VITORIAS NA CRISE: TRAJETORIAS DAS ESQUERDAS LATINO-AMERICANAS CONTEMPORANEAS

Share Embed


Descrição do Produto

Vitorias na crise.indd 1

10/17/11 12:55 PM

Vitorias na crise.indd 2

10/17/11 12:55 PM

VITÓRIAS NA CRISE TRAJETÓRIAS DAS ESQUERDAS LATINO-AMERICANAS CONTEMPORÂNEAS

FABRICIO PEREIRA DA SILVA

Vitorias na crise.indd 3

10/17/11 12:55 PM

COPYRIGHT © 2011 FABRICIO PEREIRA DA SILVA COORDENAÇÃO EDITORIAL ALBERTO SCHPREJER PRODUÇÃO EDITORIAL PAULO CESAR VEIGA CAPA MARCELO MARTINEZ I LABORATÓRIO SECRETO Este livro segue a grafia atualizada pelo novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor no Brasil desde 2009. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S58v da Silva, Fabricio Pereira.     Vitórias na crise : trajetórias das esquerdas latino-americanas contemporâneas / Fabricio Pereira da Silva. - Rio de Janeiro : Ponteio, 2011.       Inclui bibliografia     ISBN 978-85-64116-11-5       1. Partidos de esquerda - América Latina. 2. América Latina - Política e governo - Séc. XX. 3. América Latina - Política e governo - Séc. XXI. I. Título. 11-6698.

CDD: 324.2098 CDU: 329(8)

PONTEIO É UMA MARCA EDITORIAL DA DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA. TODOS OS DIREITOS DESTA EDIÇÃO RESERVADOS À DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA Rua Nova Jerusalém, 345 CEP 21042–235 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21)2249-6418 [email protected] Os direitos desta edição estão protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Vitorias na crise.indd 4

10/17/11 12:55 PM

Agradecimentos / 5

Agradecimentos

Esse livro é resultado de minha tese de doutoramento em Ciência

Política, defendida no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) em janeiro de 2010. Sempre foi minha intenção publicá-la. Daí o esforço desde o princípio em elaborar um texto que não fosse longo ou exotérico em excesso – males de algumas teses científicas. Agora que a oportunidade da publicação se apresentou, fui tomado pelo desejo de reformular algumas passagens do texto, pesar algumas afirmações, mas principalmente acrescentar novas reflexões e dialogar com obras que chegaram às minhas mãos após a conclusão do trabalho. No entanto, resisti à tentação e optei pela publicação da tese em sua forma original. Nunca pretendi dar a última palavra sobre o tema, e sim divulgar as ideias contidas aqui e contribuir assim com o debate em torno do tema das novas esquerdas latino-americanas e seus “governos progressistas”. E queria fazê-lo ainda no calor do momento, ou seja, antes que o fenômeno aqui analisado deixasse de ser uma questão relevante no seio do (por vezes apaixonado) debate contemporâneo acerca dos rumos da América Latina. De forma geral, uma releitura me fez ver que ainda concordo com as linhas gerais apresentadas nesse trabalho. Se em algo poderia efetivamente melhorá-lo, seria quanto a um tratamento mais aprofundado do “processo” venezuelano e a um maior refinamento em torno do debate teórico sobre democracia – temas que venho desenvolvendo no âmbito da Universidade Federal da Integração LatinoAmericana (UNILA), onde atuo como professor adjunto de Ciência Política e Sociologia. Mas deixo novas reflexões e preocupações para futuros trabalhos, e entrego ao leitor a obra exatamente como elaborada originalmente, esperando antes de tudo que ela possa ser considerada em algum sentido útil e relevante. O melhor seria receber numerosas críticas. O pior seria o silêncio. *

Vitorias na crise.indd 5

10/17/11 12:55 PM

6 / Vitórias na crise

Agradeço em primeiro lugar a José Maurício Domingues, pela orientação cuidadosa e por todo o apoio e amizade oferecidos nos últimos anos. Agradeço também a Ingrid Sarti, Miguel Serna, Maria Regina Soares de Lima e César Guimarães, por terem aceitado o convite para integrar a banca e pelas críticas e sugestões oferecidas. Adicionalmente, Miguel ofereceu grande apoio em minha estada no Uruguai. A interlocução com professores do antigo IUPERJ (atualmente em processo de reconstrução institucional), como Jairo Nicolau, Fabiano Santos, João Feres e Luiz Werneck Vianna, foi marcante para o trabalho e para meu desenvolvimento intelectual. Seria virtualmente impossível realizar esse trabalho sem o apoio da referida instituição. Quando afirmo isso não me refiro somente à ajuda material para as viagens que permitiram realizar a maior parte da pesquisa que sustenta a obra. Nem ao apoio para a participação em diversos congressos nacionais e internacionais, que permitiram o contato com ideias e críticas que certamente tornaram este trabalho melhor. Refiro-me antes de tudo à amizade dos colegas, à atenção das secretárias Florita, Lia e Caroline, da bibliotecária Simone e de todos os funcionários, e acima de tudo ao clima de amizade e paz vivenciado na instituição. Devo muito à minha formação no curso de História e no Mestrado em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Agradeço a Maria Paula Nascimento Araújo (que foi minha orientadora e sempre será minha amiga) e a professores como Carlos Fico, Renato Lemos, Francisco Carlos Teixeira da Silva e tantos outros. Além de tudo, Maria Paula mostrou-se essencial para que essa obra pudesse ver a luz do dia. Não poderia deixar de citar também o mais recente apoio da UNILA, instituição de projeto latino-americanista e inovador que me acolhe desde 2010, bem como dos professores, funcionários e estudantes que a integram. A lista aqui seria interminável, mas faço referência ao reitor Helgio Trindade e ao vice-reitor Gerónimo de Sierra (ambos têm me ensinado muito), esperando, através deles, representar a todos. Agradeço à Editora Ponteio na pessoa de Alberto Schprejer, que me cativou com a ideia de se esforçar ao máximo para que a edição desse e de outros livros não vá “encher de mais confusão as prateleiras”, como diria Caetano. É preciso reconhecer também que sem o apoio material da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Vitorias na crise.indd 6

10/17/11 12:55 PM

Agradecimentos / 7

(Capes) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), seria improvável que esse trabalho tivesse se concretizado. Muitos colegas me ajudaram nos últimos anos com críticas, parcerias acadêmicas e apoio. Agradeço a María Maneiro, Regina Abreu, Sérgio Lamarão, Christiane Jalles, Aurea Mota, Carlos Moreira, Maria Izabel Mallmann, Breno Bringel, Mario Ayala, Fernando de la Cuadra, Daniel Chaves, Oswaldo Amaral, Raphael Seabra, Marcos Xavier, Paulo Renato da Silva e Nilson Araújo de Souza. Seria difícil enumerar, sem cometer injustiças, as dezenas de especialistas, funcionários e secretários de arquivos, bibliotecas, movimentos sociais e partidos, bem como os militantes que me ajudaram doando material e dedicando tempo e atenção aos meus questionamentos. Todos estão de alguma forma presentes nesse trabalho. Mas gostaria de render homenagem aos colegas contatados nos diversos países que visitei. Eles me abriram portas, prestaram informações, sugeriram leituras, cederam textos e documentos, exercendo um papel fundamental na concepção e realização da pesquisa. Em especial, recebi grande apoio de Jaime Yaffé, no Uruguai, de Luis Tapia e Alice Soares, na Bolívia, e de Jorge Veas Palma, no Chile. Devo muitos agradecimentos também aos amigos Andrés, Julia, Thiago, Rômulo, Luisa, Fernando, Fabiano e Peninha. Com eles, foram compartilhadas algumas dificuldades e dúvidas, mas principalmente muitas alegrias. Agradeço o apoio e o carinho de Elza, Fred, Maurício, Paloma e Bruno. Nada que eu pudesse escrever aqui seria suficiente para expressar a dívida com meus pais, Ana Maria e Jaty. Igualmente não saberia exprimir meu sentimento de gratidão e afeto em relação à Aline, companheira de todas as horas ao longo da década que se encerra e das próximas, interlocutora e revisora desse trabalho e de outros a serem elaborados no futuro. Como de praxe, deixo claro que nenhuma das pessoas citadas tem qualquer responsabilidade pelos erros e insuficiências que deverão ser notados ao longo da obra. Estes são de inteira responsabilidade do autor. As pessoas aqui elencadas só devem ser responsabilizadas por terem contribuído para a materialização deste trabalho. Sem elas não teria a motivação e o apoio para chegar ao final deste longo e por vezes angustiante processo.

Vitorias na crise.indd 7

10/17/11 12:55 PM

8 / Vitórias na crise

Vitorias na crise.indd 8

10/17/11 12:55 PM

Agradecimentos / 9

Sumário

Glossário de siglas .......................................................................13 Apresentação ...............................................................................17 Capítulo 1: Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? ...................23 1.1 – O contexto, ou os pressupostos que orientam a obra ..........23 1.2 – Delimitações espaciais e temporais ......................................30 PSCh ..................................................................................33 PT ......................................................................................37 FA ......................................................................................40 MAS ...................................................................................43 1.3 – Conceitos básicos ................................................................47 1.4 – Questões e hipóteses ...........................................................56 1.5 – Metodologia e fontes ..........................................................57 Notas...........................................................................................61 Capítulo 2: Organização ................................................................................65 2.1 – Apresentação ......................................................................65 2.2 – Heterodoxias organizativas .................................................66 2.3 – Institucionalização, lideranças autônomas e militância fluida ........................................................................80 2.4 – Pluralidade organizativa ......................................................87 2.5 – Conclusão ...........................................................................91 Notas...........................................................................................95 Capítulo 3: Ideologia e identidade .................................................................99 3.1 – Apresentação ......................................................................99 3.2 – Esquerdas independentes ..................................................101

Vitorias na crise.indd 9

10/17/11 12:55 PM

10 / Vitórias na crise

3.3 – Esquerdas policlassistas e supraclassistas ............................117 3.4 – Conclusão .........................................................................129 Notas.........................................................................................131 Capítulo 4: Democracia ...............................................................................135 4.1 – Apresentação ....................................................................135 4.2 – O longo caminho ..............................................................136 4.3 – Integração democrática .....................................................142 4.4 – Integração incondicional ou integração crítica ..................157 4.5 – Conclusão .........................................................................161 Notas.........................................................................................163 Capítulo 5: (Anti)neoliberalismo ..................................................................165 5.1 – Apresentação ....................................................................165 5.2 – Neoliberalismo e hegemonia .............................................166 5.3 – Esquerdas e contra-hegemonia ..........................................170 5.4 – Alternativa total ou parcial ...............................................183 5.5 – Conclusão .........................................................................192 Notas.........................................................................................195 Capítulo 6: Expandindo a argumentação .....................................................199 6.1 – Apresentação ....................................................................199 6.2 – Organização .....................................................................200 6.3 – Ideologia e identidade .......................................................207 6.4 – Democracia ......................................................................211 6.5 – (Anti)neoliberalismo .........................................................215 6.6 – Expandindo (um pouco mais) a argumentação ..................218 6.7 – Conclusão .........................................................................223 Notas.........................................................................................224 Capítulo 7: Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais .........229 7.1 – Apresentação ....................................................................229

Vitorias na crise.indd 10

10/17/11 12:55 PM

Agradecimentos Sumário / 11

7.2 – Classificando esquerdas: um novo tema do debate regional ..................................................................................230 7.3 – “Populismo”, “social-democracia” e “autoritarismo”: modos de (não) usar ...............................................................236 7.4 – No que as esquerdas se distinguem? ..................................241 Organização: graus de institucionalização .........................242 Identidade e ideologia: sistêmicos e antissistêmicos ..........244 Democracia(s): integrações distintas .................................246 (Anti)neoliberalismo: até que ponto? ................................248 7.5 – Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas ..........251 7.6 – Conclusão .........................................................................256 Notas.........................................................................................258 Considerações finais ..................................................................261 Notas.........................................................................................267 Referências e fontes ...................................................................269 Referências .......................................................................269 Fontes ..............................................................................280

Vitorias na crise.indd 11

10/17/11 12:55 PM

12 / Vitórias na crise

Vitorias na crise.indd 12

10/17/11 12:55 PM

Agradecimentos / 13

Glossário de Siglas

AD — Ação Democrática APC — Aliança Patriótica para a Mudança APRA — Aliança Popular Revolucionária Americana ARENA — Aliança Republicana Nacionalista ASP — Assembleia pela Soberania dos Povos AU — Assembleia Uruguai CEDIB — Centro de Documentación e Información Bolivia CeDInCI — Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas en la Argentina CEPB — Confederação de Empresários Privados da Bolívia CIDES — Posgrado en Ciencias del Desarrollo CIDOB — Confederação de Povos Indígenas do Oriente Boliviano CIPCA — Centro de Investigación y Promoción del Campesinado CNE — Corte Nacional Eleitoral CSCB — Confederação Sindical de Colonizadores da Bolívia CSUTCB — Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia CUT — Central Única dos Trabalhadores DC — Democracia Cristã EP-FA — Encontro Progressista - Frente Ampla EP-FA-NM — Encontro Progressista - Frente Ampla - Nova Maioria FA — Frente Ampla FBDM — Fundación Boliviana para la Democracia Multipartidaria FLACSO — Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales FMLN — Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional FNMCB-BS — Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia “Bartolina Sisa” FREPASO — Frente País Solidário FSLN — Frente Sandinista de Libertação Nacional FSUTCC — Federação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses de Cochabamba IC — Esquerda Cristã

