, obras de arte e o espaço do museu, tendo como horizonte a experiência estética encarnada. Também com uma proposta de arte encarnada, a oficina Imagens Vivas, desenvolvida pela diretora teatral AnaLu Palma, envolve a reprodução corporal de quadros de artistas plásticos por pessoas videntes para que pessoas que não enxergam, por meio do tato, conheçam a composição corporal das figuras e as reproduzam em seu próprio corpo63. Outra iniciativa, desenvolvida na cidade de Córdoba, na Argentina, é o equipamento acessìvel, comunicacional e cultural “Arte al Cubo”64. Feito para ser instalado em museus, exposições ou escolas, o dispositivo utiliza diversas linguagens comunicacionais tais como Braille, audiodescrição e um compartimento que, pelo uso de distintos materiais (texturas, odores, sabores e formas), busca gerar uma leitura/comunicação que parte de uma experiência multissensorial. A polêmica em torno de um processo de desbrailização que estaria ocorrendo especialmente a partir da disseminação do uso de softwares leitores de tela parece bastante pertinente de ser tratada, não tanto para alimentar mitos em torno de um desaparecimento do Braille, mas, ao contrário, para viabilizar políticas que garantam o seu fortalecimento. Muitos são os (des)interesses envolvidos. Primeiro há o ponto mencionado antes, da linguagem oral ser uma ferramenta comum a cegos e não cegos

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Os encontros foram desenvolvidos pelo Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM-RJ, em parceria com o Núcleo de Pesquisa Cognição e Coletivos (NUCC) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ e com o Instituto Benjamin Constant entre 2011 e 2013, mensalmente. Para saber mais ver: http://vimeo.com/52190126. Acesso em 09.01.2014. 63 Trataremos mais adiante de reverberações da participação nessa oficina para uma das pesquisadas. 64 Para maiores informações: http://arteal3.blogspot.com.br/. Acesso em 05.01.2014.

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que supostamente os aproximaria, argumento que repousa em estratégias de normalização da cegueira. Inversamente, investir no Braille, no desenvolvimento de materiais táteis ou em formas multissensoriais de acesso à cultura significa reconhecer a diferença e a especificidade de uma forma de estar e compreender o mundo que pessoas que enxergam não dominam imediatamente, a não ser por meio de um esforço necessário de interesse e de abertura para o aprendizado. A questão do Braille e dos softwares leitores de tela é também atravessada por diferenças na trajetória de vida e nas histórias pessoais de cegueira, que influenciam as escolhas por um ou outro método de leitura. Uma das diferenças, que não pode ser homogeneizada, mas parece influenciar, é a que perpassa a cegueira congênita ou precoce e a cegueira tardia. Enquanto no primeiro grupo é fundamental e imprescindível o aprendizado do Braille para ter acesso à cultura escrita e letrada, no outro, encontramse pessoas que ficam cegas com mais de 50 anos, foram alfabetizadas em tinta e viveram enxergando a maior parte de suas vidas, não necessariamente têm interesse em aprender o Braille, preferem o livro falado ou o uso do software leitor de voz. É necessário levar a sério as aproximações e os distanciamentos nas formas pelas quais a cegueira é vivida por pessoas com condições tão diferentes em termos culturais, cognitivos e sociais. Não para dividi-las, mas para aproximá-las em torno de projetos políticos e pedagógicos que possam dar conta de suas especificidades. O ponto capcioso que incita falsas divisões como essa é construir a discussão em torno do “ou” e não do “e” (Deleuze e Guattari, 1995). Sousa (2004) sublinha um fator crucial que estaria alimentando um processo de desbrailização e disseminando uma ideia errônea de que as tecnologias informáticas substituiriam de vez o uso do sistema em relevo para a leitura e escrita de cegos: a forma como vem ocorrendo o processo de ensino-aprendizagem do Braille nas escolas e instituições, o despreparo, desconhecimento e desinteresse dos educadores em relação às especificidades do complexo tátil, especialmente a partir de políticas de educação inclusiva65. Como lembra a autora, se as coletividades cegas reconhecem no Braille a sua escrita primeira, no âmbito da cultura, da ciência e do movimento do conhecimento, tal estatuto ainda precisa ser validado por uma teorização competente e por estratégias que reforcem o reconhecimento das instituições sociais em relação a ele.

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Aprofundaremos uma discussão a respeito da educação inclusiva no capítulo 5.

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Aprender ou não o Braille depois de ter ficado cego quando adulto também se relaciona a diversos outros fatores, entre eles a motivação pessoal, os hábitos anteriores de leitura, a forma como o Braille foi ensinado, a prática e o acesso a livros em Braille. Pedro fala que muitas pessoas que ficam cegas - entre elas, ele próprio - conseguem aprender a escrever em Braille, mas não a ler. Ele encontrou muitas dificuldades e acabou desistindo. Atribui as dificuldades à sensibilidade tátil, que acha que depois dos 40 anos diminui, mas também à forma como o Braille é ensinado. Acha pouco tempo duas aulas de 50 minutos por semana por dois anos para que pessoa realmente consiga aprender e se tornar fluente na leitura. Das pessoas que entrevistei fluentes em Braille todas disseram que, se pudessem escolher, prefeririam a leitura tátil à oral. As razões são muitas. Para Renata não tem nada como ter o livro nas mãos: “o silêncio, a questão de você imaginar, de você sentir o livro, de você virar a página, de poder ler aos pouquinhos, parar, pensar, voltar à leitura”. Beatriz também prefere mil vezes o Braille: “é você lendo, é você com a sua interpretação, é você com o seu tempo, você está ali realmente interpretando a coisa, na sua respiração, é você com o seu jeito. É bem diferente de áudio-livro”. Além da leitura, Beatriz comenta sobre a escrita. Usa a reglete para algumas coisas, especialmente para anotar matérias da faculdade. Quando escreve, acha que dá um trabalho “danado”, mas prefere por ser um só, assimila muito mais rápido e com mais qualidade. Dora também valoriza o silêncio da leitura em Braille. Mas essa não é exatamente uma escolha equilibrada. Dora gostaria que tivesse muito mais opções de livros em Braille, assim como Beatriz. Sua faculdade e a de Caetano não disponibilizaram nenhum material em Braille, era tudo no computador. Renata também, na faculdade e no mestrado que fez na área de letras, precisou ler tudo no computador, por meio da leitura oral com voz sintetizada. Se os textos não existissem em formato digital, pedia para sua mãe escanear. Ela e Dora mencionam a diminuição do hábito de leitura por falta de tempo. Mas Dora acrescenta outro fator que acha que contribuiu para a diminuição, a saturação da audição. Hoje, a maior parte dos livros disponíveis para pessoas cegas está em áudio e como ela trabalha muito no computador, com sintetizador de voz, acha que reduziu drasticamente seu hábito de leitura porque não aguenta: “é muita falação, fico com a cabeça cheia de voz”. Não consegue descansar com a leitura. Tinha mais paciência para áudio-livro quando não trabalhava com sintetizador de voz.

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Dar preferência à escuta na educação de crianças cegas pode gerar sérias implicações na construção da linguagem e do pensamento, além de significar um retrocesso no processo de alfabetização. O risco do Braille em desuso é o de um retorno à cultura oral e ao analfabetismo de pessoas cegas, com a consequente perda do acesso à cultura escrita, gramática e ortografia. A ênfase na oralização que aparentemente aproximaria cegos e videntes tem uma consequência perversa: a escrita de cegos, por falta de uso, vai se tornando carregada de erros ortográficos e, assim, gerando efeitos marginalizantes e excludentes. Beatriz fala sobre essa questão: Os cegos tem uma dificuldade muito grande com a ortografia, por quê? Porque só ouve. O cego hoje não lê, ele só escuta. Os livros, o computador, as coisas, tudo ele escuta. Quando eu estou lendo no computador, eu posso ir lá na setinha e soletrar, mas isso acontece quando eu tenho dúvida de uma palavra ou outra. Mas se eu estou lendo um texto direto, eu não vou ficar soletrando todas as palavras. E isso não proporciona a memória da letra. Quando você quer lembrar de uma palavra escrita, se é com s ou com z, você não lembra da palavra? A gente perde muito a ortografia, porque só fica ouvindo. Então você vê que os cegos têm um déficit de ortografia muito grande. Se a gente não está lendo exatamente, a gente só está ouvindo, a gente perde tudo isso. E só descobre quando vai escrever, quando você vai escrever você descobre que você não lembra de coisas básicas, básicas. Escrevem sapato com cedilha. Escrevem mal, muito mal. Porque não leem, só por isso. Em Braille você tem a memória visual. Não é visual, é tátil, mas de qualquer maneira vem para o seu cérebro, você guarda aquilo. Ler, principalmente, tem que ler em Braille. Eu sei que Braille é muito trabalhoso, ocupa um espaço imenso, eu sei de tudo isso, mas é o que a gente tem, então realmente isso precisa ser utilizado.

Sousa (2004) descreve uma cena em sua tese que demonstra as possibilidades combinadas que as novas tecnologias oferecem. Braille e software leitor de voz, comunicação tátil e oral, apresentam nesta cena contornos individuais ou conjugados, uma questão de preferência do usuário. O professor de Biologia, sentado diante do computador, com alguns comandos de teclado, acessa seu correio eletrônico, checa suas listas de discussão e grupos de notícias e inicia seu trabalho de preparação da aula de logo mais à noite. Começa por pesquisar na Internet, em bibliotecas digitais, à procura de bibliografia complementar referente ao conteúdo que irá ministrar. Um leitor especial de telas, com síntese de voz, o guia nas multitarefas que vai realizando. Está à procura do livro de Conrad Lorenz, A Demolição do Homem, e a acessibilidade da ferramenta de busca da biblioteca lhe permite localizar a obra em poucos segundos. Comandos combinados no teclado e a íntegra do livro vai surgindo pouco a pouco num display Braille acoplado ao seu computador. Se preferir, o professor poderá usar a voz sintética para uma leitura da obra, que também pode ser guardada para uma leitura posterior em CD-ROOM. Prefere a leitura em Braille. Desliza o dedo indicador suavemente por sobre os pontos em relevo da linha Braille, alternando esse movimento contínuo com comandos de teclado que lhe permitem avançar ou recuar no texto. Decide-se por imprimir o terceiro capítulo do livro, uma cópia em tinta, outra em Braille, para uma leitura em grupo na sala de aula. Sinais sonoros avisam-

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no de que novas correspondências estão chegando. Mas não vai ver o correio agora, pois precisará trabalhar na preparação de uns slides. (Sousa, 2004: 146)

Mesmo fictícia, a cena é perfeitamente possível nos dias atuais devido ao avanço das tecnologias informáticas. Mas se pensarmos na realidade socioeconômica da maior parte das pessoas cegas no Brasil, ela ainda soa como uma ficção-científica de um futuro distante. Só é passível de existência cotidiana para uma pequena parcela da população interessada. Primeiro, existe o desafio da inclusão digital e a ampliação do acesso ao computador e à internet66. Segundo, tem a barreira do preço. Se há 10 anos atrás Sousa marcava que a linha Braille custava em torno de U$ 5.000, nos dias atuais é possível adquirir, fora do país, uma linha Braille Focus 40 por U$ 2.795. Se comprada no país o mesmo produto custará ao usuário R$ 15.90067. Enquanto uma impressora em tinta sai para o consumidor por cerca de R$ 200, a impressora Braille mais barata no catálogo da TECA custa R$ 32.000. Uma das alternativas mais recentes em interfaces sonoras, o Leitor Autônomo Instantâneo para pessoas cegas68, custa R$ 16.500. Algumas alternativas para contornar a questão do custo começam a surgir, ainda que incipientes. Entre elas o investimento no desenvolvimento de tecnologia nacional69, o apoio a pesquisas e tecnologias livres ou de baixo custo (o Dosvox é um bom exemplo

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Em pesquisa da FGV (2012) sobre inclusão digital, com base no censo de 2010, encontrou-se que 31,1% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet, o que coloca o país em 63º lugar dos 154 mapeados pela pesquisa. Os números variam por classe social. Enquanto a classe C tem 33% dos domicílios com acesso à internet, nas classes AB esse percentual é de 74%. Os principais motivos encontrados para a exclusão digital são falta de interesse (33%) e incapacidade de usar a internet (31%), motivos que são apontados como decorrentes de problemas educacionais. As diferenças regionais no Brasil também são grandes. Enquanto 58,7%, 48,2% 3 e 43,9% dos lares do Distrito Federal, São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente, tem acesso à internet, em apenas 13,7%, 12,9% e 11% dos lares de Pará, Piauí e Maranhão ocorre o mesmo. Na divisão por bairros na cidade do Rio de Janeiro, Lagoa (82,9%), Botafogo (80,3%) e Tijuca (76,6%) são os primeiros colocados em domicílios com computador e internet, enquanto Pavuna (42%), Cidade de Deus (43,5%) e São Cristóvão (43,2%) são os três últimos. 67 Os valores aqui reproduzidos foram gentilmente fornecidos por TECA – Tecnologia & Acessibilidade, catálogo de preços referente ao mês de novembro de 2013. 68 Esse produto consiste em um Leitor/Ditador de textos impressos. Equipamento eletrônico autônomo (não precisa do computador) com captura (via escâner), reconhecimento do texto e leitura através sintetizador de voz em português fluente. Serve tanto para livros e textos quanto para uma correspondência. 69 Pode ser mencionado o Programa Nacional de Inovação em Tecnologia Assistiva, implementado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI e pela Agência Brasileira de Inovação – Finep. Além deste, o edital número Nº 84/2013, do MCTI-SECIS/CNPq destinou 13 milhões de reais para “apoiar projetos de pesquisa científica e tecnológica que visem contribuir significativamente para o desenvolvimento científico e tecnológico do País, com temas ligados à tecnologia assistiva no âmbito das ações do Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência / Plano Viver sem Limite implementadas pela Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social - SECIS/MCTI”.

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de um projeto desse tipo), subsídio governamental para compra de tecnologias assistivas70, entre outras possíveis.

3.2 A comunicação nas situações de interação

3.2.1 Breve instantâneo etnográfico de uma situação de interação

Na primeira vez que fui ao IBC estive lá como visitante. Já tinha a motivação da pesquisa, mas com uma disposição inteiramente exploratória. Sento em um banco de uma pequena praça, cercada por uma grade baixa de ferro, com duas entradas marcadas por um caminho em relevo no chão. Um casal de jovens cegos se aproxima por trás de mim. Antes de vê-los, ouço a batida das bengalas. Rodeiam o parque até uma das entradas. Procuram um banco ao sol. Sinto o impulso de conduzi-los ao banco que procuram, mas ao mesmo tempo uma vontade de não interferir. Não percebem que estou ali, ou ao menos acredito não ser notada. Não me mexo muito, estou a uma distância grande o suficiente para não sentirem meu cheiro ou escutarem minha respiração. Estamos na mesma praça, mas pareço invisível. Ao mesmo tempo que essa invisibilidade me permite observar e fazer anotações sem disfarce, ela me constrange, me causa desconforto. O silêncio faz com que não me revele. Como se não me movimentar e nem emitir som garantisse uma não existência imagética, apesar da minha materialidade corpórea. Uma não existência temporária. Ainda assim existo e, de certa forma, sinto como se estivesse invadindo a privacidade de quem está naquele espaço sem notar minha presença. Desconforto exclusivo meu, aparentemente estar ou não sendo visto não parece uma preocupação para eles. Ela rói unha. Ele fala ao telefone. Quando conversam um com o outro, uma postura que me causa estranhamento. Não se procuram com o rosto, não se posicionam face a face, o rosto pode estar virado para qualquer lado. Uma espécie de libertação facial do olhar direcionador. Outros dois jovens cegos, amigos do casal, se aproximam. A jovem que já está sentada os guia com o som de sua voz – “pode vir”, “vem vindo”.

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Uma das iniciativas em curso, no âmbito do programa Viver Sem Limites do Governo Federal, é o “BB crédito acessibilidade”, uma linha de crédito do Banco do Brasil a juros facilitados de 0,64% ao mês para financiar a compra de produtos que facilitem o dia a dia de pessoas com deficiência, com valor de financiamento mínimo de R$ 70 e máximo de R$ 30 mil.

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Um objeto pareceu ter importância especial nesse instantâneo da praça do IBC: o celular. Falam bastante ao telefone. Sentada naquela praça experimentei a estranha sensação de estar fisicamente presente em um ambiente, mas ao mesmo tempo não existir para aqueles que o dividiam comigo. Independente de ter sido efetivamente notada ou não, minha impressão era de que estava ali, mas era invisível para os outros, uma espécie de desaparecimento que problematizo a partir do que Goffman (1996) diz a respeito da interação social. O autor define a noção de interação como a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros quando em presença física imediata. Para uma interação ocorrer em uma situação social qualquer, não necessariamente é preciso que uma comunicação verbal aconteça. Um indivíduo pode definir a situação na sua apresentação de si a partir de sua fachada pessoal que, segundo Goffman, inclui características como vestuário, sexo, idade, altura, aparência, padrões de linguagem, expressões faciais ou gestos corporais. Todas as características mencionadas pelo autor que compõem uma fachada, à exceção dos padrões de linguagem, estão situadas em uma percepção de mundo centrada no olhar. Apesar de estar na presença imediata de outras pessoas, não podia considerar minha situação como de interação naquela praça, pelo menos não do tipo descrito por Goffman. Eu estava interagindo com os que estavam ao redor, especialmente através do olhar, mas mesmo não podendo afirmar que o contrário não ocorreu (eles poderiam ter percebido minha presença através de movimento, cheiro, ou qualquer outro aspecto que me passou despercebido), certamente não se deu por meio do olhar. Com os olhos a meu favor, eu conseguia diferenciar as pessoas por sexo, vestuário, expressões faciais, altura, aparência, postura corporal e mesmo deduzir, com base na observação, que o rapaz e a moça que chegaram juntos eram namorados e que os dois rapazes que chegaram logo depois eram seus amigos. Como lembra Le Breton (2009), não é apenas a palavra, mas o corpo, as posturas e as atitudes que primeiro evidenciam a presença do outro na interação. Não sendo vista e nem dirigindo a palavra a eles, sentia que a interação se interrompia, não era equivalente para os dois lados, parecia incompleta. Durante todo o tempo permaneci em silêncio e isso certamente contribuiu para minha sensação de invisibilidade entre os não videntes. Também não me aproximei o bastante para que percebessem meus movimentos ou pudessem alcançar, por meio do tato, algumas das características de minha fachada, como sexo, vestuário ou altura. A continuidade da pesquisa permitiu perceber que a interação e o processo de 189

comunicação de pessoas cegas situam-se de forma privilegiada na fala e em sensações apreendidas pelo tato (exemplos de canais de comunicação pela via tátil - o Braille, os mapas táteis, os desenhos em relevo ou mesmo os pisos táteis e as marcas do chão).

3.2.2 Horizonte auditivo

Um homem cego, sentado em uma das mesas coletivas da cantina do IBC, chama o nome de alguém em voz alta. Nenhuma resposta. Direciona-se, então, falando alto, para o senhor que está no caixa: “Zezinho, o Bruno tá aì?”. O senhor responde: “Não, hoje é o Wellington”. Ele então pede, de novo em voz alta: “Wellington, traz um cafezinho para mim, nêgo? Com açúcar”. A escuta, a fala, o conteúdo da conversa, os sons, a tonalidade da voz são alguns dos elementos que se tornam fundamentais no processo de comunicação de pessoas cegas e na sua interação com outras pessoas. É por meio da voz que podem perceber a presença de alguém conhecido no ambiente, mas nem sempre ouvir é suficiente, é preciso confirmar se aquela voz pertence mesmo à pessoa que estão imaginando. Camila se percebeu mais falante ao longo do seu processo de reabilitação. Segundo ela “dizem que deficiente visual fala muito” e ela acredita que é verdade, que fala mesmo. Relaciona os motivos a certa ansiedade ou necessidade de identificação. Querem saber o quê está acontecendo, quem está presente no ambiente, aí a solução é ficar narrando as coisas. Uma situação que estranhou depois de ter perdido a visão é a de estar em um mesmo lugar em que também está outra pessoa muito conhecida e não saber que ela está ali, a não ser que ela fale e que tenha muito contato para conseguir identificar sua voz. Situação que passou a viver no IBC, quando começou a se relacionar com outras pessoas que também são deficientes visuais. No início, andava sempre acompanhada, e a irmã ia narrando “a Antônia vem aì”, mas quando começou a andar sozinha se viu nesse dilema “e agora? Como é que eu vou fazer para poder identificar as pessoas?”. A solução que encontrou foi ficar com “o ouvido muito ligado” e também perguntar quando chega “quem está aì? fulano está aì?”. Quando tem um monte de cego junto, as pessoas vão respondendo “está fulano, ciclano”, alguém que não foi citado diz “eu também estou, beltrano”, aì o outro, que não sabia que beltrano estava lá comenta com quem está ao lado “ih, beltrano está aì também é?”, vira aquela barulhada. Hoje Camila acha legal e diz que se sente até mais extrovertida que antes.

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Quando não é um encontro planejado, acontecem situações similares ao instantâneo etnográfico da praça no IBC, em que as pessoas entram ou saem da invisibilidade por seu silêncio ou sua sonoridade. Essa é uma das características que Hull (1997) atribui ao espaço acústico, de natureza efêmera, cujos habitantes transitam dentro e fora da existência pelos sons que emitem. Uma vez Camila pegou o metrô em Botafogo e, conduzida pelo funcionário, sentou em um banco. Bem depois da estação Central uma pessoa que estava ao seu lado perguntou “por acaso você tem chip da OI?”. Num primeiro momento ela não reconheceu a voz e respondeu “não, o meu é da Vivo”. A moça ao lado lamentou “ah, eu precisava tanto ligar...”. De repente aquela voz lhe soou conhecida e ela perguntou “é a Roberta?” e a outra “é”, “Roberta, é a Camila...”. As duas são muito amigas, se conheceram no IBC - Roberta também é deficiente visual - estavam sentadas lado a lado, segundo Camila há pelo menos quatro estações, já que Roberta tinha entrado na Central. Se ela não puxasse o assunto do chip Camila passaria a viagem inteira sem saber que a amiga estava ao lado. A experiência de ter que ficar “muito ligada no ouvido” para participar de uma conversa é algo que também aparece nos depoimentos de Dora. Para ela excesso de barulho é exaustivo. Quando está em um ambiente muito barulhento – uma festa ou um bar – como não tem o recurso da leitura labial para ajudar a manter o foco em quem está falando, precisa ficar ainda mais atenta, ainda mais ligada. Não consegue escutar direito o que a pessoa fala e vai ficando cansada. Fica “pegando tudo, muita coisa ao mesmo tempo, aquele zuzuzuzuzu...”. Ela sente que quanto mais barulho em volta, mais superficiais ficam as conversas. Pela experiência de Dora, ela concordaria com Camila sobre a veracidade da afirmação de que “cego fala demais”. A sua constatação é prática, acha que tem sim uma verbalização maior. Acha que talvez a cegueira induza as pessoas a serem mais prolixas e mais autocentradas. Quando pergunto os motivos ela fala de situações de interação e da falta de retorno, por não ter o feedback visual, à medida que a interação progride. É como se fosse mais difícil, nos termos de Goffman (1996), regular a conduta dos outros ou modificar a definição da situação inicial e a sua própria conduta em uma comunicação. Falta o retorno das expressões emitidas pelos demais participantes ao longo da interação, aquelas que o autor considera de tipo contextual e teatral, de natureza não-verbal. Dora dá dois exemplos:

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Quando você está vendo e você está sendo chato, você vê na cara do outro que você está sendo chato, aí você se manca. Eu acho que falta isso pra pessoa cega, falta esse retorno do outro de que você está sendo chato... quer dizer, tem gente que enxerga que também é chato, vamos combinar que temos malas de todos os tipos. Mas eu acho que a cegueira não beneficia esse retorno, entendeu? Ou então você está andando na rua, você está super empolgado contando uma coisa, se você enxerga você vê que de repente a outra pessoa não está mais prestando atenção naquilo que você está falando porque ela está prestando atenção num outro lance, num cara que vem atrás que ela achou meio esquisito, por exemplo. Você vê na cara do outro, aí você olha pra onde o outro está olhando e você vê o que está acontecendo também, então isso já te tira daquele teu... te tira do seu umbigo, entendeu? São aqueles códigos que atravessam. Eu acho que a pessoa cega vai tendo menos isso.

Dora não generaliza essa impressão. A partir do momento que percebeu a existência da questão começou a prestar mais atenção e a se preocupar com o retorno, mas observa que alguns cegos que convivem mais com outros cegos do que com quem enxerga acabam tendo menos esse “semancol”. Um dos pontos levantados por Le Breton (2009) sobre o papel dos movimentos e da comunicação corporal na interação ajuda a formular uma hipótese para melhor compreender o “falar demais” de cegos na caracterização de Dora e de Camila. Segundo o autor, em uma relação de interação, os movimentos do corpo metaforizam a palavra conferindo-lhe um relevo que a torna mais viva e mais compreensível, diminuindo-lhe as ambiguidades. Por não acessar a parte visual da linguagem, a prolixidade de cegos pode ser um recurso para regular a ambiguidade presente em qualquer comunicação, uma maneira de facilitar sua recepção e compreensão para aquele com quem interage. Estava de olhos vendados na casa de Dora, conversávamos à noite na varanda quando um som de carro ou moto, daqueles sem o silenciador do cano de descarga, irrompeu cortando o ambiente. Experimentei a diferença qualitativa entre o ouvir vendada e ouvir de olhos abertos de que nos fala Ingold (2008). A perda do controle auditivo dos olhos sendo responsável pela violência com que o som do carro me toma de assalto. Aquela sonoridade reverberou internamente como se me atravessasse, sem que estivesse preparada. Noto que os sons me afetam mais quando de olhos vendados. Dora acha as pessoas, de maneira geral, muito descuidadas com os barulhos que produzem, como se isso não importasse. Comprar um carro silencioso, por exemplo, não é um valor para a maior parte das pessoas. Por ela, pode estar em um restaurante lindo, de frente para o mar, mas se for barulhento ou com uma acústica péssima, ela escuta o liquidificador, o ar condicionado, não se encanta com o ambiente. Sente que tudo isso tem um peso que não é igual para outras pessoas, começa a se sentir angustiada. Para ela o silêncio é um valor. Lembro de um documentário que assisti no

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festival Assim Vivemos71. Um homem cego diz que o silêncio da noite cria um espaço no som. Para ele, é como se alguém abrisse a janela. Verine (2013) analisa o testemunho de uma pessoa cega, sublinhando características que delineiam uma interação com o mundo pela audição. Os elementos da paisagem existem auditivamente - sopro do fogo e movimento das ondas do mar - o que enfatiza o caráter tendencialmente descontínuo dessa percepção. Para que o sujeito escute, é preciso que os objetos (ou as pessoas) produzam ou repercutam um som, que raramente lhes é consubstancial. A passagem de um avião amplia o espaço e desenha um horizonte. O autor enfatiza que o uso da palavra horizonte não é metafórico. Para um observador que está no centro, o horizonte auditivo é o limite circular da percepção. Diferente da referência constante que constitui para a visão, é uma circunstância contingente.

3.2.3 Ver e não ser vista, uma experiência comunicativa

A primeira vez em que estive com Dora para uma conversa mais prolongada em sua casa me provocou sensações de estranhamento que talvez possam ser associadas àqueles momentos da pesquisa de explosão de significados, onde cada fato observado na cultura nativa tem significado para o pesquisador (Malinowski, 1986)72. Enquanto conversávamos me dava conta do meu próprio corpo no ato de conversar. Gesticulo enquanto conto uma história ou revelo algo do meu pensamento. Como se esses sinais me ajudassem a expressar o que digo, mesmo que naquela conversa também soassem inúteis. Percebo a necessidade de completar todas as frases, as insinuações gestuais de nada servem. Assim como não comunicam expressões como “lá”, “ali”, “ele”, ou o ato de apontar e demonstrar fisicamente alguma coisa. Dirijo meu olhar para os olhos dela, ainda que sejam olhos com movimento, mas sem retorno. Presto atenção na entonação da minha voz, como se me empenhasse mais em expressar verbalmente as mudanças de estado em minha fala. A própria fala surge com uma urgência, uma ascendência maior nesse encontro e os silêncios vibram mais enigmáticos quando não se tem a cumplicidade do olhar. Meu corpo inteiro precisa ser

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O filme mencionado se chama “Walk with a guide”, é polonês, do ano de 2009 e foi dirigido por Maciej Cendrowski. Passou no festival de 2013. 72 Assim como a fotografia descritiva de uma tarde na praça do IBC mencionada anteriormente.

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através do que digo, expressar o que sinto ou penso pelo tom da minha voz. Uma aparente invisibilidade promove o sobressalto tanto da fala quanto da minha própria expressão corporal, como se a ausência do seu olhar voltasse o foco a mim mesma. A interação e o convívio com olhos que não me veem me colocam em contato com minha própria corporalidade, minha densidade em ação no ato de comunicar. Chaui (1988) revela que o corpo, para Merleau-Ponty, é um “sensìvel exemplar” porque sensível para si, porque se sente ao sentir que sente. O invisível dos olhos de Dora torna visìvel a mim, ao meu corpo de “vidente que se vê a si mesma, vendo”. A ausência de seu olhar derrama luz sobre meus gestos, a fala, a direção de meus olhos. O estranhamento posteriormente suscitou novas reflexões sobre o destaque que se dá à linguagem verbal na educação de pessoas cegas e uma espécie de lacuna que senti naquela conversa. É claro que pude me fazer entender e compreendia suas colocações, a lacuna não estava no que era dito, mas nos gestos. Não podiam se transformar em recursos visuais explícitos de comunicação, mesmo que implicitamente pudessem e fossem utilizados, como uma espécie de auxílio, um adicional de ênfase ou uma alteração na tonalidade e cadência em minha fala.

3.2.4 Ruídos de comunicação

Trato de encontros e interações entre pessoas cegas e pessoas que enxergam pensando-os a partir do que Goffman (1966, 2011) chama de ocasiões situadas onde existe a co-presença e onde grande parte das informações veiculadas depende da atividade corporal dos agentes. Em uma situação do tipo “ocasião social”, em que um indivíduo se apresenta diante de outros, em um cenário palestrante e plateia, o silêncio pode parecer misterioso para uma pessoa cega. No caso trazido por Dora não é apenas o silêncio em si que influencia essa impressão enigmática que recebe da plateia, mas o contexto cultural da interação e a divisão da sua atenção para uma quantidade grande de pessoas. Eu me lembro de um treinamento que eu fui dar para um pessoal de Florianópolis e de todos os municípios de Santa Catarina. Eu comecei a falar e um silêncio absoluto. E eu falava e aquele silêncio absoluto. Aquilo foi me dando uma agonia, porque eu ficava pensando „meu Deus, será que esse povo está dormindo? Pra chegar aqui e começar o treinamento às 8:30h, sei lá, saiu de casa às 5h da manhã?‟ Tão dormindo? Tão bocejando? Tão achando esse negócio muito chato? To chovendo no molhado, eles já sabem isso? Ou eu estou falando muito difícil e eles não estão entendendo? O que está acontecendo? Até que alguém falou assim „olha, quando

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quiser fazer o cofee break, já tem lá o café‟, eu digo, „opa, então pessoal, vamos dar um pequeno intervalo para a gente tomar um café e depois continuamos‟. Aì cheguei pros meus colegas e disse „gente, o quê que é isso? Porque esse silêncio? Esse povo está dormindo?‟ e aì as pessoas disseram para mim „não, eles estão anotando. Tudo o que você está falando eles estão anotando no verso da apostila que você deu. Eles estão ouvindo tudo, prestando atenção e anotando', eu digo „caraca...‟, eles estavam alucinados, copiando tudo e eu achando que o povo estava dormindo, tava entediado... Porque aqui no Rio as pessoas até podiam estar copiando, mas o carioca copia e fala. Não é? O pessoal do Sul é menos falante, mais quieto, é mais disciplinado. Então eu estava sentindo dois choques, tinha o choque de eu não estar vendo e tinha o choque cultural, de não estar com o povo da minha cidade. O treinamento aqui no Rio tinha que pedir silêncio de 5 em 5 minutos e lá eu tinha que pedir „falem, por favor‟, tinha que pedir retorno. Mas claro que quando você está muito conectada numa situação, num grupo, numa pessoa, você sabe. Uma pessoa é mais fácil você se conectar do que numa turma.

O treinamento realizado em Santa Catarina era a motivação, o contexto social estruturante, para iniciar e terminar um ajuntamento e uma situação social, que propunha determinados padrões de conduta reconhecidos pelos participantes como apropriados. Goffman (2011) identifica que, nas interações faladas, um sistema de práticas, convenções e regras de procedimentos entra em jogo, funcionando como um meio de orientar e organizar o fluxo de mensagens. Os receptores, através de gestos apropriados, comunicam ao orador que estão dando a ele a sua atenção. Naquela situação específica, Dora encontra mais dificuldade para codificar a conduta dos participantes. O fato de não enxergar somado ao silêncio inesperado da plateia não a permite captar se as condutas são apropriadas ou inapropriadas para aquela situação – estão dormindo? Tão achando chato? Por não estar em sua cidade, onde consegue perceber esses sinais pelo comportamento mais falante das pessoas, Dora teve ainda mais dificuldade de se orientar pela conduta da plateia e codificar o seu silêncio. Goffman (1966) destaca o papel especial que o olho no olho desempenha na vida comunicativa de uma comunidade. O olhar trocado ritualmente reconhece a abertura para o pronunciamento verbal e legitima a relevância dos atos. O autor lembra que Simmel já sublinhara a função social única que os olhos adquiriram em nossa sociedade, em que a união e a interação dos indivíduos se baseia nos olhares mútuos. Simmel apontava que a totalidade das relações sociais de seres humanos, sua confiança em si mesmo ou sua abnegação, suas intimidades e estranhamentos se transformariam em formas imprevisíveis caso não ocorresse nenhuma troca de olhar. Para Goffman (2011), a visualidade organiza o fluxo da fala em uma interação falada. A atenção visual combinada e oficial dos participantes é transferida facilmente através de dicas de autorização formais ou informais, com as quais o atual orador

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sinaliza que está prestes a parar de falar ou ainda o orador esperado sinaliza um desejo de começar a falar. Temos um entendimento sobre com quanta frequência e por quanto tempo cada participante falará através dessas sinalizações. As colocações de Goffman ajudam a entender meu estranhamento inicial na conversa com Dora em sua casa e também um depoimento em que ela reconhece que uma das possíveis dificuldades ao se lidar com a cegueira está relacionada à falta da visualidade na comunicação. Uma dificuldade comunicativa, já que, em uma conversa com uma pessoa cega, todos os códigos e sinalizações visuais que costumam organizar o fluxo das conversações ficam suspensos.

Às vezes as pessoas têm dificuldade de lidar com uma pessoa cega pela dificuldade de comunicação. Porque como não rola o olho no olho, as pessoas ficam meio perdidas e elas não conseguem ver se elas estão sendo ouvidas, se elas estão sendo entendidas... sabe, eu acho que rola essa agonia nas pessoas, essa dificuldade assim em um primeiro momento.

A função do olhar como organizador de uma conversa também é destacada por Le Breton (2009), quando diz que os olhos, ao receberem e simultaneamente transmitirem informações, concorrem para o desenrolar da interação. O próprio contato ocular dá aos indivíduos presentes o sentimento de estar em interação. A falta do olho no olho é sentida por Dora especialmente em situações de primeiro contato, por isso diz que, quando pequena, chegou a desejar ser surda e não cega, pelo impacto de não ter a primeira comunicação que se dá pelo olhar. Também sente isso no primeiro dia de um curso em que as pessoas não se conhecem, mas criam identidades pelos jogos de olhares. Em tais situações é mais complicado para quem não vê, porque não dá tempo de conversar com cada pessoa. Estando em grupo, se sente um pouco perdida, fica mais difícil estabelecer os primeiros vínculos. Acaba ficando mais “na sua” e, se tiver que escolher duplas, combina antes com alguém que já conhece ou se deixa ser escolhida. Do ponto de vista do controle, é uma desvantagem para uma pessoa cega, mas também acha que a desvantagem pode virar vantajosa. As pessoas costumam buscar o conhecido, o conforto, a mesmice e ela, por não poder controlar, deixa a coisa acontecer e muitas vezes se surpreende. Le Breton (2009) fala da comunicação em ambientes rumorosos, em que a qualidade pode ser mantida pela focalização visual. Quando é assim, muitas pessoas conversando, Dora acha mais difícil para uma pessoa cega conseguir acompanhar.

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Numa situação que está só você e uma pessoa é mais fácil, não interessa o primeiro contato, você está mais no controle. Agora numa situação que são várias pessoas é meio complicado você ter certeza que a pessoa te ouviu, porque tem outras pessoas falando ao mesmo tempo com outras pessoas. Você ter certeza que a pessoa te ouviu e você ter certeza que o outro está falando é com você mesmo ou é com o outro que está do seu lado. (...) Então eu tenho um pouco de dificuldade porque eu sinto que tem uma questão do contato visual que facilita a comunicação. Se eu estou olhando para você, se eu posso ver o seu rosto, se eu posso ver principalmente os seus olhos eu estou sabendo se você está prestando atenção no que eu estou falando. Ou se eu não estou falando com você eu estou sabendo se eu posso falar agora, se você vai prestar atenção no que eu vou falar. E quando você não tem isso fica complicado. A pessoa que não enxerga não sabe se pode falar e a pessoa que enxerga não sabe se o cego está falando com ele, com quem que o cego está falando. Então fica um ruído de comunicação.

Le Breton (2009) destaca que o olhar orienta a troca de enunciados em uma conversação, funcionando como apoio para os atores, que buscam o assentimento do olhar alheio para suas reflexões ou investigam o momento propício de entrar em uma conversa ou de tomar a palavra. Nessas situações, Dora se sente em desvantagem por não poder usufruir de tal código. É comum que aconteça em ambientes com mais gente, com conversas paralelas. Mas pode acontecer quando está ela e mais uma pessoa que eventualmente esquece que ela é cega e por isso esquece de avisá-la, por exemplo, que vai atender o celular: “eu digo „o quê, fulano? O quê você está perguntando? Eu vou onde?‟ e fulano está falando no telefone, mas eu não percebi que o telefone tocou, estava no vribracall, entendeu? Ou então eu não tava nem perto, não estou nem prestando atenção, mas a pessoa começou a falar aì comecei a achar que era comigo”. Camila fala sobre outro ruído na comunicação que acontece em eventos, shows, apresentações, ou mesmo em casas que tem televisão com home-theater. Está relacionado ao hábito de se direcionar pela voz em uma conversa. Os casos em que o som vem de equipamentos sonoros confundem, porque muitas vezes as caixas não estão localizadas na mesma origem do som, onde está a imagem ou a pessoa que fala. Por exemplo, você está num show, no palco o pessoal está falando, mas a caixa de som geralmente não fica totalmente no palco, então você nunca está virado para o palco, você está virado para o lado da caixa. Já aconteceu várias vezes. Tá tudo mundo virado para um lado. Um dia a minha irmã me pegou e me virou assim (gesto de virar pelos ombros), e falou „é lá na frente‟, e eu „não, mas está vindo um som daqui‟, „mas o palco‟. Porque o palco fica lá, mas a caixa fica atrás, às vezes. Tanto que esses lugares que fazem espetáculo para pessoa deficiente, eles falam primeiro sem microfone, „olha, o palco está aqui, lalalá‟, aì você toma a direção, percebe onde está o palco, depois começa a falar no microfone de novo.

No relato de Camila podemos perceber a sua necessidade de, em uma ocasião social do tipo show ou apresentação pública, ajustar sua postura corporal em relação às

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outras pessoas da plateia. Ela expressa uma preocupação que Goffman (1966) entende ser a de qualquer pessoa em qualquer tipo de encontro social, reconhecer a obrigação de adotar uma conduta socialmente aceitável. A falta da visão interfere no ajustamento de sua conduta, já que, ao se guiar pela audição, a localização da caixa de som a engana. Em eventos sensíveis à diversidade corporal dos participantes, especialmente de deficientes visuais, uma estratégia alternativa foi criada, o palestrante fala primeiro no palco, sem o microfone, para que as pessoas cegas da plateia se direcionem corporalmente em relação ao palco. Não são apenas as interações de palco e o problema das caixas de som que interferem na adequação de condutas de pessoas cegas. Aprofundo a análise de situações que envolvem a cegueira, as expectativas sociais de conduta e as estratégias desenvolvidas para cumprir determinadas convenções em uma interação de tipo pública no item a seguir.

3.2.5 Convenções sociais na interação: exercícios e estratégias

Goffman (2011) descreve as regras mobilizadas pelos participantes nos encontros sociais de tipo público. O conjunto particular de regras que transformam um indivíduo em um membro daquela sociedade deriva de requerimentos estabelecidos na organização ritual de encontros sociais. Uma regra de conduta é definida pelo autor como um guia para a ação, recomendada não por ser agradável, barata ou eficiente, mas por ser apropriada ou justa. As infrações podem levar a sentimentos de desconforto e a sanções sociais negativas. A ligação a regras leva a uma constância e padronização do comportamento e é uma fonte de regularidade nas atividades humanas. Na pesquisa, alguns entrevistados demonstraram preocupação especial com certas regras ou posturas de conduta nas interações, destacando estratégias não visuais para se adequarem ou demarcando a sua diferença em relação a um estado visual. Beatriz diz prestar muita atenção para manter a postura ereta. Sem o estímulo visual, muitas vezes o conforto corporal fala mais alto, o ombro cai, a cabeça abaixa, mas ela sempre se preocupa e busca corrigir quando percebe que porventura está desse jeito. Depois que ficou cega, Camila não queria que mudasse a postura de olhar na direção da pessoa com quem está conversando, mesmo que não possa enxerga-la. Aprendeu como fazer perguntando para outras pessoas cegas, que lhe disseram: “quando a pessoa estiver falando com você, você percebe a voz e olha na direção da 198

pessoa, se você erguer a sua cabeça você vai olhar na direção da boca certinho, do queixo, começa a fazer isso que dá certo”. Essa postura, de olhar de frente, ela mantém porque sabe que socialmente é isso que se espera, porque sendo cega, alguém pode estar falando e ela está de costas ou de lado, mas está ouvindo. As estratégias desenvolvidas por Beatriz e Camila para controlar e ajustar suas posturas corporais tem o objetivo não apenas de adequar sua conduta a uma expectativa social, mas de diminuir o impacto da diferença da cegueira na interação. A mesma preocupação aparece quando Beatriz assiste televisão. Às vezes acontece de assistir novela e, de repente, reparar que sua cabeça está voltada para o corredor. Ela foca na televisão e pelo som percebe se está mais para cima ou mais para baixo e corrige. Desenvolveu um exercício para comandar o olhar, não deixar solto, e isso ajuda na aparência, impacta menos na relação com as pessoas. Le Breton (2009) diz que toda interação começa e encerra com uma série ritual de gestos e de palavras que colocam os atores em posição favorável para iniciar ou concluir uma troca. Começar um assunto demanda certas formas de saudação que são social e culturalmente variáveis. É o que o autor chama de “etiquetas corporais de integração”. Um dos sinais indicativos da falta de visão, para Camila, foi quando as pessoas estendiam a mão para cumprimenta-la e ela não conseguia mais enxergar para estender a sua. Depois aprendeu que entre pessoas cegas tem um código, um costume, o de estender a mão primeiro para que a outra pessoa a pegue. Embora sejam olhos que não veem, nos depoimentos fica marcada uma preocupação com a direção do olhar que, como indica Goffman (1966), é uma importante ferramenta na interação focada nas situações sociais. As posturas, a correção do corpo, as alternativas desenvolvidas para o aperto de mão e para sustentar o olhar na direção da pessoa em uma conversa, ainda que não a estejam vendo, são estratégias de manipulação de sinais desenvolvidas por pessoas cegas para manter uma fachada em uma interação face a face. Dora fala sobre a postura de se voltar ou não para o lugar “certo” quando está falando com uma pessoa, e do quanto custou a perceber que era uma convenção social que ela, por ser cega, não cumpria, já que não encontrava funcionalidade específica para essa postura na sua comunicação com as outras pessoas.

Eu custei a perceber, porque eu acho que foi um erro das pessoas da minha família não me terem chamado a atenção disso. Acho que também não chamaram a atenção porque se acostumaram, né? Porque é o seguinte, cego começa a falar, e aí eu

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levanto para pegar água e continuo falando lá da cozinha, eu sei que se você pode me escutar, você está escutando o que eu estou falando. Mas as pessoas que veem, elas normalmente não fazem isso, elas falam e tem ao mesmo tempo um contato visual. Elas têm aquela ponte. E o cego não tem isso, ele fala de qualquer maneira, fala em qualquer postura, ele está fazendo alguma coisa e está falando, ele não está olhando para você, não está nem virado para você e está falando. Ele está prestando atenção em você, mas não está necessariamente olhando pra você, direcionado pra você como se fosse... visualmente, né? Porque a pessoa que vê ela entende direcionado como direcionado visualmente, mas ele pode estar direcionado auditivamente, ele pode estar virado de costas, mas ele pode estar direcionado, a atenção dele está toda em você. Só que ele não precisa estar virado, não vai adiantar nada se ele tiver virado para você, entende? Eu só descobri isso depois de velha, que eu fazia uma coisa que não era o normal que as pessoas faziam. Aí as pessoas podem não entender que eu posso não estar olhando para você, mas que eu estou prestando atenção em você.

Destaca-se nos depoimentos a diferença entre estados de atenção corporal auditivo ou visual em uma conversa. Atenção e direcionamento. Prestar atenção com a audição não exige uma postura determinada, enquanto prestar atenção com os olhos demanda uma retidão do corpo e um direcionamento específico, face a face, que limita inclusive a movimentação. Mas, como lembra Goffman (2011), as regras de conduta invadem o indivíduo, seja diretamente, uma obrigação que estabelece como ele é moralmente coagido a se conduzir; seja indiretamente, uma expectativa que indica como os outros são moralmente forçados a agir em relação a ele.

3.3 Corpo expressivo 3.3.1 “A palavra vence a cegueira”?

Em um encontro após um dia de Oficina Inclusiva, pergunto a Dora a respeito de suas impressões sobre o trabalho. Ela diz que a experiência de toque no corpo do outro, da proximidade física exploratória proposta nos exercícios de aquecimento teatral é algo novo para si. Tem o hábito de tocar objetos, percorrer espaços com as mãos, mas o toque aleatório nas pessoas e seus corpos, sem travas ou restrições sociais, diz que não existe na sociedade, mesmo para cegos. Quando tocam, não é com toda a possibilidade de explorar o corpo do outro, de ver com as mãos o tornozelo ou o pé, os detalhes. Acha que é um estereótipo dizer que a pessoa cega tem uma imagem tátil surpreendentemente bem desenvolvida já que ela não tem a oportunidade de tocar tudo o que gostaria. O estímulo ao tato no processo de desenvolvimento ou reabilitação de uma pessoa cega está mais relacionado às coisas e aos materiais, não aos corpos.

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Uma das coisas que entristece Pedro com a cegueira é não poder mais ver a beleza das mulheres: “é uma coisa que você não pode tocar „fulana, deixa eu tocar em você para ver como você é?‟, não deixa, não permite. Tatear e ver? Pode até pensar que está querendo... mas não é não, é para tatear para ver como é que é a pessoa, como é o formato do rosto. Tem pessoas que deixam, mas tem gente que não deixa”. No caso de cegos congênitos, o rito social de afastamento que impossibilita o toque no rosto e no corpo de outros pode ter como consequência o desconhecimento de características físicas e diferenças étnicas entre as pessoas. Dora recorda uma ocasião em que um acaso proporcionou a possibilidade de conhecer pelo tato as características físicas, especialmente do rosto, de uma japonesa.

É muito legal essa coisa das características anatômicas. Eu me lembro de um amigo meu cego que estava namorando uma japonesinha, isso a gente era bem novo. Aí ele pediu para ela para me mostrar as características físicas. O rosto, não é o olho só, mas essa parte, o osso malar (osso da bochecha) e o nariz, são no mesmo nível. É diferente o equilíbrio do oriental. Ele pediu porque queria me mostrar como eram diferentes as características. Essas coisas não se fazem e tem que ser feitas. A gente tinha que fazer isso, da diversidade das pessoas. Nossa, eu ia amar conhecer isso.

A discussão se a pessoa cega desenvolve ou não um tato privilegiado é ultrapassada neste depoimento porque independente disso, quando se trata de conhecer corporalmente as pessoas, sua aparência, expressão e forma física, a percepção pelo tato esbarra nas restrições sociais de afastamento dos indivíduos expressos nos ritos de evitamento ou de regulação do contato físico (Le Breton, 2011). Dora acredita que a noção do próprio corpo no espaço, das expressões e possibilidades desse corpo, é algo que não se desenvolve na educação de pessoas cegas. O que está implìcito na frase “a palavra vence a cegueira”, utilizada por Vygotsky e amplamente reverberada na área educacional, é a compreensão da comunicação como uma operação de transmissão de informação em um modelo de estímulo e resposta, num paralelo com a noção de cognição do cognitivismo clássico. A preocupação se centra na linguagem verbal como forma de compensação da deficiência visual, mas o que se deixa de lado é que a comunicação não é apenas uma operação de emissão e recepção de uma mensagem dita, mas o corpo inteiro está envolvido no ato de comunicar. Birdwhistell (1990) é um dos autores que se dedica a compreender os movimentos do corpo durante as interações como uma forma de linguagem. O autor entende o sistema de comunicação como algo que internalizamos no processo de se tornar humano. Ganhar controle da linguagem, entretanto, não é a simples acumulação

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de um agregado de palavras, não é possuir um determinado tamanho de vocabulário. Envolve a encorporação de um complexo sistema de movimentos, comportamentos e gestos que constituem formas comunicacionais tanto quanto as palavras. Na análise cinésica proposta por Birdwhistell as gestualidades, as mímicas ou as movimentações não são isoláveis do sistema global de comunicação, que também inclui a língua, os silêncios ou a tonalidade da voz. Dora acha que a preocupação com o desenvolvimento motor e funcional na educação de uma criança cega é fundamental, mas não suficiente. Sente que houve um déficit na sua formação na parte da expressão corporal. Ao começar a se dar conta do alcance desse déficit, foi percebendo que ele está ligado a anatomia do seu rosto, do seu corpo, aos músculos que não aprendeu a mexer. Sente como se nunca tivesse usado alguns músculos, que estão eles amortecidos. As pessoas pensam no funcional, que aquela pessoa não pode ficar com um déficit motor, na marcha, na mobilidade. Não pode atrofiar. O que está muito certo, que não pode mesmo. Só que eu acho isso pouco. Você fala de estimulação. Primeiro questiono o precoce, porque precoce? É estimulação adequada, não é precoce. Segundo que você centrar só no funcional? Cada vez mais eu me dou conta do quanto de informação que eu não tenho e do quanto de feedback que eu não tenho por ser cega. E o fato de eu não ter esse feedback, nem dos outros, de não saber como é a expressão dos outros, nem a minha, faz com que eu também não tenha o controle dos meus músculos faciais, faz com que eu não tenha essa consciência e esse controle. Fora todas as informações posturais, das outras pessoas, eu não tenho essa informação. O que acontece com a estimulação precoce? Procura-se desenvolver movimentos para a criança poder ter autonomia, poder se locomover bem, poder se desenvolver legal. Como questão motora, como função. Beleza. Agora e o corpo como expressão? Acho que as pessoas não tem essa noção. Eu acho que a estimulação precoce tinha que incluir isso. Expressão corporal, expressão facial e essa comunicação de informação gestual. Para mim são três coisas. São três coisas que a gente fica fora, literalmente fora.

Focar na parte verbal da linguagem na educação de cegos é silenciar para todo um complexo corporal comunicativo. Um legado que é também cultural, como lembra Birdwhistell. Tanto quanto não existem palavras universais, nenhum som complexo que carregue o mesmo significado mundo afora, não existem movimentos corporais (body motion), expressões faciais ou gestos que provoquem respostas idênticas mundo afora. A comunicação corporal é moldada pela cultura. Ana também comenta a expressão facial de cegos e faz uma diferenciação entre cegos congênitos e cegos tardios. Levanta a suposição, que frisa como hipotética, de que cegos de nascença não tenham muita expressão facial. O que não seria o caso de cegos tardios, que já enxergaram. Um dia Dora me perguntou se eu conseguiria dizer, pelo uso

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que um cego faz de sua expressão facial, se a cegueira dele é congênita ou tardia. Nunca consegui responder com segurança a essa pergunta, mas acredito que não saberia. Talvez porque a invisibilidade para os outros e para si na cegueira de que nos fala Hull (1997), também tenham efeitos na expressão facial de quem se torna cego. Beatriz fala sobre a musculatura do rosto, mais especificamente a musculatura da boca, quando comenta sua experiência de beijar cegos congênitos. Acha que quem nasce cego não desenvolve a musculatura e o movimento da boca se não for estimulado, enquanto quem enxerga vê na televisão, no cinema ou ao vivo os movimentos dos beijos e imita. O foco na funcionalidade corporal e no desenvolvimento motor na educação de cegos, se por um lado privilegia a independência e a autonomia, por outro os aparta de um componente significativo da cultura atualizado nos corpos e nos movimentos. Ao longo da pesquisa, nas conversas formais e informais que tive com Dora a partir do privilégio da relação que desenvolvemos, pude acompanhar mais de perto o alcance dessa temática e as marcas dessa exclusão, que ela corajosamente busca recuperar. Tem duas coisas para mim, duas frustrações totais que eu nunca consegui participar. Uma é aquela brincadeira de mímica - „qual o nome do filme?‟ – eu sou incapaz. Mímica de filme, mímica de música, isso para mim não é uma brincadeira, isso para mim é uma morte, é uma tortura. Porque eu não tenho a menor noção, eu não sei fazer nada, eu não sei como fazer. Eu já não estou nem querendo como descobrir, como descobrir eu posso até passar a mão na pessoa, sei lá. É você não ter aquele vocabulário, é você não ter aquele universo, você não falar aquela língua. Para mim é uma coisa que sempre me deu curto-circuito. „Vamos brincar de mìmica?‟, para mim era pânico, eu entro em pânico, porque é uma coisa que dá aquele sentimento de impotência, sabe essa sensação? De você dizer assim „ai, não vai dar para mim, essa aì eu estou fora‟. Mesmo sabendo racionalmente que é tudo uma brincadeira, mas é um desconforto. A outra coisa é o motivo pelo qual eu nunca fui fazer Tai Chi, porque a sessão que eu fui de Tai Chi era aquele negócio de fazer os bichos. Eu não sei fazer bicho nenhum, gente. „Faz o bicho não sei qual, faz como o bicho não sei qual, faz o tigre‟. Eu não sei fazer os bichos. Eu não vejo os bichos, eu não sei.

Grande parte das nossas ações corporais são inerentes a necessidades humanas essenciais, como caminhar, sentar, comer, levantar, etc., mas a atitude corporal é um aprendizado e ela se expressa nas infinitas possibilidades de como realizar essas ações (Laban, 1978). Embora seja também linguagem (“é você não falar aquela lìngua”), entender pelas palavras não é o mesmo que entender pelo movimento, a descrição verbal não dá conta. Uma das situações descritas por Moraes (2007) sobre o trabalho desenvolvido em uma oficina de expressão corporal no IBC, onde se buscava fazer compreender o

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movimento da bailarina a uma aluna cega, ilustra bem a limitação das palavras para descrever um gesto, de que nos fala Le Breton (2009), e a diferença entre a comunicação funcional verbal e o corpo expressivo que estamos tratando. Uma menina cega congênita que representaria a personagem da bailarina não conseguia entender o que lhe diziam a respeito dos movimentos da sua personagem – rodopiar com leveza pelo palco. Ela entendia o sentido das palavras que diziam, que a bailarina é leve, que ela dança levantando as mãos e gira em torno do próprio corpo, mas isso não era suficiente para que conseguisse devir-bailarina, isso é, encarnar, encorporar o movimento. A simples explicação do que é ser bailarina se mostrou pouco eficiente, a menina não era afetada pelas palavras, não conseguia se modificar a partir do que ouvia. Pesquisou-se mecanismos de tradução que produzissem um deslocamento do universo das palavras para o dos sentidos e das experiências corporais. Para que a menina entendesse a personagem bailarina, participaram o som da música, tatear peças do vestuário da bailarina e, para que compreendesse a leveza do movimento, a mediação de um grande balão de gás preenchido com grãos de arroz de forma que, com a circulação, produzisse um som suave. Com o movimento dos braços articulados ao balão - abraçar na frente do corpo, levantar no alto da cabeça, levar para o lado – foi possível construir com a menina os movimentos e a leveza dos braços da bailarina (Moraes, 2007, Moraes e colegas, 2009). Não poder ver a bailarina não significa que o movimento não possa se desenvolver de outras formas que não a descrição verbal, que parecia incapaz de transmitir sua essência. A especificidade do gesto é justamente a de ser diferente da linguagem verbal, transferir um registro físico a um registro verbal faz com que se perca o contexto e a sua especificidade. Laban (1978) introduziu a ideia de se pensar em termos de movimento em oposição a se pensar em palavras. O pensar por movimentos é considerado pelo autor como um conjunto de impressões de acontecimentos. Tanto Laban quanto Birdwhistell desenvolvem métodos ou sistemas de análise para compreender os padrões de organização dos movimentos ou gestos. O movimento, apesar de um processo constante de mudanças contínuas, possui, para Laban (1978), padrões singulares de ordenações rítmicas. O autor desenvolve uma espécie de partitura de movimento, semelhante à musical, que possibilita diversas interpretações teórico/corporais. A esse método de escrita do movimento dá o nome de cinesiografia. Desdobra o movimento até seus elementos mais simples para chegar a fonemas de uma gramática ou notas musicais, que se articulam para formar frases e até sintaxes 204

complexas. Laban descreve ações corporais com o objetivo de introduzir o estudante do movimento a exercícios destinados a treinar o corpo para ser um instrumento de expressão, enfatizando tanto a parte fisiológica quanto à parte psíquica que levam o ser humano a se movimentar. O que os autores ajudam a esclarecer é que o aprendizado da língua não exige somente a memória linguística ou a capacidade de gerar frases, mas requer a encenação da palavra, que por sua vez demanda ritmo, tonalidade da voz, movimentos do corpo, do rosto, atitude, esforço, determinadas posturas. Segundo Le Breton (2009), a apropriação de uma língua impõe o ingresso nas maneiras físicas de lê-la e compreendêla. Da mesma forma que existe uma língua materna, há uma corporeidade materna, com a qual o indivíduo está mais acostumado a viver sua relação física com o mundo. A ênfase maior no corpo funcional começa na educação de cegos em torno de uma idade específica, 6 anos. Não é arbitrária a coincidência dessa faixa etária com o desenvolvimento da linguagem verbal. O foco no corpo funcional representa o processo de adestramento do corpo aos costumes, ao ritualismo da interação que repousa sobre um uso preciso da distância com o outro e sobre a licitude dos contatos corporais de acordo com as circunstâncias (Le Breton, 2009). A educação de qualquer criança é centrada na palavra, o corpo é percebido como a dimensão despudorada da oralidade. Le Breton considera que a longa repressão imposta às linguagens de sinais empregadas pelos surdos em benefício de técnicas educativas como a oralização ou leitura labial, centradas na palavra, é reveladora do status depreciado do corpo na comunicação. As estratégias de normalização e o encobrimento ritualizado do corpo na vida social reforçam uma inciativa pedagógica centrada no aprendizado verbal e a linguagem de sinais foi considerada transgressão e por muitos anos proibida em diversos contextos culturais. Se a posse do verbo foi sempre considerada a manifestação de uma espécie de prova de plena pertença à humanidade, como sugere Le Breton (2009), compreende-se porque Vygotsky (1997) considerou que, apesar das limitações biológicas de movimento, o cego como personalidade, como unidade social, tenha perdido menos que o surdo - por ter acesso à palavra. Mas se pensarmos nos dias atuais, em que a Libras foi reconhecida como segunda língua oficial do Brasil 73, o destaque ainda atribuído à

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O artigo segundo do Decreto Nº 5.626 (dez/2005), que regulamenta a Lei 10.436 (abril/2002), dispõe: “Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende

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linguagem verbal na educação de cegos como compensação social da cegueira parece ter como efeito colateral mantê-los apartados de todo um universo cultural expressivo e comunicativo. A comunicação pode ser entendida não como um ato individual, mas como instituição social, como performance da cultura (Winkin, 1998). Os atores sociais participam de uma comunicação tanto com suas palavras quanto com seus gestos, seus olhares, seus silêncios. O espanto de Dora com a descoberta da abrangência da gestualidade enquanto comunicação é significativo da supervalorização do verbal e apagamento corporal no processo educativo de cegos. Eu minimizava isso, eu subestimava isso, a questão dos gestos e a questão da minha própria expressão facial. Porque eu achava... é como se eu me achasse menos... menos diferente. Eu achasse que isso fosse menos relevante. E de repente eu saquei a relevância disso, tanto a relevância dos gestos que eu não estou vendo, a relevância de gestos que eu não estou fazendo. A relevância das caras que eu não estou vendo e como eu não estou vendo também não sei fazer. É como se eu achasse que isso fosse irrelevante para a minha relação com as pessoas. Eu achava que isso era muito mais irrelevante, mas não é. (...) Essa questão da estimulação vem muito de uma linha da pedagogia, fisioterapia, educação física, psicomotricidade, entendeu? E não vem da arte. Não tem arte. Não tem arte na educação da pessoa cega. Ou tem, mas fica pobre. Quando se pensa em educação, você pensa só a questão funcional. Na verdade não tem arte para ninguém. Mas acontece que a criança que vê ela olha nem que seja o muro grafitado, ela olha uma foto, ela olha o desenho, ela faz o desenho, ela vê novela. Eu por não ter o feedback visual não consigo ter o domínio da minha máscara, o domínio total da minha máscara. Eu não consigo ter controle.

Se não há um código igualmente rigoroso para os movimentos do corpo como o alfabeto seria para a linguagem, se os movimentos corporais são fugazes, polissêmicos, ambíguos a ponto de não se deixar apreender em categorias transparentes (Le Breton, 2009), a arte, mais especificamente o teatro e a dança, são os campos que melhor aprofundaram, na prática, a compreensão e o desenvolvimento de técnicas de treinamento e estímulo da expressividade e dos movimentos corporais.

3.3.2 Teatro e expressão corporal Eu acho que tem uma coisa que é muito maior para nós, cegos, nesse trabalho... o mundo é um lugar onde você está sendo visto. Na verdade o mundo é um grande teatro né? (...) nessas últimas experiências eu fui ficando menos ingênua e me dando conta. E isso me marcou. Não é a forma de entender, porque não é uma mudança intelectual. Muda a forma de estar no mundo. Abriu a janela da expressão. (Dora)

e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras”.

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Para tentar recuperar a lacuna que passou a sentir na expressão e na estrutura corporal, Dora se aproximou, justamente, da cena teatral. A inserção em trabalhos teatrais, onde o instrumento é o corpo e que se utiliza de signos como o gesto e a mímica (Bogatyriov, 1978), possibilita a Dora se conscientizar da relevância desses recursos para a comunicação entre as pessoas e em sua própria expressividade. De acordo com Veltrusky (1978), a base do drama é a ação. No teatro a ação é um fim em si mesmo e é estruturada com o objetivo de ser compreendida pelo auditório, por meio de uma série significativa e coerente de signos. O público vai ao teatro para ver os atores, a relação em cena, o figurino, o cenário. Na linguagem teatral, todo movimento e todo gesto são abrangentes para a plateia. Os atores estão sendo vistos quando estão em cena e precisam levar esse fato em consideração a todo o momento. Prado (1985) coloca que no teatro não importa que o ator sinta, dentro de si, a paixão que lhe cabe interpretar, é preciso que a exteriorize, pelas inflexões, por certo timbre de voz, pela maneira de andar e olhar, pela expressão corporal. Dora me explicou que a sua descoberta do significado dos gestos e das expressões faciais na comunicação com as pessoas não se refere a emoções primordiais, como raiva, medo, alegria ou tristeza. Na interação com os outros percebe que consegue transmitir certos sentimentos através da expressão e, quando muito fortes, é inclusive incapaz de escondê-los. Sua descoberta se refere à passagem entre o sentimento e a ideia, ao uso intencional de trejeitos ou movimentos corporais para transmitir um pensamento, uma opinião, um juízo. A importância da intermediação da arte não apenas no desenvolvimento educacional da criança cega, mas no processo de reabilitação de pessoas que ficam cegas, vem sendo reconhecida na iniciativa precursora de alguns pesquisadores. Desenvolvem, muitas vezes de forma voluntária, oficinas que incluem o teatro, a dança, a música, as artes plásticas, a cerâmica ou outros recursos artísticos expressivos como metodologias fundamentais de seus trabalhos com cegos74. Na oficina “Teatro, Criatividade e Imaginação”, que desenvolvi em parceria com Clara de Andrade no IBC, a fotografia corporal e o toque dos outros participantes em

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Além do trabalho de Moraes, citado anteriormente, é imprescindível mencionar no cenário carioca as pesquisas de Kastrup (2007a), Gonçalves (2009) e Pozzana (2013), as quais entrei em contato de forma mais ou menos aproximada ao longo desses anos de pesquisa. Vale salientar que tais menções são direcionadas pela minha própria experiência de trabalho de campo e não um levantamento exaustivo de pesquisas sobre a temática da arte na educação de deficientes visuais. Sobre o assunto, ver ainda Moraes e Kastrup (2010), Oliveira (2002) e Cunha (2004).

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quem a realizava foi um dos recursos utilizados para a apreensão da expressão corporal de outros nos exercícios propostos. Mas a técnica dependia da estratégia de “estátua”, congelar o movimento e a expressão por tempo suficiente para que os outros participantes pudessem tatear e compreender. Em outros momentos, para estimular movimentos diferentes do cotidiano, utilizávamos nossos próprios corpos como estratégia de direcionamento, de forma semelhante à descrita por Gonçalves (2009): “atrizes videntes colavam o seu corpo ao corpo das atrizes cegas, esta junção corporal permitia que as atrizes cegas percebessem maneiras diferenciadas de utilizar o corpo no espaço cênico, seja com relação à lateralidade, planos e profundidade” (2009:49). Para um ator cego, a construção corporal da personagem ou a expressão de si, para usar o termo de Goffman (1996), não passa pela imitação em um sentido estritamente visual. Mas outros recursos são utilizados para incentivar os atores ou participantes cegos no trabalho de construção corporal e expressivo de si mesmos. Os exercícios que envolvem o toque, o contato físico com outros corpos, têm também o intuito de trazer à consciência formas corporais e possibilidades expressivas a serem exploradas. Outro ponto se refere à intenção da fala, a veracidade com que se exprime um texto ou um depoimento, uma busca que passa pela pesquisa de sentimentos e intencionalidades do ator. No caso da oficina que desenvolvemos, falas que representavam experiências de opressão vivenciadas pelos próprios participantes. Gonçalves (2009) realizou uma extensa pesquisa gestual e expressiva com atores cegos e não cegos e destaca a importância do ator cego desenvolver um conhecimento profundo do corpo, para que alcance o domínio do movimento e para construir um acervo de possibilidades de formas. Levando-nos a pensar nas infinitas maneiras que existem para o ato de se sentar, a autora propõe ir além das limitações para traçar a ponte entre corpo expressivo e corpo cotidiano (ou funcional) no trabalho com cegos. Pozzana (2013) também menciona as mediações na descrição de movimentos e gestos na oficina de expressão corporal que desenvolveu no IBC: indicar com a fala o que estivesse fazendo corporalmente, o trabalho com o toque e a importância da palavra encarnada. Para a autora a mobilidade convocada e exercitada pela prática corporal grupal com pessoas com deficiência visual abre o corpo para uma experimentação de si, do espaço e dos afetos, produzindo corpos mais articulados e sensíveis. A intervenção da oficina tem efeitos que considera clínicos, uma vez que se mostram capazes de ativar a vitalidade nos corpos e produzir confiança no mundo (beneficiando especialmente o trabalho realizado nos atendimentos de OM). 208

Dora, que realizou um dos trabalhos desenvolvidos por Gonçalves, a oficina “Imagens Vivas”, descreve suas impressões:

Quando eu fui fazer através daquilo que eu tinha percebido no corpo dele, aí caiu uma montoeira de ficha, atolou o orelhão de tanta ficha. Primeiro eu me dei conta do quanto a gente não está acostumado, no dia a dia, a tocar o corpo das pessoas. Então quando a gente toca, mesmo que a proposta seja aquela, você fica meio tímido para fazer aquilo, de sair tocando, vendo assim músculo por músculo, dedinho por dedinho como é que está aquela pessoa. Segundo que mesmo que você consiga ultrapassar esse sem jeito, essa timidez, como você não está acostumado a tocar, a sua mente não está acostumada a reter toda aquela informação gestual, porque é uma coisa que você não está acostumado no seu dia a dia. (...) Você está conversando comigo e está olhando todos os gestos que eu estou fazendo, se eu boto a mão para cima, se eu boto a mão para baixo, se eu viro para o lado, se eu viro para cá... e eu não estou vendo os gestos que você está fazendo, então como é que eu não ter esse exercício de ver os gestos dificulta na hora que então eu vou lá, toco uma pessoa e depois vou reproduzir, como é que eu ainda estou primitiva em relação a isso, como é que eu fico torpe né? Porque é uma coisa que eu fiz muito menos na vida.

Se os gestos, as mìmicas ou as “caras” utilizadas pelas pessoas no dia a dia não podem ser apreendidos visualmente por pessoas cegas, a linguagem corporal, por meio do tato, possibilita o aprendizado. Justamente espaços que rompem com as restrições sociais ao toque corporal permitem entrar em contato com esse reservatório gestual, através de oficinas artísticas ou teatrais que têm como proposta a pesquisa expressiva. Importante ressaltar que no caso relatado por Dora os participantes eram pessoas cegas e não cegas, a interação entre as duas formas de estar no mundo possibilitando a troca e o aprendizado. Para os dois lados, como nos diz Dora: Quando eu fui fazendo ele ia consertando as coisas que eu fazia errado porque não tinha guardado direito, mas ele também consertava as próprias imprecisões dele mesmo, ele ia sacando assim, “ih isso aqui eu acho que eu não fiz legal não”... através de mim ele ia refinando a própria percepção dele. Então uma coisa legal que eu vi naquele exercício foi como que, através dessa experiência com a pessoa cega, o próprio ator pode refinar o seu próprio gesto. (...) Meu trabalho com atores é esse de eu poder ganhar de alguma forma, pelo menos em parte, esse recurso. Eu quero ganhar esse recurso. De comunicação. Ganhar esse controle de mim mesma. E quero ter esse feedback da minha expressão. Porque quando você não está se vendo, muitas vezes você não tem o ajuste fino da sua própria expressão. Eu quero ganhar isso. E eu tenho certeza que nesse trabalho de ganhar esse recurso expressivo eu também vou estar propiciando que o ator aumente os dele, porque na hora que ele tiver que passar com palavras, que me explicar com palavras o quê que é, ele vai aumentar a consciência dele mesmo sobre os recursos dele.

No trabalho de interação entre teatro e a cegueira observa-se a inserção de um terceiro elemento entre a irredutibilidade do visível e da palavra, a que se refere Foucault (2000) quando reflete sobre a representação a partir do quadro de Velázquez. Não é que a palavra seja imperfeita, estando em um déficit em face do visível, mas um e 209

outro são irredutìveis: “por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aqueles que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem” (Foucault, 2000:11). A intermediação do toque na relação entre aquele que vê, mas não está sendo visto e aquele que não vê, mas está sendo visto para a compreensão de uma imagem por quem não enxerga pode exercer uma função de aproximação entre o visível e a palavra, ou dar relevo à descrição de uma imagem visual. Apesar de uma preocupação para todos, a questão de ser visto aparece como um ponto especialmente relevante na atuação de cegos. Por não enxergarem, atores cegos têm uma dificuldade maior de entender o corpo que está sendo visto e que, portanto, comunica. A máscara facial de uma personagem muda se ela experimenta emoções ou disposições variadas como raiva, espanto, medo, alegria, amor, dúvida. O que influencia sua forma de se movimentar. Dora acha que tem expressões que não sabe como fazer, que a sua musculatura não foi treinada a desenvolver. Ao tentar me explicar como se sente, faz uma comparação com o aprendizado de técnicas e movimentos por um músico ou artista plástico, bastante pertinente para refletirmos sobre o desenvolvimento de técnicas para se ensinar expressões e movimentos para pessoas cegas.

Imagina um pianista. O pianista ele tem o controle motor dos dedos, né? Preciso. Milimétrico. A pessoa que não tem aquele treinamento, ela nem sabe como é que faz para conseguir fazer aquilo que ele faz. Não é assim? A mesma coisa o pintor, o pintor tem aquela destreza, o pincel obedece ele no milímetro, no mínimo, naquele micro... é aquela técnica, mas é um treinamento, é um adestramento muscular. É como se eu não tivesse esse adestramento muscular da face, para fazer aquelas coisas, aquelas sutilezas... é como se eu não tivesse esse adestramento, que eu acho que eu realmente não tive. Então eu acho que tem coisas que me faltam. E eu não sei nem o que é que falta, eu sei que falta. E isso é uma coisa que eu nem sei medir o quanto que é diferente a minha expressão. Eu não sei medir.

A arte dramática foi a que melhor desenvolveu técnicas de expressão e movimentos que, de certa forma, imitam a comunicação e a interação humanas. Para Katz (2009) a técnica muitas vezes é tratada como um conjunto de saberes prontos, disponíveis para reprodução por imitação. Entretanto, na esfera da dança, dominar bem uma técnica não significa dançar bem, a técnica é entendida como condição necessária, mas não suficiente. Depois da técnica, é preciso superá-la. A superação seria a conquista de um modo próprio de lidar com o conhecimento que advém da técnica.

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A imitação é uma das noções fundamentais que vem ganhando corpo ao se pensar a transmissão de conhecimento e cultura. Já vimos como essa ideia aparece em Mauss e em Ingold. Aqui ela ressurge ao se pensar o corpo como linguagem e expressão na comunicação de pessoas cegas. Birdwhistell (1990) rejeita uma fórmula simplista que descreve o aprendizado humano como derivado seja do percepto verbal – aviso, punição, recompensa – seja da imitação. O autor aponta que a imitação, como um conceito, é uma categoria abrangente na qual os teóricos sociais colocam tudo o que não é armazenado e transmitido pelas palavras. O reconhecimento de que boa parte do aprendizado e da interação social são apreendidos por imitação é importante, mas para o autor, não abre imediatamente o universo comportamental à observação e compreensão. Pesquisadores como Laban, que organizou uma topografia classificatória do movimento, ou o próprio Birdwhistell se dedicaram a apurar alguns aspectos desse fenômeno. Greiner e Katz (2001) dizem que a imitação tem sido apontada como uma habilidade importante no que se refere aos estudos da cultura e vem sendo tratada como um aspecto fundamental para a compreensão do trânsito de informações que estão no mundo e a sua possibilidade de internalização. Quando copiamos uns aos outros, algo aparentemente intangível é passado. Essa é uma chave importante para a organização cultural e esse algo a ser transmitido, um aspecto importante da questão. A imitação, para Tarde (1976), é inventiva. Ela ocorre principalmente do interior para o exterior do ser humano. Quando se imita alguém o que está sendo imitado é especialmente aquilo que o move e não apenas aparências externas. Para Greiner e Katz (2001), no corpo humano estão as evidências da inevitabilidade de ser contaminado e de contaminar. Corpo como uma porta de vaivém que promove e rompe contatos. Cada tipo de aprendizado traz uma rede particular de conexões ao corpo. Quando se aprende um movimento, aprende-se junto o que vem antes e o que vem depois dele. O corpo se habitua a conectá-los. Desenvolver técnicas de imitação do movimento e a consciência da expressão corporal, de que cada parte do corpo pode ser um signo, mesmo quando o sentido visual não é preponderante ou é inexistente, é uma das contribuições substanciais que o teatro e a dança, especialmente, mas também outras formas de expressão artística podem dar à educação ou reabilitação de pessoas cegas.

3.3.3 Sexualidade, gênero e relacionamentos amorosos 211

A partir especialmente da década de 60, na sociedade ocidental, a sexualidade, a vida privada, a intimidade e o afeto emergem como temas centrais para a reflexão sobre o indivíduo moderno (Giddens, 1993, Heilborn e Brandão, 1999). Como apontam Heilborn e Brandão (1999), uma abordagem de influência construtivista considera que os significados sexuais e a própria noção de experiência ou comportamento sexual não podem ser generalizados, já que se ancoram em teias de significado que se articulam a outras modalidades de classificação, como sistema de parentesco e gênero, classificação etária, estrutura de privilégios sociais e distribuição de riquezas, entre outros. A proposta nesse momento é abordar algumas configurações específicas que surgem da interface entre cegueira, corpo e relações afetivo-sexuais no depoimento dos entrevistados. É preciso ressaltar o viés de gênero na abordagem desse tema, uma vez que as conversas que tive com as mulheres cegas foram mais abertas e mais profundas do que as conversas que tive com os homens, ainda que tenha falado sobre isso com eles também. Esse ponto é atravessado não somente pelo gênero da pesquisadora, mas pelas representações culturais de gênero, em que os homens são comumente percebidos como mais fechados e reservados, especialmente no que diz respeito aos assuntos considerados privados, enquanto as mulheres são percebidas como mais abertas e mais falantes, inclusive em temas relacionados à esfera íntima. Como afirma Bozon (2004), as mulheres falam muito mais do que os homens de sua vida sexual e amorosa, suas confidentes são muitas vezes mulheres e as confidências não se situam no registro do relato técnico da experiência sexual, mas no relato da história dos relacionamentos, da evolução dos sentimentos e dos problemas enfrentados com o parceiro. O primeiro ponto que destaco é a iniciação sexual das mulheres cegas pesquisadas e o início de sua vida amorosa. Falo mais especificamente dos casos de Beatriz, Dora, Ana e Camila. Ana se relacionou sexualmente pela primeira vez com o seu primeiro marido. Ela tinha 25 anos. Seu pai tinha uma mentalidade bastante conservadora e dizia que se ela perdesse a virgindade antes de se casar a botaria para fora de casa. Vivia sob essa chantagem e, segundo ela, teve que se casar para perder a virgindade. Seu primeiro marido tinha baixa visão e eles se conheceram no IBC. Ficaram cinco anos juntos. Se separou por causa do “gênio forte” dele. Dora se relacionou sexualmente aos 20 anos com seu primeiro namorado. Ele tinha baixa visão. Ela considera que teve uma adolescência difícil e se sentia muito 212

excluída por conta da deficiência. Quando começou a namorar já estava na faculdade, aos 19 anos. Naquele tempo não se falava sobre sexo com os pais e para transar com o namorado Dora tinha que inventar uma desculpa, dizer que ia dormir na casa de uma amiga e ir para o motel. Mais tarde quis sair de casa e morar sozinha, mas seus pais fizeram tanto drama que não foi. Só saiu de casa aos 30 anos quando se casou com seu primeiro marido. Ele era “cego novo”, perdeu a visão por conta da diabete. Com menos de um ano de casada ficou viúva, ele teve complicações por causa da doença e faleceu. Já Camila perdeu a virgindade aos 23 anos com um namorado que conheceu no grupo de jovens, que depois virou seu marido. Na época ela tinha baixa visão e seu namorado era “enxergante”. Ela se casou com 25 anos, eles ficaram casados até recentemente e têm uma filha. Camila considera que seu casamento era fortemente baseado em uma relação de ajuda, dele para ela. Acha que ele é uma pessoa que gosta de fazer coisas pelos outros e que viu nela alguém que precisava muito de apoio. Antes de se separarem, ficaram três anos morando juntos, mas sem se relacionarem sexualmente. Hoje em dia Camila namora uma pessoa que também é cega e que conheceu no IBC. Fala que em sua nova relação não tem “comando”, é uma relação de troca e fortalecimento mútuos. Beatriz também lembra da dureza de sua adolescência por causa da perda gradual da visão. Quando o processo foi se acelerando, ela passou a ficar muito tempo em casa e não viveu a fase da adolescência, não saía para a balada, não namorou, se sentia muito insegura. Com 19 anos tomou a iniciativa de ir para o IBC fazer a reabilitação. Lá conheceu seu primeiro marido que, por causa de um glaucoma, perdeu uma vista, mas enxergava normal da outra e era instrutor de judô. Quando começaram a namorar ela tinha 20 anos e ficaram 12 anos casados. Ele é pai de sua filha, hoje adolescente. Beatriz se encantou porque ele lhe deu tudo o que não tinha vivido na vida até então – passou a sair, ir para festas, dançar, namorar. Tudo o que não pode fazer na adolescência fez naquele momento, com uma pessoa que a amava e que cuidava dela. Mergulhou de cabeça e ficou deslumbrada com tudo aquilo. Depois de 6 ou 7 anos de relação, já com filha pequena, Beatriz começou a sentir uma insatisfação que não sabia de onde vinha. Fez terapia e descobriu que o grande problema de sua vida era seu casamento, que na verdade nunca tinha realmente gostado do marido, mas sim de tudo o que aconteceu com ela a partir da relação. Tudo que teve acesso através dele. Quando sentia isso, reprimia, por tudo o que ele tinha feito por ela. Quando finalmente não dava mais para empurrar para dentro da gaveta, ela se deu conta que nunca tinha amado 213

aquele homem. Acha que o que viveram juntos foi sensacional, teve um momento de deslumbre, mas que não o amou. Ficou com ele tanto tempo por uma série de razões, inclusive por gratidão. As quatro mulheres de que falamos têm mais de 40 anos. São de uma geração cuja idade média para a primeira relação sexual feminina costumava ser mais alta que a masculina, sendo comum mulheres dessa faixa etária responderem que perderam a virgindade em torno dos 20 anos (Goldenberg 2005). Podemos identificar em seus discursos a confluência de elementos tradicionais e modernos de família e casamento. Como explicitado de forma mais direta por Ana e Dora, elas são de uma geração em que a mulher não devia ter relações sexuais antes do casamento ou que só saiam da casa dos pais para viver com o marido. O desejo de uma vida independente aparece na trajetória de Dora, apesar de, naquele momento, ter sido frustrado. A primeira relação sexual ou o primeiro casamento surge na vida dessas mulheres cegas atrelados menos ao campo das decisões e escolhas individuais em uma busca pelo prazer ou o ideal de amor romântico (Giddens, 1993); e mais como um jeito de lidar com restrições que se fizeram presentes para elas, tanto pela família quanto por regulações sociais, por conta não somente do gênero, mas, também, da deficiência. Na trajetória de Beatriz o casamento é associado a uma forma de libertação. Se libertar da família, como sugerem os casos de Ana e Dora. Sair do lugar de filha deficiente que precisa ser cuidada para o lugar mais independente de mulher casada que, pelo casamento, finalmente consegue sair de casa. Se libertar do isolamento de uma adolescência socialmente excluída por causa da deficiência, como explicita Beatriz e também Dora. Através da relação a dois, conquistar o direito a uma vida social e afetiva, o direito a uma normalidade. Amor e paixão são motivações distantes do primeiro relacionamento. Quando se fala em amor, como nos casos de Camila ou Beatriz, é a partir de uma postura reflexiva posterior que constata a sua ausência. São também as experiências de Beatriz e Camila que nos fazem atentar para um ponto em comum que aparece nas suas relações entre mulher cega e homem “enxergante”. Os ex-maridos de Beatriz e de Camila enxergavam. Essa diferença surge tanto como elemento que catalisa uma aproximação quanto como elemento que afasta, quando estabelece posições desiguais na relação. O ex-marido de Camila gostava de ajudar as pessoas e viu nela alguém que precisava muito de apoio. Com o tempo, o que inicialmente era ajuda foi se transformando em dependência. Para resolver qualquer problema dependia dele, não ia a lugar nenhum sem ele. Beatriz também fala da relação 214

de cuidado e solidariedade que se estabeleceu entre o ex-marido e ela. As duas iniciaram suas relações quando eram jovens, sexualmente inexperientes e inseguras. Insegurança advinda não só da juventude ou falta de experiência, mas especialmente da deficiência recém adquirida. Beatriz fala de um período de extremo isolamento social quando viveu a conjunção entre adolescência e deficiência visual, e é justamente no seu movimento de saída dessa situação que conhece o ex-marido e iniciam a relação. O casamento é, no princípio, uma forma de acesso ao mundo. Homens que enxergam e que também por isso acabam desempenhando o papel de cuidador. Relação ambígua de ajuda e cuidado que também se transforma em submissão e dependência. Podemos pensar em suas relações como uma equação complexa que congrega as ideias de deficiência, exclusão, dependência e ajuda. O desequilíbrio acontece a partir do momento em que, tanto Camila quanto Beatriz, transformam a maneira como lidam com a sua deficiência e, consequentemente, a forma como se relacionam com seus companheiros. Camila vai fazer reabilitação no IBC, conhece um novo grupo de amigos, passa a andar mais sozinha, deixa de pedir ajuda para o ex-marido, por exemplo, para ele busca-la no metrô quando volta pra casa, coisa que até então era considerada comum na relação deles. Beatriz fala de um processo de autoconhecimento e reflexividade presente nas práticas terapêuticas que a permite perceber o peso de uma adolescência frustrada pela deficiência para a relação que estabeleceu com o ex-marido. Se não tivesse sido tão privada de viver a adolescência e as experiências que se vive nessa fase – de amizade, de namoro, de conhecimento do mundo – acha que não teria tanta carência e não teria se submetido e se enganado tanto ou por tanto tempo. Beatriz, após a separação, fala de uma fase de experimentação de si e vivência da sexualidade que associa a um resgate da adolescência não vivida.

Quando eu saí do casamento, eu saí feito vaca doida né? (risos). Menina, aqueles homens todos que davam em cima de mim, amigos tá, os chamados amigos, que davam em cima de mim e que eu fingia que não via, dei para todos eles. Nossa senhora... olha, toda sexta feira eu estava na Lapa, aí eu fui viver a minha adolescência aos 35 anos. Depois passou. Engraçado como isso passa né? A coisa vai diminuindo, diminuindo... essa coisa de ter essa quantidade sem se preocupar com a qualidade. Hoje mudou tudo, mas na época que eu me separei, nossa senhora, eu não queria nem saber. Foi realmente o que eu precisava viver mesmo, que eu não vivi lá atrás.

Podemos aproximar as transformações vividas por Beatriz e Camila em seus primeiros casamentos ao que Vaitsman (1994) identifica nas trajetórias das mulheres

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que pesquisou, quando o desenvolvimento da individualidade feminina desafia micropoderes nas relações domésticas. Desenvolver uma maior independência, autonomia ou conhecimento de si provoca, nas trajetórias de Beatriz e Camila, uma transformação no que buscam nas relações íntimas. Seus discursos sobre o que desejam ou vivem nas relações amorosas posteriores estão mais próximos de uma concepção de relacionamento mais igualitária, baseada numa ideia de troca. Para Beatriz a satisfação sexual não é mais motor suficiente para estabelecer relacionamentos. O que ela busca em um homem é o que chama de maturidade. Hoje em dia você arrumar pessoas para transar tem, mas eu não quero mais isso, eu passei dessa fase, entendeu? Eu quero outra coisa, eu queria realmente... o que eu busco realmente num homem é a maturidade. Qualquer outra coisa... é aquele negócio né, qual é a pedra grande? Primeiro a gente bota a pedra grande porque as outras, qualquer buraquinho elas se encaixam, a gente vai dando o nosso jeito. A pedra grande de um homem para mim é a maturidade. (...) Estou em busca de uma relação legal, de uma coisa tranquila, entendeu? Não quero relação para estressar, relação para cobrar, relação convencional, relação que tenha que ter nome...

Quando Camila sai com seu novo parceiro, que também é cego, diz que não tem comando. É um relacionamento constroem com base no equilíbrio e muita troca. Desde o início conversam bastante, se apoiam nas dificuldades com a cegueira, fortalecem um ao outro, se divertem e riem muito juntos. Por ele também ser cego acha que não gera insegurança, sente que estão no mesmo mundo. A nova relação é muito aberta, muito livre e nunca foi sofrível para nenhum dos dois. Tem sido uma descoberta e sexualmente ela se solta muito mais. A maior liberdade e autonomia feminina nos casos que descrevemos passa pela aceitação da cegueira e pela transformação na forma como vivem sua deficiência. Sair de um lugar de dependente para um lugar de autonomia via dispositivos, técnicas e convívio com outras pessoas cegas que desencadeiam a reelaboração de uma narrativa do “eu”. A mudança de comportamento abala seus casamentos, construídos em torno de um modelo hierárquico em que a submissão feminina se somava à submissão pela deficiência, ou a dependência, ainda que em um primeiro momento esse mesmo casamento também tenha sido um meio para alcançar certa autonomia, especialmente em relação à família e mesmo em relação a um lugar de marginalidade ou exclusão social. O que se segue, para Camila e para Beatriz, além da experimentação sexual e busca pelo prazer, é a procura por relações que se aproximam do que Giddens (1993)

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chama de amor confluente. Relações fundadas em ideais de reciprocidade, na construção de laços pessoais de igual para igual, na reflexividade e na intimidade. As dificuldades masculinas nas relações afetivo-sexuais a partir da cegueira aparecem nos depoimentos de Caetano, Pedro e Jair. O ponto mais penoso para Caetano na relação com a ex-mulher foi perder a sua condição financeira depois que ficou cego. Deixar de prover como provia antes. Esse foi um dos principais complicadores no seu casamento e daí adveio outros. Caetano foi atingido na sua capacidade de trabalho e se viu limitado na sua possibilidade de gerar renda para a família. Essa foi, para ele, a situação mais difícil que viveu com a cegueira. Caetano não perdeu somente a visão, mas o lugar simbólico de poder e prestígio social do masculino provedor, o que trouxe consequências para seu casamento. Já Pedro acha que ficou muito carente depois de cego. Conta que sempre foi muito namorador e que quando cegou ficou muito mais difícil encontrar namorada. Ainda sai de vez em quando, mas muito menos do que quando enxergava. Diz que só namora mulheres que enxergam, porque de cego basta ele. A dificuldade sentida por Pedro é especialmente de aproximação. Jair também sente falta de namorar, comenta que faz tempo que não beija na boca de uma mulher. Depois que ficou cego só se aproxima se receber um sinal muito claro. Costuma reconhecer isso pelo jeito de falar, mas diz que só vai “atacar” se a mulher estiver praticamente “pedindo”. Se não for assim, não “ataca” de jeito nenhum. Ficou mais desconfiado. Jair fez dança de salão e costuma sair bastante para dançar. Mesmo na dança ele não toma a iniciativa de aproximação porque tem medo que a mulher esteja “dando em cima” só para testá-lo, mas que na verdade o marido esteja do lado. Pode ser um jogo, tem medo de apanhar dos namorados ou maridos que imagina, não se sente seguro e prefere ficar tranquilo na sua. Beatriz também sente dificuldade no momento da paquera. A comparação do seu depoimento com o que nos trazem Pedro e Jair evidencia os papéis de gênero no jogo da sedução e a importância que o olhar adquire nesse jogo na cultura brasileira. Eu chego num lugar, por exemplo nós duas estamos aqui. Se a gente tiver com alguma proposta de paquerar, você dá uma olhada em volta e mesmo que não te agrade, que você não queira, você vai ver alguém te olhando. Porque sempre tem. Mesmo que a pessoa não esteja te olhando exatamente, se você olhar, você puxa o olhar dela. Sem chance que puxa. Isso aí já fudeu tudo. A gente não tem a questão do paquerar, a gente não tem a questão do saber que está sendo olhada, isso é cruel. A gente não sabe nem que está sendo olhada, entendeu? A não ser que alguém fale. Você não tem como corresponder a esse olhar, você não tem como fazer nada. O cego só namora, só

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encontra alguém quando é apresentado para alguém, ao contato direto. Tem que ter uma conversa, tem que ter um contato. Todas as pessoas que eu namorei foram amigos de um amigo, não sei o quê de não sei quem, foram pessoas que eu conheci diretamente. Porque aí conversa, surge tudo a partir dali. Agora você estar em um lugar por si só e criar essa situação ou se deixar levar por uma situação qualquer, não tem como.

Os depoimentos nos fazem pensar sobre os usos do corpo nas interações sexuais e amorosas. Jair e Pedro lamentam que, à ausência da visão, não consigam mais exercer o papel ativo na prática da sedução. Ao se interessar por uma mulher é a presença de outros homens imaginários que assombra Jair. Como sugere Connell (1995), a masculinidade deve ser pensada em função dos jogos de poder que se estabelecem entre os homens. Bourdieu (2003a) acrescenta que os jogos socialmente destinados aos homens têm a forma por excelência da guerra e da competição. Falta a Jair a coragem para avançar no jogo da sedução pela desvantagem que acredita que a falta da visão lhe coloca em relação a seus outros competidores, homens supostamente presentes e supostamente mais fortes e poderosos do que ele. Heilborn e Bozon (2001) identificam que, na cultura brasileira, os contatos corporais, as trocas de olhares e sorrisos, mais do que a troca verbal, funcionam como uma linguagem prática e sutil que assinala o estado das relações, operando as aproximações. A ausência da visão em uma cultura que excessivamente valoriza o visual nas práticas de aproximação e sedução, representa para o homem uma aproximação perigosa do lugar estigmatizado e passivo do feminino dominado (Misse 2007). Perda de poder e potência pela perda da capacidade de ação em um jogo fundamentalmente regrado pelo olhar. Com uma descrição etnográfica da sociedade cabila, Bourdieu (2003a) revela as estruturas simbólicas da dominação masculina presente nas práticas sociais de gênero. Dominação que constitui os homens como sujeitos e as mulheres como objetos simbólicos, cujo ser é um ser-percebido. Em estado permanente de dependência simbólica, a mulher existe pelo e para o olhar dos outros, enquanto objeto receptivo, atraente, disponível. A angústia de não saber que está sendo vista, explicitada por Beatriz, se aproxima de uma angústia do desaparecimento ou invisibilidade no jogo da paquera e da sedução. Tanto Jair quanto Beatriz dizem que, na ausência da visão como motivação para iniciar o flerte, a fala passa a desempenhar um papel fundamental. Ao invés do contato começar pela troca de olhares e sorrisos, tática de aproximação corporal comum no

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Brasil, as palavras e a conversa passam a ser o alicerce primário da aproximação, o que nos faz lembrar de outros contextos culturais, como a França, em que aparece a valorização extrema das palavras e dos contatos verbais no estabelecimento da relação amorosa (Heilborn e Bozon, 2001). A sugestão de Beatriz de que sem a visão as coisas surgem a partir da conversa alerta para esse deslocamento, em que a troca verbal passa a desempenhar o papel central na aproximação entre os parceiros. Uma performance mediada por palavras que precedem o contato físico e que o autorizam a acontecer. Camila e Beatriz trazem duas perspectivas sobre uma mesma situação, a experiência de ir ao motel com um parceiro que também é cego. Beatriz diz que namorar cego dá muito trabalho e foi exatamente o que falou para o único homem cego com quem saiu quando ele começou a demonstrar interesse por ela. Ele insistiu na paquera e acabaram ficando juntos em uma festa. Ele a convidou para o motel. Ela disse “você não está vendo que isso não vai dar certo?” e ele insistiu dizendo que um monte de cegos vai para o motel sem problema. Foram. Beatriz descreve a experiência: O taxista já falou assim „vocês vão ficar aqui?‟, „é, moço, vamos ficar aqui, por quê?‟. Aí entramos lá. Primeiro que tem que ir uma pessoa acompanhar a gente até o quarto. Aí você imagina o clima no elevador? Eu já estava reativa para a coisa, você imagina o cara levando a gente até o quarto? O clima no elevador, nós dois e o cara. Ai meu Deus... enfim, chegamos lá. Abrimos a porta e ele falou para o cara „tá, amigo, muito obrigado, não sei o quê‟, aì fechou a porta. Aì eu também comecei a aterrorizar, falei assim „e se ele não saiu?‟, „para com isso Beatriz, você está maluca?‟, „eu sei lá, e se ele não saiu, e se ele está aì dentro?‟, „para com isso‟. Aì eu falei „eu quero uma cerveja‟, aì ele „vou pegar‟. Aì foi andando, minha filha, esbarrou num negócio lá com um monte de copo em cima, eu falei „Jesus, toma conta‟, aì abriu o frigobar, um monte de latinhas lá dentro, aì pegou uma e falou assim „eu acho que essa aqui é‟, eu falei „acha porque? Porque que você acha se as latas são todas iguais?‟ (risos). Eu falei „ó, se abrir e não for, vai ter que pagar‟, ele abriu e era tônica, sei lá, „puta que pariu, é foda, não sei o que lá...‟, aì eu falei „eu acho melhor você falar para eles tirarem tudo daí, porque eu não vou tomar tônica, não vou tomar Coca-Cola, não vou tomar nada disso‟. Aì ele pegou o telefone e ligou lá pra baixo „amigo, tira esses negócios todos daqui, deixa só cerveja‟ (risos). Enfim, na hora de sair, (tem que pedir) ajuda também, eu acho tudo muito constrangedor, sinceramente. Com um parceiro que enxerga evitase tudo, na maioria das vezes inclusive você entra de carro, você nem passa por recepção nem nada. Eu acho constrangedor ter que depender de alguém para uma ação muito pessoal, muito particular, muito íntima. Essa é que é a questão. Uma pessoa que você não conhece, que não sabe nada da sua vida, mas que está participando ali de uma coisa... mesmo que indiretamente, mas caramba, poxa. Aí eu fico gente, tenho que passar por isso? Não tenho não, sinceramente. Querem chamar isso de preconceito? Ok, que seja.

Beatriz fala de uma experiência de constrangimento e desconforto, enquanto para Camila a experiência é prazerosa.

219

Teve uma vez que que nós passamos direto da porta, porque a gente estava muito próximo, „vamos andando mesmo, é logo aqui‟, passamos direto aì tinha um barzinho na esquina né, aì fomos assim, era um monte de cadeiras, aì o rapaz „vocês estão indo para a igreja?‟, aì a gente „não, brigada, a gente está indo um pouquinho à frente‟. Eu falei assim „ó, vamos voltar, porque a gente já passou‟, „ah, já?‟, „já passamos...‟, aì voltamos. Ó o mico hein. Aì nisso a gente voltou aì vem o rapaz „vocês querem ir para onde?‟, aì ele „número tal‟, „vou levar vocês‟, mas gente ele ria tanto o rapaz, (risos). Aì ele „porque é que vocês acham que cego só quer ir para a igreja hein?‟ (risos). Quando a gente chega aì falam assim „muito bom dia‟, até já somos conhecidos, „tudo bem?‟, „Tudo bem. Tem alguém que possa conduzir a gente lá em cima?‟, „tem sim‟, sempre vem uma pessoa, muito legalzinha, acho que eles estão ficando acostumados, porque a frequência está se tornando assim... legal. Aí abre a porta, tem que botar cartão, aì ele „liga o ar para mim, por favor?‟, porque se você for ficar tateando todo o quarto pra procurar onde estão as coisas... „ah, você me mostra?‟, aì ela vem com a minha mão, geralmente para mim, ele acha que eu sou mais desenrolada nesses negócios de botão. Aì ela „aqui é o rádio e tal, tá tudo aqui direitinho‟, aì eu vou logo, vejo onde pendura, sabe? E as pessoas já estão... até nesse lance, que eu acho engraçado, porque antigamente eu só faltava enterrar a minha cara no chão, mas depois eu fiquei achando (dá de ombros). Lá nesse lugar, é bom que assim... já estão sabendo. Direitinho. Aì quando você liga lá pra baixo „dá pra vir conduzir a gente‟, eles vão prontamente, sabe, toca, vem conduz, tem uns que chamam o táxi „quer que chame táxi?‟. O tempo é engraçado, o tempo a gente pega mais alguma horinha, porque senão, realmente, fica pouco. Aí fica conhecendo, aí bota as coisas no lugar, para não se perder na saída também, não deixar nada para trás. Ter um tempo assim, tem que ter uma organização.

O motel é um espaço para práticas sexuais, onde se exerce a sexualidade e o erotismo. O surgimento do motel no Brasil é associado por Guimarães e Cavalcanti (2007) às décadas de 1960 e 1970, na esteira da revolução sexual e do amor livre, como locais específicos para o sexo. Alugando um quarto por algumas horas, garantia-se a segurança, o anonimato e a privacidade para os encontros sexuais. A decoração e a organização do ambiente também se voltam para a privacidade e a prática sexual. Aos poucos, como sugere Malta (2008), alguns atrativos e uma estética específica foram sendo anexados ao quarto - hidromassagem, cama redonda, palco, filmes e revistas pornográficos, linhas ondulantes, aconchego próprio de estofados e superfícies macias como veludo ou seda. Lugar destinado ao encontro amoroso, para o exercício de uma sexualidade mais livre, sem compromisso, algumas vezes transgressora, o motel é um local de discrição e anonimato. Nos depoimentos de Beatriz e Camila aparece a impossibilidade de se manter a discrição e o anonimato que os frequentadores de motéis tipicamente procuram. Tanto Camila quanto Beatriz falam de um imperativo comunicativo para o acesso de pessoas cegas ao motel – não há como ir de carro, é preciso entrar a pé ou de táxi e para ter acesso ao quarto é indispensável passar pela recepção. Ter impreterivelmente que partilhar de um momento íntimo da sexualidade com terceiros gera o sentimento de constrangimento. Nos dois relatos surge o estranhamento e a reação preconceituosa de

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pessoas na rua com a vivência de uma sexualidade mais livre por pessoas cegas, o taxista no primeiro e o rapaz na rua no segundo. A frequência ao mesmo motel e a intimidade de Camila com o parceiro contribuem para atenuar os efeitos de um constrangimento que no depoimento de Beatriz é mais marcante e não se dilui. Camila fala da prática de reconhecimento do quarto e dos atrativos disponíveis que é feita junto com a funcionária – o ar condicionado e o controle do rádio, o local para pendurar as roupas. Ela parece incorporar a ação como parte do evento, o que traz fluidez à situação. Um ponto em comum nos seus relatos é a atenção que dão ao local em que depositam suas coisas, para não deixarem nada para trás na hora de ir embora. Como os dois parceiros dos relatos são cegos, um dos atrativos caracteristicamente presentes em quartos de motéis não aparece nos depoimentos, o espelho. Mas Beatriz, ao lembrar de outras experiências em motel com um parceiro que enxerga, fala do incômodo com o excesso de estímulo visual desses espaços, que a coloca em certa desvantagem em relação ao parceiro.

Às vezes eu me sinto um pouco constrangida com o raio do espelho. Esse negócio de estar sendo vista sem estar vendo incomoda um pouco. Eu lembro uma vez que eu estava em um motel com um cara eu tava falando alguma coisa e eu percebi que ele estava meio distraído, aí eu perguntei „tem espelho ali?‟, ele falou „não‟, aì eu falei „você está mentindo?‟, ele falou „tô‟ (risos).

À ausência do olhar, novamente são a audição e a fala que ganham destaque nos jogos de atração e nas práticas sexuais. Como não pode olhar durante o ato sexual, para Beatriz ouvir o parceiro é algo que a excita.

Numa relação específica, sexual, o olhar, você olhar para a coisa, excita? Todos dizem que sim. Mas se eu não estou podendo, eu preciso ouvir. E se o cara está ocupado olhando, ele pouco fala, certo? E eu não estou na mesma dele, porque eu não estou olhando né? Então isso geralmente é conversado, eu falo. Se você tem um estímulo visual, eu preciso ter o estímulo auditivo, se você está muito ocupado olhando, eu fico vendida. Tem que ter o contato. Da mesma forma que acontece simultâneo para quem enxerga o toque e o olhar, ter a simultaneidade da audição e do toque.

Os depoimentos de Beatriz intensificam a afirmativa de Heilborn e Bozon (2001) sobre a centralidade que o olhar ocupa na vida social brasileira como um dos sentidos privilegiados para se entrar em relação. Na impossibilidade desse exercício, ganha importância o que se diz, como se diz e os efeitos que advém daquilo que é dito. As palavras, mais do que constatações ou descrições, são expressões performativas (Austin, 1990). Os enunciados são constituídos por variáveis acústicas, características

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sonoras que constroem as atitudes. A excitação sexual, para Beatriz, depende da emissão de certas palavras por certas pessoas em determinadas circunstâncias, o que deve gerar um certo efeito, ou seja, é preciso que determinada conduta correspondente sobrevenha ao que é dito. Podemos entender a fala que Beatriz quer escutar durante a prática sexual como um ato perlocucionário, conforme descrito por Austin (1990). Um ato de fala que produz efeito sobre o interlocutor. No caso de Beatriz, o efeito de incrementar o prazer e a excitação sexual. Toque que se mistura com palavras, corpo que se funde com linguagem. Para Ana a fala também se transforma em um recurso que desperta o desejo e a imaginação nas relações sexuais em que pelo menos um dos parceiros seja cego:

Pra pessoa que enxerga talvez seja diferente do estímulo do cego, mas o cego também tem imaginação. Quem enxerga tem a vantagem de ver, já usa logo a visão. Você sai, o homem já vê a mulher de repente saindo do banheiro de toalha, ele já fica imaginando o quê que tem ali por baixo e tudo... se a mulher cega for menos tímida ela pode falar: “ih, eu estou de toalha...”. É um recurso. Então acho que tudo é muito por conta da imaginação.

O toque e as carícias também ficam proeminentes no jogo sexual quando se está sem a visão. Os acessórios, como a roupa ou uma lingerie, não perdem a importância e passam a ser apreciados não tanto pela cor, mas pela sensação que uma renda, uma calcinha fio dental ou uma seda, por exemplo, provocam ao tato. Quando estava com um homem que enxerga Camila sentia certa insegurança de não saber escolher a calcinha. Hoje, mesmo que seu parceiro também seja cego, ela não deixou de se preocupar com a roupa e a aparência. Continua com o cuidado de vestir alguma coisa legal. Para mostrar para o parceiro ou perceber como ele está, usam o tato. Fala que fica até mais excitante, porque é muito toque e muita carícia. Considera o toque importantíssimo numa relação com uma pessoa que não enxerga, mas também diz que a primeira coisa que a atrai em um homem é o seu cheiro. Quando pergunto sobre o que mais a atrai sexualmente em um homem Ana me responde que gosta dos pelos. Se sente atraída por homens que tenham o peito cabeludo. Já Beatriz fala que não gosta de dar as mãos para um homem que tenha os dedos ou as mãos finas, não gosta de homem magro. O que a atrai sexualmente em um homem são os braços, gosta de homem que tenha o antebraço forte. Na contramão da valorização de um corpo perfeito, escultural e da aparência física como aquilo que mais atrai nos parceiros quando se busca um relacionamento

222

afetivo-sexual (Goldenberg, 2007), as pesquisadas revelam a importância que características como a voz, o toque, o cheiro ou o conteúdo de uma conversa adquirem no jogo da sedução. Não é que não haja a preocupação ou curiosidade com a aparência, mas ela deixa de ser um fator determinante para o desenrolar de uma relação. Existem alguns marcadores limítrofes, como, por exemplo a principal preocupação com a aparência física mencionada por Beatriz, que diz que não gosta de homem desdentado ou com dente podre. Dora acha que tem uma tolerância maior com a aparência nas relações

afetivo-sexuais,

apesar

de

que

um

homem

totalmente

“largado”,

excessivamente gordo ou muito baixinho dificilmente a interessaria. São marcadores que estão longe de um modelo ideal de corpo que valoriza determinado tipo de beleza e forma física - corpo malhado, trabalhado, magro, sem marcas indesejáveis e sem excessos de que nos falam Goldenberg e Ramos (2002). Beatriz não tem curiosidade de saber como é o rosto da pessoa. Pode até perguntar a uma amiga como a pessoa está vestida ou como é o cabelo, porque acha que isso denota um pouco da personalidade. Pergunta não pela aparência, de ser feio ou bonito, mas para saber um pouco qual é o estilo daquele determinado homem. Antes de ficar cego o que primeiro atraía Caetano nas mulheres era o físico. Ia pelo corpo, pela aparência, coisas que, segundo ele, a visão busca. Depois que ficou cego mudou, o que mais importa agora é ouvir a voz e aí sim começar a trocar ideias. A primeira coisa que o atrai em uma pessoa é mesmo a voz, tem vozes que chamam a atenção. Se gosta muito da voz, procura se aproximar, iniciar uma conversa e ver se a outra parte chega ao mesmo interesse, se chegam a um denominador. Junto com a tonalidade e as características de uma voz vem o conteúdo da conversa e outros aspectos mais subjetivos como a postura, o jeito, o tratamento 75. O que primeiro chama a atenção de Ana em um homem é o jeito dele: se é um cara delicado, uma pessoa carinhosa ou se tem um toque suave. Ela gosta de coisas leves, é o que a atrai e cativa. Para Beatriz, é a postura de um homem diante das situações. Ela se interessa pela energia da pessoa e pela postura - a maneira de falar, o assunto, a forma como ele se coloca e expõe suas ideias. Beatriz nos leva de volta a Austin (1990), quando fala da importância, na linguagem, não apenas das palavras que são usadas, mas das situações em que são usadas. O que é atraente, para Beatriz, não é tanto o enunciado

75

Voltaremos a falar desse ponto no capítulo 6.

223

ou o significado do que se diz, mas, também, o seu aspecto performativo, as circunstâncias de sua enunciação. Para Dora, a atratividade de um homem pode ser medida pela junção de dois aspectos, a maneira de trata-la com uma característica ainda mais deslizante, que ultrapassa a ordem do comportamento e da ação, e que ela chama de quìmica: “tem uma química, não tem uma química assim que você quando passa perto dá um tchan? É uma quìmica, acho que aquilo pra mim é o fundamental, tem que ter uma quìmica”. Com essa ideia de química e energia que aparece nos relatos de Dora e Beatriz quando falam sobre o que as atrai em um homem, adentramos no campo aberto que nos remete à indeterminação de nossas categorias analíticas, de que nos fala Csordas (2008). Indeterminação que consiste em um elemento essencial de nossa existência. Considerar a energia como uma forma de comunicação corporal é ter em conta um fenômeno tão essencialmente ambíguo como os modos somáticos de atenção dos sistemas de cura analisados por Csordas. É nesse traço que procuro prosseguir ao finalizar este capítulo.

3.4 Para além dos cinco sentidos - percepções que comunicam

Le Breton (2009) enfatiza a relação sistemática entre comportamento comunicativo audível e

visível como

sistemas de linguagem coercivos e

interdependentes. A comunicação em uma situação de interação parece privilegiar esses dois sentidos, a visão e a audição. Guerreiro (2001) marca que não só a comunicação, mas a ideia de beleza também privilegia um sistema audiovisual. Segundo o autor, na Grécia Antiga surge a ideia de que a apreensão do belo deriva exclusivamente de dois sentidos únicos e superiores (o da vista e o do ouvido), sendo essa doutrina a que prevalece na cultura ocidental. Guerreiro (2001) destaca, entretanto, que um dos componentes fundamentais das relações comunicacionais são os quadros que lhes conferem sentido e que são definidos a partir da experiência pessoal. Para a constituição de tais quadros contribuem a história vivida por nós e pelos interlocutores, história situada no tempo e no espaço da vida e da língua comuns. A contribuição da experiência de pessoas cegas para a comunicação, para o autor, pode alargar o domínio da interação humana com base na cultura dos sistemas sensoriais. Para além dos sentidos visual, tátil, auditivo, olfativo, gustativo, Guerreiro inclui nos sistemas sensoriais os sentidos térmico, álgico, cinestésico e os sentidos de equilíbrio e de orientação, bem como o sentido cenestésico. 224

Mesmo uma comunicação que privilegie a audição não se restringe ao conteúdo das palavras que são ditas ou escutadas. Muitas outras coisas são comunicadas por meio do som. Ana consegue perceber quando a pessoa com quem está conversando faz gestos ou sinais para uma terceira pessoa e ela não gosta. A cadência da conversa é o indicativo. “A pessoa está falando com você „Olivia você não sei o quê‟ (pausa) „ah, porque não sei o quê‟, deu uma paradinha? É o sinal que ela fez para o outro que está vindo ali”. Outra variação pode ser identificada pela tonalidade da voz. Ainda que a pessoa sussurre bem baixinho alguma coisa para uma terceira pessoa, praticamente só mexendo os lábios, ela consegue ouvir o chiado (ssssss). Uma terceira alteração. Alguém está conversando com o rosto voltado para ela e o dela para a pessoa, de repente a pessoa continua falando, mas desvia o foco do olhar. Ana percebe essa mudança do olhar pelo direcionamento da voz. A altura, a direção da cabeça muda, ou então é o lugar de projeção da voz que se altera. Dora se surpreende quando uma amiga lhe diz que existem gestos que tem moda, tem gueto, tem grupo social. Não conhece esse universo, mas sabe reconhecer isso na fala. Quando uma pessoa a aborda na rua, só naquele “posso te ajudar?”, ela consegue localizar o nível cultural da pessoa, a classe social, talvez um pouco do caráter. Depois conta uma história que reforça o aspecto intrinsecamente cultural dessas marcações pela voz ao dizer que consegue perceber essas caracterizações estando na sua própria cidade, mas quando vai a outro lugar, outro país principalmente, perde essa noção, não sabe os códigos.

A primeira vez que eu saí do Brasil eu fui para Cuba. E aí eu resolvi um dia voltar sozinha para o hotel. Eu disse “eu estou com dor de cabeça, não quero ficar aqui, eu vou sozinha para o hotel”, “não, espera”, eu digo “não quero esperar e eu quero ter a experiência de ir sozinha, caminhando, eu pergunto se eu tiver alguma dúvida”, porque não era muito longe. Beleza. Quando eu saí, começou a armar um temporal. Eu fui abordada por um homem que me dizia que queria porque queria me levar de carro para o hotel, porque ia cair um temporal. E eu não sabia. Eu digo, “meu Deus, se eu tivesse na minha cidade eu ia saber, pelo menos ter alguma referência”, sabe, eu ia ter uma ideia de que tipo de pessoa... eu não conseguia localizar nada daquela pessoa. Pela fala dele eu não sabia nada, eu não conseguia deduzir nada, nada. É a falta do referencial cultural. Acabei que quase fiz uma entrevista de seleção ali na calçada ne? Porque como é que eu ia fazer? O cara teve que me contar que ele era professor da universidade, que ele me conhecia do congresso, se eu não estava assistindo o congresso assim, assim, eu falei que sim, então, que ele era um professor, que ele sabia que eu estava no hotel tal, que ele já tinha me visto, e bla bla blá... aí, depois que ele falou, falou, falou, eu aceitei. É isso que eu falo, pela voz, pelo menos aqui né... eu consigo localizar. Então eu acho que isso que eu pego na voz, é possível pegar na expressão facial, nos gestos, todo o gesto corporal. Eu sei pela linguagem, mas é possível saber também pelas caras e bocas.

225

Guerreiro (2001) reforça que todos os sons têm um valor informativo indiscutível para as pessoas cegas. Da diversidade sonora destaca os sons dos corpos (biológicos e inanimados), os sons de nós mesmos, da voz humana, que traduz certas atitudes morais ou determinados estados de espírito, os sons dos atos de fala, das palavras proferidas, dos diálogos, os sons de circunstâncias e do meio ambiente, os sons do silêncio, entre outros. O autor também ressalta o aspecto da motricidade na comunicação ao afirmar que sempre há energia orgânica, motricidade, para que se processe a comunicação, independente do modelo comunicacional utilizado. Os depoimentos de Caetano e Ana dão relevo a essa ideia do papel da motricidade na comunicação de que nos fala Guerreiro e da sua percepção por pessoas cegas.

Você está em um ponto (de ônibus), você sente que não tem ninguém, mas depois percebe que tem uma pessoa ali. No ar, alguma coisa. A pessoa se move, você sente que alguém se mexeu. Você chega perto, sente o corpo, sente algum corpo assim... Hoje de manhã um aluno meu achou que eu enxergo, „professora a senhora enxerga vulto?‟, aì eu falei „droga, o quê que eu respondo?‟. Eu pensei „ele quer aprontar, eu vou ter que dizer que enxergo‟, aí eu falei „é, eu consigo perceber o vulto, a sombra das pessoas, os movimentos...‟, „ah bom...‟. Eu falei „agora posso saber porque você perguntou?‟, „porque na aula passada a senhora estava de frente para mim‟, ele estava sentado aqui nessa carteira e eu estava de frente para ele, aì ele „ah é a letra tal‟, ele é baixa visão. Eu falei „fica à vontade para olhar‟. Porque que eu falei isso? Porque ele mexeu com a cabeça. Eu estava de frente, estava percebendo uma altura, quando ele mexeu com a cabeça, aquela coisa que estava na frente sumiu, eu fiquei procurando... eu fiquei procurando assim (com atenção, cabeça virada um pouco para o lado), quando eu percebi, estava mais baixo.

A percepção pelo movimento certamente se vincula à percepção que Guerreiro (2001) chama de sentido dos obstáculos e que outros autores denominam ecolocalização76. A percepção de corpos pelos seus movimentos pode ser pensada a partir de um dos sentidos que Deleuze (2002) destaca na definição de corpo em Espinosa. Um corpo não se define por formas ou funções, mas pelas relações de movimento e de repouso, de lentidão e de velocidade. São essas relações que vão definir a individualidade de um corpo. Sousa (2009) chama essa percepção de cinestésica, ou percepção por proximidade, em que os objetos tangíveis ao tato, de acordo com o deslocamento de ar e a sua posição no espaço em relação a nós próprios, geram uma qualidade de sombra, ou o que chama de uma espécie de presença, que pode se comunicar principalmente à face.

76

Tratarei um pouco mais dessa capacidade perceptiva no próximo capítulo, onde abordo as relações espaciais, a locomoção e o deslocamento por pessoas cegas.

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A autora partilha da sua própria história de infância, quando pela primeira vez se deu conta dessa capacidade perceptiva e a confundiu com “visão”.

Naquela manhã, eu estava brincando no pátio da minha casa, onde havia uma fileira de pedras perto da parede da cozinha, todas pouco menores que eu. E, de repente, eu dei pela presença das pedras, sem as tocar. Senti a presença delas na minha face e fiquei maravilhada com aquilo. E comecei a dançar e a pular diante das pedras, repetindo - Eu vejo! Eu vejo! E, de repente, um salto maior, a cabeça abaixada, e choquei-me violentamente contra uma pedra, encerrando à dor e à sangue a minha primeira lição de ver. (Sousa, 2009: 182)

Sousa chama de sombra ou presença tal comunicação, que tanto ela quanto Guerreiro afirmam se localizar especialmente na altura da face. Quando entrevisto Ana, ela me conta experiência semelhante, em relação à estante da sala onde estamos, e a descreve como a percepção de uma abertura ou uma sombra.

Eu estou numa posição aqui que eu consigo, dessa posição exatamente, eu já fiz esse movimento várias vezes para te dizer isso, eu percebo uma... como se fosse uma abertura. Eu percebo uma abertura, eu não sei se é por causa da estante que faz alguma... vamos dizer assim, vamos chamar de sombra, já que eu não sei que palavra que eu tenho que dizer.

Ao trazer essas formas de ser, perceber e comunicar que aparecem nas narrativas de pessoas cegas, não tenho a intenção de contribuir para a já antiga mitologia do “cego vidente”, que o coloca para além do mundo dos seres humanos, próximo aos deuses e o exclui da normalidade pela metáfora do excesso (Sousa, 2006, Garland-Thomson, 2002). Ao contrário, a proposta é buscar se aproximar das bases fenomenológicas de percepções que estão além dos cinco sentidos clássicos e que compõem a visão de mundo de pessoas cegas e as maneiras pelas quais se comunicam. Utilizo propositadamente a expressão “visão de mundo” com um sentido que, pelo uso que os entrevistados fazem da palavra “visão”, está muito mais próximo das noções de percepção, apreensão e compreensão. A metáfora visual explícita no significado dessa expressão, também presente em noções como “ponto de vista” ou “paradigma”, denota a pregnância da visualidade nos discursos sobre os sentidos dados para a existência, as formas de estar e perceber o mundo de que nos fala Verine (2013). Energia, clima, sensibilidade, feeling, química, intuição, atmosfera, são algumas palavras que os pesquisados encontraram para dar nome a sensações ou percepções que comunicam, que lhes proporcionam informações sobre o ambiente ou as pessoas. Dora

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descreve como uma capacidade sensória de todo ser humano, mas que ela, por ser cega, teria melhor desenvolvida, inclusive como um mecanismo de defesa.

Eu chego em um lugar e o ambiente está pesado, acho que eu sinto, sabe? Aquilo me afeta. Acho que eu tenho um radarzinho assim... de sentir o clima. Isso por um lado é bom porque é um jeito da gente saber, se defender, mas por outro lado também é ruim porque tem que processar isso, né? De algum jeito eu tenho que aprender a lidar com isso, com essa percepção. O: como você chamaria essa percepção? Eu não sei, sinceramente eu não sei. Mas eu sinto isso. Eu acho que a gente desenvolve isso... eu acho que todo mundo sente, mas eu acho que eu desenvolvi uma sensibilidade maior a isso, mais rápida ou mais fina, até por não ver, até como uma complementação pelo fato de não ver. (...) Eu acho que rola uma coisa que a gente tem um pouco desenvolvido, que é uma percepção extra-sensorial, que é além dos 5 sentidos. Que é eu entrar em um lugar e dizer assim „ai, isso aqui não tá legal‟. Isso é uma coisa que eu uso muito, né? Até porque eu não estou vendo. E o meu sócio, quando eu digo para ele que eu não gostei daquela pessoa, ele já aprendeu que ele tem que ficar com pé atrás. Já aprendeu pela experiência, porque o meu feeling é danado. Ele às vezes não vê nada „poxa, tá tudo legal‟, eu digo, „não está legal não‟.

Guerreiro (2001) problematiza a associação de percepções que não necessariamente estão vinculadas a órgãos específicos dos sentidos com uma noção ampla, vaga e algumas vezes mìstica de “sexto sentido”. Sempre que se manifesta a intuição de fenômenos que não são revelados diretamente pelos órgãos dos sentidos ou não decorrem da atividade mental, quer provenha de funções especiais que a psicologia não pôde ainda, em definitivo, determinar experimentalmente, quer resulte de simples coincidências, logo se diz, irrefletidamente, que se possui um sexto sentido. A associação dessas percepções com um sexto sentido, apesar de arbitrária, como bem indica o autor, de certa forma enfatiza o seu aspecto corporal. Mesmo que não se vincule estritamente a nenhum dos cinco sentidos clássicos, são sensações e não pensamentos. A partir da dica de Dora, propositadamente destacada no depoimento acima, podemos pensar nessa capacidade como afecção. Afecções, se pensadas enquanto formas de perceber, ao invés de suscitarem uma imagem visual ou sonora, provocam um afeto. Um afeto, no sentido dado por Deleuze e Guattari (1992), não é um sentimento, e sim uma potencialização do corpo, uma energização diferente do ser. O segundo sentido destacado por Deleuze (2002) na definição de corpo em Espinosa se refere a esse poder de afetar e ser afetado. O autor destaca que os corpos, para Espinosa, não são formas e nem sujeitos, mas modos. Uma relação complexa entre velocidade e lentidão e um poder de afetar e ser afetado. Para Deleuze, se adotarmos essa definição de corpo muita coisa muda. Um animal ou um homem passam a ser definidos não por sua forma ou seus órgãos e

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funções, menos ainda como sujeito. Passam a ser definidos pelos afetos de que são capazes. Um corpo afeta outros corpos ou é afetado por outros corpos. É esse poder de afetar e ser afetado que também define um corpo na sua individualidade. Deleuze indica (2002) que, tanto para o corpo quanto para o espírito, o afeto implica em um aumento ou uma diminuição da potência de agir. Quando Ana era estudante secundarista, estava esperando no IBC o motorista de uma senhora que lia para ela, que naquele dia não pode ir ao Instituto, mas pediu para o motorista leva-la até a sua casa. Ana seguiu com ele até a casa da ledora e, quando estavam subindo no elevador, sentiu que ele a olhava. Ela relata o ocorrido:

Eu sabia que ele estava olhando. Eu estava em pé, ao lado dele, e eu estava assim virada para frente, ele estava do meu lado, e eu fiz assim ó (virou a cabeça para o lado dele e fez uma expressão bastante séria com o rosto). Ele estava olhando para mim, aí quando eu fiz assim, ele fez assim (movimento de chegar com o tronco para trás). Cortou a energia na hora. Eu senti cortar. Corta. Eu olhei para ele... ele virou para o outro lado, ele tirou. Aí eu fiquei até sem graça, porque você sente que quebrou. É assim que eu sinto, eu não sei por que, mas eu sinto assim. Quando você está andando na rua, toc, toc, toc, e vem uma pessoa atrás de você, você está olhando lá para frente, mas você não sente que ela está te olhando, mesmo sem você olhar? É a mesma coisa, eu acho que é a mesma coisa.

Le Breton (2009) fala sobre essa capacidade do olhar de tocar o outro e ser percebido por aquele que o recebe, mesmo que o observador esteja situado a suas costas ou oculto a sua visão. Perceber que está sendo visto, nesse sentido, está menos relacionado a uma habilidade de enxergar e mais próximo a uma capacidade de ser afetado pelo olhar. Ana usa a ideia de energia para falar dessa forma de comunicação com os outros em uma interação. Ela também fala que é essa percepção, que traduz pelas palavras “clima”, “atmosfera” ou “energia”, que a ajuda quando chega pela primeira vez em algum lugar. O clima, mas não é o clima de briga ou o clima de gente sorrindo, não é esse o clima que eu estou falando. Também não é o vento só, é a atmosfera. Acho que eu consigo sentir e perceber a atmosfera. Aí dependendo de como ela bater, de como ela vem, o jeito que ela vem, eu consigo sentir se é bom ou não. É uma questão de sentimento. Dá a impressão de que eu estou vendo, embora eu não esteja vendo visualmente. Mas é como se eu estivesse sentindo, mas não pelo tato, é sentimento, é uma energia. É a energia.

Diversas teorias ou campos de conhecimento abordam o conceito de energia, entre elas a física, a química, a biologia, a psicologia, a economia, entre tantas outras. Lowen (1982) enfatiza que existe energia em movimento em todas as coisas, vivas ou

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não vivas, e em todos os processos da vida. A ciência costuma considerar especialmente a energia de caráter elétrico. Já a filosofia chinesa proclama a existência de duas energias em relação de polaridade recíproca, conhecidas por yin e yang. De forma geral, se aceita que a energia de um organismo animal provém da combustão de alimentos, enquanto as plantas, por outro lado, utilizam a energia solar para seus processos vitais. A mesma palavra, bioenergética, que é utilizada por Lowen para se referir ao estudo da personalidade humana em função dos processos energéticos do corpo, também é empregada por uma área da fisiologia que se dedica ao estudo dos processos químicos que tornam possível a vida celular do ponto de vista energético. Apesar de não estarmos acostumados a pensar na personalidade em função da energia, para Lowen os dois valores não estão dissociados. A quantidade de energia que alguém possui e a forma como a utiliza determina a sua personalidade e se reflete nela. Uma pessoa impulsiva não pode receber nenhum aumento no seu nível de excitação ou energia, tem que descarregar o excesso o mais rápido possível. Já alguém compulsivo usa sua energia de modo distinto, também tem que descarregar sua excitação, mas o faz segundo padrões de movimento e conduta rigidamente estruturados. Pode-se pensar, a partir dos depoimentos, que essa relação da energia com a personalidade que se manifesta corporalmente, de que nos fala Lowen (1982), seria percebida pelos pesquisados. Sendo uma capacidade humana, a maior ou menor sensibilidade a ela dependeria, como no desenvolvimento dos outros sentidos, de um treinamento prático ou educação da atenção. A centralidade que a visão adquire nas relações de interação seria um fator que, para Beatriz, desviaria a atenção de pessoas que enxergam para a percepção dos estímulos mais sutis que se traduzem pela ideia de energia. Ela fala sobre os parâmetros mais importantes quando conhece alguém: Isso é energético. É energético. Eu tenho amigos lá do trabalho que dizem „essa garota é bruxa, cruz credo, não sei o quê‟. Nada. Não tem nada de bruxaria, mas o que acontece, as pessoas exalam o que sentem. O fato de vocês buscarem as coisas na expressão facial, no jogo de olhar, vocês perdem o que ela está sentindo. Eu sinto mesmo o que as pessoas estão sentindo. Eu sinto. Às vezes eu falo assim „caraca, não consigo perceber nada daquela pessoa, nada nada‟, e você vê que a pessoa é uma criatura confusa, que nem ela mesmo sabe, então ela exala essa confusão mesmo, ela vai exalando exatamente o que eu estou vendo. Então isso tem um ganho realmente absurdo. Me acho muito mais intuitiva. Eu sinceramente sinto bastante assim... o outro. Sabe? Eu sei quando as pessoas se entreolham. E eu não estou vendo que eles estão se entreolhando. É o clima deles. Às vezes está tendo alguma coisa lá no trabalho e eu falo assim „não adianta ficar se olhando não‟, „como é que você sabe que eu olhei para ela?‟, „eu sei‟, e não consigo explicar, é o clima deles, é o que eles exalam, é a maneira como... não sei, é a energia mesmo. Não sei, não sei. E não é

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uma coisa minha. Isso é uma coisa do humano, do ser humano. Mas a visão não deixa vocês perceberem isso.

A associação, mais explicitamente presente nos depoimentos de Beatriz e Dora, da ausência da visão com uma maior capacidade sensitiva para perceber energeticamente a si próprio ou o entorno (ao menos potencialmente), não parece ser única desses depoimentos. Práticas que se estruturam em torno da noção de energia, como a yoga ou a meditação, costumam ser exercitadas de olhos fechados. Procurando alguma objetivação (no sentido de compreensão) para essa ideia trazida pelos pesquisados que se condensa na palavra “energia”, procuro relacioná-la a alguns aspectos do que Mauss (2003) descreve sobre o mana, a partir especialmente das sociedades melanésias, mas que também identifica em diversas culturas. Mana é descrito por Mauss como uma dessas ideias turvas das quais se acredita ter se livrado e que justamente por isso se tem dificuldade de conceber. Não é simplesmente uma força, um ser, é também uma ação, uma qualidade e um estado. Produz o valor das coisas e das pessoas. Uma ideia obscura e vaga, mas com emprego estranhamente determinado. A natureza complexa e confusa da ideia de mana impede de se fazer dela uma análise lógica, devendo o pesquisador se contentar em descrevê-la. A ideia de mana é composta por uma série de ideias instáveis que se confundem umas nas outras. Mana é ao mesmo tempo qualidade, substância e atividade. O mana é transmissível, pode ser comunicado, põe as coisas em contato. Mana seria uma qualidade acrescentada às coisas, como uma coisa sobreposta às coisas. O acréscimo é explicado pelo autor como o invisível, sendo ao mesmo tempo sobrenatural e natural, pois está espalhado em todo o mundo sensível, é heterogêneo e, no entanto, imanente. A ideia de mana pode ser também associada à de prana, que na filosofia oriental significa a energia vital universal que permeia o cosmo, que é absorvida pelos seres vivos através do ar que respiram. Será que poderia, ainda, ser associada ao plano de imanência a que Deleuze (2002) se refere a partir de Espinosa, um plano comum de imanência em que estão todos os corpos, todas as almas, todos os indivíduos? Toda coisa, no plano imanente da Natureza, se define pelos agenciamentos de movimentos e de afetos nos quais ela entra, quer esses agenciamentos sejam ou não artificiais. Podemos ainda associar as características do mana à ideia de “energia” e às outras ideias instáveis associadas a ela pelos pesquisados, e que se confundem umas com as outras – clima, feeling, atmosfera, algo que se exala.

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A dificuldade de falar do mana ou da energia presente nas interações entre as pessoas aparece no depoimento de Ana, quando ela descreve a troca que se estabelece entre uma pessoa cega e uma pessoa que enxerga a partir de um encontro. Eu estou tendo oportunidade de falar uma coisa que eu sempre pensei, sempre senti. Existe um encontro de olhar. O cego, eu penso assim, pode ser que eu esteja errada, alguém pode algum dia provar que eu estou ou que eu não estou – ele talvez não tenha expressão no olhar, mas existe o encontro. Quando você olha para uma pessoa, mesmo ela sendo cega, eu penso que existe uma... É como se fosse uma comunicação. Visual? Não, porque o cego não vê, mas é uma comunicação, é uma energia, é uma sintonia entre o olhar de um, que tem expressão no olhar e do outro que tenta... olhar. Sabe? Acho que existe isso. Eu nunca falei isso para ninguém porque acho que ninguém acreditaria. Mas hoje eu não estou preocupada.

Mesmo que nunca tenha visto o rosto de uma pessoa, Ana associa o encontro com o outro ao olhar. Mas olhar para ela não é o ato de enxergar e sim uma intensão de troca. O que é trocado, o que se comunica, não são essencialmente imagens visuais ou aparências, mas energia. Lévi-Strauss (2003) relaciona a noção de mana a uma operação da ordem do pensamento que repousa sobre a reestruturação de uma unidade, que não estaria perdida, mas inconsciente ou menos completamente consciente do que as operações relacionais de identificação do conhecimento. O autor ressalta que a linguagem nasce repentinamente, o universo inteiro se torna, de um momento para o outro, significativo, sem que por isso ele se tornasse melhor conhecido. Na história do espírito humano, Lévi-Strauss identifica uma oposição fundamental entre o simbolismo, com um caráter de descontinuidade, e o conhecimento, marcado pela continuidade. Em qualquer sociedade se mantém uma situação fundamental, que pertence à condição humana: a de dispor desde sua origem de uma integralidade de significante que lhe é difícil alocar a um significado, significante que é dado como tal, sem ser, entretanto, conhecido. O resultado será a existência de uma superabundância de significante em relação aos significados nos quais ele pode colocar-se. No esforço para compreender o mundo, o ser humano dispõe sempre de um excedente de significação. Lévi-Strauss acredita que noções do tipo mana, e que proponho estender aqui a ideia de energia, representam precisamente o significante flutuante. Inspirado no preceito de Mauss de que todos os fenômenos sociais podem ser assimilados à linguagem, o autor sugere que essas noções cumprem a função semântica de permitir ao pensamento simbólico se exercer, apesar da contradição que lhe é própria. O mana seria, então, simples forma, símbolo em estado puro, suscetível de assumir qualquer 232

conteúdo simbólico. Um símbolo que marca a necessidade de um conteúdo simbólico suplementar àquele que pesa sobre o significado. A partir do que foi relatado pelos pesquisados podemos levantar a seguinte hipótese: será que pessoas cegas, por se relacionarem com o mundo integralmente a partir da não visualidade, teriam a possibilidade de desenvolver uma relação mais sistemática com o excesso ou a superabundância de significante, representada pela noção de “energia”? Nesse caso, o mundo do superávit, do excedente de significação representado por essa noção, seria mais proeminente para elas? Ou seria melhor considerar a energia não como uma dimensão suplementar, mas, pensando a partir de Deleuze (2002), como um plano de imanência, uma composição que deve ser captada por si mesma, mediante aquilo que ela dá, naquilo que ela dá? A energia, como plano de imanência, seria percebida como aquilo que ela nos faz perceber. Vandenberghe (2010), quando apresenta o plano de imanência de Deleuze e Guatarri, nos lembra que velocidade e lentidão se referem, para os autores, não a graus quantitativos de movimento, mas a dois tipos qualitativamente diferentes de movimentos dos corpos através do espaço – a maneira geométrica e a maneira topológico-energética. Pensada da segunda forma, como parte de um espaço aberto e liso de forças energéticas e imateriais, em cada coisa, em cada ser, as relações de velocidade e lentidão e os poderes de afetar e ser afetado vão assumir uma amplitude, limiares, variações ou transformações próprias. E a presença ou a ausência da visão teria interferências particulares no processo de percepção de energias num plano comum de imanência, na maior ou menor capacidade de ser afetado por ela. Longe de esgotar as possibilidades abertas por essa discussão, pretendi aqui dar passagem a elas, deixando que reverberem e adquiram outras formas, novas densidades no prosseguimento das reflexões levantadas nesta tese.

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4. Relações espaciais e deslocamento em ambientes urbanos O capítulo aborda a construção de uma representação espacial e urbana por pessoas cegas e os usos e apropriações que fazem dos lugares. Procura-se compreender como se dá o aprendizado de conceitos espaciais, de que forma se orientam espacialmente, como constroem seus itinerários urbanos, os lugares frequentados e os caminhos percorridos. Pensando o espaço urbano como marcado por códigos e regulações sociais particulares e pela presença irrefutável do outro, busca-se entender a circulação e a ocupação desses lugares por pessoas cegas. Para abordar a relação com o espaço para além do olhar foi preciso primeiro uma atenção ao corpo como locus de um ser no mundo e as possibilidades de apreensão desse mundo, do espaço em torno, a partir da não visualidade. Os sons, os cheiros, os movimentos, a distância percorrida, o deslocamento e a temperatura do ar, as pistas do solo, a formação de mapas ou rotas, participam da configuração do lugar. Apesar de também utilizar o termo “espaço” para falar das relações com o entorno, a abordagem que se desenvolve, por focar especialmente em características experienciais de pessoas cegas com o ambiente, nos seus aspectos vividos ou subjetivos, está mais próxima da noção mais fenomenológica de “lugar”. Entendido como uma arena de ação que é ao mesmo tempo física e histórica, social e cultual a noção de lugar contrasta com a noção de espaço - vazio volumétrico nos quais as coisas são posicionadas -, abstração que desencoraja explorações mais experienciais (Tuan, 2001; Casey, 2001). Outra dimensão do capítulo aparece ainda na relação de pessoas cegas com o urbano, nos deslocamentos, nos sentidos de familiaridade ou distância atribuídos a bairros, caminhos ou trajetos percorridos. Representações da cidade, ou de locais específicos da cidade. Acesso aos ambientes urbanos, áreas de lazer, o uso que se faz do transporte público. A descrição dos pesquisados sobre suas relações com pontos turísticos do Rio de Janeiro lança nova luz sobre esses lugares, revelando aspectos que num primeiro momento podem permanecer ocultos pela centralidade que a visão adquire na assimilação de uma experiência.

Vivência no curso de técnico em OM Tarefa: andar ao ar livre, de bengala e olhos vendados e procurar manter uma linha reta.

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Acho que isso é entrar em contato com uma sensação de escuro das mais básicas: não saber se localizar. Não é só estar se sentindo perdida por não saber qual direção tomar, é não poder mais confiar em si mesma para seguir uma direção ou um comando: andar em linha reta. Descobrir que sozinha, solta em um campo aberto, com a bengala nas mãos e os olhos vendados, não tenho o menor senso de localização espacial. A não ser que nada mais importasse e perder-se virasse a principal aventura, tudo parece exasperante e intransponível. Sinto raiva, angústia, desespero de querer acertar e não conseguir. Raiva de quem está ao lado tentando o tempo todo corrigir meus passos. Se imaginar caminhando em linha reta e se dar conta do engano ao dar de encontro à parede ou ao ouvir pela vigésima vez a voz corretora, e entender o quão arbitrária era a sensação anterior. Asfixia. Ensinar a si mesma que aquilo que acha ou imagina que sente não corresponde ao que o seu corpo faz ao se deslocar. Precisar controlar esse corpo e domestica-lo com artifícios não visuais para que obedeça a um comando supostamente tão simples – andar em linha reta. Todos os parâmetros truncados.

Mundo ao contrário (linha de fuga passada que a vivência anterior reativa no presente)

Uma noite, no sitio de seu pai em São Lourenço, devia ter uns 10 anos, acordou de madrugada e seu quarto estava completamente escuro. Breu de noite sem lua no campo. Decide ir ao banheiro, mas quando levanta da cama dá de cara com a parede. Tinha certeza que quando deitada na cama, a lateral esquerda ficava encostada à parede. Como era possível, então, ter dado de encontro à parede dura e fria, se estava justamente saindo pelo lado direito? De olhos abertos, mas sem conseguir enxergar, sai da cama pelo lado esquerdo mesmo e vai tateando na direção que acreditava estar o interruptor de luz, ao lado da porta. Não consegue encontra-lo, nem mesmo identificar o seu brilho no escuro. No processo de busca, esbarra em objetos que – ela não tinha a menor dúvida - deveriam estar do outro lado do quarto. No ápice da incompreensão e perda de controle, tenta voltar para a cama e recomeçar tudo de novo. Tinha se afastado um pouco dela ao procurar o interruptor. Movimenta as mãos para baixo, na altura que seu corpo dizia que a cama deveria estar, mas não a encontra. 235

Sentindo-se perdida decide se render e chama pelo pai, que dormia no quarto em frente. Acha esquisita a demora, ele que sempre aparecia prontamente nos primeiros chamados pós-pesadelos. Chama novamente - mais alto. Escuta sua voz: “o que houve, filha?”. Ele abre a porta, a luz do corredor ilumina o quarto, mas não a ela. Ela está na penumbra, de costas para a porta e voltada para a janela, na parede oposta. Juntos tentam entender o ocorrido. Ela devia ter se virado na cama durante o sono, sem que tivesse se dado conta. O despercebido movimento do corpo adormecido, somado à escuridão que a possibilitou não solucionar imediatamente o mistério, fez com que, por alguns instantes, experimentasse o mundo literalmente do avesso. Mas não era o mundo que tinha dado cambalhota, apesar de minutos antes poder jurar que sim. Fora ela mesma, seu próprio corpo que virara, virando consigo as relações com o mundo.

Quem conduz e quem é conduzido

Em um exercício realizado na Oficina Inclusiva a proposta era que fizéssemos em dupla um reconhecimento do espaço. Quando uma pessoa cega entra pela primeira vez em um local que nunca esteve geralmente se faz com ela um reconhecimento do ambiente. Podendo estar acompanhada por quem enxerga, percorre-se o lugar a partir da entrada para identificar paredes, portas, objetos, estantes, obstáculos. No primeiro dia de oficina tínhamos feito o reconhecimento da sala com os seis cegos participantes. Nesse momento, a proposta era que percorrêssemos e explorássemos o espaço sem o auxílio da visão, cegos e não cegos. Minha dupla foi Dora. Estávamos mais ou menos na metade da oficina e nos dias anteriores eu já tinha acompanhado algumas vezes uma pessoa cega ao banheiro, à mesa de lanche, subido ou descido escadas com alguém apoiando a mão no meu ombro ou de braços dados. Minha primeira atitude foi a de assumir o comando. Vinha desenvolvendo até então durante a oficina uma relativa familiaridade com meu próprio corpo de olhos fechados, meu corpo vinha aprendendo a ser afetado pela intermediação da escuridão. Mesmo assim, conseguir se deslocar com menos restrição pelo espaço em uma atitude exploratória e menos intimidada não é o mesmo que ter a capacidade de conduzir outra pessoa sem o apoio da visão ou mesmo ter segurança do lugar exato de nossa própria localização na sala, dos objetos cênicos e acessórios espalhados pelo espaço. Logo no início do exercício percebi minha vulnerabilidade naquela situação. Esbarrava em outras pessoas ou recebia esbarrões e me assustava 236

facilmente. Meu corpo estava frágil e atrapalhado. Encontrei-me destituída e incapaz de manter a posição de controle assumida. Dora percebeu essa desorientação. Não hesitou e me pegou pelas mãos, tomou a frente e foi me conduzindo com uma firmeza assombrosa. Desviava de pessoas, me mostrava obstáculos e detalhes como o interruptor de luz na parede ou o botão do ar condicionado. Sempre dirigindo minhas mãos para que “visse” o que estava à frente, ao lado ou ao nosso redor. Percebia antes que batêssemos em objetos em alturas variadas dispostos naquele espaço, como a lixeira, a mesa de lanches e os objetos cênicos que estavam pendurados. Abriu a cortina de filó para que passássemos por dentro de um dos “boxes” numa das quinas da sala. Confiei completamente em seu entendimento daquele ambiente. A sensação foi de proteção e alívio por tê-la como minha dupla. Até ali ela já percorrera a sala da oficina muitas vezes, estava perfeitamente familiarizada com o espaço e sabia muito bem se localizar, o que provavelmente não aconteceu com duplas de “enxergantes” de olhos fechados. Seu corpo era firme, decidido, não vacilou em nenhum momento durante o trajeto. Comentei com ela como tinha sido surpreendente o exercício, por me ver privada do controle e confiar inteiramente em um conhecimento corporal e espacial daquele ambiente que ela tinha e o qual eu não dominava. Por mais que já tivesse visto e percorrido muitas vezes a sala, não sabia me situar e, menos ainda, ensinar o espaço a outra pessoa sem a segurança e o apoio do olhar. Ela pergunta se de certa forma tinha mudado a minha própria noção de condução. Percebi que mudara inteiramente, passou a ser apenas uma questão de circunstância.

*** As três vivências anteriores vieram à tona no processo de pesquisa, trazendo consigo diversas questões que perpassam uma concepção espacial a partir de uma não visualidade. Estão situadas em um corpo que enxerga, mas ainda assim permitem atravessamentos com corpos que não enxergam, seja por aproximação, diferença ou cruzamentos com as suas experiências, seja pelos diálogos e questionamentos que proporcionaram. Um dos pontos que se destaca é uma suposta aproximação da experiência do escuro com uma sensação de desorientação. A associação é eminentemente centrada na visualidade de quem enxerga, que não pode ser aproximada da experiência da cegueira de quem nasce cego, ainda contenha cruzamentos com a experiência de quem se torna, 237

especificamente na fase de transição, quando se vivencia o choque da perda dos padrões de visualidade. Os relatos dessa fase falam de paralisia, passar meses na cama, não querer sair de casa, medo de ir para a rua, medo de se perder. O não ver, para o cego congênito ou para o cego reabilitado, não é sinônimo de desorientação, muito pelo contrário, como fica claro no terceiro relato. Conduzo a discussão do capítulo, especialmente a configuração de relações espaciais pela não visualidade, partindo dos três relatos iniciais e o caráter múltiplo que adquirem, os contornos e relevos que vão ganhando em atravessamentos com outras linhas seguidas na pesquisa - linhas orientadas pelos manuais de OM, pela realização do curso técnico, pela observação participante nos atendimentos de OM da reabilitação, pelas entrevistas ou pelos caminhos percorridos com pessoas cegas.

4.1 Deslocamento, orientação e mobilidade

Bavcar (2000), em relato sobre o itinerário da sua vida com a cumplicidade da cegueira, diz que não pode correr como antes e teria quase se esquecido disso se, certo dia, crianças não tivessem perguntado a ele por que caminha tão lentamente. Considera que sua vida é menos agitada, mais imóvel do que a das outras pessoas. Vai menos até as coisas, se move menos e em círculos estreitos. O espaço se restringiu e deve tocá-lo para conhecê-lo ou então identifica-lo pelos seus ruídos. Em um dos manuais analisados, especificamente voltado para a formação de professores nas técnicas de OM, indica-se que a mobilidade seria a maior perda na cegueira (Brasil, 2002). Ela é definida como a habilidade de uma pessoa se deslocar intencionalmente da posição em que se encontra para outra desejada, reagindo a estímulos internos e externos. Vygotsky (1997) coloca que, com a cegueira, o que se perde é principalmente a orientação espacial e a liberdade de movimentos. O treinamento de OM consiste em um programa educacional de múltiplos estágios no qual habilidades motoras e de orientação são treinadas para ensinar a pessoa com deficiência visual como se orientar em ambientes pequenos ou largos, como ser eficientemente guiada por outra pessoa e como proteger o seu próprio corpo. Parte do treinamento é especialmente dedicada ao uso da bengala longa, fundamental para a marcha e a exploração sistemática de lugares desconhecidos. O objetivo último, nem sempre atingido, é alcançar a "mobilidade independente e segura", por meio da encorporação de uma série de técnicas, mas também por uma 238

educação da atenção aos sentidos e aos sinais significativos do mundo. Uma espécie de (re)classificação ou (re)organização do mundo a partir de materialidades ou referenciais não visuais. A profissional de TO que acompanhei considera que a OM é o atendimento que vai ensinar a pessoa cega a ser cega. É pegar um ser humano que chega de um jeito e coloca-lo de outro. Por ser o único atendimento individualizado, a TO considera que o profissional de OM cumpre uma função terapêutica, escuta os problemas, os medos, as inseguranças. É o profissional de OM que sabe a realidade da pessoa cega que atende e, para o atendimento ser bem sucedido, precisa se adaptar às necessidades de cada um e ainda que se estabeleça uma relação de confiança entre o profissional e a pessoa atendida. Uma das recomendações que auxiliam o atendimento é a realização de atividades físicas. A atividade física melhora a coordenação motora, a coordenação global, o equilíbrio, a flexibilidade. Para a pessoa alcançar a mobilidade independente na cegueira vai precisar de tudo isso. A TO recomenda exercitar o punho por causa do movimento com a bengala. Muitas pessoas que chegam para o atendimento não têm movimento ou flexibilidade no punho. Dora, que também trabalhou em um programa de reabilitação, diz que a consciência e o domínio corporal, além do histórico de prática de atividades físicas anterior à cegueira, têm um papel fundamental na reabilitação e na adaptação da pessoa que perde a visão à nova realidade corporal da cegueira. Quem desenvolveu essa consciência possivelmente terá mais facilidade na adaptação do que alguém mais sedentário, porque já tem uma atenção à propriocepção, aos movimentos e ao equilíbrio do corpo, o que contará a seu favor. Ainda que o propósito seja o mesmo, desenvolver a mobilidade independente, a TO considera que o processo de quem nasce ou fica cego na infância é muito diferente de quem se torna cego já adulto. A pessoa que nasce cega se adapta àquela condição de vida, conhece o mundo daquele jeito, a assimilação e o aprendizado são mais fáceis do que quando o mundo e os referenciais espaciais da pessoa mudam completamente. Dora acredita que quem nasce ou fica cego precocemente, mesmo que seja uma pessoa relativamente desorientada espacialmente (mesmo que, segundo diz um amigo dela, tenha vindo “sem o GPS embutido”), pela própria necessidade que a cegueira impõe vai precisar aprender a lidar com essa desorientação espacial desde cedo e descobrir como fazer para se orientar, como fazer para se virar. Tanto Dora quanto a TO fazem a ressalva de que tudo vai receber contornos individuais, conforme a trajetória de cada um – se a criança cega teve estímulo e 239

incentivo da família, se praticou esporte, correu, brincou ou se sempre foi tolhida nos seus movimentos e passou uma vida acoplada aos movimentos de outra pessoa. Para exemplificar a variabilidade, a TO fala de um aluno que atendeu, cego congênito, cujo pai não o deixava andar sozinho. Aos 22 anos ele não tinha experiência nenhuma, era virgem, não tinha amigos e estava sempre acompanhado pelo pai. O aluno acabou concluindo o atendimento de OM sem alcançar a mobilidade independente, não porque não tivesse condições, mas porque o pai não deixava. O pai chegou a discutir com ela, dizendo que seu filho nunca andaria sozinho na vida. Outro ponto surgiu quando acompanhei os atendimentos de Maria. Percebi que ela tinha bastante dificuldade em identificar direita e esquerda, ou mesmo com a contagem das portas pelo corredor térreo do IBC para chegar de volta até a sala (a nona porta). Conversando depois com a TO ela confirma minha percepção inicial e diz que na reabilitação, especialmente nos atendimentos de OM, nota-se que o contraste sociocultural influencia as chances de uma melhor ou pior adaptação à cegueira. Dá o exemplo da própria Maria, trabalhadora rural que veio do campo para uma cidade grande como o Rio de Janeiro depois que ficou cega para iniciar a reabilitação. É semianalfabeta e extremamente tímida. Não domina com segurança os conceitos de lateralidade e a TO propõe como estratégia para superar essa dificuldade a referência à mão direita como o lado em que está o relógio. Apesar de obter avanços, o deslocamento para Maria é penoso, ela não ousa percorrer lugares desconhecidos sozinha. Conseguir que vá sozinha até a padaria, igreja ou cabelereiro do bairro em que mora ou ainda que vá e venha de casa para o IBC sem a companhia da irmã, já seria uma grande conquista, segundo a TO. É comum encontrar dificuldades cognitivas entre os reabilitandos que atende. Dificuldade de memorização e de localização. Diz que as experiências vividas, as condições de vida anteriores interferem muito na capacidade de aprendizado de quem se torna cego. Quem teve mais estudo e um bom trabalho, teve acesso à educação e à cultura, tem mais facilidade para se reabilitar e entender o que é o mundo depois que fica cego. Mais facilidade para desenvolver a percepção espacial, a noção do corpo no espaço, as noções de lateralidade. Quando tiveram uma vida mais dura, encontram mais dificuldades no processo. Compara a situação de Maria com a de um reabilitando que atendeu, que era funcionário da REDUC e ficou cego num acidente de trabalho. Teve estudo, tinha um bom emprego e boa condição financeira. Para ele o processo de reabilitação foi muito mais rápido, concluiu em um mês. Quando os reabilitandos que já têm dificuldades 240

anteriores, de desenvolvimento cognitivo e de aprendizagem, o processo de reabilitação é agoniante. São novas dificuldades que aparecem somadas às que já existiam77.

4.1.1 Corpo como localização do ser no mundo

Para uma criança cega construit os conceitos de espaço, dos objetos no espaço e a

percepção

das

relações

espaciais,

os

manuais

recomendam primeiro

o

desenvolvimento da consciência corporal (Brasil, 2003). Dora fala que a constituição do espaço, antes de ser visual, começa pela estrutura corporal de cada indivíduo. A constituição do espaço, embora o visual facilite muito as coisas, não precisa ser visual, porque a constituição do espaço ela começa da constituição do nosso corpo, quer dizer, da nossa percepção do nosso espaço, da nossa percepção do nosso esquema corporal, da nossa percepção da nossa forma.

Antes de perceber a forma de um lugar, percebe-se primeiro a sua própria forma, a própria fronteira entre si e o mundo, para então conhecer o entorno a partir dessa superfície. Tuan (2001) esclarece que, apesar de existir ampla variação cultural na elaboração de esquemas espaciais, o vocabulário dos conceitos e da organização espacial possui termos em comum entre as sociedades. Esses termos são fundamentalmente derivados da estrutura e dos conceitos do corpo humano. O autor traz o exemplo de polaridades tais como vertical-horizontal, alto-baixo ou ainda a forma e a postura do corpo humano que irão definir seu espaço ambiental como frente-trás e direita-esquerda. Para Tuan, é no sentido literal que o corpo humano será a medida de direção, localização e distância. Nos manuais (Brasil, 2002, 2003) se descreve em mais detalhes os conceitos corporais que devem ser desenvolvidos em crianças cegas ou pessoas que se tornam cegas, que formam as bases de conceitos espaciais e direcionais e são elementos centrais para o processo de se orientar e para a mobilidade. Desenvolver o conhecimento do próprio corpo, a habilidade de identificar partes do corpo – pernas, braços, joelhos, cotovelos, palma da mão, dorso da mão, etc. – sua

77

Esse ponto de atravessamento entre condições educacionais e sociais e grau de reabilitação se torna ainda mais crítico quando analisamos os dados do censo IBGE 2010, que revela que 61,1% das pessoas com deficiência no Brasil não têm instrução ou sequer completaram o ensino fundamental. Na população que não declara nenhuma deficiência o percentual de pessoas com o mesmo grau de escolaridade é de 38,2%.

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localização e suas funções. Desenvolver a cinestesia ou a proprioceptividade, a sensibilidade para perceber a posição dos músculos, as articulações, a relação das partes do corpo entre si e com a força da gravidade, percepção que torna o indivíduo consciente da posição e do movimento do corpo. Desenvolver a consciência dos planos do corpo (frente, costas, topo, base, cintura), lateralidade (esquerda, direita), direcionalidade (para cima, para baixo, em frente, para trás, pontos cardeais), proximidade (ao lado, afastado, perto, aqui, lá, distante, longe), interno e externo, voltas e contornos, sentido horário e anti-horário, oposto, paralelo, perpendicular, superior, inferior, entre outros. Os conceitos espaciais são adquiridos com referência ao próprio corpo da pessoa cega e à sua posição em relação aos objetos e ao ambiente. As colocações reverberam com estudos da neurociência que falam sobre os diferentes quadros de referência humanos que são utilizados na locomoção. De acordo com Cattaneo e Vecchi (2011), um quadro de referência pode ser definido como a perspectiva particular a partir da qual se faz a observação da variável espacial. Uma distinção bem estabelecida é entre quadro de referência egocêntrico ou alocêntrico. Em representações espaciais egocêntricas o espaço é representado fazendo referência ao corpo do observador, se ele se move as representações espaciais têm de ser atualizadas de acordo com seu movimento. Já a representação espacial alocêntrica é gerada independente da posição do indivíduo, com base em coordenadas externas ao corpo, de forma que a posição absoluta dos diferentes objetos na cena e suas posições espaciais relativas não precisam ser atualizadas a cada vez que o sujeito se move (Kappers, 2007). Segundo Cattaneo e Vecchi (2011), as pesquisas indicam que pessoas cegas, devido à impossibilidade de abranger com um olhar todos os objetos no ambiente que as cerca, tendem a se basear em um quadro de referência egocêntrico - centrado no corpo ao representarem objetos no espaço. Elas também têm a capacidade, pela descrição verbal ou com o auxílio de um mapa tátil, de desenvolver representações espaciais do tipo alocêntricas, mas como as informações são adquiridas sequencialmente por meio do tato ou da audição, demanda um esforço mais pesado de seu sistema de memória. Os estudos levantados apontam que, espontaneamente, as pessoas cegas confiam em representações egocêntricas ao representarem a localização de objetos. Com a impossibilidade do uso do olhar para se situar espacialmente, os outros sentidos e outras estratégias se apresentam para compor essa forma. O treinamento para a percepção de diversos tipos de terreno a partir das suas texturas é recomendado para que a pessoa aprenda a diferenciar pisos como asfalto, cimento, paralelepípedo, terra, 242

areia, grama, cascalho, entre outros. As noções de temperatura permitem perceber diferenças entre lugar aberto e lugar fechado, ou a utilização do sol como indicador de direção. A percepção tátil, a exploração de objetos com a bengala, a distância percorrida e as relações temporais também aparecem como indícios importantes. 4.1.2 O “som do muro”: a ecolocalização ou percepção de obstáculos

Como na história contada na introdução, em que a amiga de Dora aprende a se deslocar melhor porque aprende a escutar o som do muro, o treinamento direcionado da audição proporciona diversas informações que auxiliam na locomoção e na localização espacial de pessoas cegas. A percepção de direção pode ser afetada pelo tempo de propagação do som e também pela sua intensidade ou baixa frequência. Pela informação auditiva é possível determinar a origem de um som, avaliando sua direção e distância; determinar a direção de uma corrente de tráfego; discriminar entre diversos sons aqueles que podem servir, a um só tempo, como orientação e pista dominante; pela ressonância da bengala no piso é possível perceber mudanças na textura da superfície. Há ainda a percepção de obstáculos ou ecolocalização, uma faculdade que é cultivada e desenvolvida pelas pessoas cegas e que é a que permite à Dora e sua amiga ouvir o som do muro. Pelo desenvolvimento do reflexo auditivo é possível desviar ou interromper a marcha antes do contato corporal com os obstáculos. De acordo com Guerreiro (2001), a informação auditiva desempenha um papel relevante para o indivíduo cego no seu deslocamento no espaço, proporcionando informação fundamental da localização e, em algumas circunstâncias, das dimensões de objetos e lugares do meio ambiente. Os objetos ou lugares que emitem ou refletem algum som permitem que pessoas cegas treinadas a percebê-los estabeleçam a sua posição em relação a eles, bem como em relação a outros indivíduos por intermédio do eco e dos refluxos sonoros produzidos. Além dos sons, parece estar envolvida nessa percepção de obstáculos a pressão do ar exercida sobre a pele ou a diferença de temperatura do ar ambiente. Para desenvolver essa sensibilidade é preciso exercitar o sistema auditivo, o tato e a propriocepção que, como lembra o autor, atuam indissociáveis e em conjunto na pessoa cega que se desloca. Caetano diz que quando chega perto de um volume consegue sentir. Vai andando e se tem um carro parado, ao passar pelo carro dá para sentir que tem algum corpo próximo. Quanto maior, mais fácil de perceber. Ana 243

também consegue sentir quando tem um ponto de ônibus, também por essa percepção de tamanho, que associa a audição e a sensação tátil. O grau de desenvolvimento dessa percepção pode variar de acordo com o tempo da cegueira (se congênita ou adquirida e em que fase da vida), a profundidade do treinamento em OM, a consciência corporal. Cegos congênitos têm maiores chances de desenvolver essa percepção de forma mais apurada, mas, como enfatizado anteriormente, isso não é uma regra.

4.1.3 Perder-se

Certo dia, com Dora, tivemos que atravessar muitas vezes a Rua Voluntários da Pátria, em Botafogo, pesquisando preços de vendas para os olhos nas farmácias da região para o workshop que estávamos montando. Fomos a uma, de um dos lados da rua. Atravessamos para perguntar do outro lado. Atravessamos de novo para saber qual seria o preço em uma loja especializada em artigos médicos. Finalmente decidimos pela primeira e depois ainda fomos a uma papelaria mais a frente, na mesma rua. Cruzamos a rua pelo menos três vezes e também fizemos deslocamentos de idas e vindas no mesmo sentido (frente e trás). No fim, Dora comentou que já não conseguia se localizar muito bem, tinha se perdido com toda a movimentação. Tuan (2001) ressalta que o ser humano, por sua simples presença, impõe um esquema ao espaço. Na maior parte do tempo não estamos conscientes desse esquema. Mas a sua ausência é notada quando nos encontramos perdidos. As ocasiões rituais que elevam a vida acima do ordinário, como na experiência de campo que abre este capítulo, e que novamente irrompe nos cruzamentos de rua com Dora, compelem a uma conscientização dos valores da vida, incluindo aqueles que se manifestam no espaço. Assim como há técnicas, exercícios e atividades que ajudam uma pessoa a aprender a se orientar sem ver, existem algumas recomendações do que não deve ser feito ou esperado de uma pessoa cega. Jair passa por situações em que pessoas na rua insistem em alertá-lo que ele deve ir em frente, chegam até a empurrá-lo pelas costas, com a intenção de direcioná-lo. Quando isso acontece ele responde “ó, cego não anda reto não”. Quando está andando para algum lugar e alguém o chama, se ele se vira para trás para atender já sabe que vai se perder depois. Para evitar, ele me mostra a posição que precisa manter corporalmente – a cabeça pode ser voltar para trás, mas tem que sustentar o corpo voltado para frente. Se virar completamente perde a direção, perde a rota e tem que concertar perguntando para alguém se está caminhando na direção 244

correta. Como marca Tuan, o espaço é articulado de acordo com nosso esquema corporal. Ter controle do espaço significa deter marcos espaciais objetivos, tais como pontos de referência e posições cardinais, conforme a intenção e as coordenadas do corpo humano. A psicóloga do IBC diz que muita gente quando vai conduzir um cego a uma cadeira para sentar acaba girando tanto a pessoa que ela não sabe mais se localizar. O melhor é colocar a mão da pessoa no encosto ou no assento da cadeira, aí ela já vai saber. Comenta que rodar uma pessoa cega não é bom, confunde a cabeça e faz com que ela perca totalmente a orientação.

4.1.4 Observação de dois atendimentos em OM

Acompanho o atendimento de Maria. Após uma breve conversa com a TO para saber o que ela treinou durante a semana (construiu o mapa mental da igreja?), saímos pelo corredor do IBC. Um pouco antes de chegar ao largo saguão da entrada, paramos. A TO quer que Maria, com o auxílio da bengala, siga em frente, atravesse o saguão e alcance a recepção, que fica ligeiramente à direita de onde estamos, há uns 20 metros a frente em um ângulo de mais ou menos 45 graus. Indica que ela deve fazer o enquadramento e tomar a direção, para saber onde está e para onde vai. Maria vira ligeiramente seu corpo para a esquerda e começa a se movimentar, direção que a afasta do objetivo. A TO ajuda com a indicação verbal da direção – “você está indo para a esquerda, a recepção está mais à direita, lembra?”. Ela tenta corrigir, mas a minha impressão é de que a reabilitanda não tem a menor ideia do que está fazendo ou que não sabe muito bem o que é direita e esquerda. A TO se posiciona em relação à reabilitanda - a frente do seu corpo e voltada para ela, com as costas alinhada ao balcão da recepção - e busca direcioná-la guiando sua atenção pelo som da sua voz. Entre muitos erros e alguns acertos, Maria se desloca. Durante um trajeto posterior, da rua até o ponto de ônibus próximo ao IBC, a TO, com indicações verbais, corrige diversas vezes o passo de Maria e a lembra de coordená-lo com a bengala – tem que bater com a bengala no lado contrário do pé que está na frente. Paramos muitas vezes e recomeçamos. Exige atenção e concentração constantes. A bengala tem que ser movida na direção oposta ao pé dianteiro com a mesma velocidade da passada de pé. Maria apresenta dificuldades nessa coordenação. A TO diz que é normal, que é o conteúdo mais complicado de OM. No começo exige foco 245

e determinação, mas depois que ela tiver assimilado a técnica, fluirá normalmente. Ela sempre deve procurar por uma linha guia – meio fio, muro do IBC, muro do Iate clube do outro lado da rua. Num segundo atendimento, subimos as escadas do IBC e vamos para o segundo andar, onde há uma ampla área livre no saguão em frente ao teatro. Nas duas extremidades opostas, longos bancos de madeira encostados na parede. No meio, espaço vazio de passagem. A TO orienta que Maria perceba um dos bancos com a bengala, percorra a sua extensão e encontre o meio do banco. Em seguida, ela deve enquadrar seu corpo em relação ao meio do banco. Enquadrar é posicionar o próprio corpo (as costas, a batata da perna, o calcanhar) em relação a um objeto, com o objetivo de se alinhar, manter uma posição e tomar uma linha de direção definida no ambiente. A TO enfatiza a importância do enquadramento e da tomada de direção correta para chegar ao local planejado. Um primeiro passo com o corpo torto fará com que saia na transversal e perca a linha reta para chegar ao outro lado. O treinamento se concentra no uso dos sons para o deslocamento. Uma primeira proposta é que ela se oriente até o outro lado direcionada por um som contínuo que a TO emite (vai chamando Maria pelo nome ao longo do caminho). Maria deve se guiar por esse som e caminhar em direção a ele. Na segunda proposta o som é descontínuo e mais sutil, (estalo de dedos ao longo do percurso). Maria desvia um pouco o corpo para a esquerda, mas consegue corrigir sua posição pela escuta atenta do estalar dos dedos da TO. Em um terceiro momento a TO se posiciona do outro lado e emite um som à distância. Alerta que ela precisa focar sua atenção no objetivo porque terão outros sons no ambiente (crianças conversando na beira da escada do lado oposto, pessoas passando batendo bengala). Na última proposta a TO faz um único som forte em determinado local do saguão (uma palma), para que Maria perceba, mentalize de onde veio o som, tome a direção e caminhe para lá, sem que haja repetição. A ideia é que ela preste atenção, guarde na memória a direção de onde veio o som e se desloque até lá orientada por esse traço auditivo.

4.1.5 Estratégias de locomoção e reconhecimento espacial

Nas práticas descritas estão presentes algumas técnicas e estratégias que estruturam um treinamento de OM com uma pessoa cega – enquadramento, tomada de direção, uso dos sons como pistas sonoras, procurar e seguir linhas guias. Conversando com a TO, ela marca a importância dos sons, da pessoa usar o ouvido como “aliado”: 246

saber que está próximo de um ponto de ônibus pelos sons de freio e arrancada dos veículos; distinguir um som entre outros e utilizá-lo como base do deslocamento (deu o exemplo de uma casa com um cachorro que sempre late – o latido do cachorro pode se transformar no sinal de que naquele ponto é preciso virar à direita); diferenciar corredor de saguão pelo eco das vozes ou dos passos das pessoas, sentir no ouvido que mudou a vibração do local. Os barulhos podem se transformar em motor de aproximação ou afastamento. Os sons, mesmo que variáveis, podem fornecer pistas que oferecem grande possibilidade de orientação, tais como a voz de pessoas, o barulho dos carros, barulho de um bar, o som da rua que anuncia uma janela, a televisão ligada da sala, barulho do ventilador, entre outros. Assim como os sons, referenciais de outros sentidos também se transformam em pistas para o deslocamento e a orientação. O cheiro de gasolina do posto, o cheiro de comida em frente a um restaurante, o cheiro de pão da padaria. Farmácia tem cheiro de remédio. Mercado ou feira tem cheiro de fruta. As marcas do caminho. As habilidades são desenvolvidas e utilizadas por cada um de acordo com necessidades específicas e capacidades singulares. Angela entende um espaço que conhece pela primeira vez pelos cheiros e sons característicos e pelas marcas do chão. O cheiro de alguma coisa, aquela coisa do odor ajuda muito, eu procuro assimilar na hora e ir identificando... na caixa cultural eu já marquei aquela rampinha com aquele tapete, o trajeto para a escada rolante, aquilo ali tudo eu procurei assimilar bem. Depois que eu estou dentro do local eu procuro assimilar os sons. A voz de alguém, procuro reconhecer a voz de alguém, algum ruído, alguma coisa assim. É uma mistura de sons de vozes com ar condicionado, ou algum radinho tocando baixinho, ou sei lá, alguma máquina ligada. Algumas vezes você entra em algum lugar que tem muitas salas, muita coisa, de repente está todo mundo falando, não tem como você saber se está certo, mas sempre sai algo diferente daquele local onde eu quero ir. Isso aí é meio que inexplicável, acontece.

Na entrevista com Jair aparecem novos elementos do ato de conhecer um lugar. Além do som de vozes que o ajuda a identificar o local onde se encontra, ele fala da temperatura e do deslocamento do ar como referência de um ambiente interno ou externo ou como indicador da existência de objetos no caminho que percorre. Em outros lugares que eu nunca entrei eu conheço pelo ar e pela... se tiver as pessoas conversando eu conheço o local que eu vou. O: mas pelo ar, como? Pelo ar, porque a gente sente que entrou no lugar. Ali o ar já vem quente na gente. O: pela temperatura do ar? É, temperatura do ar. Aí nós já não estamos pro lado de fora, estamos para o lado de dentro. Aí já não é aquela temperatura de lá fora, do lado de fora. Aí a gente conhece, entendeu? É isso. Agora se eu for chegar perto de uma coisa aí vem a quentura, vem um ar assim quente, da gente ter que parar porque sabe que tem um

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negócio assim na frente. É, a gente sente. Poste a gente sente. O poste então é melhor ainda, o poste ali ele leva chuva, sol, aí o ar já vem mais rápido, é mais rápido, a gente para mesmo na hora. Aí passa a bengala... é um poste.

Voltamos ao paradigma indiciário de Ginzburg (2009). Decifrar o mundo por meio de zonas privilegiadas - sinais, pistas ou indícios - fundamentalmente localizados, mas que dão acesso à realidade opaca do mundo. Retirar de detalhes que poderiam passar despercebidos a uma sensibilidade comum, uma realidade mais complexa. Os sons do ambiente, os cheiros das coisas, os traços dos lugares se tornam pontos de referência que anunciam a materialidade do mundo, sugerindo sua forma. A TO explica que ponto de referência é tudo que não sai do lugar, podendo servir como referência para a pessoa se localizar. No treinamento da reabilitanda descrito antes era o banco, mas ela diz que pode ser o cheiro da padaria ou o burburinho constante de vozes de um restaurante em determinado horário do dia. É fixo, está atrelado a um local e tempo específicos, mas não precisa ser sólido. É material, é perceptível, mas não necessariamente materialidade. Assim como o pássaro é o seu voar, o peixe é o seu nadar ou a pipa de Ingold (2012) não é apenas um objeto, mas uma coisa que inclui o seu movimento no ar, as coisas que as pessoas cegas encontram no caminho são os seus cheiros, são os sons que emitem ou refletem, são as sensações táteis ou de temperatura que transmitem e não apenas a forma que possuem. Não estão contidas nessas formas. O poste se modifica a cada chuva ou sol que recebe, muda de qualidade e temperatura, absorve essas marcas e transmite esses traços. No mundo dos materiais, o que existe são superfícies de diferentes tipos e graus variáveis de estabilidade e permanência. Para Deleuze e Guattari (1999), onde quer que se encontre matéria ela é sempre matéria em movimento, em fluxo, em variação, a matéria-fluxo só pode ser seguida. Por não ter acesso visual às formas da materialidade do mundo, o cego quando caminha segue seus fluxos. Entender os sons como fluxos de materiais é uma tentativa de não reduzir coisas a objetos, como sugere Ingold (2012). As coisas têm superfícies externas, mas onde quer que haja superfícies a vida depende da troca contínua de materiais através delas. O que parece ser percebido e trocado no caminhar de pessoas cegas são justamente os fluxos dos materiais, que não necessariamente têm forma, mas que participam dessas materialidades. Os materiais, para Ingold (2011), são constituintes ativos de um mundo-emformação. Onde quer que a vida aconteça, estão incansavelmente em movimento –

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transbordando, misturando, descamando. A existência de todos os organismos vivos é apanhada nessa interminável troca metabólica e respiratória entre as substâncias do seu corpo e os fluxos do meio. Se considerarmos as propriedades dos materiais como constituintes de um ambiente, como sugere o autor, elas não podem ser identificadas como atributos fixos ou essenciais das coisas, mas ao contrário, são processuais e relacionais. Não são nem objetivamente determinadas, nem subjetivamente imaginadas, mas experimentadas praticamente, nas relações que se estabelece com elas – som do muro, temperatura de lugar aberto ou fechado, volume de um carro. Na composição corpoespacial não há um sentido necessariamente privilegiado, os indícios se multiplicam para formar uma unidade que, apesar de englobante, é aberta. Em constante atualização, vai ganhando novas informações a cada instante, a cada distância percorrida, absorvidas por todo esse aparato perceptivo.

Você anda de bengala então você percebe através do pé, através da pele, as coisas que estão acontecendo. Por exemplo, você percebe o chão... a audição ajuda porque você percebe se o espaço é aberto, se o espaço é fechado, como é que é, se tem som, se não tem, da onde o som está vindo... e o olfato para você perceber o cheiro da onde você está. Não sei se tem um sentido principal. Tem as marcações táteis também, uma escada, um degrau, uma diferença de piso, sei lá, de repente uma pilastra, uma porta. Porque a verdade é que quando a gente anda, aqui na escola mesmo, eu estou andando do outro corredor para esse daqui, eu sei que quando entra aqui nesse corredor, lá do saguão, o ambiente fica mais fechado, o som muda, o piso muda, eu sei que tem um risco no piso, perto das pilastras, eu sei que tem pilastras no corredor. Para você o risco não é importante porque você enxerga. Normalmente para a gente esse risco é importante, perto da pilastra. (Renata)

Merleau-Ponty (1971) considera que a atenção é o que confere existência ao objeto para a consciência perceptiva. Prestar atenção não é somente avançar no esclarecimento de dados preexistentes, mas induzir uma nova articulação desses dados tomando-os como figuras. A atenção, para o autor, é a constituição ativa de um novo objeto, que vai tornar explícito e articulado o que até então era apresentado como um horizonte indeterminado. Com essa noção de atenção podemos aprofundar a compreensão do trabalho realizado pelos profissionais nos atendimentos de OM – um treinamento da atenção às sonoridades (no caso específico descrito), mas também a outras marcas ou sinais perceptivos que possam ser articulados para constituir relações espaciais. Na composição do espaço por pessoas cegas o que ocorre, por meio de um direcionamento corporal da atenção, é a transformação do que antes eram dados indeterminados – ruídos, burburinhos, barulhos, cheiros, buracos ou falhas no caminho, objetos (banco, no caso, mas pode ser mesa, cadeira, parede, etc.) – em componentes

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espaciais indicadores de orientação – direção, enquadramento, posição, deslocamento, locais (cheiro de remédio indica a farmácia) ou localizações (risco no chão indica a posição em relação à pilastra). A relação entre corpo e ambiente pode ser pensada a partir da descrição de Tuan (2001) sobre as aptidões desenvolvidas por navegantes e povos esquimós. Os esquimós, para sobreviver a um ambiente pobremente articulado, refinaram suas habilidades perceptivas e espaciais. Quando todos os pontos de referência desaparecem na neve e na neblina, eles conseguem achar seu caminho ao observarem a relação entre a configuração da terra, os tipos de neve e o estalar do gelo, a qualidade do ar (fresco ou salgado) e a direção do vento. No pesado nevoeiro, o navegador do ártico estabelece sua posição no mar pelo som das ondas batendo na terra e ao verificar o vento. Ainda que o ambiente seja hostil e enigmático, o ser humano aprende a fazer sentido – a extrair significado dele – quando isso é necessário para sua sobrevivência. Casey (1996) propõe uma reversão fenomenológica para compreender o sentido de lugar e o conhecimento local enquanto uma percepção corporificada, expressão concreta e localizada, ao invés de uma ideia de espaço englobante, abstrato e generalizado. O autor acredita que há, desde o início, um ingrediente na percepção que funciona como um meio que comunica o que significa estar nos lugares. Estamos nos lugares porque estamos nos nossos corpos. Pelas sensações corpóreas de corpos cegos no mundo podemos aceder a novas medidas espaciais. A situação de corpos marcados pela não visualidade enfatiza os papéis que sensações corpóreas provocadas por sons, cheiros, direção, toque, temperatura e deslocamento do ar, desempenham para a composição espacial do mundo. Descrevi alguns modos somáticos de atenção (Csordas, 2008) desenvolvidos por pessoas cegas para se situar espacialmente. A atenção a uma sensação corporal (determinados cheiros ou sons) se torna um modo de estar atento ao meio intersubjetivo que gera aquela sensação (posto de gasolina, ponto de ônibus, estar dentro e fora de lugares, etc.). O conceito de modo somático de atenção desenvolvido por Csordas sugere que prestar atenção ao corpo pode nos ensinar algo sobre o mundo e sobre os outros que nos rodeiam. No caso de pessoas cegas, uma vez que o fitar da atenção visual, que costumamos conceber como desincorporado, se encontra ausente, prestar atenção ao e com o corpo seria o que proporciona a própria constituição espacial, a sua posição em relação aos outros e aos objetos, orientando o seu deslocamento.