Vitorias na crise.indd 13

10/17/11 12:55 PM

14 / Vitórias na crise

IPSP — Instrumento Político pela Soberania dos Povos IS — Internacional Socialista IU — Esquerda Unida LCR — A Causa Radical (Causa R) LPP — Lei de Participação Popular MAPU — Movimento de Ação Popular Unitária MAS — Movimento ao Socialismo (Bolívia) MAS — Movimento ao Socialismo (Venezuela) MBR-200 — Movimento Bolivariano Revolucionário 200 MIP — Movimento Indígena Pachakuti MIR — Movimento de Esquerda Revolucionária (Bolívia) MIR — Movimento da Esquerda Revolucionária (Chile) MLN-T — Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros MNR — Movimento Nacionalista Revolucionário MPP — Movimento de Participação Popular MRTA — Movimento Revolucionário Tupac Amaru MST — Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MUPP-NM — Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik – Nova Maioria MVR — Movimento V República NE — Novo Espaço PAÍS — Pátria Altiva e Soberana PAIS — Partido Amplo de Esquerda Socialista PC — Partido Colorado PCB — Partido Comunista Brasileiro PCP-SL — Partido Comunista do Peru – Sendero Luminoso PCU — Partido Comunista do Uruguai PCV — Partido Comunista Venezuelano PDC — Partido Democrata Cristão (Paraguai) PDC — Partido Democrata Cristão (Uruguai) PGP - Partido pelo Governo do Povo PIT-CNT — Plenária Intersindical de Trabalhadores – Convenção Nacional de Trabalhadores PJ — Partido Justicialista PLC — Partido Liberal Constitucionalista PLN — Partido Libertação Nacional PLRA — Partido Liberal Radical Autêntico PMDB — Partido do Movimento Democrático Brasileiro PN — Partido Nacional

Vitorias na crise.indd 14

10/17/11 12:55 PM

Glossário de Siglas / 15 Agradecimentos

PNE — Partido do Novo Espaço PPD — Partido pela Democracia PPT — Pátria para Todos PR — Partido Radical PRD — Partido da Revolução Democrática PRI — Partido Revolucionário Institucional PRSD — Partido Radical Social Democrata PS-Almeyda — Partido Socialista Almeyda PSCh — Partido Socialista do Chile PSD — Partido Social Democrata PSDB — Partido da Social Democracia Brasileira PS-Núñez — Partido Socialista Núñez PSU — Partido Socialista do Uruguai PSUV — Partido Socialista Unido da Venezuela PT — Partido dos Trabalhadores UCR — União Cívica Radical

Vitorias na crise.indd 15

10/17/11 12:55 PM

16 / Vitórias na crise

Vitorias na crise.indd 16

10/17/11 12:55 PM

Agradecimentos / 17

Apresentação

“E, no entanto, ela se move”. Segundo uma versão provavelmente

falsa, porém muito boa, Galileu Galilei, ao sair do tribunal do Santo Ofício no qual foi condenado a abjurar suas teses heliocêntricas – o que acatou –, teria proferido tal frase referindo-se à Terra, como forma de negar a negação. O mesmo pode ser dito da Terra uma vez mais, após um período no qual muitos julgaram que a História havia chegado a seu termo, e ao qual parecia não haver alternativas. “E, no entanto, ela se move”. O objetivo desta obra é compreender o recente fenômeno da ascensão de partidos e lideranças de esquerda ao poder em diversos países da América Latina. Tal ascensão, por sua relativa sincronia e delimitação regional, constitui em si mesma um processo sociopolítico único, que pode ser compreendido em seu conjunto (uma “vaga” de esquerda a percorrer a região), com diversas características coincidentes – mas com suas especificidades evidentes. Pretendo abordar o fenômeno a partir de um exercício comparativo das trajetórias de destacados partidos de esquerda que em eleições recentes chegaram a governos nacionais. Analisando e cotejando os distintos caminhos trilhados por essas organizações até o poder (alguns diriam apenas “até o governo”), espera-se contribuir para a compreensão do fenômeno e, por aproximação, para o entendimento mais geral das esquerdas latino-americanas atuais. Evidentemente, através desta análise que aqui se inicia, espero muito modestamente contribuir para a compreensão de nossa região e dos esforços por mudança – tão necessária, diga-se de passagem – que nela se dão enquanto escrevo estas páginas. Dentre as características dessa ascensão das esquerdas latino-americanas, salta aos olhos seu ineditismo, que deriva tanto do número elevado de países nos quais ela se deu, quanto do fato desse fenômeno ter se dado através de vitórias eleitorais – as “vitórias” de que fala o título. Seria desnecessário e exaustivo recordar as inúmeras convulsões sociais que assolaram a América Latina ao longo do último século

Vitorias na crise.indd 17

10/17/11 12:55 PM

18 / Vitórias na crise

em nome das esquerdas ou do combate dado a elas. Seria igualmente desnecessário e exaustivo descrever as dificuldades das esquerdas de se integrarem aos sistemas políticos e à disputa democrática. Dito em poucas palavras, tratava-se de uma dificuldade até então das esquerdas latino-americanas em serem aceitas pelas frágeis democracias da região (quando elas existiram ou ensaiaram existir), e ao mesmo tempo em aceitá-las de bom grado. Caberia perguntar o que mudou (e quanto), se a América Latina ou as suas esquerdas. Naturalmente ambas, e a intenção aqui será, tomando como pressupostos as transformações estruturais vividas nas últimas décadas, centrar o foco em organizações representativas das esquerdas latino-americanas. Através delas, creio ser possível compreender como as esquerdas da região reagiram a tais transformações e como (e em que medida) elas se integraram aos seus sistemas políticos e se voltaram para a disputa eleitoral – condições prévias para suas vitórias. Tal integração, crescimento e chegada ao poder guarda alguma semelhança com o processo ocorrido com os partidos socialistas europeus, muitos surgidos ainda no século XIX, que ao longo do século XX se integraram, cresceram e chegaram ao poder em seus países. Neste processo, carregaram a “marca de origem” das esquerdas: “a tensão permanente entre as metas de organização dos trabalhadores em contexto que lhes é adverso e as posturas pragmáticas que frequentemente se chocam com as orientações e os ideais” (Sarti, 2006, p. 20). As esquerdas latino-americanas contemporâneas trazem essa marca contraditória, e a enfrentaram de alguma forma da maneira “clássica”: operando expansões ou caminhadas rumo ao “centro” de seus espectros partidários, ampliando suas bases sociais e diluindo suas posições ideológicas (Przeworski, Sprague, 1986). No entanto, veremos ao longo da obra que isso explica apenas parte da história. Evidentemente, só até certo ponto a experiência das esquerdas latino-americanas atuais pode ser compreendida com base no que se deu em outros contextos e sociedades.Mencionei as mudanças estruturais ocorridas na região nas últimas décadas (em parte mudanças globais, em parte regionais). Com isso quero destacar que as esquerdas latino-americanas foram marcadas em maior ou em menor intensidade por movimentos sociais e históricos como a crise do “socialismo real” e do pensamento marxista, com a subsequente derrocada do mundo bipolar; a crise do nacional-desenvolvimentismo latino-americano e consolidação do “neoliberalismo” e suas sucessivas gerações

Vitorias na crise.indd 18

10/17/11 12:55 PM

Aapresentação gradecimentos // 19 19

de reformas socioeconômicas e institucionais, que agora começa a ser questionado; e o processo de (re)democratização na região, basicamente institucional, mas também marcado aqui e ali por esforços participativos e descentralizadores. Tendo contribuído ou sendo parte integrante do que, de maneira geral, pode ser considerada uma nova configuração das sociedades latino-americanas que vai se gestando, estes fenômenos deram à experiência das forças políticas investigadas um contexto comum no qual realizaram sua ascensão. Eles desenhariam num primeiro olhar um quadro desfavorável e crítico (a “crise” de que fala o título) para as esquerdas, à exceção do processo de democratização – ainda assim apenas na medida em estas esquerdas aprendessem a caminhar (durante a caminhada mesma) por veredas até então inexploradas. No entanto, na medida em que formos observando mais detidamente as esquerdas latino-americanas contemporâneas e suas adaptações, veremos que este contexto, na sua maioria aparentemente desfavorável, guardava suas janelas de oportunidades para os que aprendessem a lidar com ele. Veremos também que o contexto tornou-se ligeiramente mais favorável quando o neoliberalismo, aqui e alhures, começou a dar seus primeiros sinais de crise (acompanhada em muitos casos pelo esgotamento de partidos “tradicionais”), oferecendo mais oportunidades aos que sobreviveram à “travessia no deserto” que foram os “anos neoliberais”. O que o leitor encontrará nas próximas páginas será uma análise primeiramente da estrutura interna, dos mecanismos e rotinas de funcionamento de alguns dos partidos de esquerda mais representativos da América Latina. Em seguida, abordo sua ideologia e identidade1. Trato separadamente também de suas interações com a democracia, assim como de sua oposição ao neoliberalismo. Espera-se observar em que medida o desenvolvimento desses partidos nos quatro temas 1

Vitorias na crise.indd 19

Com tal enfoque, a participação destes partidos no Parlamento e em executivos regionais e locais será considerada secundariamente – o que é uma opção analítica, não um desconhecimento da importância da atuação nestas instâncias para o desenvolvimento partidário. Isso não significa que não poderá ser aferido pela pesquisa (ainda que indiretamente) o peso das experiências governamentais e parlamentares na evolução das organizações. Além disso, os sistemas partidários que eles integram não são uma dimensão analítica central – ainda que tenham sido levadas em consideração as interações entre os partidos estudados, seus adversários ou aliados e o ambiente institucional no qual eles atuam.

10/17/11 12:55 PM

20 / Vitórias na crise

recortados se relacionaram com e contribuíram para a chegada deles ao poder. Algumas variáveis não serão isoladas analiticamente na obra, mas aparecerão de forma transversal e intermitente ao longo dela, tais como: as temporalidades distintas dos fenômenos estudados; as relações dessas esquerdas com outras subjetividades coletivas; suas interações com outros integrantes de seus sistemas partidários; e as crises institucionais e políticas que se manifestaram em alguns países do subcontinente. Levo em conta suas modificações ao longo dos anos, grosso modo desde o fim dos anos 1980 – o elemento diacrônico presente neste trabalho. Com tal abordagem, espera-se compreender como, de uma crise de paradigmas sem precedentes para as esquerdas mundiais e atravessando uma conjuntura, na melhor das hipóteses, repleta de obstáculos, diversas forças políticas identificadas com aquele ideário emergiram num dado quadrante do globo e, uma após a outra, constituíram governos de identidade progressista. Em poucas palavras, espera-se identificar o que essas experiências teriam de especial, tanto em relação à tradição de esquerda quanto em relação a outras experiências contemporâneas deste campo ideológico que não tiveram o mesmo sucesso. Finalmente, estabelecido o que elas podem ter de especial em relação à sua própria tradição e à de seus pares atuais, passo a um mapeamento das diferenças existentes entre elas, e discuto se estas são profundas o suficiente para sustentar a tese da existência de “tipos” distintos de esquerdas na região. Trato aqui de forças políticas novas ou de antigas correntes de esquerda “renovadas”, que integram de alguma forma “uma espécie de terceira onda, uma terceira geração de esquerda que, em certa medida, contém alguns elementos estruturantes (...) pós-comunistas e póssocial-democratas” (Garcia, 2005, p. 65). Trata-se da “nova esquerda latino-americana”, como começa a ser chamada (Garavito, Barret e Chavez, 2005; Natanson, 2008). Boa parte das páginas seguintes vai tratar das características e trajetórias do Partido Socialista do Chile (PSCh), do Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro, da Frente Ampla (FA) uruguaia e do Movimento ao Socialismo (MAS) boliviano. Estes quatro atores coletivos vão receber destaque aqui, por terem merecido nos últimos anos os maiores esforços do autor, traduzidos em leituras, viagens para pesquisa de campo, debates acadêmicos ou informais. No entanto, haverá espaço para outros partidos e atores importantes, seja servindo de contraponto, seja integrando tentativas

Vitorias na crise.indd 20

10/17/11 12:55 PM

Aapresentação gradecimentos // 21

de generalização dos argumentos desenvolvidos. De qualquer forma, os partidos ou organizações políticas são a unidade de análise deste trabalho, e não os sistemas partidários nos quais eles se inserem, ou os governos que eles encabeçam. Apresento sumariamente a estrutura da obra. O Capítulo 1 exporá as bases teóricas e metodológicas que a norteiam. Ou seja, reunirá temas que devem ser discutidos logo de início, para que fiquem claros para o leitor tanto o substrato teórico-metodológico quanto as escolhas do autor. Nele contextualizo o período estudado, justifico como o objeto foi delimitado, discuto algumas questões teóricas relativas ao tema e à literatura especializada, apresento as questões e hipóteses de trabalho formuladas e finalmente exponho a metodologia e as fontes utilizadas. Seguem-se quatro capítulos dedicados aos temas escolhidos para realizar a comparação entre os casos, focados no período anterior à chegada ao poder. Com eles procura-se entender principalmente o que diferencia esses partidos tanto da tradição das esquerdas quanto de seus pares contemporâneos, e o que os torna opções efetivas de poder. Ou seja, o que os faz adaptados de alguma maneira à configuração social da qual fazem parte e também referenciais dos anseios de amplas parcelas de suas sociedades. O Capítulo 2 é dedicado a temas de organização, tais como formas partidárias, institucionalização e relação entre lideranças e bases. O Capítulo 3 discute aspectos ideológicos e identitários, em especial em torno da relação com a tradição das esquerdas e a representação social. O Capítulo 4 trata de sua relação com a democracia, em seus variados aspectos. O Capítulo 5 aborda a relação com o neoliberalismo, e com isso trata em grande medida da forma e da intensidade do caráter “alternativo” destes partidos. Em seguida, o Capítulo 6 retoma os argumentos dos quatro capítulos anteriores, procurando expandi-los a outras organizações de esquerda que chegaram ao poder recentemente na região. Mais especificamente, o Movimento V República (MVR), na sequência Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV); o movimento Pátria Altiva e Soberana (PAÍS) do Equador; a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) da Nicarágua; e a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) de El Salvador. No Capítulo 7, a partir dos mesmos temas discutidos nos capítulos anteriores, abordo o que diferencia nossos partidos entre eles,

Vitorias na crise.indd 21

10/17/11 12:55 PM

22 / Vitórias na crise

discutindo se tais diferenças são de tal envergadura que permita falar em “tipos” distintos de esquerdas na América Latina contemporânea. E assim sendo, em que bases esta diferenciação deveria ser construída. Aqui a trajetória recente dessas organizações, como forças governistas, também é levada em conta. Finalmente, sistematizo os resultados da pesquisa e faço algumas conjecturas a guisa de conclusão de um trabalho que – espero – seja, antes de tudo, boa leitura aos que seguirem adiante.