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Marandola Jr. (2012) reflete sobre os papéis dos sentidos enquanto elementos espacializadores na experiência geográfica. Com enfoque na experiência do paladar, o autor ressalta uma dimensão ontológica do espaço que recoloca o problema da proximidade e da distância a partir do envolvimento, da intencionalidade e da volição. O termo “geograficidade” (Dardel, 2011) expressa a essência geográfica da existência, fundada na experiência e concebendo a distância ou a proximidade a partir do ser. Na ótica da geograficidade os sentidos estão envolvidos numa relação de interioridadeexterioridade que não se circunscreve à pessoa, mas se associa à experiência integral de um momento e um lugar. Os dados dos sentidos percebidos por pessoas cegas ao se deslocar - cheiro de gasolina, latido de cachorro ou barulho de televisão ligada, marcos no chãos, temperatura do poste -, não podem ser entendidos em si mesmos, sem o contexto de elaboração que os envolve. Pensando a partir de uma abordagem humanista que toma a a experiência como fonte primordial para a compreensão da natureza geográfica (Marandola Jr., 2005), tais dados podem ser lidos como elementos espacializadores que conformam a geograficidade de lugares para pessoas cegas.

4.1.6 Percorrer o ambiente para percebê-lo: rotas, linhas e mapas

Como fica explícito no depoimento anterior de Renata, outro referencial importante são as marcas do caminho. Um quebra mola, um risco no chão, uma pilastra, um bueiro na rua, todas essas coisas podem virar indícios de um lugar, marcações que orientam. O meio fio e o muro das casas, de uma instituição ou estabelecimento como linhas guias. Camila descreve a linha de chegada em sua casa: Eu pego a bengala na frente, sigo uma rua e vou embora. Eu sempre pego uma linha guia. Para eu chegar em casa é a guia do posto. Eu salto no ponto, vou na mesma calçada, vou, vou, vou. Aí quando eu sinto que eu caí na rua assim, eu passo para o outro lado, atravesso a rua que não tem movimento e acho a rua do posto de gasolina, que é do outro lado. Eu ainda passo um pouquinho da rua, aí achei a guia, eu vou voltando pela parede e vou embora. O: uma linha guia é uma coisa que você sempre busca? Sempre, em qualquer lugar, qualquer lugar eu busco.

Catanneo e Vecchi (2011) afirmam que o treinamento de OM consiste basicamente em ajudar pessoas cegas a primeiro saberem onde estão espacialmente e para onde querem ir (orientação) e depois traçar um plano para chegar lá (mobilidade).

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Em um dos manuais (Brasil, 2001) a premissa é reforçada, quando se coloca que o professor, ao ensinar orientação à criança cega, deve se ater a três questões: a) Onde estou?; b) Para onde quero ir? (Onde está o meu objetivo)?; c) Como vou chegar ao local desejado? Depois que ficou cega Camila mudou certos hábitos. Um deles foi esse de fazer um planejamento, uma rota do deslocamento, antes de sair para qualquer lugar. Eu sempre faço uma programação antes, eu procuro saber o quê que eu tenho que fazer, como eu vou fazer, não posso sair com a cara e a coragem achando que também vai... -„Camila, vai lá na minha casa?‟, -„onde você mora?‟, -„em tal lugar‟, eu falo assim -„olha, eu estou saindo de Madureira, como é que eu faço?‟. Eu não tinha esses cuidados, de se programar, agora eu me programo direitinho.

No ponto de partida do deslocamento, a pessoa cega traça uma rota, planeja previamente a sua navegação. A sua orientação está voltada para um destino e nesse sentido seguem uma linha de transporte, de conexão ponto a ponto, conforme descrita por Ingold (2007). Mas o deslocamento, por outro lado, se realiza ao longo do caminho, contando com as marcas, as pistas, os traços do ambiente no percurso que se faz através dele. Dada a largada, para alcançar o seu destino o deslocar de pessoas cegas se aproxima ao do caminhante (wayfaring) de Ingold (2007). Sua orientação e seu passo estão continuamente relacionados ao monitoramento perceptivo de um ambiente que se revela ao longo do caminho. Ele observa, escuta e sente enquanto segue, todo o seu ser está alerta para as incontáveis pistas que, a cada momento, podem demandar pequenos ajustes. Locomoção e percepção estão intimamente vinculados em sua caminhada. Mesmo dentro de um táxi, Renata percebe o deslocamento e o lugar onde se encontra por meio da propriocepção e do movimento. Quando eu estou chegando aqui eu passo pelo viaduto e passo pela praia de Botafogo. No viaduto eu sei que o carro sobe e desce, aquela é a minha referência para me mostrar que está chegando perto do Instituto. Aí depois tem uma curva e tal, a curva é outra referência. Isso a gente percebe. Porque, não sei, vai que alguma vez eu esteja dentro do táxi e o motorista resolva me levar para outro lugar? Tem que ficar atenta.

Para o ambiente se tornar conhecido é preciso traçar as suas linhas, incorporar os seus contornos ao longo das repetidas passagens que se faz ali. Caetano fala sobre o novo lugar onde mora e como faz para chegar e sair de sua casa e Jair conta sobre o seu caminhar por locais conhecidos:

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O local é novo, eu não conhecia. Estou me adaptando. Mas aí eu já tracei, já fiz o traçado de lá. Quer dizer, é uma rua que passam duas estradas, uma numa extremidade, outra na outra. Eu fico entre uma estrada e outra. Já sei que moro mais perto da primeira, que é onde eu pego o ônibus quando eu venho de manhã. Quando eu vou, eu vou pelo outro lado, pela outra estrada, porque aí eu não tenho que atravessar a rua. Eu chego em casa, vou e volto, sem ter que atravessar nenhuma das duas estradas, porque eu vou por uma e volto pela outra. Os lugares que eu sempre passo são os lugares que eu conheço, né? Quando eu saio de casa eu já sei que ali tem um vaso assim, depois um pé de não sei o quê. Aí eu passo ali, bato a bengala, aí eu desço, pego a rua, antes de pegar a rua eu... audição para ver se vem carro, não vem carro, eu atravesso. Aí tem outra rua, eu vou andando, não vem carro eu atravesso. E vou para o ponto de ônibus.

Não só a memória é redundante, para Calvino (2002) a própria cidade redunda, se repete para fixar alguma imagem na mente. A locomoção de pessoas cegas se encontra em algum lugar entre o transporte e a caminhada. O deslocamento está ligado a locais específicos, se orienta a um destino, mas o caminhante que sai de um local e chega em outro, no meio tempo, está inteiro no movimento e no ambiente que percorre para chegar até lá. Ele se desloca ao longo, seguindo linhas guias, traçados, buscando pontos de referência, internalizando as curvas, as marcas e o movimento do corpo no caminho. O andar de cegos se aproxima ao monitoramento que os Batek realizam ao caminharem em uma trilha (Ingold, 2007). Mas pessoas cegas, ao invés de buscarem plantas úteis para colher ou traços de outros animais em sua caminhada, buscam pistas espaciais – sonoras, táteis, olfativas, de temperatura, de movimento, do tempo e da distância percorrida – que possam ser indicativas do caminho, do ambiente, dos objetos, estabelecimentos, construções, ruas, outras pessoas, buracos, carros, das superfícies no mundo. Primeira coisa, me chama a atenção o chão, o solo onde eu piso. Eu procuro sempre identificar alguma coisa no chão. Qualquer coisa diferente ali que dê para eu identificar. Acontece muito de eu ir num lugar que eu não conheço a primeira vez acompanhada de alguém e conseguir voltar a segunda sozinha. Exatamente por isso, pelas marcas no chão. Antes de entrar, eu já procuro vir assim procurando alguma coisa ali na calçada, prestando atenção no solo e no trajeto que eu estou fazendo pra chegar até a porta de entrada, esse é o primeiro passo. Essa coisa de se eu vou fazer um movimento para a esquerda, para a direita, se eu vou seguir em frente, eu procuro marcar sempre isso. Ali na caixa cultural, por exemplo, eu entrei na Almirante Barroso aí eu procurei marcar o tempo que eu levaria para chegar mais ou menos próximo ali da entrada. Aí outro dia quando eu voltei sozinha, pelo tempo que eu andei da esquina, eu parei e disse assim, acho que eu já estou em frente. Aí eu perguntei pra um casal que vinha passando “por favor, vê se eu estou em frente ao número 25?”. Aì o casal “ah tá, só passou um pouquinho. Como a senhora sabia?”, eu digo “é porque eu tenho mais ou menos a noção do tempo”. (Angela)

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Cattaneo e Vecchi (2011) dizem que pessoas cegas tendem a gerar representações mentais que chamam do tipo “rota”, sequenciais, em seu deslocamento. Para experimentar um espaço amplo ou um grande número de objetos ao mesmo tempo na ausência da visão, é necessário se locomover e a pessoa cega precisa recodificar continuamente objetos previamente tocados com referência ao seu corpo em movimento. Em um manual (Brasil, 2001), indica-se que a proposta pedagógica com uma criança cega deve contemplar a vivência e o conhecimento do espaço interno e externo, tocar, explorar paredes, corredores, portas, janelas, móveis, brinquedos, para poder formar o mapa mental do ambiente, que permitirá um deslocamento seguro. Renata nos fala sobre o processo de formar o mapa mental de um lugar. Quem direciona (a bengala) é a própria pessoa, que faz o mapa mental e estabelece as referências dos espaços. E isso cada um tem as suas, dependendo do espaço, dependendo do que a pessoa acha mais importante. Cada um tem uma forma de fazer referência.

A geografia tem pensado o conceito de mapa mental como representações do vivido, em que uma imagem do lugar se apresenta em uma forma que carrega histórias concretas e simbólicas, revelando como o lugar é compreendido e vivenciado (Nogueira,

2002;

Kosel,

2013).

As

representações

espaciais-mentais

são

construídas com base na percepção própria dos lugares experimentados e, portanto, partem da realidade. Os mapas mentais são saberes que expressam uma relação de vida com o lugar. No conceito geográfico humanista de mapa mental está embutida duas ideias que nos interessam para compreender o processo de construção de mapas mentais de pessoas cegas - a compreensão da percepção como saber primeiro e do mundo como um lugar de existência. No depoimento de Angela é possível identificar algumas referências que usa para formar o mapa mental, ou uma imagem, de um lugar que conhece pela primeira vez. Ao percorrer por meio do tato os móveis, os materiais ou a parede, consegue formar uma imagem - a sua imagem - do ambiente. Se for um lugar que eu esteja à vontade, eu procuro passar a mão na parede, na porta, para eu poder através dali ir criando a imagem daquele ambiente, entendeu? Os designs da porta, da parede.... Um lugar assim que eu possa identificar móveis, mesa, balcão, aquela coisa toda. Aí eu procuro sempre apalpar, com a mão, para poder sentir um design, alguma coisa e dali eu vou criando aquela... entendeu? A minha imagem.

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O mapa mental de uma pessoa cega pode ser comparado ao que Ingold (2007) chama de mapa rascunho. As linhas do mapa rascunho são formadas pelo refazer (reenactment) gestual de jornadas efetivamente realizadas, de - e para - lugares que já são conhecidos por um histórico prévio de idas e vindas. As junções, separações e interseções entre as linhas indicam quais caminhos devem ser seguidos e quais podem fazer com que se perca, dependendo de onde você queira ir. São linhas de movimento. O caminhar da linha retraça seu próprio caminhar pelo terreno. Na entrevista com Camila podemos distinguir os traços dos seus movimentos, quando está fazendo o reconhecimento espacial de um lugar para posteriormente formar seu mapa-rascunhomental. Algumas vezes o reconhecimento espacial é feito com o auxílio de uma pessoa que enxerga. Olha, geralmente a pessoa vai me dando dicas, assim, do caminho. Eu procuro sempre parede. E algum obstáculo que tenha que eu sei. Se eu vou por uma parede, geralmente salão tem vaso, „ó, aqui é o vaso‟, logo depois é uma porta ou então a segunda porta é um banheiro. Aí eu vou sozinha na segunda vez. Na volta eu percebo onde eu estou sentada, passou a porta, passou o vaso, passou a parede, calculo mais ou menos a distância e já sei mais ou menos, se tiver alguém sentado do meu lado, já sei que tem que passar por uma cadeira, fazer uma volta. Por isso que eu falo que a gente tem que ter uma memória muito boa, porque tudo o que a gente faz tem que ser memorizado.

Latour e colegas (2013) ressaltam dois significados que julgam completamente distintos da palavra correspondência e que às vezes são confundidos quando se pensa na ideia de mapa. O primeiro, que relacionam a uma interpretação mimética dos mapas, se baseia na semelhança entre dois elementos (signos no mapa e no território, ou palavras e mundo), enquanto o segundo, relacionado a uma interpretação navegacional dos mapas, enfatiza o estabelecimento de alguma relevância que permite à navegadora alinhar diversos sinais sucessivos ao longo de uma trajetória. Os mapas mentais de pessoas cegas podem ser compreendidos na interpretação navegacional, uma vez que são formados a partir de uma conexão entre sequências de sinais e informações dessemelhantes que vão sendo adquiridas ao longo do percurso. Você percorre um lugar de olhos vendados, se você tiver a mínima referência espacial, você consegue fazer uma imagem, um mapa mental. É óbvio que se você tiver que fazer isso sempre, você vai acabar pegando prática, certo? Quando chego a um lugar novo eu percorro o lugar para formar esse mapa, para eu poder ter independência de me locomover. (Dora)

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Camila também ressalta o aspecto da autonomia de movimento que advém do reconhecimento espacial e da formação de um mapa mental de um ambiente. A primeira vez que foi a um salão de festas de um amigo ele levava todos os deficientes visuais para conhecer o lugar assim que chegavam – aqui é onde tem cerveja, aqui você pode pegar comida, para ir ao banheiro vem por essa parede. Essa atitude ela considera diferencial. Diz que a pessoa cega também sente necessidade de se mover e que se não tiver feito o mapa mental fica mais difícil. Se pensarmos a partir de Latour e colegas (2013), o reconhecimento de um espaço seria o ato de mapear um território de forma navegacional, com o objetivo de proporcionar mobilidade e independência a uma pessoa cega em um ambiente particular. Com a especificidade de que esse mapa em geral não tem interface material, ele é mental, cognitivo e individual, construído a partir de informações adicionadas que vão formar uma imagem. Tátil? Visual? Dora acredita que não importa o formato, a informação é que é importante. No final das contas não faz muita diferença, se é visual ou se é tátil ou é não sei o quê, é só o suporte físico que você usa para representar aquilo. Porque na verdade a informação ela é informação, ela não é nem visual, nem tátil, nem auditiva, ela é cognitiva, é assim que eu entendo. É como você discutir se o disco no CD é o mesmo no vinil, é o mesmo no MP3. Isso é só o suporte, mas o conteúdo ele é o mesmo e está em suportes diferentes, não é? Então eu acho que é a mesma coisa, sabe? Mais ou menos, claro. É uma comparação, uma analogia. (...) Mapa é igual à imagem, está contaminado pelo visual. Na verdade mapa também não é visual. O mapa é a informação de como é aquele lugar. Aquela informação de como é a coisa espacialmente. O jeito melhor de representar é visual, mas às vezes você diz assim “vou dar o mapa de como vai na minha casa” e não é um desenho, é um monte de palavras, não é isso? “vai em tal lugar, vira em tal lugar, vai em tal rua”... não é assim? Então o mapa é uma informação. O que eu faço é uma coisa até parecida com o visual, só que o suporte que eu uso pode não ser exatamente visual, pode ser tátil. Você pode pensar num mapa mesmo, numa planta baixa, mas pensa que as linhas, em vez de serem um risco, são um relevo. Pensa com linhas em relevo, está aí um mapa mental de uma pessoa cega.

Tendo como inspiração o conceito de rizoma, elaborado por Deleuze e Guattari (1995), pode-se pensar na composição mental que pessoas cegas fazem de um ambiente e a relação que se coloca entre mapa e informação, dissociando-os de um suporte visual. O rizoma pode ser comparado a um mapa, que difere do decalque por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. Oposto ao grafismo, ao desenho e à fotografia, oposto aos decalques, o rizoma é como um mapa que deve ser produzido, construìdo. O mapa “é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. (...) um mapa tem

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múltiplas entradas enquanto o decalque volta sempre ao mesmo” (Deleuze & Guattari, 1995: 22). O mapa mental de uma pessoa cega, mais próximo do rizoma do que do decalque, tem informações que conformam entradas, linhas que são moldadas e se modificam a partir de direções e distâncias percorridas ou materiais experimentados. Os mapas-rascunhos-mentais de pessoas cegas, como rizomas, não estão cercados por molduras ou fronteiras. Consistem das linhas que o fizeram, nem mais nem menos. Linhas que são desenhadas ao longo, na evolução de um movimento, ao invés de atravessarem as superfícies nas quais são traçadas. Como nos mapas rascunhos de Ingold (2007), o conhecimento que se tem do entorno é forjado no curso mesmo de se mover através dele, na passagem de um lugar para o outro e nos horizontes em transformação ao longo do caminho.

4.2 Apreensão e apropriação social do espaço urbano

4.2.1 A cidade revisitada: pontos turísticos e áreas de lazer do Rio de Janeiro na percepção de pessoas cegas

De uma cidade não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. (Calvino, 2002: 44)

Aprofunda-se o que foi dito sobre a percepção espacial de pessoas cegas considerando a sua experiência de pontos específicos da cidade. Pelos significados criados para a cidade do Rio de Janeiro, percepções que abrangem a vida urbana e determinados locais, procura-se compreender quais seriam as possíveis representações da cidade a partir da não visualidade. Enfatizando alguns pontos turísticos ou áreas de lazer, procuro entender o que distingue um lugar como agradável ou desagradável, acessível ou inacessível, refinando uma compreensão dos atributos que se sobressaem na qualificação e na percepção de espaços ou lugares por pessoas cegas. Ao falar sobre a vida nas metrópoles, Simmel (2005) enfatiza a intensidade e o excesso de estímulos a que seus habitantes estão submetidos e a complexidade de suas relações e atividades. O autor destaca alguns fatores que caracterizam a vida nas grandes cidades, como a economia monetária, a pontualidade, a atitude de reserva, o caráter blasé. Mas a intensificação dos estímulos nervosos a que está submetido o habitante das grandes cidades é especialmente associada pelo autor “a rápida 257

concentração de imagens em mudança, o intervalo ríspido no interior daquilo que se compreende com um olhar, o caráter inesperado das impressões que se impõem” (Simmel 2005: 578). O excesso de informações visuais em uma metrópole pode não ter impacto em uma pessoa cega, mas o depoimento de Dora sobre os estímulos sonoros e o grau de atenção que precisa despender a eles nos faz pensar na possível correspondência entre o excesso de estímulos visuais e sonoros em uma cidade como o Rio de Janeiro e a intensidade que os últimos adquirem para uma pessoa que não enxerga. Barulho me estressa, é uma coisa que às vezes eu digo para as pessoas „vocês gostariam de estar neste restaurante e vendo aqui do lado um lugar assim todo sujo, cheio de lixo? Comendo com aquele lixo?‟, as pessoas „ah, não...‟, eu digo „então, esse som que a gente está escutando, isso é um lixo, eu também não quero comer com esse lixo no meu ouvido‟. Para mim um barulho ruim tem o mesmo efeito que um visual ruim, desagradável. Incomoda muito.

Castro (1999) esclarece que o reconhecimento de um lugar como turístico é uma construção cultural que envolve a criação de um sistema integrado de significados pelos quais a realidade turística de um lugar é estabelecida, mantida e negociada. Analisando guias de viagem e campanhas da prefeitura o autor identifica narrativas que apontam a cidade como dotada de incomparável cenário. No depoimento de Dora, o excesso de estímulos sonoros, juntamente com aspectos que percebe como exagerados, como a quantidade de pessoas e o cheiro, vão contribuir para a sua representação de lugares considerados turísticos na cidade do Rio de Janeiro, como as praias e a Lagoa Rodrigo de Freitas, que ultrapassam a associação mais imediata com o cenário. Eu gosto de praia, mas eu não gosto muito das praias do Rio. Eu gosto de praias sossegadas, com menos confusão, com mais árvore... tomar uma cervejinha debaixo da árvore, sabe? Aquela coisa menos espetaculosa, acho que menos turística, nesse sentido assim de grande estilo... aquela confusão, aqueles grandes quiosques, aquela montueira de gente, não curto. Aquele som, aquela barulhada, não curto praia do Rio. Não curto, sabe o quê que eu não curto? A Lagoa Rodrigo de Freitas, eu não curto aquela Lagoa. O: por quê? Porque você anda com aquele trânsito todo num lugar com tanto cimento, com tanta poluição, escutando aquele monte de trânsito, eu não consigo achar que é bom dar a volta na Lagoa, entendeu, não consigo me animar, não consigo curtir aquilo. Acho muito bobo. Muito bobo. (...) Cheiro é outra coisa que me incomoda. Por exemplo, a Lagoa tem essa coisa da poluição, acho que está muito ali na poluição, tá muito perto, a gente não passa da poluição. (...) Tem a ver com barulho, tem a ver com o clima, tem a ver com o cheiro.

Para Menezes (2001) o Rio de Janeiro é a cidade-síntese do Brasil e o Cristo Redentor o maior símbolo nacional, indelevelmente ligado à imagem do país. A história do monumento está atrelada ao processo de formação da identidade nacional e a da 258

criação de seus símbolos máximos. Por outro lado, o morro do Pão de Açúcar, que abriga o primeiro teleférico instalado no Brasil, em 1912, e o terceiro do mundo, é apontado pelo site da prefeitura da cidade como “um dos mais importantes ícones do turismo carioca, tornando-se uma das principais marcas registradas da cidade do Rio de Janeiro”78. A comparação que Dora estabelece sobre suas impressões nas visitas feitas aos dois pontos turísticos figurativos da cidade no Brasil e no exterior é interessante para pensar os efeitos desses lugares a partir de uma perspectiva não visual e o grau de sua atratividade sob essas condições. Sobre o Corcovado, diz Dora: Diga-se de passagem, o primeiro dia que eu fui ao Cristo eu fiquei profundamente decepcionada. Fiquei. Eu era criança. Falaram que era um Cristo que estava numa cruz que era feita de pedra e que estava no alto de um morro. Ah... então eu imaginei primeiro que quando chegasse lá em cima eu ia ter mais contato com a natureza. Segundo que eu não achei que ia estar tudo fechado, gradeado, sabe? O próprio lugar onde você fica, todo murado... para mim, no alto do morro, eu imaginava uma coisa muito mais agreste, de muito mais contato mesmo. Aquela coisa assim... se chegar na beiradinha você cai. Para quem não está vendo dá muito mais a sensação de altura se você não tiver aquele monte de muro e grade em volta. Depois que o Cristo, eu achava que eu podia ir lá, subir, botar a mão de algum jeito... não podia. Não podia tocar, não podia ter a sensação da altura... e mesmo, tá bom, me conformando com essas coisas. Eu achava que aquele lugarzinho lá em cima onde estava o Cristo era um lugar assim muito acanhado, sabe, meio acanhadinho? Meio pequeno, meio restrito... você fica meio preso ali. Eu me senti presa. Não tem muita opção ali. Eu achei tão bobo. Eu acho aquilo ali tão bobo, aquele passeio turístico. Eu gosto muito mais do pão de açúcar.

A experiência de visitar o Cristo Redentor é narrada por Dora como frustrante em relação às suas expectativas e ao imaginário que criou do lugar a partir de como o descreveram. Uma pessoa que não enxerga, apesar de estar no alto de um morro de 710 metros, não experimenta a sensação de altura porque a forma como foi construído impede o toque e a proximidade com a natureza, maneiras de entrar em contato com a altura que aparecem em sua percepção. Camila também se decepcionou quando foi ao Cristo. Achou que a viagem de trem para subir até lá não difere muito de uma viagem de metrô para quem não está enxergando. Caetano concorda que tanto o Corcovado quanto o Pão-de-Açúcar são lugares turísticos onde a atração é menos o que está lá em cima e mais o que está lá embaixo, que só pode ser acessado visualmente. Acha que, sem enxergar, esse tipo de passeio não tem tanta graça.

78

Informações obtidas pelo site: http://www.rio.rj.gov.br/web/riotur/exibeconteudo?id=157582. Acesso em 06 de setembro de 2014.

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Um possível contato com uma experiência de altura é narrado por Dora a partir de mudanças que imaginou para o bondinho do pão de açúcar, o teleférico que leva os visitantes até o alto dos dois morros que compõem o complexo. Em seu relato ela cita elementos que, em conjunto, contribuiriam para que uma pessoa cega tivesse não só a dimensão do espaço, mas vivenciasse fisicamente a altura. Eu também me decepcionei o dia que disseram que o bondinho novo era transparente, eu imaginei um bondinho todo transparente, inclusive o teto e o chão. Quando eu vi aquele bondinho todo fechado, que só as laterais eram transparentes, eu achei absolutamente sem graça. É engraçado que a minha imaginação ela é sempre muito mais... quando as pessoas me falam como é, eu acho que eu sempre imagino uma coisa muito mais retumbante do que aquilo que é. Depois eu sempre me decepciono. (...) um bondinho muito mais interessante... „mas Dora, e quem tem medo de altura?‟ Dane-se, quem tem medo de altura não vai, quem tem medo de altura vai fazer o quê no Pão-de-Açúcar? Não precisa ir. O Pão-de-Açúcar é uma experiência de altura, portanto ele tinha que ser todo transparente, entendeu? E eu imaginava mais, o meu bondinho do Pão-de-Açúcar era o seguinte: o chão e o teto transparentes e as laterais gradeadas, para você ter contato com o ar. Não era o bicho? Vai me dizer... Não seria incrível? Para sentir o vento, para sentir o ar, para sentir os cheiros, entendeu? Para sentir o silêncio da altura... Olha...

Outros aspectos, ainda na comparação entre Pão de Açúcar e Corcovado, são mencionados por Dora para descrever a sua impressão desses espaços. As motivações para uma visita ao Pão-de-Açúcar, não estariam apenas ancoradas na perspectiva visual, o lugar oferece alternativas a serem desfrutadas, enquanto o sentido de uma visita ao Corcovado estaria predominantemente fundado no aspecto visual da paisagem. Tirando essa história do bondinho, o Pão-de-Açúcar é um passeio muito mais interessante. Você tem espaço maior. Primeiro porque são dois estágios, você tem as duas viagens. Segundo porque em todos os dois morros você tem mais espaço lá para passear. Você tem a vegetação, que você entra em contato, ele não é só um passeio de ver. No corcovado, embora seja mais alto, como você fica num lugar que é todo cimentado, que é todo de alvenaria, você fica preso ali, você não entra em contato com aquela sensação da altura. O Pão-de-Açúcar não, você entra em contato com a altura. Com o clima... é maior, é mais aberto. No corcovado, é o seguinte, você só sabe que está sol. O sol lá em cima, como você não tem muito onde ficar te torra, ou chovendo... ou ventando. São menos agradáveis as sensações. Agora o Pãode-Açúcar, você tem a possibilidade de ficar na sombra de uma árvore, entendeu? De entrar numa loja e sair, de ficar observando o tempo ali fora, eu acho que tem mais interação. No Pão-de-Açúcar eu acho que você consegue ficar muito mais tempo aproveitando o passeio do que no corcovado. No corcovado você vai lá em cima, filma, tira foto e desce. Não tem aproveitar, passar um tempo. Não tem passar um tempo. Passar um tempo fazendo o quê? Você não tem nem onde ficar direito. Não é acolhedor aquele lugar.

A possibilidade do contato com a natureza, a amplitude do lugar, o clima, a opção de espaços diferenciados, aparecem no depoimento de Dora para justificar a preferência pelo Pão-de-Açúcar como passeio. Outros lugares destacados por Camila,

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Caetano e Ângela evidenciam certos aspectos valorizados em um passeio ou nas áreas de lazer. Assim como Dora, os três aludem à proximidade com a natureza em parques como Jardim Botânico ou floresta da Tijuca, como um atributo que valorizam. Caetano gosta de respirar o ar da floresta, gosta do clima, das cachoeiras, de saber dos animais que lá existem. Camila fala sobre um lugar que teve a oportunidade de conhecer em um passeio organizado pelo IBC e que despertou mais seu interesse do que o Corcovado. Levaram a gente também para aquele... equoterapia? Lá em Paciência. Você põe a mão nos cavalos, alimenta, olha... é lindo. Muito bom. E eles são preparados também, porque são pessoas deficientes que vão lá, outras deficiências, paralisia, deficiência visual foi a primeira visita. Aí eles botaram, eu nunca tinha botado a mão num cavalo, „olha como eles são fortes‟, você tem a percepção total, né? „quer alimentar? Bota na sua mão, estica a mão‟, ele vem, come na sua mão você sente assim o contato, tem o contato né?

Camila também relata a experiência de percorrer uma trilha que foi inaugurada na floresta da Tijuca com acessibilidade para deficientes visuais. Ela recorre novamente à palavra “contato” para resumir a qualidade da experiência vivida. Palavra que parece marcar um aspecto recorrente nas caracterizações dos pontos turísticos e áreas de lazer.

Um passeio que eu adorei, eles inauguraram uma trilha para deficiente lá na Floresta da Tijuca. Aquilo ali foi emocionante. Tu vai entrando e segurando assim, todas as placas escritas em Braille, foi muito bom aquele passeio. No meio do mato, tu vai entrando e aí tu escuta o barulho da cachoeira e de tudo. Eu adorei. É o contato, né? Para quem não enxerga tem que ter o contato. Por exemplo, em lugares muito abertos, Cristo ou Pão-de-Açúcar não tem... é o vento que você sente. As pessoas às vezes até tentam descrever mas... o mar tá lá embaixo, sabe? Você não tem aquele contato de pisar, de tentar tocar em alguma coisa, que te traga um cheiro, aí não é válido, eu nem iria de novo. Nem para passear, não me atrai.

Conhecer o espaço a sua volta para pessoas cegas passa pelo corpo, pelas sensações e impressões apreendidas. O corpo é a fronteira que separa um indivíduo do outro, corpo-objeto como fator de individuação, mas também a superfície por meio da qual o mundo, os lugares e os outros podem ser alcançados, pelo contato com essa superfície. Outro ponto que emerge na relação de pessoas cegas com os pontos turísticos e áreas de lazer é o acesso à cidade. Magnani (1996) lembra que as decisões relativas ao uso do espaço no contexto urbano devem levar em conta a diversidade dos seus habitantes, não podendo ser tomadas em função de uma única lógica que supostamente decide o que é bom, conveniente e bonito para a cidade. Seria necessário considerar os pontos de vista decorrentes da existência de diversos atores sociais com suas tradições, 261

modos de vida ou hábitos igualmente legítimos. O direito à cidade que, para Lefebvre (1969), não pode ser concebido como simples direito de visita, mas sim como direito à vida urbana, significando o acesso a espaços, equipamentos, instituições e serviços que transcendem os limites da vida cotidiana na vizinhança de um bairro. O pleno exercício desse direito para pessoas cegas, ainda que previsto na Lei da Acessibilidade79, que garante o direito de eliminação de barreiras arquitetônicas, de disponibilidade de comunicação, de acesso físico, de equipamentos e programas adequados, de conteúdo e apresentação da informação em formatos alternativos, é uma realidade ainda distante no contexto urbano carioca. As iniciativas que começam a existir para deficientes visuais ainda se restringem a certos eventos, dias ou horários específicos80 ou estão circunscritas a locais restritos de uma área muito mais ampla81.

4.2.2 Mobilidade em espaços urbanos: o acesso à cidade

Desenvolverei a discussão do acesso à cidade, acima relacionada às áreas de lazer ou pontos turísticos, a partir do deslocamento e da mobilidade de pessoas com deficiência visual pela cidade do Rio de Janeiro. Os locais frequentados ou evitados, as dificuldades encontradas no percurso e as estratégias para superá-las, os usos que se faz do transporte público e a necessidade de ajuda na rua. A escolha do percurso urbano é pautada não só nas relações sociais estabelecidas em cada lugar, mas na maior ou menor familiaridade com as próprias ruas, seu trajeto físico e os estabelecimentos. DaMatta (1985), ao analisar a sociedade brasileira e sua relação com o espaço, identifica a atuação de dois códigos sociais complementares e diferenciados, o código da casa, fundado na família, na lealdade, na pessoa e no compadrio, e o código da rua, o mundo exterior, mais rígido, baseado em leis universais e no formalismo. Tais conceitos podem nos ajudar a pensar os graus de proximidade ou

79

Lei No 10.098, de dezembro de 2000, regulamentada pelo Decreto-lei 5296 de dezembro de 2004. O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), do Rio de Janeiro manteve programação com exibição de filmes com audiodescrição mensalmente, um final de semana por mês, em um horário na parte da tarde. O projeto “Acessibilidade no Teatro” levou audiodescrição e libras para os primeiros e terceiros domingos de cada mês no teatro Carlos Gomes. 81 A iniciativa do Jardim sensorial, do Jardim Botânico, é um exemplo nesse sentido. Apesar da importância histórica, cultural, científica e paisagística do parque, que é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a área de acessibilidade se restringe ao local separado do jardim sensorial. As placas em Braille, por exemplo, se limitam ao circuito do jardim sensorial, não existem ao redor do parque, assim como não há caminhos com indicações táteis ou guia para deficientes visuais no circuito mais amplo ou ainda uma maquete do parque inteiro, por exemplo. 80

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distanciamento que aparecem nas entrevistas sobre os espaços urbanos frequentados. Na entrevista de Jair, percebe-se que as ruas, os bairros e os lugares frequentados são divididos em conhecidos e desconhecidos. O conhecimento passa pela familiaridade com o local, com os elementos físicos que o compõem e que se tornam marcações de reconhecimento. Na cidade os lugares que eu já andei, os bares que eu já parei, são os lugares que eu sempre vou, que as pessoas me conhecem. Paro, bebo alguma coisa, converso. (...) se vou numa rua que eu conheço, no caso vou lá em Botafogo, na rua São Clemente, aquela rua eu já conheço toda. Aí eu não preciso perguntar a ninguém, porque eu sei pra onde é, onde é que sai, ali eu conheço tudo. Em Copacabana, ali eu conheço, salto na Barata Ribeiro, vou andando e saio lá na beira da praia. Conheço, eu vou sozinho, entendeu?

O conhecido ou desconhecido é associado por Jair a um sentido de orientação espacial, ao mapa das ruas que compõem um bairro. Conhecer para ele é sinônimo de autonomia, de andar sozinho e não precisar de ajuda. Mas Jair sugere ainda que o sentido de conhecimento de um lugar se dá não apenas por saber se localizar espacialmente, mas também pela familiaridade com as pessoas e os estabelecimentos frequentados. Os espaços conhecidos adquirem para Jair a proximidade e a intimidade que podem ser relacionadas ao conforto e à segurança da “casa”, nos termos de DaMatta, mas que nesse caso podem ser melhor traduzidos pela ideia de vizinhança. Park (1984) indica que, com o tempo, cada seção ou quarteirão da cidade carrega as características e qualidades de seus habitantes. Cada parte da cidade inevitavelmente se tinge com os sentimentos peculiares de sua população. O efeito é a conversão daquilo que inicialmente era apenas uma expressão geográfica em uma vizinhança, isto é, uma localidade com história, sentimentos e tradições próprios. O bairro onde Jair nasceu pode ser considerado como a sua vizinhança. Ali ele se sente inserido em uma rede local de solidariedade e intimidade, diferente do que sente no próprio bairro onde mora há nove anos, que não adquiriu o mesmo contorno. Nova Iguaçu, eu sou cria de lá, eu sou cria de Nova Iguaçu. Lá eu ando de olhos fechados, para qualquer lugar eu conheço, qualquer rua, te levo em qualquer lugar, porque eu sou cria de lá. Agora aqui... já vim morar aqui já cego. Tem 9 anos que eu moro aqui em Caxias. O: mas você já se sente bem aqui no bairro, já conhece? Ah, porque eu já conheço. Os lugares que eu costumo andar eu já... só esses lugares aqui tá bom, o caminho pra mim pegar a condução, o caminho que eu salto para pegar a outra condução, esses caminhos é beleza, porque eu já chego em casa tranquilo.

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É interessante notar que o sentido de conhecimento e familiaridade dado aos espaços urbanos por Jair se coloca não apenas pelas relações de sociabilidade ali estabelecidas, mas também pelo domínio dos caminhos, do mapa daquele trecho ou mesmo do “trajeto”82 percorrido para chegar e sair dessas regiões. E o domínio, tanto no seu caso quanto no caso de Angela, está relacionado a um momento anterior à perda da visão. O depoimento de Angela sobre a experiência de mostrar Copacabana para um amigo, também cego, é ilustrativo: Agora mais ou menos há uns 3 anos, eu... você vai achar até engraçado, eu trouxe um outro cego para conhecer Copacabana, que ele não conhecia. (...) eu falei para ele que trabalhei muito tempo em Copacabana. Eu, quando enxergava, andava isso aí tudo e tal... aí ele disse „você seria capaz de ir a Copacabana só eu e você, só nós dois sozinhos?‟. Eu digo „sou‟. “Você tem certeza que você vai saber onde você vai estar andando?‟. „Olha, certeza, certeza eu não sei, mas uma coisa eu garanto, perdidos nós não vamos ficar‟. Aí pegamos o ônibus e descemos na Siqueira Campos. Cada rua que ia passando, que dava para eu reconhecer, porque às vezes eu distraia, ele falando comigo eu não sabia, né... aí quando entrou na Barata Ribeiro eu falei para ele „olha, aqui, esse ponto aqui é da rua Belford Roxo, ali está a rua tal, aqui a sua esquerda está a ministro Viveiro de Castro, que é transversal, e tal‟. O: e você ia reconhecendo como? Por memória anterior, entendeu? Do espaço. Quando nós descemos na Siqueira Campos ficou mais fácil, porque andando eu já sabia onde eu estava atravessando... eu fiz assim, entrando numa rua, fazendo os quarteirões em ziguezague, aí fomos parar na beira da praia. Foi uma coisa engraçada, que eu nunca tinha pensado em fazer, e ele ficou maravilhado, mesmo sem enxergar, ele se sentiu como se ele estivesse enxergando Copacabana inteira.

O sentido de proximidade e domínio de espaços urbanos frequentados antes da cegueira é transformado em distância e receio nos espaços que, ainda que visitados anteriormente, não adquiriram familiaridade. Na descrição de Jair sobre sua sensação ao andar por lugares mais afastados da sua vizinhança aparece a noção do espaço da rua “como algo movimentado, propìcio a desgraças ou roubos, local onde as pessoas podem ser confundidas com indigentes e tomadas pelo que não são” de que nos fala DaMatta (1985:50). A insegurança de Jair é pelo desconhecimento tanto do espaço físico de um bairro, quanto de seus usos e seus frequentadores. Laranjeiras teve lugar que eu já andei, eu frequentava. Muitos amigos que trabalhavam comigo moravam nesse lugar. A amizade que eu fazia era fora de série, eles gostavam de mim para caramba. O: mas você ainda tem contato com essas pessoas hoje?

82

Magnani (2002) define a categoria “trajeto” como referente a fluxos recorrentes no espaço mais abrangente da cidade, sendo a extensão e a diversidade do espaço urbano para além do bairro o que coloca a necessidade de deslocamentos por regiões distantes e não contíguas.

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Eu não tenho como, entendeu? Tentei até ir na casa dessa pessoa lá em Laranjeiras, aí eu não encontrei. Fiquei com medo de nego me informar lugar errado lá. O: você tem medo de andar pelos lugares? É, porque hoje em dia... porque tem muita gente que fala que acha que eu não sou cego. Aí às vezes estou andando em um lugar, não sei como é que é aquele lugar ali, às vezes é ponto de droga deles, eles acham que eu não sou cego, e aí? Vão fazer uma covardia como teve com aquele, o Tim Lopes, né? Poxa, tudo isso eu penso.

Como lembra Magnani (1996), pessoas em trânsito por um pedaço que não o seu costumam ser cautelosas. O conflito e a hostilidade estão sempre latentes já que qualquer lugar fora do pedaço é uma parte desconhecida do mapa e, portanto, é associada ao perigo. A sensação de insegurança é exacerbada em Jair pela sua situação atual da cegueira. A relação de maior conhecimento e proximidade de Jair e Angela com lugares da cidade anteriormente vistos trazem questões sobre memória visual e identidade. Por ser marcado pelas relações estabelecidas entre os homens, Halbwachs (1990) indica que o espaço assume significados, sendo regido pelos mesmos símbolos que impregnam a vida social e se tornando ponto de referência na estruturação da memória. É significativa a metáfora de Jair, que diz que por conhecer tanto o bairro de Nova Iguaçu, bairro onde nasceu e passou boa parte da sua vida, pode andar por lá de olhos fechados. Os lugares daquele bairro já fazem tão parte do seu ser, os caminhos e as ruas já foram tantas vezes vistos e percorridos e, por isso, encorporados, que ali a visão não lhe faz mais falta para saber se localizar. Lugares anteriormente frequentados por motivos de trabalho ou de lazer apresentam essa característica do conhecido, da segurança do caminho, dos estabelecimentos e construções que ali existem. Ao se deslocarem por seus trajetos, o conhecimento anterior à perda da visão, a memória visual que têm desses espaços, contribui para a maior mobilidade atual quando os percorrem. Pollack (1992) considera a memória um fenômeno construído, onde os modos de construção podem ser tanto conscientes quanto inconscientes. Aquilo que a memória grava, recalca, exclui ou relembra seria o resultado de um verdadeiro trabalho de organização. A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa em sua reconstrução de si. Nos depoimentos de Angela e Jair a respeito dos espaços vistos e dos novos espaços percorridos após a perda da visão e a relação de distanciamento e proximidade que adquirem, essas dimensões aparecem entrelaçadas à concretude dos bairros. O que está próximo, a relação de continuidade e coerência, é estabelecida com um lugar que está distante,

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tanto no tempo quanto no espaço. No caso de Jair, ele não mora mais na sua vizinhança há pelo menos nove anos. O seu sentimento de identidade atual em relação ao lugar também está relacionado a uma ideia de si mesmo enquanto alguém que enxergava e a maior independência que a visão possibilita nas relações de deslocamento e mobilidade urbana. Sua relação atual com o bairro onde mora, por outro lado, aponta para um distanciamento maior – o domínio se restringe a entrada e saída, aos caminhos que cotidianamente percorre. Com o exemplo de Jair é possível perceber a conexão que a psicóloga do IBC coloca entre o tempo, o grau anterior de visão e a locomoção. Ela diz que quanto mais tempo a pessoa enxerga, mais essa memória pode se transformar em um facilitador para a locomoção. Reencontramos novamente a restrição da mobilidade como uma das principais consequências da cegueira. Mas o não ver nem sempre é a única ou a principal causa da restrição. É o que diz Renata:

Eu creio que a maior dificuldade (com a cegueira) para mim em particular, não sei se é a maior dificuldade para todos os cegos, mas eu creio que sim, é a locomoção. É realmente complicado porque primeiro que as ruas são muito emburacadas, é muito complicado de andar, é muito violento. Tem um monte de carros parados na calçada e isso complica para andar. Tem gente de rua dormindo no chão, morador de rua. Também complica. Eu vou para lugares conhecidos sozinha. Por exemplo, eu venho para cá e vou para casa com tranquilidade, mas sei lá, me manda ir para um lugar que eu não conheço? Não sei se eu teria tanta coragem assim, sabe? A locomoção, para mim, acho que é a maior dificuldade.

A fala de Renata coloca em cena o aspecto urbanístico da cidade e o fluxo da vida urbana. A má conservação dos espaços e serviços públicos, a experiência da rua em sua materialidade e também nas relações sociais que ali se desenvolvem entre moradores, transeuntes, passantes e vendedores, tem impacto na liberdade de ir e vir de uma pessoa cega. Algumas vezes restringindo (no caso mencionado por Renata) e outras vezes ampliando sua mobilidade. Entraremos nesse ponto a seguir.

4.2.3 Infraestrutura urbana e deslocamento

O uso da bengala é estritamente recomendado nos atendimentos de OM para o deslocamento de uma pessoa cega em centros urbanos, mesmo quando estão passando por uma região ou local familiares. Ainda que os caminhos sejam conhecidos, estão em constante transformação. Um buraco, uma pedra, um desvio, qualquer coisa pode tornar estranho o que antes era familiar, colocando em risco a segurança pessoal no 266

deslocamento. Camila volta e meia precisa se lembrar de andar mais devagar, já que mesmo conhecendo muito um lugar tem que ter cautela porque alguém pode, de um dia para o outro, ter colocado algo no caminho. Dora acrescenta que a necessidade da bengala é também para que as outras pessoas ao redor percebam que ela não está vendo. Um dos maiores medos de Jair é cair dentro de um buraco na rua. Poste e parede consegue perceber, mas buraco, se fizer a técnica do toque e a bengala passar por cima, quando completa a passada o pé pode ir direto. Ele nunca caiu, mas tem medo. Calçada com muito desnível também pode entortar o tornozelo. Com ele aconteceu uma vez e disse que, por conta disso, aquele lugar ficou marcado, não passa mais por ali. Angela, mesmo quando anda sozinha, nunca sentiu muita dificuldade no deslocamento. Fora algumas cabeçadas em orelhões, porque isso diz que é impossível não acontecer. Para ela orelhão é o maior inimigo da mobilidade urbana de cegos. A única vez que caiu estava acompanhada. Quase foi direto em um buraco de uma galeria aberta no meio da rua. Uma perna desceu, a outra ficou com o joelho dobrado na beirada. Foi a sua sorte. Dora acha que as condições da cidade do Rio de Janeiro deixam muito a desejar, ainda que visualmente possam ser boas. Para ela a relação com a cidade está de má qualidade. Considera uma cidade barulhenta, fedorenta, suja, todos os lugares sempre cheios de gente, engarrafada. O grau de familiaridade com o local e o planejamento são elementos a ser considerados na hora de fazer um programa. Antes de decidir se vai a qualquer lugar Renata pensa na parte prática – tipo de programa, como vai, se o local é conhecido ou desconhecido, a hora que vai voltar, se é tarde da noite ou se não é. Ela não costuma sair muito à noite, acha mais tranquilo andar durante o dia, ainda mais se estiver sozinha. Os aspectos mencionados pelos pesquisados levam a compreender um pouco melhor seus trajetos pela cidade, os empecilhos a serem superados, as estratégias elaboradas. Para aprofundar essa compreensão, propus a alguns pesquisados um dispositivo simples de pesquisa com o objetivo de mapear seus deslocamentos cotidianos pelo período de uma semana, incluindo informações sobre os locais frequentados, a finalidade do deslocamento e o meio de transporte utilizado. Selecionei para a análise dois mapeamentos que permitem ilustrar um pouco mais a discussão sobre o acesso à cidade.

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Dias Belford Roxo (casa, 5h)

Seg Ponto de ônibus (ajuda filho)

Ter

Qua

Ponto de ônibus estação de metrô Rubens Paiva Ajuda senhora - ponto até a roleta da estação

Mapa deslocamentos Caetano Metrô Metrô estação estação Cidade Nova Rubens Paiva

Maracanã

Ajuda ponto até a entrada portão 4 (natação) Belford Roxo (casa – 17h)

Ajuda agente roleta até embarque

Ajuda agente -desembarque até o ponto

Ajuda de uma pessoa no ponto para parar o ônibus

Terminal rodoviário Américo Fontenelli Ajuda para atravessar Ajuda para chegar no ponto de ônibus

Belford Roxo (informática – 13h)

Belford Roxo (mercado – 15:30h)

Ajuda para atravessar Ajuda até a porta da escola

Terminal Rodoviário central (12:30h) Ajuda para atravessar a rua Ajuda para pegar ônibus

Ajuda funcionaria do curso até o mercado Ajuda funcionaria do mercado – compras e ônibus Belford Roxo Casa (13:30h)

Maracanã (natação – 10h)

Centro (almoço)

Ajuda colega baixa visão até o ponto

Marechal Floriano (sozinho)

Belford Roxo (casa, 5h)

Centro – Campo de Santana

CIAD (10h)

Ponto de ônibus (ajuda filho)

Ajuda passageiro do ônibus até posto gasolina próximo do CIAD

Belford Roxo- (casa – 5h)

Ponto de ônibus perto da estação de metrô Rubens Paiva Ajuda de alguém para acessar a escada do metrô

Posto de gasolina ao CIAD – sozinho (curso percussão e cavaquinho) Metrô estação Rubens Paiva

Ponto de ônibus (ajuda filho)

Ônibus para Maracanã

Ponto de ônibus até em casa sozinho

Desceu no ponto e foi sozinho até em casa

Metrô estação Cidade Nova

Ônibus para o Maracanã

Maracanã

Caminhou sozinho até a bilheteria Ajuda agente até o vagão

Ajuda agente -desembarque até o ponto

Ajuda de uma pessoa no ponto para parar o ônibus

Ajudaponto até entrada portão 4 (natação)

Méier Estação de trem Ajuda atravessar a rua até estação Ajuda agente até o vagão

Central (troca de trem) Ajuda de alguém até agente Ajuda agente até o outro trem

Belford Roxo

Maracanã (natação – 10h) Ajuda colega baixa visão até o ponto

Méier (banco)

Méier (almoço)

Ajuda funcionário

Próximo ao banco – a pé sozinho

Belford Roxo

Belford Roxo

Belford Roxo

Ajuda da estação de trem até ponto das Kombis

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(informática – 13h) Ajuda para atravessar

Qui

Belford Roxo- (casa) Ajuda filho ponto de Kombi

Sex

(mercado – 15:30h) Ajuda funcionaria curso até o mercado Ajuda funcionaria mercado – compras e ônibus Estação de trem de Belford Roxo Ajuda de duas senhoras da Kombi até o vagão

(casa – 17h) Ajuda filho do ponto até em casa (sacola de compras)

Estação de trem de Cavalcanti Ajuda agente até a saída da estação onde o primo o aguardava

Belford Roxo (casa) Não saiu, passou o dia em casa Belford Estação de Estação de Roxo- (casa – trem de trem de 5:30h) Belford Roxo Tomás Coelho

Sab

Dom

Ajuda do filho até o ponto Kombi

Sozinho até a estação

Estação de trem de Campo Grande Van

Estação de Tómas Coelho

Tomás Coelho (9h) Carona de carro até ponto de ônibus

Junto com amigas, a “enxergante” de guia Parque São Vicente Saltou no ponto e encontrou um amigo

Ajuda de agente até saída da estação Ajuda atravessar a rua Bar em Tomás Coelho

Junto com amigas, a “enxergante” de guia Bar com amigo (13h)

Aniversário primo em Cavalcanti Carona de carro da estação até a casa do primo

Cascadura (ponto de ônibus) Carona de carro com o primo da casa dele até o ponto (18h)

Belford Roxo (casa – 20h) Saltou em São Vicente e pegou um mototáxi até em casa

Casa de amigas (café da manhã) Trajeto a pé sozinho do sinal até a casa da amiga

Campo Grande (trem – 8h)

Sítio (churrasco – 11h às 17:30h) Van de Campo Grande até o sítio, 20 pessoas

Trajeto a pé até a estação – três amigas, uma “enxergante”

Casa amiga Tomás Coelho (até 00:00h) Ônibus com amigas Dormiu lá Belford Roxo (casa) Mototáxi – (14h)

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Dias Sábado

Mapa Deslocamentos Dora Glória (casa) Botafogo – rua da Passagem (12h) Ajuda porteiro táxi

Domingo Segunda

Humaitá Casa dos pais Humaitá-Leblon (táxi) Ensaio coral 1 (noite) Glória

Terça Trabalho em casa

Quarta Quinta

Sexta

Glória Trabalho em casa Glória-Humaitá (táxi) Casa dos pais Humaitá-Glória (táxi) Casa

Cabeleireiro

Pernoite Leblon-Glória (táxi) Casa Glória-Laranjeiras (táxi) Ensaio coral 2 (noite)

Humaitá (casa dos pais – 13h) Táxi do salão até casa dos pais. Ajuda pessoal do salão

Humaitá

Laranjeiras-Glória (táxi) Ajuda amigos coral para pegar o táxi

Glória

Almoço e pernoite na casa dos pais

Casa

Pernoite

Trabalho em casa

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Observando os mapeamentos, podemos notar alguns pontos. Caetano percorre distâncias muito maiores que Dora e precisa constantemente contar com a ajuda de outras pessoas para alcançar os lugares de destino. As ajudas para atravessar uma rua e parar o ônibus são do tipo cíclicas em seu mapa e imprescindíveis em sua rotina. É notável também a variedade de meios de transporte que Caetano utiliza em seu dia a dia. Ele menciona Kombi, trem, metrô, ônibus, van, carro e mototáxi. Além dos deslocamentos a pé. Muitas pessoas que o ajudam são desconhecidas, mas ele também recebe ajudas mais fixas, de pessoas recorrentes – seu filho, o amigo que tem baixa visão da natação, a funcionária do curso e a funcionária do mercado. Há ainda a ajuda de funcionários do trem e do metrô, agentes que são instruídos para auxiliar pessoas com deficiência visual usuárias do serviço. Aprofundaremos adiante o ponto da ajuda, que me parece fundamental para pensar a mobilidade urbana de pessoas cegas. Alguns aspectos diferenciam os trajetos e deslocamentos de Caetano e Dora. Caetano não trabalha. Eventualmente faz um “bico” substituindo um amigo quando ele precisa como técnico de câmara escura em um hospital. Sua rotina é bastante balizada pelos cursos que realiza – informática, instrumentos musicais, curso de dança ou teatro no IBC83. Dora trabalha muito em casa, seja atendendo no consultório, seja em relatórios da sua empresa de consultoria. A rotina caseira fica marcada em seu mapa. Tanto para Caetano quanto para Dora aparece, durante a semana mapeada, a presença de familiares em seu cotidiano, o que sugere que as relações familiares têm uma importância em sua vida diária, mesmo no caso de Dora, que mora sozinha. Outro ponto que chama atenção são os horários de saída e de chegada em casa. O dia de Caetano começa cedo, ele diz que costuma acordar de madrugada. No dia da entrevista ele tinha se levantado às 4:30h. Naquela semana o horário mais tarde que voltou para casa foi no sábado, por volta de meia noite, quando dormiu na casa da amiga. A questão sugere a diferença de circulação na cidade em horários diurnos ou noturnos e a segurança em relação aos deslocamentos urbanos nos dois turnos, o que também apareceu anteriormente na fala de Renata. Algumas particularidades também ficam marcadas no mapeamento de Dora. Ela fez a ressalva de que aquela semana tinha sido atípica, andou muito de táxi porque estava passando por um período em que se sentia especialmente cansada. Sua rotina é

83

Na semana que fizemos o mapeamento tinha sido feriado na quinta, por isso a ausência do IBC na rotina de Caetano, que costuma ir para lá às sextas feiras.

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mais doméstica que a de Caetano, as distâncias que percorre são menores, os locais que frequenta, mais próximos à sua casa. Escolheu o apartamento onde mora pela localização em relação ao metrô – não precisa nem atravessar a Rua do Catete para alcançar uma das entradas do metrô da Glória. Pedro também fala da escolha de um lugar para morar em relação à facilidade. Decidiu-se pelo centro de Mesquita. É perto da casa de seu filho, fica em um local próximo a quatro bancos, dois supermercados, loteria esportiva, seis farmácias. Se não quiser fazer comida em casa só precisa atravessar a rua que tem um restaurante do outro lado e para pegar o trem cruza a praça e já está na estação. Morar em um local assim facilita a sua vida. Com as devidas diferenças das condições socioeconômicas de cada um, vemos pelos relatos de Dora e de Pedro que a escolha do local de moradia é pensada estrategicamente em relação às facilidades oferecidas pelos arredores de um bairro. Facilidades que giram em torno do acesso ao comércio e ao transporte público. Os pontos sugeridos nos mapas de deslocamentos nortearão as discussões a seguir, começando pelo uso dos diferentes tipos de transporte na cidade e as vantagens e desvantagens de cada um, conforme a experiência dos pesquisados.

4.2.4 Transporte público

Além de táxi, Dora costuma se locomover também de metrô, mas evita pegar ônibus. Já pegou muito ônibus na vida, tanto no Rio quanto em São Paulo, mas acha que o serviço foi ficando pior. Os horários são irregulares, os ônibus demoram a passar, além do que, para saber qual é o ônibus que está vindo e para fazer sinal para ele parar é necessário pedir ajuda para alguém. No interior do ônibus ela sente dificuldade na passagem estreita e espremida pela roleta. Acha que a maior parte das vezes os ônibus vêm muito cheios. Cada um tem um layout diferente, os degraus são muito altos, ela nunca sabe onde ou em que altura está o ferro para se segurar. No Rio de Janeiro saltase do ônibus pela parte de trás. Para ela isso é motivo de insegurança: Esse negócio de descer por trás eu acho que é muito mais inseguro, porque o motorista não está me vendo direito, eu não tenho certeza se ele está me olhando, eu gosto de descer na porta do motorista, porque eu gosto que ele veja quando eu acabei de descer. Porque eu posso não conseguir descer tão depressa, porque eu vou pesquisar com a bengala primeiro onde eu vou descer, se eu estou descendo em cima de um bueiro, se ele parou em cima de um buraco, em cima de uma água, então eu vou demorar mais, porque eu quero pesquisar isso, e aí eu fico insegura dele arrancar.

272

Outro momento crítico na viagem de ônibus é saber se localizar em relação aos pontos, já que invariavelmente o motorista não para em alguns ou para em lugares que não são pontos. Apesar de precisar usar o serviço constantemente, Beatriz o considera extremamente precário. Na cidade do Rio de Janeiro acha que não existe gestão dos ônibus, os pontos não têm nenhuma estrutura, os motoristas não são educados, não são treinados, não existe cultura nas empresas para lidar com nenhum tipo de necessidade, seja ela permanente ou temporária. Comenta que qualquer um pode ter uma deficiência física ou sensorial temporária, pode ter quebrado o pé ou feito uma cirurgia no olho. A pessoa não precisa ser deficiente, pode estar momentaneamente deficiente e precisar daquele serviço. Em comparação com o deslocamento via ônibus, o metrô seria mais vantajoso para a pessoa cega. Sobre o momento de saltar, ainda que o áudio que alerta a chegada das estações não funcione ou esteja baixo, a pessoa pode contar o número de estações ou mesmo perguntar para os outros passageiros, já que as estações têm nomes. O metrô seria o sistema de transporte público que, na opinião dos pesquisados, estaria mais preparado na cidade do Rio para atender a uma pessoa cega. Ao invés de pedir ajuda para um desconhecido, que pode não querer ou não saber ajudar, os funcionários do metrô recebem treinamento para embarcar um deficiente visual. Para Dora faz muita diferença porque faz parte do serviço deles. Beatriz esclarece que o procedimento da empresa é o agente de segurança embarcar o deficiente visual e passar um rádio para onde ele está indo, informando que ele está a caminho e em qual vagão, para que o agente da estação de destino o espere na saída. Ela diz que esse é o procedimento, mas que também tem falhas. Às vezes vem um funcionário correndo, se desculpando porque estava atendendo alguém do outro lado, e dizendo que o efetivo está pequeno. Mesmo que eventualmente perca um metrô porque está esperando o funcionário aparecer, Dora acha que é mais decente, mais respeitoso do que o serviço oferecido pelas empresas de ônibus, praticamente inexistente. Camila também elogia o investimento em acessibilidade do metrô. A empresa instalou pisos podotactil em todas as estações para indicar o caminho, fez marcações em Braille e com anéis no corrimão, para indicar ao deficiente visual o início e o término de escadas, além de mapas táteis em Braille que auxiliam no conhecimento da arquitetura da estação 84.

84

Para maiores informações sobre acessibilidade do metrô Rio ver o site da empresa: http://www.metrorio.com.br/acessibilidade.htm. Acesso em 19.02.2014.

273

Pedro sente saudades de dirigir automóvel. A cegueira diversificou bastante seus meios de transporte. Antes de ficar cego, ia para todo o lado de carro, agora tem que pegar trem, ônibus ou metrô. Nunca tinha andado de trem na vida, passou a andar depois de cego. Beatriz acha o trem um dos meios de transporte mais perigosos para uma pessoa cega embarcar sem ajuda. As estações não são padronizadas, em uma a plataforma está mais baixa, em outra está mais alta, às vezes a distância do trem está próxima, outras mais distante. Acha perigoso para deficiente visual, mas também para idoso. Não sabe como um cadeirante faz para entrar e sair do trem. A Supervia, empresa que administra o transporte ferroviário no Rio de Janeiro, foi denunciada por organizações como o IBDD (Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência) por não oferecer acessibilidade nenhuma em suas instalações, ainda que afirme que o assunto é prioridade em sua gestão85.

4.3 O imperativo da ajuda

Como vimos nos mapas de deslocamento de Dora e Caetano, não é apenas no uso do transporte público, mas também no ir e vir a pé que a pessoa cega vive uma situação social corriqueira no cotidiano urbano da cidade do Rio de Janeiro: a de precisar pedir e receber ajuda de outros. É uma dimensão bastante complexa que envolve situações de interação social e a necessidade de se contar com outras pessoas, que se transformam em vetores de deslocamento e mobilidade no espaço urbano. Goffman (1966) analisa o comportamento em locais públicos e diz que uma das ocasiões que gera uma espécie de abertura para se iniciar o contato e a comunicação entre dois indivíduos que não se conhecem é quando um deles está em necessidade patente de ajuda. Em situações como essa, os laços entre pessoas desconhecidas são sentidos como sendo suficientemente fortes para suportar a satisfação da ajuda voluntária, mesmo quando a pessoa que recebe o serviço é aquela que inicia o encontro. A trivialidade dessa situação no dia a dia de uma pessoa cega que se desloca por ruas de uma grande cidade não a torna menos complexa. Renata fala da inevitabilidade do pedido de ajuda, especialmente na locomoção. Não tem outro jeito, não tem como fazer diferente porque não dá para pegar ônibus sozinha ou atravessar a rua sem ajuda.

85

Ver matéria de 23 de outubro de 2012 em: http://www.ibdd.org.br/noticias/noticias-noti-114supervia%20n%C3%A3o%20acessivel.asp. Acesso em 19.02.2014.

274

Goffman aponta que o encontro geralmente se inicia com alguém que realiza um movimento de abertura, tipicamente por meio de uma expressão especial com os olhos, mas que algumas vezes também pode ser um pronunciamento ou um tom especial de voz no início da fala. O engajamento só inicia quando a abertura é reconhecida pelo outro, que sinaliza de volta com seus olhos, voz, ou de alguma maneira marcando que se coloca disponível para o outro para propósito de uma atividade mútua. Na ausência do olho no olho, a TO de OM diz que a voz passa a ser o instrumento principal de comunicação de uma pessoa cega na rua. Se quem enxerga se comunica por um olhar ou um gesto no cotidiano urbano, o deficiente visual usa a fala. Ela insiste com a reabilitanda que atende que ela precisa falar para que uma pessoa que estiver próxima tenha alguma reação e ela ouça. Simula um pedido de ajuda: “bom dia. Alguém poderia me ajudar a chegar até a estação de trem de Japeri?”. Se ninguém responde, deve falar de novo, mais alto. Quando alguém aparece, repetir a pergunta enfatizando o “até”, que é para não ser largada no meio do caminho. Sugere que ela se recorde dos cegos que viu quando enxergava. Eles falam, alguns são mais abusados e batem com a bengala no chão. Cada um com a sua estratégia, mas verbalizar, comunicar, expressar o pedido de ajuda é fundamental. Quando Camila tem que atravessar a rua pede, em um tom de voz médio, “alguém me ajuda, por favor?”. Acha que tem muita sorte, porque quando faz o pedido sempre tem alguém por perto que pergunta o que ela quer. Tanto ela quanto Caetano acham que as pessoas hoje em dia estão se habituando a ver deficientes visuais na rua. As questões presentes na necessidade de ajuda no deslocamento envolvem o uso de técnicas ou posições corporais específicas que facilitam a condução; estratégias para pedir auxílio; a conversa que se tem ao longo do percurso; mal-entendidos, equívocos e imposições.

4.3.1 Formas e técnicas de ajuda

A TO comenta que sempre tem pessoas na rua que estão esperando para ajudar alguém. Mas acrescenta que, ainda que o guia desconhecido tenha boa vontade, são poucas as pessoas que têm experiência com deficiente visual. Camila encontra pessoas curiosas que, apesar de não dominarem as técnicas, perguntam como se faz e querem aprender. Mesmo sem experiência, têm a disponibilidade de ajudar. Em geral, as pessoas que a ajudam na rua não conhecem as técnicas. Acontece de virem ajudar e a 275

pessoa segurar no seu braço ou então segurar a sua bengala com a mão, levantar e querer conduzi-la pela bengala. Uma atitude que desequilibra quem é cego. Quando sente abertura numa eventual conversa ao longo do percurso, ela procura explicar algumas das posições básicas que aprendeu no atendimento de OM e que facilitam a locomoção partilhada.

Quando você aprende OM você sabe que você que tem que segurar na pessoa que guia, né, e geralmente o guia quer segurar em você, na rua, a pessoa que vem te ajudar, que não sabe. Eles não sabem. Aí cabe a gente – „olha, deixa eu segurar em você? Porque é melhor para mim, eu vou observando os seus movimentos‟, - „ah, é claro‟. Quer dizer, outra pessoa que ele for ajudar ele já sabe, né? E a outra pessoa às vezes pode ter uma inibição de falar, então eu explico –„olha, eu estou falando porque as outras pessoas às vezes...‟, -„poxa, super legal você falar‟, -„é, porque fica melhor para mim‟. Aì eu explico, vou conversando como é que é, não tenho esse problema, eu gosto.

O momento de pedir ajuda na rua é considerado um dos mais críticos pela TO no aprendizado de OM. Se locomover com segurança e independência é saber pedir e contar com a ajuda de outras pessoas nos momentos necessários. É saber comunicar a melhor forma de ser ajudado para quem oferece ajuda. Dizer para a pessoa que está ajudando que ela deve falar se precisarem atravessar uma passagem estreita, porque aí a pessoa cega já se posiciona por trás do guia. E é também não descuidar em momento algum da bengala, utilizando-a para resguardar o lado externo que fica desprotegido. Muitos reabilitandos chegam para o atendimento de OM com a testa machucada ou os óculos rachados quando estão começando a fase de se locomover sozinhos na rua, porque descuidaram da técnica de coordenação pé-bengala para o lado externo quando estavam sendo ajudados por um guia, segurando a bengala na vertical, ao invés de à frente. A TO diz que a bengala é mais confiável que o guia, porque a bengala não erra. Deu um exemplo bem sucedido dessa precaução protetora, uma reabilitanda que, ao caminhar com a mãe na rua, passaram por um meio fio duplo. A mãe não viu o degrau, tropeçou e caiu, a reabilitanda ficou em pé, porque a bengala detectou. Pedir ajuda na rua significa se deslocar em companhia de alguém. Existem formas melhores ou piores, mais ou menos aproximadas e mais ou menos eficientes de ajudar e de ser ajudado nessa tarefa. Na técnica conhecida por guia vidente, a pessoa cega anda meio passo atrás do guia, posicionando sua mão um pouco acima da altura do cotovelo, segurando com o polegar do lado externo e os outros dedos na parte interna do braço do guia, formando com o seu braço um ângulo de 90º. Outras formas de se posicionar, normalmente para compensar a altura no caso de uma criança ou da pessoa 276

cega ser mais alta que o guia, é também um pouco atrás do guia, com a mão segurando em seu pulso ou em seu ombro. A técnica permite a interpretação dos movimentos do guia por meio da percepção cinestésica. Desdobramentos das técnicas de guia vidente são comuns em situações de deslocamento. A técnica conhecida por troca de lado proporciona mudança de lado em movimento, de acordo com a situação ou as condições de segurança. Serve para quando o guia percebe que, do lado da calçada em que estão caminhando, tem um obstáculo que está justamente na direção da pessoa cega. Outra técnica é chamada passagem estreita e permite a passagem de forma segura por locais estreitos, quando não é possível ao guia e ao acompanhante se posicionarem lado a lado. Exemplo: portas, corredores, locais congestionados ou passar entre cadeiras. O acompanhante se colocará atrás do guia, estendendo os braços e segurando com as duas mãos no braço do guia. A TO diz que quanto mais uma pessoa cega anda com o mesmo guia, mais os seus movimentos vão ficando sincronizados. Pedro dá um ótimo exemplo da sincronia entre o movimento do guia e o movimento da pessoa cega ao contar sobre a maneira como a sua filha, aos 10 anos de idade, o guiava pelas ruas do Rio. A minha filha, com 10 anos, ela aprendeu a conduzir cego e eu aprendi a andar com ela. Dada a rebeldia dela, você sabe o que ela fazia? Eu botava a mão no ombro dela, aì ela „vamos embora‟, e ia embora. Ela só fazia dizer „sobe, desce, desce, sobe‟, sabe o que era isso? Meio fio, lombada... essas coisas né? „olha só, escada, vambora‟, „tem um degrau aqui‟, tchu, tchu, tchu (marcha) não queria nem saber, saía me rebocando. E vamos que vamos. Aí nós andando na Rio Branco, por exemplo, você sabe que duas pessoas, uma ao lado da outra, elas tomam um espaço maior, e você sabe que aquelas calçadas na Rio Branco é terrível, é aquela multidão. Olha quando afunilava mesmo, ela pegava o braço dela e batia no meu aqui assim (altura do antebraço), ficava batendo, eu já entendia e ia pra trás dela, que onde ela passava eu passava também. E assim a gente ia. Olha e a gente ia que ia, no meio da multidão, sem multidão... Tem gente que para, vai devagar, não, ela ia que ia, não queria nem saber. Hoje em dia a pessoa pede para me levar, „você quer ajuda?‟ „quero‟, aì vai devagar comigo, ai meu Deus, eu sinto, sinto pra caramba. „não dá pra você andar mais rapidinho? estou acostumado a andar rápido‟, „não, vamos devagar, tem que ter cuidado‟, não, eu estou acostumado até a correr. A Carla (acompanhante), quando a gente vai pegar ônibus, sai correndo pra pegar ônibus, o cara para lá na frente, „vambora Pedro‟, „vambora‟, sai correndo. Mas é assim.

Tanto Ana quanto Camila falam da preocupação de ensinar uma ou outra técnica de condução para as pessoas que enxergam que cruzam na rua, até mesmo para facilitar a vida da próxima pessoa cega que ela futuramente possa auxiliar.

4.3.2 Proximidade corporal

277

Na experiência de me deslocar pelas ruas da cidade guiando pessoas cegas experimento uma proximidade corporal nem sempre usual para pessoas desconhecidas ou no uso estrito da técnica de guia (que prevê um distanciamento maior). É algo que se faz notar para mim nas ocasiões de deslocamento acoplado, já que não se costuma andar na rua com esse nível de contato corporal com muitas pessoas, a não ser em relações tão íntimas quanto determinadas amizades, familiares ou casais de namorados. Goffman (1966) coloca que engajamentos do tipo conversacional aparentam ter algumas convenções espaciais que variam conforme a cultura. Traz exemplos da sociedade americana. Se, em uma interação, certo grupo de pessoas se senta mais do que alguns passos distantes uns dos outros por conta, por exemplo, da organização dos móveis em um ambiente, encontrarão dificuldades para manter uma conversa informal. Por outro lado, aqueles que se sentam menos de um passo e meio de distância acharão difícil falar diretamente para o outro e podem buscar um ângulo externo para falar, a fim de compensar a proximidade. As regulações de distância e proximidade corporal em situações de interação vão sendo revistas no ato de se locomover em dupla ou mesmo em trio com pessoas cegas, como quando, certa vez, atravessamos a Rua do Catete e andamos por um quarteirão até o restaurante Taberna da Glória, Beatriz de um lado, Dora do outro e eu no meio, preocupada em calcular nosso largo diâmetro em relação aos pitocos, postes ou buracos do caminho. Dois olhos parecem pouco para esse coletivo humano. Na ocasião, Beatriz me pergunta, rindo, se eu sabia dizer qual é o coletivo de cego. Pergunto qual é e ela responde, divertida, - “penca”. Explica que é porque ao invés de lado a lado, na horizontal, deslocamentos em grupo de cegos costumam ser feitos na vertical, em fila. A fila diminui o espaço ocupado lateralmente, mas ainda mantém o contato corporal (a mão apoiada no ombro de quem está à frente), que é o que permite a propriocepção, a percepção do movimento. Situações de proximidade corporal indesejada também acontecem. Beatriz estava saindo da academia, na Tijuca, e de repente um homem a abraçou e foi andando com ela. Era um desconhecido. A sua sorte foi que, como morava por ali, conhecia todo mundo no trajeto da academia até a sua casa, então conforme iam passando os seguranças das lojas falavam com ela, cumprimentavam. Ela acha que de certa forma isso intimidou o homem que, assim como surgiu, de repente foi embora. A situação descrita por Beatriz não é única, ela mesma já vivenciou outros momentos como esse,

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não só de uma proximidade corporal inesperada e indesejada, como de uma ajuda imposta, que não pediu ou não precisava.

4.3.3 Quando a ajuda atravessa: equívocos ou imposições

A ajuda que se recebe não é plana, existem graus variados de necessidades e tipos de ajuda, de acordo com o objetivo final, características específicas da pessoa que pede ajuda e de quem oferece, se está a pé ou qual o meio de transporte utilizado. São coisas muito distintas contar com o serviço prestado por um profissional treinado ou contar com a voluntariedade da ajuda alheia. Essa última nem sempre cuidadosa. Com Dora e com outras pessoas cegas que conhece já aconteceu algumas vezes de ser encaminhada para o ônibus errado. Quando acontece, existem formas mais ou menos drásticas de descobrir. Às vezes, por uma intuição ou o que chamou de sexto sentido, vai lá e confere com o trocador ou com um passageiro a numeração do ônibus. Outras, quando o veículo faz a primeira curva errada e a pessoa cega está atenta, descobre que aquele não era o ônibus que queria. Ou então descobre quando já é tarde demais e o erro vai custar para ser remediado. Beatriz relata uma segunda vivência de ajuda atravessada, que procurarei descrever de uma perspectiva de situação social, conforme Goffman (1966). O autor entende situação social como uma arena física qualquer na qual a pessoa que entra se encontra exposta à presença imediata de um ou mais outros. No nosso caso a arena é o espaço público da rua, um determinado percurso no centro da cidade do Rio de Janeiro. Beatriz saía de uma imobiliária no início da Av. Rio Branco, perto da Praça Mauá. De lá precisava ir até uma loja na Rua da Alfândega. Como não sabia onde ficava o ponto de ônibus, e achou que a distância a ser percorrida era pouca - seguir e atravessar a Presidente Vargas -, se decidiu por ir a pé. Começou a andar. Sem avisar ou sem perguntar se ela precisava de ajuda, um sujeito se aproxima, dá as mãos a ela segurando firme e começa a andar colado, como se fossem namorados. Depois de alguns passos caminhando desse jeito ele pergunta pra onde ela vai. Ela responde que está indo pra um pouco depois da Presidente Vargas. Ele atravessa a primeira rua com ela. Quando chegam no sinal da Presidente Vargas, estava aberto para os carros. Param na faixa de pedestres e ela fala “amigo, já está legal já, não precisa ir não, daqui dá pra eu ir tranquilo”. Ele responde “fica quietinha aì que eu já falei que eu vou te levar”. Beatriz nessa hora pensou “F... e agora?”. Continuou andando e pensando como ia fazer 279

para se livrar do sujeito. Chegam do outro lado. Atravessaram as quatro pistas da Av. Presidente Vargas e já estavam andando pela Av. Rio Branco. Ele desce o meio fio e faz menção de atravessar a Rio Branco com ela. Nesse momento ela estanca firme e fala alto: “eu não vou atravessar”. Tenta desvencilhar sua mão da mão dele. Ele não diz nada, mas cola de novo com ela segurando forte em sua mão e continuam andando. Quando chegam em frente à Rua da Alfândega ela para novamente e uma terceira pessoa se aproxima, um homem, que pergunta “a senhora quer alguma coisa?”. Ela aproveita que alguém falou com ela e se despede novamente do primeiro sujeito “amigo, muito obrigada, valeu mesmo, aqui está bom”. Na hora ele larga a mão, ela rapidamente se despede dos dois homens e segue adiante. Logo a frente ela repara que o segundo homem que a abordou vinha atrás dela. Ele se apresenta, diz que é policial e que tinha sido uma quarta pessoa, um senhor, que viu aquela situação de longe, achou estranho e avisou. Contou que o sujeito que a abordou era um cara esquisitíssimo que inclusive ainda estava na rua, não tinha ido embora. O policial então espera ela resolver o que precisava na loja da Rua da Alfândega e depois a conduz até o metrô. As interações sociais que ocorrem nos espaços públicos da rua fornecem materiais que possibilitam entender um pouco melhor as categorias e posições sociais que entram em relação nessas situações. Os momentos de imposição da ajuda explicitam a vulnerabilidade que pessoas com deficiência visual estão expostas em seu cotidiano. A forma de abordagem do sujeito a Beatriz já no primeiro momento infringe as regras de conduta ou as convenções sociais de cortesia. Ela dá sinais de desconforto e insatisfação com o encontro. Primeiro, de maneira educada, utilizando expressões verbais adequadas que indicam querer finalizá-lo. Em seguida, de forma mais direta quando tenta puxar a mão ou quando se recusa a atravessar falando em tom de voz alto. Seus sinais são percebidos por alguém de fora que compreende a situação e aciona um terceiro elemento, um policial, que além de também ser homem, é capaz de interferir por estar em uma posição social superior de autoridade. Como lembra Goffman (1977), onde quer que um indivíduo esteja ou vá, sempre leva seu corpo com ele. Isso significa que qualquer que seja o mal que seu corpo possa fazer, ou estar vulnerável a, isso também vai junto com ele. O autor distingue vulnerabilidades de dois tipos: riscos impessoais - fogo, objetos que caem, batidas acidentais, etc.; riscos sociais, que são vistos como produtos de más intenções – roubos, assaltos, importunos, insultos verbais, assédio sexual. Estando na presença de quem quer que seja, o indivíduo o coloca vulnerável e se coloca vulnerável dessas mesmas 280

formas. Dispositivos de controle social procuram assegurar arranjos pelos quais um indivíduo não cause nenhuma dificuldade a outros e nenhuma dificuldade seja causada a ele. A lei é um deles, outro seria a desaprovação e condenação moral por testemunhas do ato, o que, de certa forma, é o que ocorre na situação de Beatriz. O autor considera especialmente as diferenças de gênero e a situação das mulheres quando o assunto é a vulnerabilidade nos espaços públicos, concluindo que as mulheres estão, de uma maneira crônica, muito mais vulneráveis a sofrerem avanços impróprios nestes espaços. No caso que descrevemos, a vulnerabilidade a riscos sociais como violência física ou assedio sexual é dupla, pela questão de gênero e pela deficiência visual que traz consigo o imperativo da ajuda. Por ser tão necessária no cotidiano da pessoa cega ela também a expõe a uma espécie de abertura, mesmo que involuntária, para a possibilidade de ser a qualquer momento abordado sob a máscara do auxílio, seja a real intenção da abordagem, seja um disfarce. Estar acompanhada de uma pessoa que enxerga nem sempre isenta do risco da imposição da ajuda. Dora e eu nos dirigíamos a um restaurante no centro da cidade para almoçar. Andávamos acopladas, próximas a uma calçada, mas naquele trecho pela rua. Decisão minha para evitar os camelôs e o trânsito intenso de pessoas na calçada. Me certifiquei de que não vinha nenhum carro naquele momento e fomos andando. De repente um homem pega o outro braço de Dora, na altura do seu cotovelo e começa a puxá-la. Não falou nada, não perguntou nada... não me viu? De imediato, não entendi a situação. Ele não puxou com agressividade, mas foi brusco. Não sei se não viu que estávamos juntas, mas decidiu atravessá-la porque resolveu, sozinho, que ela queria atravessar. Ela parou, se dirigiu a ele e perguntou o que ele estava fazendo. O homem disse que só queria ajudar. Respondemos que não precisava. Ele me olhou sério, sem entender muito bem o que fazíamos e foi embora. Ela disse "tá vendo como é? tudo bem que ele quisesse ajudar, mas as pessoas às vezes são assim, simplesmente te pegam, não te falam nada, te puxam e decidem na cabeça delas que você quer atravessar". Ela tomou um susto, porque não sabia se estava sendo assaltada, sequestrada, ajudada... Para mim foi também inusitado. Dora falou que as pessoas não pensam em como reagiriam se fosse o contrário, ser pego no meio da rua, sem estar sequer pedindo ajuda, ainda por cima estando acompanhada, o que também achei que tornou tudo ainda mais esquisito. Nesse dia ficou mais claro um sentimento que já tinha notado antes, é como se eu, como guia vidente, também estivesse o tempo todo sendo avaliada pelo olhar dos 281

outros. Alguns olhares de curiosidade, outros de reprovação, de admiração, de espanto... conseguia decifrar todos esses olhares nos rostos das pessoas à medida que caminhávamos, uma sensação que era possível captar, mas extremamente difícil de descrever, ou mesmo de compartilhar com Dora, porque muito rápido, muito sutil e naquele momento minha concentração estava toda no deslocamento. Como se os meus movimentos, como acompanhante, também estivessem sendo medidos por esses olhares. Talvez a atitude daquele homem fosse uma interferência por me julgar inábil na tarefa de conduzi-la a cruzar uma rua que, na realidade, não almejávamos atravessar.

4.3.4 Dois corpos e um par de olhos em deslocamento, coletivo humano urbano

Autores como Kusenbach (2003, 2012) e Moles (2008), que descrevem o uso de métodos móveis, ou go along, como ferramenta metodológica acreditam que, enquanto tradicionalmente as entrevistas são interações estáticas, organizadas e previsíveis, a caminhada facilita o movimento para novos lugares, novos espaços de narrativa. A entrevista se torna então uma conversação de três rumos, na qual o entrevistador, o participante e a localidade estão engajados na troca de ideias. O método facilita uma produção diferente de dados: móvel, sensível ao lugar e aberta a certo nível de incerteza. A caminhada permite a emergência de um novo espaço de enunciação, é um novo espaço de questionamento e discussão que se abre. Praticar essa metodologia é compreender que há coisas nos lugares que os mapas e as entrevistas não capturam. Coisas que estão além desses métodos. Se engajar com o lugar e com as pessoas que estão lá é um tipo de interação ativa e móvel, que pode mudar ou ser adaptada dependendo do que é apresentado ou representado. Por meio do ritmo e da prática da caminhada emergem narrativas que poderiam não ter sido descobertas em uma entrevista estacionária. Os métodos móveis incorporam em suas pesquisas as possibilidades oferecidas pelo movimento, não como um conceito, mas como uma prática. Inúmeras vezes ao longo da pesquisa meus olhos e meus movimentos serviram de guia no caminhar acoplado de dois corpos pelo ambiente urbano. Minha proposta nesse momento é tentar recuperar a dimensão volúvel do espaço urbano e da (i)mobilidade no deslocamento com dois relatos de experiências de um movimentar acoplado com uma pessoa cega pelas ruas do Rio de Janeiro. A ideia é que a descrição dessas experiências possam

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oferecer texturas a práticas espaciais urbanas, que iluminem alguns tipos de engajamento no e com o ambiente que os deslocamentos produzem.

Copacabana. Seis horas da tarde. Ando com Dora pelas ruas saindo de um quiosque na orla até o metrô da Siqueira Campos. Precisamos desviar de centenas de pessoas que cruzam a nossa frente ou fazer com que elas nos percebam e desviem, enquanto nos deslocamos por calçadas apertadas, tapumes de obra, buracos e andaimes. Meu corpo tenciona, como se a rigidez pudesse significar proteção. Estado de alerta e reponsabilidade pelo que vejo, e ela não. E o que vejo são muitas pessoas atravessando por todos os lados, algumas com cachorro, velhinhos que andam devagar, jovens apressados que cortam os outros, pessoas com as mãos carregadas de sacolas que aumentam seu diâmetro. O nosso diâmetro se torna um só, dois corpos somados. O braço dela atravessa o meu, que está dobrado em um ângulo de 90º próximo à cintura, minha palma da mão voltada para cima servindo de apoio para a mão dela, que repousa sobre a minha. As laterais dos braços se tocam. Tentando não perder o estado de alerta, pergunto sobre Copacabana e suas impressões sobre o bairro. Ela diz que naquele momento achava que estava bem tranquilo, que normalmente não gosta de andar por ali porque tem muito trânsito e barulho. Caos para ela como sinônimo de barulho. Para mim, aquela caminhada era uma aventura, vivida num sistema cibernético entre dois corpos acoplados, um par de olhos, uma bengala e o caminho, cheio dos empecilhos urbanos, previsíveis ou imprevisíveis. Experiência de andar guiando pelo Saara86 lotado – horário de almoço. Saímos, Dora e eu, da Caçula87 depois de mais de duas horas experimentando diversos tipos de materiais para as atividades táteis do workshop que estávamos planejando. Uma mandala de madeira de mais ou menos um metro de diâmetro embaixo de um dos meus braços, sacolas na mão, a bolsa pendurada no outro ombro e ainda guiando. Aquele mar de pessoas vindo na direção contrária, nos esbarrando ao passar, a rádio Saara falando alto, interferindo na minha atenção. Desviar das pessoas, avisar Dora dos desníveis,

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Saara é uma área comercial popular localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, em trecho circundado pelas ruas dos Andradas, Buenos Aires, Alfândega e Praça da República. 87 Loja comercial que abrange a venda de produtos de segmentos distintos tais como papelaria e informática, aviamentos, tecidos, bijuteria, carnaval, desenho, pintura e artesanato e bazar.

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meios fios das calçadas, obstáculos no caminho. Uma experiência exaustiva. Fiquei com vontade de empurrar as pessoas para longe. Pela instabilidade da rua e calçadas, cheias de gente e obstáculos, como buracos, cadeiras, barraquinhas, manequins, a cada instante tenho que calcular e tomar uma decisão sobre o melhor caminho a seguir. Em determinado momento tento desviar um pouco da multidão passando por cima de uma calçada, num espaço que havia entre uma loja e a rua. Um homem estava parado mais a frente, imóvel feito uma estátua ao lado de um manequim. Consigo desviar do homem, fazendo passagem estreita com Dora, mas ao final da passagem eu, ou qualquer uma das outras coisas penduradas em mim, esbarro no manequim da loja, que estava no meio da calçada. Um manequim vestido com um biquíni e uma gravatinha no pescoço. A gravata se solta na queda e vai parar mais à frente, o manequim faz um barulhão quando cai. Dora pergunta o que está havendo. Ao mesmo tempo que explico o acontecimento me abaixo para pegar a gravatinha e tento levantar o manequim. Ela pede para levar a sacola mesmo segurando a bengala, porque ficaria mais fácil para que eu guiasse, já que ainda tinha a minha bolsa e a mandala de madeira. O homem a essa altura simplesmente se afastou, não ofereceu ajuda, não se mobilizou. Continuamos andando e como íamos mais devagar do que o ritmo da multidão, as pessoas que vinham atrás queriam ultrapassar, passavam pelo lado e esbarravam em mim, na mandala do lado esquerdo ou na própria Dora, pelo lado direito, onde segurava sua bengala. Muitas pessoas nem viam a bengala. Dora, como Beatriz e Jair, diz que entortou algumas bengalas em situações como essa.

4.3.5 A ajuda como vetor de navegação em territórios urbanos

Podemos encarar a ajuda no deslocamento como pontos ou paradas provocadas pelo trajeto, nesse ir e vir nômade de pessoas cegas. Mais do que linhas que conectam um ponto ao outro, a ajuda é vetor de re-territorialização. Uma direção, outras vezes uma mudança de direção. O espaço vai sendo costurado, o território vai sendo vencido, graças a essas operações locais, a esses acontecimentos ou afetos. Um espaço de distâncias a serem percorridas, percepções feitas de sintomas ou avaliações, mais do que medidas e propriedades. Se o que cobre o espaço estriado é o céu como medida, e as qualidades visuais mensuráveis que derivam dele, o espaço liso de navegação de pessoas cegas é ocupado por intensidades, ventos e ruídos, forças e qualidades tácteis e sonoras (Deleuze e Guattari, 1997). 284

A ajuda na rua pode ser dada ao longo do deslocamento, para conduzir até um local específico ou atravessar uma rua; pode ser o aviso da chegada de um ônibus, mas também pode ser um direcionamento. Perto do metrô de Botafogo tem um local em que camelôs montam barraquinhas ou colocam coisas no chão para vender. Camila vem com a bengala, alguém percebe que ela se aproxima e que vai atravessar o espaço da barraca e então ela escuta uma voz que a direciona: „ó, por aqui‟ ou então „mais para a direita‟. O rapaz que trabalha em um estande de plantas sempre ajuda: -„pra direita um pouquinho, agora pra esquerda, isso, agora pega a reta‟. Ela agradece e segue adiante. Conta um episódio que aconteceu e que, para ela, foi também um sinal de que estava se recuperando do luto pela cegueira.

Ali eu notei que eu tinha me recuperado mesmo, me reabilitado. Porque eu tinha horror de me chamarem de ceguinha, eu me chocava, me magoava. E eu estava lá em Madureira, vindo na calçada com a minha bengala e aí um camelô lá do outro lado gritou –„ceguinhaaaaa‟. Aì eu parei na hora. Eu estanco na hora. Aì eu fiquei parada, vendo o quê que ele queria falar para mim –„ó, na sua frente tem obra‟. E eu -„é? E aì, como é que eu faço?‟, -„quebra pra direita, agora vai, segue, isso...‟, aì me direcionou. E eu –„muito obrigada, tá? valeu‟, ele „que nada...‟. Aì eu pensei gente se ele tivesse me chamado de ceguinha há um ano atrás eu ia cair assim em prantos na rua. Naquele dia eu falei estou bem legal mesmo, to passando no teste.

Camila hoje em dia vai para todo o lado sozinha e para isso conta muito com a ajuda das pessoas que direcionam o seu caminhar, moldam os desvios e as mudanças de direção na sua trajetória. Em geral, as pessoas estão dispostas a ajudar. Nem todos os vetores que surgem de navegação levam para os caminhos inicialmente imaginados. Vimos os casos de equívocos ou de ajudas impostas. Negar uma ajuda que não é necessária a uma pessoa que insiste em ajudar nem sempre é tarefa fácil. Tem pessoas que tomam a negação como ofensa ou ingratidão. Acontece das pessoas pararem Caetano para ajuda-lo na rua sem ele estar procurando. Nessas horas responde “olha, não há necessidade aqui, mas obrigado, dá para eu ir” ou “estou esperando alguém aqui”, algum tipo de desculpa. Nunca fala de forma agressiva, para que a pessoa não se sinta ofendida. Conhece cegos que preferem não ser ajudados, a não ser quando realmente precisam. Segundo ele, são pessoas que acham que ser independente é não aceitar a ajuda de ninguém. Ana fala da preocupação em agradecer a oferta de ajuda, mas gentilmente negar quando ela não é imprescindível ou quando vai interferir no itinerário da pessoa que ofereceu.

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A moça vinha no sentido contrário, simpática a moça, „oi, tudo bem? você precisa de ajuda?‟, eu falei assim „você está indo para o mesmo lugar que eu?‟, „não‟, eu falei „você estava vindo de cá, não estava?‟, „tava‟, eu falei „então, se você estivesse vindo do mesmo lugar ou estivesse indo na mesma direção eu ia aceitar a sua ajuda, porque eu acho que não é nada, não faz mal a ninguém, muito pelo contrário, anda mais rápido, mas se você está indo para lá, não se preocupa não que eu conheço o caminho‟, „ah, então tá bom‟, ela não ficou chateada e eu não recusei ajuda, mas eu acho sacanagem, eu conhecendo o caminho, tirar a moça do destino dela, eu acho que é meio... que é um pouco de exploração. Se eu não conheço eu digo assim „bom, eu não conheço o caminho, se você puder me ajudar eu aceito ajuda‟, mas se eu conheço, ai meu Deus eu acho que isso é falta de... todo dia você não vai ter uma moça ali para ajudar.

Encontramos um limite imaginário e fluido entre o imperativo da ajuda - será necessário contar com ela para atravessar certos itinerários urbanos, especialmente os menos conhecidos – e a dependência – não se deslocar para lugar nenhum sem ajuda. Cada pessoa parece lidar com a necessidade de auxílio de maneira particular, e cada um vai desenhando seus limites nas situações pontuais e imediatas do dia a dia, como a que Ana conta. Se transformar em linha de fuga do itinerário de alguém, que por sua vez se transformaria em vetor de navegação para o seu, numa situação específica de um percurso territorializado, já conhecido, Ana acha que é exploração. A exploração traria uma dupla consequência: abusar da disponibilidade da ajuda alheia quando não é necessária; e correr o risco de se acostumar tanto com essa “bengala” humana que, no momento em que ela não existir, sua ausência se transforme em imobilidade. Assim como Ana, mesmo quando não precisa porque já domina determinado território, Caetano costuma aceitar a ajuda de alguém que esteja indo para a mesma direção que ele. Possivelmente pelo mesmo motivo de Ana: estar acoplado a um vetor de navegação aumenta a velocidade do andar. Mas acontece de também mudar os seus planos por que surgiu uma ajuda que ele chama de “direta”.

Eu ia fazer uma coisa, mas como pintou uma ajuda direta... tipo assim, eu estou na central, aí vou pegar ônibus na rodoviária lá atrás, mas eu ia passar numa loja ali pra ver um negócio. Mas aì a pessoa „vou para o terminal, vai pra lá?‟, se não é muito necessário aquilo que eu ia ver na loja eu aproveito a carona e vou. Claro, deixo a outra para depois, para amanhã. Se for urgente eu vou fazer o que for mais necessário naquele momento, mas se não era tão urgente...

E assim os territórios urbanos vão sendo conquistados, com mais ou menos esforço, com maior ou menor familiaridade, mudanças de orientação, mais ou menos necessidade de auxílio. Como esse vetor de navegação não é um GPS, mas um ser humano, afetos emergem da interação. Ir a um lugar novo é uma decisão que demanda preparação anterior e determinado estado de espírito, desejar bons encontros que guiem 286

o caminho e contar com a sorte. Camila descreve uma das primeiras vezes que decidiu se aventurar até um local desconhecido sozinha. De seu depoimento emergem os vetores de navegação que atravessaram seu caminho e uma espécie de sinergia entre seu desejo, seu humor e aquilo que encontra no percurso. Tinha um aniversário em Campo Grande. Aì eu „não vou não, ah, não vou sabe‟. Aì eu estava em casa, „ah, eu vou‟. Liguei para a menina, „como é que eu faço para chegar aì?‟, aì ela „tu vem mesmo?‟, ficou toda feliz, „eu vou‟, „tu vem nada...‟, „vou sim, como é que eu faço para chegar aì de Madureira?‟, falei logo onde eu morava, „você pega tal ônibus, aì solta em Campo Grande, pega a Kombi Salim‟. Aì fui e me arrumei. Sabe quando você respira fundo - „eu vou‟. Fui para o ponto. Cheguei no ponto e eu „por favor, alguém pode ver o ônibus tal para mim?‟. Antigamente eu tinha horror assim de... achava que eu estava ocupando alguém, hoje em dia eu tenho mais facilidade, ainda falo assim „olha se o seu vier antes, não tem problema, eu peço para outra pessoa‟, pra não ser um... aì eu peguei o ônibus. Nisso... quando você está bem, você se determina, as coisas vão se encadeando direitinho. Eu entrei no ônibus, o motorista era maravilhoso e o trocador também. Aì o trocador „passa, senta perto de mim, você vai para onde?‟, aì eu „Campo Grande‟, „Campo Grande... vamos fazer uma viagem longa‟, sentei. Estou indo, 1 hora, estou indo, 1 hora e meia, eu „gente eu to indo para onde?‟, aì ele olhava pra mim, ele virava e dizia assim para mim „ó, ainda não chegou não tá? já, já você vai estar chegando lá. Prá onde você vai?‟, aì peguei o papel, dei na mão dele, aì ele „ah, você vai soltar no salim, tal e tal‟, que a menina tinha me dado um mapinha aqui no Benjamin. Quando chegou ele „ó, tá chegando... chegou hein‟. Aì eu „tá bom, muito obrigada‟, aì ele „peraì um instantinho, fulano ce vai ali pro Salim? Vai pegar a Kombi?‟, „vou‟, „acompanha ela pra mim?‟, me acompanhou até a kombi. Eu fui. Quando chegou na Kombi „moço, você conhece uma menina...‟, ela falou assim „conversa com ele que ele vai me conhecer, eu pego sempre‟, que ela mora lá e está sempre aqui (no IBC), „conheço... pode deixar, eu te levo lá‟. Gente as coisas foram assim, encadeando direitinho, aí isso vai te dando mais força, sabe, quando as coisas... mas aí eu botei uma coisa na minha cabeça, que tem dia, nem sempre as coisas fluem assim. E nesse dia que as coisas não fluem, você tem que ter muita paciência. Aqui o pessoal usa muito assim „matar um leão por dia‟, que é a força que você tem que ter de levantar e sair. De estar sempre assim pedindo, „tomara que tenha alguém legal por perto‟, que possa te ajudar, e se não for legal também que pelo menos „quer atravessar?‟, aì atravessa, entendeu? E assim a tua vida vai.

Desejo que produz, é criativo, agencia elementos, cria territórios (Guattari e Rolnik, 1996). Pessoas cegas em circulação contam com esses vetores de navegação para trilhar e traçar seus caminhos nos itinerários urbanos. As ajudas são formas de territorialidade que se revelam na instantaneidade e no acaso dos encontros. Cruzar a cidade e ir para um aniversário em um bairro distante é um movimento de desterritorialização e construção de um novo território para Camila. Para chegar lá conta com vetores, forças, linhas de fuga que atravessam, pontos entre duas linhas que não podem ser assinalados (Deleuze e Guattari, 1997). Uma situação vivida por Beatriz nos dá mais elementos para entender a distribuição dos vetores no espaço aberto da cidade. Surgem ao longo de um percurso

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urbano, conforme as mudanças de direção e as casualidades. Como alertam Deleuze e Guattari (1997), a cidade, espaço estriado por excelência, pratica espaço liso por toda a parte. A ligação de um território com o seguinte não está definida e pode ser feita de uma infinidade de maneiras. Eu trabalhei na Embratel um período de madrugada. Começava a trabalhar meia noite. Ali na nossa senhora de Copacabana eu pegava o 474, porque é o único que vem pela pista do canto, que eu já descia na calçada da Embratel e não precisava atravessar. Aì peguei o ônibus e pedi ao motorista, „moço, você me deixa ali em frente ao prédio da Embratel‟, „tá bom‟, ele saiu da praça XV, entrou na Presidente Vargas, tá andando, tá andando, eu falei „gente esse homem... passou moço?‟, „não, não passou não‟. Antigamente, não sei se ainda está lá, tinha um outdoor da Embratel com a Ana Paula Arósio, ele achou que era lá. Eu falei moço „para, para que eu vou descer‟, „vai descer aqui?‟, „vou, vou descer aqui, ué, vou para onde? Vou para o Jacaré?‟. Eu não tinha noção de onde eu estava, em que altura da Presidente Vargas. Ele parou, abriu a porta e eu desci. Meia noite. E era um fim de semana, não tinha uma alma viva no centro. Respirei. Falei bom, começar a voltar, né? Não tinha noção da distância que eu estava. Olivia, por Deus, por tudo o que é mais sagrado, eu não sei até hoje o que aconteceu, surgiu uma criatura e ela veio do meu lado direito, ou seja, então ela veio da pista. Trocou duas palavras comigo, tipo „vai para onde?‟ „eu te levo‟, eu não lembro, foram duas palavras só, eu sei que ele deixou eu segurar no braço dele, eu estava depois da central. Eu não lembro do trajeto até a Embratel. Eu lembro que eu tentei puxar algum assunto e ele não respondeu, e assim, são flashes, eu lembro muito vagamente... e de madrugada a gente não usava as recepções normais, a gente entrava pela garagem, os seguranças ficavam ali na garagem, e a garagem dá ali pra onde tem a saída do metrô da Presidente Vargas, na Regente Feijó. Aí quando eu cheguei assim perto, quando eu fui me aproximando da garagem da Embratel, que eu comecei a ouvir as vozes dos seguranças o cara sumiu. Palavra de honra. Uma coisa impressionante. Incrível. Impressionante mesmo. Nunca esqueci isso.

Ao mesmo tempo que é um elemento que promove a ampliação e o domínio de territórios, a ajuda também restringe a circulação. Não só nos momentos em que as coisas não fluem, nas palavras de Camila, ou momentos em que não é bem vinda, como na situação vivida por Beatriz ou ainda em outros que acabam levando para territórios indesejados, como no caso de ônibus errado mencionado por Dora, mas também quando a ajuda é escassa ou inexistente. Um dos pontos que destaco no mapa de deslocamento de Caetano se refere aos horários de sua rotina. Na última história contada por Beatriz, o equívoco do motorista a coloca em uma situação de extrema vulnerabilidade – tarde da noite, final de semana, Av. Presidente Vargas. A ajuda que vai ao seu encontro parece um acaso tão improvável que a faz introduzir o relato dessa experiência com o dizer “anjo da guarda de cego não dorme em serviço”. Não andar pela rua à noite não é somente uma questão de prudência pela (in)segurança urbana relacionada à violência ou medo de assalto, que seriam motivos

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para menor circulação de qualquer pessoa mais preocupada em se precaver numa cidade grande, mas no caso de pessoas cegas também está vinculada à menor possibilidade de navegação devido à menor oferta de ajuda. Menos pessoas, menor chance de ser ajudado. Se uma pessoa cega não tem a possibilidade financeira de contratar um motorista ou pegar um táxi, seu ir e vir se restringe ao trem ou metrô, formas mais estriadas de deslocamento, mas com horários e destinos restritos, ou ao ônibus urbano. O trem e o metrô param de funcionar a partir de determinado horário. O ônibus pode circular a noite inteira, mas para uma pessoa cega utilizar esse tipo de transporte é preciso contar com a vetorização humana que costuma ser mais rara nos horários noturnos ou em dia de domingo. Nas palavras de Beatriz:

Eu evito sair de casa dia de domingo porque... bicho, quase não tem pessoa na rua. Aí chega no ponto de ônibus não tem ninguém. Você fica ali parada no ponto de ônibus um tempão, os ônibus só passando, passando, passando... dá vontade de sair fazendo sinal para todos, né? o que te interessar você entra. Mas nem assim rola, porque você pode fazer sinal e ele parar lá na frente, o cara vai... é impressionante. Você está sempre realmente dependendo do outro, não tem jeito.

Goffman (1977) acredita que há duas categorias desvantajosas de indivíduos no contexto social urbano: aqueles que podem e tendem a se confinar em famílias inteiras e vizinhanças, e aqueles que não. No cenário americano, os negros são exemplos da primeira situação, deficientes, da segunda. Se pensarmos no acesso à cidade do Rio de Janeiro, pessoas cegas entrariam nessa categoria de pessoas que estão em desvantagem de Goffman, mas que não estão segregadas espacialmente. A segregação acontece pela menor possibilidade de circulação, pela inexistência de acesso autônomo para uma pessoa cega aos únicos serviços de transporte público que circulam em muitos pontos da cidade, os ônibus. A oferta de ajuda também varia de acordo com os turnos, alterando também a disposição das pessoas em ajudar. Caetano fala sobre a mudança de estado de quem circula durante a noite:

A noite já começa a ficar complicado (encontrar ajuda) porque tem menos gente na rua, as pessoas estão mais apressadas, sei lá, as pessoas andam com medo também... por exemplo passa uma mulher sozinha, às vezes você é parado num lugar, ela não vai parar, principalmente se você não tiver assim bem claro que é deficiente visual, mas também as pessoas podem aplicar golpe por aí. As pessoas desconfiam de tudo e de todos né? A noite é sempre mais perigoso, as pessoas têm medo de se expor, de correr risco. Então já anda com pressa, já andam correndo.

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Perlongher (2008) contesta as premissas espaciais de identidades fechadas, homogêneas e unificadas, refletindo sobre a ideia de território marginal. Em seu estudo, a relação dos michês com certos códigos sociais que se apresentam nos espaços da cidade é que contribui para a construção de territórios subjetivos, atribuindo categorias a seus corpos e desejos em movimento. Com o método da cartografia o autor analisa a produção de territórios que não se firmam em uma fixidez espacial. Se pensarmos com Perlongher, a territorialidade flutuante de cegos está na mobilidade e nos olhos das pessoas anônimas que os ajudam nas ruas, vetores de fixação de territórios e navegação no espaço urbano. Park (1984) indica que a mobilidade de um indivíduo ou população em um contexto urbano deve ser medida não apenas pela mudança de lugar, mas pela variedade de estímulos para locomoção aos quais o indivíduo responde. Urry e Büscher (2009) propõem a instituição de uma ciência social onde o movimento, o movimento em potencial e o movimento bloqueado, assim como as imobilidades voluntárias ou temporárias, as práticas de habitação e a construção de lugares nômades sejam concebidos como constitutivos das relações políticas, sociais e econômicas. Pensando nas trajetórias e linhas traçadas por pessoas cegas em deslocamento, é possível avaliar os fatores que concorrem para a redução ou ampliação de sua mobilidade. Atravessar a cidade diariamente faz parte da rotina de Caetano e de muitos frequentadores do IBC, mas para isso, nas palavras de Camila, é preciso “matar um leão por dia”. O leão que se mata é a ineficiência de transportes públicos, a infraestrutura precária de ruas, calçadas, sinalizações, a desordem urbana, contar com a voluntariedade e o acaso de ajudas alheias que por vezes podem conduzir a lugares indesejados. Para pessoas cegas a segregação acontece por essas barreiras que dificultam sua livre circulação pela cidade. Para ir e vir precisam contar com as pessoas, que se tornam vetores de acesso aos lugares. Um local ermo, desconhecido ou um horário com menos gente transitando restringe sua mobilidade e o seu acesso aos espaços urbanos. “A Urca é o paraíso dos cegos”

Ainda que fundamentalmente móvel, os fluxos por determinados locais também podem promover a fixação de um território, a transformação e a apropriação de certos espaços em que os sujeitos passam a se sentir em casa (Guattari e Rolnik, 1996). É interessante notar que a assiduidade de pessoas cegas ao bairro da Urca, nos arredores 290

do IBC, também tem como efeito a transformação das relações de interação e sociabilidade de moradores, trabalhadores ou frequentadores do bairro com pessoas cegas. O convívio e a troca cotidianos como facilitadores de uma maior integração de pessoas cegas na experiência urbana daquele bairro. A relação é explicitada em mais detalhes por Camila, quando fala sobre um dos estabelecimentos que costumam frequentar para almoço nas cercanias do IBC.

A Urca é o paraíso dos cegos. Porque na Urca todo mundo sabe tratar um cego, porque o Instituto é aqui, porque a gente anda muito pela Urca, almoça, o pessoal sai daqui e almoça num... não é restaurante não, um barzinho que tem ali, aí eles sabem. Eles sabem que a gente não se serve, eles já dividem nos pratos, entendeu? O garçom toca em você... já conhece todo o método. Então todo mundo queria morar por aqui porque sabe que vai chegar num lugar e „senta aqui, esse lado ó, o seu copo está à sua direita‟, esse tipo de coisa. Aì tem uma pessoa que falou assim „gente, a gente tem que sair mais para outros lugares‟, ocupar, porque aì as pessoas vão aprendendo, a gente vai se sentindo melhor e as pessoas mais à vontade de tratar assim. Porque têm pessoas que tem inibição de chegar perto né, porque é isso, ela não sabe.

Estratégia de ocupação de bairros pelo comparecimento constante. Modificação das relações de interação de cenários urbanos pela presença e permanência. Algo que, na fala de Camila, demanda certo esforço coletivo, insistência e continuidade. Park (1984) identifica que além de uma organização física, a cidade também tem uma organização moral, se enraizando nos costumes e nos hábitos das pessoas que a habitam. Os dois aspectos, físico e moral, estão em interação de maneira que moldam e modificam um ao outro. A frequência e a circulação de cegos gerada pela localização do instituto promove a ocupação e territorialização do bairro por pessoas cegas, adaptando hábitos e costumes em restaurantes locais, por exemplo, que atendem essa clientela. Se inscreve inclusive na estrutura física do bairro, como no único sinal sonoro da cidade instalado em frente ao IBC, no piso tátil que conduz do ponto de ônibus à entrada do instituto ou no desnível em relevo que atravessa a calçada oposta ao IBC, autorizado pela prefeitura, que é uma sinalização que indica para os cegos a aproximação do outro ponto de ônibus.

4.4 Materialidades do mundo e simbolização

Quem enxerga se relaciona com a paisagem, com os obstáculos e os componentes de uma travessia diária a partir de sua visualidade. Os sinais significativos que organizam o ir e vir em um contexto urbano são eminentemente visuais – semáforos 291

de rua, placas, avisos de obra, triângulo vermelho luminoso que indica um carro quebrado à frente. A visualidade, ainda que virtual ou arbitrária – a luz vermelha ou verde de um sinal – representa a realidade de uma ação a que quase todos obedecem – siga ou pare. Mas o ato de seguir ou parar também pode ser simbolizado de outras formas, por um som ou por sensações táteis. Quem não enxerga não se relaciona diretamente com a visualidade simbólica majoritária presente nas placas ou nas cores dos sinais nas ruas, mas compreende as coisas a partir de outros signos, alguns mais regulamentados que outros. O som contínuo ou interrompido de sinais sonoros indica o momento de esperar ou de cruzar uma rua. Os sinais sonoros também proporcionam autonomia e segurança na locomoção de uma pessoa cega, sua existência permite dispensar a ajuda de outras pessoas para atravessar, um dos momentos mais críticos do deslocamento no contexto urbano. Entretanto, conforme reportagens de canais de notícias 88, as duas maiores cidades do país não contam com esse recurso de acessibilidade. No Rio de Janeiro, conforme mencionei, existe apenas um único sinal sonoro, em frente ao IBC, no bairro da Urca. Em São Paulo, cinco semáforos sonoros foram instalados, mas conforme denuncia a reportagem, apenas dois funcionam. A origem do piso tátil para facilitar o deslocamento urbano de pessoas cegas e o início do processo de normatização de seu uso são atribuídos por Sakaguchi e colegas (2000) a Seijchi Miyake, que teria inventado o piso tátil no Japão em 1967. As diretrizes para a instalação de sinalizações táteis foram oficialmente lançadas naquele país em 1985. A década de 1990 marca a propagação do uso dos blocos táteis no cenário urbano em países como Austrália, Canadá, Estados Unidos, França, Inglaterra. Nos anos 2000 outros países desenvolvem suas próprias regulamentações com base nas diretrizes originais. As sinalizações táteis foram classificadas em dois tipos: direcionais (linha contínua em relevo) ou de alerta (conjunto de relevos circulares). No Brasil a norma técnica ABNT NBR 9050, de 2004, estabelece os critérios e parâmetros técnicos a

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Reportagem do jornal O Globo “Cidade tem quatro anos para adaptar calçadas e meios de transporte para Jogos Paralímpicos”, de 15.09.2012. Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/cidade-temquatro-anos-para-adaptar-calcadas-meios-de-transporte-para-jogos-paralimpicos-6108941. Acesso em 07.03.2014. Reportagem da TV Folha “Para deficiente visual, andar em SP fica mais difícil sem sinal sonoro”, de 18.11.2013. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/2013/11/1372910-para-deficiente-visual-andarem-sp-fica-mais-dificil-sem-sinal-sonoro.shtml. Acesso em 07.03.2014.

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serem observados para instalação e adaptação de espaços e equipamentos urbanos às condições de acessibilidade, entre eles os pisos táteis. A linha contínua de um piso tátil tem o objetivo de guiar e direcionar o deslocamento através de uma trilha. São instaladas em locais amplos sem muitos pontos de referência detectáveis com a bengala. A textura da sinalização tátil direcional consiste em relevos lineares, regularmente dispostos. Já os cículos em relevo de um piso tátil representam um sinal de alerta para a pessoa cega, indicando perigo ou obstáculos no caminho. São instaladas no início e término de escadas fixas, rolantes ou rampas, junto às portas de elevadores, ao redor de obstáculos suspensos não rastreáveis com a bengala, junto a desníveis como vãos, plataformas de embarque ou desembarque, palcos, entre outros. Elas também podem servir para alertar sobre alternativas de trajeto em uma sinalização tátil direcional, indicando uma bifurcação ou mudança de direção. Podemos pensar as associações entre os fenômenos do mundo e as relações espaciais feitas por pessoas cegas, criadas no ato de deslocamento, considerando as relações propostas por Wagner (2010) entre convenção e invenção no processo de articulação simbólica. A comunicação e a expressão significativas são mantidas pelo uso de elementos simbólicos que, segundo o autor, seriam palavras, imagens, gestos, ou por uma sequência desses. Tais elementos, quando isolados e vistos como "coisas" em si mesmos aparentam ser, respectivamente, meros ruídos, padrões de luz ou movimentos arbitrários. Ganham significados mediante suas associações, adquiridas ao serem relacionados ou opostos uns aos outros em todo tipo de contexto. A partir do que foi apresentado neste capítulo e no final do capítulo anterior, podemos levar adiante a reflexão sobre certos contextos experienciais em que são criados significados que vão além da visualidade do mundo. Podemos pensar a produção de significados espaciais por pessoas cegas a partir de elementos simbólicos outros - sons que não são palavras (som do muro), imagens que não são visuais (cheiro de pão da padaria), toques que não são gestos (piso tátil). No capítulo anterior a dimensão de significação presente em sons que não formam palavras já havia aparecido, quando Ana diz reconhecer a gestualidade e a comunicação visual entre as pessoas pela tonalidade da voz, alteração na cadência da conversa ou mudança de direção do som da voz de quem fala. A noção de clima ou energia utilizada pelos pesquisados também traduz a percepção de olhares que não são vistos, mas são sentidos.

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Lévi-Strauss (2011), no finale das mitológicas, faz um paralelo entre a mitologia e a música para falar de sistemas de sons capazes de induzir sentidos. Com tal associação o autor reabilita a questão sensível da experiência humana, abrindo a possibilidade para se pensar uma interface entre o sensível e o inteligível. Na música a significação escapa do entendimento, engrenando diretamente na sensibilidade. Os sons musicais, ao contrário dos mitos, não fazem uso de palavras e não passam por qualquer decodificação, mas apresentam significados imediatos. A música é como um mito codificado em sons no lugar de palavras, que oferece uma grade de deciframento, uma matriz de relações que filtra e organiza a experiência vivida. A experiência de pessoas cegas sugere uma extensão da relação entre sensível e inteligível a novas relações entre sons e significados, para além da linguagem e da música. E ainda propõe novas interfaces entre sensível e inteligível pelo encontro de cheiros, sensações táteis ou cinestésicas com os sentidos que organizam a experiência vivida, gerando seres únicos, comparáveis à linguagem, mas que, como exemplifica Lévi-Strauss no caso da música, excedem as necessidades da própria língua. Procurei me aproximar neste capítulo de determinados contextos em que esses significados surgem, são experienciados ou criados. A palavra contexto é utilizada por Wagner (2010) para se referir a qualquer punhado de elementos simbólicos que de alguma maneira ocorram juntos, seja formando uma sequência ou entidade reconhecível, seja entrando em oposição como aspectos contrastantes de uma distinção. Um contexto é parte da experiência e também algo que nossa experiência constrói. No contexto do deslocamento de pessoas cegas por cenários urbanos, determinados elementos simbólicos são relacionados, de alguma maneira ocorrem juntos. A experiência de mobilidade de pessoas cegas cria novas extensões de significados para esses contextos. Além da palavra farmácia ou do símbolo visual de uma farmácia, o seu cheiro também se torna um elemento simbólico que articula o seu contexto – local para compra de remédios, produtos de higiene, interação com o farmacêutico, etc. Como lembra Calvino (2002: 23), “a memória é redundante: repete os sìmbolos para que a cidade comece a existir”. A recorrência, a repetição, as idas e vindas por certos trajetos e a consequente repetição de seus símbolos – curvas do caminho, risco no chão, som do muro, cheiro de posto de gasolina, sinalizações táteis – faz a cidade começar a existir na memória de quem não enxerga.

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Mesmo que as associações feitas por pessoas cegas possam ser vistas como diferenciantes e inventivas, elas pouco a pouco também vão sendo convencionalizadas por meio de processos regulatórios como as normas técnicas para acessibilidade ou mesmo programas de atendimento em Orientação e Mobilidade. Um processo de tradição não racionalista, conforme descrito por Wagner (2010), em que a linguagem, ou a convecção é objetificada por meio dos controles alternativos do mundo experiencial. Códigos, procedimentos, regulamentações que ao tomarem do mundo características individuais e diferenciantes são transformados em significado. Ainda assim, levando a análise adiante com Bourdieu (2003b), o poder simbólico, o poder de dizer como as coisas são, de determinar os sinais significativos do ambiente ou a própria organização do espaço urbano – regras e sinais de trânsito, calçadas, etc. – se estrutura pela perspectiva da visualidade. A vivência com Dora na oficina inclusiva, terceiro relato que abre este capítulo, permitiu experimentar a arbitrariedade dos processos de simbolização ao desestabilizar posições de poder – quem conduz e quem é conduzido. A minha tomada à frente na condução do nosso deslocamento, ainda que estivesse momentaneamente privada do sentido visual, se mostrou posteriormente o exercício frustrado do poder simbólico reconhecido da visualidade na determinação de relações espaciais de deslocamento. De acordo com Bourdieu, poder de impor, ou mesmo de inculcar, instrumentos de conhecimento e de expressão da realidade social que, ainda que arbitrários, são ignorados como tais. O lugar de poder da visualidade nas relações e simbolizações urbanas não é facilmente desestabilizado, se reproduzindo em práticas e relações cotidianas as mais comuns. No ato de ajudar uma pessoa cega a atravessar uma rua, quem ajuda ocupa uma posição considerada superior e quem precisa de ajuda, inferior. Como lembra Bourdieu, a destruição do poder de imposição simbólico radicado no desconhecimento supõe a tomada de consciência do arbitrário – no caso descrito, a ideia de que, dependendo das condições ou das circunstâncias, as minhas representações espaciais visuais podem se tornar absolutamente dispensáveis uma vez que, inutilizadas, não mais confirmam minha ação sobre o mundo. Considero que o exercício de me deixar conduzir de olhos fechados ao longo da pesquisa é também um reconhecimento dessa arbitrariedade do visual na determinação de relações espaciais e de deslocamento e um aprendizado de novas simbolizações heterodoxas para a materialidade do mundo – pelos cheiros, pelos sons, pelos marcos no caminho.

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5. Vidas marcadas: trajetórias sociais da cegueira Como lidar com o outro, com essa diferença que as deficiências em geral – e no nosso caso, a cegueira em particular - instituem? Gardou (2006) argumenta que a deficiência, acontecimento traumático, seria vista em todos os tempos e sociedades como um problema que exige interpretação e identifica na deficiência, como na doença, o paradoxo de ser a mais individual e a mais social das realidades humanas. O autor aponta que não se é deficiente ou não deficiente apenas em si mesmo, mas também para a sociedade e em função dela, o que acarreta que a deficiência vivida em primeiro lugar, sofrida sem intermediários, é também aprendida. As pessoas que são afetadas por uma deficiência, seja motora, sensorial, intelectual, comportamental, de ordem congênita ou adquirida, partilhariam uma condição comum, a de ainda serem mantidas à margem, enclausuradas em categorias. Apesar dos avanços, a sociedade atual continua a fazer da deficiência um estigma, uma fonte insidiosa de desvalorização e rejeição. O conceito de deficiência emerge como uma formação patológica em oposição a um modelo de normalidade corporal. Pode-se dizer que Foucault levou adiante a sugestão de Mauss, de um estudo minucioso de técnicas de adestramento do corpo. As técnicas específicas que interessam Foucault refletem não apenas as particularidades de uma cultura, mas resultam na incorporação de um poder. O autor encontra na época clássica sinais de uma grande atenção dedicada ao corpo – corpo que se manipula, que se modela, que se treina, que obedece, que responde, que se torna hábil. Processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Corpo útil, corpo inteligível. Foucault (2013) chama de disciplinas os métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade. A categoria dos anormais surge nesse contexto e, dentro dela, do indivíduo a ser corrigido, em correlação com o modelo médico de deficiência. Com o foco na normalização, a meta dos programas de reabilitação passa a ser a de treinar pessoas a funcionar o mais perto possível da normalidade, torna-las úteis, dóceis, funcionais, “quase” iguais. Por mais que as práticas se construam com base em metas e parâmetros individuais, o objetivo final de sempre tentar se aproximar de um patamar que concretamente é inalcançável, assombra. Os que diferem precisam ser

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transformados, adaptados, moldados. Mas ainda que se transformem, que se moldem, que se adaptem, são permanentemente vistos como alguém a quem falta algo. Para Martins (2005), a noção de deficiência, marcadamente moderna, seria uma espécie de interligação entre o caráter duradouro ou permanente de uma anormalidade física, a visibilidade dessa anormalidade e a incapacidade funcional que implica. A tensão entre os padrões de normalidade do sujeito moderno e a incorrigibilidade dos anormais aparece especialmente latente nesse capítulo. Ela se desloca, transmuta, nas diversas formas de se lidar com a identidade e com a diferença na questão da cegueira. Formas históricas, culturais. Diferenças físicas, sociais. Bhabha (2013), ao analisar um romance de Conrad, indica que o conhecimento da identidade e da diferença é tanto um problema de epistemologia e história como uma questão perceptual e fenomenológica relacionada a como vemos e de onde olhamos. Colocando entre aspas a metáfora visual, neste capítulo pretendo abordar a complexidade que opera em torno das noções de diferença e identidade na cegueira, tratando a problemática por uma dupla perspectiva – existencial e social. Primeiramente, resgato os símbolos e as representações culturais sobre a cegueira presentes em narrativas históricas no contexto da cultura ocidental, a partir do trabalho de pesquisa já realizado por Martins (2006). O resgate se justifica na medida em que as representações culturais informam práticas e comportamentos dos atores sociais e das próprias pessoas que não enxergam em torno do que significa ser cego. Trato então das formas de se lidar com a diferença da cegueira a partir de dois enfoques: a narrativa dos pesquisados sobre suas trajetórias de vida escolar e de trabalho, relacionando-as com políticas sociais para pessoas com deficiência no Brasil; e a diferença da cegueira em situações de interação nos espaços públicos. Por fim, procuro abordar como a cegueira é vivida por quem nasce cego e quem se torna cego, os efeitos dessa diferença na constituição de si, buscando aproximações e afastamentos em suas experiências. Finalizo o capítulo com uma reflexão sobre a cegueira e os processos de produção de diferença e identidade. Gostaria de trazer para a discussão o maior número possível de nuances das histórias que participei ou das que me contaram. Sem deixar de denunciar o sofrimento social do estigma, da opressão e da exclusão, marcas cruéis da diferença enquanto desigualdade, quero também povoar o debate com novas narrativas, numa tentativa de multiplicar as formas de compreender e lidar com as ideias de diferença ou normalidade. Um exercício analítico de pensar os processos de identidade sem o lugar 297

conhecido ou a fronteira na qual se costuma definir ou descrever a cegueira enquanto deficiência. É preciso esclarecer que a relação com o contexto social mais amplo, presente na legislação ou nas questões relativas a família, trabalho e educação serão trazidas na medida em que dialogam com as experiências de vida dos pesquisados ou com situações encontradas em campo. Nesta pesquisa são privilegiadas as suas perspectivas sobre os fatos ou eventos relatados, já que o foco é entender como lidam com a diferença em suas trajetórias e como percebem a ausência da visão em suas relações.

5.1 Narrativas culturais sobre a cegueira

Vai além do escopo deste trabalho um levantamento criterioso dos simbolismos e associações relacionados à cegueira ao longo do tempo, trabalho cuidadosamente realizado por Martins (2006). Pretendo sistematizar algumas representações e narrativas culturais a respeito da cegueira que ele apresenta, entendendo que a marcação simbólica recebida por determinado grupo ou indivíduo tem efeitos reais, contribuindo para sua inclusão ou exclusão social. Se a proposta do capítulo é abordar a temática da identidade e da diferença na cegueira, entende-se que “os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar” (Woodward, 2014: 18). Martins (2006) desenvolve um olhar sobre a história ocidental da cegueira partindo de uma interpretação do texto bíblico, justificando sua escolha pelo reconhecido valor da tradição judaico-cristã enquanto herança fundadora do mundo ocidental. Os dados contidos no Velho Testamento colocam uma ambiguidade no modo como a lei hebraica se dirige às pessoas cegas ou portadoras de outras deficiências. Nas prescrições rituais estabelecidas no culto a Deus nega-se àqueles que possuem algum “defeito” uma participação ativa e uma proximidade com o divino. Demarcação simbólica que terá consequências negativas. A marginalização do ritual religioso sancionaria uma marginalização social mais ampla. Ao mesmo tempo, uma atitude preocupada perpassa o Velho Testamento em relação à proteção e ao cuidado com os mais desfavorecidos, onde se incluem as pessoas com deficiência. Ainda assim, essas pessoas eram tidas como impuras e sua deficiência era a evidência de pecado. No Novo Testamento, Martins identifica que as histórias das curas realizadas por Jesus a cegos, coxos, leprosos ou paralisados sintetizam muitos dos valores que se 298

estabelecem ao centro das mensagens desse texto. As curas primeiramente constituem eventos extraordinários que afirmam o caráter sobre-humano do filho de Deus. Implicam também em uma proximidade subversiva daqueles que, tidos como impuros ou como manifestações do pecado, estavam afastados da graça de Deus. Representam ainda a objetificação material da transformação que Jesus pretende trazer à humanidade, já que os indivíduos curados seriam uma afirmação indelével da necessidade do novo nascimento que Jesus invoca. No episódio em que Jesus encontra um homem cego de nascença, seus discìpulos lhe perguntam “Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” (João 9: 1-8). A pergunta deixa entrever que, nas visões da época, pessoas com “deformidade” eram resultado de algum pecado. Os relatos de cura, quando fazem alguma alusão à vivência anterior das pessoas cegas, falam de sua subsistência enquanto mendigos. Martins encontra um significado simbólico particular nas curas realizadas por Jesus às pessoas cegas, onde a materialização das transformações corresponderá a uma iluminação. Toda a Bíblia se encontra pontuada por uma linguagem marcada pela oposição luz e trevas, registro que percorre o Antigo e o Novo testamento, sustentando a associação entre luz e Deus e, por outro lado, entre escuridão e o que não é com Deus trevas que se confundirão com a cegueira, a morte, o diabo e o mal. Para Martins, é possível definir esse dualismo como um dos mais recorrentes de todo o texto bíblico. Na restituição do sentido da visão dá-se, assim, um duplo ato de iluminação – física e espiritual – que retira o cego da escuridão e o converte para o mundo da luz. Se o Novo Testamento consagra os indivíduos cegos como a evidência iluminada da passagem do Messias, também deixa espaço para a ideia de que o cego que permanece cego, ou seja, que não foi curado, persiste no mundo das trevas. No modo de compreensão da cegueira no contexto da Grécia Antiga, Martins encontra elementos de origem diversa. Primeiramente marca-se a evidência histórica de práticas de infanticídio de crianças que nasciam com alguma deformidade física ou mental em Atenas e Esparta. Prática que também é apontada por Garland-Thomson (2001). É no cenário grego que se localiza a consagração dos cinco sentidos por Aristóteles que até hoje vigora na epistemologia ocidental. O filósofo não só define os sentidos humanos como os hierarquiza, colocando a visão no topo da hierarquia, seguida da audição e do olfato. Martins reconhece em Aristóteles e em Platão, que na célebre alegoria da caverna também consagra a hegemonia da visão, a gênese do

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centrismo visual que vigora no mundo ocidental, na confluência estabelecida pelo pensamento grego entre ver e conhecer. Ao mesmo tempo, a transmissão da cultura grega se dava essencialmente pela via oral e esse fator foi o que permitiu a participação ativa de pessoas cegas na vida intelectual e política. É assim que o autor explica a notoriedade alcançada por Homero, o célebre poeta cego autor de Ilíada e Odisseia. Ao contrário da surdez, cuja apreensão social no contexto grego era profundamente depreciativa, sendo associada à inaptidão intelectual, havia algum espaço para pessoas cegas participarem de uma cultura onde a oralidade permitia que a ausência da visão não constituísse um obstáculo significativo. Foi a Grécia antiga, na figura de Sófocles, que inscreveu na história do Ocidente dois personagens pertencentes ao mundo da mitologia, Tirésias e Édipo, cujas cegueiras carregam simbolismos fortemente marcados no imaginário ocidental. Em Tirésias, o adivinho, Martins identifica a origem da construção do cego cuja incapacidade de ver o que os outros veem lhe permite ver o que ninguém mais vê. O homem cego detentor da verdade divina, instância do saber em quem as trevas físicas convivem com a luz reveladora. Tirésias, o cego vidente, materializa uma ruptura na associação entre visão e conhecimento, inversão que estabelece uma relação de intimidade entre a cegueira física e as formas de conhecimento sobre-humanas. Surge aí todo um imaginário social em torno da cegueira em que as vivências de pessoas cegas se encerram em interpretações que as ligam ao fantástico, a “outros mundos”. Há ainda a cegueira de Édipo que, por meio da revelação de Tirésias, chega a um completo conhecimento e lucidez sobre sua posição no mundo, onde figuravam o assassinato do pai e o casamento com a mãe. Ao aceitar sua reconstituição biográfica Édipo decide se auto-infligir com a cegueira. O desejo de não mais ver a luz, expresso por Édipo, constitui no contexto grego uma forma tradicional de referir à morte. Para Martins, o fato de que naquele contexto se fazia da visão da luz uma expressão simbólica da vida faz com que o adeus à luz corresponda a uma despedida da vida que, ainda que não implique em morte, simboliza o anúncio e sagração da cegueira como uma forma de morte. Na figura de Édipo, a cegueira emerge como uma forma particular de mutilação, como signo de exílio e como uma forma de morte. Sousa (2001) indica que a era cristã na Idade Média inaugura o modelo do ajuntamento dos cegos em torno da mendicância, enclausurando-os em asilos e hospitais e disciplinando sua principal atividade, a coleta de esmolas. Martins (2006) sublinha a importância que os valores da caridade adquirem no período por meio do 300

discurso e de práticas da Igreja. Essas práticas, entretanto, não se inseriam em um projeto de transformação social, resultando menos de uma continuidade com os valores de amor ao próximo advogados por Jesus e mais da ênfase na necessidade do crente de, por essa via, alcançar a redenção e a salvação. Os sujeitos eleitos como “objetos” da caridade - e os cegos recebiam atenção privilegiada - eram consagrados como veículos para o exercício da virtude, como meios para a salvação das almas dos seus benfeitores. É possível identificar a associação simbólica de ajudar uma pessoa cega como um investimento para alcançar uma espécie de “bem” em outra vida numa cena narrada por Camila, quando recebe ajuda de um taxista na rua: “um dia um taxista me ajudou, tava no ponto final do táxi, aí os outros taxistas todos -„aì, jogando tijolinho para o céu, hein!‟, aì ele -„é, tem que fazer uma boa ação‟. Jogando tijolinho para o céu porque ele estava ajudando um cego”. Martins aponta que o exercìcio da caridade, constituìdo como uma das formas centrais de objetificação sociocultural da cegueira na Idade Média, aporta nos nossos dias tanto em instituições presentes nas sociedades civis quanto em valores que ligam a cegueira à experiência de vulnerabilidade, piedade e dependência. Do paradigma sociocultural moderno gostaria de sublinhar dois pontos principais, já que outras marcações importantes como o controle de corpos desviantes e a invenção da deficiência por oposição a uma ideia de normalidade foram abordados em outros momentos. O primeiro é que o pensamento moderno inaugura a busca de um entendimento sobre a cegueira, abrindo possibilidades de acesso de pessoas cegas à cultura e ao conhecimento, uma das formas centrais de valorização social que nasce na modernidade. A descoberta da cegueira pelas luzes do Iluminismo tem em Diderot e seu famoso texto “Cartas sobre os cegos para uso dos que veem” o exemplo central, seguido por Valentin Haüy, cuja inspiração para fundar a primeira escola para pessoas cegas no mundo ocidental parece ter vindo da leitura do texto de Diderot. Ainda que se difundisse a crença nas possibilidades de realização de pessoas com diversas deficiências, ela se concretiza na proliferação de instituições segregadas. É somente na década de 1970 que começa a se disseminar a ideia de que o ensino e formação de pessoas com deficiência deveria ser nos mesmos contextos de outras pessoas, ponto que aprofundaremos ao apresentar a problemática da inclusão educacional no Brasil. O segundo ponto é a associação entre razão ou conhecimento e visão, reforçada na modernidade pelo modo como o conhecimento científico consolida a dominação da visão sobre os outros sentidos. A essa corrente ideológica, presente nas artes visuais ou 301

nos princípios de Descartes sobre a racionalidade, em que a visão surge como elemento metodológico e simbólico central para fundar as possibilidades de uma relação literal ou metafórica com o mundo, Jay (1999) designa por “perspectivismo cartesiano”. As incidências relacionadas ao uso da linguagem, com um vocabulário fartamente permeado por termos visuais para aludir a compreensão e conhecimento, exprime, para Martins (2006), mais um exemplo do substrato simbólico que constitui a experiência da cegueira sob o estigma da ignorância, da alienação e da clausura em relação ao mundo. Dora reflete sobre essa representação da cegueira a partir de uma frase que ouviu de diversas pessoas ao longo de sua vida:

Tem uma coisa no imaginário popular que eu já escutei várias vezes. Hoje em dia menos porque as pessoas seguram mais, mas acho que elas continuam pensando isso que é “pelo menos você não vê a maldade desse mundo”. É uma frase que as pessoas falam. É uma coisa muito esquisita, porque ao mesmo tempo é tipo prêmio de consolação. Ela junta duas coisas que eu acho que são ruins, tacanhas. Uma é que tem que arranjar uma compensação, porque a cegueira angustia tanto que a pessoa tem logo que arranjar uma coisa assim, „ele é cego, mas é muito inteligente‟, tem sempre o “mas” que é para poder dar uma aliviada, para poder compensar. E a segunda questão é a concepção de que, então porque você não vê, você não sabe. Você não vê, você não sabe. Como você não vê, como o mundo vem pela visão, como a verdade... Então as pessoas tem uma ideia de que as pessoas cegas... não vê a maldade, também não deve ver a bondade, não deve ver o mundo né? Vai não ver só a maldade? Vai não ver nada né? Aí uma vez eu ainda tentei alguma coisa, eu digo „escuta, mas eu ouço‟, „ah, mas não é a mesma coisa‟. Mas não é a mesma coisa porque não vê. Elas veem alguém enganando alguém, elas veem alguém batendo em alguém, elas veem uma coisa dessas e elas acham que se você não vê você não sabe o que é, tanto ver presencialmente como ver na televisão. E elas acham que, sei lá, você não sente. Porque tem aquela coisa „o que os olhos não veem o coração não sente‟.

Para Martins, a vigência de um quadro cultural que toma a parte (visão) pelo todo (conhecimento) cria um sério entrave cultural seja para a percepção das pessoas cegas como fonte de saberes, seja para a compreensão da riqueza que o mundo carrega, mesmo para quem o conhece na ausência da visão. Por essa via, a desqualificação e o desconhecimento se erguem como vetores para apreensão social de pessoas que não enxergam. O autor acredita que a noção transversal da cegueira enquanto condição irrevogavelmente marcada pela aura da tragédia e da incapacidade, traduz valores que têm menos a ver com as pessoas cegas do que com contextos culturais e históricos particulares onde a cegueira é pensada por discursos em que a reflexividade das pessoas que a incorporam está largamente ausente. Vale a pena resgatar Butler (2011) quando diz que, ao considerarmos as formas comuns em que pensamos sobre humanização, nos deparamos com a suposição de que aqueles que ganham representação, especialmente

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autorepresentação, detêm melhor chance de serem humanizados. Já os que não têm oportunidades de representar a si mesmos estão correndo grande risco de ser tratados como menos que humanos, de serem vistos como menos que humanos ou, de fato, nem serem mesmo vistos. Das narrativas culturais sobre a cegueira estão ausentes as vozes e as vidas de pessoas cegas. São representações produzidas por uma exterioridade, pela maneira como a cegueira era entendida por pessoas que enxergam em diferentes contextos culturais e históricos. São pressupostos e projeções que falam mais de quem enxerga do que de quem não enxerga, construindo a cegueira ora como fonte de exotismo e fascínio, ora como pecado, ora como tragédia. É nesse sentido que podemos aproximar a forma como a cegueira tem sido representada daquilo que Said (1990) chamou de orientalismo. Seriam modos de resolver a cegueira baseado no lugar que ela ocupa nos contextos histórico-culturais de quem enxerga. Todas essas narrativas culturais que representam a cegueira estão existencialmente fora da vida de quem não enxerga. Podemos concluir essa etapa entendendo que as representações culturais sobre a cegueira, ancoradas em períodos diversos da história de uma cultura, povoam os imaginários e as formas de relacionamento com pessoas cegas. Esses valores e representações dominantes que se erguem sobre a cegueira, em torno das noções de infortúnio, incapacidade, vulnerabilidade, exotismo, alienação, piedade, atravessam diariamente os caminhos de pessoas cegas, contribuindo de forma perniciosa para que suas subjetividades e suas existências concretas e cotidianas, permaneçam ausentes.

5.2 A cegueira nas políticas sociais para deficientes

Quero abordar as complexas questões em torno da independência financeira, inclusão ou exclusão social de pessoas cegas, as inúmeras dificuldades ou entraves envolvidos, tendo como base a narrativa da trajetória de vida dos pesquisados. Relaciono suas experiências com dados mais gerais do censo 2010 do IBGE sobre educação, trabalho e deficiência e ainda com entrevista realizada com a coordenadora do NUCAPE (Núcleo de Capacitação e Empregabilidade) do IBC. Para entender como as políticas sociais vêm sendo implementadas e seus reais efeitos para inclusão ou exclusão de pessoas cegas, seria importante acompanhar como a política de cotas de trabalho para deficientes vem sendo tratada pelas empresas, ou como o processo inclusivo vem acontecendo nas escolas. Para tanto, seria necessário 303

ouvir os diversos atores envolvidos (pessoas com deficiências de diferentes tipos, pessoas sem deficiência, empregadores, colegas de trabalho, família, alunos, professores, diretores de escola), acompanhar o processo educacional em uma escola inclusiva e em uma escola especial ou o processo de inserção de uma pessoa cega em uma empresa, entendendo mais profundamente os fundamentos pedagógicos e políticos dessa ideia. O que pretendo é ancorar as reflexões levantadas em existências pessoais, partindo de suas posições atuais no mercado de trabalho ou considerando seus próprios processos educacionais e suas opiniões sobre como vem sendo implementada a política educacional inclusiva, entendendo, com Wagner (2010), que cada nativo é também um antropólogo com uma hipótese de trabalho sobre seu próprio modo de vida. Não se pretende ir a favor ou contra essas políticas, mas apresentar a complexidade do debate, que envolve as questões que estamos desenvolvendo nesse capítulo: identidade, diferença, (a)normalidade, (d)eficiência.

5.2.1 Educação inclusiva: algumas considerações

O debate sobre a inclusão de pessoas com deficiência na escola regular, recentemente acalorado no Brasil, segue a tendência de políticas de países europeus a favor do ensino integrado no sistema educativo regular público (Gardou, 2009). A UNESCO organizou, em 1994, a conferência de Salamanca, na qual se afirmou o direito à escolarização de todas as crianças, independente de suas características particulares de ordem física, intelectual, social, afetiva, linguística ou outra. O que está por trás do debate é, novamente, a problematização da noção de normalidade em torno da qual se construíram as práticas de ensino. Segundo Gardou e Develay (2005), normal é a palavra pela qual a instituição pedagógica, desde o século XIX, continua a designar o protótipo escolar. O conceito de escola inclusiva vem problematizar a ideia de uma educação da conformidade, apostando nas virtualidades de evolução de toda criança. Para os autores, a escola inclusiva traz não apenas uma mudança semântica, mas aponta para a necessidade de conversão dos modos de conhecimento e de ação na cultura pedagógica. Pensar o desenvolvimento da criança não em termos de dogma, norma, categorização, média, mas no registro dos modos de ser e estar e do debate. Seria a aceitação da diferença, que exige além de uma postura, uma maneira de estar com o outro. 304

Seguindo tais premissas, a primeira bandeira de quem defende a escola inclusiva se volta contra as escolas especiais. Foi a classificação de anormalidade, contra a qual o conceito de escola inclusiva se coloca, que teria criado as escolas especiais. Lá, as crianças com deficiência estariam enclausuradas, postas à margem, encerradas em uma série de determinismos, com suas virtualidades obliteradas, encarceradas em sua diferença. Depositar alunos especiais em lugares especiais sobre a responsabilidade de especialistas seria uma colocação arbitrária que representa somente a desigualdade de tratamento recebida por pessoas com deficiência. Na educação inclusiva, por sua vez, todas as crianças frequentariam o ensino regular porque se considera que a humanidade é plural. Nela, procura-se abarcar a variedade, a plasticidade e o movimento, educando para favorecer a emergência de uma alteridade (Gardou e Develay, 2005, Gardou, 2009). Que o acesso ao saber e a entrada na cultura devam ser universais e concorrem de forma determinante para a igualdade de oportunidades e a criação do vínculo social (Gardou e Develay, 2005), todos parecem concordar. A questão é como fazer essa transição de uma escola que educa para a normatização e a conformidade para uma escola que educa para a libertação, a convivência e o reconhecimento. Será que o ensino na escola especial é realmente tão enclausurante e limitador quanto a teoria da educação inclusiva faz parecer? Quero continuar a discussão menos balizada por teorias a respeito de uma educação ideal e mais ancorada na forma como esses elementos se misturam na prática, na vida de pessoas cegas e nas decisões tomadas a respeito de sua educação. Faço isso a partir da narrativa das trajetórias educacionais de Dora e Beatriz. Dora diz que deve muito de sua educação a uma tia, sua segunda mãe, que era professora. Quando completou 5 anos, a tia armou uma verdadeira batalha com seus pais para que ela fosse estudar no IBC. Para isso teria que virar interna, já que a família morava na Penha e não havia como leva-la e traze-la todos os dias. A tia dizia a seus pais que criança em idade escolar tem que estar na escola, não interessa se tem deficiência ou não. Os pais achavam que ela era muito pequena para ficar tanto tempo longe – entrava na escola na segunda e só voltava para casa na sexta –, queriam protegela. Mesmo assim a tia conseguiu convence-los e, quando ela entrou no IBC, ainda faria 6 anos. Sua tia, educadora, fez a especialização em educação para deficientes visuais no IBC e ela mesma alfabetizou Dora, assim como fez com todos os seus sobrinhos. Quando Dora estava na segunda série, a tia começou a achar que o ensino no IBC estava 305

mais fraco do que na escola regular em que dava aula. Como tinha feito o curso de especialização, decidiu que poderia transcrever todo o material, conversou com uma boa professora da escola que tinha turma de segunda série, perguntou se ela toparia receber uma aluna cega em sua turma e a professora topou. Sua tia e seu pai, ao invés de passear ou assistir televisão, passaram muitos finais de semana e feriados fazendo coisas da escola para ela, bolando como fariam as coisas. Faziam mapa em relevo, figuras geométricas, inventavam a roda. Ela era a única pessoa com deficiência na turma. Tinha criança que ajudava, criança que ficava curiosa e tinha criança que implicava com o barulhinho da sua reglete e pedia para sair da sala porque estava com dor de cabeça. A experiência de Dora como criança com deficiência foi de perceber o preconceito das pessoas, por julgarem, por sentirem pena dela. Perceber o sofrimento da família por ela ser deficiente, ter que se afastar da família para ficar em um colégio especial. Ficar interna no IBC foi uma experiência bastante dura, mas por outro lado foi lá que ganhou sua independência. Em casa as pessoas faziam as coisas para ela, depois que foi para o colégio interno teve que aprender a se virar. Já da experiência no ensino regular ela guarda o preconceito dos colegas, especialmente quando foi ficando mais velha e entrando na adolescência; o preconceito dos professores, a dificuldade de acompanhar a aula e ter que se esforçar muito mais que os outros alunos para conseguir acompanhar, mesmo com a tia professora. Na adolescência se sentia diferente. Quis namorar um menino mas percebeu que ele tinha preconceito porque ela era cega. Ele não querer namorá-la acha que era o mínimo, o duro foi perceber o preconceito. Sentiase um ovni, diferente de todo mundo, não tinha ninguém igual a ela. Por mais que tivesse colegas legais, que a ajudavam, era incluída como diferente, não como igual. Quando se convive com outras pessoas que tenham a mesma deficiência, um professor ou mesmo colegas, a pessoa passa a ter um modelo, alguém com quem compartilhar. Em 2011 foi possível acompanhar a discussão sobre a inclusão de crianças com deficiência no ensino regular em torno da polêmica sobre o possível fechamento do IBC e do INES como escolas especiais em prol de uma política da educação inclusiva 89. No

89

A polêmica foi em torno de uma brecha na resolução 4 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 13 de julho de 2010. Enquanto o texto do CNE dizia que os sistemas de ensino devem matricular os estudantes com deficiência na rede regular, o texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, atribui o caráter preferencial da matrícula de alunos especiais na rede regular. Haveriam setores do MEC favoráveis à inclusão de 100% dos alunos portadores de necessidades especiais em escolas regulares, o que levaria ao fechamento das unidades especiais. Em abril de 2011 o então ministro da educação Fernando Haddad, garantiu que o serviço de ensino básico

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mesmo ano assisti a um debate promovido pelo festival Assim Vivemos, onde se discutiu a temática da inclusão e a forma como vem sendo feita nas escolas. Os professores presentes falavam da sobrecarga de trabalho, das capacitações para lidar com todo tipo de deficiência serem rasteiras e insuficientes, muitas vezes do tipo à distância, da quantidade de alunos em sala de aula não permitir despender a devida atenção que um aluno com necessidade especial precisa para se desenvolver. Os professores especializados só visitam a escola uma ou duas vezes por semana, com um horário limitado e o aluno com deficiência fica a maior parte do tempo sem os recursos de que necessita. Muitas escolas ainda não têm sala de recursos. Quando não consegue dar conta do ensino, o aluno com deficiência tem que trabalhar no contra turno em uma classe especial, para compensar o fato de não ter material, atenção ou as adaptações necessárias ao seu aprendizado no horário regular. Com isso perde o tempo do convívio, da recreação, da brincadeira. É incluído como diferente. Para as pessoas cegas presentes no debate, o ponto polêmico não era se a escola regular deveria ou não ser universal e inclusiva, todos concordavam que sim. O problema seria começar o processo inclusivo acabando com as escolas especiais, que podem ter os seus defeitos, mas funcionam, educam. Defendiam a existência das duas formas de ensino. O ensino na escola no IBC vai até o fundamental, no ensino médio o aluno cego já é encaminhado para uma escola regular. As turmas têm entre 8 e 12, no máximo 15 alunos e todos têm acesso ao material adaptado – reglete, punção, soroban, livros em Braille, mapas em relevo, maquetes, etc. – que muitas vezes é produzido no próprio instituto. Lá funciona uma imprensa Braille e tem também uma brinquedoteca com opções de jogos, pista tátil, brinquedos adaptados. Todos os professores sabem o Braille. Alguns professores são cegos. Segundo os dados do censo escolar do MEC, em 2012, o número de matrículas na educação especial foi de 820.433, um aumento de 9,1% em relação a 2011. 78,2% das matrículas de alunos com deficiência está na rede pública e 21,8% na rede privada. 75,7% estão em classes comuns (o que chamam de alunos incluídos) e 24,3% em classes especiais ou em escolas exclusivas. A proporção dos alunos com deficiência matriculados no ensino básico pelo tipo de deficiência - 73% deficiência mental, 18%

no INES e no IBC não seriam fechados. Para acompanhar as discussões em torno do possível fechamento das escolas especiais: http://ibcnaopodefechar.blogspot.com.br/2011/04/manifestacao-contra-ofechamento-do.html. Acesso em 13.06.2014.

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deficiência física, 10% auditiva e 10% visual – é, curiosamente, o oposto da proporção de cada tipo de deficiência na população total - 18,6% deficiência visual; 5,10% deficiência auditiva; 7% deficiência motora; 1,4% deficiência mental ou intelectual. As problemáticas levantadas no debate sobre educação inclusiva se confirmam no estudo realizado pelo MODEM90 sobre educação especial (Tavares e Ribeiro, 2011), com base nos microdados do censo escolar de 2009. Os alunos com deficiência representavam 1,5% do total de alunos da educação básica no Brasil. Uma expressiva parcela dos alunos com deficiência está matriculada em classes multisseriadas, que reúnem estudantes de diversas séries da mesma etapa da escolarização, 20%. O atraso educacional também pode explicar a parcela significativa de alunos com deficiência matriculados na educação de jovens e adultos, cerca de 10%. O estudo também identifica elevada distorção idade-série para a população com deficiência, seja pela entrada tardia na escola ou por elevadas taxas de retenção. Isto porque a faixa etária em que se encontram os alunos com deficiência é mais elevada do que a idade correta para cursar cada ciclo educacional. A distorção idade-série dos alunos com deficiência é tanto maior quanto mais pobre for a região. Se, na população sem deficiência, a idade média dos alunos na educação infantil era de 5 anos, na população com deficiência era de 9. No ensino fundamental, 11 anos para alunos sem deficiência e 14 anos para alunos com deficiência e no ensino médio, 18 e 20, respectivamente. Segundo relatório da UNICEF (2012)91, o pareamento de dados do Programa BPC92 na Escola de 2010, fruto do cruzamento das informações do Cadastro do BPC com o Educacenso, mostra que, entre os 409.202 beneficiários do BPC com deficiência de até 18 anos, 192.312 (47%) estão fora da escola. Como aponta o relatório, o censo escolar 2010 confirma a dificuldade de progressão nos estudos das crianças com deficiência: enquanto 522.978 (cerca de 75%) cursam o Ensino Fundamental, apenas 28.667 (4%) estão no Ensino Médio.

90

O MODEM é um programa de Monitoramento da Inserção de Pessoas com Deficiência no Mercado de Trabalho da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, em parceria com a Fipe - Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP. O Programa tem dois objetivos principais: (1) acompanhar a inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, e (2) desenhar o perfil do emprego das pessoas com deficiência. O projeto utiliza a grande quantidade de informações disponíveis sobre o mercado de trabalho e também produz novas informações por meio de pesquisas e estudos específicos. 91 O relatório pode ser encontrado no link: http://unesdoc.unesco.org/images/0022/002252/225209por.pdf. Acesso em 13.06.2014. 92 Benefício da Prestação Continuada.

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Beatriz foi diagnosticada da retinose pigmentar aos 4 anos. Ela lembra da expressão de arraso no rosto dos pais quando o médico falou para eles da doença, na frente dela e, principalmente, quando falou que a tendência era a cegueira. Aos 4 anos ela já sabia que um dia ficaria cega. Quando teve o diagnóstico uma amiga de seu pai, que era ledora no IBC, o aconselhou a fazer sua matrícula lá. O pai não quis. Disse que era colégio de cegos e que sua filha não era cega, pelo menos não ainda. Achava que seria bom para ela se desenvolver primeiro na escola regular e que o dia que precisasse iria para o IBC. Beatriz diz que seu pai morreu cedo e ela não sabe, porque não teve oportunidade de conversar com ele sobre isso, se teve uma porcentagem de preconceito na decisão dele, por não saber lidar ou por defesa de não querer aceitar, ou se foi realmente uma atitude consciente e estratégica. Começou a sentir a dificuldade maior com a perda gradual da visão no final do ensino fundamental, mas conseguiu levar. Na época fez a prova para o instituto de educação Sarah Kubichek, em Campo Grande, onde cursaria o ensino médio normal, se encaminhando para pedagogia ou psicologia, que era o que queria. Passou na prova, começou a estudar, mas foi convidada a se retirar do instituto por conta da sua deficiência. Isso a derrubou, parou de estudar e só voltou mais tarde, ao completar o ensino médio no supletivo do IBC. Hoje, Beatriz está finalizando a faculdade de administração na Estácio de Sá, mas sofre com a falta de acessibilidade. Tanto ela quanto Caetano, que completou faculdade de direito na Universidade, dependem da boa vontade de outros alunos e dos professores para acompanhar as aulas. Beatriz, para terminar o curso, tem que fazer uma determinada quantidade de disciplinas de forma online, mas o site da faculdade não tem acessibilidade. Desde o início solicita a resolução do problema para a direção do curso e nada acontece. Agora que está no fim precisou acionar uma amiga que conseguiu o email de um dos coordenadores gerais para quem ela escreveu explicando a sua situação. Ela comenta a dificuldade:

O site da Estácio não foi feito com acessibilidade porque o programador que fez não se preocupou com isso, ele não lembrou disso e isso não tem problema nenhum, não contempla o universo dele, não está na cultura do nosso país ainda, não tem problema nenhum ele não ter lembrado. O problema se dá quando surge a questão e a gente encontra resistência, aí nasce o problema. O diferencial entre as pessoas é a maneira como a gente lida com as coisas, essa é que é a questão. Olha, eu vou te contar, não é mole não, é um desconhecimento, é uma ignorância. A palavra é essa, eles ignoram mesmo. Parece que a gente está falando alemão com eles, sabe? Se surge uma coisa nova na vida e você se abre praquilo, é diferente, né? Agora se a pessoa não se abre para esse novo conhecimento, aí fica difícil.

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Pergunto para Beatriz se considera que foi boa a decisão de seu pai e ela me diz que teve as duas coisas. As pessoas que conhece que estudaram no IBC são pessoas muito bem sucedidas na vida, com boa estabilidade financeira, bem empregadas, porque o ensino de lá dava condição para isso. Por outro lado, são pessoas que não têm a experiência de vida que ela tem, não têm a sua desenvoltura ou o “desleixo social” que ela tem. É uma coisa por outra. Martins (2005) aponta que em Portugal, seguindo a tendência de outros países europeus, a educação especial e as suas instituições foram progressivamente desmobilizadas em favor do ensino integrado no sistema educativo regular público. Entretanto, várias organizações de deficiência em Portugal defendem que na realidade o que realmente ocorreu foi uma destruição de estruturas de ensino especial para dar lugar a um ensino integrado em que a escolaridade e a aprendizagem das pessoas com deficiência é marcada por uma profunda precariedade. Embora seja aceito o princípio de que o ensino em instituições regulares dá às pessoas com deficiência o benefício de estudar em um ambiente que as prepararia desde cedo para a vida em sociedade, onde também se junta o papel pedagógico para a sociedade da proximidade com a diferença da deficiência, o que se verifica é que tal princípio não tem se tornado um meio que permita uma educação apropriada de crianças e jovens com deficiência. A inadequação está presente na inacessibilidade dos edifícios, na falta de formação específica dos professores, na dificuldade de acesso ao material. Dora dá sua opinião a respeito da ideia da educação inclusiva acabar com o ensino especial no Brasil. A escola tá dando conta da educação? Não está dando conta de nada, então você pega a criança e joga ali e acha que vai dar? Não vai dar. Então você começa acabando com o pouco que tem, que pode ser errado, pode ter algumas pessoas... mas tem. Você começa acabando com o pouco que tem? Se você não tem condição de dar essa igualdade, o quê você está fazendo? O quê você está fazendo com a criança deficiente de baixa renda, que é quem usa o ensino público? Porque quem tem condição não vai para o ensino público não, já foi tempo. Então o quê você está fazendo com um ser que é triplamente frágil, é frágil porque é criança que está em desenvolvimento, é frágil porque é deficiente, é frágil porque tem pouco poder aquisitivo. O quê você está fazendo com essa criança? Você não dar condição a essa criança de aprender para o resto da sociedade ganhar? O deficiente é o quê, boi de piranha? Porque o que se pretende é uma escola nova, uma escola com outro paradigma educacional. Agora o começo dessa revolução nessa nova escola é botar o deficiente... começa com o deficiente. Para mim isso chama boi de piranha, bota o boi lá para poder o resto do cardume passar na boa. E o boi já está ferrado mesmo, você pega o mais ferrado, que é o deficiente, e ferra mais para os outros se darem bem. Porque os outros vão aprender com a diversidade, e o cara que precisa vai se ferrar. Isso para mim é boi de piranha.

Os dados brasileiros sobre o perfil dos docentes que atendem alunos com deficiência e sobre a adequabilidade e acessibilidade das escolas são ainda alarmantes. 310

De acordo com Tavares e Ribeiro (2011), o censo escolar 2009 revela o baixo percentual, em todo Brasil, da capacitação adequada dos professores. Do total de professores da educação básica, a proporção dos que cursaram alguma disciplina (pelo menos uma) em cursos de formação ou cursos especializados voltada ao atendimento da educação especial foi de 4%. Dentre os professores que atuam na modalidade de ensino especial, 54% tinham formação especializada para atender os alunos com deficiência. Destaca-se, ainda, o baixíssimo percentual de escolas com infraestrutura adequada. Apenas 3% do total de escolas brasileiras tinham atendimento para a educação especial em 2009. Entre as escolas que oferecem educação especial, 7% eram escolas exclusivas. Das poucas que tinham atendimento para educação especial, 69% tinham salas de aula adaptadas, 42% sanitário adequado e 36% tinham vias acessíveis. Se olharmos mais especificamente para os recursos básicos necessários à deficiência visual, somente 14% das escolas com atendimento especial tinham recursos para Braille, 18% tinham recursos ópticos e não-ópticos, e apenas 7% tinha soroban. Os dados relativos à estrutura e ao equipamento das escolas indicam que a rede escolar não está adequadamente preparada para atender os alunos com deficiência. Em relação ao possível fechamento das escolas especiais, Beatriz acha que a temática da inclusão social é complicada e que não existe uma resposta única. Você não pode generalizar a pessoa, gente, não pode generalizar. Um cego deve ir para o Benjamin Constant ou deve ir para uma escola regular? Depende. Se essa pessoa for para um colégio e não tiver se desenvolvendo por trocentas outras questões, ele não tem que estar ali, sabe? Ele não tem maturidade ainda. Porque encarar a sociedade, todo o preconceito, eu que sou adulta calejada, sofro. Avalia uma criança? Então isso é muito complicado. Aí joga essas crianças em um ensino chamado regular e os próprios profissionais não são capacitados, muitos deles com muito boa vontade, mas sem capacitação. É muito complicado.

A educação especial pode ser o melhor caminho para uns, enquanto a educação inclusiva a melhor opção para outros ou às vezes a única opção, já que em muitos municípios de um país de dimensões continentais não existem escolas especiais. A deficiência não é generalizável, as situações são particulares de acordo com os tipos de deficiências, de acordo com cada criança, o local onde mora, a condição da família, a situação das escolas mais próximas. Um tema que deve ser tratado em toda a sua complexidade e não reduzindo-o a uma única fórmula. Para Mol e Law (2002), há complexidade quando se abre espaço para diferentes tipos de imprevisibilidades e singularidades que não podem ser inferidas de regras gerais ou leis universais que fixam

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um pano de fundo como natural, dado, universal, como medida de todas as coisas. Ao invés de dualismos rígidos, antinomias hierárquicas ou situações de englobamento, a complexidade revela as reversões, as alternâncias, as oscilações. Para Dora os dois modelos têm problemas e vantagens e isso vai ser diferente para cada deficiência e para cada nível escolar. Antes de se preocupar com inclusão ou se as escolas especiais devem ou não acabar, acha que é preciso garantir uma educação emancipatória para pessoas com deficiência. O que eu acho que é mais importante a gente focar quando pensa em educação de pessoas com deficiência é na emancipação, não é a inclusão. O que eu quero dizer é que você pode estar incluído entre aspas e não estar emancipado, como é o caso das crianças daquele filme, „incluir também se aprende‟, que mostra as crianças que estão numa pseudo-inclusão, estão dentro das escolas, mas não estão interagindo com os colegas. É muito triste. Eu saí profundamente angustiada com aquelas crianças. Então se eu tiver que escolher entre ser incluída entre aspas, ou seja, conviver, estar junto, mas não ter autonomia, não ser sujeito do meu processo, entendeu, não ser sujeito da minha vida, não ser eu que determine, ou não estar incluída, mas ser sujeito da minha vida, o quê que eu vou escolher?

Democratização do acesso não significa educar para a emancipação e para a autonomia. Os sérios problemas identificados no cenário educacional comprometem as possibilidades de pessoas com deficiência no desenvolvimento das competências básicas, pessoais e culturais, o que afetará diretamente suas perspectivas no mercado de trabalho. Desde a escola, fere-se o princípio da igualdade de oportunidades. E as políticas sociais, da forma como estão sendo feitas, acabam reforçando sua marginalização, cerceando seu acesso ao conhecimento e diminuindo suas chances de desenvolvimento.

5.2.2 Independência financeira e trabalho

Um dos principais golpes sofridos por Caetano com a perda da visão não foi deixar de enxergar, mas a questão financeira foi a que mais lhe pesou. A visão é algo que até já esqueceu, deixou para trás, é um sentimento que está morto e enterrado e não “chora de saudade”. Mas ter perdido a condição financeira é para ele muito ruim. Antes de ficar cego em um acidente de automóvel, Caetano era motorista de caminhão. Tinha caminhão próprio e trabalhava como autônomo. Não tinha nem o ensino fundamental completo, mas seu rendimento era razoável. Pagava aposentadoria como autônomo e diz que quem faz isso costuma pagar por baixo, o mínimo, vai aumentando e paga por cima

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quando já está um pouco mais velho. Ninguém imagina que pode acontecer um acidente como o dele, que aos 34 anos ficou cego. Se aposentou por invalidez com um salario mínimo e conseguiu ainda o acréscimo de 25% previsto na lei para quem necessita de assistência permanente de outra pessoa93. Hoje é advogado aprovado na OAB, mas ainda não conseguiu um emprego cujo salário justificasse abrir mão da sua aposentadoria. Trabalha eventualmente, sem vínculo empregatício, substituindo um amigo como operador de câmara escura (raio X) em um hospital em Niterói, curso técnico que completou na União dos Cegos94. Para sair de onde está tem que valer a pena, não vai deixar de ganhar R$ 800,00 certos para assinar carteira com R$ 850,00, perder o benefício e correr risco de ser mandado embora. Assim como Caetano, Jair também recebe o benefício e outras pessoas cegas que conheci no IBC. Quando não é aposentadoria por invalidez, pode ser o LOAS 95. A coordenadora do NUCAPE fala sobre a questão ao comentar a estratégia de deficientes visuais massoterapeutas para manter o benefício e trabalhar: Muitos aqui recebem benefícios, pensão ou aposentadoria por invalidez, benefício da prestação continuada, então eles veem (a massoterapia) como um emprego que não precisa formalizar, ele pode ter um cliente, atender particular, participar de eventos, sem assinar carteira. Você vê que até para quem está qualificado os empregos não oferecem muito. O que mais ofereceu aqui (no ano de 2012) pagava R$1.050. Foi um só que foi 1050, o mais alto, porque o resto é... então se o cara ganha 1 salário sem fazer nada ele não quer abandonar para ganhar a mesma coisa trabalhando. O Benefício é uma grande dificuldade nossa. A gente tem emprego de 750 reais a pessoa que recebe beneficio não vai querer. E tenho dificuldade de encontrar vagas em uma posição mais qualificada.

Alguns dados apresentados em estudos do MODEM, quando cruzados com o censo de 2010, sugerem o percentual da população com deficiência que recebe o benefício assistencial. O censo indica que existem cerca de 17,7 milhões de pessoas

93

Artigo 45 da Lei 8.213 de 24 de julho de 1991. A União dos Cegos do Brasil é uma instituição de utilidade pública Federal, Estadual e Municipal, localizada no Encantado, RJ, que oferece cursos de capacitação para deficientes visuais. Mais informações no site: http://uniaodoscegosnobrasil.org.br/missao.htm. Acesso em 02.06.2014. 95 Estudo do MODEM elaborado por Afonso (2011) com base nos boletins estatísticos da previdência social referentes ao ano de 2010, indica que 48% dos benefícios assistenciais em manutenção em dezembro de 2010 foram concedidos a pessoas com deficiência, representando um total de 1.778.345 beneficiários. A fração do dispêndio do MPS com benefícios para pessoas com deficiência, entretanto, não é alta. No ano de 2010 foi de 4,24%. 94

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com deficiência severa no Brasil, uma das condições para a requisição do LOAS 96. O cruzamento com os dados do MPS aponta que cerca de 10% das pessoas com deficiência severa recebia o benefício assistencial em 2010. O dilema entre abrir mão do LOAS para tentar um trabalho de carteira assinada foi bastante discutido nas oficinas de teatro do oprimido que ministramos no IBC e o emprego foi o tema da nossa apresentação de teatro fórum. Um dos receios é ter o benefício cancelado por estar empregado e posteriormente ser mandado embora após o período de experiência, não conseguir reaver o benefício e ficar sem renda. O nível educacional, a qualificação para o trabalho e a persistência de preconceitos, que refletem a situação de exclusão social de pessoas com deficiência, são aspectos que complexificam a questão. A política de inclusão trabalhista de pessoas com deficiência por meio de cotas em empresas 97 e o processo ainda incipiente de fiscalização da aplicação da lei, agregam novos ingredientes a esse cenário. Apesar de mais de 20 anos de existência, até hoje a lei de cotas não é cumprida pela maior parte das empresas. Segundo cálculos baseados na RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) de 2011 divulgados pelo IBDD98, se o percentual das cotas fosse obedecido seriam cerca de 1,3 milhão de profissionais com deficiência empregados. No mesmo ano a RAIS registrou cerca de 325 mil pessoas com deficiência trabalhando com vínculo formal (carteira assinada) em empresas que cumpriam a lei no país, em torno de 25% do total de vagas que pela lei de cotas deveriam ser ocupadas por deficientes 99. O dilema de Caetano – continuar com o benefício ou abrir mão dele por um emprego com carteira assinada - é agravado por dois motivos. Pelo fato da lei não prever a possibilidade de suspensão e sim cancelamento e pelo tipo de emprego que se oferece na reserva de vagas para deficientes em empresas. Caetano é advogado, mas as vagas que costumam abrir são de operador de telemarketing, telefonista, auxiliar de

96

Os principais requisitos para obtenção do LOAS por deficientes é ter uma renda familiar mensal (per capita) menor que ¼ do salário e ser considerado, por avaliação pericial médica e social, incapacitado para a vida independente e para o trabalho. 97 A Lei 8.213, conhecida como lei de cotas para deficientes nas empresas estabelece em seu Artigo 93 que a empresa com 100 ou mais funcionários está obrigada a preencher de dois a cinco por cento dos seus cargos com pessoas com deficiência e reabilitadas, na seguinte proporção do número total de funcionários: até 200, 2%; de 201 a 500, 3%; de 501 a 1.000, 4%; de 1001 e acima, 5%. A lei data de 24 de julho de 1991 e o artigo foi regulamentado em 1999 por meio do Decreto nº 3.298. 98 A matéria que divulga os dados pode ser acessada em http://www.ibdd.org.br/noticias/noticias-notisetembro%2020%20anos%20lei%20de%20cotas.asp. Acesso em 31.05.2014. 99 Ver em anexo o ranking dos estados para o cumprimento da lei de cotas. O Rio de Janeiro é o 22 o colocado, a estimativa é de que apenas 7% das empresas cariocas haviam cumprido as cotas em 2010.

314

escritório, empacotador. Todas ocupações que exigem no máximo ensino fundamental completo, com salário em torno do mínimo e número de horas semanais elevado, 30 ou 40 horas. Para ele não compensa. Segundo o censo 2010, 6% das pessoas cegas de 10 anos ou mais ocupadas não tinham rendimento e 28% tinham rendimento de até um salário mínimo. Um “estudo profissiográfico” realizado pelo IBC teve como objetivo levantar um conjunto de profissões que poderiam ser exercidas por pessoas cegas e de visão subnormal, indicando os pré-requisitos e atribuições das mesmas, buscando auxiliar o encaminhamento profissional da pessoa com deficiência visual ao mercado de trabalho. O estudo data de 1996 e até hoje é divulgado no site do Instituto100. Das 440 profissões levantadas, de diversos níveis de escolaridade e qualificações, foram indicadas 95 ocupações compatíveis com o desempenho de pessoas com deficiência visual, sendo que apenas 31 foram consideradas compatíveis com o desempenho de pessoas cegas (ver a lista completa no anexo). Analisando a lista apresentada no estudo alguns aspectos se destacam. São 15 ocupações de baixa escolaridade (ensino fundamental incompleto), 4 de ensino médio completo e 12 de curso superior, completo ou incompleto. Algumas ocupações selecionadas para pessoas cegas são também comuns nos cursos profissionalizantes oferecidos em instituições para deficientes visuais: operador de telemarketing; afiador de piano; técnico de câmara escura101; tradutor/intérprete; massoterapeuta. No IBC, os cursos profissionalizantes oferecidos em 2012 em parceria com o SENAC foram rotina de escritório, customização, arranjos florais, ascensorista e operador de telemarketing. Em outras instituições aparecem também os cursos de telefonia, áudio locução, tapeçaria,

bijuteria,

empalhamento,

empacotamento,

fabricação

de

vassouras

(Sociedade de Assistência aos Cegos), jardinagem, estoque e armazenamento, informática, operador de elevador (União dos Cegos do Brasil em parceria com SENAC). Mais recentemente surge o curso de avaliação olfativa (Fundação Dorina). Uma reportagem sobre a situação de deficientes visuais no mercado de trabalho da

100

Pode ser encontrado em: http://www.ibc.gov.br/?itemid=393#more. Acesso em 02.06.2014. Também foi publicado na revista do IBC por Nabais e colegas (2000). 101 No Rio de Janeiro, a Lei Estadual Nº 4239, de 16 de dezembro de 2003, “obriga os estabelecimentos do Estado do Rio de Janeiro que operam com raio X destinarem 50% de suas vagas de operador de câmara escura para deficientes visuais”.

315

revista Sentidos102, que analisaremos ao longo da discussão, diz o seguinte sobre as vagas disponìveis para pessoas cegas: “Além de escassas, as vagas de trabalho oferecidas ao cego são quase sempre as mesmas, principalmente para quem não tem nível universitário. É comum ver deficientes visuais trabalhando como massagista, telefonista, operador de telemarketing e auxiliar de radiologia”. Entende-se que a intenção do estudo foi a de auxiliar na colocação profissional de deficientes visuais no mercado de trabalho, procurando combater falsas crenças dos empregadores de que a deficiência afeta todas as funções do indivíduo. Mas, divulgar no site da maior instituição pública voltada para a deficiência visual no país uma lista com opções tão limitadas tem também o efeito inverso de alimentar preconceitos e contribuir para sua exclusão. Difícil entender a opção por restringir profissões como economista ou corretor de imóveis a pessoas de visão subnormal, mas não cegos. Outras profissões são deliberadamente excluídas, tanto para cegos quanto para pessoas com visão subnormal sem nenhum esclarecimento, como filósofo, historiador, físico, biólogo, médico, juiz. Certas profissões são excluídas apesar de existirem pessoas cegas publicamente reconhecidas que a desempenham ou desempenharam - fotógrafo (Evgen Bavcar), escritor (Jorge Luis Borges), poeta (Homero), desembargador (Ricardo Tadeu da Fonseca103), para mencionar apenas algumas. Pode-se notar pelos tipos de cursos de capacitação oferecidos e pelas profissões selecionadas a ideia de uma especialização profissional pelos sentidos não-visuais. Ocupações de cegos seriam aquelas em que os sentidos do tato, da audição ou do olfato desempenham papel fundamental ou predominante nas habilidades necessárias para seu desempenho. Sob uma capa “moderna”, reproduz-se antigos preconceitos em que a pessoa cega é percebida somente como alguém que não enxerga. Circunscreve-se a pessoa a sua deficiência limitando seu espaço de atuação. As ocupações privilegiadas pelos cursos profissionalizantes revelam a centralidade que a limitação associada à cegueira adquire nas decisões a respeito do seu lugar social no mercado de trabalho. Mostra ainda o quanto tais decisões são tomadas por profissionais, médicos ou não, autoridades que irão decidir a respeito de suas capacidades ou limitações. Por outro lado, há um gritante silêncio das próprias pessoas cegas.

102

Edição 30, N 757, abril de 2008. Ricardo Tadeu da Fonseca foi também o primeiro juiz cego do Brasil. Sua nomeação ao cargo de desembargador, foi divulgada em reportagem de diversos canais de notícias em 17 de setembro de 2009. 103

316

Outro ponto mencionado por Caetano se refere ao salário oferecido nas vagas que as empresas disponibilizam para deficientes visuais. Pelos dados do censo 2010 sobre trabalho e rendimento analisados por Tavares (2012), a média de salário de pessoas com deficiência ocupadas no setor formal (com carteira assinada) é de R$ 967,00, enquanto de pessoas sem deficiência essa média é de R$ 1.318,00. Ao comparar indivíduos com as mesmas características produtivas e que atuam em postos de trabalho semelhantes (mesmo setor de atividade e mesma posição na ocupação), há um diferencial salarial da ordem de 22% entre pessoas sem deficiência (R$ 1.259) e pessoas com deficiência (R$ 982). Uma pessoa cega que recebe o LOAS com o acréscimo de 25% ganharia em junho de 2014 em torno de R$ 905,00 mensais se for salário federal. Se for morador do Rio de Janeiro, em torno de R$ 1.000,00. O depoimento de uma pessoa com deficiência na reportagem da Sentidos se aproxima ao de Caetano: “as empresas só oferecem vagas de auxiliar administrativo para as pessoas com deficiência, achando que os deficientes não são qualificados. Eu sou formada em Ciências Contábeis, com MBA em Logística e, quando procuro emprego, o encarregado diz que meu currículo é ótimo, mas que, aquela vaga, não é para deficiente”. O argumento da desqualificação tem sido usado pelas empresas como desculpa para não cumprir as cotas. Apesar das disparidades na oferta educacional que, como vimos, ainda está longe de ser equiparada, esse é um argumento que não se sustenta. O instituto IBDD, que se dedica à inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, divulgou em relatório104 de 2012 que possuía em seu banco de 48.693 currículos, 30% de pessoas com deficiência com ensino superior (sendo 4% de pós-graduados). No mesmo ano, das 346 vagas fechadas, 82% exigia como escolaridade ensino médio, 6% ensino fundamental e 12% ensino superior. Essa dificuldade é também encontrada pela coordenadora do NUCAPE, ao tentar inserir deficientes visuais no mercado de trabalho:

A minha preocupação é que ainda a maioria dos empregadores querem empregar assim... eu até tive uma resposta meio rude de uma empresa que trabalha com massas, que a responsável pelo RH falou assim „eu quero deficiente para trabalhar na produção, que aí ele só embala e corta, que são atividades repetitivas‟. Então a maioria das vagas que surgem são subempregos né, e a gente conversa com a empresa, essa daí não teve nem tentativa, eu falei „eu vou aí, vejo as suas atividades, falo sobre os candidatos que nós temos‟. A gente tem candidatos com

104

Disponível em: http://www.ibdd.org.br/arquivos/relatorios/relatorio%202012%20-13.pdf. Acesso em 01.06.2014.

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nível superior, com pós-graduação e a pessoa que tem uma qualificação não vai querer trabalhar numa produção para ganhar 700 reais, ela se capacitou para ganhar algo melhor, né? Tem ainda esse preconceito. Porque aì „ah não, só tenho vagas para operador, porque é uma atividade fácil‟, já diz assim é uma atividade fácil, são coisas repetitivas, mecânicas.

O estudo de Tavares (2012) que analisa os dados do censo 2010 confirma a tendência das empresas de alocar deficientes em subempregos ao apontar que a maior qualificação educacional das pessoas com deficiência não é reconhecida no mercado de trabalho porque não se traduz em aumento de salário. Isso pode ser notado pelos diferenciais dos rendimentos do trabalho segundo a escolaridade, comparando pessoas sem e com deficiência, dados que apresento na tabela a seguir.