Vitorias na crise.indd 22

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 23

capítulo

1

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? Este capítulo vai expor as bases teórico-metodológicas que norteiam

a obra. Isso não significa dizer que comentários deste tipo não irão aparecer ao longo de todo o trabalho. No entanto, tais temas devem ser sistematizados logo de início para que fiquem claros ao leitor tanto o substrato teórico-metodológico quanto as escolhas do autor. O capítulo se estrutura da seguinte forma: primeiramente contextualizo o período estudado, expondo os pressupostos que orientam a obra; explicito como o objeto foi delimitado e faço comentários introdutórios sobre ele; discuto alguns conceitos relativos ao tema; apresento as questões e hipóteses de trabalho formuladas; e, finalmente, trato da metodologia e das fontes consultadas.

1.1 – O contexto, ou os pressupostos que orientam a obra Entre os objetivos desse trabalho, não está o de fazer um exaustivo relato do contexto no qual se deu a ascensão das novas esquerdas na América Latina. No entanto, faço agora alguns comentários acerca dos processos históricos que considero terem marcado mais fortemente este fenômeno. É fundamental fazer este esforço, pois ao longo de toda a obra discuto exatamente como as esquerdas latinoamericanas contemporâneas reagiram e se adaptaram a este contexto em transformação, que as marcou em diferentes níveis. A literatura especializada aponta para uma perda de representatividade eleitoral e social das esquerdas nas últimas décadas – ainda que devam ser feitas algumas ressalvas quanto a isso. Van der Linden (2005), por exemplo, mostra que o decréscimo eleitoral das esquerdas europeias foi sutil. Na realidade, na segunda metade da década de 1990 as esquerdas europeias chegaram a ocupar o governo na grande maioria dos países da região, calcadas numa abordagem “reformista” mais plural, social e europeísta da globalização, distinta do neoliberalismo puro dos “neoconservadores” dos anos 1980 (Vacca, 2009). Esta ascensão das esquerdas foi denominada na época a “onda rosa”.

Vitorias na crise.indd 23

10/17/11 12:55 PM

24 / Vitórias na crise

Somente na década de 2000, especialmente em sua segunda metade, as esquerdas da região viram este ciclo se esgotar, dando lugar a renovadas forças de centro-direita. Enquanto isso, alguns exemplares das esquerdas latino-americanas viveram uma expansão eleitoral, como sabemos, fazendo com que alguns analistas voltassem a recorrer ao termo “onda rosa”, desta feita latino-americana (Panizza, 2006). Quanto à perda de representatividade social, alguns autores apontam reduções de suas bases sociais semelhantes às de forças políticas de todos os quadrantes (conferir, entre muitos outros, Dalton, Wattemberg, 2000), o que poderia apontar mais para uma crise geral dos partidos do que propriamente das esquerdas, um descrédito em relação à virtualidade democrática da forma partido, que permite traduzir o declínio dos partidos como perda simbólica da crença na instituição como instrumento da democracia. Contudo, e justamente porque os partidos não desfrutam hoje da confiança nem da esperança que neles fora depositada, uma vez que não realizaram as expectativas de uma sociedade democrática, seu declínio é real, expressão mesma da dificuldade contemporânea de um aperfeiçoamento democrático (Sarti, 2006, p. 100).

No entanto, não é difícil sustentar que houve sim uma crise geral das esquerdas, ainda não superada de todo, que se refletiu tanto em seus paradigmas quanto na organização de numerosos partidos e na derrocada – ou na profunda revisão – de experiências socialistas. Ou seja, houve a dramática (porque veloz e inesperada) derrocada do “socialismo real” – que teve seus momentos decisivos entre os anos de 1989 e 1991 –, seguida pela transformação ou pelo desaparecimento de diversos partidos de esquerda. Mas também houve uma profunda crise do pensamento marxista – até então o principal referencial teórico no campo das esquerdas – que se arrastava desde antes: o marxismo, em primeiro lugar, foi afetado fortemente pela derrocada sistêmica do socialismo (...) também foi afetado, em segundo lugar, pela problematização da teoria do valor-trabalho e da centralidade operária, com o que lhe foi surrupiada a certeza em um sujeito revolucionário claramente delimitado (...). Em terceiro lugar, o marxismo foi arrastado pela crise da ideia do socialismo, pelo refluxo das utopias e das apostas no futuro, pelo “desencantamento” pósmoderno do mundo (Nogueira, 2003, pp. 36-37).

Vitorias na crise.indd 24

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 25

Portanto, para além da crise do marxismo, o que se viu nas últimas décadas foi, de maneira mais ampla, o “refluxo das utopias e das apostas no futuro”. Qualquer ideário que propusesse alternativas ficou fortemente abalado, o que configurou por alguns anos a sensação de que havia um “pensamento único”. Nesse sentido, não se viu apenas a crise do “socialismo real”, mas de qualquer força política ou governo que pusesse sua ênfase, mesmo que de forma diluída, na redistribuição de riquezas ou na igualdade. Assim, tal crise não atingiu apenas os movimentos e organizações relacionadas diretamente às fracassadas experiências de socialismo autoritário, mas criou dificuldades para a social-democracia e as diversas modalidades de Estado de Bem-estar Social, que apresentavam então sinais evidentes de esgotamento. Pode-se encontrar uma relação profunda entre essa crise dos projetos alternativos e a contestação das diversas formas de “modernidade organizada” (Wagner, 2004), caracterizada pela centralidade estatal; hierarquização e centralização dos meios de produção capitalista; identidades calcadas na classe e na ocupação; e democracia de massas (com seus respectivos partidos de massas). De fato, ao menos desde os anos 1970 se configurou uma ampla crise deste modelo. Entre alguns dos sinais principais deste fenômeno estão o crescente processo de globalização econômica e produtiva (e, com menor velocidade, de pessoas e ideias); a crise das diferentes formas de Estado nacional ampliado, em parte derivada de limitações intrínsecas à forma como vinha se organizando; a diluição de identidades sociais nacionais e classistas; o já citado enfraquecimento de projetos gerais de futuro, como os associados às esquerdas (pondo em xeque a própria dicotomia “esquerda/direita”); e o surgimento (ou a legitimação) de formas de trabalho e relacionamento mais fluidas no tempo e no espaço. Em contraposição se articulou a alternativa neoliberal que se impôs amplamente – e ainda hoje preserva um peso não mais absoluto, mas ainda forte. A partir de então, o Estado deveria abrir mão de sua capacidade de intervenção, tornando-se uma espécie de “gerente” especialmente das contas públicas, enquanto as forças de mercado “em liberdade” propiciariam a retomada do crescimento econômico (Boron, 2002). O enfraquecimento do Estado nacional, do keynesianismo e das identidades sociais levou, em parte, à própria crise de representação da democracia (e dos partidos, mecanismos centrais de intermediação), pois esta vinha se organizando em torno daquele

Vitorias na crise.indd 25

10/17/11 12:55 PM

26 / Vitórias na crise

imaginário e daquelas instituições. No Capítulo 5, aprofundo um pouco mais este tema. Em meio a tantas transformações, diversos analistas afirmaram que estaria se assistindo à superação da modernidade, dando lugar a uma nova configuração social ainda nebulosa que, pela falta de clareza ou pela profusão de formulações acerca dela, ficou (in)definida como “pós-modernidade”. Da mesma forma, muitos negaram a legitimidade das grandes narrativas, produzidas pelas ciências sociais até então. No entanto, alguns autores (Beck, 1994; Giddens, 1991) começaram a desenvolver formulações constatando que aspectos centrais comuns à modernidade desde os seus primórdios ainda se faziam presentes nas sociedades contemporâneas. Tais autores constataram o óbvio: o mundo havia mudado. Mas não ao ponto de negar fenômenos modernos centrais, tais como algumas ideias básicas do ideário moderno como igualdade, liberdade, solidariedade e responsabilidade (Domingues, 2002); instituições hierárquicas como o Estado; o modo de produção capitalista; entre outros. Ou seja, da crise estava emergindo o novo. Mas este não era tão novo assim. Este trabalho assume como pressuposto que vivemos numa configuração social que preserva características básicas das relações sociais modernas, como a reflexividade, a separação de espaço e tempo e o desencaixe (Giddens, 1991)1. Preservam-se ainda as instituições estatais e bases capitalistas de produção frequentemente associadas à modernidade. Mas as modificações ocorridas nas últimas décadas autorizam a falar em uma nova fase da modernidade, a terceira, depois das duas primeiras definidas por Wagner (2004) respectivamente como “liberal restrita” e “organizada”. Esta nova fase segundo Domingues (2007, 2009) se caracterizaria por manter (transformados) elementos centrais às anteriores, nomeadamente o mercado (baseado em trocas voluntárias) e o Estado (baseado em hierarquia). Associado a eles, observa-se a crescente importância das “redes”, baseadas na colaboração voluntária e desenvolvidas como resposta à crescente complexidade e flexibilidade exigidas para coordená-las. Estes mecanismos de articulação social foram teorizados por Castells (1999) e propostos por Boltanski e Chiapello como centrais (2002) tanto à nova organização social em gestação, quanto à sua justificação, o “novo espírito do capitalismo”2 – ou seja, enquanto existência concreta e projeto. Exatamente pelo amálgama de mecanismos de articulação social, essa nova fase é definida por Domingues como de “articulação mista”.

Vitorias na crise.indd 26

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 27

Além disso, ela se caracteriza por extrema heterogeneidade, assumindo diferentes combinações e preponderâncias entre cada país, região e dimensão da vida social. Assim, as novas características da modernidade se expressam nas sociedades latino-americanas contemporâneas, nas quais elas se adaptam criativamente e com consideráveis margens de manobra – mas em última instância, nas quais elas se impõem a partir de uma ainda existente relação centro-periferia, em que tais sociedades ocupam posições periféricas ou semiperiféricas. Assim, em nossa região o advento da modernidade se dá a partir de uma relação “desigual e combinada” dessas sociedades com a modernidade central. O desenvolvimento da modernidade é um processo único que configura uma civilização global, porém multilinear, e suas manifestações na periferia são marcadas por heterogeneidades internas articuladas de forma desigual e combinada a nível nacional, regional e nas suas relações com o núcleo central da modernidade. Além disso, tais desenvolvimentos assumem um caráter contraditório, marcado por tensões e contradições (Domingues, 2009, pp. 202204). As noções apresentadas até aqui são centrais para o argumento deste trabalho, pois ele se sustenta em boa parte na demonstração de como diversas características das esquerdas latino-americanas aqui estudadas permitem a elas adaptar-se e reencaixar-se com sucesso à tradução regional da modernidade contemporânea. Tais partidos, além de alternativas viáveis de governo, poderiam ser até certo ponto entendidos como (novas) subjetividades coletivas, com variáveis graus de sucesso na integração ou articulação com outras expressões societárias de amplas redes sociais, esboçando (ainda timidamente) projetos alternativos para a região, constituindo ao caminhar “novas identidades inclusivas” (Domingues, 2007, p. 85). Para além das adaptações à manifestação contemporânea da modernidade em nossa região, veremos que as esquerdas aqui analisadas, ao lado das adaptações à nova etapa da modernidade, apresentam adaptações de mais largo alento ao advento do processo de modernização como um todo. Aqui surge com força a adaptação à democracia, buscando hegemonizar as sociedades nas quais atuam. Neste sentido, pode-se dizer que as esquerdas aqui analisadas aderiram (em termos gramscianos) à “guerra de posição”. Ou seja, as esquerdas latino-americanas vão se adaptando à modernidade num sentido geral, bem como à tradução regional de sua etapa atual.

Vitorias na crise.indd 27

10/17/11 12:55 PM

28 / Vitórias na crise

No contexto latino-americano, a crise do modelo “Estadocêntrico” característico da fase anterior da modernidade se expressou como crise do nacional-desenvolvimentismo, fortemente sentida, em especial no final da década de 1970 e início da década de 1980. Este modelo havia se traduzido num elemento importante do desenvolvimento capitalista (ainda que periférico) destes países, que atingiu nas décadas anteriores níveis consideráveis. No entanto, um desenvolvimento mais profundo dos experimentos ISI [sigla para “industrialização por substituição de importações”] (...) culminou em severos desequilíbrios econômicos nos anos 1980, que por sua vez levaram a um dos ajustes estruturais orientados ao mercado mais profundos, mais repentinos, e mais abarcadores na região (Roberts, 2002, p. 68).

A resposta à crise foi intensa, através da redução dos subsídios e das próprias dimensões do Estado em crise e desmoralizado; da liberalização comercial e abertura ao capital financeiro e aos investimentos internacionais em expansão num contexto de globalização e descentralização produtiva; e da redução e focalização dos investimentos sociais em meio a uma expansão do desemprego e das formas de trabalho informais e a uma grande heterogeneização e renovação identitária, calcada em diversos tipos de desencaixe e reencaixe que se processaram e se processam no subcontinente. Seguiram-se ainda esforços de descentralização institucional e democratização local, no contexto das reformas de segunda geração, segundo a pauta do Banco Mundial, implantadas nos anos 1990 na região (Garretón et. al., 2007). O neoliberalismo latino-americano em seus primeiros anos (mas principalmente o esgotamento do modelo Estadocêntrico e a crise econômica que o precedeu) coincidiu com momentos decisivos da (re)democratização da região. Tal coincidência produziu fenômenos de difícil resolução para essas novas democracias. As instituições políticas perderam neste processo altas doses de legitimidade e representatividade, na esteira da pulverização de velhas formas de sociabilidade e organização associadas à fase anterior da modernidade. Produziu-se um paradoxo que consiste na consolidação da democracia, enquanto a dimensão política se enfraquece. Num processo que interessa diretamente a este trabalho,

Vitorias na crise.indd 28

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 29 o eixo competitivo entre os atores de elite e os partidos operários ao redor do mundo em torno de um modelo de desenvolvimento alternativo, perdeu muito de seu significado em uma era de consenso ideológico, convergência organizacional, fragmentação social e profissionalização política (Roberts, 2002, p. 74).

Apesar dessa relação problemática, pode-se dizer, recorrendo à literatura especializada na “transitologia” e “consolidologia”3 (Linz, Stepan, 1999), que a região logrou atingir uma razoável ou ao menos incipiente consolidação de suas democracias – ainda que sujeitas a retrocessos, como todo regime democrático. No entanto, apesar das conquistas, devem-se destacar suas insuficiências. As democracias da região encontram institucionalidades próprias que reduzem sua representatividade, como na formulação de “democracia delegativa” proposta por O’Donnell (2004). Para além das questões da representatividade, devem-se reconhecer as limitações substanciais impostas às democracias da região pelas suas enormes injustiças e desigualdades. Em relação estreita com esses fatores, deve-se abordar a crise de legitimidade de partidos e sistemas partidários em diversos países latino-americanos, dado importante no complexo amálgama de fatores envolvendo a ascensão das esquerdas da região. Tal crise em diversos países parece ter oferecido uma janela de oportunidade a alguns movimentos e novos partidos de esquerda, que surgiam como alternativas a partidos tradicionais. Em meio a um processo de perda de legitimidade de partidos e formas de representação tradicionais e colapso dos sistemas partidários vigentes até então, tais forças teriam canalizado o descontentamento popular – fator que deve ser levado em conta ao analisarem-se experiências como a boliviana, a venezuelana e a equatoriana. Em outros casos, o desgaste e a subrepresentação parecem envolver progressivamente mesmo partidos de esquerda, retirando legitimidade e eficácia de projetos de reformas, como parece evidente no desdobramento atual do caso chileno. A crise de legitimidade dos partidos latino-americanos, onde se manifestou, deve ser levada em conta neste trabalho como um fator secundário. Ao mesmo tempo deve-se questionar que relação existe entre estes processos regionais e o que boa parte da literatura especializada define como uma crise geral da representação partidária e das “partidocracias” – tema que será abordado mais adiante. Nesse contexto de difícil avanço democrático e ao mesmo tempo de crise de paradigmas, a questão democrática assumiu para a

Vitorias na crise.indd 29

10/17/11 12:55 PM

30 / Vitórias na crise

maior parte das esquerdas da região um papel central – fato inédito até então. A defesa da democracia – especialmente de seus aspectos “representativos” – em diversos momentos foi problemática para as esquerdas. Basta recordar que até princípios do século XX, posições mais tolerantes à democracia eram amplamente minoritárias no então unificado movimento socialista mundial – cindido na sequência entre comunistas e social-democratas. E que nas décadas seguintes, o movimento comunista ou socialista revolucionário, em suas diversas variantes (sempre calcadas num leninismo basicamente autoritário), se mostrava socialista, mas pouco democrático, em contraposição à social-democracia com a qual disputava espaço, que se mostrava democrática, mas pouco socialista. Se considerarmos a situação latino-americana, o problema é ainda maior. Num contexto de frágeis democracias e duradouras ditaduras, suas esquerdas se filiavam (guardadas algumas exceções) às diversas vertentes comunistas e socialistas revolucionárias. As esquerdas da região só recentemente começaram a dar prioridade à questão democrática. Neste processo, um fator decisivo foi que, “longe de constituir um agente marginal ou antissistema, o setor majoritário das mesmas foi ator relevante no processo de construção das novas democracias. A opção pela integração institucional implicou em mudanças relevantes dentro das esquerdas e sobre os processos políticos” (Serna, 2004, p. 29) – como veremos ao longo deste trabalho. Com movimentos como este, teria se dado um tipo de integração parcial das esquerdas ao sistema político democrático, supondo, essa integração, uma recomposição da relação das esquerdas com a democracia devido à confluência de um duplo percurso histórico. De um lado, uma nova fase de democratização que conferiu maiores possibilidades de participação das esquerdas e, de outro lado, a ocorrência de transformações internas no campo ideológico das esquerdas que revalorizou a democracia como meio e fim da ação política (Serna, 2004, p. 221).

1.2 – Delimitações espaciais e temporais Deu-se nos últimos anos o que foi considerada uma inédita “onda” de esquerda na América Latina, marcada pelos fenômenos apresentados anteriormente. Em cerca de uma década, diversos países da região assistiram (e sustentaram) a ascensão de partidos, lideranças e movimentos que reivindicaram em diversos graus sua filiação à esquerda.

Vitorias na crise.indd 30

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 31

Isto se deu até aqui na maioria dos países sul-americanos (Venezuela, Chile, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Paraguai) e em parte da América Central (Nicarágua e El Salvador). Espero apresentar propostas e discussões pertinentes a todo o processo de ascensão das esquerdas latino-americanas. No entanto, um recorte evidentemente acabou se impondo, na impossibilidade física de apresentar uma visão completa do fenômeno. A velocidade com a qual o processo se desdobra dia a dia, sua complexidade e pluralidade, ofereceram razoável dificuldade para selecionar os casos que receberiam uma atenção maior, constituindo as unidades de análise centrais deste trabalho. Descontada certa dose sempre presente de subjetivismo, as escolhas se deram baseadas em duas razões. A primeira preocupação foi selecionar casos que fossem representativos das distintas tendências nas quais se apresentam – ou nas quais a literatura especializada julga que se apresentam – as esquerdas latino-americanas. Daí a seleção de casos mais diversos, como o Partido Socialista do Chile (PSCh) e o Movimento ao Socialismo (MAS). A segunda preocupação foi eleger casos comparáveis entre si, que pudessem oferecer respostas às perguntas concebidas e aos referenciais teóricos de que lanço mão. Resumidamente, os casos analisados deveriam ser partidos, de esquerda e com alguma trajetória passível de estudo. Como se trata de um enfoque calcado em boa medida nos referenciais da ciência política – e como é razoável comparar apenas o que pode ser comparado – pareceu interessante dedicar mais atenção a organizações que apresentassem um grau razoável de institucionalização. Isso sugeria deixar de lado projetos “movimentistas”, dependentes de uma liderança individual e originalmente articulados para sustentá-la numa dada contenda eleitoral. Isso se dá especialmente nos casos do Movimento V República (MVR), agora Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), e do Movimento Pátria Altiva e Soberana (PAÍS) no Equador. Por fim, trata-se de um estudo de partidos principalmente até a chegada ao poder, na oposição, e apenas secundariamente de sua atuação após a chegada ao poder e de sua relação com os governos que encabeçam (e de forma nenhuma uma análise destes governos). Isso tornaria problemático abordar movimentos formados inicialmente apenas para a disputa de uma eleição, que não oferecem um período de comparação razoável na oposição. Mais uma vez, isso é

Vitorias na crise.indd 31

10/17/11 12:55 PM

32 / Vitórias na crise

evidente nos casos de Venezuela e Equador. Adicionalmente, a dinâmica (lenta e sistemática) de concepção e realização de uma obra dessa envergadura não permitiu que casos mais recentes de sucesso eleitoral pudessem receber maior atenção – como a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) na Nicarágua e a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) em El Salvador. Assim, buscou-se por um lado representatividade, e por outro a melhor adaptação aos referenciais e recortes que foram se desenhando a partir das perguntas que se queria responder. A escolha acabou recaindo sobre o PSCh, o Partido dos Trabalhadores (PT), a Frente Ampla (FA) e o MAS, que podem ser considerados analiticamente como “casos centrais”. Estas organizações mereceram uma análise sistemática, com observações in loco e a revisão de um volume considerável de fontes e de literatura. No entanto, o MVR/PSUV, o PAÍS, a FSLN e a FMLN receberam alguma atenção, sendo introduzidos na discussão como “casos de teste” nos capítulos 6 e 7, com o intuito de mostrar que conclusões desenvolvidas a partir dos quatro casos analisados mais sistematicamente poderiam ser estendidas a um universo maior. Para isso, apenas a literatura secundária referente a eles foi consultada. Já as experiências da Argentina e do Paraguai ficaram fora da obra de forma mais definitiva. Se por um lado falar dos governos latinoamericanos “progressistas” traz à baila o caso argentino, a opção por estudar partidos de esquerda tornaria inviável ter o peronismo – historicamente filiado às correntes nacional-populares do subcontinente, e adepto recentemente do neoliberalismo – como objeto de análise. Por outro lado, a Aliança Patriótica para a Mudança (APC na sigla em espanhol) paraguaia é um caso igualmente problemático, pois configura uma aliança recém-formada de partidos, grupos e movimentos sociais, configurada em torno da liderança social e originalmente apartidária de Fernando Lugo. Agora, aparentemente em desagregação com a saída de seu principal integrante, o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA). Adicionalmente, a presença do PLRA e de outras organizações conservadoras na APC demonstra que ela supera a noção de esquerda, e que poderia ser vista mais corretamente no contexto paraguaio como uma “alternativa” à longa hegemonia colorada. Por estas razões, a APC foi deixada de lado neste trabalho, fazendo companhia assim ao caso argentino. Grosso modo, os quatro partidos considerados “centrais” foram analisados sistematicamente a partir da segunda metade dos anos 1980

Vitorias na crise.indd 32

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 33

– atenção que mereceram igualmente os movimentos que deram origem ao MAS, partido que foi formado apenas em 1995. Tal escolha se deu porque neste período se deram momentos decisivos relativos aos processos que considero terem marcado a experiência destas organizações, como exposto na seção anterior. Considerações mais específicas sobre a trajetória destas organizações – e das esquerdas latino-americanas de maneira geral – serão apresentadas ao longo de todo o texto. No entanto, faz-se necessário reunir aqui alguma informação – ainda que bastante resumida e preliminar, de modo a não cansar o leitor – acerca da dinâmica e das especificidades de cada caso estudado. PSCh

Desde a inauguração da nova fase democrática em 1989, as esquerdas ocupam espaços no poder central como parte integrante da Concertação – no que é a maior especificidade do caso chileno. Esta foi construída ao longo dos momentos decisivos da redemocratização, como alternativa às forças identificadas com a ditadura, primeiramente como Concertação dos partidos pelo “não” no plebiscito de 1988 que decidiria pela sequência do mandato de Augusto Pinochet por mais oito anos. O plebiscito, que havia sido imaginado originalmente como forma de legitimação popular da ditadura, acabou oferecendo uma brecha legal às oposições, que puderam, através da vitória do “não”, encontrar uma saída a ela. Entretanto, foi uma saída baseada nas “regras do jogo” propostas pelo regime, hegemonizada pelos democratas cristãos pelo lado oposicionista e com uma correlação de forças na qual os setores autoritários ainda guardavam grande margem de autonomia e de iniciativa, significativas bases sociais e o controle do aparato estatal até que a transição pudesse ser legalmente concluída. Principalmente, foi uma saída que preservou (com algumas poucas reformas negociadas em 1989) a Constituição “aprovada” em 1980, contra a qual os setores progressistas se batem até hoje, reformando-a esporadicamente, mas não conseguindo superar sua essência conservadora (Moulian, 2002). O núcleo desta essência é o sistema binominal, que congela as alianças, oferece pouca margem de iniciativa e renovação aos partidos e distorce resultados, sobrerrepresentando a primeira minoria (a oposição de direita) e sub-representando as minorias seguintes (notadamente a oposição de esquerda hegemonizada pelos comunistas).