Média de salários (pessoas sem x com deficiência, por escolaridade)

2.076

1.428 1.187 883 927

927

analfabeto ou ensino ensino fundamental fundamental completo incompleto pessoas com deficiência

945

ensino médio completo

980

ensino superior

pessoas sem deficiência

Fonte: dados do censo IBGE 2010 em Tavares, 2012

No grupo de pessoas com baixa escolaridade, os rendimentos do trabalho das pessoas sem e com deficiência diferem pouco (R$927 e R$883, respectivamente). As pessoas sem deficiência com ensino fundamental completo recebem 28% a mais do que as pessoas sem deficiência com baixa escolaridade (R$ 1.187). Entre as pessoas com deficiência, o diferencial é de apenas 5% (R$ 927). As pessoas sem deficiência que possuem o ensino médio completo auferem rendimentos do trabalho 20% maiores do que aqueles que cursaram até o ensino fundamental (R$1.428). Já entre pessoas com deficiência, essa diferença salarial é de apenas 2% (R$ 948). Finalmente, os

318

rendimentos do trabalho associados ao ensino superior são 45% mais elevados para pessoas sem deficiência em relação a quem tem o ensino médio completo (R$ 2.076). Entre pessoas com deficiência esse diferencial é apenas de 4% (R$ 980). Isso significa que entre pessoas com deficiência a maior escolaridade não se reflete em ganhos de rendimentos do trabalho substanciais. As duas hipóteses levantadas no estudo para explicar o fenômeno são a existência de discriminação contra pessoas com deficiência no mercado de trabalho e a possibilidade de que que pessoas com deficiência estejam ocupando postos de trabalho para os quais são sobrequalificadas, ou seja, são oferecidos os piores empregos para pessoas com deficiência com capital humano elevado. Pelos dados apresentados, podemos também deduzir que pessoas com deficiência com ensino superior completo têm um rendimento apenas 5,4% superior ao de pessoas sem deficiência que são analfabetas ou têm o ensino fundamental incompleto. Foi o IBDD que Beatriz foi procurar quando estava buscando trabalho. Foram mais de 2 anos até conseguir uma vaga. Respondeu a todos os chamados, ia para as entrevistas, mas quando viam que ela era cega, ficavam desconfortáveis e nunca retornavam. Acredita que só conseguiu o emprego que tem hoje porque um superintendente da empresa assistiu a uma palestra do IBDD e ele tinha uma vontade específica de trabalhar com uma pessoa com deficiência sensorial. Se não tivesse dado a sorte de encontrar uma pessoa que para ela é uma exceção porque tinha a cabeça muito aberta, acha que poderia estar até hoje tentando. A dificuldade não é sofrida apenas por Beatriz. A mesma matéria da revista Sentidos denuncia as poucas oportunidades de trabalho oferecidas para cegos. Na reportagem, o chefe de unidade do Centro de Treinamento e Aperfeiçoamento da Associação para Valorização e Promoção de Excepcionais (AVAPE) afirma que das 246 pessoas que a entidade inseriu no mercado no ano de 2007, apenas 2% eram deficientes visuais. O relatório do IBDD disponibiliza dados mais detalhados do seu banco de currículos e dos profissionais inseridos no mercado (ver gráficos no anexo). Os gráficos mostram o percentual de currículos por tipo de deficiência e o percentual de profissionais inseridos pelo instituto no mercado de trabalho. As pessoas cegas estão ausentes do segundo, representando menos de 1% das pessoas inseridas no mercado de trabalho pelo IBDD em 2012. A dificuldade relatada por Beatriz, por Caetano, pela profissional do NUCAPE e perceptível nos dados do IBDD, pode ainda ser percebida se analisarmos os dados sobre deficiência do censo 2010 do IBGE. Ainda 319

não foram divulgados todos os dados com o recorte entre deficiência severa, deficiência total e aqueles que declararam ter alguma dificuldade. Esse é um recorte fundamental por duas razões. Primeiro porque são os deficientes severos e totais que serão alvos de políticas públicas como a lei de cotas, já que são eles que sofrem de forma mais drástica os efeitos da exclusão social. Segundo porque a maior parte da população que se declarou deficiente se encontra no grupo de pessoas que disseram ter alguma dificuldade para enxergar mesmo com o uso de óculos ou lente, contabilizando 15,1% da população brasileira. Sem desconsiderar a importância de se pensar que ¼ da população brasileira possui algum tipo de dificuldade que, na relação com o ambiente e com a sociedade, se torna incapacitante, ou seja, a deficiência não é uma situação específica de uma minoria; é imprescindível também avaliar o grau de exclusão enfrentado por aquelas pessoas que estão nas margens da margem. Ao analisar os dados do censo sobre emprego e deficiência temos que 77,6% dos deficientes ocupados são pessoas que apresentam alguma dificuldade, enquanto 22,4% são pessoas com deficiência severa. Quando consideramos as pessoas com deficiência com 10 anos ou mais ocupadas em 2010, temos um total de 20.365.963 ou 44%. O número já é bem inferior à proporção de pessoas sem deficiência ocupadas nesse mesmo ano, que era de 63%. Mas, se considerarmos apenas os deficientes severos e totais, o percentual cai ainda mais. O grupo de deficientes severos e totais com 10 anos ou mais é composto por 15.172.573 pessoas. Desse total, apenas 20,8% (3.150.685) estava ocupado na semana de referência. O estudo de Tavares (2012) também indica a marginalização dos chamados deficientes totais. Se, entre as pessoas sem deficiência a probabilidade de participar do mercado de trabalho (taxa de participação) é de 68,8%, entre pessoas com deficiência essa taxa é de 53,6%. Considerando os deficientes severos, a taxa de participação no mercado de trabalho é bastante parecida com o total de pessoas com deficiência, 53,3%. Mas quando se considera pessoas com pelo menos uma deficiência total a probabilidade de participar do mercado de trabalho é de apenas 30,8%. Hoje em dia Beatriz trabalha em igualdade de condições com os outros funcionários no portal da empresa na área de compras, mas para chegar até aí foi um longo percurso. Quando entrou o site da empresa era completamente inacessível, foi a sua chegada e insistência que suscitou a mudança. Não só no site, mas também na correspondência que a empresa envia aos clientes, que agora tem a opção de ser em Braille e ainda no relacionamento com as pessoas, que no começo era muito difícil, mas 320

aos poucos também conseguiu transformar. Ela diz o seguinte sobre suas relações no ambiente de trabalho: O que acontece, Olivia, tem muitos cegos que entram em um local de trabalho e não seguram a onda, pedem para sair. Porque eu vou te dizer, não é brinquedo não! Eu hoje tenho a posição que eu tenho na minha empresa, mas eu falo para eles lá, quantas vezes eu saí e entrei no banheiro para chorar sozinha. Você está entendendo? Eu falo para eles „aturar vocês não é brinquedo não‟, eles ficam me olhando... „vocês são terrìveis, vocês são cruéis, vocês não pensam no que vocês falam...‟. Hoje eles ouvem calados, mas eu segurei essa onda, outros não seguram, a maioria não segura. (...) Os cegos não se submetem eles dizem „eu não preciso deles, que se foda, eu não sou obrigado a passar por isso‟. De fato não é. Mas eles não têm noção do ganho que vem depois. Do quanto se colabora não só para a vida dele, mas para a cultura. É a visão coletiva, é você abrir caminho para quem vem depois. Eu quero que eles entendam que quem está vindo atrás não tem que passar por isso que eu passei, sabe? Meu Deus! Tento ensinar a essas pessoas. Lá, eu venho nesse trabalho de 5 anos já, eu olho assim, sinceramente, com um orgulho absurdo. Porque eu vejo aquelas pessoas que cresceram tanto enquanto pessoas. Criaturas assim super patricinhas, super mauricinhos, super não sei o que lá, que hoje olham as coisas completamente diferentes depois de um monte de papos, um monte de coisas, um monte de convivências, um monte de oportunidades. E principalmente receber feedbacks fantásticos. Tem pessoas que falam para mim „Beatriz, você mudou a minha vida enquanto pessoa, não tem nada ver o fato de você ser cega, não tem nada a ver isso, você, pessoa, mudou a minha vida‟. Hoje dentro da minha empresa eles não me olham como cega. Sabe? E isso fui eu que fiz. E tem 95% ou talvez mais dos cegos que são concursados, trabalham em lugares confortáveis, que ninguém lida com eles, eles não crescem profissionalmente nem estão interessados nisso, eles só querem ganhar o dinheiro para tomar a cerveja deles no final de semana e acabou. Só namoram entre si, casam entre si, eu já falei para eles, vocês vão criar uma cidade do interior, que todo mundo é parente de todo mundo.

Beatriz acredita que o principal motivo das empresas não quererem contratar pessoas cegas é por não conseguirem entender como é que uma pessoa que não enxerga desempenha funções. O desconhecimento faz com que acreditem que não é possível. A declaração do presidente da União de Cegos na revista Sentidos, que à época da reportagem tinha 36 anos de cegueira, parece concordar com ela: “As pessoas fecham os olhos e percebem que não conseguem dar um passo à sua frente. Logo imaginam que o cego, por não enxergar, é incapaz de realizar qualquer atividade”. O desconhecimento da forma como vivem as pessoas que não enxergam, somado à projeção imaginativa das próprias limitações à existência do outro, contribui para uma situação de ainda maior marginalização de pessoas cegas no mercado de trabalho e no convívio social. Beatriz acha que o ideal seria que a lei de cotas não precisasse existir, mas que hoje, se ela não existisse, o empregador não contrataria. É todo um histórico de exclusão social e preconceito que sustenta a mentalidade excludente de quem contrata.

321

Teria que fazer um trabalho de esclarecimento social, mas isso dá resultado a médio, longo prazo, cultura a gente não muda assim. Então tem esse lado que... enfim, sabe? Ok, tem que ser. Mas isso é uma coisa que realmente lá pra frente seria bom uma sociedade realmente séria, madura, olhar e dizer olha, hoje a gente não precisa mais disso. Um dia a gente realmente vai ter que parar. Porque acontece as duas coisas, não só o empregador emprega os deficientes apenas para cumprir a lei como as próprias pessoas que possuem qualquer coisa se beneficiam da lei e não tem constrangimento nenhum com isso. Tem os dois lados.

Uma das estratégias para lidar com o desemprego é procurar algum tipo de trabalho na informalidade. A TO de AVD diz que tem pessoas que ficam cegas que nem sempre têm o desejo de voltar a trabalhar em um emprego formal e outras que se desiludem depois de muitas tentativas frustradas. Fazem oficinas de cestaria e jornal, de cerâmica ou bijuteria, aprendem a fazer artesanato e vendem para integrar a renda. Muitos recebem o LOAS e complementam dessa forma 105. Pedro critica a tática de pessoas cegas que conhece de fazerem “venda por misericórdia”, usando a representação do “coitado” para conseguir vender. Ele acha que as pessoas têm que oferecer seus trabalhos porque têm talento e não através da cegueira. Esse seria um exemplo de ganho secundário do estigma descrito por Goffman (1975), em que as próprias pessoas cegas fazem uso de representações culturais sobre a cegueira, especialmente nos casos em que ela desperta a piedade ou a caridade. O maior ou menor grau de preconceito social sobre as capacidades das pessoas com deficiência acaba gerando, a partir da lei de cotas, uma hierarquização das desigualdades. Beatriz alude a essa espécie de classificação informal que acaba sendo feita pelas empresas: O mercado de trabalho para deficiente abrange muito mais o cadeirante, a pessoa amputada, que usa muleta e tal, porque na cabeça deles essa pessoa atrás de um balcão ou de uma mesa é normal. O desconhecimento faz com que eles pensem que para empregar um cego eles vão ter um trabalho muito grande em termos de... não só de investimento, mas também eles têm um certo cuidado com cego, eles acham que a gente quebra, entendeu? Que a gente vai cair, que a gente não vai acertar...

O parâmetro que mede a maior ou menor abertura de vagas para uma determinada deficiência seria sua aproximação ou afastamento de uma ideia de

105

Com base nos dados divulgados nos estudos do MODEM por Tavares (2012), sugiro que a somatória da renda de benefícios assistenciais ou aposentadoria por invalidez com a renda obtida no mercado informal pode ser um dos motivos para, ao contrario do que ocorre com a população sem deficiência, na população com deficiência os trabalhadores formais receberem rendimentos do trabalho menores (R$967) do que os trabalhadores informais (R$997).

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normalidade. A hierarquização da exclusão também está estampada nos anúncios de oferta de vagas de trabalho pelas empresas. Em uma busca simples no site deficienteonline106 de oferta de empregos para deficientes visuais no estado do Rio de Janeiro, encontrei 10 vagas. As ocupações eram: auxiliar administrativo, auxiliar de escritório, almoxarife, administrador, monitor de qualidade, auxiliar de vendas, repositor. Ensino médio foi a escolaridade exigida para todas as vagas. Nove estavam na faixa salarial de R$ 700 a R$ 1.000 e uma na faixa de R$ 1.300 a R$ 1.800. Todas especificam os tipos de deficiência e os graus de severidade admitidos, com base na CID107. No caso da deficiência visual, uma única vaga aceitava baixa visão severa, as outras eram para baixa visão profunda ou visão monocular. Nenhuma vaga oferecida aceitava candidatos cegos. Apresento um exemplo típico de uma dessas listas das deficiências toleradas: Surdez moderada - 41 - 55 db Amputação Hemiparesia Hemiplegia Membros com deformidade congênita ou adquirida Monoparesia Monoplegia Nanismo Ostomia Baixa visão profunda Visão Monocular

Dois anúncios publicados em outro site de empregos para pessoas com deficiência108 também exemplificam essa divisão entre deficiências toleradas e deficiências excluídas do mercado de trabalho. RJ – AUX. SERVICOS GERAIS (03) SOMENTE PNE Vaga publicada em 7 de maio de 2014 SRS. CANDIDATOS, VAGA DISPONIVEL SOMENTE P/PESSOAS C/DEFICIENCIA FISICA LEVE e auditiva ou visual parcial, não pode ser cadeirante nem mutilado (SERA NECESSARIO APRESENTAR LAUDO C/CODIGO DA CID). FAVOR INFORMAR NO CURRICULO A DEFICIENCIA. CURRICULOS S/ESTA INFORMACAO SERAO DELETADOS!!! Assistente de SAC – PCD DEFICIÊNCIA LEVE OU MODERADA Hequilibrio Recursos Humanos - São Paulo - SP - R$ 1.158 por mês Descrição

106

http://www.deficienteonline.com.br/. A busca foi feita em 02.06.2014. Classificação Internacional de Doenças da OMS. 108 http://www.vagaspne.com.br/. Acesso em 02.06.2014. 107

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* Área e especialização profissional: Telemarketing - SAC Nível hierárquico: Assistente Número de vagas: 5 Local de trabalho: Barueri, SP Regime de contratação de tipo Efetivo - CLT Jornada Período Integral ÁREA DE ATENDIMENTO EM GERAL (PESSOAL OU TELEFÔNICO). Exigências * Escolaridade Mínima: Ensino Médio (2º Grau) Vaga habilitada para portador de deficiência: * Física: Membros com deformidades congênitas ou adquiridas, Amputação ou ausência de membro * Visual: Visão Subnormal ou Baixa Visão.

Leve, parcial ou moderada (grifos meu nos anúncios) são as palavras utilizadas pelas empresas para excluir aqueles que, dentre os deficientes severos para quem a lei de cotas se dirige, possuem alguma deficiência total. A deficiência “leve” não está descrita em nenhum documento legal, mas é a que as empresas se dispõem a empregar. Uma forma nada sutil de expressar que “quanto menos deficiente, melhor”. Na deficiência visual isso significa a introdução de novas diferenças, gerando uma espécie de divisão interna de poder – entre os deficientes visuais, quanto mais visão, mais possibilidade de obter emprego e ser tratado como se fosse normal; quanto mais cego, mais excluído, mais subalterno. Tal categorização terá reverberações no processo de aceitação da cegueira. Segundo a coordenadora do NUCAPE: A maior parte (das empresas) quer baixa visão. Chegou num limite que a gente não tem mais baixa visão. É o que está acontecendo agora, a gente tem 10 vagas para baixa visão e a gente não tem mais. Eu avisei que eles já estão trabalhando, os que estavam interessados em trabalhar. É falta de conhecimento, por isso que a gente sempre está solícito falando que se quiser a gente vai na empresa, vê as funções que eles oferecem, a gente dá palestra.

Refletindo sobre a reação americana aos ataques de 11 de setembro de 2001, especialmente as imagens divulgadas e as imagens oclusas, Butler (2011) sugere que esquemas normativos de inteligibilidade estabelecem aquilo que será e não será humano, o que será uma vida habitável e o que será uma morte passível de ser lamentada. A política - e o poder - funcionam em parte por meio da regulação daquilo que pode aparecer, daquilo que pode ser ouvido. Uma das formas de operação desses esquemas normativos é produzir ideais do humano que diferenciam entre aqueles que são mais e os que são menos humanos. A crítica de Bulter (1999) à política de identidade feminista pode ser resgatada para pensarmos uma política representacional de/para pessoas com deficiência cuja base é a universalidade e a presumível unidade de

324

seu sujeito. Quando considerada politicamente, essa identidade está baseada na exclusão de deficientes “totais”, privilegiando as relações normalizantes. Uma política de cotas de trabalho para deficientes, quando não é acompanhada de uma mudança de mentalidade em relação ao que significa ser humano, tem como um de seus efeitos uma nova repartição entre vidas que contam e vidas que não contam, aqueles que aparecem e aqueles que desaparecem nas estatísticas. Empurra-se para um pouco mais além a fronteira do normal e do anormal, incluindo somente aqueles que, ainda que não pertençam inteiramente à normalidade, interfiram o mínimo, ajam como se fossem, se passem como tais. Cria-se um conjunto de exclusões, de apagamentos radicais que vêm limitar o “normal” como seu exterior constitutivo, assombrando as fronteiras com a persistente possibilidade de sua perturbação e rearticulação. Como indica Butler (1999), isso não significa argumentar que uma política para deficientes deveria ser abandonada, mas nos leva a reconhecer os limites necessários de uma política da identidade.

5.3 A diferença da cegueira nas relações de interação

Pretendo me voltar agora para a diferença da cegueira nas relações sociais de interação. As narrativas culturais constroem a cegueira como uma unidade fixa, estável, que se sobrepõe a todas as outras diferenças. Entendendo que as representações culturais afetam a forma como pessoas cegas podem representar a si próprias, analisar a cegueira a partir de situações de interação é tentar identificar processos e práticas que confirmam ou perturbam o caráter relativamente estabelecido da cegueira (Hall, 2014). Winance (2007) enfatiza que o alinhamento do corpo deficiente com a norma, principal estratégia para se lidar com a diferença no modelo médico, só é possível para uma pessoa com deficiência por meio da construção de um “como se”, uma vez que o afastamento da norma social é consequência de uma lesão que não pode ser totalmente removida. No modelo de normalização a diferença é construída como uma falta, uma perda ou uma ausência. Por não corresponder a norma é que pessoas com deficiência seriam estigmatizadas nas relações sociais de interação. A compreensão das deficiências físicas e da cegueira pela leitura do estigma foi cuidadosamente desenvolvida por Goffman (1975). A noção de estigma é apresentada como um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo. O foco de análise de Goffman são as interações sociais. O estigma surge como resultado de uma interação 325

entre dois ou mais indivíduos, onde um deles possui um atributo depreciativo, uma não correspondência entre aquilo que se espera que seja (identidade social virtual) e aquilo que ele é (identidade social real). O autor coloca que, por definição, acredita-se que alguém com um estigma não seja completamente humano. Goffman se refere à cegueira como um estigma que marca a identidade social daqueles que a possuem. Sua deformidade física seria, numa situação social mista, um atributo diferente do que se havia previsto, que se impõe à atenção, desviando o foco de outros atributos seus e podendo gerar um efeito de afastamento nos outros que com ele se relacionam. O cego seria, na tipificação que propõe, um indivíduo desacreditado. O autor identifica diversas respostas a condição social de estigmatizado, desde a aceitação, tentativa de correção e ganhos secundários até a vitimização ou a afirmação das limitações dos normais109. As expectativas dos contatos mistos também provocariam diferentes reações para o indivíduo estigmatizado: evitação do contato, insegurança sobre a forma como os normais o receberão, não saber o que os outros realmente estão pensando dele, exposição e invasão de privacidade, construção de uma “capa” defensiva, agressividade, em suma, as situações sociais mistas provocariam para o indivíduo visivelmente estigmatizado uma interação angustiada. Os normais, por sua vez, tenderiam a tratar o indivíduo estigmatizado como se fosse alguém melhor do que acham que seja, alguém pior do que acham que provavelmente é ou ainda agiriam como se fosse uma não pessoa. A contribuição de Goffman para a compreensão da situação social das pessoas com deficiência é inquestionável. Quando comparada aos relatos das experiências cotidianas de interação vividas por pessoas com deficiência visual, a atualização de suas reflexões impressiona. Mas, por outro lado, a forma como o autor coloca a relação social entre atributo e estereótipo, especialmente no caso de indivíduos desacreditados, dá pouca margem a novas formas de se relacionar com características distintivas que não seja pela via da estigmatização. Isso porque o modelo de Goffman parte do pressuposto de que as expectativas são baseadas em uma norma social que é fixa, externa aos indivíduos e que antecede as interações. A única possibilidade que coloca de que o atributo distintivo de um indivíduo não se transforme em estigma na interação é

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Goffman (1975), ao definir o conceito de estigma, identifica três tipos diferentes - as deformidades físicas, as culpas de caráter individual e os estigmas tribais - definindo-os, em uma relação social, como características que diferem da que se havia previsto. Aqueles que não se afastam das expectativas particulares em questão são chamados pelo autor de normais.

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quando tal atributo passa despercebido. A intrusibilidade de um estigma mediria até que ponto ele interfere com o fluxo da interação. Goffman traz como exemplo a situação de um cadeirante cujo defeito poderia ser relativamente ignorado durante uma reunião de trabalho que acontece em torno de uma mesa. A compreensão da deficiência não como divergência de uma norma, mas como resultado da interação entre fatores individuais, físicos e sociais, abre possibilidade para outra forma de entender os processos de normatização, não mais por meio de uma comparação com uma norma predefinida, mas pela criação de novas normas a partir mesmo da interação. O modelo alternativo é explicitado por Winance (2007), que propõe explorar justamente as possibilidades do passar despercebido, indicado por Goffman. Não perceber o atributo não significa que ele não seja notado, mas sim que esse atributo não interfere negativamente no fluxo da interação. Não se trata de negar a existência das expectativas sociais nas relações, mas de reconhecer a possibilidade das diferenças serem vividas como diferenças e não como faltas ou estigmas. O pressuposto é de que em cada encontro entre dois indivíduos existe um trabalho sendo feito para reinventar as normas e regras para a ação. A autora dá um exemplo, que desdobra em duas possibilidades de interação, ajudando a esclarecer sua ideia. Imagina-se um banqueiro que tenha apenas o braço esquerdo. Quando ele encontra um cliente pela primeira vez, esse último, a fim de apertar a mão do banqueiro, estende automaticamente sua mão direita. O banqueiro pode ou não oferecer a sua mão esquerda, mas independente da solução encontrada, cria-se um desconforto na interação. O gesto do cliente se torna inconveniente e traz a atenção para a lesão do banqueiro. O cliente, que pode até então não ter notado nada, repara na lesão do banqueiro e nesse momento a diferença é percebida como um estigma. Em uma segunda situação, um cliente regular que já sabe da diferença do banqueiro oferece sua mão esquerda, eles se cumprimentam e a interação segue seu curso de forma normal. Com esse exemplo, Winance sugere que há casos em que a diferença se integra à interação como uma diferença, não como deficiência ou estigma. Os atores percebem a interação como normal porque seus encontros anteriores os permitiram criar uma norma específica. Dada as características físicas de um deles, a regra costumeira não pode ser estritamente aplicada e deve ser modificada para se acomodar a essa diferença. Modificação que provavelmente não tem o mesmo significado para os dois atores. 327

Muitos relatos que ouvi de pessoas cegas sobre situações de interação com desconhecidos são histórias que falam da experiência e do sofrimento de uma identidade social estigmatizada. Ser visto como coitado, alguém digno de pena, ouvir represálias por ousar sair à rua sozinho, ser posto de lado, sentado em uma cadeira em uma festa, ser invadido por perguntas e curiosidades mórbidas sobre sua condição, ou ainda ser simplesmente ignorado, como se não existisse. A atualidade do trabalho de Goffman ainda é, infelizmente, chocante. Trajetórias de estigmatização e exclusão social que passam não só por relações pontuais com desconhecidos, mas muitas vezes marcam esferas mais íntimas de amizade, escola, trabalho, relações pessoais e familiares. Todo um histórico de opressão social constantemente reatualizado. Não à toa escolhemos desenvolver no IBC uma oficina de teatro com a metodologia do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Mas também encontrei nos depoimentos dos pesquisados histórias que falam de situações outras, em que a diferença não se transforma em estigma. Encontros ou relações que não carregam o peso e o sofrimento do preconceito, apontando para novas maneiras de se lidar com as particularidades e especificidades do outro na interação.

5.3.1 Visibilidade da cegueira Um amigo de Camila, cego, comentou certa vez: “você já reparou, onde chega o cego vira atração?”. E ela concordou dizendo: “cara, não adianta, é inevitável, todo mundo te olha, aí tem pessoas que querem saber...”. O aspecto da visibilidade é um dos ressaltados por Goffman (1975) na relação que transforma um atributo diferenciado em estigma. Ser necessariamente visto em todos os lugares que frequenta. Não são apenas olhares que notam a presença de alguém novo que chega a um ambiente, mas um olhar que escrutina. Olhar fixo, olhar curioso, olhar de espanto, olhar aterrorizado, olhar sedutor. Notar, reparar, ver, observar. Goffman (1966) aponta que uma das principais provações para os deficientes físicos nos espaços públicos é que eles serão abertamente olhados (o autor usa a palavra stare), tendo sua privacidade invadida ao mesmo tempo em que a invasão também expõe seus atributos indesejados. Garland-Thomson (2009) analisa especialmente o que poderìamos chamar “olhar fixamente”, “encarar” (stare), que está relacionado a visibilidade do estigma, esse virar atração ou ser necessariamente visto. O olhar fixo é a materialização em corpos humanos de uma busca por narrativas que imponham 328

coerência naquilo que em nossa experiência de mundo parece ser aleatório. Um olhar que testemunha a interrupção de nossas reconfortantes narrativas - variavelmente chamadas de verdade, conhecimento, certeza, significado. Camila percebe quando os outros se entreolham e sente o conteúdo desse olhar. É um olhar que carrega significados distintos, tem aqueles que olham e veem a sua cegueira como uma limitação. Outros que sentem pena – olhar que vê a cegueira como desgraça ou infortúnio e o cego como pobre coitado. Entre os dois olhares também tem os que olham com curiosidade. Lembrou de duas situações. Na primeira ela entra no trem com um amigo, também cego, que vinha atrás. O guarda do trem os conduz e diz que mais a frente há um banco vazio. Ela se posiciona para sentar e escuta uma senhora falar alto “nossa, ela é cega!”. O amigo vinha atrás, a senhora ainda não tinha visto a bengala dele, mas quando viu, comenta ainda mais alto, “meu Deus do céu! ele é cego também...”. O vagão inteiro calou e ficou olhando para eles. A segunda situação é quando vai a um barzinho novo. As pessoas estão conversando alguma coisa e quando ela chega fica aquele silêncio. Sente que o barzinho muda, vem o silêncio e depois os comentários e ela percebe que está sendo observada. Beatriz diz que não precisa ver para captar esse olhar, porque as pessoas exalam o que sentem. Não é uma questão verbal ou comportamental, é algo que ela sente das pessoas. Se chega a um novo contexto dificilmente se sentirá integrada. Em qualquer lugar que ela chega precisa criar o ambiente, o que significa ensinamento e paciência.

Você passa por trocentas situações 7 dias por semana, 30 dias por mês, 365 dias por ano. Todo dia você está submetido a trocentas situações, porque para mim, que saio de manhã e só volto de noite, eu passo por trocentas situações todos os dias. Fica muito cansativo. Você não consegue lidar com a coisa da mesma maneira. Nem todo dia você está com o mesmo humor, tem dia que você está de TPM, outro dia que você não está tão a fim de interagir, outro que você não está tão simpática... enfim, gente. Sabe? E a gente „tem que...‟, eu não tenho que nada. É muito complicado. Às vezes eu me cobro „coitada da pessoa, eu sei que ela não fez por mal‟. Eu, para não ser injusta estou optando por me calar. Eu fico calada, não falo mais. A pessoa começa a falar um monte de coisa, eu fico quieta. É cansativo demais.

Beatriz toca ao final de sua fala em um ponto que Goffman (1975) associa à visibilidade do estigma - as pessoas se sentem livres para iniciar conversas, fazer perguntas e tecer comentários em torno da situação do indivíduo estigmatizado, especialmente quando oferecem ajuda. Infere-se que a pessoa com um estigma pode ser abordada à vontade por estranhos, desde que pareçam simpáticos à sua situação.

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Ter que se comunicar e ter que ouvir são também implicações, no caso da cegueira, da necessidade de ajuda na rua. Mesmo quando não é desejada. Dora diz que é comum encontrar pessoas que, porque vão ajuda-la a atravessar, decidem contar sua vida para ela. Sem pedir licença, vão falando. Seja porque querem desabafar e acham que, porque ela tem uma dificuldade, vai poder ouvir, seja porque querem confortá-la e acham que, se contarem que também têm dificuldades servirá de algum tipo de consolo. As pessoas acham várias coisas que em geral não a interessam naquele momento, mas que jogam em cima dela. Justamente porque sabe que vai precisar delas em algum momento, sente que não tem o direito de andar na rua anonimamente, de passar incógnita. Ana conta que uma das coisas que as pessoas costumam falar, opiniões alheias que recebe sem pedir, é que ela não deveria andar na rua sozinha, deveria estar sempre acompanhada. A justificativa é porque seria “perigoso”:

Eu estava vindo de São Gonçalo, eu já trabalhei lá em câmara escura, então estava cansada, com o corpo grudento, com cheiro de química na cara toda, no cabelo, em tudo, veio o moço e falou assim „a senhora está indo pra onde?‟, eu falei „vou pegar o 107‟, „a senhora aceita ajuda?‟, „aceito sim senhor‟, aì ele falou „a senhora devia arrumar uma pessoa pra andar com a senhora, a senhora não pode andar sozinha não‟, eu falei „por quê?‟, „ah, porque a senhora é cega, não pode andar sozinha, é perigoso, como é que cego vai saber... por exemplo, agora a senhora precisou de alguém para levar a senhora para o ônibus‟, aì eu tava meio... falei assim „ô moço, vem cá, deixa eu te fazer uma pergunta...‟ (risos) que vergonha, ai meu Deus... não é de você, é de eu ter falado isso pra ele. „Se você fosse, se você não...‟, eu não quis dizer para ele se ele fosse cego porque eu achei que ele podia se chocar, porque as pessoas se chocam com a palavra cegueira né? Eu falei, „se você não enxergasse...‟, é a maneira mais suave de dizer que é cego (risos), „se você não enxergasse e tivesse uma namorada e você quisesse sair com essa namorada, e tivesse um acompanhante, você ia gostar que o acompanhante visse você beijando a sua namorada? Ia? Ia gostar? Você já pensou você estando lá namorando e o acompanhante do seu lado, ficando lá, assistindo tudo?‟, aì ele „é, isso é‟, aì atravessou comigo as pistas, não disse mais nada, me colocou no 107. Eu dei uma sorte, porque ele era homem, ele podia ter me sacaneado, eu não tinha que ter falado isso não... é, eu não sou santa, tá? Aí é o meu lado que...

Muito do que as pessoas falam, as opiniões que dão sem serem convocadas e as perguntas que fazem, se referem mais às representações culturais e aos estereótipos construídos sobre o que elas acham que significa ser cego do que à experiência de vida de uma pessoa cega. A conversa não se constrói como diálogo ou troca, mas em torno de algo que se diz em nome e sobre o lugar do outro. E o que se diz nesse caso específico pode ser relacionado às narrativas culturais que veem o deficiente como dependente, alguém que precisa estar sempre acompanhado. Ana, em sua resposta, tenta tirar a pessoa do estereótipo e trazer para uma situação concreta. Ainda que considere 330

que seu tom foi ousado, busca criar uma empatia levando a conversa para uma situação imaginária comum, que os aproximaria – ninguém gostaria de beijar o namorado tendo sempre alguém ao lado observando. Sua tentativa leva o homem a encerrar a conversa, possivelmente imaginando, caso continuasse no estereótipo, que mulher cega não deveria namorar. O fim do depoimento de Ana, como a situação vivida por Beatriz apresentada no capítulo anterior, coloca novamente em cena a sensação de estar exposta a uma dupla vulnerabilidade em situações urbanas, ser mulher e ser cega. Um estereótipo presente nas representações culturais que entendem a cegueira como desconhecimento e alienação aparece na fala de Dora quando indica algumas perguntas típicas que escuta das pessoas com quem interage na rua. As pessoas me param na rua para me perguntar o seguinte, tem uma pergunta que é super elaborada, „você está indo para algum lugar especìfico?‟, „a senhora sabe pra onde a senhora vai?‟. Eu tenho uma vontade... Mas aí poxa, vai parecer que eu que estou sacaneando o cara, o cara estava cheio de boa vontade... vontade de dizer assim „não, não tenho a menor ideia‟, sabe? Estou andando a esmo. Estou totalmente... „vou para algum lugar especìfico?‟ não, vou para um lugar genérico. Como se tivesse algum lugar que não fosse específico, tivesse lugar genérico... As pessoas não param para ver o ridículo delas mesmas.

Podemos identificar nas relações de interação entre pessoas que enxergam e pessoas cegas aquilo que Silva (2014) esclarece como sendo uma operação de recorte e colagem presente na noção de “citacionalidade” da linguagem em Derrida. Dizer frases do tipo “pelo menos você não vê a maldade desse mundo”, “você sabe para onde você vai?” ou “a senhora não pode andar sozinha” para uma pessoa cega não é a manifestação de uma opinião que tem origem plena e exclusiva na intenção ou na consciência individual. São expressões recortadas do contexto social mais amplo em que foram tantas vezes enunciadas (as narrativas culturais sobre a cegueira) e coladas em um novo contexto, onde reaparecem disfarçadas de opinião individual. O que na verdade ocorre é uma citação que reforça os aspectos negativos atribuídos à cegueira. A atitude de achar algo pelo outro, mas a partir do que a pessoa imagina ser a condição do outro, leva não só a comentários na rua em que se expõe uma opinião, mas a ações concretas de exclusão. Em uma roda de conversa na oficina de teatro que ministramos, um dos participantes cegos relata essa experiência: “A pessoa acha que você não pode fazer determinadas coisas. Ela acha. Ela não pergunta a você 'vem cá, você pode fazer isso?', ela já achou que você não pode e já te excluiu. Já está te excluindo da coisa antes por que achou que você não pode, não vai fazer aquilo”.

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As implicações desse tipo de interação para uma pessoa cega se aproxima do que Hay (2010) identifica por sofrimento social. A autora analisa o sofrimento social de pessoas com doenças crônicas e aponta que uma das manifestações desse sofrimento resulta de situações sociais em que os outros julgam a validade de uma experiência de uma pessoa baseando o julgamento em suas próprias acepções prévias do que uma pessoa com aquela doença pode ou não fazer. Olhares de descrédito são formas comuns de manifestação desse tipo de julgamento. E o sofrimento que resulta disso é o que a autora e outros autores (Kleinman, 1992) chamam de deslegitimação de uma experiência em um mundo moral local. No caso de deslegitimação apontado por Hay (2010), uma pessoa que tem uma doença crônica que não é visível se utiliza de privilégios como as vagas especiais para deficientes. A deslegitimação acontece por meio de olhares acusatórios e de desaprovação de outras pessoas que têm uma ideia previamente concebida que uma doença deve ser fisicamente aparente. A situação também aparece no caso de pesquisados que são abordados por pessoas que acham que de fato eles não são cegos, mas estão fingindo ser. A suspeita do fingimento surge por diferentes motivos: a aparência física dos olhos de algumas pessoas cegas não denuncia imediatamente a cegueira, especialmente em certos casos de retinose pigmentar; a pessoa acredita que a outra está fingindo para tirar vantagem ou se aproveitar de alguma situação; há os que se espantam porque o cego desviou de algum obstáculo no caminho e aí acham que, no fundo, ele enxerga. Beatriz já viveu algumas situações como essa:

Eu levo esporro na rua, as pessoas dizem que eu estou fingindo, entendeu? Eu já levei um esporro dentro do Extra, que você não tem noção. „minha filha, porque você está fazendo isso, minha filha?‟ E até eu descobrir do quê que a mulher estava falando, „do quê ela está falando, gente?‟. Eu estava com a funcionária do Extra comprando sei lá o quê, aí estou percebendo uma criatura andando para lá e para cá, no corredor assim, na sessão, reclamando, reclamando, mas eu sei lá do quê ela está reclamando, não me liguei. Está falando sozinha lá com ela, enfim. Até que a funcionária que estava comigo falou „senhora, ela não enxerga mesmo não, não sei o que lá‟. Aí é que eu fui me tocar que ela estava falando de mim. Aí ela chegou perto de mim e falou assim „minha filha, não faz isso não, Deus castiga, isso é muito feio‟, falando, falando. Eu pensei cá comigo, gente não tem terceira alternativa, só tem duas, ou eu respiro ou eu mando essa mulher tomar no cu, entendeu? eu resolvi respirar, sabe, deixa ela, enfim... Tem outras coisas na rua, que as pessoas falam: „mas você não enxerga mesmo? Como assim você não enxerga com esse olho limpo?‟, „como assim você não sei o que lá?‟. O taxista falou para mim, „engraçado que a senhora é bonita, né?‟, eu falei „é, eu também acho gozado isso‟. (risos). „Tá aì, eu também acho gozado‟, quer dizer, o cego tem que ser feio, né?

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Nas situações vivenciadas por pessoas cegas, a deslegitimação de uma experiência pode acontecer de duas formas, seja a cegueira diretamente percebida ou não. A primeira, quando os outros deslegitimam sua ação naquele contexto porque a cegueira foi reconhecida e eles têm uma ideia previamente concebida do que uma pessoa cega pode ou não fazer. A segunda, nos casos em que a cegueira não é prontamente notada e a pessoa desaprova a ação por achar que aquela pessoa não corresponde a sua representação de como uma pessoa cega deve ser, não em termos de ação, mas dessa vez em termos de postura física, aparência (especialmente dos olhos) ou ainda estética.

5.3.2 Invisibilidade da pessoa

Uma situação comum vivida por pessoas cegas na interação é aquela em que a outra pessoa recusa o encontro e abre mão da relação. Seja porque não sabe lidar com a diferença, seja porque está muito dentro do seu mundo para se relacionar. São pessoas que passam e fingem que não estão vendo. Essa seria uma das condutas de indivíduos ditos normais diante de indivíduos estigmatizados identificada por Goffman (1975), agir como se ele fosse uma “não-pessoa” e não existisse como alguém digno de atenção. No caso da cegueira ainda pode haver a particularidade da pessoa achar que, porque o indivíduo é cego, ele não vai perceber que está sendo ignorado, porque na suposição de quem enxerga não teria como ele saber que tem mais alguém no ambiente. Caetano dá um exemplo: Você está em um ponto (de ônibus), você sente que não tem ninguém, mas aí você percebe que tem uma pessoa ali. Você percebe no ar, a pessoa se move assim (faz o movimento de chegar com o corpo para o lado). Então você sente que tem uma pessoa ali, você se aproxima e „por favor...‟, quando você começa a falar você sente que a pessoa se moveu, saiu. Dá para perceber. Saiu do local que estava. Eu já senti isso. Aí eu esqueço aquilo ali, aquele ali deixa pra lá. Não é uma pessoa digna de ser procurada por você. A pessoa acha que você não vê e como não vê não sabe que tem alguém, então se afasta. É uma pessoa ali que não está para você, então se não está para você, você também não está para ela. Deixa passar. Logo vai aparecer alguém que oferece ajuda.

Em uma roda de conversa, uma das participantes da oficina fala sobre a sensação de ser propositadamente ignorada por outras pessoas por conta de sua cegueira: Eu sou uma pessoa que não gosto de participar só de grupos de cegos não, eu gosto de conviver com pessoas ditas normais, digamos assim. E existe, em outros grupos

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que eu participo, tem pessoas que tem um pé atrás com a gente porque a gente é cego. Tem pessoas que evitam conversar com você porque você é cego. Evitam de se aproximar de você, apesar de você estar no mesmo ambiente. Isso é uma coisa que mexe muito comigo, que me cerceia muito.

A invisibilidade da pessoa cega na interação também acontece quando a pessoa que se relaciona com ela tem a capacidade de enxergar, mas não tem a sensibilidade para ver – seja ver que ali na frente ou ao lado dela tem uma pessoa que é cega e está com uma bengala, seja perceber qual a necessidade específica daquela pessoa cega naquela ocasião, se é que há alguma. Em lugares muito cheios, como a central do Brasil, Jair diz que as pessoas passam e nem percebem a sua bengala. Já quebraram duas na central pisando em cima. Da primeira vez ele até pensou que quem quebrou também era cego, mas não era. Seu caso não é isolado. Beatriz me mostra a sua bengala torta, encostada à parede da sala de sua casa. Diz que as pessoas esbarram, chutam, pisam, tropeçam. Ela, que trabalha no centro da cidade, leva muita trombada na rua porque as pessoas, apesar de enxergarem, não veem a bengala. De vez em quando ela faz propositadamente um teste da cegueira de quem enxerga. Fica parada no meio fio de uma rua para atravessar junto à faixa, aguardando alguém oferecer ajuda. O efeito, segundo Beatriz: “as pessoas desviam de mim, mas elas não enxergam, elas não me veem, é uma coisa impressionante. Depois de um bom tempo, para alguém e pergunta „a senhora quer ajuda para atravessar?‟, mas olha, um tempão. Não veem nada, e agora é tudo digitando também”. O segundo caso é quando a pessoa que olha não vê qual a real necessidade de ajuda daquela pessoa cega naquele momento e acaba sendo negligente ou atrapalhando uma ação em pleno curso. São situações altamente localizadas e que também podem ter consequências desagradáveis. Dora, quando morou em São Paulo, pegava diariamente o metrô para o trabalho. Para não ser atrapalhada por alguém que enxerga justo na hora em que ia pegar a escada rolante, ela costumava esperar por um momento em que tivesse menos gente por perto. Era uma estação que logo que entrava tinha uma escada rolante ali para descer. Era a estação do Paraíso, que é uma estação super movimentada. Eu tinha que ficar prestando atenção em uma hora que não tivesse ninguém para eu entrar e descer a escada. Porque tinha sempre alguém para me segurar pelo braço na hora em que eu ia dar o passo e aí não dava certo, né? Porque se eu estava entrando, eu já estava com a mão no corrimão que estava se movimentando, se meu corpo estava se movimentando, se eu ia dar o passo para entrar na escada e alguém me segurava pelo braço porque senão eu ia cair, aí é que eu ia cair mesmo né? Teve um dia que eu tropecei e a mulher ainda falou assim „tá vendo, se eu não lhe seguro, a senhora ia cair...‟. A pessoa não vê, entendeu? Sabe o que é uma pessoa não parar... ela não

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está vendo, ela não está vendo que eu estou sabendo, ela não está vendo que eu estou colocando a bengala exatamente onde está começando a escada, a pessoa não para pra olhar. Ela não precisa saber nada, ela pode ter vindo de marte, mas ela não para pra olhar a cena. Porque tem cenas que você olha e você diz assim „não, aquela pessoa não vai dar conta do que ela está acontecendo‟, tem outras que você nem conhece a pessoa e você diz „não, ela vai dar conta, ela está sabendo o que está acontecendo‟, não é assim, na rua? Se eu olho você saca, aquilo ali não, aquilo ali vai dar errado, porque a pessoa não está vendo, ela não está sacando, ela está correndo risco. Ou então você olha e diz „não, ela está no controle da situação‟. Não é assim? Mas quando se trata de uma pessoa cega ou com algum tipo de deficiência, as pessoas projetam tanto que elas não conseguem ver isso.

A invisibilidade de Dora está na falta de um olhar direcionado, que antes de intervir, veja, avalie, pondere a sua especificidade naquele ato. É a sua eficiência naquela situação localizada que fica invisível por trás de um véu genérico de deficiência que a abafa. Ana também vivenciou uma situação desse tipo, mas no caso dela, apesar da obviedade da sua limitação, ela não recebe um tratamento diferenciado que a atenda. O sofrimento de não ser reconhecida em sua particularidade. Antes de se casar foi sozinha ao ginecologista para fazer exames e pedir informações sobre o uso de pílula anticoncepcional. O médico respondeu que tinha uma amostra grátis, entregou na mão dela e deu a seguinte explicação – “por tantos dias você vai tomar a laranja, depois tem a marronzinha...”. Ana na hora pensou “meu Deus do céu, como é que eu vou saber o quê que é laranja, o quê que não é laranja?”. Abriu a caixa. Sentiu vergonha, mas pensou “eu tenho que fazer, eu tenho que perguntar, ele é médico...”. Acha que tem coisas que quem é cego não precisa passar, mas como acontece, não adianta, tem que lutar por espaço. Falou com o médico –“doutor, eu não sei se o senhor sabe, mas eu sou cega, eu entrei aqui com a bengala e no meu caso está na cara, então eu queria que o senhor me explicasse onde é que é a laranja”. O médico finalmente mostrou que as fileiras eram separadas por cor, então Ana conseguiu se achar na cartela. Fez os exames e nunca mais voltou. Foi uma das situações mais constrangedoras que já viveu.

5.3.3 Cego, pessoa-objeto

Casos extremos de invisibilidade da pessoa cega aparecem em relatos que falam de desumanização, como se a cegueira tivesse o efeito de despersonificar, transformando aquele que é cego em uma espécie de objeto que se muda de lugar, que não tem voz ou vontade própria ou tornando sua presença inexpressiva, quase que inexistente aos olhos de quem “vê”. Quando a pessoa cega está acompanhada de outra

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pessoa, o que acontece é a pessoa desconhecida com quem interagem se dirigir apenas a quem a acompanha. Renata exemplifica: Eu nem sei se conta, porque já aconteceu com todo mundo. Por exemplo, eu estou em pé e tem uma cadeira, aì ao invés da pessoa perguntar „você não quer sentar? Senta aqui‟, ela pergunta pra minha mãe ou quem tiver do meu lado „ela não quer sentar? Senta ela aqui‟, como se eu tivesse, sei lá, um problema de fala ou um problema mental, uma coisa assim. Isso incomoda. Isso te despersonaliza, faz como se você não tivesse vontade, como se você precisasse de um intérprete, de um mediador, de alguém que falasse por você. Está colocando o cego sem opinião né?

A situação é muito comum em restaurantes, quando o garçom pergunta para quem acompanha a pessoa cega, “o que ela vai querer?”. Além de Renata, Caetano, Ana, Angela, Dora, Jair e Beatriz a mencionaram. Eu mesma vivenciei com Beatriz, quando o garçom do restaurante em que estávamos perguntou para mim se ela ia querer outro chope. Minha resposta foi „não sei, pergunta pra ela‟. A própria Beatriz nos traz outro exemplo: Saí com uma amiga ontem do trabalho, fomos de metrô juntas, aí bateram no ombro dela e falaram assim „avisa para ela que a bolsa dela está aberta‟. O: e como você reage nessas situações? Na hora eu falei assim „já avisou, Mari?‟, aì ela „não, ainda não‟, e eu „ah tá, mas eu já ouvi‟. Ao mesmo tempo eu fico me cobrando, poxa, eu não devia fazer isso, as pessoas não fazem por mal, não fazem mesmo, eu sei que não fazem.

Quando acontece esse tipo de coisa Caetano costuma ter uma reação que chama de educativa: “você educa, você fala assim 'olha companheiro, eu posso ouvir e posso falar, você se dirige a mim e me pergunta que eu digo o que eu quero'”. Até em consulta médica Angela já vivenciou a invisibilidade, quando a ginecologista perguntou para a filha, que a acompanhou na consulta, qual tinha sido a data da sua última menstruação. Ela ao lado. A filha deu a mesma resposta para a médica que eu dei para o garçom: “não sei, pergunta para ela”. E Angela acrescentou “eu só não enxergo, tá, mas eu escuto”. Goffman (1975) menciona a tendência dos normais de inferir uma série de imperfeições a partir de uma imperfeição original – problemas na fala, surdez ou problemas mentais são algumas inferências que apareceram nos discursos. Uma referência mais direta à sensação de objetificação, de se tornar e ser tratado como objeto, surge em uma das conversas sobre opressão nas oficinas de teatro que ministramos no IBC.

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Mulher 1: tudo gira em torno da incompreensão do outro de lidar com as deficiências, os ditos normais. Como a gente colocou, porque com a cegueira parece que você vira um vaso, uma estatueta que eles querem trocar de lugar... os cuidadores, né? Vira um objeto em casa. Homem 1: a cultura nossa era a de que cego é um trambolho mesmo, um objeto. Bota lá, dá bebida, dá comida, dá água e dá pão e acabou, era só isso mesmo, joga lá num canto. Uma parte da sociedade ainda faz isso por ignorância, não é por mal.

Um relato comum que ouvi na oficina, mas também de outras pessoas cegas que conheci, é a experiência de chegar a um local – pode ser uma festa, um evento, uma reunião – e já ser imobilizado em uma cadeira. Sendo um evento que sirva comida, como adicional à cadeira vem também um prato com um pouco de tudo que estiverem servindo na festa, para evitar que a pessoa cega precise levantar e se deslocar no ambiente ou pedir a outras pessoas. O depoimento de Camila é ilustrativo:

Em festa de vidente, comando é a palavra, o tempo todo no comando. O lugar, botam a gente num... geralmente, infelizmente, botam em um lugar isolado. Isso aí todo mundo já conversou, é verdade. Não digo festa de família muito íntima não, mas se você vai numa festa maior, eles vão te colocar num lugarzinho ali e ali te dão o salgadinho. É o que eu falo, não é maldade, é o jeito que eles sabem tratar. Não tratam igual. Então acha assim –„vou botar a Camila sentada ali‟, aì me bota sentada ali, mas esquece, não é chatice não pô -„você quer sentar, Camila?‟, eu falaria -„não‟ ou –„quero, brigada‟ ou –„não, tá bom aqui em pé‟. Não, como a pessoa é cega... geralmente as pessoas que não enxergam, você já observou? Até pelo próprio cuidado, você chega num lugar e já te botam num lugar sentado em uma cadeira. E até pra servir... às vezes eu fico conversando com o pessoal, -„qual é a melhor maneira de servir cego numa festa, gente?‟. Porque geralmente é num prato, te botam assim –„ó, botei um prato cheio de tudo que tem na festa‟. Entendeu? (risos). E você pode se entupir, pode comer... olha teve um dia que eu e uma amiga minha nós ríamos tanto... Fomos numa festa e estávamos lá sentadas, aí ela -„Camila, tu já sabe né, daqui a pouco vem o pratinho‟, eu falei -„é, to sabendo...‟. Aì daqui a pouco, tinha acabado o pratinho e sabe aquelas vasilhas de servir caldo? Colocaram ali, todos os salgadinhos, tudo ali, a gente estava lá sentadinha, -„olha só, uma pra você e uma pra você‟, aì quando a gente pegou assim, ela „Camila, é uma cuia!‟ (risos). Olha, mas a gente se divertiu nesse dia, sabe, a gente ria... por que é uma coisa engraçada.

Angela, Camila, Caetano narram suas histórias com humor, mas a recorrência revela, mais do que a inabilidade pontual de pessoas que enxergam de lidar com a diferença da cegueira, uma espécie de confinamento de corpos que pode ser comparado ao que Bourdieu (2003a) identifica nas práticas sociais de gênero em relação às mulheres. A forma feminina de ocupação do espaço é descrita pelo autor como “a arte de se fazer pequena” (Bourdieu, 2003a: 39). Posturas e posições corporais convenientes a uma mulher, como a forma de andar, de manter as pernas cruzadas ao se sentar, as roupas e os saltos altos que usam, limitam o território deixado aos movimentos e deslocamentos de seu corpo a uma espécie de confinamento simbólico. O confinamento

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simbólico de pessoas cegas se expressa no acoplamento a um objeto, a cadeira, que em eventos sociais limita o movimento corporal, circunscrevendo seu corpo a um canto. Mas também sucede ao não se dirigir a palavra à pessoa cega, submetendo o outro a inexistência pela atribuição da incapacidade de representação. Longe de ser uma relação que ocorre em locais específicos ou com pessoas relativamente desconhecidas – garçons, anfitriões de festas, determinados médicos – a família pode ser um dos agentes centrais que contribui para reproduzir essa espécie de dominação que se incorpora. No exemplo trazido pela TO de AVD, o acoplamento à cadeira já não é mais necessário e a própria pessoa, por sua imobilidade, se torna pessoa-objeto, um vaso, uma estátua. Tem aqueles familiares que, por medo deles se machucarem, por medo de outras pessoas se machucarem e acabar quebrando tudo dentro de casa, entre aspas, fala assim -„não, fica aì que eu pego para você‟, -„não, fica aì que eu faço isso para você, faço aquilo para você‟, e aì acaba que o deficiente visual fica uma estátua dentro de casa. Eu tinha uma aluna que ela entrava aqui na AVD, se posicionava na parede de entrada, literalmente ela ficava de costas para a parede, com as costas encostada na parede, igualzinho uma estátua. Uma agonia mesmo. Eu falava -„fulana, vambora, vamos se movimentar, vamos fazer isso, aquilo outro, quando você entrar você coloca a sua bolsa lá, vai lavar a sua mão e a gente vai fazer atividade‟, aì se eu não desse o comando verbal para ela fazer qualquer coisa, ela ficava no cantinho da parede, com a bengala aberta na frente do corpo, parada. Sem falar, sem se mexer, sem fazer absolutamente nada. E esse era o retrato da vida dela todos os dias dentro de casa. Até pelo medo, pelo receio de provocar uma reação no familiar. Porque muitas vezes, como tem pessoas compreensivas, tem pessoas agressivas na família „você fez isso! você fez aquilo outro!‟, -„você só sabe fazer coisa errada! Só sabe quebrar tudo!‟.

Poderíamos pensar, no caso descrito pela TO, em um processo de encorporação de uma relação de dominação simbólica, na predisposição à imobilidade de um corpo que só existe ao receber autorização verbal de outros. Bourdieu (2003a) indica que os atos de conhecimento e reconhecimento práticos da fronteira entre dominantes e dominados podem assumir a forma de emoções corporais, tais como a timidez, a humilhação e a culpa, que também podem ser associadas à situação anterior. Analisando a questão da dominação masculina, o autor enfatiza que a experiência prática do corpo, que é continuamente reforçada pelas reações que o próprio corpo suscita nos outros, é um dos princípios da construção, em cada agente, de uma relação duradoura com o seu corpo. Uma fala da psicóloga do IBC reforça o risco de que, na relação de familiares com a criança cega, em reações incessantemente repetidas de fazer as coisas por ela e circunscreve-la a um lugar determinado, seu corpo vá adquirindo uma imobilidade e uma passividade que a princípio se atribuiria a objetos e não pessoas. 338

Daí a diferença que a gente muitas vezes percebe, da criança que vem, como a gente chama, da comunidade lá fora e já cai aqui numa classe de primeiro ano do que aquela que foi estimulada aqui dentro, desde a estimulação precoce, passou pelo jardim... porque a família não é alertada. Então a criança chega muitas vezes com aquela mão mole, que não explora, que todo mundo dá tudo na mão dela, entendeu? Que fica numa atitude mais passiva, de só ficar recebendo, a família superprotegendo, sabe? Não sabe muitas vezes brincar, fica repetindo coisas, conversas de adulto, conversas... estou falando realmente da questão da defasagem na estimulação, da defasagem de desenvolvimento por conta de uma estimulação que não foi adequada.

Um corpo incessantemente imobilizado pelo olhar de outros, cujas necessidades são imediatamente resolvidas, vai ganhando contornos de objeto, que somente existe por esse olhar. Um olhar algumas vezes super protetor, mas ao mesmo tempo paralisante. Imobilidade que contribui para aumentar a desproporção entre o corpo socialmente exigido e a relação prática com o próprio corpo. Relação imposta por olhares e reações dos outros que vão transformando esse corpo em objeto passivo, nãoatraente, indisponível. Como na dominação masculina analisada por Bourdieu (2003a), é também à família que cabe o papel principal na reprodução da forma de dominação inscrita em corpos.

5.3.4 Diferença e reações dos outros

Na semana anterior a um de nossos encontros Dora tinha feito um pedido na farmácia e uma moça veio entregar. Ela pergunta o valor total, dizendo que vai pagar no cartão. Percebe que a moça está sem jeito e, num primeiro momento, não entende por que. Depois se dá conta que eram mais de 18h e já tinha escurecido, a moça não conseguia ler o valor total na nota para digitar na máquina, mas, ao mesmo tempo, não perguntou se podia acender a luz. Dora comenta a situação mencionando uma das emoções que podemos associar a situações sociais mistas com pessoas cegas.

As pessoas ficam muito angustiadas com o assunto, de fazer referência direta ao assunto da cegueira ou ao assunto da luz ou de ver... quando eu me dei conta e acendi a luz eu falei „vê se melhora?‟, ela respondeu „ah, melhora, melhora bastante‟, sabe aquele alìvio? O que eu acho é assim, ou as pessoas são umas pessoas totalmente sem noção, inconvenientes, fazem umas coisas que não têm nada a ver, começam a perguntar coisas da sua vida ou as pessoas ficam cheias de dedos, entendeu?

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Ficar “cheio de dedos” não seria uma reação mais adequada, mais educada ou cujos efeitos seriam menos nocivos. Da mesma forma que é possível reagir ao encontro sendo invasivo por não saber lidar com a diferença, ficar “cheio de dedos” também é um sinal de que aquela não é uma circunstância comum de interação. O constrangimento é o indicativo de que não se consegue lidar naturalmente com a diferença. Dora também percebe o constrangimento nas situações em que pais repreendem os filhos quando esses últimos olham curiosamente e fazem perguntas a respeito de sua bengala. O exemplo põe em cena o que Goffman (1966) chama de “desatenção civil”, um tipo de tratamento e uma forma de olhar considerados apropriados em público. Uma pessoa dá a outra atenção visual suficiente para demonstrar que aprecia que ela esteja presente, enquanto no momento seguinte desvia a atenção dela, a fim de expressar que ela não constitui um alvo de especial curiosidade. O autor coloca que quando algum adulto infringe as regras morais da desatenção civil e olha fixamente para alguém, não se costuma fazer sanções de modo direto e aberto em público, mas podem ocorrer sanções indiretas, como outros adultos ao redor olharem fixamente para o primeiro que infringiu a regra. A desatenção civil seria uma regra de cortesia que indica que todos os presentes devem ser tratados meramente como participantes de uma aglomeração e não em termos de suas características sociais ou físicas. O caso das crianças seria um dos únicos em que a sanção seria abertamente permitida, já que ainda estariam sendo treinadas no aprendizado desse tipo de comportamento social. Dora fala sobre como reage a tais situações:

As crianças ficam super curiosas com a bengala, porque é uma coisa diferente né? Aí elas querem ver o que é aquilo, elas querem ficar na frente da bengala para ver o quê que vai acontecer com elas, o que vai acontecer comigo, qual vai ser a minha reação, elas ficam querendo entender como aquilo funciona, o que eu acho que é super saudável, é uma coisa que para mim tem tudo a ver, é super pertinente. E os pais ficam passados, eles ficam com muita vergonha. Ficam reprimindo. E aí eu tenho que falar, tenho que brincar „deixa, tá certo, ele está tentando ver aì‟. Aì eu me dirijo direto para a criança „isso aqui chama bengala, eu uso isso para...‟. Aì os pais ficam muito aliviados quando eu abordo diretamente a questão. Mas eles ficam muito passados. Mas aí eu acho que é isso que acaba criando nas pessoas o preconceito, porque você já recebe uma mensagem de que você não está lidando com uma pessoa normal, que você não pode... não é isso? Que é uma situação que ela tem que ser... fica meio que um tabu, uma coisa que não pode ser dita, que não fica clara, não pode se lidar com ela naturalmente, tem impedimentos ali. Eu acho isso muito ruim.

Dora considera que o aprendizado associado à desatenção civil, quando se repreende crianças que ficam curiosas em relação à diferença, seria uma forma de

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incrustar a exclusão e o preconceito. O implícito na sanção à curiosidade infantil é que a diferença não deve ser tratada com naturalidade, como algo que faz parte da vida social. É possível pensar o sentimento de constrangimento ou vergonha que surge nessas situações sociais relacionando-o à análise que Barbalet (1998) faz da vergonha enquanto uma emoção social. Com uma releitura de autores como Adam Smith, Darwin e Norbert Elias, o autor localiza a origem do sentimento de vergonha na autopercepção da apreensão que os outros têm do sujeito. O seu mecanismo de funcionamento é tomar o ponto de vista do outro, afetando aqueles que a sentem de acordo com as expectativas sociais. Sua importância estaria no impacto que possui no comportamento social, no sentido da conformidade com as convenções. No primeiro caso relatado por Dora, o constrangimento da funcionária da farmácia surge diante da impossibilidade de agir de acordo com o esperado (passar o cartão na máquina e realizar a cobrança) sem que tivesse que fazer menção, ainda que indireta, à diferença do outro (pedir para acender a luz). Ter que explicitar a diferença do outro fere a convenção social de agir como se a diferença não existisse. No segundo caso a vergonha dos pais se relaciona à quebra da desatenção civil por parte do filho. Sua conduta curiosa diante da diferença não se conforma ao comedimento social que se espera nas interações em espaço público. A vergonha seria uma avaliação negativa que os pais têm ao imaginarem como Dora os veria diante do comportamento de seu filho. Nos dois casos, a reação de Dora transforma a emoção da vergonha em sentimento de alívio, indicando que aí talvez possa existir outra emoção social a ser investigada nas relações que envolvem expectativas de conduta e situações de diferença nas interações em espaços públicos.

5.3.5 A cegueira como angústia corporal de quem vê

Boa parte das situações que tornam uma pessoa invisível na interação passa por um mecanismo de atribuição de representações, preconceito e discriminação. Nos casos relatados, as pessoas só conseguem se relacionar com quem é cego a partir do estereótipo da cegueira. Seja baseado em alguma experiência prévia, seja um estereótipo construído a partir de representações culturais. A atribuição de valor, geralmente negativo, a características de um grupo, generalizando-as, reduzindo o grupo a essas características, desqualificando suas práticas e chegando ao extremo de negar sua humanidade é o que se entende por 341

estereótipo (Rocha 1988). A generalização de julgamentos negativos feitos sobre determinados grupos lhes impõe um lugar de inferioridade e incapacidade, definindo lugares hierárquicos de poder ocupados socialmente. Os estereótipos alimentam os preconceitos – atitude de definir à priori quem são e como são as pessoas antes de conhecê-las. Como a própria palavra diz, é algo que vem antes do conhecimento, antes de conhecer já se define o lugar daquela pessoa ou grupo. Estereótipo e preconceito estão intimamente relacionados e expressam formas de reação à diferença, ao novo, ao contato com o outro baseado em ideias fixas sobre a sua identidade social. Uma das formas de se relacionar com o estereótipo e não com a pessoa é a que nos relata Ana. Muitas vezes quem a ajuda na rua não se dá conta das diferenças entre as pessoas cegas e suas necessidades específicas. Porque um dia ajudou um cego que tinha muita dificuldade para subir escada, acha que todos os cegos terão dificuldades para subir escada. Ela mesma não precisa de ajuda para subir escada. Para Ana, as pessoas acham difícil ajudar uma pessoa cega porque não se informam que existem diferenças e que o grau de dificuldade é do ser humano. Dora também fala sobre esse tipo social normal bastante comum que encontra nas ruas, aquele que só se relaciona com estereótipos da cegueira e não com aquela pessoa cega específica: Tem aquelas pessoas que elas jamais conseguem sair do estereótipo. Então elas só conseguem se relacionar comigo falando da cegueira, se relacionando através da cegueira. Porque aquilo é uma coisa para elas tão espetaculosa que elas não conseguem perder o foco daquilo em momento nenhum. Tudo passa por isso. Então essas pessoas elas querem saber se eu fiquei cega quando eu nasci ou se foi depois. Mas elas não querem saber aquilo para ouvir, para conhecer, porque elas já têm as ideias delas de que quem nasce já se acostuma, então sofre menos... elas já tem tudo, já querem saber qual é o estereótipo que elas vão aplicar. Na minha maneira de entender é porque a cegueira é uma coisa que elas ficam tão assustadas que elas já têm respostas para tudo, tem que ter um jeito de controlar aquilo. Então tudo vai dentro do estereótipo.

Martins (2006) aponta que as descrições culturais da cegueira, mesmo que vagas, costumam operar como um fortíssimo estigma que, ao se precipitar sobre vidas concretas, as obriga a um diálogo frequente com o significado da cegueira nos valores dominantes, em que ela emerge como uma inapelável tragédia. Como aponta Oliver (1990), pessoas com deficiência precisam confrontar diariamente representações culturais sobre a sua condição em que as ideias de incapacidade, tragédia e infortúnio se agregam, fazendo da “narrativa da tragédia pessoal” uma espécie de profecia social que acaba gerando as condições da sua confirmação. 342

Martins (2006) desenvolve a ideia de “angústia da transgressão corporal” para mostrar como no caso específico da cegueira as representações incapacitantes e a versão da tragédia passam por um mecanismo corporal de projeção de corpos que veem, o que também é elaborado nos depoimentos de Dora. A perda da visão, pela importância que possui para quem dela pode fazer uso, tende a ser percebida como um cataclismo onde se ampara a noção de tragédia. Uma das possibilidades de angústia da transgressão corporal se funda em narrativas de perda de visão súbita, rápida ou inesperada. São experiências de vulnerabilidade corpórea de pessoas que precisam reconstruir o significado de si e do mundo a partir de um estado existencial de ruptura. Em muitos casos de cegueira, entretanto, a experiência da perda está ausente - seja nos casos em que se nasce cego, seja nos casos em que a perda da visão se dá de modo lento e gradual, como na cegueira de Borges (2011). Mesmo nas histórias fortemente marcadas por um longo período de luto após a cegueira também entramos em contato com a capacidade dos sujeitos para a reconstrução pessoal, como veremos adiante em trajetórias de pesquisados que perderam a visão. Martins (2006) argumenta que a cegueira pensada enquanto dor, perda e incapacidade, é reforçada a partir de uma posição estrutural radicalmente diversa de quem é cego, a de corpos que veem. Ainda que o visuocentrismo em que vivemos tenha um viés sócio-histórico, a visão tende a ser um sentido crucial para quem dela faz uso. Consequentemente, a projeção imaginária da cegueira por um corpo que vive visualmente acaba forjando ideais de prisão sensorial e incapacidade. A angústia da transgressão corporal não se vivencia apenas por alguém que em determinado momento da sua vida efetivamente fica cego, ela é também imaginada por projeções corpóreas empáticas pelas quais a cegueira é, de certa forma, trazida para casa. Tal ideia elaborada pelo autor ecoa no depoimento anterior de Ana, quando diz que a palavra “cegueira” choca as pessoas, mas também nas colocações de Dora a partir das perguntas que recebe na rua a respeito da sua condição. Diante de uma pergunta específica e dos comentários que as pessoas elaboram a partir das diferentes respostas que já deu, Dora desenvolveu a ideia de que tais perguntas não se dirigem a ela, à sua experiência concreta, mas concernem aquilo que a pessoa imagina que seja cegueira e a angústia que o exercício imaginativo provoca na própria pessoa. Uma projeção que é absolutamente desencarnada da experiência de quem é cego.

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Uma pergunta clássica „você é assim de nascença?‟. Perguntam exatamente com essas palavras que eu estou te dizendo „você é assim de nascença?‟ O: e o que você responde? Aí depende. Eu já respondi de tudo, já experimentei todas as respostas, porque eu não tenho nenhum compromisso com a verdade, né, a pessoa pergunta o que ela quer, eu respondo o que eu quero, tá certo? Então eu já respondi que sim, já respondi que não... as pessoas perguntam por que da sua resposta elas vão atribuir a você a projeção que elas têm na cabeça delas lá sobre o que é uma pessoa que ficou cega depois e o que é uma pessoa que nasceu cega. Elas querem saber isso para saberem qual é o lixinho que ela vai despejar em cima de você. Porque eu defino assim, é um mecanismo de projeção, é você não querer ver aquilo em você, você projeta no outro. Então eles querem saber se a pessoa nasceu cega ou se ficou cega depois para saber qual a lata de lixo, se é lixo orgânico, qual é o lixo que ela vai depositar em cima de você. Eu sou bem contundente né? Mas para mim é isso. O: mas o que vem depois? Você diz „nasci cega‟... „Ah, então já está acostumada‟ ou „então é melhor assim‟... Então nada, cara, qual é? Sabe lá? Eu nasci assim e foi uma merda, entendeu? Porque eu passei uma infância como pessoa cega, quem é que diz que é melhor assim? Claro que não é. Isso é problema dele - ver e depois perder - isso é problema dele, não é o meu. Na verdade você sabe que o quê ela está falando é a projeção dela. O quê que eu percebo? Se você diz que você nasceu assim, por um lado a pessoa fica mais sossegada, porque ela não está se deparando com o trauma da perda. Se você diz que você perdeu a visão depois ela fica mais aflita porque isso pode acontecer com ela, mas ao mesmo tempo ela também se relaciona com você como se você fosse uma pessoa igual a ela, porque você já viu. Porque o cara que nunca viu, por um lado é mais tranquilizador, mas por outro lado ele é outro bicho, lá de outra espécie, porque ele nunca viu, sabe como é, nunca viu a luz do dia, é outra coisa, é outro mundo, vive em outro mundo, aquele negócio. Então é lixo de qualquer jeito, cara, você não escapa não. É só saber qual é o lixo que você vai descartar, se é a latinha verde ou vermelha. To fora. Por isso que eu te falo, eu respondo qualquer coisa. Porque aí também o fato de responder qualquer coisa me propicia fazer essas experiências, aí sou eu que estou fazendo as minhas experiências. Ou então eu pergunto exatamente o seguinte „porque você quer saber isso?‟, aì as pessoas ficam... tem várias reações, desde super sem jeito, até irritadas, como se eu é que estivesse invadindo, eu é que estivesse sendo indiscreta, entendeu? nego do nada, não me conhece, me pergunta sobre a minha vida, e quando eu pergunto simplesmente porque que ele quer saber isso, fica irritado, assim fica meio ofendido „não, tudo bem, não sei o quê‟. Olha, qual é? Quem é que está invadindo aí? Então é porque é projeção mesmo. Se tivesse um motivo, uma curiosidade, ele dizia „não, eu tenho uma curiosidade‟... às vezes as pessoas falam, às vezes é uma cosia assim mesmo „ah, eu tenho uma pessoa na famìlia, ela teve muita dificuldade, então eu queria saber e tal‟. Quando é um motivo mesmo, a pessoa fala na boa. Agora quando é só porque ela quer projetar a angústia dela em cima de você, aì ela fica ofendida só porque eu pergunto „por que você quer saber isso‟. E eu nem pergunto assim de uma maneira agressiva, eu pergunto na boa. É que as pessoas não tem um motivo, o motivo é outro.

Pela experiência de Dora, as pessoas se relacionam, na verdade, com as suas próprias cegueiras, com aquilo que a cegueira significa para elas, que está entranhado nas representações culturais de ruptura e sofrimento de quem perde a visão e na projeção de uma experiência corporificada de quem vê. Martins (2006) coloca que essas imaginações projetivas vão produzir ansiedades sobre a cegueira que não apenas informam preconceitos pessoais, mas são também mobilizadas para as representações culturais que se interpõem à realidade social das pessoas cegas. Uma imaginação desse tipo talvez permita captar algo do eventual impacto de uma perda súbita de visão, 344

especialmente no período do choque ou trauma, mas certamente fracassa em perceber como a vida de alguém lentamente se reconstrói em novos termos sem a visão, fracassa em apreender a adaptação ao longo dos anos, e também fracassa em conceber o mundo de alguém que nasceu cego.

Quando a diferença não é déficit

Winance (2007) identifica um movimento em que a deficiência deixa de ser definida como um déficit para se definir pelas condições da interação. As duas formas de definir deficiência corresponderiam a dois tipos de normatização. As situações de interação na vida diária podem levar a qualquer uma das duas formas e uma determinada pessoa vai encontrar essas várias possibilidades em sua jornada. Nas situações relatadas antes a deficiência aparece em contraste com uma noção estática de normalidade, onde é percebida como falha, falta ou déficit. Gostaria de destacar outras situações, que muitas vezes são versões bem sucedidas das histórias anteriores, em que a cegueira é vivida por todos os atores envolvidos não como falta, mas como diferença. Situações que revelam processos criativos em curso, onde a identidade se constrói na interação. Os comportamentos e atitudes dos atores envolvidos se adaptam às particularidades individuais para permitir o fluxo da interação. A primeira história é relatada por Camila e fala da experiência de almoçar com amigos cegos em um restaurante nas cercanias do IBC que, no horário do almoço, tem alta rotatividade. Quando eles se sentam os garçons já sabem como atende-los. Perguntam o que querem e se ela responde “quero carne”, o prato chega com a carne já cortada, o próprio garçom corta e traz arrumado no prato. Camila diz que “facilita muuuuuito”. Outro gesto que contribui para a fluidez do encontro é a indicação do local do copo e dos talheres: “ele encosta em você, na sua mão que vai pegar o copo, e aí ele vai encostando devagarzinho e „ó, seu copo‟. Aì ele vem com o garfo e dá na sua outra mão direitinho, você vai se sentindo assim... aquelas coisas que eu falo que acontece espontaneamente?”. Com isso a diferença, porque está presente e é considerada na interação, se dilui, não é vivida como falha e não interrompe o fluxo da interação. Na segunda história, voltamos para o mesmo momento em que Dora precisa descer a escada rolante para entrar no metrô.

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Um dia eu estava com uma moça que estava segurando o meu braço no metrô e quando eu fui dar o passo para pegar a escada rolante, eu já estava meio preparada e disse „ai meu Deus, como vai ser né?‟ e não pedi para ela soltar o meu braço, mas ela soltou. Quando eu fui dar o passo, ela soltou e eu digo „nooosssa, que espetáculo‟, ela fez exatamente o que eu queria. Assim e naturalmente... foi legal até eu não ter pedido porque aí eu percebi que ela fez né. Eu perguntei para ela „você está acostumada a lidar com pessoas cegas?‟, ela disse „não, eu nunca acompanhei nenhuma pessoa cega, eu fiz alguma coisa errada?‟, eu disse „nããão, muito pelo contrário, você fez o certo, porque as pessoas seguram o meu braço na hora que eu vou dar o passo para entrar na escada...‟, ela virou-se assim „ué, mas se eu fizer isso você cai...‟ e eu disse „pois é, é tão óbvio, né?‟, e ninguém percebe, entendeu? Aí que eu digo, não, isso é óbvio é só a pessoa não ficar agoniada que ela vai ver que é óbvio.

A terceira situação é também relatada por Camila, quando traz versões festivas mais fluidas e mais vívidas do que o relato imobilizante de festas atreladas a cadeiras, cantos e pratos de salgadinho. Os motivos de sua preferência por “festa de cegos” a “festa de videntes” falam de práticas que atentam para a diferença e de relações que, ao levarem em conta singularidades, favorecem a liberdade de sentir-se mais à vontade em um ambiente - sentir-se igual aos outros. Eu falo assim „gente, olha, vocês vão me desculpar, mas se eu tiver uma festa de vidente e uma festa dos cegos, eu prefiro ir para a festa dos cegos‟. Eu acho que fica mais divertida. Quando a gente chegou a primeira vez no salão de um amigo nosso ele disse „gente, vem cá, aqui é o banheiro‟, aì vai te levando „tá de bengala aì?‟. Você tem uma pessoa que entende que você tem essa necessidade de „vou ao banheiro‟, sabe? Pra gente isso é uma coisa muito boa, conhecer o lugar antes, depois levantar e ir. O diferencial é esse, a gente acaba de chegar e „oi, gente, tudo bem? Vem conhecer o salão, olha aqui onde tem a cerveja, você pode pegar as coisas, pro banheiro vem por essa parede‟. Essa necessidade de estar num lugar que você vai ser tratado igualmente. Teve uma amiga que é cega também, ela fez aniversário e fez uma festa legal, num salão e tal, aí ela orientou todos os garçons que era uma festa para deficiente visual, foi uma festa diferente. Os garçons davam o guardanapo na nossa mão, „olha, é canapé de...‟, aì a gente pegava. Nos sentimos assim... iguais.

As histórias trazem situações localizadas em que a própria ideia de deficiência se redefine. Ou, pensando na deficiência como incapacidade, seria uma experiência que, pela fluidez do curso da interação, está ausente desses encontros. São situações em que, como indica Winance (2007), os atores estão simultaneamente considerando o coletivo, a forma como ele se compõe, suas definições e normas que naquele momento tornarão possível viver junto. É um viver junto que não se define a priori, mas é negociado e pode tomar diferentes formas no curso das interações.

5.3.7 Passagens mais difíceis de atravessar

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Law e Moser (1999) acreditam que a deficiência diz respeito a passagens específicas entre arranjos igualmente específicos de materiais heterogêneos. São as características dos materiais que permitem as passagens e os arranjos que as asseguram ou não. Qualquer pessoa é um conjunto de passagens mais ou menos difíceis ou complexas. E há uma economia que distribui as passagens entre a visibilidade e a invisibilidade. É normalmente melhor ser um pacote técnico-corpóreo padrão, um pacote que é normativamente aprovado, com normas embutidas nas ramificações das redes de especificidades e nas passagens entre elas. Mas, como lembram os autores, aquilo que conta como padrão, aquilo que é feito para ser padronizado é um assunto que também deve ser questionado. Descrevo as especificidades de alguns arranjos locais em que a diferença da cegueira é mais difícil de ser contornada, seja pelas especificidades que a condição impõe, seja por ordenamentos e materialidades que não preveem a heterogeneidade dos pacotes técnico-corpóreos que realizam passagens. A experiência de sair para caminhar sem bengala, andar com os braços soltos, sem ninguém segurando e sem segurar em ninguém é uma das que Camila se ressente de não mais poder fazer. Sair para correr ou caminhar na praia. Jair também sente falta da liberdade de movimentos, de fazer esportes como corrida, jogar vôlei na praia ou jogar bola. Mas nem por isso ele ou Camila deixam de fazer as coisas que conseguem e podem, porque para ela a sua opção quando acorda de manhã é sempre levantar e ir. Algumas vezes a contragosto de outros, como no caso dos familiares de Jair que, diz ele, pensam que ele deveria não só ficar mais em casa como pedir as coisas. Beatriz também fala da praia e lamenta não ter a opção de ir sozinha, no local que escolher e quando quiser. Pelo padrão da praia ser desorganização - qualquer coisa pode estar em qualquer lugar – isso bloqueia a passagem e a circulação de uma pessoa cega. No meio do caminho entre a dependência e a independência, Beatriz encontrou uma possibilidade para ir à praia sozinha. O projeto Praia Acessível – lazer para todos110 consiste na instalação de uma esteira que possibilita o deslocamento de cegos e cadeirantes até a beira da praia. Tem também cadeiras anfíbias para banho de mar. A proposta é implantar medidas de acessibilidade nas praias, tais como construção de rampas, rebaixamento de calçadas e alinhamento do entorno para circulação de cadeirantes e pessoas com deficiência visual, além de sinalização sonora e piso tátil

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Para maiores informações: http://www.adaptsurf.org.br/index.html e http://praiaparatodos.com.br/. Acesso em 05.05.2014.

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desde o ponto de ônibus e estacionamento até o local do projeto. Durante o verão de 2013/2014, o projeto aconteceu em dois pontos – finais de semana, de 9h às 14h, no posto 3, na Barra e em frente à rua Sá Ferreira, em Copacabana. Beatriz chega à praia e os profissionais voluntários de educação física e fisioterapia avisam que qualquer coisa que ela precisar é só chamar. Quando quer entrar no mar, levanta a mão e chama, eles ajudam, mas ela diz que não ficam em cima, com excesso de cuidado e perguntando o tempo todo se precisa de alguma coisa. Se sente bem desse jeito. Só pode ir à praia dessa forma mais autônoma em determinado período do ano, em dias e horários restritos. A passagem que o projeto proporciona não é maravilhosa, mas é certamente melhor do que era antes, porque melhor do que não ter opção. Almoço coletivo fora de casa, uma mesa com muitas pessoas. Divisão de tarefas entre quem cozinha, quem coloca a mesa, quem tira a mesa, quem lava e enxuga a louça. Nessa situação Dora diz que a tarefa de tirar a mesa seria a mais desastrosa para se eleger a uma pessoa cega. Uma mesa de muita gente é muito ruim da gente tirar, porque a gente tem que tomar um cuidado com as coisas que a gente não sabe onde que as pessoas deixaram, em que posição as pessoas deixaram as coisas, tirar a mesa é horrível, uma tarefa que não rende para uma pessoa cega. A menos que seja a sua própria casa, as coisas que está acostumada. Mas você ir para um lugar diferente, para uma casa que não é sua, ah não, deixa eu lavar a louça que é ali mesmo naquele lugar. Ou até enxugar. Botar a mesa não é ruim, é tranquilo, beleza. Agora tirar a mesa não, não me pede isso, odeio. É ruim, demora, é o tipo de tarefa que qualquer outra pessoa faria muito mais rápido, então deixa eu fazer outra coisa porque vai ter mais lucro, vai render mais, o resultado final vai ser muito melhor.

Existem passagens que são suaves e outras que são incômodas. As que envolvem normatizações da forma como realizamos as refeições - no prato, com garfo e faca, a maneira como costumamos nos servir de comida -, coisas que são tidas como certas para aqueles normativamente competentes, para uma pessoa cega é uma passagem que pode ser mais ou menos incômoda, mais ou menos (d)eficiente, dependendo da familiaridade com o ambiente e as pessoas presentes. Camila exemplifica: Em casa a gente tem mais habilidade. Exemplo, prato de comida. Hoje em dia tenho muita dificuldade de me servir, mas ainda coloco. Mas só quando eu mesma faço e eu mesma sei. Se eu for na casa de uma pessoa não tenho condição nenhuma de mexer numa mesa, não tenho, a gente não tem. (...) a minha irmã quando bota comida no meu prato diz - „Camila a salada está do lado esquerdo‟ ou eu mesma coloco, ela vai comigo no fogão e me mostra - „a salada está aqui‟. Porque eu acho super legal isso de você dar a chance das pessoas fazerem as coisas, entendeu? Na rua não dá, mas em casa? - „olha, aqui está a salada, você quer que eu coloque? Quer colocar? Ó toma o azeite‟, dá o azeite na minha mão, - „tá certo?‟, - „tá, tá certinho‟.

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Assim, num bate papo. É uma coisa espontânea, as coisas vão acontecendo aos poucos né, fluindo. Aí vai indo, vai indo, quando você vê...

Moser (2005) sugere nos construirmos como atores-rede ou como coletivos híbridos; relações e associações de componentes materialmente heterogêneos tais como corpos, discursos científicos, máquinas, práticas diárias, ambiente físico, etc. A perspectiva a permite acreditar que seria possível evitar as manobras excludentes que classificam pessoas com deficiência como desviantes da norma. Colocar eficiência e deficiência no mesmo patamar é entendê-las como um efeito, resultado de como o nosso entorno ou o conjunto de relações nas quais estamos inseridos se organiza e se arranja. A diferença é que aqueles que têm um conjunto de funções corporais, recursos e habilidades padrão, que cabem nas normas estatísticas que formam as bases para todo o conjunto de padrões e normas técnicas, regulações prediais, etc., são habilitados e se tornam capazes de agir, recebendo o status de atores independentes e autoconfiantes, enquanto aqueles que estão fora dos padrões são literalmente deficientes. No caso relatado por Camila notamos como a sua percepção de dependência ao realizar uma refeição pode variar de acordo com o ambiente em que ela se insere e a rede de relações no entorno. Em algumas situações, quando a rede flui – se ela está em casa, com alguém com quem tem intimidade e que está acostumado com a sua diferença - ela se sente apta a funcionar. A deficiência pode ser entendida nas situações específicas que podem tanto nos capacitar quanto nos incapacitar. Moser (2005) enfatiza que, pela teoria do ator-rede, a deficiência não é uma condição dada, mas resulta de relações e configurações específicas. Uma cadeia de situações recorrentes gera um padrão que cria e recria deficiências como um estado permanente, mas o ponto de virada, para a autora, é que isso não necessariamente precisa ser dessa forma. Condições de vida, tipo de habitação, formas de cuidado, espaços públicos, transporte, entre outros, podem ser redesenhados e organizados de forma diferente para se tornarem menos incapacitantes. Um exemplo de arranjos que poderiam ser transformados para redistribuir (d)eficiência é a situação de fazer compras. Da forma como estão organizados os supermercados atualmente, Beatriz diz que não há como fazer essa ação de forma independente. Ela sempre precisa de alguém:

Às vezes ela (filha) vai comigo. Ontem eu fui fazer compras e ela foi comigo. Mas às vezes eu vou sozinha. O: mas aí alguém ajuda no mercado? Como que é?

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Tem que ser. Necessariamente. Tem que ir com funcionário... tem que ter paciência né? Tadinhos, mas são umas antas, nossa senhora... pior é que esses mercados não estão nem aí, essas empresas não se preocupam com nenhum tipo de treinamento, eles não treinam nada, as pessoas estão super despreparadas, já são ignorantes né, não tiveram oportunidades na vida, entram numa empresa que não está nem aí... eu peço papel laminado e o menino me vem com papel toalha! E tem erros assim que de vez em quando eu chego aqui com uma coisa e a minha filha - „mãe, não é isso‟, „mas eu pedi isso‟, - „mas não é‟, - „então é porque a criatura me deu errado‟. Vira e mexe eu chego em casa com coisa errada, porque eu peço uma coisa e eles me dão outra. Isso é um saco. Verdura, saladas, que eu gosto muito, eu faço um esforço, pego um táxi e vou lá no hortifrúti. É outro atendimento e outra qualidade também. Fora o tempo que você perde para ir ao mercado.

Law e Moser (1999) indicam que existem passagens que são públicas, outras que são privadas, aquelas que são mais complicadas e as que fluem e tudo isso tem a ver com ordenamento. Moraes e Arendt (2011) também analisam a deficiência visual como uma produção sociomaterial, como um processo precário, local e situado, e não como algo que a pessoa em si mesma é. Para os autores, atrelar a falta de eficiência ou de capacidade de agir a um corpo individual e defeituoso também faz existir uma versão de normalidade desengajada, desencarnada, não-marcada. Moraes e Arendt apontam que os estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) ajudam a entender que não há um único modo, mas vários modos de ordenar a deficiência que, quase sempre, se sobrepõem, se articulam e se contradizem. Fazer compras com a filha, com um funcionário não treinado, com um funcionário capacitado, pelo atendimento via telefone de um supermercado ou por meio de uma página acessível de um mercado virtual. Uma mesma situação e diferentes cegueiras. Diferentes formas de ordenar eficiência e deficiência.