Vitorias na crise.indd 33

10/17/11 12:55 PM

34 / Vitórias na crise

Vencido o plebiscito, a aliança oposicionista se metamorfoseou em Concertação dos Partidos pela Democracia, elegendo em 1989 o democrata cristão Patrício Aylwin para a Presidência. A aliança, conhecida agora apenas por Concertação, se manteve no poder até o momento, vencendo sucessivas eleições4. Reúne basicamente a Democracia Cristã (DC), o Partido pela Democracia (PPD), o PSCh e o Partido Radical Social Democrata (PRSD), fusão do tradicional Partido Radical (PR) com o Partido Social Democrata (PSD). Durante a transição, grosso modo, os setores socialistas “ortodoxos” tiveram que abandonar a estratégia de oposição à ditadura através da mobilização de massas e, em última instância, de enfrentamento violento, para aderir ao caminho da oposição eleitoral nos moldes oferecidos pelo regime (na prática, aceitando a institucionalização que ele vinha esboçando e seus ritmos próprios), enquanto os setores socialistas “renovados” reforçaram a aposta neste caminho, que vinham seguindo até então com reservas5. Esta virada pode ser explicada pelo fim do ciclo de protestos massivos à ditadura, iniciado em 1983 e encerrado em 1986. Então, retomada a iniciativa por parte da ditadura e demonstrada sua capacidade de superar a crise econômica enfrentada pelo país no início da década, pareceu haver restar alternativa às oposições a não ser aceitar a opção que restava, levando-a além dos objetivos iniciais planejados pelo regime – mas com o preço de realizar a transição mais incompleta do continente, um exemplo lapidar de “transição pelo alto” (Coutinho, 1992). O PSCh, único partido entre os estudados aqui a ter chegado ao poder anteriormente, na paradigmática experiência de Salvador Allende (outra especificidade deste caso), após passar por uma fragmentação organizacional ao longo da ditadura, iniciou sua reorganização no final de 1989. Neste momento se unificaram os dois setores principais nos quais o partido estava dividido desde 1979 – o “renovado” Partido Socialista Núñez (PS-Núñez, mas também Altamirano, Briones ou Arrate) e o “ortodoxo” Partido Socialista Almeyda (PSAlmeyda)6 – além de outros setores menores do socialismo. A eles se somaram o Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU) e a Esquerda Cristã (IC na sigla espanhola) – dissidências de esquerda da tradição democrata cristã, constituídas no período anterior ao golpe –, além de militantes radicais, comunistas e “miristas” (do Movimento de Esquerda Revolucionária, MIR na sigla espanhola), que haviam abandonado suas organizações. Formou-se na prática um

Vitorias na crise.indd 34

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 35

“novo partido”, com uma organização aberta e baseada em tendências internas e com um marcado pluralismo ideológico, aí incluída a inexistência de referenciais internacionais práticos e ideológicos (como o marxismo). Tudo isso, deve-se dizer, reforçou características que sempre estiveram presentes em sua organização desde a fundação em 1933. Mesmo quando o partido assumiu oficialmente uma forma partidária centralista democrática (marxista-leninista), como no final dos anos 1960, manteve na prática seu pluralismo, caudilhismo local e organização relativamente pouco institucionalizada e estruturada. Curioso será observar como os setores oriundos do “almeydismo”, “derrotados” politicamente no interior do partido, na sua estratégia de superação da ditadura e na derrocada de suas referências externas do “socialismo real”, mantiveram-se fortes, assumindo a direção partidária durante a maior parte do período posterior. No entanto, isto se deu num contexto de progressiva diluição das diferenças anteriores à unificação, e de modificação e alta circulação de quadros entre suas tendências internas. Silva (1993) explica a transformação do socialismo chileno, que culminou em sua reorganização em 1989, por fatores exógenos e de aprendizagem. A crise do marxismo e do “socialismo real” por um lado; e a experiência do exílio para muitos de seus militantes, de repressão e do próprio governo de Allende. Este logo começou a ser compreendido internamente por muitos socialistas como “fracassado”, e não “derrotado”, destacando a responsabilidade que os próprios socialistas teriam tido neste “fracasso”, divididos que estavam naquele processo entre seguir o caminho democrático ao socialismo ou impor o tradicional caminho revolucionário (e não democrático). Tal argumento pode ser complementado pelo de Roberts (1994), que valoriza os fatores exógenos e as diversas formas de “aprendizado democrático” dos socialistas, mas enfatiza o peso de sua organização pouco institucionalizada e estruturada, e sua independência de fortes referenciais externos. Somente estas características endógenas explicariam sua capacidade para se transformar ao longo da ditadura, aí incluída sua flexibilidade teórica e estratégica, que permitiu aderir à transição da forma como ela transcorreu, e ao mesmo tempo mostrar-se aberto o suficiente para renascer como depositário das mais diversas correntes de esquerda democrática. Uma das particularidades do caso chileno, como dito, é seu passado governista, paradigmático e (pode-se dizer) traumático para o

Vitorias na crise.indd 35

10/17/11 12:55 PM

36 / Vitórias na crise

partido – que não conseguiu processar a contento (talvez até hoje) a memória de sua atuação no governo Allende. Outra particularidade, igualmente citada, é que o PSCh já se (re)organiza enquanto como um integrante secundário de uma ampla coalizão governista, conseguindo mais tarde assumir um papel central entre as forças da Concertação. Por fim, há uma terceira particularidade: o PSCh não foge aos limites da transição conservadora. Para além das limitações institucionais impostas à democracia pela forma como se deu a transição, fenômeno semelhante ocorreu no campo econômico e, de maneira mais ampla, no campo das ideias e (poder-se-ia dizer) no “senso comum” da sociedade. O Chile foi o país a iniciar mais cedo (provavelmente em escala mundial) a guinada ao neoliberalismo, teve sua transição democrática numa conjuntura de crescimento econômico e alto poder de imposição (e posteriormente de veto) dos atores políticos e sociais autoritários, e desenvolveu um posicionamento fortemente aberto e dependente em relação ao mercado mundial e aos influxos globalizantes. Talvez por tudo isso e por outros fatores, apresentou, ao menos nos primeiros anos do período democrático, algo próximo de uma “unanimidade” (entre os partidos que conseguem representatividade parlamentar) em torno de alguns dos aspectos essenciais das concepções econômicas herdadas da ditadura. O PSCh não foge, em última instância, à regra. Isso explica muito de sua atividade no período, por vezes “esquizofrênica”: antineoliberal e aceitando alguns de seus pressupostos; crítica aos rumos da democracia chilena e da Concertação e integrante importante de seus sucessivos governos. Finalmente, para aumentar a contradição, em 2000 foi eleito pela primeira vez depois da experiência allendista um presidente oriundo dos quadros socialistas, Ricardo Lagos, e na sequência a também socialista Michelle Bachelet, em 2006. Para chegar a tal ponto, deu-se uma mudança na correlação de forças no interior da Concertação, na qual a DC progressivamente perdeu espaço para a coalizão interna entre PSCh, PPD e PRSD7, que puderam enfim impor seus candidatos nas primárias da aliança. Trata-se de um exercício interessante observar até que ponto o partido se diferencia de seus aliados, através da defesa de compensações e investimentos sociais e da ênfase no “crescimento com igualdade”, mostrando-se como o responsável pela “face social” da democracia chilena – “face social” que leva alguns autores a considerar que o modelo atual não é o mesmo aplicado durante a ditadura (um

Vitorias na crise.indd 36

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 37

“neoliberalismo autoritário”), mas sim um modelo aberto, com ênfase no social e na igualdade (Castells, 2005). Num cotejo de experiências plurais, espera-se que o PSCh se contraponha em alguns aspectos a casos como o MAS, tidos como mais radicais. PT

Fundado em 1980, o PT é caracterizado por si mesmo e pela maior parte da literatura especializada (a começar por Keck, 1991), como uma experiência nova nas esquerdas brasileiras e inclusive mundiais, por sua estruturação em tendências, pela recusa à associação com experiências do “socialismo real” e ao marxismo enquanto doutrina oficial e suas bases sociais modernas e plurais, entre outras razões. O PT em boa parte representou setores sociais modernos como o chamado “novo sindicalismo”. Oriundo dos novos setores produtivos configurados nas décadas anteriores pela modernização conservadora, o “novo sindicalismo” é assim definido pela literatura especializada (e por seus atores) por sua origem e centro no setor moderno da economia, autonomia diante dos partidos e do Estado, organização voltada à base e ímpeto reivindicativo direcionado para o interesse dos trabalhadores. Mais do que representar uma etapa do processo organizativo e de luta dos trabalhadores em nosso país, este sindicalismo seria uma ruptura com as práticas estabelecidas no passado. Não um passado genérico, mas principalmente aquele do período 1945-1964 (Santana, 2003, p. 309).

Além deles, o partido foi formado por setores católicos progressistas ligados à Teologia da Libertação e às Comunidades Eclesiais de Base, intelectuais, parlamentares do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e ex-militantes guerrilheiros (críticos à tradição comunista até então poderosa nas esquerdas brasileiras). Sarti (2006), numa leitura à qual me filio, corrobora em parte o caráter “novo” do PT, considerando que a ele se mesclam elementos tradicionais dos partidos socialistas democráticos do século XX (associados às experiências social-democráticas europeias). Por um lado, o PT teria características dos “novos partidos” surgidos a partir dos anos 1970 como resposta às profundas mudanças sociais que começavam a se gestar e à crise das formas-partido então majoritárias – e dos

Vitorias na crise.indd 37

10/17/11 12:55 PM

38 / Vitórias na crise

partidos, de maneira mais geral. Entre tais características, a autora cita o pluralismo (policlassismo) em suas bases, os apelos à cidadania e à ética, a defesa das minorias e do meio ambiente, os elementos movimentistas em sua organização, a busca de uma democratização (mais participativa que representativa) da sociedade e de suas estruturas internas, entre outras. Por outro lado, a agremiação traria ainda características marcantes de partidos socialistas democráticos (descritos por Duverger, 1970), como a defesa do socialismo e dos trabalhadores ou sua burocratização, o que o faz carregar a já comentada “marca de origem” dos partidos socialistas no capitalismo. Assim, o PT, mescla de novidade e tradição, dono de uma identidade híbrida entre “partido e movimento”, é marcado “pelas contradições típicas dos novos partidos, somadas aos conhecidos problemas dos velhos partidos em sua tentativa de manter acesa a chama socialista dentro e fora da organização e agravadas pelo contexto adverso das décadas de crise” (Sarti, 2006, p. 133). Veremos ao longo do livro que tal contradição se manifesta no PT ao longo de toda sua trajetória, e se apresenta, com distintas formas e intensidades, nos diversos partidos aqui estudados. O PT assumiu ao longo dos anos 1980 um papel majoritário no campo das esquerdas e no interior da maioria dos movimentos sociais progressistas. Nas eleições de 1989, se colocou como alternativa real para a conquista do poder através da primeira candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, derrotado no segundo turno pelo outsider de direita Fernando Collor. Consolidou neste momento sua posição de polo de esquerda num espectro partidário extremamente pulverizado – colaborando de alguma forma com sua melhor definição e equilíbrio. O partido ampliou a cada eleição sua base de apoio, suas bancadas parlamentares em todos os níveis e sua participação em executivos locais e regionais (incluindo a eleição de prefeitos em algumas das capitais brasileiras mais importantes, o que se deu desde 1985, mas se acelerou a partir de 1988). Ao longo dos anos seguintes, o PT manteve em seu seio setores que reivindicam o ideário marxista e que recorrem, em menor escala, a algum referencial externo de construção do socialismo, preservou suas bases sindicais, sua organização com aspectos movimentistas e fracionistas, sua defesa da democracia participativa. No entanto, foi crescentemente hegemonizado por seus setores mais moderados, enfatizando a defesa da cidadania, da ética e de grupos sociais mais amplos; viu

Vitorias na crise.indd 38

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 39

crescer em seu interior a representatividade de funcionários ligados a administrações locais e a parlamentos (enquanto suas bases operárias passaram por um processo de moderação); foi burocratizando e institucionalizando sua organização enquanto suas direções ganhavam em autonomia; seguiu aprofundando sua aceitação da democracia representativa. Em suma, suas contradições e dilemas (mas ao mesmo tempo sua pluralidade e originalidade) nunca foram suprimidos ou resolvidos. Mas suas combinações e equilíbrios mudaram significativamente ao longo dos anos, e com elas o perfil do partido. Samuels (2004a) entende tal processo como uma moderação, uma progressiva caminhada ao centro, e aponta que isso não se deveu à autonomização de uma direção moderada (comandada pela tendência Articulação a partir de 1995) que teria levado o partido na mesma direção. Até porque o autor defende que a militância petista (ou mais especificamente suas frações) manteve ao longo do tempo o controle sobre suas direções, através de sua renovação e dos congressos partidários. De maneira geral, teria se mantido a democracia interna, portanto, não teria havido possibilidade de autonomização das lideranças petistas em relação a seus militantes e bases sociais. O caminho teria sido exatamente o oposto. Em primeiro lugar, teria se dado uma moderação de suas bases sociais (especialmente do sindicalismo progressista, agora com menores margens de ação, mais desmobilizado e com forte incidência de setores médios), assim como uma mudança da composição social e moderação de sua militância (em boa parte devido à crescente participação em governos locais e em parlamentos). Na sequência, consolidou-se a hegemonia dos moderados na direção partidária, por serem agora hegemônicos no partido como um todo. Só então se efetivou a maior autonomização da direção e de seus líderes principais, um mandato que eles receberam das bases – ao ponto de poderem comandar com liberdade as campanhas nacionais e realizar amplas alianças. Considero que esse argumento pode explicar muito da trajetória petista. Em especial, se ele for associado às reflexões de Kitschelt (1989), de que o aumento da competitividade eleitoral de um partido, aliado à crescente desmobilização de suas bases sociais, e finalmente a um sistema político-partidário em processo de abertura a novos atores e políticas, poderiam levar à sua metamorfose. Estes fatores favoreceriam a hegemonia interna de setores mais pragmáticos, processo que se deu especialmente a partir de 1995 no PT. No entanto,

Vitorias na crise.indd 39

10/17/11 12:55 PM

40 / Vitórias na crise

como dito anteriormente, na medida em que as dualidades petistas sempre existiram e nunca foram suprimidas, não se pode falar apenas em uma mera opção estratégica em direção ao centro, um caminho “do socialismo à social-democracia”. Até porque ela foi sempre combinada com um decidido antineoliberalismo do partido, na forte oposição a Collor (1990-1992), moderada a Itamar Franco (19921994) e novamente forte a Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) – este último tendo derrotado Lula nos primeiros turnos das eleições presidenciais de 1994 e 1998. Finalmente, em sua quarta candidatura presidencial, apoiado por um arco de alianças que foi desde a esquerda do espectro político até a centro-direita, Lula foi eleito presidente em 2002 – e reeleito em 2006. FA8

Depois de mais de um século e meio de predomínio no Uruguai dos tradicionais partidos Colorado (PC) e Nacional (PN) ou blanco – ligados à gênese da identidade uruguaia e ao seu processo de independência – se assistiu nas últimas décadas ao nascimento e expansão de uma original experiência de frente/partido de esquerda: a FA, que conquistou o poder em 2004, elegendo para a Presidência o médico e dirigente esportivo Tabaré Vázquez. A FA foi organizada para as eleições presidenciais de 1971, nos moldes das frentes populares formadas pelas esquerdas de diversos países em alguns momentos de sua história. A uruguaia foi desde o princípio literalmente uma das mais amplas, pois reunia em sua fundação desde comunistas até social-democratas, democratas cristãos e nacionalistas – basicamente o Partido Socialista do Uruguai (PSU), o Partido Comunista do Uruguai (PCU), o Partido Democrata Cristão (PDC), alguns grupos radicais e cisões de colorados e blancos. Outra peculiaridade é que desde o início a FA se configurou como uma frente permanente, atuando como partido efetivo perante as leis eleitorais e o sistema partidário. No entanto, naquele momento sua organização era frágil, baseada em núcleos relativamente informais e horizontais – sem superar as estruturas e identidades dos partidos que a formavam. Com o tempo, a FA passaria a atuar de fato como um partido “institucional” (Alcántara, 2004), com estruturas e identidade própria suplantando as dos partidos e grupos que se organizam até hoje em seu interior.

Vitorias na crise.indd 40

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 41

A formação da FA se deveu à necessidade sentida pelas esquerdas de enfrentar tanto o tradicional bipartidarismo uruguaio quanto a escalada autoritária iniciada no país em 1968. A primeira intenção da FA demoraria a ser levada a cabo, até mesmo devido ao golpe de 1973, que frustrou sua segunda intenção. No entanto, a FA e sua estrutura “fluida” permitiram às esquerdas manterem sua atuação durante a ditadura que se seguiu. Este regime, por sua vez, as manteve unidas em torno da luta por sua superação. A ditadura propiciou também certo congelamento das posições e do programa frenteamplista. O PCU permaneceria sendo sua força mais poderosa, da mesma forma que o programa frentista manteria um tom “nacional-libertador” e “desenvolvimentista” nas eleições diretas de 1984, eleições de transição da ditadura para a democracia. A correlação de forças na frente e seu caráter programático começariam a mudar apenas nos anos seguintes. Nas eleições diretas ocorridas em 1984, como marco da redemocratização possibilitada pelo Pacto do Clube Naval acertado entre os militares, o PC e boa parte da FA, não puderam concorrer, entre outros, os principais líderes oposicionistas: Liber Seregni, da FA, e Wilson Ferreira Aldunate, do PN. Com isso, alguns setores do PN e da FA optaram por se retirar da disputa. Pelas limitações manifestadas em 1984, as eleições de 1989 são consideradas por muitos como o marco final da transição democrática, por ser a primeira inteiramente livre depois da ditadura (Linz, Stepan, 1999). Nestas eleições, Vázquez se elegeu intendente de Montevidéu, que reúne quase a metade da população do país, e que é governada pela FA até hoje. A trajetória da FA durante o novo período democrático é marcada por dois longos processos: sua progressiva expansão eleitoral e organizacional (construindo alianças com forças de centro-esquerda e dissidências de colorados e blancos); e a transformação e moderação de seu programa e estratégias. Quanto à expansão eleitoral, houve um leve crescimento durante o período ditatorial e um congelamento em 1989 – provavelmente relacionado à saída de algumas forças de centro-esquerda, basicamente o PDC e o Partido pelo Governo do Povo (PGP), que criaram o Novo Espaço (NE), enquanto a entrada dos tupamaros ocorrida ao mesmo tempo agregou pouco eleitoralmente. Desde então, observa-se um consistente crescimento, até a primeira colocação de Vázquez no primeiro turno de 1999 (sendo derrotado no segundo turno pela união dos partidos tradicionais)

Vitorias na crise.indd 41

10/17/11 12:55 PM

42 / Vitórias na crise

e a maioria absoluta atingida no primeiro turno de 2004. Quanto à expansão das alianças, após a referida saída de forças de centroesquerda, a FA construiu em 1994 a aliança denominada Encontro Progressista – Frente Ampla (EP-FA), que consistiu na aliança da FA com forças de centro-esquerda como o PDC (que havia integrado o NE em 1989) e grupos progressistas saídos dos partidos tradicionais. Em 2004, a EP-FA se expandiu para Encontro Progressista – Frente Ampla – Nova Maioria (EP-FA-NM), devido à aliança com forças progressistas como o agora Partido do Novo Espaço (PNE) e novos grupos oriundos dos partidos tradicionais. Quanto ao programa e à estratégia, ocorreram profundas transformações entre sua fundação e a chegada ao governo nacional. A defesa da democracia política estava presente em 1971, mas vista apenas como um contexto mais favorável dentro do capitalismo para a luta pelo socialismo. A democracia política passou a ser valorizada em si mesma entre o final dos anos 1980 e princípios dos 1990, e progressivamente se apostou de forma mais incisiva em seu “aprofundamento”. Do anti-imperialismo e desenvolvimentismo econômico original restaram apenas a retórica e a valorização do papel do Estado, associado à progressiva defesa do papel da iniciativa privada. Do apelo classista teria se passado a um chamamento à cidadania – ao mesmo tempo em que a atividade militante perdeu parte de seu peso e os recursos midiáticos e lideranças de novo tipo como Vázquez ganharam um papel fundamental. O socialismo não estaria mais na ordem do dia, sendo entendido agora como meta longínqua ou utópica. Com tudo isso, para Garcé e Yaffé (2005), pode-se dizer que teria se inaugurado a fase do “progressismo” nas esquerdas uruguaias. O que se propõe agora são o aprofundamento da democracia, justiça social e um capitalismo “a sério”. Mantém-se a essência da identidade frenteamplista – igualdade, justiça e solidariedade social –, mas ela se manifesta agora num programa e numa estratégia distintos dos originais. Todas essas transformações teriam sido motivadas por diversos fatores, tais como a ditadura, o colapso das experiências socialistas e a crise do marxismo, a experiência administrativa em Montevidéu e a “tradicionalização” e a configuração do que é denominada uma “família frenteamplista”9. O surpreendente é que, malgrado a profusão de frações internas e suas profundas transformações, a FA manteve uma razoável solidez, atuando progressivamente como um partido de fato. Um fator

Vitorias na crise.indd 42

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 43

fundamental para sua solidez e também para sua expansão teria sido também sua posição marcadamente oposicionista em relação aos partidos tradicionais e ao neoliberalismo que eles tentaram impor em diferentes intensidades desde a redemocratização. Assim, a FA teria tido grande êxito enquanto “partido desafiante”: manteve a representação de bases sociais definidas, colocou-se como alternativa aos partidos do status quo, estabeleceu novos eixos de competição com base numa oposição clara, sem coalizões eleitorais ou de governo com os “partidos estabelecidos”. Teria tido com isso importância enquanto “válvula de escape” do sistema partidário – modificando-o profundamente com a quebra do bipartidarismo tradicional, mas também preservando sua institucionalização e qualidade de representação (López, 2005). Por fim, as críticas aos partidos tradicionais e ao modelo neoliberal proposto por eles favoreceram a FA ao longo da crise econômica iniciada em 1999 que se transformou em profunda depressão em 2002. A crise que se abateu sobre o país parece ter sido o último passo na trajetória de expansão frenteamplista, que culminou na conquista do poder central. MAS10

O MAS tem origens remotas na formação das seis federações sindicais de cocaleiros do Chapare (departamento de Cochabamba), que deram origem em 1992 à Coordenadora das Federações do Trópico do Chapare. A construção do “instrumento político” pode ser entendida a partir do movimento cocaleiro que a abraçou com decisão e acabou por hegemonizá-la. Mas também a partir do movimento camponês e originário como um todo, que teve um momento-chave na formação da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) em 1979. Esta, hegemonizada a princípio pelos kataristas11, permitiu a autonomização política e identitária do sindicalismo camponês e originário em relação ao tradicional movimento sindical e aos partidos de esquerda tradicionais. A ideia de um “instrumento político” autônomo tanto em relação aos partidos de direita quanto à esquerda tradicional é para muitos um ápice lógico deste processo de autonomização e politização do camponês/indígena. Mas ela deve ser entendida como uma opção tomada em função de oportunidades que poderiam não ter sido aproveitadas (Komadina, Geffroy, 2007). Uma opção estratégica,

Vitorias na crise.indd 43

10/17/11 12:55 PM

44 / Vitórias na crise

tomada num contexto de ascensão do neoliberalismo, que combinou adaptação ideológica de partidos nacionalistas, como o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), e de esquerda moderada, como o Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR), à derrocada da esquerda tradicional (Van Cott, 2005). Desde 1985, houve um rodízio no poder (conhecido como “democracia pactuada”), uma aproximação ideológica e a formação de alianças cruzadas entre os principais partidos, enquanto o neoliberalismo se tornou em grande parte um denominador ideológico e prático comum. Convocou-se para março de 1995 o I Congresso sobre Terra, Território e Instrumento Político, do qual participaram a CSUTCB, a Confederação Sindical de Colonizadores da Bolívia (CSCB), a Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia “Bartolina Sisa” (FNMCB-BS) e a Confederação de Povos Indígenas do Oriente Boliviano (CIDOB). Nele foi aprovada a formação da Assembleia pela Soberania dos Povos (ASP), um “instrumento político dos povos originários”, que não foi reconhecida pela Corte Nacional Eleitoral (CNE), o que obrigou seus integrantes a participar de eleições no interior da Esquerda Unida em 1995 e em 1997. Desde o início, o que viria a ser o MAS teve a especificidade de se organizar a partir de sindicatos comunais e federações de movimentos sociais, de funcionar no nível das bases a partir de assembleias sindicais comunitárias e no nível nacional com uma direção formada por representantes dos principais grupos que o integram. Também desde o início, e progressivamente, apresentou divisões em seu interior entre estruturas herdadas dos movimentos que o integram e nascentes estruturas de funcionários e candidatos eleitos. Desde o princípio, o que seria o MAS também foi uma soma entre um indianismo mais moderado que o katarista e um ideário amplo de esquerda que incluía elementos de “nacionalismo revolucionário” numa chave à esquerda, “nacional popular” – uma tradição das esquerdas bolivianas (García Linera, 2005). Assim como um partido que buscou crescentemente uma pluralidade étnica e de classe, apelando à representação do “povo” e do “popular” (Orozco, 2005). Em 1998, houve uma divisão no “instrumento”, basicamente em torno da disputa pela liderança. O então presidente da ASP, Alejo Véliz, acusando Morales de ter boicotado sua candidatura a deputado em 1997 e com isso causado sua derrota, manteve a sigla. Enquanto isso Morales, acusando Véliz de assumir uma postura negociadora

Vitorias na crise.indd 44

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 45

com o governo, manteve a liderança sobre quase todas as bases e militantes eleitos para cargos públicos, adotando o nome de Instrumento Político pela Soberania dos Povos (IPSP). Para a eleição municipal de 1999, com mais uma recusa de reconhecimento jurídico por parte da CNE, deu-se a apropriação pelo grupo de Morales de uma sigla legalizada, o Movimento ao Socialismo. As eleições disputadas em 1995, 1997 e 1999 tiveram um papel fundamental na consolidação do partido. Elas demonstravam que o caminho eleitoral era viável, e encorajavam setores e militantes sociais antes desconfiados a adotá-lo, ainda que muitas vezes apenas como tática para acumulação de forças (Escóbar, 2008). No entanto, o ciclo de revoltas populares iniciado em 2000 – que se relaciona com o MAS, sem que este seja um responsável direto por ele – é fundamental para entender por que o partido passou em poucos anos de um projeto viável ao posto de maior força política da Bolívia. A crise de representação do sistema partidário, o desgaste das lideranças e dos partidos tradicionais e a crise de hegemonia do projeto neoliberal assumiram então um novo patamar, demonstrado na revolta popular em Cochabamba conhecida como Guerra da Água e nos bloqueios de estrada iniciados por organizações aimaras do Altiplano12. As eleições de 2002 e os resultados obtidos pelo MAS e por Morales (segundo lugar nas eleições presidenciais, com 20,94% dos votos, muito próximo de Sánchez de Lozada, que obteve 22,46%) mostram o estágio crítico a que haviam chegado a política e a sociedade bolivianas. A partir de então, a resistência deixou de ser a estratégia principal para o MAS, papel assumido agora pela participação eleitoral, que possuía até então um caráter tático. Evidentemente, este não é um processo simples, e a tensão entre as duas permaneceu, como desde o início. As mobilizações de rua, bloqueios de estrada e marchas continuaram sendo alimentadas pelo partido, mas agora geralmente para fortalecer e legitimar a estratégia eleitoral de chegada ao poder. Dá-se com mais intensidade o processo de institucionalização partidária e de adaptação ao entorno institucional do MAS. No acidentado caminho do protesto à proposta, a democracia continuou sendo valorizada numa chave participativa ou direta baseada na democracia de base ou de consenso exercida nos sindicatos comunais, mas deu-se um incremento do respeito à legalidade e à representação. Ao longo da crise que assolou o país em 2003 e que levou à derrocada de Sánchez de Lozada, e no início do governo de seu sucessor,

Vitorias na crise.indd 45

10/17/11 12:55 PM

46 / Vitórias na crise

Carlos Mesa, o MAS estava dividido, grosso modo, entre atuação institucional e direta (por vezes à margem da legalidade), entre estrutura partidária e movimentista, entre apelo (poli)classista e étnico. Tais divisões são características de sua trajetória, no entanto o peso dos polos em disputa vai mudando, nem sempre linearmente. A atuação do MAS na crise de 2003 é característica da mudança estratégica adotada. O partido alternou ações mobilizatórias e atividades fora das instituições com a participação em tentativas de negociação e a atuação parlamentar. Ao fim e ao cabo, as manifestações populares, bloqueios de estradas, marchas e rebeliões se deram à margem da atuação masista. Com o protesto avançando, o MAS terminou aderindo às bandeiras populares de recusa da exportação de gás por portos chilenos e de exigência da renúncia de Sánchez de Lozada – mas defendendo a sucessão constitucional, como acabou efetivamente ocorrendo. Com a posse do vice-presidente, o MAS passou tacitamente a apoiá-lo, para “defender a democracia” e evitar ameaças de golpe. A rebelião de outubro de 2003 consolidou o clamor popular pelo que passou a ser conhecido como a “agenda de outubro”: Assembleia Constituinte e nacionalização dos hidrocarbonetos. A primeira sempre foi uma proposta abraçada pelo MAS, até 2002 como uma assembleia popular originada de assembleias locais, e desde então como uma Assembleia Constituinte eleita nos moldes da democracia representativa. A segunda passou a ser exigida com mais força pelo partido a partir de 2003, não propondo estatização e sim nacionalização de dividendos, refundação da estatal petrolífera para atuar com a colaboração da iniciativa privada e investimento na industrialização dos hidrocarbonetos. Assim, o MAS assumiu a “agenda de outubro”, apesar de não ter sido o protagonista principal das mobilizações, mas o fez num tom moderado. No início de 2005, o MAS assumiu uma oposição aberta a Mesa, que neste momento não se decidia a assinar o decreto de nacionalização (aprovado em plebiscito em 2004) e convocar a Assembleia Constituinte. A retirada de apoio do MAS foi decisiva para sua queda em junho, uma vez mais nos moldes constitucionais que propunha o partido: com a renúncia dos presidentes da Câmara e do Senado, o presidente da Corte Suprema de Justiça Constitucional, Eduardo Rodríguez Veltzé, assumiu o cargo com a missão de organizar eleições antecipadas. A recente atuação como oposição democrática poderia explicar o sucesso do MAS nas eleições de 2005, quando

Vitorias na crise.indd 46

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 47

obteve 53,7% dos votos. Nesta campanha, o MAS buscou, mais uma vez e com mais decisão, a aproximação com partidos da esquerda tradicional, movimentos urbanos, intelectuais e camadas médias. Diferentemente do proposto até 2002, o programa de 2005 abandonou o discurso “antimoderno” e defensor de um “sistema comunitário”, e assumiu um tom modernizador e não explicitamente anticapitalista, projetando um Estado plurinacional e democratizado, a nacionalização dos hidrocarbonetos, o investimento em infraestrutura com apoio ao empresariado nacional e a adoção de programas sociais.