5.3.8 Multiplicando e distribuindo (d)eficiências

Moser (2005) investiga as diferentes formas de ordenar deficiência e eficiência na vida diária, entendendo como tais ordenamentos são feitos, encorporados e como se expressam nas práticas. Um dos ordenamentos identificados pela autora é quando a deficiência conta como falta. As padronizações permitem e criam ordem para aqueles que possuem corpos e subjetividades estandardizados, mas criam problemas para outros, deficientes ou excluídos, com corpos e subjetividades não estandardizados. Padronizações produzem, portanto, seus próprios monstros, aqueles que não podem escapar por que precisam se relacionar com elas, mas que não se encaixam. A

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particularidade é materialmente produzida no choque entre encorporações não estandardizadas e ambientes estandardizados. A implicação disso, segundo Moser (2005), é que os arranjos materiais, as relações e as distribuições que habilitam corpos e subjetividades padronizados se tornam invisíveis ou desaparecem no pano de fundo, permitindo que pareçam isolados, independentes, delimitados e com capacidades inerentes de agência e subjetivação. Corpos não padronizados, por outro lado, aparecem como problemáticos e particulares, assim como as relações e distribuições que os habilitam. Permanecem visíveis, não desaparecem no pano de fundo. São incapazes de performatizar uma mente desincorporada, que é a forma necessária de encorporação na normalização. Para a autora, enquanto a realidade for construída com base no pressuposto de que existe um corpo universal e normal, corpos não estandardizados sempre aparecerão como problemáticos e falharão em performatizar como mentes desincorporadas. A própria normatização não consegue ter êxito, assim como não conseguem ser bem sucedidas as políticas ou os serviços construídos com base no princípio da normatização. A discussão nos é pertinente para compreender algumas situações em que a cegueira aparece como deficiência justamente no confronto com arranjos e materialidades padrões que não foram pensados ou articulados para incorporar a diferença. São histórias que escancaram a versão da normalidade desengajada, desencarnada, não-marcada, de que nos falam Moraes e Arendt (2011). A intenção ao trazê-las é explicitar alguns arranjos sociomateriais que produzem a cegueira como deficiência, multiplicando e redistribuindo os ordenamentos locais que articulam eficiência ou deficiência. História 1, vivida por Beatriz. Naquela semana, o posto de atendimento do seu banco na empresa em que trabalha estava em obras, obrigando-a ir em uma agência na Presidente Vargas. A agência tinha dois andares, no primeiro fica o pessoal de atendimento para abertura e gerenciamento de contas e, no segundo, os caixas. A primeira atitude do segurança do banco quando vê que Beatriz se aproxima é parar outro cliente que também entrava naquele momento e dizer - “senhor? O senhor vai subir? Leva ela por favor?”. Beatriz escuta e responde -“negativo, ninguém vai me levar em lugar nenhum, não senhor. O senhor por gentileza chama alguém do banco para me conduzir até lá em cima”. A pedido do segurança ela aguarda um momento até que vem a funcionária para auxiliá-la na subida da escada. Beatriz pergunta –“aqui não tem elevador não?”. A moça responde que não. Beatriz então comenta –“que coisa né? como 351

será que um cadeirante faz? Um idoso, uma pessoa que esteja com o pé quebrado, como essas pessoas fazem para subir as escadas?”. A funcionária responde –“a gente nunca teve esse problema aqui não”. Beatriz, pacientemente, explica – “olha só, moça, isso não é um problema, isso é só uma circunstância diferenciada que o banco deveria prever”. E comigo desabafa - “e ainda chamam a gente de problema! A gente tem que ter uma paciência...”. Beatriz acha que as pessoas não têm a menor noção e que atitudes como essa são fruto mesmo do desconhecimento. Acha que as iniciativas deveriam partir de pessoas jurídicas, principalmente empresas que trabalham diretamente com atendimento ao público. Passagens como essa poderiam ser mais suaves. Caso houvesse um elevador no local, se os funcionários fossem capacitados para atender públicos com corpos e subjetividades diversos, se os caixas fossem estrategicamente situados no primeiro andar do banco justamente prevendo o acesso de público amplamente diversificado, especialmente numa agência que se localiza no centro da cidade. A falha na situação vivida por Beatriz – a dificuldade maior em chegar até os caixas do banco, localizados no segundo andar - evidencia o despreparo de uma versão desengajada da normalidade, presente na arquitetura do banco e na falta de treinamento de seus funcionários. É ali que a deficiência pode ser situada, e não nos olhos de Beatriz. História 2. Dora recebe seu extrato do banco em Braille, mas diz que não serve para nada. O extrato que lhe mandam é mal editado, não está alinhado por colunas, é todo embolado. Ter um extrato em Braille embolado não lhe interessa, prefere checar na internet. O problema para ela é que as pessoas que desenvolvem o produto acreditam que sabem mais do que o usuário, não testam ou perguntam, consideram que o usuário só serve para atrapalhar. Isso acontece com todo o tipo de produto ou solução, mas, quando se trata de um usuário com deficiência, Dora acha que o resultado fica ainda mais distante, porque aquilo que o desenvolvedor supõe está muito longe da realidade de quem tem a deficiência. Mesmo nos casos em que o produto é testado, Dora acredita que não é qualquer usuário que está qualificado para testar. Para explicar, dá o exemplo do seu próprio trabalho com acessibilidade de sites:

Se eu vou testar a acessibilidade de um site, como profissional da área eu vou testar de maneira muito diferente de uma pessoa que simplesmente é cega e entra na internet. Ela vai te dizer se ela consegue entrar ou não naquele site. Mas eu não vou te dizer isso, eu vou te dizer se a maioria das pessoas cegas vão conseguir entrar ou não naquele site. Eu posso estar entrando, mas eu sei que o cara que é usuário de dosvox não vai conseguir, que o cara que é usuário do jawls mas não sabe configurar

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o jawls de determinada maneira não vai conseguir, que o cara de baixa visão que não usa leitor de tela não vai conseguir. Porque eu tenho essa experiência técnica. Muitas vezes o quê acontece, eles dão para um usuário para testar, e já é melhor do que nenhum né? mas aquele um não dá um retorno de que está ruim. Ele não tinha nada, já conseguiu ler alguma coisa, então para ele, ele vai dizer que está ótimo. Só que não está ótimo, eu sei que é possível fazer uma boa diagramação. A maioria dos casos eles não pedem para ninguém. Eu acho que se você vai imprimir um convite para um evento não sei que lá, aí tudo bem. Agora um banco que vai fazer um projeto para imprimir aquilo mensalmente? Faz direito, tá? Vamos combinar? Testa direito, bota uma pessoa com capacidade para testar. A nossa cultura não é uma cultura do teste.

As histórias acima, longe de apresentarem modelos ou padrões únicos, sugerem alternativas locais, múltiplos modos possíveis de ordenamento da deficiência em determinados contextos. Ainda que as experiências relatadas sejam incapacitantes, a reflexão que provocam sugere práticas outras em que a diferença não se tornaria um déficit. A cegueira pode novamente ser resituada, não na incapacidade de enxergar, mas na insuficiência das soluções e produtos oferecidos pelo banco. Assim como nas histórias apresentadas por Moser (2005), as narrativas aqui trabalhadas indicam que existem diferenças e existem múltiplas formas de se lidar com ela. Do ponto de vista de pessoas com deficiência existem alternativas para a normalização e seu outro, a falta. Alternativas já em prática ou aquelas imaginadas para situações que começam a acontecer, como no caso do extrato em Braille do banco de Dora. História 3. O terceiro relato se baseia em experiências vividas por Beatriz na relação com arranjos bancários tecnológicos ou sociomateriais que, ainda que não tenham sido desenvolvidos com esse intuito, podem contribuir para a eficiência ou deficiência que está sendo ordenada. Em um dia de chuva e ventania Beatriz sai da faculdade no centro da cidade e se dá conta que precisa de dinheiro. Eram mais de 16h e o atendimento bancário já tinha fechado. Sem poder contar com o atendimento face a face ela procura um policial para entrar numa agência com ela para que possa sacar dinheiro no caixa eletrônico. Diz ela: “senha é pessoal e intransferìvel né? mas eu sou obrigada a informar a minha senha para um desconhecido na rua”. Beatriz ainda não conhece caixa eletrônico acessível, apesar de saber que existem iniciativas em teste em algumas agências111. Por conta dessa dificuldade, procura usar muito o cartão de débito. Mesmo assim, até pouco tempo atrás, tinha que confiar que a pessoa havia digitado o valor correto a ser pago, porque não tinha como conferir. Uma ferramenta recente

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A norma brasileira NBR 15250 estabelece regras para garantir a acessibilidade em caixas destinados ao serviço de autoatendimento bancário.

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desenvolvida pelo banco, que não foi intencionalmente elaborada para pessoas com deficiência visual, mas sim como um dispositivo de segurança, acabou tendo como efeito o aumento da independência e da autonomia na vida de Beatriz. O dispositivo é o alerta por SMS das movimentações realizadas com o cartão de crédito ou de débito. Assim que coloca a senha e a transação é aprovada o usuário recebe uma mensagem no celular com o nome do estabelecimento e o valor pago. O celular de Beatriz tem um software leitor de tela, o que permite que na mesma hora confira as informações. Hoje, quando empresta o seu cartão de crédito para a filha adolescente ir ao shopping com as amigas, ela usa o cartão lá longe e o celular de Beatriz apita. Ela confere o valor e de vez em quando liga para a filha para controlar: “o quê que é isso, „fulana‟? chega, chega”. Antes só sabia o valor total gasto pela filha quando a fatura chegava, no final do mês. Agora na mesma hora ela pode avaliar e colocar um limite. A terceira história é uma mescla de soluções mais ou menos incapacitantes que têm como implicação um grau maior ou menor de autonomia e independência em situações do dia a dia. No primeiro caso, a segurança financeira de Beatriz se encontra exposta, já que precisa confiar sua senha a desconhecidos, sem nenhuma garantia além da boa vontade alheia. Com o recurso do SMS, Beatriz adquire maior autonomia, depende menos de outras pessoas, tem maior controle dos seus gastos e consegue exercer com mais liberdade a educação financeira da filha. O recurso lhe proporciona mais eficiência. Moser (2005) defende que esse tipo de capacidade, a eficiência, é uma competência que indica que a pessoa sabe, tem uma percepção global e controla uma determinada situação, estando, portanto, numa posição de agir sobre ela. A capacidade de ter controle sobre uma situação se relaciona com outras capacidades tais como uma atuação ativa e independente, mas também com escolha discricionária, autonomia, planejamento estratégico e administração. O conjunto de tecnologias em ação - um dispositivo do banco somado ao software leitor de tela do celular de Beatriz – congrega e disponibiliza serviços e funções que anteriormente ela não dispunha. Pela via da tecnologia se constroem caminhos que coletam e direcionam informações e controle até certos locais definidos, que se tornam centro de conhecimento e de ação. A capacidade de ação de Beatriz, tanto para controlar seus gastos, para diminuir a incerteza e o risco nas transações financeiras que realiza, quanto para administrar os gastos da filha, se torna possível por e emerge através dessas relações e arranjos incorporados.

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5.4 Processos de produção de identidade e diferença na cegueira

Formas mais contemporâneas de entendimento do conceito de identidade problematizam concepções essencialistas que a definem como um núcleo estável do eu que passa sem qualquer mudança pelas instabilidades da história. Hall (2014) defende uma concepção de identidade que não é nunca unificada, nunca singular, mas construída multiplamente ao longo de discursos, práticas e posições que podem ser antagônicas. As identidades estão constantemente em processo de mudança e transformação. A deficiência é um conceito que abrange experiências absolutamente distintas, e em certa medida incomparáveis, cuja unidade se constrói quando em contraste com a identidade de “normal”, especialmente no âmbito dos direitos e da polìtica, numa disputa por recursos materiais e simbólicos para garantir acesso a bens sociais. A cegueira é representada em discursos que são exteriores à vida de quem é cego, discursos que procuram fixa-la como uma diferença única cujo outro comparativo é a identidade de quem enxerga, os “normovisuais”. Ela emerge dentro de um jogo de modalidades específicas de poder, sendo mais o produto de uma marca da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída (Hall, 2014). Ao considerar as relações de interação em espaços públicos, busquei identificar algumas práticas que podem ou não perturbar o caráter relativamente estabelecido da cegueira enquanto deficiência. Nesse momento, gostaria de me voltar para os significados que a cegueira adquire para quem é cego. Será que podemos pensar na cegueira como uma identidade? Ou são experiências absolutamente distintas e individuais que não trazem nenhuma relação de proximidade entre si? Quais são as variações internas, quais os possíveis pontos de contato ou as fraturas no interior da noção de cegueira? Dificilmente poderia dar conta das inúmeras variações que influenciam a forma como a cegueira é vivenciada. Para mencionar algumas: idade em que se perdeu a visão, quantos anos de cegueira, se a perda foi causada por um acidente ou se foi um longo processo de despedida da vista por uma doença como a retinose pigmentar, a forma como reage a família ou os amigos, as possibilidades econômicas e sociais que abrirão ou fecharão portas em relação à tecnologia assistiva, meio de transporte, educação e formação sociocultural, chances de conseguir um emprego bem remunerado. Todos esses fatores influenciam a forma como a pessoa percebe a si mesma e a sua cegueira. Mas procuro me aproximar de uma primeira diferenciação interna em qualquer 355

deficiência - aquela entre quem nasce com uma lesão e quem adquire a lesão ao longo da vida. Quem nasce cego, quem se torna cego. Outras diferenciações aparecerão na análise à medida em que são trazidas pelos próprios pesquisados. Ao longo da tese percorremos situações em que aparece a diferença entre quem nasce e quem perde, especialmente ao falarmos das práticas de reabilitação, da maior ou menor possibilidade de desenvolver certas capacidades perceptivas como a ecolocalização ou mesmo na aprendizagem do Braille. Sempre marcando que ainda que a diferença influencie, ela não é determinante, outros fatores podem ser igualmente importantes como, no caso do aprendizado do Braille, a motivação pessoal, número de horas de prática semanal ou a idade da perda da visão. A psicóloga do IBC diz que cada um encara a perda da visão da sua forma e que o depois da deficiência está relacionado com o antes. A pessoa que perde a visão usa o que já conhecia para reagir à deficiência, não pega uma coisa nova. Então, se era uma pessoa depressiva e que tomava medicamento, a deficiência vai agravar essa situação que já era anterior. Uma pessoa “alto-astral”, que sempre foi à luta, vai viver a perda da visão de forma diferente. Mas as duas passarão por uma experiência que a psicóloga chama de fase do luto. Essa fase ela identifica não só em quem perde a visão, mas nas mães da criança que nasce cega. Seria um processo psíquico de quatro fases – o choque da perda, a fase do luto, a aceitação e a superação. Se a cegueira for de nascimento, o processo é vivido pela família. Essa parece ser uma forma de encarar as etapas psíquicas da perda da visão bastante internalizada nos discursos, tanto dos profissionais do IBC quanto dos pesquisados que ficaram cegos112. Quem perde a visão passa por uma daquelas experiências que Woodward (2014) chama de fragmentação. Uma mudança que tem uma base corpórea e existencial, mas que também afeta as relações pessoais e de trabalho e a forma como as pessoas representam a si mesmas. O processo de aceitação da cegueira e a reabilitação, pode ser aproximado da noção de cura tal como entendida por Csordas (2008), não tanto a eliminação de uma coisa (uma doença, um sintoma, um problema), mas a transformação

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A intenção aqui não é dialogar com trabalhos que problematizam e aprofundam a discussão sobre as fases do luto, especialmente da área da psicologia, mas apenas apontar para a internalização desse discurso no processo de reabilitação. A ideia de etapas emocionais para perda da visão também pode ser aproximada à noção de “carreira moral” desenvolvida por Goffman (1975) – a tendência de que pessoas com um estigma particular tenham experiências similares de aprendizagem relativa a sua condição e sofram mudanças parecidas na concepção do eu, uma sequência semelhante de ajustamentos pessoais.

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de uma pessoa, um sujeito que é um ser corpóreo. Abordo nesse capítulo a transformação pela ótica da identidade, dos processos de reconstrução e percepção de si. Ainda que traga exemplos ou incidentes vividos por outras pessoas, terei como eixo a trajetória de Camila para falar do processo de quem perde a visão. Sua reabilitação ainda estava em andamento quando nos conhecemos, o que traz vivacidade e maior riqueza de detalhes a seus depoimentos. Sobre os processos de quem nasce cego, parto principalmente do depoimento de Dora, ainda que traga algumas reflexões de Renata e de Ana. O impacto da perda da visão nem sempre é vivido de forma trágica. Como no exemplar caso de Borges113, a perda da visão pode acontecer de modo gradual, o que de alguma maneira pode ajudar a pessoa a se preparar para a transição. Mas são os relatos de quem perde a visão na fase adulta os que mais se aproximam da representação da cegueira enquanto uma forma de morte. A diferença é que para o “outro” da cegueira, aquele que enxerga, a morte que projeta numa experiência que não viveu significa para ele simplesmente fim. Nos relatos de quem perde a visão o fim, e o luto que se segue, é uma das fases de transição entre dois estados, um antes e um depois. O que a cegueira significa para eles estaria mais próximo, portanto, de uma ideia de morte enquanto transformação. Camila viveu a experiência de cegar como uma passagem de um mundo para outro. Ainda que não tenha sido um impacto tão grande, porque seu problema era progressivo e ela sabia que um dia ficaria cega, não tem como deixar de ser chocante. O primeiro momento em que se percebeu cega sentiu como se não pertencesse a nenhum lugar, nem ao mundo das pessoas que enxergam nem ao mundo dos cegos, porque ainda não tinha aprendido a viver como uma pessoa que não enxerga. Entre os dois mundos tem a fase do vácuo, do vazio. Depois que entrou no IBC ficou sabendo que nomeiam esse período de fase do luto, do sofrimento. Não tem tempo certo de duração, depende de cada um. Para Camila durou 1 ano. Beatriz disse que ficou 2 anos nesse processo e Angela comenta que, antes de mudar de atitude e decidir seguir em frente, ficou 6 anos quase sem sair de casa ou dependendo dos filhos para tudo. Goffman (1975) se refere a essa fase como uma crise onde se vive a experiência do isolamento e da falta de

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Borges, na palestra “A cegueira”, fala sobre sua condição: “Meu caso não é especialmente dramático. É dramático o caso daqueles que perdem bruscamente a visão: trata-se de uma fulminação, de um eclipse; mas em meu caso esse lento crepúsculo começou quando comecei a ver. Vem desde 1899 sem momentos dramáticos, um lento crepúsculo que durou mais de meio século” (Borges, 2011: 199).

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habilitação. Momentos que retrospectivamente são considerados decisivos, em que o indivíduo reflete sobre o seu problema, aprende sobre si mesmo, adaptando-se a sua situação e alcançando uma nova compreensão do que é importante e merece ser buscado na vida. A confluência dos relatos dos pesquisados sobre essa etapa falam dos sofrimentos de angústia, paralisia, insegurança, tristeza, não sair de casa, dependência, medo de enfrentar a vida e as outras pessoas, vontade de morrer. Camila relata: Eu me senti engessada. Eu não conseguia nem me mexer mais, porque eu perdi a noção do espaço, eu não sabia onde eu botava a mão, o quê que eu pegava. Eu parei de falar, eu não falava, não conseguia mais me relacionar, assim... de me perguntar alguma coisa, por não saber mais onde a pessoa está, por essa falta de noção do espaço. Eu paralisei e eu sabia que eu não ia mais ter aquela... as atitudes que eu tinha né, que eu ia mudar muito. Eu me senti engessada meeeesmo, até os meus pensamentos, eu não conseguia mais pensar, as pessoas falavam e eu aceitava. Eu achava que até a minha memória estava faltando. É praticamente morrer mesmo. Você tem que morrer. Porque você morre para um mundo para entrar em outro. Porque você sabe que você vai ter que re-aprender. Reaprender a ler em Braille, reaprender a andar, reaprender a escutar mais, a memorizar muita coisa, tem que começar a aprender muita coisa de modos diferentes, né? Quando eu falei que fiquei naquele vácuo é que eu não conhecia o mundo que eu ia viver. Eu saí do mundo dos que enxergam, vim para o mundo dos cegos e não sabia o que esperava do outro lado. E aí? Como vai ser a minha vida? O quê que eu vou fazer? A pessoa vai morrendo, sabe? Não tem como. Você para num canto, não vive, não fala, não quer mais andar, não quer mais nada... vai se acabando ali. Eu engordei para caramba, sabe, triste, triste. Mas não deu revolta... „ah, você ficou com depressão?‟, não. Porque a depressão te joga na cama, né, você não quer falar com ninguém, eu falava com as minhas irmãs. Eu tinha dificuldade de me relacionar porque eu não sabia mais o que fazer na atual condição que eu tinha. Mas eu nunca falei assim „ah, que droga, quero me matar!‟, não, isso nunca houve na minha vida. Houve tristeza, esse vazio de não saber o que fazer.

No depoimento de Camila se entrelaçam duas noções distintas de morte, a morte enquanto metáfora de transformação e a morte biológica, enquanto fim. Quando diz que viveu uma morte, que de certa forma precisou morrer quando ficou cega, Camila está falando de um processo de profunda mudança, em que ela precisa deixar de ser uma coisa para se tornar outra. Com toda a carga de sofrimento que a experiência lhe trouxe, ela em nenhum momento pensou em efetivamente dar um término em sua vida. Hertz (1990), quando analisa o significado da morte entre os povos da Indonésia e Borneo, aponta que a morte é, para a consciência coletiva, uma exclusão temporal do indivíduo da comunhão humana, que tem como efeito fazê-lo passar da sociedade visível dos vivos à sociedade invisível dos ancestrais. A morte faria parte de um fenômeno mais geral de exclusões e renascimentos que um indivíduo atravessa ao longo das diferentes etapas de sua vida: nascimento, transição do jovem da sociedade das mulheres e crianças à sociedade dos homens adultos, matrimônio. Cada promoção de

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um indivíduo implica um passo de um grupo a outro – uma exclusão, ou seja, uma morte, e uma nova integração, ou renascimento. O autor fala de um estado intermediário entre a morte e a ressurreição. Segundo Hertz, o fato brutal da morte física não basta para consumar a morte nas consciências. A imagem daquele que acaba de morrer forma ainda parte do sistema de coisas desse mundo e só se separa dele pouco a pouco, por meio de uma série de desligamentos interiores. Se é necessário certo tempo para desterrar o morto do país dos vivos é porque a sociedade, sacudida pelo choque, precisa recuperar aos poucos o equilíbrio. É nesse sentido que, pensando no depoimento de Camila, podemos aproximar a experiência da perda da visão a uma passagem que implica um passo de um grupo a outro. O período que chamam de luto pode ser entendido como esse estado intermediário entre uma exclusão e um renascimento. Assim como os povos da Indonésia e Borneo, é preciso certo tempo e uma série de desligamentos interiores para recuperar o equilíbrio após o choque da perda. Para não morrer, Camila decidiu aceitar a cegueira. Falou consigo mesma: „bom, não tem outro jeito, eu quero viver, então vou ter que aceitar e vou ter que ir em frente‟. Aí começou uma nova etapa. Nesse período, foi fundamental o apoio da irmã. Foi ela que a trouxe até o Benjamin Constant e, no inicio, Camila andava praticamente “pendurada” no pescoço dela, ainda tinha muito medo de onde pisaria. Depois começou a caminhar, literalmente aprendeu de novo a andar sozinha. Frequentando as aulas no IBC foi percebendo que poderia usar os outros sentidos, foi aprendendo a usá-los, começou a enxergar meios de viver, por onde ir, o que ainda pode fazer. A partir da aceitação, as coisas foram vindo. No tempo em que ficou parada foi perdendo o contato com os amigos que tinha, mas nos cursos que frequenta no IBC conheceu outras pessoas e foi criando um novo grupo de amigos. Além dos cursos básicos da reabilitação, fez aula de música, expressão corporal, curso de teatro (Camila foi uma das participantes mais assíduas da oficina que ministramos no IBC). Acha que as aulas foram abrindo a sua cabeça, e o coração também, para a aceitação. Rodrigues (1983), em “Tabu da morte”, examina as práticas e crenças funerárias de outras culturas, fazendo uma análise dos processos históricos da formação da nossa ideia atual sobre a morte e as consequências dessa noção para a sociedade. A partir do século XIX, o autor identifica um processo de escamoteamento da morte na sociedade ocidental, junto com o surgimento de uma premissa de que a vida é sempre feliz ou deve sempre aparentar sê-lo. Tanto Rodrigues quanto outros autores, como Bauman 359

(2008) e Àries (2003), consideram que a imagem da morte enquanto desaparecimento é uma característica exclusiva da sociedade ocidental moderna. Analisando outras representações culturais sobre a morte, Rodrigues (1983) encontra categorias gerais produzidas pela humanidade ao longo do tempo, que não se excluem e muitas vezes coexistem em uma mesma cultura, entre elas a morte-passagem, a morte-libertação, possessão, reencarnação, morte-fecunda. O autor identifica um ponto em comum entre tais perspectivas: a morte enquanto transformação. É essa metáfora que resgato para entender a perda da visão enquanto uma morte para aqueles que vivem essa experiência. Uma morte que é passagem, que é transição entre dois estados, que é ponte que se atravessa. Camila acha que seu processo foi muito sofrível, mas cada pessoa reage de um jeito. Aprendeu isso com as diversas experiências de quem encontrou no Benjamin. A partir da constatação de que não tem mais jeito, não tem mais volta, cada um tem uma cabeça, cada um tem uma reação. Para ela tem sido fundamental conviver com outras pessoas e receber o apoio de quem já passou por isso, um dá força para o outro, ela percebe as diferenças e aprende com as experiências. Deu um exemplo. Um dia conheceu uma moça que mora muito longe. Conversando com ela perguntou com quem que ela vinha para o IBC e ela respondeu que sozinha. Camila se surpreendeu e quis saber como ela fazia isso. A moça explicou e ela pensou consigo mesma que a sua meta do próximo ano seria essa, começar a andar sozinha. O choque ou o trauma da perda da visão e a experiência de morte enquanto transformação é algo que diferencia cegueira congênita de cegueira adquirida. Renata, cega congênita por consequência de um parto prematuro, compara sua experiência com a de alguém que fica cego: Quando o indivíduo nasce cego ele vive como cego desde que nasceu, ele não conhece enxergar. Quando o indivíduo enxerga e perde a visão, seja na infância, na adolescência ou na idade adulta, ele conhece dois mundos, digamos assim. Ele conhece viver enxergando e conhece viver sendo cego. Quem não perde tem dificuldades que a própria cegueira impõe, mas não conhecia... a pessoa na verdade não perdeu, porque ela não conhecia, a pessoa não sabe o que é enxergar. Aí eu acho que não causa tanto trauma, sabe? Eu, por exemplo, eu nunca enxerguei, não lembro como é enxergar, não sei se alguma vez eu enxerguei, acho que não, e para mim não enxergar é normal. Eu levanto todas as manhãs, faço as minhas coisas, vou para o trabalho, trabalho o dia todo, vou para casa, faço as coisas em casa e tal. É normal. Eu não sinto nada mais por isso. Agora para quem enxergava e depois perdeu, tem gente que não consegue, tem medo de sair na rua, tem trauma, tem a questão da aceitação também, aceitar a cegueira, aceitar as limitações que a perda da visão te impõe.

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Muitas pessoas tentam comparar a experiência de quem perde a visão com a de quem nasce cego atribuindo uma hierarquia – se uma é melhor ou pior do que a outra. A tentativa de classificar vem sempre de alguém de fora, porque quem vive a cegueira, Dora, Beatriz ou Renata, por exemplo, acham que são experiências distintas e em grande medida incomparáveis. Consideremos um dos pontos mencionados por Renata, quem nasce cego não conhece enxergar. Por um lado a pessoa não vive o trauma da perda, por outro, ela não tem um acervo de informações do sentido visual. Isso é melhor ou pior? Para Beatriz não tem nada melhor ou pior, nada certo ou errado, tudo tem prós e contras e tudo depende de como aquela pessoa vai viver aquela experiência.

Eu perdi. Eu vim perdendo. Mas hoje a lembrança que eu tenho da vida, do mundo, das coisas, me ajuda muito. Questão de postura física mesmo, questão de cores, de comportamento, de uma série de coisas, isso tudo influencia muito, a coisa corporal. A pessoa que nasce cega, tudo bem, ela não sofre essa perda, mas em compensação ela fica num déficit de informação absurdo. É mais ou menos feliz por isso? Não sei. Ela certamente é feliz, se é mais que eu ou você, ninguém nunca vai saber, porque não tem como medir, ela desconhece outra coisa. São coisas que não dá para medir, não dá para comparar, a minha experiência, a de alguém que nasce ou uma pessoa que tem uma visão absolutamente normal, sofre um acidente e fica cega. São experiências totalmente independentes uma da outra.

A experiência de Dora traz mais um elemento importante para a discussão sobre os processos de identidade na cegueira. Ela também acha que não tem como hierarquizar as experiências de quem nasce ou perde porque são situações que dependem da estrutura psicológica de cada um e de como aquela pessoa encara a diferença. Quem nasce teria a vantagem de não ter o trauma da perda que a cegueira adquirida pode ter, perder uma coisa que já tinha estruturado toda uma vida. Uma vantagem que ela coloca entre aspas, porque depende das oportunidades de quem nasce, das experiências, da forma como foi criado. Por outro lado, Dora fala de algo que para ela é muito marcante na experiência de quem nasce e que muitas vezes as pessoas não consideram, a experiência de ser discriminada desde cedo. Quem adquire a cegueira mais tarde na vida pelo menos não teve uma infância sendo considerado o coitado, o diferente, passando por experiências de rejeição, de frustração. Dora acha que sofrer preconceito desde a infância é muito ruim para a formação da personalidade.

Você tem que se haver com o fato de ser diferente e com o preconceito das pessoas desde que você se entende como gente. Você escutar „ah, coitadinha da Olivia‟, „a Olivia, tadinha...‟. Você já pensou, desde que você se entende como gente, você ouvir isso? E você vê o sofrimento dos seus pais, porque a criança vê, óbvio que a criança vê. Pode até ser cega, mas ela vê. Então as pessoas relevam isso, acham que

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isso aí então, ah já se acostumou... Acostumou com o quê, cara pálida? Claro que não. Essa pessoa antes de se entender como gente ela já estava sofrendo o preconceito, desde bebê. Ela pode ter outras sequelas porque, por não ter algum sentido ou algum movimento, ela deveria ter sido mais estimulada e não foi. Entendeu? Então você tem sequelas da falta da educação.

O depoimento de Dora fala dos processos psíquicos de formação do sentimento de identidade de uma criança e o impacto que a reação dos outros a sua cegueira pode ter nesse processo. Woodward (2014), resgatando teorias psicanalíticas sobre o processo de formação da identidade, especialmente o período denominado por Lacan de fase do espelho, diz que o sentimento de identidade de uma criança surge da internalização das visões exteriores que ela tem de si própria. Nessa fase, a criança construirá um eu que é baseado no seu reflexo em um espelho verdadeiro ou no espelho dos olhos de outros. Assim como Dora indica em seu depoimento que mesmo que a criança não enxergue ela vê o sofrimento de seus pais, precisamos também desconsiderar as metáforas excessivamente visuais da fase do espelho, trazendo como possíveis equivalentes as noções de apreender ou sentir. O que nos interessa resgatar da reflexão da autora é a existência de um contínuo processo de identificação no qual se busca criar alguma compreensão de si próprio por meio de sistemas simbólicos e onde se busca identificação nas formas em que se é visto pelos outros. Justamente no momento em que a identidade está sendo formada, a criança cega percebe a sua diferença por meio do sentimento de pena, do preconceito dos outros ou do sofrimento de seus pais e os efeitos nocivos que isso pode ter para sua construção de si, já que o encontro inicial prepararia a cena para as identificações futuras. Dois pontos mencionados por Dora também influenciam a experiência de quem perde a visão, mas podem determinar de uma maneira mais estrutural a experiência de quem nasce cego – a forma como a família encara a cegueira da criança e o acesso que ela teve a uma educação voltada para o seu desenvolvimento. De acordo com esses fatores, a vivência e o jeito de encarar a cegueira podem variar bastante. A psicóloga do IBC ratifica esse ponto ao dizer que muitas vezes as famílias podem contribuir para a criança ficar retraída. „não pode isso‟, „cuidado‟, „não levo porque no parque as crianças...‟, em vez de levar ao parque, conscientizar, fazer uma socialização... tem famílias de crianças que não superam nunca, que ficam sempre naquela coisa, que superprotege, que trata como bebê, e você chama aqui e fala e acontece, e é muito difícil... o papel da família, quando é criança, é fundamental.

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Ana, por exemplo, nasceu em 1962 em Riacho das Almas, município de Caruaru, interior de Pernambuco. Nasceu com glaucoma congênito, quando abriu os olhos sua mãe logo percebeu que tinha algum problema. Levou ao médico e ele disse que ela era cega. A reação de seu avô foi dramática: “Mata. Mata, por que cego nesse mundo não vive, pode matar”. Naquele tempo cego era considerado uma aberração e tinha que ficar escondido. Sua mãe não só não matou como decidiu se mudar para o Rio de Janeiro quando ela tinha 6 anos de idade porque ouviu falar, por um tio, que lá tinha uma escola para cegos. Aos 7 anos Ana começou a estudar no IBC. A família morava na favela do Jacarezinho, era longe e Ana foi aluna interna do instituto até terminar 1o grau. Como ganhou bolsa por desempenho morou no alojamento durante a semana até os 18 anos, quando completou o 2o grau em uma escola regular. A mãe era costureira, quase não tinha estudo. Não foi fácil, mas Ana acredita que tudo o que ela é hoje deve à mãe. Ana fez faculdade de psicologia e é professora concursada do IBC. Dora descreve o cruzamento entre a história pessoal e a história familiar para a formação da identidade, comparando a sua trajetória pessoal e familiar com a do exmarido, também cego. A comparação traz a interseção dos campos mutuamente constitutivos do conceito de identidade, apontada por Hall (2014). Um conceito que se articula tanto nas formações e práticas discursivas que constituem o campo social quanto nos processos que produzem subjetividades, processos que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar.

Tem a ver um pouco com a pessoa e tem a ver um pouco com a história da pessoa, com a família. Eu era a primeira filha dos meus pais e era a primeira neta do lado da família do meu pai. E aí quando eu nasci cega foi aquela coisa, ficou todo mundo chocado, como é que vai fazer, tem que resolver, tem que fazer, tem que acontecer, foi uma tragédia geral. A gente sente, né? Foi um baque. Então para mim a cegueira foi sempre assim um transtorno, uma coisa que se eu não tivesse ia ser muito melhor, né, sempre achava assim que seria tudo mais fácil, que a vida seria muito mais fácil. Para eu conseguir lidar bem com essa questão foi uma superação, foi um trabalho interno meu, eu não nasci lidando bem com isso. Então para mim eu sinto que foi um caminho que eu acho que foi mais penoso, para eu chegar numa aceitação, para eu chegar numa tranquilidade, chegar a ficar em paz com a minha cegueira, foi um caminho mais longo. A minha família eu acho que eles foram forçados por mim a aceitar porque eu resolvi fazer as coisas por mim. Briguei muito para ter a minha independência. Aí o meu ex-marido tem uma história que é completamente diferente. Ele era de uma família pobre do interior do Ceará. Ficou cego com 3 meses de idade, teve lá alguma coisa que depois ele contando para um médico, o médico acha que ele teve desidratação e ele ficou muito doente. Ficou assim à morte mesmo. Ele já tinha até caixão, porque o pessoal dizia tipo assim „de hoje não passa‟. Com 3 meses. Uma vez eu tive oportunidade de conversar com a irmã mais velha dele, ela tinha uns 11 anos quando ele nasceu e ela se lembra que os vizinhos iam lá todo dia visitar já meio que esperando a hora dele morrer. E ele não morreu. E ficou só cego. E isso para ele... ele nunca sentiu a cegueira como sendo uma tragédia, a cegueira para ele sempre foi lucro, ele estava no lucro. A família

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sempre encarou como uma coisa que pô, o cara viveu, o cara não morreu, o cara está aí, que bacana. Eu, apesar de assim, levar bem a coisa, mas acho que lá dentro é como se a cegueira para mim, eu lidasse com ela de uma maneira muito mais pesada do que ele, entendeu? E ele não, ele diz assim „tem pessoas que não enxergam, outras não escutam, outras o pau não sobe... cada um tem o seu problema‟ (risos).

Beatriz acha que as pessoas precisam parar de generalizar os outros pelas suas particularidades, em dizeres que começam com “ah, o cego...”. Uma questão de ir além dos dualismos e das marcações das diferenças e perceber o outro como um ser humano, como uma pessoa. As pessoas precisam entender... quer dizer, acho que entender não é difícil, é realmente... não sei, incorporar isso, que independente da pessoa ser cega, surda, ou lá o que seja, é uma pessoa. Existe ali um ser, existe ali uma personalidade, existe ali uma disponibilidade, existe ali um humor, existe ali uma questão de querer ou não, sei lá, caralho, é uma pessoa. São pessoas diferentes. Olhar o outro como outro ser, pronto. Acabou gente, com a limitação que ele tem e acabou.

Dora não identifica um sentimento de pertinência, não considera a sua experiência igual ou parecida a de outras pessoas cegas, mesmo que também sejam cegos congênitos. Nesse sentido ela não acha que a cegueira seja uma identidade. Para ela é um tema muito pessoal. Goffman (1975) lembra que, uma vez que o indivíduo estigmatizado adquire modelos de identidade que aplica a si mesmo apesar da impossibilidade de se conformar com eles, a ambivalência é inevitável. Podemos perceber nos exemplos apresentados o quanto o significado da cegueira para quem não enxerga não pode ser fixado em uma identidade única, fechada. A cegueira varia de acordo com o contexto social de cada indivíduo, com o gênero, com a idade, com raça ou etnia, depende da forma como a família reage, da classe social. Ela desliza. Não tem um significado permanente nem mesmo ao longo da vida de uma pessoa. A cegueira, para cada um, é produto de uma interseção de diferentes componentes, discursos políticos e culturais e histórias particulares (Woodward, 2014).

5.4.1 Novas redes de sociabilidade

Na trajetória de alguns pesquisados que perderam a visão, a cegueira trouxe consigo a oportunidade de participar em novas redes de sociabilidade, a criação de novos vínculos, a possibilidade de completar os estudos, a ampliação da experiência urbana a partir dos novos locais frequentados, transformações que em alguns casos também implicam em uma mudança em sua “visão” de mundo. 364

Tanto Angela quanto Caetano relatam que, ao se tornarem cegos, viveram uma experiência de ruptura com determinados vínculos e rotinas anteriores, especialmente os relacionados ao trabalho. A ruptura significou perdas de determinados hábitos e relações, mas também abertura para novos espaços de sociabilidade e novos conhecimentos. Jair, que antes de ficar cego trabalhou em restaurantes, confeitarias e lanchonetes da cidade, fala das novas atividades que passou a realizar nos cursos oferecidos por instituições voltadas para cegos, como a União dos Cegos ou o IBC. Talvez se eu estivesse enxergando eu não estava fazendo várias atividades que eu estou fazendo hoje, entendeu? Eu fiz a informática, aula de dança de salão, se eu estivesse enxergando eu não estava fazendo isso. Aula de cavaquinho que agora eu dou aula já tem 3 anos, já estou tocando cavaquinho. Essas coisas. Então adiantou uma coisa, mas a outra... mudou alguma coisa.

Um trajeto recorrente no cotidiano de Caetano são as idas e vindas para a Urca, bairro onde se localiza o IBC. Caetano iniciou a sua reabilitação no Instituto em 1991. De lá para cá o IBC sempre esteve presente em seu cotidiano. O Instituto é para Caetano um local de sociabilidade, onde encontra seus amigos. É na biblioteca do IBC que estuda para os concursos públicos que pretende realizar. Conta com a ajuda de ledores voluntários quando precisa. Utiliza a pista de atletismo para fazer caminhada. Participa de oficinas como teatro, dança e coral, oferecidas para o grupo de convivência, formado por ex-reabilitandos. Assiste palestras ou participa de eventos organizados pelo Instituto. Caetano não é uma exceção. Entre as pessoas cegas que conheci no IBC, muitas eram ex-reabilitandas que continuaram frequentando o Instituto, às vezes 15, 20 anos depois de já terminada a reabilitação. Como disse uma das profissionais que entrevistei, o IBC se torna a segunda casa. Existe uma preocupação dos profissionais de que as pessoas se independam de lá, mas ao mesmo tempo existe também a compreensão do IBC como lugar de referência e acolhimento. Angela fala de uma mudança não só da condição física e o aprendizado de novas atividades, mas também de uma concepção de mundo, a partir da experiência da cegueira e da transformação que a entrada em novas redes comunitárias e o estabelecimento de novos laços sociais lhe proporcionou. Enquanto enxergava, estava inserida em um mundo de trabalho e condição social específicos. A situação familiar, a necessidade financeira, a profissão que exercia e a falta de tempo aparecem em seu discurso como fatores que a impediam de levar adiante ambições educacionais e pessoais.

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Para mim no início foi difícil, mas hoje é uma superação de tudo, sabe, eu tenho uma visão da vida mais ampla do que quando eu enxergava. Muita gente não acredita quando eu falo isso, mas é a mais pura verdade. Porque quando eu enxergava, eu comecei a trabalhar com 9 anos de idade, tive pouco estudo, mas uma coisa que eu gostava muito era de estudar. Mas aí depois que eu tive filhos... até eu ter meus filhos eu não consegui estudar porque tinha sempre aquela coisa de ter que trabalhar, trabalhar, trabalhar para poder ajudar minha mãe a criar os meus irmãos. Depois eu tive filhos, aí é tudo uma questão de... uma desculpa né? „bom, agora eu não posso estudar, porque eu tenho os meus filhos‟, e aquela coisa toda. Então a minha vida eu estava sempre colocando em segundo plano, a minha vida era sempre em função de alguma coisa, de alguém, nunca em meu benefício. E aí depois que fiquei cega eu reiniciei meu estudo. Ali que realmente eu comecei a conquistar tudo aquilo que eu falei para você que tem sido uma superação para mim, de vida... que está sendo melhor para mim agora sem a visão do que quando eu enxergava. Porque depois da perda da visão eu consegui encontrar tempo para acabar de criar meus filhos, cuidar da casa e estudar. Antes eu não conseguia encontrar isso, eu não conseguia abrir esse espaço para mim na minha vida, crescer em nada. E depois que eu perdi a visão eu consegui. Não tinha nenhuma qualificação assim profissional, eu trabalhava em casa de família, eu era cozinheira. E ai eu fui conquistando todo aquele meu espaço, coisas que até hoje eu fico pensando, como é que é a vida né? De repente através de um acidente ou alguma coisa parecida, que foi o que aconteceu comigo, você encontra a solução, o tempo, o espaço, você consegue... lutar por todos os seus objetivos. O que poderia ser uma dificuldade se torna mais fácil para você alcançar as coisas.

Para Angela a experiência de ruptura trazida pela cegueira interrompe uma vivência anterior organizada em torno de certos padrões, ou certas disposições nos termos de Bourdieu (1994), proporcionando a abertura para novas práticas. Depois de cega, Angela termina os estudos, faz cursos de qualificação profissional, encontra um novo emprego, participa de grupos de atividades artísticas como teatro e música. Também é possível identificar uma transformação significativa na trajetória de Caetano. Quando perdeu a visão aos 34 anos, teve que começar uma vida nova. Recomeçar do zero. Até então não tinha completado o antigo primário, estudou até a quarta série. Em 1993, quando estava no terceiro ano da reabilitação, entrou para a natação. Em 1994 começou a competir. Caetano é Cearense e veio para o Rio de Janeiro com 17 anos para trabalhar. Serviu o exército, trabalhou lavando carro e em posto de gasolina antes de se tornar motorista de caminhão, que era a sua profissão quando ficou cego. Nunca tinha viajado para fora do Brasil antes da cegueira. Em junho de 1995 foi competir com a natação em um torneio internacional em Madrid. Ganhou quatro medalhas. No mesmo ano participou do Pan Americano em Buenos Aires e ganhou mais cinco. Apesar de saber nadar, nunca tinha treinado antes. Em 1998 retomou os estudos e, como mencionado, foi aprovado como advogado na prova da OAB em 2009.

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Velho (2002) indica que o contato com outros grupos e círculos pode afetar fortemente a visão de mundo e o estilo de vida de indivíduos situados em uma classe socioeconômica particular, estabelecendo diferenças internas. Tornar-se cego, nos casos específicos de Angela e Caetano, além do rompimento com uma experiência corporal do mundo e do sofrimento advindo da ruptura, permitiu também uma transformação na experiência social e cultural que afeta a maneira como vivenciam a cidade, os espaços frequentados e os grupos de pertencimento. A entrada em outros circuitos urbanos relacionados às instituições para cegos proporciona uma abertura para novos campos de possibilidades (Schutz, 1979), o contato com grupos e experiências diversificadas, o que permite que outros projetos e novas realidades sejam elaborados e construídos. Wellman e Leighton (1979) propõem que os vínculos sociais sejam o ponto de partida para uma análise da comunidade através do conceito de rede, o que liberaria o estudo da comunidade de um determinismo espacial. Para os autores, os laços sociais podem ser estabelecidos na vizinhança, mas também se localizam fora dela. A partir da ideia de abertura de novos laços comunitários com base no estabelecimento de redes de suporte e sociabilidade proposta por Wellman e Leighton, é possível pensar a transformação das relações e laços comunitários de Angela, Jair e Caetano após a mudança de uma condição de vidente para não vidente.

5.4.2 Pontos de convergência

Pelos relatos anteriores nota-se como a identidade na cegueira, como em todas as identidades, é inteiramente contingente. Mas quais seriam os pontos em comum ou atravessamentos? Algo aproximaria suas experiências, ainda que parcialmente? Ao longo da pesquisa, na conversa com as pessoas cegas que conheci, fui encontrando alguns rastros, alguns esboços que poderíamos pensar como confluências em suas trajetórias ou reinvindicações. O principal deles já foi delineado, não como um rastro, mas como uma linha duramente marcada que corta suas travessias todos os dias, ter que lidar com o estigma da cegueira nas interações, com o preconceito e a discriminação social presentes em representações essencialistas da cegueira de quem enxerga, enfrentar uma sociedade fundamentalmente excludente que os coloca à margem de direitos tão básicos como acesso à educação e ao mercado de trabalho. Buscaremos outros traços.

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Procurando pontos de convergência, mapeou-se os espaços discursivos da cegueira enquanto identidade coletiva com o auxílio do histórico de associações e movimentos sociais de cegos no Brasil feito por Sousa (1997, 2001). Por um longo período, as associações que surgiram, mundialmente e no Brasil, tinham um caráter predominantemente filantrópico e assistencialista. Marcados socialmente, classificados como minoria discriminada, as pessoas cegas foram por muito tempo alvo de programas e políticas assistenciais e paternalistas que visavam principalmente uma compensação da limitação física. Eram, nesse primeiro momento, ações e políticas para cegos e não necessariamente feita por cegos. Em um segundo momento, nas décadas de 1950, 1960 e 1970 surgem ações e instituições fundadas por cegos, que têm inicialmente a educação e, depois, a profissionalização, como foco principal. Foram criados novos Institutos especializados para a educação e reabilitação de cegos ao redor do país. Procurando alternativas para a sobrevivência, surgem associações ou agrupamentos que, segundo Sousa (2001), descendiam do modelo institucional das escolas residenciais, mas, ao mesmo tempo, se distinguiam delas já que não eram mais instituídos por força de lei ou norma governamental, mas nasciam da ação das próprias pessoas cegas. São grupos que se organizam em torno das necessidades econômicas e se constituíam mais como meio de geração de emprego e renda do que como movimentos sociais organizados com caráter reivindicatório e emancipatório. Ao lado desse associativismo local, desenvolvem-se também as entidades de representação nacional. Seguindo a estrutura organizacional verticalizada de outras categorias de trabalhadores, o movimento de cegos e pessoas com baixa visão conta com entidades de representação nacional, estadual, regional e local. De acordo com Sousa (1997), nos anos de 1980 as entidades passam a incorporar um discurso mais político e reivindicatório também presente em outros movimentos sociais organizados. Para a autora, o estatuto da representação nacional surge com as promessas de: organizar o movimento em todo o país, estabelecendo um diálogo entre as entidades locais, o governo e as instituições da sociedade civil; representar a coletividade cega brasileira; e lutar em defesa de suas necessidades básicas e fundamentais. A FEBEC (Federação Brasileira de entidades de Cegos) é fundada nesse contexto, em 1984114.

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A FEBEC, embora citada em alguns sites e artigos na internet, não possui site próprio, tendo sido encontrado apenas um grupo de discussão com 14 assinaturas.

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Pouco depois, surge a União Brasileira de Cegos (UBC), que se caracterizava como uma entidade que congregaria todas as associações de representação nacional, incluindo as prestadoras de serviços, como Fundação Dorina Nowill para Cegos e o IBC. Sousa relata que a criação da UBC foi marcada por intensa polêmica e é somente a partir dessa época que o movimento associativista começa a questionar a necessidade do processo de unificação das entidades de representação nacional. A autora ainda cita as chamadas representações de classe, como a Associação Brasileira de Educadores de Deficientes Visuais, ABEDEV, Associação Brasileira de Professores Cegos e Amblíopes, ABPCA, e a Associação Brasileira de Desportos para Cegos, ABDC. Quero ressaltar dois pontos do cenário traçado por Sousa. O primeiro é o que a autora chama de “ambiguidade original” das associações e do movimento social de cegos. Criados no interior de uma cultura que ao longo de sua história sempre ofereceu aos indivíduos cegos soluções que ora apontavam para a exclusão, ora para práticas de caridade, filantropia e assistencialismo, a autora considera que as associações reproduzem em suas práticas essa ambiguidade, que pode ser identificada tanto em seus estatutos quanto em seu modo de agir que ora reforçam o estigma e a discriminação, ora frontalmente combatem tais códigos culturais. O segundo ponto é a fragmentação e a diversidade das entidades existentes. A autora identifica, a partir da década de 1990, uma crise de identidade no movimento associativista de cegos, onde se questiona as razões de sua existência e a representatividade de suas entidades e associações. Segundo Sousa:

Entre essas centenas de entidades e as cúpulas dirigentes, tampouco estabeleceu-se uma rede competente de diálogo, comunicação, o que torna o agir desse conjunto que temos chamado associativismo brasileiro, um concerto descompassado, sem ritmo, pleno de dissonâncias. O que somos? Para que somos? A quem representamos? Nos primórdios as entidades costuraram a rotina da filantropia e da assistência; nos anos oitenta, realçaram as cores da reivindicação, complexificando um pouco mais o modelo original; agora o Estado as convida para parceiras de suas políticas; desestruturadas, fragmentadas, incapazes de renovar suas lideranças, elas ainda não encontraram, em sua grande maioria, o novo lugar onde se plantarão e farão valer o estatuto de sua representação. (Sousa, 2001: 20)

É interessante para a discussão contrastar brevemente os caminhos trilhados pelo movimento social dos surdos com os que estão sendo traçados do movimento associativista dos cegos, porque o contraste torna ainda mais evidente a particularidade da cegueira e seus processos sociais de construção de identidade e diferença.

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O movimento social dos surdos vem lutando de forma mais ou menos unificada por uma concepção sociocultural da surdez como uma diferença a ser respeitada e não como uma deficiência a ser eliminada. É justamente na década de 1990 que esse movimento ganha força e adesão. Como indica Strobel (2008), advogam principalmente o respeito à surdez, que significa considerar a pessoa surda como uma comunidade minoritária com direito à língua e cultura próprias. No Brasil, uma das principais entidades de representação dos surdos é a FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos), que tem site próprio 115 e escritórios regionais em sete estados. Se apresenta como uma entidade com o objetivo de defender e lutar pelos direitos da Comunidade Surda Brasileira, cujo propósito principal, desde a sua fundação, é o de divulgar a LIBRAS, “esclarecendo para a sociedade em geral a importância de se respeitar a forma de comunicação da comunidade surda, a sua cultura e, porque não dizer, a história da sua evolução enquanto minoria linguística que há séculos vem lutando pelo seu espaço e o reconhecimento de direitos que lhe são inerentes”. Em 2008 surge no Brasil a ONCB (Organização Nacional de Cegos do Brasil) 116

, uma ONG sem fins lucrativos, que trabalha articulando suas Entidades afiliadas por

todo o território nacional, com o objetivo de dar-lhes estrutura e representatividade política, além de apoio técnico, social e pedagógico. A entidade promove campanhas de prevenção contra a cegueira e programas que incentivam os deficientes visuais brasileiros a assumirem seu papel como protagonistas de suas Entidades. Com cerca de 70 entidades afiliadas em fevereiro de 2014, em seu site a ONCB coloca como propósito principal “assegurar a todos os brasileiros com cegueira, surdo-cegueira ou baixa-visão o direito constitucionalmente garantido de determinar os rumos de suas próprias vidas”. Como podemos perceber por uma rápida comparação dos propósitos colocados pelas duas entidades, ao contrário do que parece ocorrer no movimento social dos surdos, o movimento social de cegos não se organiza em torno de um discurso sobre a cegueira como uma categoria fundante de qualquer unicidade dos sujeitos cegos. O texto da ONCB deixa clara a percepção de cegos como brasileiros, ou seja, como cidadãos que fazem parte de uma identidade nacional maior e portanto, como qualquer cidadão brasileiro, devem ter o direito constitucional de escolha e autonomia

115 116

http://www.feneis.org.br/ http://www.oncb.org.br/

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garantidos. As pautas convergentes desses movimentos parecem ser a garantia de direitos constitucionais de acesso à educação e ao trabalho, a inclusão social, a promoção da acessibilidade, o estabelecimento das normas e diretrizes para o uso, o ensino, a produção e a difusão do sistema Braille, entre outras. Saindo da análise do movimento social e buscando novos pontos de convergência no discurso e nas práticas dos pesquisados, um ponto que é mencionado por Dora, por Renata e por Beatriz é o de sentirem que têm uma particularidade, uma necessidade que outras pessoas não têm. Renata acha que a palavra deficiente é muito negativa, é uma palavra que vem de déficit e quem tem um déficit tem alguma coisa faltando. Ela considera que tem uma necessidade especial - pelo fato de não enxergar, as coisas precisam ser adaptadas. Diz que se fosse um déficit seria mais difícil de superar porque déficit dá a ideia de algo insuperável e muita coisa, especialmente com a tecnologia, pode ser superada. Já Beatriz se considera deficiente ao contrastar com a palavra oposta, eficiente, que dá a ideia de uma coisa plena. Acha que se a sua visão não está plena, está deficiente. Mas, na verdade, não se importa tanto com o termo, considera uma bobagem, apenas sente que tem uma determinada limitação, outras pessoas tem outras. Dora, de maneira semelhante, diz que não sente como uma falta, mas como um defeito. Como se estivesse vindo com uma peça de fábrica com defeito. A cegueira para ela não é uma falta, mas defeito de fabricação que pode ser ou não agravado pela forma como as pessoas lidam. Essa ideia de uma necessidade que demanda um ajuste diferenciado pode ser ilustrada pelo depoimento de Caetano ao falar sobre a sua reação quando lhe oferecem lugar para sentar em transportes públicos. Eu não fico incomodado com isso não. Eu aceito. Quando é um trajeto pequeno, dispenso. Mas se eu estou lá na Pavuna, venho para Botafogo, me oferecem um lugar não vou sentar por quê? Vou ser metido, para ser igual os outros? Eu não sou igual os outros não. Enquanto ser humano sou igual, mas tenho as minhas dificuldades. Eu vou ficar esbarrando nos outros, vou mover de repente um braço e esbarrar em alguém, não é? É uma série de coisas que você pode... vou sair, vou pisar no pé de alguém, o trem cheio, o metrô cheio, é uma série de coisas que você fica incomodando os outros, você fica atrapalhando os outros. Então normalmente eu aceito, não vejo nenhuma ofensa, não me desmerece nada isso, assim como eu ofereço lugar se eu perceber que alguma pessoa com maior dificuldade que eu tiver perto de mim. É a coisa de você saber que você tem mais dificuldade do que outra pessoa para se locomover.

Ter uma condição corporal comum – não enxergar – seria algo que os aproximaria porque é uma característica que traz necessidades e limitações semelhantes:

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o uso da bengala para se locomover, a impossibilidade de ler em tinta, a necessidade de realizar determinadas atividades de forma particular, o uso que se faz do tato - para cozinhar, para escolha de roupa, para leitura em Braille, para reconhecimento do ambiente. Outro ponto comum foi tocado na narrativa da trajetória da cegueira de Camila e é também reforçado por Beatriz e por Dora e ainda mencionado pela psicóloga do IBC. A importância de, em algum momento do seu processo de identidade na cegueira, estar entre iguais. Ainda que sejam pessoas distintas e com vivências de cegueira diferentes. Dora fala sobre isso mais especificamente em relação aos processos de construção de identidade e identificação de uma criança cega. Tem que pensar que todo mundo precisa de modelos, então uma criança com deficiência ela também precisa ter os modelos de adulto, de pessoas adultas com aquela deficiência que ela tem, porque senão como é que ela vai poder se projetar como adulto, se ela não tem contato com pessoas adultas que tem aquela deficiência e como é que aquelas pessoas se viram? É a questão da identidade, de você poder ter uma identificação daquela criança com os colegas e com os professores que permita a ela a se identificar e criar a identidade dela e a questão da autoestima, que a gente precisa analisar como está sendo a interação daquela criança na escola, se aquela interação está facilitando ou está dificultando a autoestima daquela criança.

Hall (2014) constrói o conceito de identidade como o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre discursos e práticas que nos interpelam e o investimento do sujeito naquela posição. As identidades são posições que o sujeito é obrigado a assumir, ainda que sabendo que são representações e, enquanto tais, são sempre construídas ao longo de uma falta, ao longo de divisões, a partir do lugar do outro. Dessa forma, nunca podem ser ajustadas – idênticas – aos processos de sujeitos que nela são investidos. Numa leitura crítica de Foucault, Hall coloca que não é suficiente que a lei convoque, discipline, produza e regule, é preciso que também haja a produção correspondente de uma resposta – a produção do eu como um objeto do mundo, as práticas de autoconstituição, o reconhecimento, a reflexão, a relação com a regra, o que se expressaria nas ideias de identificação ou subjetividade. Em seu depoimento Dora coloca que, para uma criança constituir uma identidade positiva de si enquanto criança cega, ela precisa moldá-la a partir de exemplos, posições de sujeito com os quais ela possa existencialmente se identificar. Beatriz também fala da importância da identificação, dessa vez na trajetória de uma pessoa adulta que se torna cega.

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(o contato com outras pessoas cegas) é fundamental. Fundamental. Porque é assim, é a mesma coisa, ressalvada a proporção tá? às vezes a gente tem um problema e fica sofrendo com aquele problema, sofrendo, parece que você é o coco do cavalo do bandido. Aí por alguma razão específica qualquer você se abre com alguém e a pessoa olha para você „ah, mas isso também acontece comigo‟, aì você „ai, Jesus, graças a Deus‟, sabe essa coisa assim? você se sente incluída naquele contexto, a coisa não é só comigo, essa não é uma problemática tão especifica, ou não é algo tão grande quanto eu achava. Sabe? Todo mundo passa por isso. (...) Tem todas as questões sociais que todo mundo passa igual. A maneira como cada um lida com essas coisas, isso é bastante rico. Me fez muito bem conviver, porque eu tinha esse problema em casa sozinha. Com 3 irmãos que não tinham problema nenhum, num universo que ninguém entendia nada, eu muito menos. Eu era muito sozinha. A troca de experiência é fundamental, e essa coisa de você realmente observar que aquela coisa não é específica tua, que você não está sozinho nessa.

Estar entre “iguais-diferentes” já não tanto para constituir modelos, mas para trocar experiências, para se sentir menos sozinho em sua diferença. O que unifica vivências pessoais tão diversas quanto a de quem nasce cego, quem vai se tornando, quem perde por acidente, seria uma corporalidade comum e a presença do “outro”, a resposta social que exclui. Como lembra Hall (2014), a identificação não anula a diferença, é uma construção, um processo nunca completado que, entretanto, para se consolidar, requer o exterior que a constitui.

5.4.3 Bengala, objeto-pessoa

No processo de aceitação da cegueira, para quem nasce cego ou para quem se torna, um objeto adquire importância crucial, a bengala. Trato aqui da bengala como objeto-pessoa porque ela assume características, simbologias e exerce funções eminentemente ligadas ao mundo humano. A TO de AVD diz que muitos reabilitandos que atende tem vergonha de começar a usar a bengala porque embutida em seu uso está a mensagem: “eu sou um deficiente visual e estou assumindo isso”. Tanto a TO quanto a psicóloga dizem que a vergonha é maior em utilizar o dispositivo perto de casa por não querer que os vizinhos saibam ou percebam que ficou cego. Desde o início da reabilitação Caetano entrou em contato com a bengala e começou a usá-la. Admitiu que bem no começo sentiu vergonha de sair com ela no bairro onde morava, perto de casa. Mas a preocupação não durou muito tempo. Quando andava na rua com a bengala, parecia que a rua inteira estava olhando para ele. Não pode afirmar se era imaginação ou se realmente todo mundo parava para vê-lo passar, mas a sensação era essa. Acha que as pessoas olham de curiosidade, mas que depois,

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com o tempo, elas também esquecem. Hoje a bengala virou sua “companheira inseparável”, onde ele vai ela está. Para Dora, andar com a bengala, apesar de expor sua cegueira, teve um significado importante de conquista da sua independência. Aos 18 anos, quando foi cursar o pré-vestibular, tomou a decisão interna de que lutaria para fazer as coisas acontecerem, passaria por cima do que precisasse, brigaria com a família se fosse necessário. Achavam que ela não podia andar na rua sozinha porque cego que anda sozinho não tem família, não tem ninguém. Diziam que além de se arriscar, ela estava se expondo. Dora só conseguiu fazer o curso de orientação e mobilidade debaixo de briga. Passou a adolescência deprimida e nessa fase resolveu dar um basta. Naquele momento, ou ela mudava ou ela morria, não tinha meio termo. Renata, também cega congênita, quando participou da entrevista tinha pouco tempo que usava bengala, por um motivo parecido com o que descreve Dora. Antes estava sempre acompanhada, sempre com alguém, geralmente a mãe, que a buscava e trazia do colégio, da faculdade, do curso de espanhol ou inglês. Agora está conquistando aos poucos o seu espaço, ganhando independência. Goffman (1975) reconhece que o equipamento físico empregado para diminuir os prejuízos primários de algumas desvantagens - bengala, aparelhos de audição, óculos bifocais - se torna um símbolo do estigma e que por isso haverá um desejo de recusar o seu uso. Camila e Beatriz falam da rejeição que tiveram ao uso da bengala. As duas foram perdendo a visão aos poucos, usar a bengala significava admitir uma mudança de nível, digamos assim, sair da baixa visão e assumir a cegueira. Camila pensava que nunca se acostumaria, achava esquisito aquela coisa ocupando a sua mão o tempo inteiro, não gostava do barulho que a bengala fazia para abrir, chamava muito a atenção das pessoas. Quando notavam a bengala, ela escutava os comentários “ah, coitada...”, “você não enxerga não? Coitada...”. Beatriz diz que achava tão vergonhoso usar a bengala, resistiu tanto, que chegava a se arriscar andando sozinha na rua, atravessava até a Praia do Flamengo. Enquanto ainda dava para andar sozinha, Camila levava a bengala dentro da bolsa. Mas começou a trombar com as pessoas na rua ou as pessoas trombarem nela, empurrarem, esbarrarem. Derrubou uma barraquinha de alho de um camelô e contou que o moço queria mata-la de tão irritado, não sabia que ela não enxergava, porque ela estava sem bengala. Goffman (1975) indica que a revelação voluntária do estigma e dos objetos que o simbolizam seria uma das fases finais da carreira moral, tipicamente descrita como a fase madura e de ajustamento. Hoje Camila 374

deixa a bengala bem visível, não fecha mais na mão, porque ela ajuda as pessoas a entenderem que ela não enxerga. Com Latour (1994), podemos pensar na bengala como esse quase-objeto híbrido sem um espaço definido nem no social nem no exclusivamente técnico, não é de todo sujeito nem de todo coisa, tem dos dois e de nenhum especificamente. Para os outros, uma mensagem, um sinal, uma marca de diferença. Para si, um meio de transporte, dispositivo que proporciona independência, liberdade de ir e vir, atenuando limitações. Percorremos no capítulo 2 uma série de técnicas, gestos e esquemas de ação que são utilizados nos atendimentos de OM para que a bengala seja encorporada no caminhar de pessoas cegas. Mas, como sugere Vandenberghe (2010), por meio da formação de um habitus estável, o indivíduo não somente incorpora a tecnologia, mas é ao mesmo tempo incorporado nela. Encorporar a bengala, torna-la carne, é também humaniza-la. Na encorporação mútua de ser humano e objeto se constrói um aparelho tecnológico operacional integrado que, para o autor, não apenas faz a mediação entre o humano e o ambiente, mas co-constrói ambos ao mesmo tempo. Na cegueira isso significa aceitar a companhia de algo que simboliza e expõe uma identidade. A bengala, objeto-pessoa, mistura de técnica, materialidade e cultura, artefato que não só é representado, mas também representa, carrega significado. Sem precisar falar, a bengala diz. Acolher a bengala é conhecer a cegueira em si, um artefato-signo de identidade e identificação.

5.4.4 A diferença da cegueira

Fixar certa identidade como norma é uma das formas mais comuns de hierarquização das identidades e das diferenças. Como lembra Silva (2014), a normalização é um dos processos mais sutis de manifestação do poder nesse campo. Normalizar significa arbitrariamente selecionar uma identidade específica como parâmetro em relação ao qual as outras identidades são medidas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é natural, única, desejável. Sua força é tanta que ela nem mesmo é vista como uma identidade, mas simplesmente como “A” identidade. São as outras identidades que paradoxalmente são marcadas como tais. O autor reforça que assim como a definição da identidade depende da diferença, a definição do normal 375

depende da definição do anormal. Aquilo que é deixado de fora é sempre parte da definição e da constituição do dentro. A definição do que é considerado aceitável, desejável, natural é inteiramente dependente da definição do que é considerado abjeto, rejeitável, antinatural. Podemos localizar os processos de produção de identidade e diferença no depoimento de Beatriz quando fala da sua reação a um programa de TV e a maneira como a diferença da cegueira foi tratada ali, tanto pela apresentadora quanto pela pessoa cega presente. Eu cheguei a comentar contigo desse programa da Regina Casé? Ai que ódio daquela cega, queria matar ela. Tava lá Preta Gil, uma porrada de gente lá. Aí a Regina Casé falou aquele negócio dela de ser junto e misturado, xô preconceito, não sei o que lá. Aí tinha lá uma cega na plateia, ela chamou a cega. Subiu lá a tal da menina. Aí as outras pessoas da plateia, „ah, porque eu acho o máximo a alegria de vocês‟... pronto, já comecei a me irritar. Você concorda comigo que pronominou já segregou? Vamos fazer um trabalho com eles, para eles, porque eles são assim... como assim „eles são assim‟? Seja eles quem for, os gays, os surdos, os cegos, como assim „eles‟? pelamordeDeus! Enfim, aì começou, „eu acho incrìvel a alegria de vocês...‟, eu sei que lá pelas tantas a menina falou assim „ah, mas eu sou muito alegre mesmo, eu pego ônibus errado rindo‟. Aì a Preta Gil falou assim „que fantástico‟, eu falei „meu Deus, isso não tá certo‟. Eu fiquei pensando, „gente, será que sou eu a errada?‟, não é possìvel. Porque aì é que está, essa criatura não percebe o quê que ela está fazendo com a cultura, com a mentalidade social, você está entendendo? Se eu pego um ônibus na minha casa para vir para o centro da cidade para o meu trabalho, ônibus lotado, com a qualidade péssima do nosso transporte público, um calor desgraçado, o ônibus parado no sol, eu de repente descubro que estou em Bonsucesso, eu não vou achar graça nenhuma, muito pelo contrário, eu vou xingar muito. E eu não acho saudável achar graça disso. A garota é louca, ela não tem nada para fazer da vida. E os outros acham bonito, essa que é a questão, os outros ficam encantados „nossa, que coisa bonita, não sei o quê...‟, „nossa que fantástico isso‟.

Analisando a noção de rosto introduzida por Levinas, Butler (2011) considera que uma das maneiras que a violência acontece é precisamente por meio da produção do rosto e o que é feito com esses rostos pela mídia. Rostos que são enquadrados, mas que também estão jogando com a moldura e atuando para ela. A autora acredita que, para a representação exprimir o humano, ela deve não apenas falhar, mas mostrar sua falha. O rosto é constituído exatamente nessa possibilidade. O depoimento de Beatriz nos leva a questionar, com Butler, a maneira como as representações evocadas pela mídia funcionam em relação à humanização e desumanização da cegueira. Como sugere a autora, nenhuma compreensão da relação entre imagem e humanização pode acontecer sem se considerar as condições e significados dos processos de identificação e desidentificação. No programa descrito por Beatriz, se inicialmente se busca uma identificação – “junto e misturado, xô

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preconceito” – ela se baseia na diferença que busca superar – “acho o máximo a alegria de vocês”. O processo acaba resultando na reintrodução da diferença que se alega ter feito desaparecer – o “vocês” presente na fala e os comentários que exotizam o “outro” – “que coisa bonita”, “fantástico isso”. A diferença é reintroduzia por meio da oposição “nós” e “eles” – “fazer um trabalho com eles”, “para eles”, “eles são assim” - aquele com quem me identifico não sou eu. Podemos sugerir aí mais um processo de esvaziamento do humano pela mídia, uma violência na moldura do que é mostrado. Identifica-se em um só quadro midiático o duplo apagamento sugerido por Butler. Quando se mostra a cegueira por meio de suas representações culturais estereotípicas (no caso, o exotismo), reintroduzindo a diferença “nós” e “eles”, certas vidas, como a de Beatriz, permanecem não representadas – apagamento por meio da oclusão - ou são representadas de maneira que efetivam a sua captura – apagamento por meio da própria representação da cegueira enquanto excentricidade, enquanto diferença, na figura da menina cega do programa que diz que pega ônibus errado rindo. Beatriz estende a sua crítica à sociedade em geral pela forma como são consideradas as ideias de identidade e diferença nas supostas ações por igualdade.

Enquanto a gente falar em igualdade a gente não vai a lugar nenhum, porque não existe. Eu acho que a gente vai começar a ver algum resultado quando a gente começar a pensar nas diferenças. Essa é fato. Em tudo, em todos, com tudo. Quando a gente começar a olhar as diferenças, o dia que a diferença não for tema. Eu acho que o trabalho seria esse. Porque falar em igualdade, falar em inclusão... porque o quê que é a inclusão? É deixar o diferente vir? Como assim dei-xar? Como assim permitir? Já não é... o sentimento já não é esse. Eu acho que é realmente um trabalho muito cultural, muito social. Claro que as ações são importantes justamente para se falar nisso, começar a olhar essas coisas, mas realmente essa questão do sentimento mesmo é que as pessoas não têm e para despertar isso em quem não tem é muito difícil. Incluir é muito perigoso né? muito perigoso. Pronominou para mim já complicou. Pronominou, acabou o negócio. Eu na verdade nunca gostei disso, nunca gostei que use esses pronomes assim e nunca concordei com negócio de... eu lamento que existam essas coisas tipo boate para gay, porque boate para gay? Um teatro para cegos. Gente, como é que é isso? Por isso que eu não me meto muito nessas coisas, porque eu realmente não concordo, acho que isso ajuda a segregar.

Beatriz reforça as marcas da presença do poder que expressam as relações de oposição: incluir/excluir, “nós” e “eles”. Tendo como base a crìtica de Derrida aos binarismos, Silva (2014) sublinha que as oposições binárias não são uma simples divisão do mundo em dois conjuntos simétricos, em uma oposição binária um dos lados é sempre privilegiado, recebe um valor positivo, enquanto o outro recebe a carga negativa. Não é preciso dizer quais são os termos privilegiados nas oposições presentes na fala de Beatriz. Dora acha que quando as pessoas se deparam com a deficiência 377

existe uma coisa que bloqueia o raciocínio, elas param de pensar, tem algo qualquer que dá um “nó nos neurônios”. Pergunto o que seria e ela me responde que é “o diferente”. A nossa cultura é massificada. A gente é bestificado, a gente é aquelas manadas, boiada, uma coisa assim. É assim que está sendo o nosso desenvolvimento, tudo passa por aquela normalidade. Sabe, normógrafo, aquele negócio que tinha? O meu pai era desenhista, normógrafo era uma reguinha que tinha as letrinhas vazadas para você poder escrever todas igualzinhas quando você ia fazer desenho na mão, ainda não tinha computador para imprimir. Então com o normógrafo você fazia tudo bonitinho, porque você pintava em cima daquela reguinha que tinha as letrinhas vazadas. Então eu acho que as pessoas estão assim... passam normógrafo nas pessoas, tem que sair tudo igual, as pessoas tem que usar a marca que todo mundo usa, elas escutam as músicas que todo mundo escuta, elas frequentam os lugares que todo mundo frequenta... E todo mundo tem que ser igual, porque é bacana ser assim, então todo mundo tem que ser assim. Então ela tem que ter o padrão físico, sabe, todo mundo tem que ser normal, ninguém pode ser outra coisa. Eu acho que o deficiente é o que vai contra tudo isso, porque ele é o diferente. Aí acaba que propõe para você um raciocínio diferente do óbvio e as pessoas não raciocinam além do óbvio. E elas ficam assustadas. E elas param. Elas não conseguem ouvir o que você está falando. Não tem vontade de mudar o padrão e não consegue também, acho que não foi treinado para pensar em cima do diferente, não foi treinado para raciocinar, não foi treinado para ser criativo, não foi treinado para isso.

Como lembra Garland-Thompson (2001), porque a deficiência se define não como um conjunto de características observáveis ou largamente previsíveis, tais como feminilidade ou cor da pele, mas sim como qualquer desvio das normas e expectativas físicas, mentais e psicológicas de uma cultura particular, ela ressalta as diferenças individuais. O conceito de deficiência reúne um grupo heterogêneo de pessoas cuja única comunidade é ser considerado anormal. Deficiência, para Garland-Thomson, é o não ortodoxo feito carne, se recusando a ser normalizado, naturalizado ou homogeneizado. Em uma era governada pelo princípio da igualdade universal, a deficiência sinaliza que o corpo não pode ser universalizado. Moldada pela história, definida pela particularidade e em desacordo com o seu ambiente, a deficiência confundiria qualquer noção estável ou generalizável de um estado físico do ser. Martins (2005) questiona os motivos da marginalização das pessoas com deficiência ser tão sistematicamente silenciada e sancionada, o que contrasta com a maior visibilidade da denúncia de formas de subalternização baseadas na raça e na diferença sexual. A resposta do autor considera o fato de que o elemento biológico na base da opressão das pessoas com deficiência seria mais resistente à desnaturalização da subalternidade do que aquele que estaria na base de construções de raça ou de diferença sexual. Isso porque muitas deficiências podem estar associadas a formas de sofrimento e privação mais diretamente relacionadas a experiência subjetiva do próprio corpo (a

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questão que anteriormente discutimos da “angústia da transgressão corporal”). E ainda por que as deficiências nos colocariam diante de formas de realização e interação diversas daquelas que nos acostumamos a consagrar como normais. Martins afirma que tais razões não o afastam da convicção de que o não lugar que as pessoas com deficiência tendem a ocupar em nossas sociedades se deve às barreiras físicas, sociais e culturais que vêm negando a sua participação. As pertinentes colocações do autor nos ajudam na reflexão a respeito da diferença que a deficiência e a cegueira colocam, em comparação com construções identitárias como raça ou diferença sexual, por exemplo. São bem conhecidas as tentativas de buscar no corpo as razões das desigualdades sociais, de essencializar ou naturalizar as diferenças. Até o início do século XX, uma das justificativas para o não direito ao voto das mulheres baseava-se na ideia de que elas possuíam o cérebro menor e menos desenvolvido do que o dos homens. No que diz respeito às diferenças étnicas, por meio do uso de técnicas como a antropometria e a craniologia, buscava-se um determinismo biológico para o racismo, procurando produzir o conhecimento que confirmasse que determinados corpos eram efetivamente inferiores e primitivos (Véran, 2012). As lutas dos movimentos sociais, negro, gay, feminista, passaram por um processo de desessencialização das diferenças, dissociando a dimensão biológica da dimensão social. Identidade e diferença emergem posteriormente como atos de criação linguística e não como essência ou natureza. Como indica Silva (2014), a identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas por meio da cultura e do social e são fabricadas no contexto das relações. Lutava-se pela compreensão de que as condutas e comportamentos são socialmente construídos, assim como as desigualdades sociais - frutos dos vetores de força e das relações de poder na sociedade – e não resultados diretos da anatomia de corpos. Os corpos são diferentes, mas diferenças corporais e biológicas, como a cor da pele ou o sexo anatômico, não são suficientes para justificar a desigualdade social. Os corpos são diversos, mas têm as mesmas capacidades e devem ter as mesmas oportunidades de acesso à cultura, à educação e aos meios sociais. Ainda que apresentem características biológicas distintas, socialmente não existe razão para tais atributos diferenciá-los (a não ser que esteja fundada em mecanismos de discriminação e exclusão, em mecanismos de poder), de modo que todos devem ter as mesmas possibilidades de desenvolvimento. Segundo Silva (2014), as chamadas interpretações 379

biológicas que baseiam a inferiotipificação de mulheres e certos grupos raciais ou étnicos em uma suposta caracterização natural ou biológica é a demonstração da imposição de uma grade cultural eloquente sobre uma natureza que é em si mesma silenciosa. Antes de serem biológicas, são interpretações, a imposição de uma matriz de significado em uma matéria que, sem essa matriz, não teria qualquer significado. Não parece trivial a ausência de discussões específicas ou mesmo menção nominal à questão da diferença na deficiência em autores como Hall (2004), Silva (2014) ou mesmo no recente “Manifesto Convivialista” (2013). Fala-se na desconstrução de argumentos biologizantes na questão da diferença racial ou étnica, na diferença sexual ou de gênero, mas silencia-se sobre a deficiência. Uma das questões cruciais que a deficiência coloca é que não há como lidar com a diferença se “livrando” do corpo, atribuindo à marcação da diferença como resultado de uma relação de desigualdade social. É claro que a desigualdade e a exclusão são fundamentalmente discursivas e sociais, mas a questão é que, na deficiência, o corpo não pode ser abandonado. Dora compara a situação da luta pelos direitos de pessoas com deficiência com outros movimentos por direitos sociais que também problematizam a noção de diferença e diz que homossexuais, negros ou mulheres não têm que lidar com o problema objetivo de não conseguir andar, não conseguir ver, não conseguir fazer um movimento ou não conseguir ler em tinta. Essa diferença fundamental – biológica - precisa ser considerada para iniciar o debate de uma possível transformação no quadro dramático de exclusão social de pessoas com deficiência e dar um primeiro passo rumo a uma possível igualdade de oportunidades. Não é que a desnaturalização do biológico seria mais resistente no caso das deficiências, talvez ele não seja desnaturalizável. É preciso trazer o corpo de volta. Isso não significa dizer que é a diferença física que os inferioriza, que o seu corpo é que os exclui, tornando-os incapazes e que, portanto, devem ser tutelados. Não é um retorno ao modelo médico da deficiência. Significa considerar que as suas diferenças físicas, o seu corpo, demandam modelos diferenciados – de transporte, arquitetônicos, comunicativos, educacionais, de saúde, de interação, culturais – para que tenham acesso as mesmas oportunidades. Seria uma resposta que se aproximaria à de Santos que, ao desenhar as condições de um multiculturalismo progressista, coloca o princípio da igualdade lado a lado ao princípio do reconhecimento das diferenças: “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza” (Santos, 2003: 458). 380

A comparação esboçada anteriormente entre o movimento social dos surdos e o dos cegos parece sugerir distintos posicionamentos estratégicos em torno da noção biológica e social de diferença no campo da deficiência. A surdez enquanto identidade surge num cenário em que a agenda política se compromete com uma democracia pluralista e com direitos minoritários. Os surdos se colocam como uma nova minoria. Por um lado, a evidência biológica de sua etnicidade, se não está em ossos, sangue ou na cor da pele, se encontra na incapacidade de ouvir. Por outro, é a mesma diferença biológica entre surdos e ouvintes que engendra a diferença imaterial, linguística e cultural entre os falantes de LIBRAS e os falantes de português dentro da fronteira identitária nacional mais ampla do estado-nação brasileiro. O povo surdo e a identidade surda podem talvez ser entendidos como um caso de "essencialismo estratégico", em que a surdez é a materialidade que proporciona maior força de negociação na luta política por novos poderes (Spivak, 2013, Véran, 2012). No caso dos cegos, a cegueira, a incapacidade de ver, apesar de sua materialidade física forte, não faz a segunda passagem, não se torna imaterialidade nos discursos políticos ou identitários. Ela permanece, tanto no discurso do movimento social quanto nos depoimentos dos pesquisados, como uma diferença que não produz uma identidade unificada, no sentido de que ela não se transforma em ferramenta para descrever uma forma específica de organização social ou cultural. Resta-nos, portanto, a pergunta fundamental levantada por Véran: “como se constrói poder com a ideia de que a identidade é relacional e situacional?” (Véran, 2012: 251). Que a cegueira não se transforme em um discurso que unifica uma identidade social em torno de um atributo físico me parece coerente com um contexto de crítica aos substancialismos, em um mundo plural, multifocal, diverso e emergente. Mas então, ainda pensando com o autor, como delimitar territórios ou promover o acesso a direitos sociais com uma concepção desconstrutiva de identidade? Longe de procurar respostas trago a provocação com o intuito de engendrar reflexões, trazendo mais elementos para o debate em torno de questões de identidade e diferença na cegueira.

5.4.5 Subvertendo a normalidade

Como abrir espaços para movimentos de desestabilização, deslocamento e subversão da identidade hegemônica de normal? Uma das formas possíveis é repensar a própria normalidade, como aponta Winance (2007). O desafio que a deficiência coloca 381

nesse caminho é que, para que pessoas com deficiência tenham iguais oportunidades é preciso alargar a ideia de normalidade a ponto da diferença ser considerada normal. Fazer com que dentro da norma caibam corpos múltiplos, vários, diversos, e não um – o normal, o mesmo, o igual. Hoje em dia, depois de ter passado pela fase do luto, da aceitação, depois de ter se reabilitado e vivido todas as transformações que para ela ampliaram sua visão de mundo, Angela não consegue mais pensar na sua cegueira, que não enxerga mais. Tem situações em que nem lembra que é cega. Já foi parada na rua, as pessoas chamam sua atenção porque não estaria agindo como uma pessoa cega, age como se estivesse enxergando. Quando descobrem que ela é cega dizem que não pode andar tão rápido ou atravessar a rua sozinha. A repressão exterior tenta recoloca-la no lugar da dependência. Mas ela nem liga muito. No bairro onde mora, como já conhece, entra e sai das lojas sozinha. Um dia foi ao sapateiro e escutou a conversa de duas senhoras, uma delas duvidando que fosse cega. Ela ouve e não fala nada, fica quieta, deixa as pessoas com suas dúvidas no ar. Várias vezes acontece de sair de casa sem bengala, abre o portão, sai para a rua, quando chega na esquina é que se dá conta que está sem. Volta para buscar. Não sabe explicar o que acontece, mas de uns tempos para cá ela não se imagina cega. Dora também diz que não fica pensando o tempo todo na sua cegueira, vai pensando em outras coisas, vai vivendo sua vida. Aconteceu várias vezes dos seus amigos esquecerem que ela não enxerga e mostrarem as coisas para ela colocando na frente para ela ver, ou então levantarem do lugar onde estão e irem embora, achando que ela vai levantar e ir atrás e quando ela não vai é que eles se dão conta. Ou ainda irem andando com ela e a deixarem esbarrar nas coisas, ela acaba pagando alguns “micos” na rua, porque esquecem, acham que ela está vendo, que vai cuidar ali do seu lado, só que ela não vai. Isso é muito comum, especialmente com amigos de longa data. Quanto mais antiga a amizade, mais a pessoa esquece porque já relaxou. E ela acha que, se isso é comum, é um sinal de que ela não fica brandindo o fato da sua cegueira na relação. No dia a dia ela sai, passeia, vai a shows com amigos, toma um chope com uma turma e a cegueira não é uma coisa que fica ali, que todo mundo tem que ficar lembrando. Pergunto se isso também acontece em família e ela diz que não, que na família tem sempre aquela história de querer proteger. As vivências de Angela e de Dora nos fazem pensar nas possibilidades criativas que interrompem identidades hegemônicas. Em casos como esses, a repetição da identidade da cegueira como incapacidade, vulnerabilidade ou deficiência é contestada. 382

É nas interrupções que, para Butler (1999), reside a possibilidade de instauração de identidades subversivas, que não representam a mera reprodução de relações de poder existentes. São essas cenas que tornam possível pensar na produção de identidades novas ou renovadas. Quando o sentido da normalidade se desloca, a própria cegueira perde sua marca de diferença, o binarismo momentaneamente se desfaz. Para Winance (2007) é uma questão de rever o escopo que deve ser dado ao coletivo. Não mais uma questão de como integrar pessoas deficientes em uma sociedade de pessoas normais, mas sim de como construir uma sociedade que inclua diferentes pessoas ao mesmo tempo em que as normalize. Ou, como construir uma sociedade feita de pessoas que são “normalmente diferentes” ou “diferentemente normais”. Não seria integrar pessoas com deficiência à sociedade, mas simultaneamente construir a pessoa normal e o coletivo em que essa pessoa estará incluída. O “trabalhar na norma” transforma a todos os envolvidos, pessoas com ou sem lesões. A norma é transformada e construída na própria interação. Retornando à noção proposta por Butler (1999) de que a matéria é sempre materializada, a questão não seria mais pensar como a deficiência é constituída como (e através de) uma certa interpretação do corpo, mas ao invés disso, pensar quais as normas regulatórias em que a própria normalidade é materializada. Um dos principais problemas nas situações de interação em espaços públicos, para Dora, é que muitas pessoas não conseguem achar possível alguém ser cego e isso ser uma coisa normal dentro da vida daquela pessoa, que ela consiga viver. Essas pessoas, para ela, têm tanta dificuldade de se relacionar com a cegueira dentro de si que não conseguem imaginar que se um dia fossem cegas conseguiriam ter uma vida normal, iam se considerar pessoas normais. Projetam o medo da sua cegueira, da sua incapacidade, na vida de quem não enxerga, aprisionando-as em um estereótipo de anormalidade. Com a noção de “angústia da transgressão corporal”, Martins (2006) ilumina que as representações culturais sobre a cegueira que colocam a sua diferença enquanto perda, sofrimento ou tragédia adquirem um caráter duplo – advém tanto de um histórico social e cultural, significativamente presente na literatura e nos filmes, quanto de mecanismos de projeção individual imaginativa que estão informados no corpo, na diferença corporal que resiste à desconstrução. Outra possibilidade de subversão da identidade hegemônica normal seria desvendar situações em que a própria normalidade se esvazia da posição hierárquica superior de poder. Situações que, para utilizar a metáfora da viagem de Silva (2014), 383

obrigam a quem viaja a se sentir estrangeiro. Experiências de não se sentir em casa, que revelam, mesmo que de forma limitada, as delícias e as inseguranças da instabilidade e da precariedade de toda identidade. Explorar experiências em que se possa ir além da “angústia da transgressão corporal” da cegueira projetada por quem vê, mas sem abandonar o corpo, o mesmo corpo que, segundo Martins, tem a capacidade de perder e reconstruir referências ontológicas. Fechar os olhos não para se imaginar como cego - imaginação de quem enxerga, recheada de representações culturais fatalistas - mas para aprender com quem não vê formas outras de perceber e estar no mundo. O que muda é a intenção, o objetivo, o tipo de abertura desses olhos que se fecham. Para onde se dirigirá a atenção de um corpo com os olhos fechados, se para uma angústia emocional projetada ou se para um exercício, uma práxis, de prestar atenção com/ao corpo. No workshop “Além da visão”, concebido por Dora e desenvolvido por nós duas em parceria, a proposta era que os participantes dos quatro encontros que tivemos passassem quatro horas vendados em uma sala especialmente escurecida para a ocasião. Durante esse período desenvolvemos atividades práticas onde exercitamos formas de prestar atenção ao/com o corpo. Um dos dias o foco principal foi a audição, em outro dia o tato. Sempre tinha o momento do lanche, onde trabalhamos o olfato e o paladar. Fizemos também atividades voltadas para o reconhecimento espacial e para uma atenção às posturas corporais e ao corpo no espaço. Um trecho do material de divulgação do workshop, escrito por Dora, é revelador dos objetivos pretendidos, que de forma expressiva se imiscuem com os caminhos percorridos por essa pesquisa: “Aceitamos como normal o fato de que as pessoas cegas possuem a audição, o tato e o olfato mais desenvolvidos do que a média, que aqueles que têm atrofias nos membros superiores desenvolvem grande sensibilidade e habilidades incríveis com os pés. Mas, será que precisamos perder alguma coisa para começarmos a desenvolver esta riqueza de potenciais que trazemos conosco?”. Ao final de cada encontro fizemos uma roda de conversa, onde as pessoas expressavam suas impressões, davam sugestões, trocavam experiências. Alguns depoimentos ajudam a esclarecer o argumento que desenvolvo:

No começo eu senti uma certa aflição do escuro, de não estar vendo nada. Mas sabe que depois eu fui me acostumando e até gostei? Me deu um relaxamento assim. A tensão vai sendo substituída pela entrega, talvez, a confiança. Depois eu fui me sentindo enturmada, já sabia as vozes, já ia atrás dos barulhos. Aí fui indo devagarinho, acho que é uma conquista. E a sensibilidade também... porque teve

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uma hora que estava todo mundo falando, parecia que tinham mil pessoas aqui. Se a gente tivesse no claro a gente não teria essa sonoridade toda. (mulher 1) Para mim o que me chamou atenção no nosso exercício aqui com as lãs foi que se eu estivesse vendo eu não me deteria tanto em perceber qual é a textura, qual é a espessura, o comprimento, se há nervuras no tecido, se não há... em certo momento eu peguei a lã, passei no rosto, não bastou só o tato, somente o contato com as mãos e com os dedos, mas sentir na pele do rosto. Então se tivesse vendo, „ah, é isso, pronto, vamos passar para o item seguinte‟. Eu acho que muitas vezes no nosso dia a dia, na totalidade das vezes quase, a gente vê e não presta atenção. (homem 1) Sabe o que eu fiquei impressionada com essa vivência? É exatamente essa questão da visão e dos sentidos, como é que a gente não registra nada, a gente não sente nada, a gente leva uma vida mecânica, na própria alimentação. E eu fiquei impressionada comigo, porque eu trabalho com alimentação viva, que são alimentos crus. E eu achei que eu ia bombar aqui, mas teve muitos sabores aí que eu não cheguei nem perto. Então foi legal. Acho que a gente faz esses trabalhos também para prestar atenção, desenvolver, levar para a vida, cada vez mais usar os sentidos. (mulher 2)

As pessoas usam seus corpos para ensaiar as suas cegueiras, informadas pelas representações históricas e culturais da cegueira como incapacidade ou como tragédia. Cegueiras projetadas que em nada se parecem com a experiência fenomenológica e existencial de quem é cego. O uso que se faz dos corpos por quem vê aparece incialmente como uma tentativa de aproximação do sofrimento do outro. Sofrimento também já projetado, uma vez que o cego que se encontra andando sozinho na rua muito provavelmente já passou da fase do luto ou pode ser um cego congênito e nunca ter vivido a experiência da perda. A projeção acaba tendo o efeito inverso e perverso de um afastamento ainda maior, pela angústia que gera, estruturalmente situada na visão. A partir dos depoimentos dos participantes do workshop podemos pensar que é possível ter o corpo a favor quando se fecha os olhos, não para se imaginar cego, mas para aprender com pessoas cegas formas de usar o corpo para perceber o mundo que, para pessoas que enxergam, são inabituais. Um exercício corporal de aproximação, não porque fomenta experiências similares de sujeitos com condições existenciais absolutamente distintas, mas porque promove a abertura de sair de si para entender o outro, a criação de uma ponte onde o “nós” e o “eles” se encontram, um meio intercomum de troca e aprendizado. A possibilidade de “estar na fronteira” (Silva, 2014:89), também promove aberturas em que o “outro” passa a ser percebido de um lugar novo pelo “um”, ou talvez um lugar em que “um” e “outro” se invertem, se misturam, onde a oposição ou mesmo a fronteira perde a sua obviedade, ainda que temporariamente. Uma experimentação que torna difìcil o retorno do “eu” e do “nós” ao idêntico.

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Mulher 1: eu fiquei impressionada com uma coisa. Parecia que estava todo mundo vendado e que você (Dora) estava enxergando tudo aqui dentro. Você teve assim uma fluidez, uma agilidade, você chamava as pessoas de cinco em cinco minutos como se isso aqui tivesse claro e você vendo todo mundo. E eu fiquei impressionada com isso. Nossa, é uma coisa impressionante. Como é que no escuro você enxerga 100 vezes mais do que qualquer um de nós aqui. Mulher 2: parecia que ninguém enxergava e só ela enxergava. Mulher 3: até as pessoas, „fulano‟, „fulana‟, não sei o quê... „aqui a cadeira, pega a cadeira‟, tudo. Incrìvel.

Uma experiência onde também se experimenta a inversão de direção do movimento do conhecimento, não somos “nós”, os “normais”, os “videntes”, os que estão no “topo do mundo” que temos algo a dizer e a ensinar a “eles”, os “diferentes”, os “coitados”, os “vulneráveis”, os “estigmatizados”. E também não é nos nossos termos que o aprendizado se dá – intelectualmente, visualmente, numa relação esquiva com a materialidade corpórea (Buter, 1999). Se a cegueira promove a consciência inflacionada do corpo (Leder, 1990), ela certamente tem algo não só a nos dizer, mas também a nos mostrar sobre ele.

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6. “Visual é só um dos suportes do sonho”: produção de imagens na cegueira O ponto de impulso da tese foi um incômodo com o que chamei de excesso do visual, uma dificuldade pessoal de discernir e de encontrar diferenças na redundância de imagens visuais produzidas e difundidas pelos mais diversos meios. Entendo agora que me voltei para a cegueira - o não ver - para, de alguma maneira, encontrar novo sentido em ver, no que significa ver o mundo. A visão estava lá como exageradamente dada, a cegueira era para mim mistério. A mudança de escala desse capítulo é de certa forma um resgate desse ponto de origem. Wagner (2010) considera que todos os fenômenos culturais ou sociais podem ser vistos como uma série de interações dialéticas entre dois domínios da experiência: o reino do inato, ou do dado, aquilo que é inerente à natureza das coisas e o reino do que fica disponível à agência humana. Os dois reinos não são os mesmos de uma cultura para outra e a ação humana envolve sempre uma dialética, uma relação de figura e fundo, entre eles. A relação, ao mesmo tempo contraditória e interdependente, entre invenção (polo diferenciante) e convenção (polo generalizante) é a dialética que, para o autor, se encontra no cerne de todas as culturas humanas. Uma tensão, na forma de um diálogo, entre duas concepções ou pontos de vista simultaneamente contraditórios e solidários entre si. Como um modo de pensar, uma dialética wagneriana opera explorando diferenciações contra um fundo comum de similaridade. Para Strathern (2011), quando uma figura é vista em relação ao seu fundo, ela está destinada a aparecer como englobada por uma entidade maior, o que produz uma hierarquia permanente ou uma assimetria. O exercício de reversão figura-fundo implica em uma alternância de ponto de vista. Seguindo a argumentação da autora, podemos pensar que, apesar de a cegueira, por definição, ser englobada pela visão, o que virá a contar como cegueira e o que virá a contar como visão não é, de forma alguma, definitivo, e os valores a serem atribuídos aos fenômenos particulares são imprevisíveis. Pode-se dizer que figura e fundo, cegueira e visão, promovem relações instáveis. Ao longo da tese estabeleci um movimento de pensar a diferenciação da cegueira contra um fundo de similaridade da visão. Gostaria de, nesse capítulo final, retomar um movimento dialético entre invenção (cegueira) e convenção (visão) invertendo figura e fundo. Pensar as diferenciações da visão a partir da cegueira.

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Entendendo que quaisquer elementos em uma comparação não são fixos, que visão e cegueira não são categorias estanques, mas se interpenetram, considero primeiro a relação de pessoas cegas com a visualidade. Apresento algumas descrições visuais das suas cegueiras trazidas pelos pesquisados, abordo os sinais que indicam a proximidade da cegueira para quem perde a visão aos poucos, a sua relação com a memória visual de lugares que já viram, algumas representações dos pesquisados sobre seus sonhos, sobre cores e sobre como aqueles que nasceram cegos imaginam o que seja enxergar. Questionar a visão a partir da cegueira me conduz a um ponto de encontro entre as duas polaridades que pode ser condensado na palavra “imagem”. Mondzain (2010) sublinha que é o destino de cada sujeito humano se inscrever no mundo por meio de operações simbólicas e, portanto, por meio da produção de signos que fundamentam sua relação com a fala. É a operação de produção de imagens que torna a inscrição possível. Nós não vemos o mundo porque temos olhos. Nossos olhos são abertos por nossa habilidade de produzir imagens, por nossa capacidade de imaginar. Segundo a autora, é por causa dessa capacidade que precisamos da visão para sermos aptos a falar e é também por causa dela que os cegos podem falar, uma vez que sua capacidade para imaginar está intacta. Reflito sobre os modos de produção de imagens a partir da não-visualidade. Se o visual é o aspecto privilegiado nos processos de simbolização e representação, procuro nas imagens fabricadas por pessoas cegas formas de significar e representar o mundo que não tenham necessariamente a visão como base, ponto de partida ou referencial, mesmo que, em alguns momentos, adquiram contornos e características que também poderíamos chamar de visuais. Finalizo o capítulo – e a tese – com uma reflexão sobre os processos de significação com a cegueira. Imprimo ao capítulo um caráter dinâmico e, em alguma medida, fotográfico, embora não necessariamente visual. Instantâneos que, ao passar de uma imagem para outra, ajudam a dar movimento, abrindo e multiplicando imagens da cegueira, imagens na cegueira, imagens da visão.

6.1 Visão do olho

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Uma explicação bastante comum sobre a visão em sites e textos da internet 117, tanto da área de oftalmologia quanto da física, compara o funcionamento do olho humano ao funcionamento de um instrumento ótico, especialmente uma câmara fotográfica. Nessa explicação, reencontramos a separação entre externo e interno e a visão como resultado de uma operação que acontece em dois tempos – começa nos olhos e termina no cérebro. Os olhos funcionariam como mediadores que captam a luz do ambiente, convertendo-a em impulsos nervosos que são levados ao cérebro para interpretação. A comparação com a fotografia aparece explícita em Moreira (2014):

Para explicar como enxergamos, podemos fazer uma analogia entre o olho e uma máquina fotográfica. Onde: 1. A córnea, camada mais externa do olho, faz o papel da objetiva da máquina, fazendo a refração. 2. A íris faz o controle da iluminação, que é realizada pelo diafragma da máquina fotográfica. 3. O cristalino é responsável pelo foco de objetos longe e perto 4. A retina capta a imagem, como se fosse o cartão de memória da maquina fotográfica. (Moreira, 2014: 68)

A médica explica que o olho teria a função de focar as imagens do infinito e de perto na mácula, local da retina onde se tem o melhor foco. Compara ainda o olho a um aparelho óptico complexo, funcionando como uma lente convergente que possui índice de refração e curvatura específicos para focalizar as imagens e raios luminosos na retina. As explicações operam por meio de um completo desenraizamento do funcionamento da visão de qualquer referente - aquele que olha, aquilo que se olha ou o lugar de onde se olha. Uma tal exposição do funcionamento do olho merece ser considerada com atenção, pois parece engendrar uma compreensão específica de visão. Conduzo um olhar para esse tema a partir da reflexão proposta por Crary (1999, 2012) que, ao analisar as técnicas do observador desenvolvidas na primeira metade do século XIX, identifica um movimento de deslocamento da visão para um plano dissociado do observador humano.

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Como exemplo de sites podemos citar o Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Olho_humano), o site do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (http://www.cbo.com.br/novo/publico_geral/o_olho_humano) e sites de física (http://www.sofisica.com.br/conteudos/Otica/Instrumentosoticos/olhohumano.php e http://efisica.if.usp.br/otica/basico/visao/). Acesso em 22.07.2014.

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A identidade entre o funcionamento da visão e o funcionamento de uma câmara fotográfica proposta acima não parece trivial. Ao contrário, ela explicita uma determinada concepção de corpo, de mundo e de conhecimento. Identificando o desenvolvimento de determinados aparelhos ópticos ao longo do séc. XIX como lugares de saber e de poder que operam diretamente no corpo, Crary nos ajuda a compreender a analogia atual entre o olho e a câmera. Quando a luz passa por um pequeno buraco em um ambiente fechado e escuro, uma imagem invertida aparecerá na parede oposta ao buraco. O fenômeno, que compõe o modelo da câmara obscura, foi notado por pensadores tão remotos quanto Aristóteles, Euclides ou Bacon, que especularam de diversas maneiras o quanto ele seria análogo à visão. A câmara obscura não foi simplesmente um equipamento inerte e neutro, mas foi incorporada a uma forma muito mais ampla e densa de organização do conhecimento e do sujeito que observa. Crary indica que a câmara obscura, tanto em Descartes quanto em Locke, ocupa a posição principal em um arranjo de práticas culturais e técnicas, se tornando modelo para um observador e para um tipo de funcionamento da visão que demonstrava que a observação conduz a inferências verdadeiras internas sobre um mundo externo. Ela era o aparato que garantia o acesso a uma verdade objetiva sobre o mundo. Com a câmara obscura, evidências sensoriais que dependessem de alguma maneira do corpo, como as disparidades da visão binocular, eram rejeitadas em favor das representações desse aparato mecânico e monocular cuja autenticidade era colocada acima de qualquer dúvida. A câmara obscura define um observador que está sujeito a um conjunto inflexível de posições e divisões. O mundo visual podia ser apropriado por um sujeito autônomo, mas apenas como uma consciência unitária privada, separada de qualquer relação ativa com o exterior. Apesar da associação hegemônica que relaciona a emergência da fotografia e do cinema como uma extensão tecnológica e ideológica da câmara obscura, Crary (1999) argumenta que, pelo contrário, o que houve na primeira metade do séc. XIX foi um colapso do modelo, que foi deslocado por noções radicalmente diferentes a respeito do observador e do que constitui a visão. Uma dimensão crucial dessa mudança é a inserção de um novo termo nos discursos e práticas da visão - o corpo humano. Começando por uma análise da “teoria das cores”, de Goethe, Crary (2012) delineia o surgimento de um modelo de visão subjetiva em que o corpo é introduzido em toda a sua densidade fisiológica como o fundamento da visão. Em Goethe, encontramos um novo observador produtivo cujo corpo tem uma série de capacidades 390

para gerar experiências visuais. O que está em questão é a descoberta das capacidades “visionárias” do corpo, por meio de experiências associadas a produção de pós-imagens na retina118. Até então as pós-imagens eram consideradas ilusões – enganos, espectros, irreais. No início do século XIX, essas experiências vão constituir uma nova positividade da visão. A prerrogativa do corpo como produtor de imagens visuais começa a colapsar a distinção entre interno e externo da qual dependia a câmara obscura. Uma vez que os objetos da visão se tornam co-extensivos ao próprio corpo, a visão se desloca e é reposicionada em um plano imanente único. A visão subjetiva é considerada distintivamente temporal, um desdobramento de processos internos ao corpo, o que desfaz noções de uma correspondência direta entre percepção e objeto. A visão subjetiva, que concede ao observador uma nova autonomia perceptiva e uma nova produtividade, resulta, simultaneamente, da transformação do observador em sujeito de um novo conhecimento, novas tecnologias de poder. Crary (1999) aponta a ciência da fisiologia como o terreno no qual emergem esses dois observadores interrelacionados. O corpo aparece como um novo continente a ser mapeado, explorado e dominado. Ao mesmo tempo em que se descobre que o conhecimento é condicionado pela estrutura física e anatômica e pelo funcionamento do corpo – particularmente dos olhos – o corpo passa a ser considerado a priori um corpo produtivo, que existe para ser posto para trabalhar. O autor descreve como o olho foi sendo mapeado como um território produtivo, com zonas de eficiência e aptidão variáveis e parâmetros específicos de visão normal e patológica. A superfície física do olho se torna um campo de informação estatística: a retina é demarcada, indicando como as cores mudam de tonalidade dependendo de onde atingem o olho; a extensão da área de visibilidade é medida - a visão periférica -; estabelece-se a distinção entre visão direta e indireta; localiza-se o ponto cego. A descrição oftalmológica sobre a visão central e visão periférica pode servir de exemplo do conhecimento sistemático produzido sobre o olho e suas funções, cuja origem o autor remonta a esse período. A acuidade visual se torna a medida para a visão central e o campo visual para a visão periférica.

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Crary ressalta que a intensidade desses estudos levaram alguns pesquisadores à cegueira, ao desenvolverem seguidas experiências que envolvia olhar fixamente para o sol. Um desses pesquisadores foi David Brewster, o inventor do caleidoscópio e do estereoscópio.

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A retina possui duas regiões anatômicas distintas. A retina central, onde se localiza a mácula, responsável pela visão de detalhes e cores, e a retina periférica responsável pelo campo visual. Além de estarem relacionadas diretamente à adaptação claroescuro. Na retina central existe grande quantidade de cones. Eles podem ser vermelho, verde e azul e precisam de claridade para sua função total. São responsáveis pela visão fotópica (visão diurna – no claro) e também pelo senso cromático. Os cones possuem pigmentos fotossensíveis específicos (eritrolabe, clorolabe e cianolabe) que permitem captar todo espectro de luz visível ao ser humano. A retina periférica possui mais bastonetes. Eles veem em preto e branco e tons de cinza. São importantes na informação sobre o brilho e sombra das imagens e não necessitam de tanta iluminação quanto os cones para funcionarem. São responsáveis pela visão escotópica (visão noturna – no escuro). (Moreira, 2014:69)

Para Crary (1999), o estudo do olho em termos de tempo de reação e limiares de fadiga e estimulação não estava dissociado da crescente demanda por conhecimento sobre a adaptação de um ser humano a tarefas produtivas nas quais o alcance de uma atenção ótima era indispensável para a racionalização do trabalho. Desenvolve-se, nessa época, uma noção de visão fundamentalmente quantitativa, na qual os termos que constituem a relação entre percepção e objeto se tornam abstratos, intercambiáveis e não visuais. Foi dada à percepção sensorial uma magnitude mensurável unicamente nos termos de uma estimulação externa conhecida e controlável. A visão passa a ser estudada como regularidades abstratas mensuráveis. Crary localiza aí as fundações da moderna teoria de estímulo-resposta da psicologia. É também nesse momento que se inicia o gradual parcelamento e divisão do corpo em sistemas e funções cada vez mais separados e específicos. Especial importância é dada à localização do cérebro e das funções dos nervos e à distinção entre nervos sensoriais e nervos motores. Tudo isso, afirma Crary, produz uma nova verdade sobre o corpo que alguns autores relacionam à chamada separação dos sentidos no séc. XIX. Nessa separação, o autor encontra uma quebra ainda maior com o observador clássico pelo surgimento de um observador para quem a visão é concebida sem nenhuma conexão com o ato de olhar. Crary (2012) seleciona o trabalho do fisiologista Johannes Müller como emblemático de uma teoria que se baseia na descoberta de que os nervos dos diferentes sentidos eram fisiologicamente distintos. O fisiologista declarava que uma causa uniforme – como, por exemplo, a eletricidade -, poderia gerar sensações inteiramente diferentes de um tipo de nervo a outro. A eletricidade aplicada ao nervo ótico produz a experiência da luz; aplicada à pele, produz a sensação do tato. Inversamente, uma variedade de causas diferentes produzirão a mesma sensação em um nervo sensório dado. Müller descreve a relação entre estímulo e sensação como fundamentalmente arbitrária. Com o trabalho de Müller se deduz que a sensação da luz e da cor são

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produzidas sempre que partes da retina forem excitadas e uma série de agentes poderiam produzir a sensação – influências mecânicas tais como uma pressão ou um golpe; eletricidade; agentes químicos como narcóticos; o estímulo sanguíneo em estado de congestão e, por último, Müller coloca as ondulações e emanações que, por sua ação no olho, são chamadas de luz. Crary acredita que, a essa altura, o modelo da câmara obscura se torna irrelevante. A experiência da luz é separada de qualquer ponto de referência estável e de uma origem ou fonte em torno da qual um mundo pudesse ser constituído ou apreendido. A teoria da energia específica dos nervos, de Müller, apresenta, para Crary, o esboço de uma modernidade visual em que a ausência de referentes é o terreno no qual novas técnicas instrumentais constroem para o observador um novo mundo “real”. A visão é redefinida como capacidade de ser afetada por sensações que não têm ligação necessária com um referente. O observador se torna, simultaneamente, o objeto do conhecimento e o objeto de procedimentos de estímulo e normatização que tem por função essencial produzir experiências para o sujeito. A fonte da experiência se torna indiferente. “O sujeito que percebe se transforma em um condutor neutro, um tipo de relevo entre outros que possibilita ótimas condições de circulação e de trocas – de mercadorias, energia, capital, imagens ou informação” (Crary, 2012: 95). Conforme indica Crary (1999), a rigidez da câmara obscura, com seu sistema óptico linear, sua posição fixa, sua distinção categórica entre dentro e fora, sua identificação entre percepção e objeto era muito inflexível e inconveniente para as necessidades do séc. XIX. Um observador móvel, útil e produtivo era necessário, tanto no discurso quanto na prática, um observador adequado aos novos usos do corpo e a vasta proliferação de imagens e sinais igualmente móveis e permutáveis. A modernidade implica em uma decodificação e desterritorialização da visão. Ingold (2008) acredita que a ambivalência entre o olho e a mente como locus primário da visão ou ainda a ambivalência da visão como observação corporal ou especulação mental, que aparecem na descrição do funcionamento do olho da oftalmologia e também permeia a abordagem de Crary, nunca foi resolvida. Para o autor, questões sobre o significado da luz são mal formuladas porque continuam a considerar os órgãos dos sentidos como portais entre um mundo externo e físico e um mundo interno da mente. Ingold considera que tal interface entre o olho e a mente não existe. Longe de começar com uma radiação incidente e terminar como uma imagem mental, a visão consistiria em um processo interminável, um engajamento de mão dupla 393

entre o preceptor e o seu ambiente. Visão que pode ser entendida como olhar ou observar. O autor propõe que avancemos da noção da visão como um modo de especulação para uma noção de visão como um modo de participação e finalmente para visão como um modo de ser. Como projeto de uma antropologia dos sentidos, Ingold considera fundamental que se restitua aos mundos virtuais do sentido as praticidades de nossa maneira sensória de perceber o mundo. São essas praticidades que me capturam a seguir, imagens fundamentalmente vinculadas a um ou muitos referentes - o sujeito que percebe, um histórico fisiológico dos olhos do perceptor, mas também as relações que estabelece com o entorno e seu engajamento sensorial com o ambiente.

6.2 Entre ver e não ver: sinais de fronteira

Assim como a cegueira de Borges (2011), que chega para ele como um lento crepúsculo, alguns entrevistados também perderam a visão aos poucos. Mas, ao contrário do que se imagina, a despedida nem sempre é da luz e sim do mundo das aparências, dos detalhes, das formas e dos contornos visuais. A perda da visão pode acontecer muito lentamente e a visualidade do mundo vai se modificando no processo. Algumas situações ou sinais marcam o tempo da despedida, momento de passagem entre mundos. Camila nasceu com retinose pigmentar, uma doença hereditária que causa a degeneração da retina. Quando pequena enxergava as formas. De perto no espelho conseguia ver o seu próprio rosto, mas perdeu essa imagem quando era bem nova. Já não se lembra. Nunca conheceu ninguém pelo rosto. Primeiro perdeu os traços, as cores depois, mas as formas continuavam. Sua visão era como se fosse em negativo de foto antiga. A forma de uma pessoa era uma coisa só, sem cores ou detalhes. Se ela se aproximava, dava para perceber se a pessoa era gorda ou magra, alta ou baixa. Ela descreve as situações que serviram de indicativo de que se aproximava da fronteira. Quando você percebe você já parou de ler, aí você já parou de se ver no espelho, você não se identifica mais, você não identifica mais ninguém. E nos últimos estágios, quando você percebe que já está muito mais grave, você perde a necessidade da luz quando vai ao banheiro, quando vai a qualquer lugar, não acende mais a luz, não tem mais essa necessidade. Eu perdi o hábito de acender a luz, eu já fazia as coisas sem a luz acesa. Aí eu percebi. Por isso que eu falo, é tão lento, mas quando você percebe você já perdeu muita coisa. Aí foi indo, foi indo, até eu não conseguir enxergar mais. Tem uma coisa que aconteceu super engraçada da perda da visão, em casa né, que em casa a gente tem mais habilidade. Eu botei o meu prato de comida, que eu ainda botava. Botei o prato em cima da pia, peguei a salada na

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geladeira, arrumei todinha, reguei com azeite, peguei meu prato e sentei para comer. Eu to comendo e aì „cadê a salada?‟. Rodei o prato. Aì „cadê a salada? Cadê? Não está, a salada não está aqui‟. Eu fui na pia e eu tinha arrumado tudo em cima do pano de pia! Tava lá a salada arrumadinha, com azeite... (risos). Eu errei o prato. Foi logo no inìcio, aì eu falei „realmente, agora eu já estou assim...‟.

Beatriz também nasceu com retinose e lembra da sua gradativa perda de visão na adolescência. As tarefas escolares foram a baliza que anunciava o avanço da invisualidade. Eu terminava o ano letivo em novembro lendo, quando chegava em março do ano seguinte eu já não estava lendo aquilo que eu mesma tinha escrito. Eu comecei a reclamar que as pautas do caderno estavam muito fracas. Aí a minha mãe pegava um lápis e reforçava as pautas todinhas. A anta aqui não se tocava... eu achava que o problema era o caderno, entendeu? Comprando canetas cada vez mais grossas para escrever. Eu ia tendo cada vez mais dificuldade de ler o que eu escrevia. Até eu me tocar e falar caraca, o problema não é esse, o problema não são as pautas, não são as canetas, o problema sou eu, eu é que estou perdendo mesmo.

As palavras de Beatriz nos fazem refletir sobre o caráter constitutivo ou reflexivo da visão – ela é simplesmente subjetiva, resultado de estímulos nos nervos que independem da origem ou o que vemos é mimético, um reflexo de como o mundo “realmente” é? Em que medida as qualidades se somam, se misturam ou se excluem? O caráter progressivo e lento da retinose faz Beatriz inicialmente acreditar que eram as coisas que estavam perdendo as formas e os contornos e não seus olhos que estavam deixando de ver. Ela recorda situação semelhante quando assistia televisão. A imagem televisiva, pela nitidez ou indistinção, se converte no sinal que anuncia que a cegueira transpassava sua visão. Eu sentava na sala para ver televisão e já não estava conseguindo perceber as imagens. E no quarto da minha mãe tinha uma televisão que ficava no canto da parede. Uma vez eu fui pro quarto dela, porque na sala estavam vendo uma coisa e eu queria ver outra, fui para o quarto dela assistir esse programa específico que eu queria ver, aí eu sentei no chão. Quando eu sentei no chão, muito perto da televisão, eu vi o que eu não estava conseguindo ver na sala. Ainda assim eu disse „gente, essa televisão do quarto pega melhor do que da sala‟. Até a ficha cair e eu dizer não... porque quando eu tomei distância da televisão do quarto eu vi que não era um problema de imagem.

Beatriz, antes de suspeitar de uma lesão na sua própria percepção visual, desconfia de uma falha nas coisas que vê, nas linhas do caderno, na tinta da caneta, na qualidade da imagem transmitida pela tv. Inicialmente ela não percebe nada de errado com seus olhos, são as próprias coisas que desvanecem.

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Pedro perdeu a visão em torno de 50 anos por conta de glaucoma. Primeiro o olho esquerdo, depois o olho direito. Soube que estava quase cego do olho esquerdo por causa de uma situação que vivenciou no trânsito. Dirigia seu carro e levava um amigo no banco do carona, na Avenida Porto Alegre. Iam conversando e ele parou no sinal. Olhou para o lado e viu que o sinal abriu, virou rapidamente para dar atenção ao amigo e deu uma leve arrancada para sair com o carro. Saiu lento, mas esbarrou na perna de uma senhora que vinha atravessando a rua. Não viu a senhora porque a sua visão do lado esquerdo já estava quase apagada e ele não sabia. Foi ao médico e descobriu que estava enxergando tubular, que é como se botasse um cano na frente do olho e a pessoa enxergasse só o que está na saída do cano, dentro do círculo, fora daquele círculo não se enxerga nada. A pressão do olho esquerdo chegava a 60. Disse que quando alcançava esse grau seu olho ficava descontrolado, tremendo, pulando, com uma velocidade incrível. Comparou com a imagem de um personagem de desenho animado que, quando leva uma pancada fica com os olhos rodando. Acha que era assim que seus olhos ficavam quando a pressão estava tão alta.

6.2.1 Sinestesia e dissonância tato/cor

Uma das primeiras atividades que fiz vendada no atendimento de Habilidades Básicas era uma espécie de quebra cabeça com quadrados grandes de madeira revestidos por diferentes materiais. Os quadrados era divididos ao meio e eu tinha que achar a segunda metade de cada quadrado pelo tato119. Quando termino a TO me fala para tirar a venda e olhar as peças. A primeira coisa que me surpreende é a cor das peças e dos materiais que as revestiam. Uma delas, que parecia a textura de um ladrilho, era de cor verde e eu tinha imaginado vermelha. O material parecido com borracha era azul e eu tinha imaginado preto. Aquele material que se parecia com lixa achei que seria de cor cinza ou grafite, mas era amarelo claro. Fiquei surpresa com a diferença entre as cores que imaginei que os materiais teriam quando os toquei e as cores que vi que tinham quando abri os olhos. Não eram as mesmas. Na realidade não tinha consciência que tinha imaginado cores para cada textura, a não ser depois que vi as cores que tinham. Só entendi que imaginei cores depois que vi a inadequação entre aquilo que

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A mesma atividade menciono quando abordo a questão da falta de um vocabulário tátil.

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percebi pelo toque - que relacionei a objetos e materiais que as texturas me remeteram (borracha, lixa, ladrilho) - e as cores que depois vi que os objetos efetivamente tinham. Eram cores que não correspondiam as que imaginei para os materiais tocados – materiais estes também imaginados, já que não eram realmente borracha, lixa ou ladrilho, eu é que fiz a associação pela sensação tátil que me causaram.

6.3 Visões de cegos “Se você pegar uma pessoa que nunca enxergou e perguntar se ela vive no escuro, ela vai te responder que não. Cego nenhum vive no escuro. Esse negócio de dizer „a escuridão do cego‟ - mentira. Cego não vive no escuro, cego não vê nada. E o nada não é escuro. Quem disse que o nada é escuro? O nada não é escuro, por que a pessoa acha que o nada é escuro? Senão o tudo tinha que ser claro. E o quê que é o tudo? Se ninguém define o quê é o tudo, quem vai definir o que é o nada?” (Beatriz) Caetano não tem os dois globos oculares, perdeu por causa do acidente. Descreve sua cegueira como sendo escura, mas uma escuridão total que não é preto, é escuro mesmo, sem cor. Segundo ele, é como fechar os olhos e abrir na escuridão, não dá para visualizar nada. Ana nasceu cega, mas a claridade, quando muito forte, sempre a incomodou. Sofre de uma enxaqueca crônica e no ano de 2012 fez uma série de testes no setor de oftalmologia do IBC. Acertou todos os testes relacionados a direção da luz. Ainda que não “visse”, procurava com a cabeça o ponto de luz. A oftalmologista supôs que ela acertasse por causa do calor, já a neurologista ficou na dúvida. Ana também não tem certeza, mas de alguma forma soube de onde vinha a luz. A cegueira de Pedro é igual a uma parede cinzenta. É como se olhasse o tempo todo para um muro cinza escuro e liso. Jair diz que, apesar de não ver nada, de ser tudo noite, porque já viu um dia a sua mente sabe que está claro. Camila ainda tem a percepção de claro e escuro, o que não quer dizer que enxergue. Se acender a luz não melhora nada. Diz que nunca percebeu as cores direito. Beatriz também conseguia enxergar um clarão na mesa em que estávamos, mas não percebia visualmente nada de mim, que me sentava a frente dela. Explica que já teve uma porcentagem razoável de campo visual e para exemplificar como era me pede para olhar fixamente para ela e, sem parar de olhar, dizer o que eu percebia a minha esquerda. Respondi que, sem desviar o olhar, dava para notar a silhueta das pessoas que passavam. Pergunta se dava para identificar cor ou dizer se a pessoa era homem ou 397

mulher, não consigo definir. Pergunta ainda se eu chamaria isso que estava percebendo de visão. Conta que a última vez que mediu, 10 anos antes, ela tinha 5% dessa visão periférica. Aquilo que eu estava percebendo ali, ela notaria 95% a menos. Percebe coisas passando, tem noção de claridade, mas não distingue nada. Acha que não pode chamar isso de visão, chamaria de percepção. Para ela visão é o foco, é identificar. Dora descreve o quase nada de visão que um dia teve. Nasceu com uma lesão grave na retina central e teve pouquíssimo de uma visão muito periférica. Era como se enxergasse de “rabo de olho na penumbra”, um começo de visão em que não se vê nem cor, só percebia mais ou menos o vulto. Contra a luz conseguiria ver, de lado, a porta da varanda da casa dela e talvez identificar se a veneziana da porta estaria aberta ou fechada. Se do lado de fora fosse noite ou um dia escuro, aí não. Só com a luz artificial da lâmpada da sala o contraste não era suficiente. Conseguia dizer se o dia estava claro ou escuro, conseguia ver o vulto de uma árvore na rua, mas o de um poste às vezes sim, às vezes não. Se, naquela época em que ainda tinha esse pouco de visão, eu estivesse vestindo uma blusa listada, com listas grossas e contraste de cor, ela conseguiria ver a lista. Hoje, Dora não consegue ver nada mais além de luz. Não consegue diferenciar uma camiseta branca de uma preta, nem se a luz está acesa ou apagada. Segundo ela, não tem mais visão mesmo, propriamente dita. Mas na sua cegueira, tem claridades e escuros, é como se passassem luzes por dentro. São como bolinhas ou estrelinhas de claridade, independente se está de olho aberto ou fechado. A luz é o elemento determinante para o aparecimento da cor e, embora até o século XVII tenha sido definida como aquilo que os nossos olhos veem e o que causa as sensações visuais, a definição, como indica Pedrosa (2009), mostrou-se insuficiente a partir das experiências de Herschell sobre as propriedades dos raios infravermelhos e ultravioletas que possuem todas as características da luz, por mais que nossos olhos não tenham capacidade para percebe-los. O exemplo dos raios infravermelho e ultravioleta são, para Pedrosa, uma demonstração clara de que a visibilidade não é condição suficiente para a definição da luz e o mesmo pode ser dito em relação à visibilidade - nem todas as luzes são visíveis, nem todas as sensações luminosas são provocadas pela luz. Como as pós-imagens de Goethe, na escuridão, se experimentarmos fechar os olhos e pressioná-los, surge a sensação de formas luminosas, ainda que não exista luz no ambiente. Borges (2011) descreve as cores do seu mundo de cego ressaltando que a cegueira particular não é a cegueira perfeita que as pessoas imaginam. O mundo do 398

cego não é a noite que se supõe. Uma das cores que muitos cegos sentem falta é o preto; outra, o vermelho. Borges dizia que o seu mundo era um mundo de neblina, uma neblina esverdeada ou azulada vagamente luminosa. Uma cor em especial não lhe abandonou, a vaga luz, a inextricável sombra do amarelo, o ouro do princípio. É também o amarelo que Camila evoca quando fala das cores. Já não a acompanha mais no que os seus olhos hoje vislumbram, mas se atualiza na memória. Eu me lembro uma vez, eu andando, que eu ainda andava sozinha, com meus braços para lá e para cá do jeito que eu gostava muito, eu estava muito feliz nesse dia, eu estava com uma blusa amarela. O amarelo nunca... nunca esqueci do amarelo. Eu vinha andando assim com meus braços sacudindo e rindo, às vezes eu ando rindo, eu fico lembrando das coisas né, mas esse dia eu estava especialmente feliz. O dia estava um céu azul, com um sol, sabe aquele sol amarelão mesmo? Lindo. Eu nunca mais esqueci esse dia. Então o sol para mim ele me dá um... faz um bem para mim, quando eu me lembro daquele amarelão do sol, aquela tarde eu nunca mais esqueci.

Camila foi perdendo a visão de cores aos poucos. As primeiras que se foram - o dourado e o prateado. Hoje não vê mais nenhuma cor, mas lembra de muitas. Além do amarelo, o preto, o branco, o azul, o vermelho, o verde bandeira. Mas quando as pessoas começam a falar “verde isso, verde aquilo”, milhares de tons de verde, ou então rosa pink, aí ela não sabe. Lembra da cor pela imagem visual que ainda guarda de determinados símbolos, pelas formas das coisas que já viu. Sabe nitidamente o vermelho e o branco por causa do logotipo da Coca-Cola, que é algo que resiste bem forte na sua cabeça. Violeta é uma cor que não lembra, nunca prestou atenção ao violeta. Ou coral. Ana já nasceu cega, mas lembra que quando muito nova, sua mãe ou suas tias lhe perguntavam as cores e ela sempre acertava o azul, algo lhe chamava atenção nessa cor. Não lembra de responder verde nem vermelho, lembra de dizer “azul”. Sente que é diferente. Dora não viu as cores, mas de alguma maneira sabe como elas são, acha que talvez de vidas passadas. O aprendizado veio de outro jeito porque conscientemente ela nunca viu cor. Mas as pessoas sempre lhe disseram que usa muito bem as cores. Ela sabe, só não sabe como sabe, mas diz que alguma coisa acessa. Sempre tem certeza da cor e do clima que aquela cor transmite. Beatriz brinca dizendo que atualmente não consegue mais uma descrição das cores quando pergunta e, se mais de uma pessoa tenta definir para ela alguma cor, nunca há consenso.

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Esse negócio de cor está um inferno né? Eu vou comprar as minhas coisas, eu vou sozinha. Aí eu falo pra menina da loja „que cor é isso aqui?‟, „não sei‟, eu falo „como assim? Não sabe que cor é isso? Tá doida?‟, aì ela „fulana, que cor é isso?‟, aì fala um nome de uma cor que eu nunca ouvi na vida. Aì elas começam a tentar „parece não sei o que lá‟, aì a outra discorda „não, claro que não‟. Lá no trabalho a mesma coisa „gente, que cor é isso?‟, „vai começar, Beatriz? Eu não sei que cor é isso‟. Meu Deus do céu!

Reportagem da revista Scientific American Brasil120, assinada por John S. Werner, Baingio Pinna e Lothar Spillman, diz que "muitas pessoas acreditam que a cor é uma propriedade definidora e essencial dos objetos, que depende inteiramente dos comprimentos de onda de luz especìficos que são refletidos deles”, mas segundo os estudos desenvolvidos pelos pesquisadores, essa é uma crença equivocada e a cor é uma sensação criada pelo cérebro. O fato de não notarmos nenhuma mudança fundamental nas cores dos objetos quando acontece uma mudança de iluminação no ambiente - a chamada “constância da cor” - seria um bom exemplo de que a cor não está nos objetos, mas corresponde a uma representação interna da mente. A qualidade sensorial que damos o nome de cor emerge nos mecanismos sensoriais pelo processo de aprendizagem, sendo projetada nos objetos. Aprofundar o conhecimento sobre o fenômeno da cor é um trabalho abrangente que, como indica Barros (2006), envolve desde a composição química dos pigmentos, estudos da física da luz e da fisiologia do nosso aparelho visual até as questões psicológicas da interpretação e assimilação das cores, associações simbólicas e culturais, além das questões estéticas. Para Kandinsky (1996), a cor é canal de expressão de uma realidade interna por meio da evocação das emoções. O artista traduz a cor numa linguagem universal que relaciona a movimentos, temperatura, texturas, sabores e sons musicais, evocando uma mistura de sentidos que, ao longo do século XIX, como vimos em Crary (2012), foram sendo especializados e separados. O olho está em estreita relação com o paladar, mas também com os outros sentidos, o que acha-se confirmado pela experiência. Há cores que parecem rugosas e ferem a vista. Outras, pelo contrário, dão a impressão de lisas, de aveludadas. Sente-se vontade de acariciá-las. É essa sensação que produz a diferença no tom das cores, entre os tons quentes e os tons frios. (…) Fala-se correntemente do "perfume das cores" ou de sua sonoridade. E não há quem possa descortinar uma semelhança entre

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“Cores ilusórias & o cérebro - Novas ilusões visuais sugerem que a percepção de cores está associada à de formas e profundidade”. Edição 59, abril de 2007.

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o amarelo-vivo e as notas baixas do piano ou entre a voz do soprano e a laca vermelho-escura, tanto essa sonoridade é evidente. (Kandinsky, 1996: 67)

Peço para Dora me descrever a sua cor preferida e ela diz que gosta especialmente do vermelho. O vermelho que Kandinsky (1996) descreve como cor sem limites, essencialmente quente e que age internamente como uma cor transbordante de vida ardente e agitada. O vermelho claro quente, vermelho-Saturno, para o pintor é cor que evoca força, impetuosidade, energia, decisão, alegria, triunfo. Dora apresenta as suas razões para gostar do vermelho: Eu acho que é alegre, eu acho que é quente. Eu acho que o vermelho em si ele já diz. Você, quando está de vermelho, você está alegre, não precisa se pintar muito, se produzir muito, sabe? Se você está de preto você tem que ficar muito produzida, você tem que se produzir bem bacaninha. Agora você de vermelho não, o vermelho já levanta. Acho que o vermelho facilita as coisas. Ele é alegre, ele é vibrante, ele já chega, não precisa mais ficar botando, não precisa pendurar uma melancia no pescoço porque você já chegou, você bota uma blusa vermelha e você já chegou. Não precisa mais botar não sei quantos colares, pintar o olho, pintar não sei o quê, sabe? O vermelho já diz. Nem deve fazer muita coisa para não ficar aquela alegoria, carro alegórico. Então para mim o vermelho é bom, eu sou muito clarinha, não gosto de ficar me pintando muito, então para mim o vermelho já resolve.

6.3.1 Terceiro olho

Passo o final de semana vendada na casa de Dora e ela me apresenta seus dispositivos de acessibilidade. Entre eles o que chamou de “aparelhinho das cores”. Conduz o meu dedo e mostra um buraquinho em uma das extremidades que é o “olho”. Para fazê-lo ver as cores você encosta o olho mecânico naquilo que quer saber e aperta o primeiro botão. Aponto para uma fita que estávamos mexendo e aperto o botão. O aparelho diz, numa voz feminina, em português, com sotaque de Portugal: “cinzento pálido”. Depois aponto para o meu vestido, aperto novamente o botão e a moça diz “rosa claro”. Não é só a cor que aquele olho vê, mas também as nuances de tonalidade, com os adjetivos pálido, claro, escuro, intenso. Dora usa a função cores do seu olho mecânico para separar roupa. Para organizar os diversos pares de meias que às vezes têm cores semelhantes. Ou quando tem três camisetas iguais (do mesmo modelo), mas de cores diferentes – uma branca, uma preta, uma azul. Se ela tem um sapato preto e um marrom, mas do mesmo tipo, é seu terceiro olho que identifica qual deles ela quer usar. Mas não compra uma roupa nova com esse auxílio técnico, porque o aparelho não consegue lhe dizer se o rosa

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daquela blusa é bonito ou feio, para isso prefere a opinião de olhos humanos. Ele também não diz se a roupa é estampada, se tem pintinhas ou listinhas. Capta diferenças grandes e o pequeno deixa passar. Ela explica que, além do aparelho ser uma espécie de escâner de cor, é também um identificador que tem uma célula fotoelétrica 121. O segundo botão é um detector de luz que identifica o grau de luminosidade em um ambiente. A pessoa aponta para o lugar apertando o botão e, conforme vai mudando de direção, ele indica o nível de luminosidade. A indicação se dá por um sinal acústico que varia conforme a luz, quanto mais luz, mais agudo, quanto mais escuro, mais grave. Dora acha muito útil para detectar se esqueceu alguma luz acesa em casa quando recebe visitas. Quando quer tirar uma foto, usando o aparelho consegue saber o nível de luminosidade do ambiente e também pode descobrir se o dia já escureceu ou se ainda está claro. Dora usa o aparelho para identificar as coisas que já tem, que já sabe ou já lhe disseram como são, mas acha que cada um desenvolve a sua forma de ver através daquele olho mecânico – de acordo com o seu jeito e com aquilo que precisa.

6.4 Imagens e representações na cegueira

O formato das representações mentais de pessoas cegas é apontado por Cattaneo e Vecchi (2011) como um tema controverso na neurociência. Enquanto alguns pesquisadores usam o termo "visuo-espacial" para se referir às imagens mentais de cegos, sugerindo que elas podem ser, de alguma maneira, visuais, outros argumentam que imagens mentais de cegos contêm somente informações sensoriais não visuais (auditivas, táteis, olfativas) e conteúdo semântico abstrato. As duas perspectivas partilham a ideia de que pessoas cegas podem gerar representações mentais que contenham informações espaciais. Segundo os autores, a criação de imagens mentais é um meio crítico para as funções cognitivas, numéricas, para a memória e o raciocínio. Nos últimos 30 anos, elas têm sido associadas tanto com estruturas da percepção quanto da memória. Embora imagens mentais possam ser geradas com base em inputs sensoriais múltiplos, os

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O fabricante se chama Colorino e o aparelho permite a identificação e a leitura em voz de 150 cores diferentes, para além da sinalização da presença de luz. A versão em inglês encontrava-se a venda pelo site da Amazon (http://www.amazon.com/Colorino-Color-Identifier-Light-Detector/dp/B000YL95CE) a um preço de $ 162,50 (dólares). Acesso em 24.07.2014.

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autores indicam que os aspectos visuais devem desempenhar um papel principal em mediar processos cognitivos em videntes. Entretanto, evidências convergentes de estudos realizados com pessoas cegas sugerem que elas são capazes de gerar e manipular imagens mentais por analogia, com base em informações hapticas ou verbais ou na memória de longo prazo. Cattaneo e Vecchi (2011) indicam que as informações espaciais não são transmitidas somente por um sentido, mas sim pela visão, tato, audição, por informação proprioceptiva ou vestibular. Por isso, é improvável que existam imagens mentais puramente espaciais. A informação espacial, quando presente, está sempre incorporada de representações que também apresentam detalhes visuais, auditivos e táteis. O grau de cada conteúdo de modalidade sensorial depende da experiência perceptiva dominante. Para avaliar o processo de representação mental de pessoas cegas é necessário, segundo os autores, considerar a distinção entre imagens visuais e imagens espaciais. Imagem visual se refere à representação da aparência visual de um objeto, como a sua forma, cor ou brilho, enquanto imagem espacial se refere à representação das relações espaciais entre as partes de um objeto e a localização dos objetos no espaço, ou o seu movimento. A distinção entre imagens visuais/específicas e espaciais/gerais seria um aspecto decisivo a ser considerado quando se discute a natureza das imagens mentais de pessoas cegas. Modelos espaciais mentais, de acordo com Knauff e May (2006), são críticos para o raciocínio. A estrutura do processo de raciocínio seria provavelmente formada por modelos mentais organizados espacialmente, que não podem ser identificados como imagens visuais. Os testes realizados procuram avaliar o formato e o funcionamento do processo de representação mental em pessoas cegas. São testes de rotação mental de imagem, reconhecimento de figuras, representação em 2D e 3D, aplicação de convenções de desenho (perspectiva, ponto de vista), processo de manipulação de imagens mentais na memória de trabalho. Cattaneo e Vecchi (2011) acreditam que imagens mentais de cegos não seriam visuais num sentido estrito, mas que os objetos seriam representados mentalmente por cegos em um formato análogo, enriquecidos pelo conhecimento semântico pertencente àquele objeto especifico. Em outras palavras, cegos congênitos podem pensar o sol como um "círculo amarelo", mas, embora eles possam visualizar o "círculo" (informação espacial), eles não podem vê-lo mentalmente como sendo amarelo (informação visual). Sabem que é amarelo, mas não veriam a cor.

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Os autores utilizam o termo "visualizar" intencionalmente porque estão inclinados a pensar que pessoas cegas não necessariamente representam informações sobre a forma dos objetos com traços cinestésicos/motores/táteis, nem como uma informação puramente abstrata (do tipo verbal), mas que esse tipo de informação é mantida num formato análogo/espacial que pode conter informação sensória numa extensão diferente. Concluem que, embora em formato análogo, seria improvável que as imagens mentais geradas por cegos se assemelhem às experimentadas por videntes. Uma perspectiva bastante aceita, para Cattaneo e Vecchi (2011), é a de que os sonhos de cegos congênitos ou precoces não teriam conteúdo visual, mas sim sons, sensações de toque, e experiências emocionais. As evidências estão baseadas nos relatos das próprias pessoas cegas, sofrendo, para os autores, as limitações típicas de medidas subjetivas. Para obter uma medida mais objetiva dos conteúdos mentais de sonhos, Bertolo e colegas (2003) investigaram a atividade durante o sono em pessoas cegas utilizando eletroencefalograma (EEG), levantando a hipótese de que sonhos com conteúdo visual deveriam refletir mudanças no ritmo alfa do EEG. Com o experimento os autores argumentam que os relatos de sonhos de cegos congênitos continham referências táteis, auditivas e cinestésicas vigorosas, mas também continham elementos visuais. De acordo com Bertolo e colegas (2003), pessoas cegas foram inclusive capazes de representar graficamente as cenas sonhadas que tinham previamente descrito em palavras, e tais relatos e desenhos apresentavam detalhes visuais numa extensão semelhante àqueles produzidos pelo grupo de controle vidente. Um dos pontos mais críticos encontrados no estudo foi a correlação significativa entre os conteúdos visuais relatados e a diminuição da força do ritmo alfa, o que, para os autores, provaria que pessoas cegas de fato experimentariam imagens visuais. Entretanto, Lopes da Silva (2003) pondera que, embora o estudo de Bertolo e colegas mostre que áreas do córtex visual responsáveis por representações visuais são ativadas, isso não implica automaticamente que os seus sonhos tenham um conteúdo visual. Inputs auditivos e táteis podem criar imagens virtuais no cérebro de pessoas cegas, mas tais imagens não seriam necessariamente visuais. Nos estudos apresentados considera-se que, apesar dos meios serem diferentes, pessoas cegas podem gerar representações mentais espaciais que apresentariam, inclusive, características consideradas visuais, de forma análoga às de pessoas que enxergam. Os testes cognitivos procuram avaliar se os sonhos dos cegos têm conteúdos visuais (Bertolo e colegas 2003), se poderiam gerar imagens mentais com aspectos 404

visuais ou em um formato semelhante ao de videntes (Ricciardi e colegas, 2009), se desenvolvem capacidades aprimoradas dos outros sentidos como forma de compensação da falta da visão (Wong e colegas, 2011). O que parece ocorrer é uma comparação incomparável. Mesmo que tenham representações internas que apresentam algum aspecto que possa ser considerado visual - como a forma, por exemplo - sua experiência difere da experiência de quem enxerga. A forma ou a textura de um objeto podem ser observadas tanto pelo tato quanto pela visão, mas as duas maneiras destacarão atributos distintos de um objeto se um ou outro sistema perceptivo é privilegiado (ou mesmo ambos, o que geraria uma terceira experiência do mesmo objeto). O objetivo desses estudos não parece ser o de compreender uma experiência outra de mundo, mas de medir o quanto essa experiência outra se aproxima ou se afasta da experiência única, aquela considerada como a forma correta, melhor adaptada, mais desenvolvida ou mais eficiente, de estar no mundo. Ao aproximar representação mental/espacial de representação mental/visual busca-se uma maneira equivalente para pessoas cegas gerarem representações mentais. Uma hierarquia entre os sentidos que privilegia o visual é acionada e introduz-se a analogia entre tato e espaço, de um lado, e visão de outro, para tornar possível e justificável a capacidade cognitiva de pessoas cegas. Ao invés de questionar o modelo de conhecimento via representação, ou de se aproximar de outra forma de representar, procura-se uma maneira de tornar os cegos capazes de representar “como se fosse” visualmente ou, em outras palavras, de torna-los capazes de visualização interna – de ver com o cérebro. Nesse sentido, da visão que começa no cérebro, é possível que cegos transformem a sensação do tato em cognição da visão. Ingold (2008) considera que a compreensão da percepção como uma operação dentro da cabeça, executada sobre o material bruto das sensações, está relacionada a certo modo de imaginar o ser humano - como um lugar de consciência, limitado pela pele e que se define em oposição ao mundo. A ideia de que o mundo é conhecido pela sua representação mental, para o autor, está atada a pressupostos sobre a preeminência da visão. No centro de abordagens que privilegiam a visão como a melhor forma de conhecimento do mundo, Ingold identifica a teoria representacionista do conhecimento, de acordo com a qual as pessoas partiriam do material bruto de uma sensação corpórea para construir uma imagem interna de como é o mundo “lá fora”. Tal teoria se sustenta a partir de uma distinção fundamental entre uma dimensão física – o registro de 405

sensações pelo corpo e pelo cérebro – e uma dimensão cultural – a construção de representações na mente. O autor acredita que tal concepção de como o conhecimento e o pensamento se constroem teria levado à redução da visão e sua construção como uma modalidade sensória especializada na apropriação e manipulação de um mundo objetificado. A fonte da redução estaria na equalização entre visão e visualização – a formação, na mente, de imagens ou representações de mundo. Para Mondzain (2010), imagens não são objetos posicionados em frente aos nossos olhos mas, ao invés disso, são locais em que signos podem circular entre nós sem interrupção. A produção de imagens, a faculdade de imaginar, não está relacionada apenas ao visual, mas à possibilidade de representar. A representação pode adquirir contornos visuais, mas também comportamentais, sonoros, materiais, oníricos. A associação da visão com a visualização de que nos fala Ingold (2008) parece ofuscar os múltiplos significados embutidos na palavra imagem. Dora, em comentário durante a oficina inclusiva, nos lembra dessa complexidade. É que imagem para mim ela não é só visual. Imagem ela é imagem visual, mas pode ser uma imagem auditiva... imagina aquela música, imagina o som de harpa. Pode ser uma imagem tátil, imagina aquele lençol de seda. Pode ser uma imagem olfativa – „imagina aquele chocolate com baunilha‟. Ou pode ser uma imagem gustativa e até pode ser uma imagem proprioceptiva – „imagina que você está pulando de um trampolim‟, é uma imagem proprioceptiva, ela não é tátil, ela não é exatamente nenhum dos cinco sentidos. E pode ser – „imagina que você está triste‟. Então imagem é uma coisa muito rica, a gente tem uma cultura que é predominantemente visual, então é uma cultura que bota tudo no visual, visualiza tudo e acha que com a visão vai resolver, vai estar tudo resolvido.

Em comunicação realizada em congresso no Rio de Janeiro 122, Ingold (2011) indica uma proximidade entre o ato de imaginar e o ato de perceber que parece instigante para a aproximação do imaginário de pessoas cegas que aqui ensaio. Ao invés de considerar que as formas das coisas estejam idealmente prefiguradas no mundo, sejam impostas sobre a matéria e representadas na mente, o autor propõe considerarmos que as formas surgem por meio de um engajamento de forças e materiais em um mundo que está perpetuamente em construção pelas atividades de seus habitantes. Perceber, tanto quanto imaginar, é participar de dentro no perpétuo auto-fazer do mundo, é se juntar com um mundo em que as coisas não tanto existem, mas ocorrem, cada uma em

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conferência de abertura do seminário internacional “O Trabalho da Imaginação na Textura do Presente: reflexões antropológicas a partir de etnografias desenvolvidas em Angola e Moçambique”. Solar da Imperatriz, Rio de Janeiro, 19 de novembro de 2012.

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sua própria trajetória de tornar-se. Para Ingold, se a imaginação é um trabalho da mente é de uma mente que se mistura livremente com o mundo ao longo de múltiplas linhas de participação sensorial. Na vida da imaginação, o mundo é um feixe de trajetórias que se enredam e desenredam aqui e ali. Ao contrário de corpos materiais, entretanto, imaginações e sonhos podem voar.

6.4.1 Memória visual, fabricação de imagens e sonhos

Pelo pouco que viu na vida Dora consegue imaginar como seria o espaço do seu apartamento onde estávamos, apesar de nunca ter efetivamente visto aquele lugar, pois, quando se mudou para lá, já não via mais nada. Construiu na sua cabeça o visual daquele espaço. Conta que discutiu o projeto da sua cozinha com o pessoal da loja visualmente, o que queria, o que achava que não ficaria legal. Não era só uma questão funcional, era de estética também. Acredita que a imagem estética que cria é uma junção da memória da baixíssima visão periférica que já teve com a sua experiência tátil. É como se fizesse uma operação de recorte e colagem do seu arsenal de imagens visuais para criar visualmente uma nova imagem de um espaço que nunca viu.

Quando eu vim para esse meu apartamento eu já não enxergava nada, mas eu tenho uma imagem visual do meu apartamento. Que na verdade não é nem uma recordação, porque ela não existiu, ela é uma construção. Entendeu? Do mesmo jeito que quando você olha um tecido, por exemplo, você não imagina qual é a sensação tátil daquele tecido? Nossa, aquilo ali deve ser fofinho, deve ser macio, ou não deve, deve ser duro, deve ser isso ou aquilo... você imagina com base na sua experiência prévia, não é isso? Porque você nem tocou ainda.

Segundo Cattaneo e Vecchi (2011), ter visto por um período curto significa ter se familiarizado com noções tais como perspectiva ou oclusão visual, ter sido exposto a figuras bidimensionais, ao rosto das pessoas, às cores dos vários objetos. Significa ter experimentado a combinação de uma percepção visual e experiência tátil. As memórias visuais podem se enfraquecer depois de anos de privação visual, mas ainda assim, um quadro de referência baseado na visão, que seria útil para o processo de integração multissensorial, pode permanecer disponível. Para Cattaneo e Vecchi, a visão tem um papel dominante sobre outras modalidades sensórias na condução de processos de imagens mentais em pessoas que enxergam. Cegos tardios confiaram na experiência visual por um período de suas vidas e essa experiência anterior pode ser usada para dar suporte a sua percepção tátil e

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auditiva, ajudando-os a gerar uma representação mental do ambiente a sua volta. Entretanto, cegos tardios não recebem inputs visuais para renovar seu modelo armazenado do mundo visual; portanto, anos de deficiência visual também afetam a maneira como características detalhadas dos objetos, tais como formato e cor, são representadas, assim como a maneira como o espaço é representado. Os autores apontam que o processo de imagens mentais é modificado ao longo da vida seguindo a experiência sensorial dominante, e são modulados pelos inputs que chegam por diferentes modalidades sensórias. É provável que cegos tardios continuem experimentando imagens visuais em seu processo mental, embora, à medida que passa o tempo em relação ao início da deficiência, experiências táteis e auditivas ganhem importância. Ingold (2013) acredita que o projeto de classificação da ciência trata a natureza como um livro que já foi escrito, cujos segredos podem ser capturados apenas por meio de rigorosa investigação e onde cada descoberta não é tanto uma revelação, mas um avanço. É um livro que deve ser lido literalmente, sem apelar para nada além de fatos. O mundo se torna um reservatório de informação, os seres são entendidos como entidades delimitadas e os objetos são ordenados e arranjados em compartimentos de uma taxonomia com base nas suas semelhanças e diferenças percebidas. A consequência desse projeto é que seres ou imagens sem evidências corroborativas localizáveis nos fatos da natureza caem por entre as fendas de uma tal taxonomia. Jair, que ficou cego depois de 30 anos enxergando, fala da relação que estabelece com certos lugares da cidade que já viu e como esses espaços estão atualmente presentes em seu imaginário. No relato de Jair experimentamos a transposição de uma imagem visual passada de uma paisagem para um lugar presente. Uma vez que a gente estava lá em Santa Teresa, aí tem um lugar lá que a gente sente o vento, vindo lá da praia. Ai que bom... muito legal, eu gosto. Ah meu Deus, se tivesse vendo, estava vendo aquela paisagem, linda, que está lá embaixo. Aí eu perguntei a minha professora, „dá para tu ver o quê?‟, „ah, uma paisagem tão linda, Jair‟, „ah, tá bom, eu também estou vendo...‟. Mas só na mente né? O: você consegue ver na mente? É, porque eu já enxerguei uma época. Bota a paisagem que eu enxergava. Mas aí está tudo mudado, mas aquela imagem fica na mente.

Berque (2010) toma como exemplo a experiência de deja-vu do poeta Bo Juyi no monte Lu para falar sobre a realidade dos lugares em um território humano. Bo Juyi relata que, ao ver pela primeira vez o monte Lu, o amou como a sua terra natal. Quando

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ali chegou pela primeira vez o reconheceu como a sua terra natal. Berque considera que em um lugar comum, já existente no subconsciente do poeta pela literatura e pela pintura, se estabelece o caso singular de uma paisagem concreta. Trata-se de uma lógica do devir e da identificação e não da identidade. Seria a lógica da metáfora, S1 se transforma em S2 porque tem em comum o mesmo predicado, o mesmo campo referencial artístico ou literário. Seguindo o argumento de Berque, podemos pensar no caso de Jair que, ao se deparar com um lugar específico – em Santa Teresa diante de uma vista - aciona uma imagem anterior, uma representação de paisagem. Correspondendo ou não à realidade, suplantando a lógica da identidade e adentrando a lógica do devir e da identificação, as duas imagens – a vista de Santa Teresa e a imagem vista por Jair - se relacionam por seu lugar comum, o fato de serem paisagens. Angela, sobre o imaginário de lugares que conheceu antes de ficar cega, conta que, ainda que outra pessoa diga que o lugar se transformou, a imagem que permanece ativa em sua memória é aquela que tinha antes de perder a visão. No meu imaginário, as coisas são para mim como quando eu enxergava mesmo, não muda muito não, de quando eu enxergava, no meu imaginário. O: e quando você falou antes que quando uma pessoa diz para você „esse lugar era assim, mas agora mudou...‟, a sua imaginação sobre o lugar também muda? Muda. Mas fica mais a antiga do que aquela que a pessoa descreveu para mim. O: fica a imagem anterior de lugares que você já foi? Exatamente.

Na mesma direção, Jair fala sobre sua impressão da praia de Copacabana e a imaginação de lugares que já conhecia: A impressão do lugar está a mesma coisa. Eu parava sempre ali no posto 6, ali era o lugar que a gente sempre se encontrava para ver outras pessoas. O: e aí como você imagina os lugares, quando você vai a um lugar que você já foi antes? Se eu for do jeito que eu estou agora eu não vou sentir diferença nenhuma. O: você vai imaginar como era? Como era, é. Diferença nenhuma. O: e se alguém te falar „aqui tinha tal prédio e agora construìram um posto...‟, isso muda a imagem do lugar para você? Eu vou ficar com aquela imagem da antiga. Aquela imagem da antiga. Aí a pessoa falando isso para mim agora, eu vou falar, „pô naquela época eu enxergava, agora, não sei, tantos anos que passou, mudou então?‟ tudo bem, mas eu vou ficar com a imagem daquela... antiga.

A atualização de imagens visuais passadas na relação presente de pessoas cegas com determinados ambientes abre questões a respeito do imaginário na relação com o lugar. No caso deles, a impossibilidade atual da visão faz com que o passado imagético 409

do lugar continue presente na relação que estabelecem com ele. Por terem tido um acesso visual a lugares que conheceram antes da cegueira e, certamente, por tais lugares participarem de seu ser, no sentido colocado por Berque (2010) de relação entre os seres e as coisas, a imagem presente do lugar continua sendo aquela que é fruto da relação passada. Ainda que a memória se modifique e se atualize com as novas relações estabelecidas com o lugar, a ruptura da cegueira atualiza a imagem passada. Halbwachs (1990) revela que, para que a nossa memória se beneficie da dos outros não é suficiente que eles nos tragam seus testemunhos, é também necessário que eles não tenham deixado de concordar com as suas memórias e que existam pontos de contato suficientes entre ela e as outras partes para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum. A ruptura de um suporte visual pela cegueira faz com que as novas descrições de um lugar que se transformou não permaneçam no imaginário de Angela e Jair, porque não há mais uma base comum para sua reconstrução. Retomando Berque (2010), em uma perspectiva individualista que considera o território como um espaço absolutamente neutro e exterior às subjetividades humanas, os lugares revistos por Angela e Jair talvez já não sejam. Mas pensando no mundo interior como continuidade com o meio, o lugar participa do ser e o ser participa do lugar, atualiza-se a existência de espaços e imagens que, ainda que não sejam mais vistos por outros, em sua imaginação continuam sendo. O mesmo mecanismo acontece não apenas com lugares, mas também com pessoas que já foram vistas, especialmente as mais próximas. Quando Jair conversa com alguém que conheceu antes de ficar cego vem o tipo visual todinho da pessoa na sua frente. A voz é o que aciona a imagem visual. Mas é uma representação da feição da pessoa que conheceu antes de ficar cego, ou seja, de pelo menos 20 anos atrás. Pedro relata algo semelhante na relação com seu filho. Lembra do rosto dele quando era garoto e, mesmo sabendo que hoje é um homem maduro, fala com ele da mesma maneira, como se visse a pessoa de antes. Ainda que digam que está forte, por exemplo, isso muda pouco na imagem que tem do filho. Tanto Jair quanto Pedro dizem que não formam nenhuma imagem visual de pessoas que conheceram depois da cegueira. Já Angela, quando conhece uma pessoa, procura imaginá-la e a sua imaginação algumas vezes corresponde ao que a própria pessoa diz de si mesma: “eu procuro imaginar sempre uma coisa... as minhas imaginações elas às vezes dão certo. Às vezes eu consigo imaginar a pessoa, aì depois elas me perguntam „como você acha que eu sou?‟, algumas eu não consigo, mas algumas eu já consigo”. 410

Peço para Caetano lembrar de um lugar que visualmente conhecia bem – ele escolhe a praça perto de onde trabalhava. Na entrada do local tinha um portão grande de ferro, à direita tinha uma oficina, à esquerda, uma padaria. A praça ficava em frente. Ao mesmo tempo que me descreve, diz que está pensando na imagem e, de repente, interrompe a lembrança para comentar que agora não é mais uma padaria que tem lá, virou uma agência de automóvel. Pergunto se isso muda alguma coisa na imagem que ele descrevia antes e ele me diz que sim, com essa informação ele tenta visualizar o lugar de uma nova forma que, de alguma maneira, se aproxime de como o lugar está hoje. Beatriz descreve um fenômeno parecido ao falar da Cinelândia, local que conheceu visualmente quando ainda enxergava. A Cinelândia que um dia viu não tinha uma das ruazinhas que tem hoje, numa das laterais. Sabendo da nova característica do lugar, Beatriz conta que quando passa por ali encaixa a imagem de uma pequena rua na memória visual que tem da Cinelândia. Num cenário antigo que já conheceu ela acomoda uma rua que ajusta sua memória visual a uma imagem atual do lugar quando por ele atravessa. A correspondência da fisionomia das pessoas que Angela imagina, das paisagens vistas por Jair, das imagens visuais dos lugares produzidas por Caetano ou Beatriz ou da imagem visual que Dora fabrica de seu apartamento que nunca viu com uma suposta realidade física, nos remete à clássica discussão da filosofia sobre a existência ou não de uma realidade da matéria sintetizada por Russell (2005) e da imagem como imitação da realidade ou imitação da aparência, presente nas três camas de Platão (1966). Ingold (2013) argumenta que a ciência de hoje continua a fundar sua legitimidade recorrendo a dados que são repetidamente verificados e revistos em uma busca infinita da verdade pela eliminação do erro. A maior parte das ciências - e o autor inclui as ciências da mente e da cultura em sua crítica - conspiraram para a divisão entre o “mundo em si” – a realidade da natureza que deve ser descoberta somente por meio de investigação científica sistemática – e os vários mundos imaginativos que as pessoas em diferentes tempos e lugares evocaram e tomaram por realidade. Todos concordam que os reinos da realidade e da imaginação não devem de maneira nenhuma ser confundidos. Uma das consequências da divisão é que as amarras da imaginação foram cortadas do terreno em que vivemos e ela flutua como uma miragem por cima da estrada em que traçamos nossa vida material. Quase que por definição, o imaginário é entendido pelo conhecimento científico como irreal, a palavra para o que não existe.

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Dragões não podem existir nesse mundo porque, como aponta Ingold, as histórias que delimitam a sua constituição estão em disparidade com o projeto de classificação científico. Histórias de dragões podem ser contadas, mas os próprios dragões não podem ser categorizados e nem precisamente localizados, como em um mapa cartográfico. São, portanto, ilusões imaginárias, embora muitas vezes possam ter influência decisiva na realidade, como no caso do químico Firedrich August Kekulé, contado por Ingold (2013). Sua hipótese posteriormente comprovada para o formato da estrutura da molécula de benzeno, composta de um anel de seis átomos de carbono, lhe é revelada em sonho, na forma de uma serpente que se contorcia e girava em frente aos seus olhos e subitamente, ao capturar seu próprio rabo, revela ao químico a informação que este, quando acordado, tão insistentemente buscava. Porém, a serpente e o anel de benzeno caem, inequivocamente, um de cada lado de uma divisão ontologicamente impermeável entre imaginação e realidade. A ciência concede à imaginação o poder da conjetura – pensar fora da caixa – mas apenas banindo-a da realidade mesma a qual ela concede insights. Em uma cartografia científica que não tem espaço para o movimento e para os itinerários da vida, vivências como as imagens descritas pelos pesquisados não podem ser nem classificadas nem mapeadas. O que não as torna menos reais para as pessoas que as experimentam. Uma leitura das imagens produzidas por pessoas cegas nos leva a concordar com Ingold (2013), quando afirma que nossas formas de conhecer e de imaginar são consagradas dentro de um comprometimento existencial no mundo em que nos encontramos. Uma gramática da representação nega esse comprometimento, uma gramática da participação depende dele. Hughes de Montalembert, artista plástico francês que perdeu a visão, fala sobre sua experiência de cegueira no documentário Black Sun 123. Em seu depoimento, descreve a imagem que forma do rosto de um amigo que nunca viu: One day a friend of mine said „how do you imagine my face?‟, I said „what do you mean? I knew you before I lost my sight‟ and he said „no‟, I said „but... check, I swear I saw you‟. He said „no, you never saw me‟, and then I think „is he right?‟, and so we calculate and yes, he was right. But I know exactly how he looks. Yet, I don´t know if he looks like that124.

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O documentário é de 2005 e foi dirigido por Gary Tarn. Tradução livre: “Um dia um amigo meu me perguntou “como você imagina o meu rosto?” e eu respondi “como assim? Eu te conheci antes de perder a visão” e ele me disse “não”. Eu falei “mas... verifica, eu juro, eu já te vi”. E ele disse “não, você nunca me viu”. Então eu pensei “será que ele está 124

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A aparência de algumas pessoas que conheceu depois de cega às vezes surge para Angela em sonho e quando descreve para as pessoas com quem sonhou como era sua fisionomia elas conseguem identificar uma correspondência. Em termos de fisionomia, algumas pessoas eu sonho com elas. Eu achava que era coisa de sonho, que não era verdade, mas para algumas pessoas que eu passava, descrevia para elas o sonho, como eu as vi no sonho, aì elas dizem „nossa Angela você sonhou comigo mesmo, eu sou exatamente do jeito que você fala‟, e outras pessoas confirmam. O: e isso na questão física mesmo? Física mesmo. Cabelo, cor, fisionomia mesmo, os traços. A última que me aconteceu foi a minha futura nora, a namorada do meu filho. Ela apareceu para mim no sonho exatamente do jeito que ela é. Apenas o que estava diferente era o cabelo, mas ela disse „o meu cabelo era exatamente do jeito que a senhora falou‟, aquele cabelão comprido, agora está mais curto, porque ela cortou. Mas ela disse, „o meu cabelo era assim‟, eu digo „então eu vi você no seu passado, no sonho você apareceu para mim no passado‟. E um amigo também, eu sonhei com ele, aì no dia que eu falei para ele, ele disse „como é que você me viu no sonho?‟, aì eu falei „ah, você é baixinho, careca, barrigudo‟, „puxa, até a minha careca você viu?‟. E realmente ele era careca.

Quando ainda enxergava o menos de 0,1% de visão periférica que um dia teve Dora diz que era algo que não dava nem para os oftalmologistas medirem -, ela fazia um exercício de montagem para criar em sonhos suas imagens visuais para o mundo. Na realidade do sonho ela via mais do que na realidade acordada. Eu chegava perto de uma coisa e via aquela coisa, bem de pertinho eu via alguns detalhes. Então depois quando eu estava longe eu imaginava aqueles detalhes, entendeu? Eu de longe só via aquelas coisas mais grosseiras, por exemplo, uma árvore. De longe eu não via os galhos, a não ser que eu tivesse muito perto. Então, de longe, eu só via aquele vulto, mas eu imaginava aquilo ali. Então muitas vezes eu sonhava que eu via mais do que eu via, mas era porque eu compunha aquilo que eu sabia como era, que eu tinha visto de perto. (...) Quando tem imagens no meu sonho eu vejo mais no sonho do que eu já vi na realidade. Porque? De onde que meu cérebro arruma? Ele pega aquele detalhe que eu enxerguei e bota numa imagem que está ali, porque é sonho, ele faz o que ele quiser, entendeu? É livre.

Crapanzano (2005) entende a noção de montagem como uma justaposição, às vezes arbitrária ou inusual, de dois ou mais itens, elementos, imagens ou representações que chamam atenção para aspectos escondidos ou ignorados desses itens. Para o autor, as possibilidades imaginativas, por mais numerosas que aparentam ser, não são infinitas. Não podemos submeter os objetos ou eventos imaginados ao mesmo exame

certo?”, aí nós calculamos e sim, ele estava certo. Mas eu sei exatamente a aparência dele. No entanto, eu não sei se ele se parece desse jeito”.

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minucioso que pode ser administrado ao que percebemos e é a ausência do determinante acessível que, para Crapanzano, nos amedronta perante as possibilidades imaginativas. O autor considera a imaginação uma importante dimensão da experiência humana que, por resistir à enunciação, tem sido muitas vezes ignorada. A penumbra, o halo ou a aura que rodeia toda experiência, percepção e compreensão, e é o componente necessário e impreciso das mesmas, pode apenas ser evocado. É nesse sentido que podemos pensar na árvore vista por Dora em sonho, nas pessoas que Angela vislumbra, na aparência do amigo que o artista plástico cego contempla, na paisagem vista por Jair, na ruazinha da Cinelândia de Beatriz montagens inusuais ou arbitrárias que podem produzir surpresa ou choque, iluminação repentina,

epifanias,

insights. Representações

imaginárias

de

uma

realidade

intermediária, ambígua por natureza que, retomando Crapanzano (2005), possivelmente poderiam ser melhor descritas como nem isso nem aquilo ou tanto isso quanto aquilo.

6.4.2 Os olhos de quem vê

Porque nunca teve nada de visão central, Dora diz que a acuidade visual é um mistério. Acha que a visão é um sentido muito especializado, muito acurado, 10% de visão é visão à beça. Quem tem 10% de visão no meio de cego sabe tudo, é considerado o maior herói. Dora pega um livro nas mãos e não acredita no tamanho de uma letra. Fica se perguntando como é que as pessoas podem enxergar uma coisa diminuta daquela. As letras do Braille são imensas se comparadas com as letras de tinta, é pegar o tamanho de um livro em tinta e o tamanho de um livro em Braille para perceber a diferença. Dora se impressiona pela pequeneza, pelo detalhe, porque acredita que para ver algo tão pequeno tem que ter uma visão, uma acuidade, uma clareza. Consegue imaginar como é, mas para ela é algo fantástico, conseguir ler aquele negócio, aquelas formiguinhas... É também o detalhe que impressiona Ana no sentido visual. Pelo tato consegue imaginar um rosto – o nariz, os olhos, a boca. Mas imagina o todo, não imagina com os detalhes, como as marquinhas, os traços, as rugas, as pequenas reentrâncias da pele. Já Renata fala que não consegue imaginar como seria enxergar. Ela racionalmente sabe que as coisas têm cores diferentes, tonalidades diferentes, que existem contornos e dimensões numa imagem e que em uma foto se vê a imagem das coisas que estão lá.

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Mas como nunca viu, não tem memória visual nenhuma, acha difícil dizer o que vem na sua mente, porque não vem nada. Camila nunca enxergou nitidamente, então acha que deve ser legal alguém que consegue olhar o mar, ver lá no horizonte. Ela nunca viu isso. Mas não sofre de não ter visto. As pessoas às vezes descrevem e ela forma uma imagem na sua cabeça. Vai fantasiando e diz que a fantasia é só dela, isso ninguém lhe tira. Mas não são todas as pessoas que conseguem passar as coisas, tem que ter um dom. A sua irmã é uma dessas pessoas que consegue ver e consegue descrever o que vê. Dom no olhar e dom de passar. Algumas têm, outras não. Um dia, descendo com Dora a escada rolante do metrô, sinto uma vontade súbita de dizer o mundo para ela. Descrever os aspectos visuais do mundo, mas incorporando sensações de uma forma mais poética, não só a técnica direta e objetiva que se busca na audiodescrição. Lembro de uma cena do filme “O fabuloso destino de Amelie Poulain”, em que a personagem principal acompanha um cego por um pequeno trecho de caminho e durante o curto trajeto, enquanto andam “acoplados”, ela narra o entorno para ele, as roupas e o humor das pessoas que cruzam, cenas as mais cotidianas, faz breves comentários sobre as cores, associa os cheiros aos lugares, com pequenos detalhes e sutilezas, num ritmo crescente, até finalmente desligar-se dele ao deixa-lo na entrada do metrô. Divido com ela esse desejo e a memória, descrevendo a cena do filme e ela me conta da sua relação com uma prima que, quando crianças, tentava se colocar em seu lugar, apertando os olhos ou fechando-os quase inteiramente para ver o mundo como ela via, sentir as coisas – os sons, os cheiros – como ela sentia, captar e traduzir referências da sua percepção do mundo. Eu me lembro que ela era a única pessoa que tinha uma noção bem próxima de como é que eu enxergava, quando eu tinha aquele pouquinho de visão. Ela exprimia o olho, quase fechava o olho, deixava meio aberto, mas apertado, para não ver direito e virava para ver com o canto do olho apertado não sei como, e aì ela dizia „ah, está vendo aquela sombra assim assado? Então, aquela sombra é tal coisa e mais pra cima daquilo, você está vendo um clarão? Aquele clarão é que é a luz do não sei o quê‟, ela conseguia me dar o quê que eu estava vendo e me dizer daquilo que eu estava vendo, daqueles borrões lá que eu estava vendo, o quê que era. Era fantástico.

Dora comenta que a mesma prima sempre descreveu, com encanto e prazer, os lugares por onde passavam, os ambientes que visitavam, as paisagens que via, mesmo quando estavam de carro e ela dirigia. Para Dora as pessoas não veem as mesmas coisas e quem é cego sabe muito bem disso. Você pega duas pessoas de visão dita normal,

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coloca o mesmo quadro na frente delas e pede para elas te descreverem o quadro. Cada uma vai descrever uma coisa diferente da outra porque cada uma está se relacionando com aquilo que está criando e Dora acredita que tudo é uma criação. Cada um cria a sua realidade e é responsável pela realidade que cria. Beatriz conta uma história que exemplifica a ideia da visão como uma criação de quem vê e os efeitos disso na descrição que as pessoas fazem do mundo visual para quem não enxerga. Ela estava em São Paulo a trabalho e pediu para uma colega descrever o Bruno, um cara que estava fazendo o mesmo trabalho com elas. Não sei o quê que a gente estava falando do Bruno que eu falei para ela „como é o Bruno, hein?‟, aì ela „lembra do Falcon?‟, um boneco que tinha, „lembra dele?‟, aì eu falei assim „lembro‟, mas eu falei „ué, o Bruno tem barba?‟, aì ela falou assim „não, sem a barba‟, „ah tá‟, mas aì eu falei „ué, gente, mas o Bruno é forte?‟, „não, sem os músculos‟, ai caramba, então não é o Falcon, porra. Essas descrições malucas... (risos). Então assim, me fez lembrar porque realmente a gente que precisa da descrição das pessoas, a gente fica enlouquecida porque cada um fala uma coisa, menina? Porque cada um de fato vê uma coisa.

Hughes de Montalembert, no documentário Black Sun, resume a ideia da visão como uma criação descrevendo as distintas visões que recebe a partir do olhar de diferentes pessoas em uma caminhada. Há aquele que olha e vê pouco, aquele que olha e vê além, aquele que olha e não vê. Quem não enxerga lida cotidianamente com essa criatividade do olhar pelas descrições de mundo que recebe de quem vê.

Vision is a creation, it´s not a perception. And I experiment it all the time, because when I walk in the streets with somebody and I ask the person "what is there?", many many people say „a wall‟, others say „a tree‟, but they don´t see anything. If I walk with a friend of mine who is a painter, who has a most acute eye, to walk with him in the street is a trip, is an adventure, because he sees everything, he creates vision and he gives it to me. I think that there is no reality in fact. There is no reality. What you see will be different from your neighbor, so, who has the reality? There is no reality absolutely. In vision, there is no reality, I think it´s a creation. That´s why some people see and some people don´t see125.

125

Tradução livre: “a visão é uma criação, não é uma percepção. E eu experimento isso o tempo todo, porque quando eu ando nas ruas com alguém e pergunto a essa pessoa “o quê que tem ali?”, muitas e muitas pessoas vão me responder “um muro” ou “uma árvore”, mas elas não veem nada. Se eu ando com um amigo meu que é pintor, que tem um olho mais acurado, andar com ele na rua é uma viagem, uma aventura, porque ele vê tudo, ele cria visão e me dá de presente. Eu penso que de fato não há realidade. Não existe realidade. O que você vê vai ser diferente do que seu vizinho vê, então, quem tem a realidade? Absolutamente, não existe realidade. Na visão não existe realidade, eu acho que é uma criação. É por isso que algumas pessoas veem e algumas pessoas não veem.

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MacDougall (2006) sugere que o significado é produzido por nossos corpos inteiros, não só pelo pensamento consciente. Vemos com o nosso corpo e qualquer imagem que façamos carrega a marca de nosso ser. O autor defende a produção de filmes como um processo de olhar com certo interesse, com certa vontade. Simplesmente olhar, olhar cuidadosamente, com atenção e livre de distrações, seria uma forma de conhecer diferente de pensar. Partindo de exemplos de câmeras que veem, mas podem ser cegas - câmeras de vigilância, filmagens panorâmicas de paisagens, jovens cineastas em fase inicial de aprendizado -, o autor distingue ver e olhar a partir do grau de atenção que se dedica a uma imagem, admitindo ser possível ver sem olhar. É justamente a importância da atenção para a visão que vai explicar dois fenômenos descobertos por uma série de experimentos desenvolvidos por pesquisadores na área das ciências cognitivas conhecidos como “cegueira inatencional” (innatencional blindness) e “cegueira por mudança” (change blindness). A cegueira inatencional se refere ao fenômeno de anulação temporária da percepção de certos objetos por falta de atenção, ainda que pudessem ser claramente observados ou mesmo estivessem no foco da visão central ocular. A cegueira por mudança foi percebida através de uma série de experimentos em que displays de cenas corriqueiras eram mostrados aos observadores e pedia-se que eles detectassem mudanças cíclicas, tais como a troca de um grande objeto por outro, mudança de cor, ou aparecimento ou desaparecimento de algo na cena. Os resultados dos experimentos mostram que em muitos casos os observadores apresentam dificuldade de notar as mudanças, ainda que fossem grandes e ocorressem a plena vista. Em alguns casos os sujeitos estavam olhando diretamente para a mudança no momento em que ocorria e mesmo assim não eram capazes de vê-la (Noë e O‟Regan, 2002). Clark (2002) descreve um experimento típico de cegueira inatencional desenvolvido por Simons (2000), que demonstra a importância da atenção e da expectativa para a visão. Os sujeitos do experimento assistem a um vídeo em que dois times, um de uniforme preto e outro de uniforme branco, trocam passes de bola de basquete (uma bola em cada time). O observador deve contar o número de passes bem sucedidos feitos pelo time de branco. Ao final do experimento pergunta-se aos participantes se eles viram alguma coisa a mais na cena, alguma coisa não usual. 45 segundos depois que o filme começa um intruso passa no meio dos jogadores. Em um dos casos o intruso é a imagem de um gorila. 73% dos sujeitos que participaram da pesquisa não viram o gorila.

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As reflexões geradas a partir desses experimentos provocam uma nova concepção nas ciências cognitivas do que significa ver o mundo e do papel do cérebro na visão. Para tal concepção, a visão não é algo que acontece dentro do cérebro. Ainda que o cérebro seja necessário para o processo de ver, ele não é, em si mesmo, suficiente para produzir visão. Noë e O‟Regan (2002) defendem que ver é uma atividade exploratória mediada pelo domínio de contingências sensório-motoras pelo animal. É uma atividade que se baseia na habilidade de explorar o ambiente. A experiência visual, então, não é algo que acontece nos indivíduos, mas sim algo que eles fazem. Assim como a dança significa uma delicada interação entre dois parceiros, a visão, Noë e O‟Regan argumentam, depende dos padrões de interação entre aquele que percebe e o ambiente. Clark (2002), por sua vez, sublinha a profunda conexão entre a experiência da consciência visual e a ação intencional. A experiência visual reflete nossos engajamentos bem sucedidos com a riqueza de uma cena. Diante dos resultados, alguns pesquisadores começam a investigar a influência da cultura para a percepção e a cognição visual. Nisbett e Masuda (2003, 2006) realizaram experimentos de cegueira por mudança que sugerem que pessoas do leste asiático (participantes japoneses da pesquisa) veriam o mundo de forma holística, prestando atenção ao campo visual como um todo e às relações entre os objetos, enquanto ocidentais (participantes americanos da pesquisa) veriam o mundo de forma analítica, mais sensíveis as mudanças nos atributos de objetos salientes e focais do que as mudanças de periferia ou de contexto. Os resultados do estudo sugerem que deve existir variações culturais nos processos perceptivos básicos e ressaltam a importância dos fatores sociais para o direcionamento da atenção. O movimento dos olhos e do corpo, as mudanças na direção da atenção, a compreensão aplicada à situação e mesmo “a cultura”. Para tais autores, tudo isso constitui a visão. Se ver é um modo de atividade, não existe uma única característica intrínseca ou propriedades que sejam definidoras da experiência. Essa forma de compreender a visão, não como algo que acontece dentro do cérebro e nem como uma representação interna detalhada de um ambiente externo, mas sim como uma atividade que depende do engajamento, da atenção e dos padrões de movimento de um sujeito, além do próprio contexto cultural, nos ajuda a entender as experiências de pessoas cegas em relação a diversidade da visão de quem enxerga. Se o olhar depende do movimento e da atenção que se dá ao que se vê, a visão é diversa e nem todos os olhares são interessantes. Não é com qualquer pessoa que Dora 418

gosta de viajar. Com algumas não tem graça nenhuma porque por mais que tenham a maior boa vontade do mundo e sejam pessoas maravilhosas, o que elas olham não é o que Dora gostaria de ver. Não tem nada contra elas, mas não quer aquela visão, quer outra. Por isso, se vai fazer uma viagem de lazer, Dora escolhe muito bem a visão que gostaria de levar com ela. Pergunto um pouco mais sobre como é a sua visão, o que ela gosta de ver pelos olhos de outros e o que não lhe interessa. Eu acho que a minha visão ela é mais psicológica e antropológica. Eu acho que eu tendo mais a achar interessante esse tipo de coisa. Eu quero ver as coisas, mas por exemplo, se eu vou numa feira de artesanato eu gosto de conversar com o cara que fez o negócio, sabe? Aí começa a fazer sentido aquilo, aquele artesanato, quando eu converso, quando eu compro na mão de quem fez. Aí faz sentido para mim. Eu vou viajar para conhecer como é que as pessoas vivem, como é que é a realidade de outro lugar, a realidade em todos os sentidos que eu conseguir abarcar. Como é que é a realidade do clima, como é a realidade da geografia, como é a realidade social, econômica, cultural, para isso que eu fui lá. Senão não preciso, ficava aqui. Então para mim não vou viajar para ir para shopping, não vou viajar para tirar foto. Foto na frente da estátua da liberdade, foto na torre Eiffel, caraca, o que eu vou fazer com isso, ainda mais que eu não vou ver mesmo a foto, mas é para os outros verem que eu fui lá? Não preciso mostrar que eu fui, não vou perder tempo com essas porcarias. Isso aí para mim não... quero sair, quero andar, quero conhecer as coisas, mas a vida. O cartão postal a gente compra, uma foto muito mais bacana do que aquela que a gente vai tirar, pô. Não é? Hoje não precisa nem comprar, baixa na internet umas coisas fantásticas. Eu não tenho que aparecer naquele lugar, não precisa, é uma bobagem isso. Para mim é muito mais interessante eu tirar uma foto de uma coisa inusitada, uma coisa peculiar que você não vai encontrar.

Uma das suas viajantes preferidas é aquela prima que desde criança se colocava o mais próximo possível do seu lugar, da sua condição corporal, para entender sua percepção de mundo. Uma vez fizeram juntas uma viagem para a Ásia, um lugar que mesmo para quem vê pode ser tão diferente a ponto de ser possível comprar um biscoito doce achando que é salgado, porque a aparência não diz o que pode ser aquilo. Estavam em um ambiente em que tudo era novo, não tinham domínio do que acontecia. Dora, curiosa para conhecer o lugar, cutucava a prima e perguntava “o quê é isso?”. Como a prima não tinha a menor ideia do “isso” que Dora estava perguntando (poderia ser uma infinidade de eventos), a primeira coisa que fazia era fechar os olhos e prestar atenção com a audição. Ela sabia que o quê Dora estava perguntando não tinha a ver com o referencial visual, então, para a visão não atrapalhar, ela fechava os olhos para suprimir o visual e perguntava “o que você quer saber é esse barulho assim assado?”. Aì sim abria os olhos de novo e, já sabendo o que procurar, respondia a pergunta. Dora acha que é uma boa técnica que a prima descobriu na prática, pela convivência - fechar os olhos e procurar no auditivo. Gosta de viajar com essa prima porque as observações que

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ela faz, aquilo que ela vê, não é qualquer pessoa que enxerga que vê. Dá um exemplo de outra viagem, quando foram para a Holanda. A gente estava na Holanda, no inverno, aquele tempo horroroso, a gente pegou inverno com chuva, naquele lugar úmido, cheio de canal, era o fim do mundo. E aí o quê que ela viu? Uma moça passeando com um bebê num carrinho de bebê no meio da chuva, o carrinho de bebê todo coberto com aquela coisa de plástico transparente, então o bebê estava no carrinho todo quentinho vendo as coisas na rua. Porque também você vai deixar o bebê o inverno inteiro dentro de casa? Impossível, ninguém aguenta, né? O bebê tem uma hora que quer ir para rua, que ele fica enfastiado de ficar em casa, quer rua de qualquer jeito. E ele todo feliz no meio daquela chuva, daquele tempo horrível e a mulher passeando com ele, porque se fosse esperar fazer o sol para passear, ela não ia passear nunca. Isso só a minha prima mesmo para me descrever, entendeu? Porque ninguém ia prestar atenção nisso. Isso é a coisa que me interessa, quando eu viajo. Mais do que a foto no canal. O quê que acrescenta aquilo? Você ir lá naquele lugar que todo mundo já sabe como é, já está careca de ver em todas as fotos, todos os filmes, tirar mais uma que todo mundo já sabe o quê que vai ver lá. É mais do mesmo. Não me atrai. Não dá o barato. Eu quero ver o diferente. Para mim o que me encanta é o diferente. Porque eu acho que o diferente abre a minha cabeça. Abre o meu horizonte, o diferente me faz ver mais longe do que o mundinho. Aí sim eu viajei.