1.3 – Conceitos básicos Aqui apresento uma discussão sumária em torno dos conceitos de “partido”, “esquerda(s)” e “democracia”. Faz-se necessário definir o sentido de algumas expressões que vêm sendo utilizadas sem maiores explicações até aqui. Mais que um debate substancial, eu busco conceitos simples, “conceitos mínimos” que sirvam de pontos de partida para começar a lidar com o meu objeto, que porventura serão retomados ao longo da obra e problematizados pela própria exposição dos argumentos. Cabe apontar primeiramente o que entendo por “partido”, e comentar algo do estágio atual do debate em torno do tema. White (2006) mostra a profusão de definições de partido existentes na literatura especializada, apresentando desde a de Burke (homens unidos em torno de algum princípio particular), quando os partidos eram mais propriamente “facções”, chegando a algumas bastante influentes, como a de Downs (1957): uma coalizão de homens buscando controlar o aparato estatal por meios eleitorais, e para isso tendo como meta central e racional a maximização de votos. Em meio a tamanha polissemia, é possível organizar a discussão a partir da forma proposta por Abal Medina (2002). O cientista político argentino classifica as diferentes definições de partido entre posições “estreitas”, “amplas” e “intermediárias”. Como exemplo das primeiras destaca, entre outras, a definição de Sartori, que exclui os partidos que não concorrem a eleições para ocupar cargos públicos, desconsiderando assim os partidos únicos, os proscritos em regimes ditatoriais e os antissistêmicos que concorrem a eleições sem intenção de efetivamente disputar cargos centrais. Em relação às definições

Vitorias na crise.indd 47

10/17/11 12:55 PM

48 / Vitórias na crise

“amplas”, Abal Medina destaca a de Weber, que consideram os partidos como formas de socialização de recrutamento livre, que buscam oferecer vantagens materiais ou ideais a seus membros – conceituação que pode englobar uma imensa gama de organizações. Por fim, um exemplo de definição “intermediária” é a de Duverger, que aponta os partidos como organizações com ampla base de apoio que têm por objetivo conquistar o poder ou compartilhar seu exercício. Abal Medina se aproxima da definição “intermediária” de Duverger, mas reconhece que ela necessita de alguma atualização – e adaptação, se o interesse estiver posto sobre a realidade latino-americana. Para ele, um partido político é uma instituição, com uma organização que pretende ser duradoura e estável, que busca explicitamente influir no Estado, geralmente tratando de colocar seus representantes reconhecidos em posições de governo, através da competição eleitoral ou procurando algum outro tipo de sustento popular (2002, p. 38).

Trata-se de um conceito “aberto” – mas não o suficiente para confundir, por exemplo, partidos, frentes partidárias e “partidos-movimento” com movimentos sociais ou outras modalidades associativas. Além disso, a definição proposta por Abal Medina não se baseia nos modelos de partidos estabelecidos por Duverger (1970), que concebeu seus “tipos ideais” tendo por base, em grande medida, a evolução histórica dos partidos europeus até o período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial (quando escreve). A partir de sua origem e estrutura organizativa, ele define: a) o “partido de quadros”, que corresponde aos primeiros partidos modernos, com origem parlamentar e bases sociais e ideológicas pouco estruturadas; e b) o “partido de massas”, oriundos do avanço do sufrágio e com estruturas organizativas e ideologia mais definidas, forte coesão e disciplina interna, surgidos à esquerda e no “exterior” do sistema político. Além disso, destaca a possibilidade de configuração de um terceiro tipo que poderia estar surgindo, o “partido de fiéis”, que equivale ao partido leninista13. Estes modelos apresentados por Duverger têm apresentado crescentes dificuldades para manterem-se atuais – e sempre foram de difícil adaptação a alguns sistemas partidários de sociedades periféricas, e mesmo aos partidos norte-americanos.Duverger apresentou o “partido de massas” como dominante (ou em vias de sê-lo através de um contágio “pela esquerda” dos partidos “de quadros”), sem chamar

Vitorias na crise.indd 48

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 49

a atenção para sua raridade fora dos limites da Europa Ocidental. Em termos mundiais, quando nosso autor escrevia, o “partido de massas” era a exceção e não a regra da política partidária mundial. Considerando sua decadência a partir do final dos anos 1960 ou princípio dos anos 1970, pode-se apontar que os “partidos de massas” seriam um fenômeno restrito historicamente. Um modelo influente até hoje, que serve de base a vários diagnósticos acerca da (efetiva) decadência dos partidos (em termos de membros, bases sociais, influência sobre outras organizações), poderia descrever também em termos históricos um momento excepcional (e não a regra) na trajetória das organizações partidárias (Scarrow, 2000). Em boa parte, a literatura especializada se dedicou a renovar o modelo de Duverger com base nas transformações partidárias ocorridas igualmente na Europa Ocidental nas décadas seguintes – mas pouco se questionou acerca de sua eficácia para outras experiências partidárias periféricas. Assim, numa crítica histórica à construção de Duverger, diagnosticou-se a crescente diluição do “partido de massas”, e o surgimento de variações a partir dele. Surgiram definições como a do partido “agarra tudo” (o catch-all’s people party de Kirchheimer, desde então chamado de catch-all) ou o “profissionaleleitoral” (de Panebianco), os partidos de “cartel” (de Katz e Mair) e os “partidos firma” (de Paolucci). Essas definições apontam para a diluição do caráter classista dos partidos; a valorização progressiva do momento eleitoral em detrimento de seu papel socializador; a consequente profissionalização das estruturas voltadas para a arena eleitoral e o enfraquecimento do papel dos membros nesse e em outros campos da atividade partidária; a cartelização do aparato estatal que teria crescente peso como financiador das atividades partidárias em detrimento da militância; e o surgimento de novos partidos com caráter empresarial para tentar penetrar nos sistemas partidários cartelizados. À exceção do último, os outros modelos seriam desdobramentos dos “partidos de massas”. Indo numa direção diferente, o trabalho de Gunther e Diamond (2003) é interessante, porque combina a crítica histórica ao reconhecimento de que se deve superar a inspiração europeia ocidental da literatura: “quase todas as tipologias de partidos políticos existentes derivaram de estudos de partidos da Europa Ocidental durante o último século e meio. Dessa forma, alguns de seus achados mais marcantes são produtos desse particular contexto geográfico e temporal”

Vitorias na crise.indd 49

10/17/11 12:55 PM

50 / Vitórias na crise

(Gunther, Diamond, 2003, p. 168). Não restam dúvidas de que um modelo que apresenta quinze formas de partidos – baseado em questões programáticas, organizativas e estratégico/comportamentais – pode frustrar os estudiosos adeptos dos modelos teóricos parcimoniosos e merecer questionamentos acerca de sua utilidade, já que poderia se assemelhar mais a uma descrição desprovida de critérios analíticos. No entanto, deve-se reconhecer a crescente complexidade das manifestações partidárias e a necessidade de modelos expandidos para abarcar essa realidade. Modelos como este que, para além dos tipos “de quadros”, “de massas” e suas variantes ou substitutos, incluam partidos “étnicos”, “movimentistas” e de “esquerda libertária”. No Capítulo 2, retomo essa discussão em torno das tipologias de partidos, e aponto como os principais partidos de esquerda contemporâneos da América Latina poderiam ser analisados com base no modelo proposto por Gunther e Diamond. Por ora, deve-se destacar apenas que definições mais adaptáveis à realidade latino-americana, contemporâneas e fluidas, como as de Abal Medina e Gunther e Diamond, são importantes para este trabalho por três motivos: algumas formulações desse campo de estudos nunca puderam dizer muito sobre a realidade latino-americana; analiso partidos de esquerda que assumiram formas organizacionais que diferem tanto do modelo clássico “de massas” quanto do modelo “leninista” adotado pelas organizações comunistas; e, finalmente, trato muitas vezes de formas menos rígidas como frentes partidárias e “partidos-movimento”. Além disso, tais definições, por levarem em conta fatores e motivações outras além das (óbvias) eleitorais, também são mais adaptadas ao estudo de partidos de esquerda. Vistos por boa parte da literatura especializada de tradição liberal como máquinas maximizadoras de votos como qualquer partido, os partidos aqui analisados possuem na minha visão características peculiares, que obrigam a levar em conta fatores diversos para sua melhor compreensão. A começar pelo peso das bases, das tradições e de suas motivações ideológicas, que os levam a operar muitas vezes por lógicas e estratégias distintas daquelas motivadas pela maximização de votos. Uma questão muito próxima da definição de um partido e de suas diferentes tipologias é a que gira em torno de suas motivações. A luta pela maximização de votos, e consequentemente a função governativa dos partidos (Thies, 2000), foi crescentemente vista como o fator determinante, ou como o único aspecto a ser considerado (posição

Vitorias na crise.indd 50

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 51

“clássica” de Downs). Tal posição se fortaleceu na medida em que os partidos foram perdendo, nas últimas décadas, parte de seu papel representativo e de integração social (Scarrow, Webb, Farrell, 2000). Na longa discussão presente na literatura entre (no limite) partidos como máquinas eleitorais maximizadoras de votos ou partidos baseados em princípios, a primeira formulação se tornou hegemônica – como transposição da teoria da “escolha racional” aos partidos, vistos como entes unitários, sempre dispostos e preparados para fazerem opções racionais, e agirem de forma a maximizá-las. Considero tal visão em certo sentido exagerada e simplista, pois ela não explica a razão dos “partidos tão frequentemente adotarem cursos de ação previsivelmente destinados a penalizá-los eleitoralmente, ou ao menos atuarem em direções que não vão lhes dar ganhos eleitorais” (Panebianco, 1988, pp. 5-6). Neste sentido, Boix (1998) faz uma defesa do peso das ideologias, ao afirmar que os partidos “estruturam interesses em torno de princípios ideológicos amplos e de estratégias econômicas específicas” (p. 218). Assim, os “partidos devem ser também definidos pelos seus apelos programáticos” (p. 227). É importante destacar este ponto, especialmente porque procuro elementos analíticos úteis para a compreensão das esquerdas latino-americanas. Fatores como a lógica eleitoral e os interesses não podem ser utilizados solitariamente para compreender organizações políticas (especialmente de esquerda), estruturadas originalmente em torno de movimentos da sociedade civil e de ideologias mais ou menos definidas. Por mais que a institucionalização, a “profissionalização” de tais organizações e a possibilidade de disputar o poder possa torná-las, em grande medida, “eleitoralistas”, é evidente que as distintas lógicas internas, as relações com a sociedade civil, os comportamentos, as tradições ou as limitações institucionais permanecem agindo no sentido de tornarem a realidade mais complexa. Nesse sentido, é interessante considerar o trabalho de Kitschelt (1989). Vale reproduzir parte de suas observações: Porque ativistas defendem objetivos políticos e estratégias eleitorais, partidos não são inevitavelmente organizações baseadas no “mercado eleitoral” (...), com a maximização de votos e cargos como um padrão fixo de sucesso. Espera-se que membros ativos considerem vários objetivos e estratégias potenciais e escolham entre elas à luz de diversas preferências e crenças cognitivas. (...) Diversas relações com outras instituições políticas contam para uma diversidade de metas,

Vitorias na crise.indd 51

10/17/11 12:55 PM

52 / Vitórias na crise desconsiderada pela visão eleitoralista dos partidos políticos. A visão eleitoralista ignora o fato de que em muitas democracias os partidos são mais que meras máquinas eleitorais (Kitschelt, 1989, pp. 46-47).