Para Noë e O‟Reagan (2002) a visão é uma atividade que depende de uma série mais ampla de outras capacidades como o movimento corporal e a direção da atenção, por um lado, mas também capacidade de fala e pensamento racional, por outro. As pessoas se tornam conscientes daquilo que veem na medida em que controlam aquela informação com o propósito de guiar a ação e o pensamento. Consciência, para os autores, é sempre uma questão de grau. Essa aproximação do que consiste a visão tem servido de suporte para pesquisas nas áreas da plasticidade cerebral, substituição sensorial, atenção e ação, entre outras. Se aquilo que se vê depende do engajamento e do movimento de um corpo em um ambiente, assim como da capacidade de atenção, algumas pessoas veem certas coisas que outras não veem. As coisas que a prima de Dora vê não são as mesmas coisas que chamariam a atenção de outras pessoas, talvez passassem até despercebidas (cegueira inatencional). Algumas visões são mais atraentes que outras e pessoas cegas como Dora, Beatriz ou Hughes de Montalembert têm total clareza disso a ponto de, dependendo da ocasião ou da atividade, escolherem algumas visões e não outras como companhias. Não é apenas uma questão de maior ou menor capacidade de ver, mas é também a habilidade de dizer aquilo que se vê, ou, para usarmos um conceito de Noë e O‟Reagan (2002), do grau de consciência visual. Podemos pensar a fotografia a partir dessa concepção de visão. As convenções de avaliação e ensino da fotografia costumam fixar o olhar. O lugar de onde se vê é 420

padronizado por regras de ordenamento que abrangem alguns movimentos e não outros: composição da imagem, enquadramento, momento decisivo da cena fotografada, manter pessoas e objetos não desejados - o mundo real - fora da foto. O próprio uso convencional do equipamento fotográfico, que deve ser segurado em frente ao rosto, na altura dos olhos, já estimula a fixidez do olhar e não o movimento. A maior parte das fotografias são iguais porque as pessoas estão atadas a regras e convenções que geram sempre “mais do mesmo”. Se é a atividade, o movimento e a atenção que constitui a visão do fotógrafo (e de qualquer pessoa), é também a criatividade no movimento e na direção de sua atenção que guiará o resultado do que congelará em uma fotografia. Ultrapassar o universo das regras e das convenções e gerar uma fotografia, ou uma visão, inusitada - “o diferente” depende justamente do movimento, da posição, do engajamento, da postura, das oscilações corporais feitas pelo fotógrafo no ato de fotografar, do que ele efetivamente consegue ver na cena, que provoca variações - diferenças - na imagem captada.

6.4.3 Imagem elocutória

Quero abrir o segundo momento da discussão, em que me proponho a abordar os processos de produção de imagens por pessoas cegas para além da visualidade, com um relato de uma situação de campo. Numa das primeiras vezes que estive sozinha com Dora, depois de um dia de oficina inclusiva e da conversa que tivemos na casa dela, estou perto de ir embora e ela me pergunta minha idade. Respondo que tinha 28 anos e ela diz “nossa...”, e se demonstra bastante surpresa. Pela nossa conversa me achou muito madura para minha idade, me imaginava mais velha. O episódio ficou na minha cabeça e em outra ocasião retorno ao ponto, perguntando o que a tinha levado a me considerar uma pessoa “madura para minha idade”, o que exatamente tinha contribuìdo para que formasse essa imagem de mim. Ela responde: Não pelo doutorado, porque hoje em dia as pessoas já emendam a faculdade direto no mestrado, direto no doutorado. Então não é por isso. É pelo seu comportamento mesmo. De ser mais sossegada. Sossegada assim, sem ser tímida, entendeu? Porque às vezes as pessoas estão quietinhas em um lugar, mas não é que elas são quietas, estão quietas porque são tímidas. Isso acontece muito com as pessoas muito jovens, né? E não é isso. Eu acho que o que me admirou foi essa sua capacidade de ter, de se dar esse tempo. De ouvir, de pensar, de não reagir imediatamente, sabe? Se dar o tempo. Repara se você não é um pouco fora do padrão nesses aspectos que eu estou apontando, em relação ao pessoal da sua idade?

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Depois disso, ao longo dos muitos encontros que tivemos, Dora passou a eventualmente brincar comigo dizendo que eu vinha “de outro tempo” ou ainda que estava “entre gerações”, por saber lidar com tecnologia, mas ter comportamento e interesses de alguém de uma geração anterior. Um dia, em uma conversa no telefone, Dora finalmente conclui que sou “anacrônica”. E esse é um dos atributos que compõem a minha imagem para ela, ser alguém que “não condiz com a cronologia” ou que “destoa dos usos da época a que se atribui” 126. A história tem um caráter ilustrativo para falar de algo que permeia a vida cotidiana - o que contribui para uma pessoa cega formar uma imagem, uma representação, das pessoas que conhece? Como essa imagem se modifica a medida que a relação se desenvolve? Quais seriam os referentes no processo de classificação e reconhecimento das pessoas? A intenção é refletir sobre as formas de objetificação de outras pessoas por pessoas cegas no fluxo e na indeterminação do curso da vida. Sob quais condições uma outra pessoa sai da simples característica de fenômeno no campo perceptual e passa a ser percebida como um outro “eu mesmo”, conferindo-lhes a dimensão de ser intersubjetivo (Csordas, 2008)? Ainda que não tenha a pretensão de esgotá-la, a reflexão a partir desse momento pretende dar continuidade e, em alguma medida, um contorno, para as questões levantadas especialmente ao final dos capítulos 3 e 4 a respeito de formas heterodoxas de significação na cegueira. Como abordado no capítulo 3 ao falar sobre a expressão corporal e a cegueira, existe um impedimento social de toque entre as pessoas que não permite que uma imagem que uma pessoa cega inicialmente cria de alguém com quem interage se baseie na sua aparência física ou na sua forma tátil. Os conceitos de interação, fachada e definição de situação, desenvolvidos por Goffman (1996) quando fala sobre a representação do eu na vida cotidiana, ajudam a introduzir a problemática. O indivíduo em uma situação de interação agirá de tal modo que, consciente ou inconscientemente, expresse a si mesmo; e os outros indivíduos em interação serão impressionados por ele. O autor separa a expressividade do indivíduo em duas espécies de atividades significativas, a expressão que ele transmite – símbolos verbais – e a expressão que ele emite – de natureza não verbal. Goffman utiliza o termo

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Definições do dicionário Priberan da língua portuguesa para a palavra “anacrônica”.

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fachada para se referir ao equipamento expressivo, intencional ou não, que o indivíduo utiliza para definir a situação em sua representação, incluindo, como mencionado antes, atributos como vestuário, sexo, idade, altura, aparência, atitude, padrões de linguagem, expressões faciais ou gestos corporais. A maior parte destas características que compõe a fachada se situa numa perspectiva visual. Em um primeiro momento, os veículos de transmissões de sinais que uma pessoa cega recebe de outra pessoa estão mais explicitamente centrados na fala e no que podemos chamar de atitude ou comportamento, perceptíveis na elocução da fala. Quando Jair conhece uma pessoa é a sua voz que fica registrada e que contribui para que ele a distinga das outras: “pelo menos a voz fica gravada na nossa mente. (...) É a voz. Toda vez que ela chegar... „oi Jair‟, falo „oi fulana‟. Fala o meu nome e eu também falo o nome da pessoa, é isso, pela voz”. Assim como o canto manifesta a presença de um pássaro e o estrondo a presença de um trovão, a fala pode ser entendida como um gesto vocal e a voz aquilo que manifesta a presença humana (Ingold, 2013). O reconhecimento de que nos fala Jair é da voz enquanto som produzido por uma pessoa específica e como fator de diferenciação entre os indivíduos. Apesar de Jair mencionar apenas “a voz”, outros entrevistados elaboram um pouco mais e ajudam a entender o que estou chamando de “imagem elocutória”. A primeira coisa que chama a atenção de Renata em uma pessoa é a voz. Peço para ela explicar melhor e ela diz que é o tom da voz e o jeito ou a forma da pessoa falar. As duas coisas servirão de pista para ela reconhecer a pessoa das próximas vezes. Uma terceira caracterìstica aparece em torno daquilo que a pessoa fala, do “assunto da pessoa” ou o conteúdo da conversa. Para Camila é também o tom da voz o que primeiro lhe chama atenção e é também pela voz que Caetano começa a analisar a pessoa, a “traçar um perfil para ela”. O perfil traçado por ele é imaginário, não precisa ser real. Pela voz começa a visualizar a pessoa como um todo, o jeito de ser e até mesmo a aparência. Ainda que o perfil não seja fiel a como a pessoa efetivamente se parece, é a partir dele que Caetano começa a estabelecer uma relação de reconhecimento. A representação pela fala pode ser pensada, imageticamente, como um tríptico. Abarca tanto a materialidade do som – o tom e o tipo de voz – quanto o sentido - o conteúdo formal do que se fala; mas engloba uma terceira dimensão mais além da linguagem (Lévi-Strauss, 1976), que ainda assim se realiza por meio dela, que é o jeito ou a forma da pessoa dizer o que diz - a intenção que emprega nas palavras que fala.

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A forma de falar está bastante relacionada, apesar de não ser idêntica, a esta terceira dimensão que contribui para a criação de uma imagem de alguém e que posteriormente ajudará no seu reconhecimento, a forma de tratar: a atitude, o temperamento, a personalidade, o comportamento da pessoa. No capítulo 3 levantei esse ponto a respeito da sexualidade e dos relacionamentos afetivos, quando descrevi o que atrai nos jogos de aproximação e sedução entre parceiros - a maneira de falar, o jeito de tratar, a postura. O aspecto performativo da fala como medida de atratividade. Amplio esse ponto para compreender os processos de formação de imagens elocutórias de qualquer pessoa. Desde o primeiro momento que conhece alguém, Camila já nota o seu temperamento. O jeito da pessoa trata-la ou de tratar outras pessoas que também estejam presentes. Angela fala da formação de uma imagem do “interior” da pessoa, que seria composta por traços de seu comportamento ou seu modo de conduta na interação. “Primeiro, no momento quando eu sou apresentada, eu sempre fui assim, a primeira coisa que me chama a atenção na pessoa é o interior da pessoa. É aquela coisa assim de simpatia. Tem algo que me chama a atenção sim que é a maneira como a pessoa trata”. Csordas (2008) resgata Merleau-Ponty para entender a expressividade da glossolalia127 enquanto linguagem. Merleau-Ponty encontra na raiz da fala um gesto verbal que possui um significado imanente, ao contrário de uma noção mais comum de fala como representação de pensamento. Na noção trazida de Merleau-Ponty por Csordas, a fala e o pensamento são coextensivos, um dos possíveis usos do nosso corpo são as palavras que possuímos em termos de seu estilo articulatório e acústico. A fala não expressa e nem representa pensamento, ao invés disso, é um ato ou gesto fonético no qual se adota uma posição existencial no mundo. O pensamento não é independente da elocução e o mundo humano é constituído de um amálgama de vozes corporificadas. É a noção da fala como ato ou como gesto corporificado que quero ressaltar para evocar a ideia de reconhecimento de outras pessoas a partir da constituição de uma imagem elocutória corporificada. Linguagem, expressão emocional e gestual fazem parte de um mesmo conjunto, como superposições de um mundo humano num mundo

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Segundo o autor, a glossolalia pentecostal (ou falar em línguas) é uma forma de elocução ritual caracterizada pela falta de um componente semântico. Embora todas as sílabas sejam “sílabas sem sentido”, desenvolve-se distintos padrões sintáticos-fonológicos. A despeito de sua indeterminação semântica, a glossolalia carrega um significado global como uma forma inspirada de louvor a Deus e também pode ser utilizada como uma prece profundamente vivenciada.

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natural ou biológico. “O comportamento cria significados que são transcendentes em relação ao aparato anatômico, e ainda assim imanentes à conduta como tal, já que se comunica e é compreendido” (Merleau-Ponty apud Csordas, 2008: 130). Csordas argumenta que toda a linguagem possui esse significado existencial ou gestual, e que a glossolalia, por sua característica formal de eliminar o nível semântico da estrutura linguística, realça precisamente a realidade existencial de corpos inteligentes habitando um mundo repleto de significação. A glossolalia provoca o arredamento de uma cortina discursiva para revelar os fundamentos da linguagem enquanto ato corporal. Revela a linguagem como encarnada. No sentido delineado por Csordas, a linguagem não é apenas meio ou instrumento, mas uma manifestação, uma revelação. A glossolalia que o autor analisa é uma linguagem que oferece uma asserção positiva sobre a expressividade, pois seu significado é puro ato de expressão. No processo de reconhecimento de outras pessoas por pessoas cegas, os dois atributos da linguagem são igualmente importantes - tanto o que se diz, o significado formal, quanto a maneira como se diz, a encarnação do que é dito. Tanto a experiência física da fala quanto a experiência intelectual da linguagem. A junção desses dois atributos contribuem para a formação do aspecto mais comportamental da imagem de alguém – personalidade, jeito, temperamento. O comportamento é o que primeiro chama a atenção de Dora quando conhece pessoalmente alguém ou quando lhe contam sobre uma pessoa que ainda não conhece. Está menos interessada em como ela se parece fisicamente do que com aquilo que faz ou diz, e como diz. Então às vezes acontece da pessoa dizer assim, vamos supor, „ah, conheci um cara, estou namorando‟, „ah, que legal, como é que ele é?‟, aì a pessoa começa a contar a aparência física dele, e não é isso que eu perguntei, entendeu? Porque essa ideia física não vai me dizer se esse cara vai ser um bom cara para essa minha amiga ou não. Não vai fazer eu fazer uma imagem da pessoa do cara dentro de mim. Para mim é muito mais a coisa do comportamento, sabe, de pegar o jeito. Quando eu pergunto como essa pessoa é eu pergunto o comportamento da pessoa, pra saber se ela é introvertida, se ela é extrovertida, se ela é bem humorada, eu quero saber, sei lá, quero saber „e aì, como vocês se conheceram?‟, „e aì o que ele falou para você?‟. Eu quero saber o comportamento.

Comportamento, postura e atitude são características que, de outra maneira, também podem ser observadas visualmente, mas pessoas cegas as absorvem pelos gestos de fala. Beatriz descreve a sua maneira de “marcar” as pessoas.

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A postura da pessoa, a forma como ela se coloca diante das coisas, atitudes. A maneira de reagir, o sorriso. O sorriso simpático, o chamado sorriso amarelo, aquele riso sem vontade né, diferente de um riso mesmo que não seja uma gargalhada, mas um sorriso espontâneo, sincero. Nossa, tudo isso é perceptível demais, marca.

Wagner (1995) diferencia dois caminhos em que os nomes, como símbolos, podem ser considerados. É possível considera-los como codificações, pontos de referência que meramente representam as coisas nomeadas, ou podem ser considerados nos termos de uma relação entre o símbolo e a coisa simbolizada. No segundo modo, nomear se torna uma questão de analogia. A relação que estabelece o nome será individual ou individualizante porque suspende a ordem da referência convencional. As reflexões levantadas por Wagner podem servir de inspiração para pensar o processo de reconhecimento de uma pessoa pela fala, pelo que se diz e como se diz. Não é tanto o seu nome ou sua aparência que servirão como pontos de referência, mas as analogias que podem ser feitas a partir do que é dito. Uma relação individualizante, que suspende ou cancela a ordem convencional das aparências. Dora explica a diferença entre uma imagem visual e uma imagem comportamental fazendo uma comparação entre forma e conteúdo.

Eu abstraio um pouco da imagem visual, a imagem para mim ela é comportamental. Porque a imagem que eu construo de uma pessoa é da personalidade dela. É em cima disso que eu vou, é isso que me interessa. É com isso que eu me relaciono. A imagem, para mim, mais uma vez, é só o continente. A imagem visual da pessoa é só o continente, entendeu? O: me explica isso... Continente no caso de ser o vaso que contenha o conteúdo. O continente que contém o conteúdo, né, só o invólucro. É isso.

A imagem elocutória que se cria de alguém é a sua própria história condensada em atos de fala, uma vocalização que individualmente a manifesta. Uma pessoa que, como numa metáfora, adquire uma forma, um significado ou uma representação por meio do conteúdo (Wagner, 1995). A pessoa adquire um “nome”, ganha caracterìsticas individuais e diferenciantes a partir da linguagem, mas não somente pelo que ela diz, mas pelo que ela faz ao dizer. Uma linguagem que toma do mundo (dos outros) as características individualizantes para se transformar em significado (nome ou reconhecimento). Pensando a partir de Wagner (2010), as diferenciações da linguagem são aplicadas, nesse caso, não apenas coletivamente, como nas comunidades de fala sociais, regionais ou ocupacionais, mas também individualmente. Um modo de falar que comunica. Pessoas cegas estão atentas aos aspectos diferenciantes da fala para gerar

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uma imagem elocutória do falante. Se lembramos de uma pessoa pelos seus traços físicos, pela sua aparência, pessoas cegas lembram de uma pessoa pelos seus traços acústicos e comunicativos presentes na sonoridade diferenciante da voz, para alguns, ou presentes na sonoridade diferenciante da elocução – o que se diz e como se diz.

6.4.4 Imagem como substância

À medida em que a interação se desdobra e quando se passa a conhecer melhor uma pessoa, a imagem inicialmente formada vai ganhando novos contornos, inclusive atributos físicos, que em um primeiro momento não puderam ser revelados. Uma proximidade corporal, um toque, algo novo que se diz, um abraço, pequenas coisas que vão contribuindo para acrescentar traçados, reforçar e algumas vezes transformar o desenho original. É um processo vivo, fluido, em um movimento constante de maturação. Caetano fala sobre isso: Na medida em que você vai conhecendo melhor, vai se tornando mais íntimo, você vai modificando. Às vezes você imagina uma pessoa de uma maneira, viu em um primeiro momento de uma maneira e depois aquilo vai se modificando, você vai se adaptando, você vai vendo de outra forma. Às vezes não muda tanto, outras vezes muda muito.

Caetano usa a metáfora visual para falar da imagem enquanto representação que se cria e se modifica. Dora também acha que a imagem que se forma de alguém, na medida em que conhece a pessoa melhor, pode ganhar contornos visuais: “é claro que, conforme a gente vai conhecendo mais, aquela imagem vai ficando, até visualmente vai ficando... vai se criando dentro da gente”. Depois da voz, determinadas partes do corpo ajudam Jair no reconhecimento de uma pessoa, a partir de contatos em que aconteçam uma aproximação corporal maior.

A Maria eu... você sabe, eu dei um abraço nela e já sei que ela é gordinha. Entende? A gente vai marcando tudo quanto é tipo de coisa. No caso, dançando eu conheço o tipo do corpo da pessoa. A feição do rosto conheço não é pelo rosto, é pelo cabelo. O: você conhece pelo cabelo? É, pelo cabelo. Porque é uma coisa que a gente marca. Se você chegar perto eu vou geralmente mexer na tua nuca... aí eu vou conhecer. O: então você acha que colocar a mão na cabeça te ajuda a identificar a pessoa? A identificar. O: tem alguma outra parte do corpo que te ajuda a identificar? No caso assim, geralmente se você está com uma marca no corpo, „poxa me machuquei aqui, essa marca nunca sai‟, aì eu passo a mão ali naquela marca e já vou

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saber. Se você não falar nada, porque se você falar alguma coisa não precisa nem da marca eu já sei quem é você.

Caetano percebe mais ou menos a altura da pessoa pela altura que a sua voz lhe chega. Se estiver em pé, pela direção da voz dá para imaginar se ela é alta, baixa ou de estatura mediana. Camila descreve maneiras de adquirir mais informações sobre uma pessoa quando passa a conhece-la melhor, que mudam a imagem que inicialmente cria. Como uma escultura que aos poucos vai sendo moldada, os novos dados deslocam, refazem, transformam e reelaboram um modelo inicial. Transforma porque, por exemplo, quando você sai com a pessoa ela te oferece o braço e você já percebe a altura da pessoa pelo braço. Porque se for uma pessoa muito alta você segura no braço, se for uma pessoa mais ou menos do seu tamanho, você geralmente põe a mão no ombro, pra facilitar para a pessoa e pra gente também. Cabelo, assim, a gente sempre toca, se abraçar a gente consegue perceber cabelo. Às vezes o brinco bate assim, „ih, está com um brinco bonito hoje hein?‟, aì bota a mão, mas tudo assim muito naturalmente, não é aquela coisa „deixa eu ver como você está‟ (faz um gesto de apalpar uma pessoa). Aì tem pessoas que falam assim „olha o que eu comprei‟, aì mostra, bota na sua mão. É uma coisa que vai acontecendo assim, se a gente for amiga, se você quiser me mostrar alguma coisa, entendeu?

A aquisição de novos contornos para a imagem de uma pessoa, a mudança que vai acontecendo, é nos aspectos físicos, mas também se dá no quesito comportamento, como exemplifica Dora.

Vai mudando porque você vai conhecendo mais a pessoa, então a imagem do comportamento também vai mudando. „Ah, não sabia que fulano... sei lá, toca violão ou gosta de um autor assim assado‟ ou „não sabia que fulano era tão pavio curto‟. Tanto vai mudando a nível de comportamento quanto vai mudando fisicamente. Quando a gente lembra de uma pessoa, claro que uma pessoa que eu conheço mais, quando eu me lembro, eu lembro com aqueles dados físicos que eu conheço. Uma pessoa que eu conheço menos fica só na ideia. Mas isso não é uma coisa que me incomode, que eu fique querendo saber. Se eu sei, eu uso.

Outros dados materiais, ainda que não a materialidade da própria pessoa, do seu próprio corpo, mas que pertencem a ela ou fazem parte do seu ambiente, também podem auxiliar na transformação da imagem inicial para uma outra, mais detalhada, mais específica. É o que nos fala Beatriz: Eu fico curiosa com a decoração, que é outra coisa que sugere o estilo ou da casa ou da pessoa. Saber a decoração, o quê que tem, os quadros são de quê, o quê que tem nos quadros? Porque essas coisas faz você conhecer um pouco o dono dela. Mesma história de perguntar o tipo de corte de cabelo, você conhece um pouco da pessoa, do estilo dela.

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Em caráter aberto e em constante transformação com a aquisição de novos contornos, a imagem, o reconhecimento ou a representação que uma pessoa cega faz de outra pessoa nos remete à instabilidade dos sistemas de significação que autores como Woodward (2014) e Silva (2014) sublinham como uma importante contribuição do pensamento de Derrida para questões como identidade e diferença. O processo de significação é sempre indeterminado, fundamentalmente incerto e vacilante. Questionando o estruturalismo, Derrida propõe que a relação entre significante e significado não é fixa e o significado se faz presente como traço produzido por meio de um processo de diferimento ou adiamento. O que pareceria determinado é na verdade fluido e inseguro, sem um ponto de fechamento. Como indica a leitura de Woodward, Derrida sugere que ao invés de fixidez, o que existe é contingência e o significado está sempre sujeito ao deslizamento. É o aspecto da abertura, da contingência de qualquer processo de reconhecimento e significação que se destaca nos depoimentos de pessoas cegas a respeito das suas estratégias de reconhecimento e representação de outras pessoas. A noção de substância nos ajuda a descrever alguns aspectos dessa imagem. A palavra substância, por um lado, passa a sensação de maior fluidez, o que pode abarcar o caráter mais volátil de uma representação aberta e em constante processo de transformação de que falávamos. Por outro lado, qualquer matéria tem substância e as pessoas, embora não tenham uma representação visual para pessoas cegas, têm forma, densidade, massa, elas têm substância. Trato um pouco mais do segundo aspecto evocado pela palavra substância para caracterizar a imagem que uma pessoa cega tem de uma outra pessoa. Beatriz nunca viu o rosto de sua filha. Pergunto como ela a imagina quando pensa na filha e Beatriz responde: Engraçado, isso é uma outra coisa incrível, sabe, é uma forma que a gente tem para nós, é muito doido isso. Tem uma imagem porque assim, quando eu toco na minha filha, que eu conheço o corpo dela todo, as formas, os tamanhos, eu crio essa imagem para mim. É como se tivesse uma forma, tem uma forma, certamente. Só não tem detalhes. Não tem boca, nariz, olho... sei lá, não sei. É a forma dela.

Ana, cega congênita, diz que quando compra uma roupa coloca a peça na frente do corpo e se imagina vestida com ela. Pergunto como é a imagem e ela me descreve: Eu imagino de fora para dentro. Porque eu imagino isso aqui ó (toca na parte da frente do seu corpo) – o corpo, a matéria, vestida mesmo. A forma. Eu imagino como

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se eu estivesse aqui e visse na minha frente uma pessoa que era eu mesma vestida com aquela roupa. Não é assim que você se imagina não? (risos) O: eu não sei... Você na verdade se olha no espelho, quando você se olha no espelho vestida com aquela roupa você não está se vendo com aquela roupa? Como eu não tenho espelho para olhar, eu me boto na minha cabeça, eu consigo transportar a minha forma com aquela roupa.

Pedrosa (2009) aponta que a existência da luz é condicionada pela matéria e que o mundo material se apresenta sob duas formas principais: substância e luz. A luz seria uma das formas de expressão da matéria e a radiação eletromagnética emitida pela substância, a segunda forma de expressão. O tato tem certamente um papel fundamental no processo de atribuição de forma à imagem de si, de outros, ou mesmo dos objetos. Bavcar (2003), filósofo e fotógrafo esloveno que ficou cego aos 12 anos de idade, fala que, para uma pessoa cega, é todo o corpo que pode se tornar órgão da vista, pois qualquer parte do corpo poderia olhar de perto um objeto que lhe seja exterior. O autor considera essa forma de ver – por meio do toque - uma perspectiva tridimensional, que chama de “olhar aproximado”. Mas não é preciso tocar a completa extensão de um objeto para imaginá-lo como um todo. Os detalhes são sugestivos. Camila fala sobre um curso de aperfeiçoamento de massoterapia que fez no IBC, chamado “bases biológicas”: Eu fiquei super encantada porque você toca nas coisas e você tem a... conhece perfeitamente como é. Como se estivesse vendo mesmo. Todos os detalhes, tudo. Eu comecei com as células né, mas aqui tem um esqueleto, a gente aprendeu tudo no esqueleto, tocando em tudo... tudo em toque, é muito bacana. Os ossos, os tecidos... O: e porque você fala que é como se você estivesse vendo? É porque quando você perde a visão seus olhos são o seu tato. É incrível, você pode não formar aquela... o que eu falo que o mundo dos cegos é diferente dos videntes porque às vezes na nossa cabeça vem uma coisa que não tem nada a ver com... a gente toca e faz aquela imagem na cabeça. Aquela imagem é sua, para você. Entendeu? Às vezes você está até construindo alguma coisa que não está naquilo. Mas pelo tato você percebe, no caso da célula, a forma, tudo direitinho, o que tem por dentro dela, você consegue saber a espessura, tudo direitinho. Por exemplo, se alguém fala para você „uma árvore‟, aì você toca uma folha, toca um caule, uma árvore grande assim, na realidade, no real. Aí você vai formando na sua cabeça, porque não tem o todo. Se te derem uma maquetezinha fica mais fácil. Só que tem coisas que não fazem maquetes. E você forma, vai formando na sua cabeça.

Kandinsky (1996) entende que a forma, no sentido estrito da palavra, não seria nada mais que a delimitação de uma superfície por outra superfície. Isso é o que definiria o caráter exterior da forma. Mas o pintor considera que toda coisa exterior também encerra, necessariamente, um elemento interior que, segundo cada caso, pode

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aparecer mais fraca ou mais fortemente. Para Kandinsky, cada forma também possui um conteúdo interior e será a manifestação desse conteúdo. Estávamos, Dora, eu e mais uma terceira pessoa em um bar, que aos poucos foi ficando cheio de gente. Dora nos contava de um sonho que teve antes de decidir entrar para o segundo grupo de coral que participa. No sonho ela entrava para esse coro e cada pessoa nova que entrava recebia um presente musical da regente - um arranjo novo, uma música nova. No seu caso, recebe um efeito vocal. A descrição de seu sonho me chama a atenção, especialmente pela característica sonora, mas também porque queria entender como eram as imagens que apareciam em seu sonho. Pergunto para ela se tinham pessoas no sonho ou se as pessoas eram os seus sons. Um pouco indignada com a minha pergunta, ela responde: “tinha pessoa com o som da pessoa. Peraì, Olivia, dá licença. Por exemplo agora, nesse momento, para mim, se você perguntar para mim aqui nesse momento, tem gente ou tem som?”. Respondo que na verdade não sei e devolvo para ela dizendo que o que me interessava era como ela se relaciona. Ali, enquanto a gente conversava, tinha a minha forma ou o som é que era o mais presente? Dora responde: Tem o som... escuta, peralá, quando você está no telefone com uma pessoa não tem uma substância, aquela pessoa? Não é só um som. Você não está falando só com o som. O som daquela pessoa não te remete (a uma substância)? Te remete até ao astral daquela pessoa. Eu acho que é a mesma coisa do telefone, só que é um pouco mais que o telefone, porque a gente está muito mais perto. O cara que nunca enxergou não cria essa imagem visual, ele cria um outro tipo de imagem, que não é visual, mas ela é tão consistente quanto essa imagem visual. Ela tem tanta substância quanto essa imagem visual. O: como? Que tipo de substância? É densidade. Porque olha só, quando você está vendo existe uma ilusão de que se você está vendo a minha imagem então você está percebendo o meu corpo, a minha substância, a minha massa corporal, porque você está vendo. Mas isso é uma coisa visual. É mais porque você sabe que eu existo, você sabe que eu tenho massa, você representa essa sabedoria que você sabe que eu existo numa coisa visual. Porque é completamente diferente se você não me conhecesse, nunca tivesse se relacionado comigo, nunca tivesse tocado em mim, só tivesse visto os meus vídeos, seria uma coisa que é só visual, ou as fotos. Mas é diferente. Sem substância. Mas como você vê você fica achando que essa substância que eu tenho para você é por causa do visual, mas não é por causa do visual, é porque você me conhece, é porque você tem uma imagem de mim dentro de você, você tem uma imagem afetiva de mim dentro de você, mas você representa isso na minha imagem visual. Então você acha que essa minha imagem afetiva, de ser muito inteligente ou pouco inteligente, muito sincera ou pouco sincera, muito divertida ou pouco divertida, isso aí você acha que você está sabendo disso porque você está me vendo, mas não é por que você está me vendo. O: e quando você fala que tem substancia, essa substancia para você ela é afetiva? Ela é afetiva, claro. Mas ela é massa também. É forma, ela é massa, ela é tudo. Porque você não viu, mas você pegou nessa pessoa, por exemplo. Você já sabe, você pegou, você sabe. Você sente. Essa pessoa não é só uma voz. (...) Eu acho que as pessoas colocam no visual coisas que não são exatamente do visual. É exatamente o sonho, quando você me perguntou se eram as pessoas mesmo ou se eram os sons. Eram as pessoas mesmo, mas que eu representava através do som. Mas quem foi que disse que você representar através da imagem (visual) é mais do que representar

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através do som? Eu estava dentro da situação. Não era o som que me chegava simplesmente e eu não tinha corpo, assim, não era isso. Tinha corpo. O sonho tinha corpo, o sonho tinha densidade. É como quando você está sonhando, não tem sonhos que às vezes você não vê direito quem é, mas você sabe que é aquela pessoa? Embora você não esteja vendo a fisionomia daquela pessoa, você sabe. Então eu acho que o próprio visual já dá a dica, no sonho, de que a construção é muito mais do que o visual, é uma coisa além. O visual é um aspecto. Mas são muitos aspectos.

A voz tem uma materialidade – se é grossa, se é fina, se é alta, baixa, a tonalidade, etc. E tem também uma expressividade – o que é dito, como é dito, o jeito de falar, o comportamento. As duas coisas contribuem para a formação da imagem elocutória de uma pessoa. Pensando na imagem enquanto substância, sendo o sentido háptico o mais proeminente na formação dessa imagem, a sua percepção e construção também parece ter esse caráter duplo identificado na imagem elocutória. As pessoas têm um contorno, uma forma exterior ou uma aparência (se quisermos utilizar uma designação mais “visual”). Elas são altas, baixas, magras, gordas, têm cabelos curtos, compridos, lisos, cacheados, etc. Mas a forma exterior é também a manifestação de um conteúdo - uma densidade, uma massa, um corpo. É a junção dos dois aspectos - forma e densidade - que compõe a ideia da imagem enquanto substância. Na apresentação da exposição “Iconoclash” Latour (2008) desfaz a pergunta sobre a fabricação ou a realidade das imagens, construtivismo ou realismo, ao afirmar que escolher entre os dois opostos bipolares é uma impossibilidade estrutural, um impasse, um dilema. Ao contrário, o autor defende que mediações são necessárias em todos os lugares – na arte, na religião, na ciência, na política. É interessante levantar a provocação de Latour para entender as imagens produzidas por pessoas cegas não como mimese, mas como transformação – uma cadeia de modificações que altera os regimes da imagem clássica congelada, extraída do fluxo. Para Csordas (2008), os estudos sobre a imaginação costumam discuti-la quase exclusivamente em termos de imagens visuais, mas o autor sublinha a importância de se conferir igual status analítico às outras modalidades sensoriais. Com as ideias de imagem elocutória e imagem como substância, rascunhadas a partir de depoimentos de pessoas cegas sobre as suas formas de representação, acredito de alguma forma contribuir para esse traçado.

6.4.5 A suspensão do mundo das aparências

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Dois fenômenos entram em atuação na interação de uma pessoa cega com outra pessoa, um deles um condicionamento físico, o outro social - a ausência do sentido da visão e a restrição ao toque corporal. Classificar uma pessoa pelos seus atributos físicos não é prática corrente para uma pessoa cega. O que nos leva a pensar em um terceiro fenômeno nas suas relações cotidianas - a suspensão do mundo das aparências. Depois que Caetano ficou cego, quando conhece uma pessoa não costuma mais se preocupar em saber qual é a aparência dela. Eu não costumo me preocupar mais com a aparência física, ver rosto, ver se a pessoa é bonita ou feia... é uma coisa que não me preocupa não, eu acho até que já apaguei isso da memória, não tenho essa preocupação. Mesmo. No início eu tinha, no inicio eu ficava curioso para saber como a pessoa era. Hoje não, eu procuro conhecer a pessoa pela voz, pelo comportamento mesmo, pela forma de se relacionar, eu vou traçando um perfil sem me preocupar muito com a parte exterior. Isso mudou. Porque quando a gente enxerga o que conta é o visual mesmo. A primeira coisa, né? É o visual, a impressão que você traça de uma pessoa é o que você vê, quando você enxerga. Quando não enxerga, é o que você ouve.

Para uma pessoa cega, a interação não pode se dar no sentido atribuído por Goffman (1996), apenas pela presença física imediata. Para haver influência recíproca dos indivíduos na ação uns dos outros é necessário uma aproximação que envolva um contato maior, pelo menos inclua a fala. Os depoimentos de Dora e Beatriz se aproximam ao de Caetano. Dora diz: “se eu acabei de conhecer uma pessoa eu não fico agoniada de saber como é que é aquela pessoa, se é gorda, se é magra, se é bonita, se é feia, se é branca, se é preta, se tem olho azul, sabe?”. Beatriz também não sente essa curiosidade, em relação a ninguém. E comenta: “eu não sei, eu acho que está ligado ao valor que as pessoas dão às coisas, sabe? Eu não me importo assim com a coisa física não, se a pessoa é feia ou bonita, nariz assim ou assado, eu não... isso não impacta em mim”. Camila acha que a questão de não se relacionar com as outras pessoas a partir da aparência fìsica é algo que contribui para a sensação de que vive em “outro mundo” em relação ao mundo de quem enxerga. Compara os dois mundos a partir da situação social de uma festa.

Quando você não tem visão você tem outros valores, você não vai para uma festa olhar a roupa da fulaninha, se é de marca, se é de grife... eu sempre achei um absurdo você ir numa festa para reparar as pessoas, porque eu já enxergava pouco, mas eu enxergava, entendeu? Quando a gente chega numa festa, que está um monte de cegos juntos, você quer dançar, você quer conversar, você quer contar as coisas. Quando eu enxergava tinham aquelas pessoas que fazem aquela cara assim... olha a outra e vira

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pra cá e comenta com a de cá. Não tem isso? Da vida dos outros, do que o outro está vestindo, se o outro é feio ou bonito, que não sei o quê... porque tem lugares que a festa se resume nisso. As pessoas mal vão para dançar, pra conversar, para se misturar. Por isso que eu falo que é um mundo muito diferente, não é o mundo da estética, é o mundo de conversar, querer rir, naquele momento você está ali aproveitar. Dançam muito. „ah, vamos dançar? essa música é legal‟, aì todo mundo „ah, super legal‟, entendeu? E você entra numa só de se divertir, ai, fica bom demais, sentir o gostinho do que você está bebendo... é bom. Eu lembro em festa de vidente, o pessoal, a maioria... o cara tá ali tocando o som, tá todo mundo sentado, olhando para a cara do outro, „ai, que pulseira linda‟, „ai, você tá fazendo dieta?‟, tudo... entre as mulheres têm essas observações.

O interesse pela aparência pode surgir em etapa posterior, quando a relação já está em um momento mais avançado, quando já se tem mais intimidade para fazer a pergunta ou para propor o conhecimento pelo toque. Camila descreve duas situações desse tipo vivida com amigos, também deficientes visuais, que conheceu no IBC.

A gente conversava muito, mas não tinha noção de como o outro é. Aí nós estávamos numa aula de música, a última aula, aì o professor „ah, gente, vamos bater papo hoje‟. A curiosidade começou com a Miriam „ai, gente, tenho a maior curiosidade de saber como vocês são... como vocês são?‟. Isso também de tatear o rosto. Aì pegou „Camila, você é como?‟, aì eu falei „eu sou baixinha‟, „ih, parecia que você era mais alta‟, aì as pessoas começaram a se tocar. Mas mesmo assim „e a sua cor? E o seu isso?‟, e tem pessoas que „nossa, eu imaginava você totalmente diferente‟. É assim, a gente imagina as pessoas... por exemplo, eu tenho essa voz, a pessoa pensava que eu tinha pouquíssima idade né? Quando eu falei que tinha uma filha de 19 anos aí ele „uma filha de 19? Você não tem uns 23 anos?‟. (risos) O José um dia ligou para minha casa, minha filha atendeu. Aì ele „Camila, liguei para sua casa, sua filha atendeu, muito bacana ela‟, „ah, brigada, ela é bacana mesmo‟, „quantos anos ela tem?‟, aì eu „19‟. Aì passou. Um dia fomos num passeio e ele „Camila, tenho uma pergunta para te fazer‟, eu falei „olha, é o seguinte, se você quiser perguntar a minha idade, eu não vou falar‟ (risos). Aì ele „poxa, era isso mesmo‟ (risos). Quando a gente se imagina assim totalmente diferente é muito engraçado, quando a gente senta para conversar isso, chega a ser engraçado, um fala „pô, eu te imaginava assim‟, eu falo „é, pois é, muito diferente‟.

A forma de Dora conhecer as pessoas, pelo comportamento, por aquilo que se diz, algumas vezes esbarra em enganos. Conta um episódio quando a primeira imagem que formou de alguém, com base em uma fala, posteriormente se mostra equivocada. A descoberta do engano transforma a própria imagem inicial da pessoa.

Eu me lembro... Uma coisa tão engraçada. Um cara que eu só conhecia... pessoal do meu trabalho, a gente só se conhecia de skype. E eu achava que ele era gordo, porque um dia ele usou uma frase pronta daquelas „tirar a bunda gorda da cadeira...‟, não sei o quê... e porque ele falou isso, porque ele usou essa expressão, eu fiquei imaginando que ele era gordo. Quando eu conheci, o cara é fininho, ele é vegetariano, daqueles super enxutinho assim, não tem uma... Eu disse „Antônio, você é magrinho??‟, ele disse „porque? você achava...‟, „eu achava que você era gordo‟. Aì eu fiquei chocada, sabe chocada? Chocada. Porque a vida toda eu pensei que o Antônio era gordo, de repente o garoto é magrinho.

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Latour (2008) propõe que as imagens sejam encaradas como parte de uma cascata. Nenhuma imagem deve ser extraída desse fluxo e congelada, não existe original ou protótipo, apenas a passagem de uma imagem para outra. Tal perspectiva implica um mundo cheio de imagens ativas, mediadores em movimento e sugere que se a verdade é imagem, não há uma imagem da verdade. As imagens que pessoas cegas fazem de outras pessoas podem ser entendidas como parte de um fluxo ou cascata, um movimento constante de elaboração, modificação, enganos, aperfeiçoamentos. Camila também conta uma história que indica a readaptação e transformação de uma imagem inicial a partir de novas informações que adquire. Eu fui desfilar numa escola de samba que abre o desfile das campeãs na Marquês de Sapucaì, „Embaixadores da Alegria‟. Aì tem pessoas com várias deficiências, tem mulheres que tiveram câncer de mama... no caminho encontrei uma moça que estava com a mesma camiseta que eu, eu saì do metrô e ela „vem, você está indo para o mesmo lugar que eu, estamos com a mesma camiseta‟. Animada. Aì eu „ah, legal‟. Nisso ela falou que ela era do câncer, tinha tido um câncer e tal, começamos a bater papo. Quando eu cheguei lá não encontrei ninguém do grupo daqui e fiquei no grupo que ela conhecia, da amiga dela. Aí todo mundo sentado e conversando, todo mundo animado demais. Só que eu comecei a perceber... tinha um rapaz sentado ao meu lado e ele „você quer água?‟ eu falei „não, agora não, brigada‟, conversando, conversando, só que eu sentia que as meninas distribuindo camisetas elas davam um salto para sair da cadeira, sabe? Aí eu tava achando engraçado aquilo e conversava, conversava, conversava, aì o rapaz falou assim para mim „olha, vou pegar água para mim‟, eu falei „ah, aceito sim‟, ele também deu um salto da cadeira. Aí eu fiquei assim „gente, tem alguma coisa diferente aqui...‟. Mas eu não entendia porquê. Quando ele veio me dar o copo, ele já veio do meu lado. Aí eu já percebi a direção da voz dele, que eu estava sentada, ele estava em pé, ele estava praticamente... a voz dele estava vindo direitinho na direção assim (do rosto dela). Pequeno, ele era bem pequeno mesmo, porque eu estava sentada e ele estava praticamente assim da minha altura, não abaixou nada para me dar (o copo), o tom de voz não estava vindo de cima, estava na mesma direção, praticamente na mesma direção que eu estava. E isso tudo é percepção né, você tem que ficar atento... eles eram a ala dos anões, sabe? Eles eram bem pequenininhos. Eu levei um tempo. Eu achava „ué, porque eles saem da cadeira saltando?‟. Mas não imaginava que era porque eles eram anões. Porque não vem, tem coisas que não vem rápido assim. Aì eu pensei „o que será que está acontecendo né?‟. Mas aì descobri.

Em duas situações que vivenciou Dora revela como, mesmo depois de um ano de contato periódico com as duas pessoas em questão, descobre dados relativos à aparência que antes não figuravam na sua representação delas. A partir de seu relato e dos depoimentos anteriores podemos pensar que a aparência física do outro, apesar de se desvendar aos poucos para pessoas cegas, não conforma a primeira impressão que fazem de alguém. Não classificam uma pessoa a partir da sua aparência. Assim como as

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expressões faciais e os gestos corporais também não contribuem para que definam a situação em uma interação. Não é com isso que se relacionam. A gente montou uma comissão de acessibilidade quando eu trabalhava na DataPrev. Aí então mandamos um questionário para todos os gerentes da divisão. O questionário era para os gerentes responderem se tinham algum funcionário com deficiência na divisão, qual era a deficiência, quais seriam as necessidades de adaptação para o trabalho, para a gente poder fazer um levantamento e determinar as ações mais importantes dessa comissão. Envolvia desde acessibilidade física até acessibilidade de informação. E aí eu fui perguntar para o meu gerente se ele tinha recebido e se ele tinha respondido. Ele disse que sim, que tinha recebido e que já tinha respondido em relação as duas pessoas com deficiência que ele tinha na divisão dele. Eu disse „ahn? Como assim?‟. Ele disse „sim, você e o Mario‟, eu disse „hein? O quê que tem o Mario?‟. O Mario trabalhava com a gente há um ano e foi aì que eu descobri que ele tinha uma deficiência física. Ele mancava barbaramente de uma perna. Depois eu comecei a prestar atenção, mas eu nunca tinha prestado atenção. Uma vez eu trabalhei um ano com uma colega que era até minha xará. Nós trabalhávamos juntas e era uma confusão, porque viviam passando os telefonemas errados... e aì um dia alguém falou assim „Dora café e Dora leite‟. E aì eu fiquei assim „ãhn?‟, e ela vira para mim e diz assim „ãhn o quê?‟, eu disse „que negócio é esse, Dora café e Dora leite? Não entendi‟, ela disse „você entendeu o quê?‟, eu disse „nada, não entendi nada, da onde que ela tirou isso?‟. Sabe quando não cai a ficha? A ficha minha não caía. Foi o tempo que eu morava em São Paulo, aí eu pensei assim „São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba...‟. Mas aì eu pensei „não, porque se fosse uma paulista e a outra mineira, mas não é...‟. Quer dizer, olha eu fui fazer uma associação muito menos óbvia, muito mais complicada, e não caiu a ficha até que ela vira para mim e diz assim „ô Dora, eu sou a maior negona, você não está entendendo? Ainda não percebeu?‟, e eu disse „ééé??‟, e ela „você não sabia não?‟, e eu „eu não, não tinha a menor ideia, nunca me passou isso pela cabeça‟. Eu não tenho essa curiosidade. É claro que aí eu mudei a imagem dela dentro de mim, virou negra. Mas não mudou nada na minha relação com ela, porque na verdade não era com isso que eu me relacionava.

Falamos do aspecto da visibilidade ressaltado por Goffman (1975) quando analisa a relação social que transforma um atributo diferenciado em estigma. A forma como pessoas cegas se relacionam com outras pessoas, suas estratégias de significação, suspendem um sistema de representação e atribuição de sentido fundado em marcas e traços exteriores e visíveis. Como apontado por diferentes autores (Costa, 2006, Hall, 2004, Butler, 2003), a representação é um sistema linguístico e cultural arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder. Princípios de classificação e de diferença organizam a vida social, atribuindo valores arbitrários a determinados grupos de acordo com a aparência ou com atributos físicos como cor da pele, a deficiência ou mesmo qualidades estéticas. Os sistemas classificatórios por meio dos quais o significado é produzido dependem de sistemas sociais e simbólicos. Como indica Woodward (2014), sistemas classificatórios se constroem sempre em torno da diferença e das formas pelas quais as diferenças são

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marcadas socialmente por meio de dualismos e oposições binárias como alto/baixo, branco/negro, gordo/magro, normal/anormal. Em muitos casos a diferença é construída negativamente, por meio da marginalização e da exclusão de pessoas definidas como “outros”. Como lembra Silva (2014), a análise de Derrida sobre a diferença mostra que as oposições binárias não expressam uma divisão do mundo em classes simétricas, um dos termos é sempre privilegiado, recebendo um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa. A análise de Derrida sugere que é por meio das dicotomias que o significado é fixado, garantindo assim a manutenção das relações de poder. Como apontado antes, Woodward (2014) sugere que o questionamento de Derrida às oposições binárias demonstra que a relação entre o significante e o significado não é fixa. O trabalho de Derrida coloca uma alternativa ao fechamento e à rigidez das oposições binárias ao demonstrar que o que existe é contingência. As histórias dos equívocos, deslizamentos ou reconfigurações das imagens inicialmente formadas por pessoas cegas de outras pessoas sugere um sistema de classificação e representação mais aberto e que, em grande medida, ultrapassa um sistema cultural de representação baseado em oposições fundadas em marcações exteriores arbitrárias. O depoimento de Beatriz é ilustrativo: Saindo desse contexto, de toda a problemática social (da cegueira), ela também traz ganhos pessoais fantásticos. Tipo, não me interessar pela beleza física da pessoa já é um ganho absurdo, em todos os sentidos. A pessoa fala com você na rua, qualquer coisa... sabe essa série que o Fantástico está passando, aquela „e agora? O quê que eu faço?‟ Eles botam situações e vê a reação do povo. Essa semana foi um cara tentando tirar a bicicleta que estava amarrada numa praça, aí eles botaram uma loirinha gostosinha, um rapaz novo e um homem negro. As pessoas só desconfiaram, só foram perguntar se a bicicleta era dele, do negro. Tipo essas coisas assim. Então esse negócio da pessoa falar com você e você atender a pessoa sem julgar a aparência dela, isso é fantástico. Eu acho. Esse negócio de realmente me afeiçoar com alguma pessoa sem saber como ela é, quem ela é... eu não tenho limites para o diferente, né? Eu não tenho limites, sinceramente. É muito complicado alguém me mostrar uma coisa diferente, para mim tudo vai ser diferente. Eu não tenho limites para isso. Isso por si só já causa uma abertura incrível, né?

Nas histórias trazidas pelos pesquisados, diferenças são borradas, fronteiras são atravessadas ou ainda, por boa parte do tempo, as diferenças não existiam. Mesmo quando, por alguma contingência externa, novos atributos passam a existir é como se não se transformassem em diferenças que marcassem hierarquicamente a relação. Possivelmente porque também carregam uma identidade social estigmatizada, mas também pela suspensão do mundo das aparências, as suas formas de classificação das

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pessoas e a maneira como lidam com a diferença parece interromper a reprodução de identidades hegemônicas e relações de poder. Fanon (1983) em “Pele negra, máscaras brancas”, propõe ir além do vìcio da “alma” do meio, ir além das estruturas e máscaras sociais, uma libertação do passado através de uma valorização da experiência cotidiana, carnal, perceptiva. Para o autor, o contato é a chave a partir da qual atribuímos sentido ao que vivemos e que permite a introdução do novo na existência. A forma de conhecer de pessoas cegas talvez esteja mais próxima da experiência carnal e perceptiva de que nos fala Fanon, sendo o contato a chave que permite a definição de situação. Com a ausência do olhar, o reconhecimento das pessoas advém da experiência e adquire novos dados na medida em que o contato se transforma ou se aprofunda. A suspenção das aparências nos permite vislumbrar a construção de mundos menos organizados por eixos de dominação (Haraway, 1995).

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Considerações finais A modificação e o aperfeiçoamento da imagem que uma pessoa cega faz de outra pessoa, tanto no seu caráter elocutório quanto como substância, depende do desenrolar de uma relação e é alimentada pelas sucessivas cargas significativas que lhes fornecem aqueles com quem se relacionam. Falamos da relação de som e sentido que Lévi-Strauss (2011) encontra na música e retorno a ela na tentativa de delinear o tipo particular de relações significativas que pessoas cegas estabelecem nas suas relações com o mundo. Lévi-Strauss, no finale de “O homem Nu”, desenvolve um parentesco entre o mito e a música para dizer que ambos transcendem, cada um a sua maneira, o plano da linguagem articulada. Em relação ao signo linguístico, que, de acordo com a teoria saussureana, seria composto de significante e significado, da interseção entre som e sentido, tanto as estruturas musicais quanto o mito se encontram deslocados em alguma direção, sendo ambos concebidos pelo autor como uma linguagem a qual se descolou algo. A música seria linguagem menos sentido e o mito seria a linguagem menos som. Com essa sugestão, Lévi-Strauss abre a possibilidade de se pensar em signos aos quais faltam sons e signos aos quais faltam sentido, o que de certa forma, ao afirmar a existência de significantes sem significado e de significados sem significantes, aniquilaria o signo linguístico saussureano que consiste justamente na ligação entre significante e significado. Ainda que pense as estruturas mìticas e musicais como “subprodutos de uma translação da estrutura, operada a partir da linguagem” (Lévi-Strauss, 2011: 624), o autor não abandona o paradigma linguístico e do signo como seu horizonte de análise. Para manter o mito e a música no horizonte de inteligibilidade da linguagem, ainda que não sejam realidades simplesmente linguísticas, Lévi-Strauss vai buscar a sua metade faltante. O som do mito é reencontrado na elocução daquele que o narra. “Efeitos vocais ou gestuais que nuançam, modulam e reforçam o discurso”. Segundo o autor, “a relação deficiente com o som será compensada pela redundância das fórmulas verbais,

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repetições, retomadas e reiterações” 128(Lévi-Strauss, 2011: 625). Na música, a reunião entre som e sentido não depende da presença do compositor ou dos músicos, mas sim do ouvinte. Este último seria o criador “em negativo”, no qual a música que sai do compositor vem a preencher a sua falta. “A obra musical é um sistema de sons capaz de induzir, no espìrito do ouvinte, sentidos” (Lévi-Strauss, 2011: 628). Numa “pseudolinguagem”, a união entre o som proposto pelo compositor e o sentido, guardado em estado latente pelo ouvinte, é reconstituída na música. O mito, sistema de sentido, se constitui enquanto linguagem graças à série ilimitada de suportes linguísticos que seus sucessivos narradores lhe podem prestar, enquanto a música, sistema de sons, se constitui enquanto tal devido à série ilimitada de cargas semânticas que os sucessivos ouvintes lhe atribuem. Ainda que na comunicação musical, como na linguística, o autor identifique uma união entre som e sentido, na música os sons e os sentidos que entram em comunicação são justamente aqueles que uma comunicação linguística não se utiliza. A música explicita algo de inefável, provoca um enunciado de emoções e significações que um discurso linguístico se mostra incapaz de expressar. Para Lévi-Strauss:

A função significante da música mostra-se irredutível a tudo o que seria possível dela expressar ou traduzir em forma verbal. Ela se exerce abaixo da língua e nenhum discurso, ainda que proferido pelo mais inspirado dos comentadores, jamais será suficientemente profundo para explicitá-la (Lévi-Strauss, 2011: 626).

A música, portanto, é da ordem da linguagem, mas trata-se de uma linguagem ao mesmo tempo inteligível e intraduzível. Suspendemos aqui a reflexão para introduzir as ideias de outro autor, Eduardo Kohn (2007, 2013), a respeito dos processos de representação e significação de seres não-humanos. Mas adiante retomo Lévi-Strauss em uma sugestão de um caminho para pensar os processos de significação de pessoas cegas.

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Redundâncias de fórmulas verbais, repetições, o ato de retomar ou voltar a dizer algo. Podemos também pensar nesses suportes linguísticos no caso de pessoas cegas. Ao contrário do mito recitado que busca compensar a falta de sonoridade, o uso desses suportes linguísticos por pessoas cegas seria uma compensação de sentido. O sentido corporal expressivo que, embora muitas vezes empreguem, não podem captar e outros suportes corporais que garantem a comunicação linguística, como a confirmação do entendimento com um gesto ou um olhar pelo interlocutor, que se encontram ausentes. Essa é uma hipótese que poderia explicar a sensação de Dora de que pessoas cegas são muito “prolixas”.

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Ao invés de recorrer à ontologia como forma de contornar o problema da representação, Kohn (2013) acredita ser mais frutífero criticar nossos pressupostos sobre a representação – e, dessa forma, a epistemologia - por meio de um quadro semiótico que vai além do simbólico. Considerar a representação como algo mais do que o convencional, o linguístico e o simbólico. Tendemos a pensar o funcionamento da representação apoiados em pressupostos de como a linguagem funciona. Porque as representações linguísticas se baseiam em signos convencionais, sistemicamente relacionados uns aos outros e arbitrariamente relacionados aos seus objetos de referência, assumimos que todos os processos de representação têm essas mesmas propriedades. Kohn argumenta que os símbolos, os tipos de signos que têm a convenção como base, que são formas distintivamente humanas de representar e cujas propriedades tornam a língua humana possível, na verdade emergem e estão relacionados a outras modalidades de representação. Kohn faz a virada para defender que os seres humanos não são os únicos conhecedores e que conhecer, como intenção e representação, existe no mundo como um fenômeno incorporado outro que não humano, mas que tem efeitos tangíveis. No momento, não é tanto pela defesa de uma capacidade de representação a não humanos que o argumento do autor me interessa, embora me pareça bastante pertinente para uma possível investigação a respeito da relação entre humanos e não-humanos desenvolvida entre pessoas cegas e seus cães-guia. O que é importante para a discussão atual é justamente a sugestão do autor da existência de processos de signos altamente incorporados e, entretanto, não simbólicos. Uma semiose que emerge e permanece entrelaçada a processos energéticos e materiais. Para Kohn, a referência simbólica é um fenômeno emergente que cresce de modos de referência icônicos e indexadores mais fundamentais. O autor tem como base a teoria do filósofo e linguista Charles Pierce 129, que coloca que os processos mais fundamentais de significação envolvem signos conhecidos como icônicos - que

129

O mesmo autor é também referencia teórica para Sousa (2004) quando defende a tese do Braille como mecanismo intersemiótico da cultura. Como mencionado no capítulo 3, o Braille é analisado pela autora como um sistema de tradução intersemiótico, um código simbólico de leitura e escrita em relevo que translitera a escrita alfabética (visual) para a escrita pontográfica (tátil). A autora sugere ainda pensar a própria matriz da célula Braille com as suas diversas combinações de pontos como um ícone diagramático estrutural: “um esquema potencial em que certas possibilidades de associação e combinação são permitidas e um número muito restrito de relações e combinações outras não são permitidas no contexto da composição das letras e de outras representações” (Sousa, 2004: 86).

441

compartilham semelhanças com as coisas que representam - e os que Peirce categoriza por indexadores - que são em alguma medida impactados ou estão correlacionados aos objetos que representam. Ícones e índex são processos mais suscetíveis às qualidades, eventos e padrões do mundo do que a referência simbólica, cujo modo de representação é mais indireto. Humanos também partilham referências icônicas e indexadoras. Por causa desse substrato compartilhado, Kohn defende que existe uma continuidade entre modos de representação humanos e não humanos e que podemos reconhecer isso sem perder de vista as características distintivas das diferentes modalidades de semiótica. Com Lévi-Strauss e Kohn podemos pensar que, ao invés de outra simbologia, cultura ou ontologia, o que pessoas cegas compartilham entre si, e que muitas vezes se diferencia de pessoas que enxergam, são formas de representação não simbólicas. Signos que são como referências icônicas e indexadoras, uma semiose incorporada que emerge de - e permanece entrelaçada a - processos energéticos e materiais. Podemos pensar ainda na maior ou menor emergência do simbólico nos processos semióticos de pessoas cegas, a partir da objetivação e compartilhamento de certos signos e o seu grau de abstração. O Braille não é uma língua e sim um código que instaura um novo meio de comunicação – a comunicação tátil, que não precisa do aparato audiovisual para comunicar. Um meio que expressa as possibilidades de se fazer sentido através do tato. Seria o nível mais estável e estruturado de representação, altamente compartilhado. As convenções recém estabelecidas em torno das pistas táteis também são formas mais autônomas e mais estáveis de significação, um sistema de signos táteis que indica interrupção ou continuidade do caminho e mudança de direção. Outros signos e formas de representação são mais localizados e partilháveis apenas por um número circunscrito de pessoas. Pontos de referência como marcos no caminho, como o risco no chão mencionado por Renata no corredor do IBC, um sinal que avisa da aproximação de uma pilastra, é um signo que não pode ser generalizado, está altamente entrelaçado à materialidade local e é apenas compartilhado pelo círculo de pessoas cegas que frequentam o Instituto (não se pode nem afirmar que sejam todas). Kohn (2007) esclarece, em nota de pé de página, que quando chama algo de ícone, índex ou símbolo está usando um caminho mais curto para falar de termos que podem ser definidos de forma mais precisa como relações. Tais termos se referem às formas pelas quais alguma coisa aparece no lugar de outra e como isso, por sua vez, é interpretado. Para o autor, signos não são exatamente coisas. Eles são, de forma mais

442

acurada, estratégias interpretativas. Mas como estratégias interpretativas, eles também possuem um tipo de materialidade. O cheiro de remédio ou de gasolina só se torna um signo que representa a farmácia ou o posto em virtude da sua interpretação como tal para as pessoas que ali passam. É dessa forma que também podemos pensar as maneiras empregadas por pessoas cegas para reconhecer ou representar outras pessoas. No reconhecimento de pessoas pela fala, a voz é a materialidade do signo e a tonalidade da voz, o conteúdo do que se fala, a atitude ou o comportamento são as estratégias interpretativas empregadas que ajudam na constituição de um signo. São estratégias interpretativas que contribuem para

elaborar uma

representação,

uma

forma

ou

substância,

um “nome” - o

reconhecimento efetivo de alguém. Outros signos, ou estratégias interpretativas empregadas, mais abertas, mais ou menos sujeitas a deslizamentos e possivelmente da ordem do inteligível e intraduzível, são a energia, a química, a atmosfera, o clima. O que tem capacidade maior de generalização e compartilhamento não são necessariamente os signos gerados – esses são em grande medida individualizantes e fluídos. Mas a forma de percebe-los é que pode ser largamente compartilhada, o treinamento do corpo e da atenção para identificar esses sinais e objetifica-los enquanto signos, ainda que circunstanciais, altamente localizados e com uma duração muitas vezes restrita. A estimulação precoce, os treinamentos da reabilitação, os manuais de educação de crianças cegas, por um lado, ou mesmo o workshop “Além da visão” proposto por Dora e que desenvolvemos juntas, por outro, se tornam meios de difundir tanto para pessoas cegas quanto para pessoas que enxergam não exatamente signos, mas formas de saber-fazer (know how), conhecimentos corporais que permitem desenvolver a habilidade de uma leitura heterodoxa de sinais no mundo. Csordas (2008) chama por uma antropologia do corpo sensitivo que contraponha os déficits de uma antropologia que foca excessivamente nos signos etéreos e significados desincorporados. A semiose humana é encorporada e isso tanto inclui quanto excede o simbólico. Semioses são sempre incorporadas, embora alguns processos de signos mais do que outros. Com Csordas, compreendemos que, embora ainda não sejam linguísticos, os próprios sentidos já são semióticos. Mesmo não sendo necessariamente conscientes ou discursivas, as disposições corporais são semióticas e pessoas cegas parecem ter essa semiose encorporada bastante desenvolvida. Kohn (2013) propõe uma aproximação semiótica continuísta que não tome a linguagem como o ponto de partida. A aproximação se revela bastante pertinente para 443

pensar o caso

particular de pessoas cegas em um mundo de pessoas que

majoritariamente enxergam. Pessoas cegas, apesar de falarem a mesma língua, possuem modos particulares de estar no mundo. Se a música é uma ordem de linguagem que se encontra abaixo da língua, ao mesmo tempo inteligível e intraduzível, podemos pensar, a partir do que percorremos de Lévi-Strauss e de Kohn, que os sinais percebidos por pessoas cegas, que contribuirão para formar uma perspectiva particular de mundo, constituem uma forma de representação e significação encorporada e anterior à linguagem, uma semiose. É curioso notar como os movimentos sociais de surdos e de cegos caminharam por diferentes trilhas. Ainda que ambos sejam corpos marcados por uma diferença sensorial, são condições que tiveram implicações sociais muito distintas. Pessoas surdas, em torno do reconhecimento da linguagem de sinais como uma língua própria, reivindicaram o status de minoria cultural. Um grupo, ou um outro povo que, apesar de compartilhar o mesmo território, tem outra identidade cultural do que os “ouvintes”. De acordo com Silva (2011): “Certamente, o elemento determinante para a emergência da concepção de que há um grupo particular de nome os surdos, muitas vezes também chamado de comunidade surda ou povo surdo, é a afirmação da existência de uma lìngua especìfica”130 (Silva, 2011: 21). Pessoas cegas vivem em um mundo de pessoas que enxergam e falam a mesma língua que elas. Estão cercadas por coisas, objetos, tecnologias e ferramentas que foram criadas para serem usadas por pessoas que enxergam. Elas aprendem sobre coisas as quais nem sempre têm acesso (pinturas, paisagens) e são introduzidas a relações espaciais como as de perspectiva ou ponto de vista que, embora possam intelectualmente compreender, não são relações imediatas ao sentido haptico. Pessoas cegas se familiarizam com objetos formados de acordo com leis geométricas e ópticas, têm constante contato com pessoas que enxergam, com seus hábitos e interesses visualmente orientados. Se desenvolvem de uma maneira intimamente relacionada à realidade visual do mundo de quem enxerga. A linguagem ao redor é carregada de metáforas visuais e, apesar de não enxergarem, têm o domínio dessa linguagem e estão imersos nela. No caso de quem perde a visão, é a linguagem de um mundo que já fez parte, no caso de quem nasce é uma linguagem que domina pelo convívio e da qual

130

Grifos do autor.

444

precisa partilhar. Ainda que não pertençam ao mundo visual, é uma ordem sensorial que elas conhecem. A partir dos estudos da neurociência que percorremos podemos também pensar que, em grande medida, os processos cognitivos de pessoas cegas são outros. Conhecer pelo tato ou pela audição é diferente de conhecer pela visão. Geurts (2002) desenvolve uma antropologia dos sentidos e argumenta que a ordem sensorial de uma cultura é um dos elementos primeiros e mais básicos que nos tornam humanos. A autora define ordem sensorial como o padrão de importância relativa e elaboração diferencial dos vários sentidos, com os quais as crianças aprendem a perceber e experimentar o mundo e no qual desenvolvem suas habilidades. Geurts defende que uma ordem sensorial de um grupo cultural - ou múltiplas e algumas vezes concorrentes ordens sensoriais - forma as bases das sensibilidades exibidas pelas pessoas que crescem naquela tradição. Pessoas cegas são socializadas na mesma língua que pessoas que enxergam, compartilham valores (apesar de que nem todos, como vimos na questão da suspensão do mundo das aparências), mas fazem muitas coisas de outro jeito. Desenvolvem um sistema de signos, uma semiótica humana, que é ao mesmo tempo e irrevogavelmente cultural e biológica. Suas formas de representação existem dentro de uma mesma fronteira biológica e simbólica que outras formas humanas majoritárias de representação, mas constituem uma semiose outra, mais suscetível às qualidades, aos eventos e às formas que estão no mundo. Mesmo que não seja uma língua propriamente dita, a cegueira é outra ordem sensorial, uma forma de estar no mundo com seus próprios sistemas de signos e representação, que inclui a mundividência tátil de que nos fala Sousa (2004), e as outras tantas derivadas ou paralelas, que percorremos ao longo da pesquisa. Esta tese é uma viagem a esse universo, uma tentativa de desvendar aquilo que não sabemos, mas que certamente podemos e devemos aprender com ele. Não tive mãos para tatear ou pernas para seguir alguns caminhos, embora sejam uma possibilidade futura. Um deles menciono nesse mesmo capítulo – as relações que se estabelecem entre humanos e não-humanos a partir da situação de pessoas cegas que têm cães-guias. São relações que abarcam diferentes pessoas e diferentes cães (principalmente das “raças” labrador e Golden Retriever). Desde os centros de treinamento dos cães, as técnicas desenvolvidas para treiná-los, as famílias que se voluntariam para acolher o filhote e o socializar até a idade de início do treinamento (1 ano), os critérios para considerar alguns cães como aptos ao trabalho e outros não, o treinamento de orientação e mobilidade específico de cão-guia que é feito com a pessoa 445

cega, o período de adaptação cão-pessoa que dirá se efetivamente formarão uma dupla, a relação que se estabelece a partir daí entre a pessoa e seu cão-guia, o destino do cão ao alcançar a idade máxima de trabalho. Outro tema que não me foi possível explorar em profundidade diz respeito à inclusão. Conforme sugeri no capítulo 6, a temática da educação inclusiva merece uma pesquisa que ultrapassa os objetivos da tese, mas que considero fundamental. A comparação de como a educação de crianças cegas vem acontecendo em escolas especiais e escolas inclusivas, o desempenho alcançado nas duas situações, os impactos no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças, os materiais didáticos utilizados, as relações entre professores, diretores, alunos incluídos e outros alunos, o acompanhamento da formação de professores para a educação de crianças cegas, incluindo materiais didáticos aplicados (o que foi tocado em alguns capítulos), as escolhas, opiniões e anseios da família da criança cega, entre outras possíveis questões que envolvem uma temática tão atual e urgente. Sugiro também, como tema a ser desenvolvido, uma antropologia das emoções relacionada às situações de deficiência e, mais especificamente, da cegueira. Emoções da família que descobre que seu filho é ou ficará cego, emoções relacionadas à perda da visão e às etapas da reabilitação, emoções como o alívio (que menciono no capítulo 5) relacionada à situações de interação em lugares públicos. A temática da surdez e da cegueira e a discussão aberta nesse último capítulo a respeito das formas de significação de pessoas cegas, sugere uma comparação bastante frutífera entre os dois universos no âmbito da linguagem e de seus mecanismos de representação e simbolização do mundo. E ainda, como foi tocado no capítulo 5, a comparação dos processos de identidade na cegueira e na surdez parece ser um tema ainda inexplorado que merece aprofundamento, sugerindo caminhos sociais diversos dentro de um agrupamento mais amplo de pessoas com deficiência sensorial.

*** A visão de cegos, seus traços de visualidade, olhos mecânicos, a experiência que têm dos olhos de quem enxerga e as suas formas particulares de visualização (no sentido de imaginação) - imagem elocutória, imagem como substância - nos conduz às particularidades e à corporificação de toda visão. O que nos leva a insistir, com Haraway (1995), na falsidade de uma visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades e a acreditar na objetividade de visões parciais e vozes 446

vacilantes, corporificação finita que vive dentro de limites e contradições. Ou seja, em visões desde algum lugar. Ao percorrer ao longo da tese as práticas que fazem a cegueira e o caráter inventivo da visão, a distinção entre visão e cegueira de repente se abranda. Não mais delimita, borra. As dicotomias “nós” e “eles”, visão e cegueira, não parece mais tão homogênea e nem estabelece um limite estável. Já não podemos depositar visão no âmbito do dado, da convenção. Práticas da cegueira são tão fabricadas quanto práticas da visão. O que difere é precisamente o meio, aquilo que nos vincula. No último capítulo, procurei demonstrar tanto a visão de cegos, as suas formas de visualização e representação, quanto a cegueira de quem enxerga (cegueira inatencional, cegueira por mudança e as descrições de mundo de quem vê são alguns dos exemplos). O que significa afirmar a visão de cegos e a cegueira da visão? Qual é, afinal, a diferença entre visão e cegueira? Quero, finalmente, dissecar as relações entre visão e cegueira à luz de outra distinção tradicionalmente presente nas discussões antropológicas – natureza e cultura – tendo como inspiração a teoria do perspectivismo ameríndio, desenvolvida por Viveiros de Castro (1996). Com isso, podemos pensar que a visão e a cegueira não designam províncias ontológicas, mas apontam para contextos relacionais, perspectivas móveis – pontos de vista. Para o perspectivismo, todos os seres, humanos ou animais, veem (representam) o mundo da mesma maneira, o que muda é o mundo que eles veem. A diferença entre os pontos de vista humanos e não humanos não está na alma, pois, para os ameríndios, a alma é formalmente idêntica através das espécies e, portanto, enxerga a mesma coisa em toda a parte. Como coloca Viveiros de Castro, uma perspectiva não é uma representação porque a perspectiva está no corpo. A diferença, para o perspectivismo, é dada pela especificidade dos corpos. Pessoas cegas representam da mesma maneira coisas diversas do que quem enxerga porque seus corpos são diferentes. E corpo, aqui, não se refere somente às diferenças fisiológicas – ser alto, baixo, magro, gordo, negro, branco – mas diz respeito aos afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada tipo de corpo – o que se come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário. O que o perspectivismo entende por corpo, e é essa ideia que quero sublinhar, não é sinônimo de uma fisiologia distintiva ou de uma morfologia fixa, mas um conjunto de afecções ou modos de ser que constituem um habitus. 447

É possivelmente esse corpo entendido como um conjunto de capacidades que pode explicar a sensação de pessoas cegas de que vivem em um mundo diferente de quem enxerga. O que difere não seria o mundo em si, mas a perspectiva que se captura dele a partir de naturezas múltiplas, da variabilidade dos corpos. A humanidade de pessoas que enxergam e de pessoas que não enxergam é a mesma. Visão e cegueira não se fixam em pessoas que enxergam e pessoas cegas, respectivamente, pois, como vimos, é possível falar na visão de cegos e na cegueira de quem vê. A diferença entre as perspectivas da visão e as perspectivas da cegueira é dada pela especificidade dos corpos. Especificidade de corpos que têm um conjunto de capacidades e afecções singulares – como se movem, como se comunicam, como percebem, como representam aquilo que percebem. O corpo como feixe de afecções e capacidades é a origem das perspectivas. Ao pensar comparativamente a distinção entre visão e cegueira nos aproximamos da forma ameríndia de pensar a natureza e a cultura na medida em que compreender tal distinção também demanda uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre seres humanos. O espírito, enquanto forma reflexiva, é o que integra; o corpo, não como substância material, mas como afecção ativa, é o que diferencia. Seguindo a ideia é possível dizer que o lugar da identidade e da diferença, tanto na cegueira quanto na visão, é o conjunto de hábitos e processos que constituem os corpos. E os corpos, sendo o lugar da perspectiva diferenciante, podem maximizar a diferenciação, na medida em que são continuamente fabricados. Nesta tese, os olhos de quem não vê são tratados por mim muito mais como um equipamento distintivo, que dota aquele que não enxerga de afecções e capacidades singulares, do que como uma essência incapacitante de cegueira, representação projetada de corpos visualmente situados. Ao vestir uma roupa-máscara de cegueira em diferentes momentos da pesquisa, não pretendia esconder uma essência “enxergante” sob uma aparência de cega, mas ativar os poderes de um corpo outro. A venda nos olhos não como fantasia, mas como instrumento. Tal aproximação pode ser entendida como uma espécie de perspectivismo metodológico em que a posição do antropólogo equivaleria a do xamã – “pessoas multinaturais por definição e ofício, são capazes de transitar entre as perspectivas, tuteando e sendo tuteados pelas subjetividades extra-humanas sem perder a própria condição de sujeito” (Viveiros de Castro, 1996: 135).

448

Finalizo o interminável com o relato de uma vivência que acontece dias antes de iniciar meu processo de doutoramento e que considero, retrospectivamente, o presságio de um porvir. Uma fresta que, numa cascata de outras, foram moldando meu corpo e minha percepção para a expedição que àquela altura ainda nem sonhava em realizar. Hoje me sinto transformada por esse processo e sinto que esse é um organismo inteiramente vivo, maior do que eu, que pulsa em todos os que foram tocados no caminho; e que multiplicam seus tentáculos131.

Água Viva (02.03.2010)

Naquele dia entrou no mar e seu corpo se desfez em água. Sentiu-se uma só com aquela imensidão. Teve medo de se desfazer e simplesmente não retornar mais à velha forma. Mas deixar-se ir daquela maneira era incontrolavelmente bom. E ela boiou. „A sonoridade mesma dessa palavra já passa a sensação física que ela contém: boiou – boiar – boiando‟ – pensou. Ter pensado foi o que lhe trouxe a consciência da fronteira. Seu corpo ainda tinha uma forma, apesar da substância de dentro ser igual a de fora. Uma camada tão tão sutil que parecia que uma agulha espetada era capaz de liquidá-la. Só que, enquanto ela existia, as ondas a podiam carregar. E brincavam com ela sem encontrar resistência. Com os ouvidos cheios, o ruído forte de sua respiração a fez pensar que talvez tivesse se transformando em peixe. Um baiacu flutuando com a barriga cheia. A resposta veio de seus cabelos soltos e a maneira com deslizavam na água. Eram seu contato e direção com aquele mundo. Lembrou-se do abraço apertado e ardido de uma caravela, que envolveu toda uma perna em tempos remotos de sua infância. Aquele abraço continha muito mais do que a dor urgente e ardida que a fez urrar por horas e ainda a série de bolinhas marcadas na pele que carregou por tantos anos depois. Aquele abraço continha uma chave. Até aquele exato encontro não tinha sido capaz de reconhece-la, não havia tomado consciência de sua existência ou do que fazer com ela. Mas naquele momento estava pronta, seu corpo estava pronto. E a transmudação aconteceu. Dali em diante aquela porta era sua. Podia atravessá-la.

131

Segundo o dicionário: “apêndice móvel não articulado que serve de órgão do tato a muitos animais”.

449

ANEXOS Introdução

Reglete de mesa com punção e apagador

Punção anatômico

Reglete de bolso

450

Capítulo 2

Jogo 60 segundos

Jogo da Memória Tátil

451

Imagens “barrocas” (fotos do catálogo da exposição Sight Unseen)

Fotografias de Henry Butler

Fotografia Gerardo Nigenda

Fotografia Evgen Bavcar

452

Capítulo 5

RANKING FISCALIZAÇÃO DO CUMPRIMENTO DA LEI DE COTAS - 19º ANO132

Estado

132

Estimativa de vagas

Inserções por Ação Fiscal

Índice de Cumprimento

CE

29322

13295

45%

SP

246656

(2a)107.324

44%

RS

46249

19776

43%

AM

14583

5354

37%

RN

12490

3073

25%

GO

23516

5347

23%

AP

2670

561

21%

ES

14121

2921

21%

DF

30241

6061

20%

MA

14516

2708

19%

RO

5836

1013

17%

MG

9480

1601

17%

AC

2482

300

12%

PE

33497

3900

12%

SE

7768

885

11.4%

PI

8120

906

11%

BA

43950

4789

11%

A tabela é uma projeção do Espaço da Cidadania a partir das seguintes fontes: RAIS 2008 – Estimativa

de vagas nas empresas com cem ou mais empregados; Resultados acumulados das inserções de pessoas com deficiência obtidos por meio de ação fiscal entre 2000 e Junho de 2010, divulgados pelo MTE. Disponível em: http://www.deficienteonline.com.br/ranking-da-fiscalizacao-do-cumprimento-

da-lei-de-cotas_news_188.html. Acesso em 31.05.2014.

453

MG

81808

8819

11%

MS

9957

1028

10%

AL

12597

1218

10%

PA

22145

1909

9%

RJ

83230

5978

7%

TO

5128

275

5%

PB

14077

651

5%

RR

1142

51

5%

PR

45258

1879

4%

SC

30239

1030

3%

Brasil

851078

202652

24%

OCUPAÇÕES COMPATÍVEIS COM O DESEMPENHO DE PESSOAS CEGAS (tabela disponível no site do IBC)

CONDIÇÃO VISUAL

PROFISSÃO

PRÉ-REQUISITOS

SÍNTESE DAS ATRIBUIÇÕES

Advogado

Curso superior completo Cursos específicos de acordo com a área de atuação Usuário de Cego e Visão microcomputador Domínio de um Subnormal sistema de comunicação sonora com o microcomputador

Emite pareceres sobre aspectos jurídicos Exerce advocacia preventiva e corretiva Realiza estudos especializados sobre temas e problemas jurídicos relevantes.

Afinador de Piano

Primeiro grau incompleto Curso de Afinação de Piano Habilidade manual, musicalidade,percepção auditiva e persistência

Cego e Visão Subnormal

Afina o piano numa seqüência padrão Realiza pequenos consertos e regulagens Cuida da limpeza, lubrificação e troca de cordas e peças

Ajudante de Cozinha

Primeiro grau incompleto Curso de Auxiliar de Cozinha

Cego e Visão Subnormal

Auxilia os cozinheiros no preparo das refeições, executa serviços gerais de limpeza Pode auxiliar no descarregamento dos gêneros alimentícios

Ajudante de Jardineiro

Primeiro grau incompleto Curso de Jardineiro

Cego e Visão Subnormal

Auxilia no preparo do terreno para plantio Capina os canteiros cultivados e poda árvores Conserva as áreas ajardinadas

Analista de

Superior incompleto Curso na área

Cego e Visão

Analisa o desempenho do

454

Cargos e Salários Júnior

de custos Usuário de microcomputador

Analista de Sistemas

Curso superior completo na área de ciências exatas Treinamento em linguagem de computação Experiência em operação de computadores Domínio de um programa de sintetizador de voz

Ascensorista

Primeiro grau incompleto Curso de Ascensorista Habilidade para lidar com o público

Assistente Social

Curso superior completo Cursos específicos de acordo com a área de atuação Usuário de Cego e Visão microcomputador O cego deverá Subnormal dominar um sistema de comunicação sonora com o microcomputador

Realiza estudos, analisa e intervem em problemas grupais e/ou individuais em seus aspectos sociais Administra recursos de natureza social Planeja e desenvolve problemas de assessoramento à Administração

Auxiliar de Encadernação

Primeiro grau incompleto Curso de Encadernador

Cego e Visão Subnormal

Auxilia na execução de serviços de encadernação e restauração de livros e publicações em geral

Cego e Visão Subnormal

Auxilia na execução de tarefas diversificadas de apoio nos diferentes segmentos da Empresa

Auxiliar de Primeiro grau incompleto Serviços Gerais

Subnormal

funcionário e sua respectiva retribuição salarial

Cego e Visão Subnormal

Define e programa sistemas Analisa a performance dos sistemas Avalia o ambiente do usuário Soluciona os problemas apresentados Supervisiona o trabalho dos programadores

Cego e Visão Subnormal

Opera o elevador no transporte de pessoas e cargas Indica, quando consultado, a localização de pessoas e setores da Companhia

Embalador

Primeiro grau incompleto Habilidade manual

Cego e Visão Subnormal

Acondiciona produtos diversos a fim de assegurar uma embalagem adequada para seu transporte Confecciona embalagens de papelão e/ou outros tipos de materiais

Empalhador

Primeiro grau incompleto Habilidade manual e coordenação motora fina

Cego e Visão Subnormal

Adorna móveis e tece forro para assento de cadeiras e sofás, utilizando fibra natural ou sintética (novos e reformas)

Fisioterapeuta

Curso superior completo Cursos Cego e Visão específicos de acordo com a área de Subnormal atuação

Executa métodos e técnicas fisioterápicas com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade física do paciente

Intérprete

Segundo grau completo Curso de Língua Estrangeira Desembaraço para o contato social

Cego e Visão Subnormal

Serve de intérprete a visitantes estrangeiros (gerentes, técnicos, professores etc.) em convenções ou entrevistas

Massagista

Primeiro grau completo Curso de Massagem Cursos específicos de acordo com a área de atuação

Cego e Visão Subnormal

Aplica técnica específica de massagem estética, terapêutica e desportiva, observando orientação médica

Montador de Móveis e Esquadrias

Primeiro grau incompleto Curso de Cego e Visão Montadores de Móveis e Esquadrias Subnormal Habilidade manual

Monta, encaixa, aparafusa e cola peças pré-moldadas

Musico / Instrumentista (pianista, violonista e percussionista)

Primeiro grau incompleto Embasamento teórico e domínio do instrumento que pretende executar Cursos livres de acordo com a área de atuação Boa acuidade auditiva

Pianista e violonista - desenvolve harmonia funcional do trecho musical Percussionista - executa com precisão os tempos do compasso

Cego e Visão Subnormal

455

Curso superior completo Cursos específicos de acordo com a área de Musico/Regente Cego e Visão atuação Boa acuidade auditiva e e Arranjador Subnormal domínio de algum instrumento de harmonia

Cria arranjos musicais Rege pequenos conjuntos (de pessoas cegas e videntes) Rege corais constituídos por pessoas deficientes visuais

Curso superior completo Cursos específicos de acordo com a área de atuação. Usuário de Cego e Visão Musicoterapeuta microcomputador. O cego deverá Subnormal dominar um sistema de comunicação sonora com o microcomputador

Planeja, coordena, acompanha, analisa e efetua estudos atinentes ao campo da musicoterapia Realiza avaliação diagnóstica do indivíduo Realiza sessões terapêuticas

Cego e Visão Subnormal

Promove vendas (televendas) Presta apoio na venda de um produto ou serviço e incrementa a produtividade da venda Pesquisa mercado, opinião pública e testa novos produtos, promoções, mensagens, idéias etc. Mantém o arquivo do cliente ou do mercado atualizado Atende e orienta clientes em suas necessidades e reclamações

Orientador Educacional

Curso superior completo Cursos específicos de acordo com a área de atuação Usuário de Cego e Visão microcomputador O cego deverá Subnormal dominar um sistema sonoro de comunicação com o microcomputador

Planeja, implementa e avalia o desenvolvimento da orientação vocacional no contexto escolar Detecta problemas de ordem biopsico-pedagógico, estabelecendo alternativas educacionais para o aperfeiçoamento da ação educativa Presta orientação educacional individualmente e em grupo

Pedagogo

Curso superior completo Cursos específicos de acordo com a área de atuação Usuário de Cego e Visão microcomputador. O cego deverá Subnormal dominar um sistema sonoro de comunicação com o microcomputador

Estuda, pesquisa, interpreta, controla, analisa e coordena atividades pedagógicas

Pizzaiolo

Primeiro grau incompleto Conhecimentos pertinentes às atividades desenvolvidas

Cego e Visão Subnormal

Prepara massas, recheios, arma e leva ao forno tipos diversificados de pizzas

Professor

Curso superior completo (atuação a partir da 5a. série) Curso normal (atuação até a 4a. Série) Cursos específicos de acordo com a área de Cego e Visão atuação Usuário de Subnormal microcomputador. O cego deverá dominar um sistema de comunicação sonora com o microcomputador

Planeja, coordena, executa e avalia atividades relacionadas ao processo ensino-aprendizagem, visando a formação integral do educando

Programador

Segundo grau completo Treinamento em uma linguagem de programação Cego e Visão Experiência em operação de Subnormal computadores através de sintetizador de voz

Cria programas de computador Realiza manutenção de sistemas de computação Presta apoio ao usuário Elabora manuais

Psicólogo

Curso superior completo Cursos específicos de acordo com a área de atuação Usuário de Cego e Visão microcomputador. O cego deverá Subnormal dominar um sistema de comunicação sonora com o microcomputador

Planeja, coordena, acompanha e efetua estudos atinentes ao campo da Psicologia Elabora e adapta testes, provas objetivas, inventários e outros instrumentos de medidas psicológicas Realiza avaliação objetivando o

Operador de Telemarkentig

Segundo grau completo Objetividade, iniciativa, boa fluência verbal e força de argumentação Noções básicas no uso do microcomputador. O cego deverá dominar um sistema sonoro de comunicação com o microcomputador

456

diagnóstico, prognóstico e o tratamento do indivíduo Primeiro grau completo Curso de Recuperador de Técnica de Cobrança Boa fluência Crédito verbal, iniciativa e força de argumentação

Sociólogo

Cego e Visão Subnormal

Realiza investigação cadastral dos clientes devedores Executa cobrança através de visitas locais ou por telefone

Curso superior completo Cursos específicos de acordo com a área de atuação Usuário de Cego e Visão microcomputador O cego deverá Subnormal dominar um sistema sonoro de comunicação com o microcomputador

Planeja, coordena, acompanha, analisa e efetua estudos atinentes ao campo da sociologia Desenvolve programas de pesquisa e assessoramento na área social

Prepara filmes a serem utilizados pelos técnicos de radiologia Cego e Revela filmes através de VisãoSubnormal químicas apropriadas ou de processadora

Técnico de Câmara Escura

Primeiro grau completo Curso de Câmara Escura

Técnico de Comunicação Social

Curso superior completo Cursos específicos de acordo com a área de atuação Usuário de Cego e Visão microcomputador. O cego deverá Subnormal dominar um sistema de comunicação sonora com o microcomputador

Planeja, coordena e acompanha programa de relações públicas Redige, adapta, comenta, interpreta matéria a ser divulgada e realiza sondagem de opinião pública

Primeiro grau incompleto Curso de Operação de Mesa Telefônica Boa fluência verbal e memória auditiva

Opera mesa telefônica Recebe e providencia ligações urbanas, interurbanas e internacionais Atende chamados telefônicos transferindo-os para diversos setores da Empresa

Telefonista

Cego e Visão Subnormal

PROFISSÕES AUTÔNOMAS COMPATÍVEIS COM O DESEMPENHO DAS PESSOAS CEGAS E DE VISÃO SUBNORMAL

ÁREA RURAL

Apicultor, caprinocultor, floricultor, granjeiro, horticultor, hortigranjeiro, minhocultor, ovinocultor, ranicultor, suinocultor, truticultor, vinicultor

Produção e confecção de: perfumes, produtos de higiene e limpeza, botões ÁREA ARTESANAL forrados, ilhóes, plantas e flores desidratadas, papel, macramê, tricô, tapetes, sachê, bonecas e bichos de lã, ráfia e tecido, bijuterias e caixas decorativas ÁREA DE PRODUTOS CASEIROS

Produção de: bombons, doces, balas, compotas, geléias, salgadinhos, sanduíches, tortas, biscoitos, massas, pães, refeições, sorvetes, queijos e licores

ÁREA INDUSTRIAL

Produção de: sacolas, chinelos personalizados, fraldas e absorventes descartáveis, quetinhas, velas e tijolos

ÁREA COMERCIAL Representante de vendas, vendedor ambulante, chaveiro, sapateiro

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Mercado de trabalho para pessoas com deficiência Gráficos do IBDD com base no relatório anual 2012

Banco de Currículos 4,4% 2,6% 4,6%

Deficiente físico

4,6%

Deficiente auditivo (não surdo) Deficiente visual (não cego) 35,8%

5,5%

Surdo Amputado Paralisado cerebral

9,1%

Cadeirante Deficiente intelectual

9,8%

Nanismo 13,5%

10,1%

Cego Total de currículos até dez. 2012 - 48.693

1%

3% 2%

1%

Profissionais inseridos no mercado

2% Deficiente físico

4% 4%

Deficiente auditivo (não surdo) Deficiente visual (não cego)

6%

Surdo Amputado Cadeirante 76%

Paralisado cerebral Deficiente intelectual Nanismo

Total = 346

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