Kitschelt compreende a agência partidária atuando num contínuo em que um polo representa uma motivação puramente ideológica, e outro uma ação puramente eleitoral. Nenhum dos polos pode se concretizar na realidade, o que leva o autor a considerar sempre presente, em alguma medida, o peso das ideologias e das crenças sobre a atividade partidária – em discordância com a corrente hegemônica da literatura especializada. Ele define três “tipos ideais” de militantes (e dirigentes): “ideológicos”, “lobistas” e “pragmáticos”. Os primeiros estariam interessados nos objetivos manifestos e gerais da organização; os segundos, nos objetivos relativos a grupos específicos; e os terceiros, na conquista de votos e cargos. A correlação e as possíveis alianças entre os grupos dependeriam de fatores como a mobilização dos setores sociais com os quais o partido se relaciona; a abertura do sistema político a suas políticas; e seu papel mais ou menos competitivo no sistema partidário. É a correlação de forças dinâmica entre esses grupos, influenciada por fatores diversos, que explicaria a movimentação do partido no contínuo entre motivações ideológicas e eleitorais. Parece interessante analisar a lógica interna de um partido a partir dos grupos “ideológicos”, “lobistas” e “pragmáticos” propostos por Kitschelt. Trata-se de um modelo que admite mudanças diacrônicas, que não se restringe ao estudo das elites, e que acima de tudo chama a atenção para o peso da tradição, da cultura, dos discursos e das crenças. Outro conceito a ser discutido é o de “esquerdas” (aqui sempre no plural, devido à sua considerável polissemia) que, para muitos, parece ter perdido o seu significado nos últimos anos. Naturalmente reconheço a atualidade da definição. Quando utilizo o termo, tenho em mente a distinção de Bobbio, que defende que o elemento que melhor caracteriza as doutrinas e os movimentos que se chamam de “esquerda”, e como tais têm sido reconhecidos, é o igualitarismo, (...) não como a utopia de uma sociedade em que todos são iguais em tudo, mas como tendência, de um lado, a exaltar mais o que faz os homens iguais do que o que os faz desiguais, e de outro, em termos práticos, a favorecer as políticas que objetivam tornar mais iguais os desiguais (Bobbio, 1995, p. 110)14.

Vitorias na crise.indd 52

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 53

Bobbio, atendo-se apenas à díade igualdade/desigualdade, na qual os de esquerda valorizam a primeira e os de direita a segunda, é absolutamente sintético e, seguindo sua definição, todas as forças políticas aqui estudadas podem ser consideradas de esquerda. Quanto à díade liberdade/autoridade, ela seria transversal às duas correntes, comportando a existência de esquerdistas libertários e autoritários (que ele associa à centro-esquerda e à extrema-esquerda) e direitistas libertários e autoritários (centro-direita e extrema-direita). Essas distinções serão úteis mais adiante. Por ora, para além dos conceitos definitivos, é importante reconhecer também que os atores e organizações analisadas se posicionam no que se convencionou considerar a “esquerda” dos sistemas partidários nos quais atuam, e assim são vistos tanto pelos seus adversários quanto pelos especialistas que os estudam (Alcántara, 2004). Por outro lado, reconheço que a distinção esquerda/direita nunca foi suficiente para exprimir em toda a complexidade o espectro político, processo que se acentuou nas últimas décadas com o fortalecimento das “questões transversais” apontadas por Giddens (1996), como ecologia e identidades raciais, sexuais, étnicas, etc., que por vezes (mas nem sempre) perpassam a definição de “esquerda” e “direita”. O que não significa afirmar que ela está ultrapassada – e esta nem é a intenção de Giddens. Este autor inclusive aprofunda o argumento de Bobbio, concordando que a ideia de igualdade ou justiça social é básica para a perspectiva da esquerda. A definição de Bobbio, no entanto, necessita de algum refinamento. Os da esquerda não somente buscam justiça social, mas também acreditam que o governo deve desempenhar um papel-chave na promoção dessa meta. Em vez de falar de justiça social como tal, é mais preciso dizer que ser de esquerda é acreditar numa política de emancipação. A igualdade é importante, sobretudo, por ser relevante para as oportunidades de vida, o bem-estar e a autoestima das pessoas (Giddens, 1999, p. 51).

O peso dado por Giddens ao papel do governo – em certo sentido ao “estatismo”15 – como valor secundário da identidade de esquerda (na medida em que seria um meio para atingir seu fim igualitário) deve ser levado em conta depois de todas as transformações vivenciadas pelas esquerdas? Mais concretamente, até que ponto o estatismo segue sendo um valor para as esquerdas? Sem dar respostas definitivas

Vitorias na crise.indd 53

10/17/11 12:55 PM

54 / Vitórias na crise

ao tema, será possível observar mais adiante o que as esquerdas latinoamericanas podem dizer a respeito. Para além do núcleo identitário de esquerda, as “questões transversais” propostas por Giddens são caras às esquerdas aqui analisadas. Deve-se levar em conta a “crise” da distinção esquerda/direita, até porque ela afetou os atores estudados. Mas ao mesmo tempo deve-se reconhecer a atualidade da definição, tão importante para os próprios atores. Este duplo movimento será fundamental para compreender trajetórias de esquerda desenvolvidas no acidentado contexto descrito. Por fim, outro conceito central para meus interesses é o de “democracia”, e aqui começo com uma definição mais “formal”, de democracia enquanto regime político. Deve-se reconhecer que as esquerdas muitas vezes se declararam democráticas, mas dando ao termo uma conotação eminentemente “substantiva” e raramente “representativa” e “formal” – quando elas não abraçaram, no mais das vezes, a defesa de diversas formas de ditadura do proletariado ou do partido. Se o que pretendo é compreender a trajetória de organizações de esquerda na democracia – o que implica a progressiva aceitação das “regras do jogo”, – e se uma das novidades destas esquerdas é justamente esta, faz-se necessário analisar antes de tudo suas relações com a democracia “representativa”. Parto então de definições mais “formais” de democracia, que são as comumente propostas pela literatura especializada desde Schumpeter, não apenas hegemonicamente, mas quase univocamente, transferindo o conceito de democracia de “valor” a “técnica” ou “procedimento” (Vacca, 2009). Recorro mais uma vez a Bobbio, que valoriza o aspecto formal ao definir a “democracia dos modernos” como “um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (Bobbio, 2004, p. 22). De maneira geral, para o autor a democracia pode ser definida como o governo dos muitos com respeito aos poucos, ou dos mais com respeito aos menos, ou da maioria com respeito à minoria ou a um grupo restrito de pessoas (ou mesmo de um só), (...) o conceito de democracia é, na tradição dos antigos que chega ininterruptamente até nós, extremamente simples e constante (Bobbio, 2000, p. 138).

A noção “procedimental” aventada por Bobbio poderia ser aprofundada se associada à de liberdade(s), retomando a distinção do

Vitorias na crise.indd 54

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 55

próprio autor entre esquerda libertária (democrática) e esquerda autoritária. Num caminho mais ligeiramente mais “institucional”, Dahl aponta oito características fundamentais para a democratização de uma sociedade: 1. Liberdade de formar e aderir a organizações; 2. Liberdade de expressão; 3. Direito de voto; 4. Elegibilidade para cargos públicos; 5. Direito de líderes políticos disputarem apoio (...); 6. Fontes alternativas de informação; 7. Eleições livres e idôneas; 8. Instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência (Dahl, 1997, p. 27).

Nessa visão, a democracia seria basicamente um sistema de instituições políticas que garantem a eleição de representantes pela maioria dos cidadãos, enquanto os direitos individuais das minorias são respeitados. E no qual eventualmente se estabelecem mecanismos para o controle dos representantes pelos representados entre uma eleição e outra, como é proposto em sua versão mais “cidadã”. Essas são basicamente as formulações da democracia liberal, a concepção mais aceita pela literatura especializada16. Nesse sentido, a “democracia é definida em termos de sua regulação sistêmica e normativa da competição pelo poder. (...) Estudos sobre representação enfatizam o aspecto da estrutura formal do sistema eleitoral, esperando que a representação por partidos expresse o pluralismo social” (Roniger, 2005, p. 12). Pode-se ir um pouco mais além dos “procedimentos”, observando noções de democracia defendidas pelas esquerdas aqui estudadas, que até certo ponto propõem uma síntese (ou no mais das vezes uma contraposição pouco dialética) entre a democracia representativa e seu “aprofundamento”. Hoje são numerosas, na América Latina e alhures, as tentativas de se buscar tal renovação da democracia representativa – na maioria realizadas pela “nova esquerda”, à qual podem ser associadas as forças políticas aqui estudadas, propondo uma “ampliação do conceito de política mediante a participação cidadã e a deliberação nos espaços públicos” (Dagnino, Olvera, Panfichi, 2006, p. 17). Por vezes essas tentativas vão mais longe, passando da descentralização e do incremento da participação e do controle dos representantes pelos representados para a defesa de mecanismos de democracia direta e a valorização de diversas modalidades de subjetividades coletivas.

Vitorias na crise.indd 55

10/17/11 12:55 PM

56 / Vitórias na crise

1.4 – Questões e hipóteses Há duas questões a serem respondidas nesta obra. A primeira será abordada a partir das semelhanças entre os casos estudados, que os diferenciam tanto da tradição das esquerdas quanto de seus pares contemporâneos que não lograram assumir posições de maior destaque. A segunda será respondida a partir das diferenças entre os casos estudados, dependendo do grau e da forma como elas se manifestam. A primeira questão parte do ineditismo do processo estudado, tomado o contexto latino-americano. Nunca tantas forças de esquerda conseguiram ocupar, através de eleições livres, espaços significativos de governo, e num espaço relativamente curto de tempo. O que explica a chegada de tantas forças de esquerda ao poder, num contexto de rápidas transformações, em grande medida desfavoráveis a elas? Minha hipótese é que setores importantes das esquerdas reconheceram tais transformações e conseguiram se adaptar a elas, sobreviver e crescer. Ou seja, tornaram-se esquerdas “viáveis” democraticamente e, na sequência, “vitoriosas”. Trata-se de um processo muito mais complexo que uma mera expansão ou caminhada ao centro do espectro partidário: tal dimensão, que esteve presente, explica pouco acerca da estratégia vitoriosa desses partidos. Trata-se, de maneira geral, de um longo processo de adaptação à modernidade latino-americana, e à sua etapa atual em particular – na medida em que as referidas transformações regionais dizem respeito a ambos os níveis. Isso será testado lançando-se mão de características comuns às distintas experiências estudadas, que teriam permitido a elas se adaptarem às novas configurações da modernidade latino-americana, tomadas aqui como pressupostos. Ao mesmo tempo, são características comuns que as levaram a se diferenciar tanto de antigas experiências de esquerda quanto de outras experiências atuais não exitosas – e o exercício com casos exemplares tradicionais ou atuais vai permear toda a obra. Tais pontos de contato entre essas esquerdas serão mostrados a partir de quatro temas: organização, ideologia, relação com a democracia e relação com o neoliberalismo. A partir desse exercício, espera-se notar também divergências entre os diferentes casos. Pode-se argumentar que alguns chegaram ao poder de forma menos contestatória, para isso tendo que aprofundar

Vitorias na crise.indd 56

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 57

seu processo adaptativo. Outros, mesmo não tendo completado tal processo, encontraram um quadro mais favorável quando o neoliberalismo ou seus sistemas partidários começaram a dar sinais de esgotamento. Daí se desdobra a segunda questão. Há diferenças suficientes entre os distintos casos nacionais para sustentar a existência de dois ou mais “tipos” de esquerdas “vitoriosas” na América Latina? Minha hipótese é que há, e isso deverá ser testado retomando os quatro temas discutidos anteriormente, para mostrar se, para além das semelhanças, haveria diferenças significativas. Sendo confirmada tal hipótese, deve-se propor uma caracterização das distintas formas nas quais as esquerdas latino-americanas se expressam. Tratar-se-ia antes de tudo de um exercício, no qual o mais importante a ser destacado, para além de qualquer tipologia, é a defesa de uma análise sistemática, complexa e dinâmica das esquerdas latino-americanas contemporâneas. Isso nem sempre caracteriza o crescentemente profícuo debate em torno do tema realizado pela literatura especializada e pela opinião pública nos últimos anos – debate que será analisado detidamente no Capítulo 7.

1.5 – Metodologia e fontes Para concluir este capítulo, apresento uma discussão sumária acerca da metodologia comparativa escolhida, e descrevo as fontes utilizadas. A opção metodológica central deste trabalho é a análise comparativa. Esta escolha permite ampliar o olhar do pesquisador, chamando sua atenção para ocorrências que poderiam ser naturalizadas num estudo de caso nacional, bem como permitindo a observação dos movimentos comuns e das diferenças. É evidente que tal opção deixa de fora questões que o estudo de caso evidenciaria com maior propriedade. No entanto, ela é bastante útil para compreender, a partir de uma nova ótica, a realidade estudada de uma maneira diversa, revelando novos problemas e solucionando mais eficazmente outros. Para Fausto e Devoto, seguindo as formulações de Bloch, as vantagens do método são maiores que suas desvantagens. Os autores afirmam que ele permite perceber influências mútuas e buscar explicações para os diversos problemas para além das causas internas; identificar as falsas causas locais

Vitorias na crise.indd 57

10/17/11 12:55 PM

58 / Vitórias na crise e diferenciar as verdadeiras das gerais; encontrar vínculos antigos e perduráveis entre as sociedades; fornecer novas pistas para a investigação (Fausto, Devoto, 2004, p. 14)17.

Destacam ainda a necessidade de um mínimo de relação entre os objetos de estudo, temporal e espacial, ou seja, é preciso comparar sociedades próximas no tempo e no espaço, que exerçam influência mútua. A análise comparativa deve se prestar tanto para evidenciar diferenças como para confirmar semelhanças. Considero que as experiências vividas pelas forças políticas selecionadas reúnem as condições para uma comparação profícua. Elas capturam a pluralidade de fenômenos de esquerda surgidos na região nos últimos anos. A dimensão diacrônica da pesquisa se presta a analisar o fenômeno com maior fôlego, e a demonstrar que em diversos aspectos, processos de adaptação semelhantes foram vivenciados pelas diversas forças políticas ao longo do tempo. Ragin (1994) analisa o uso de “métodos comparativos para examinar similaridades e diferenças entre um número moderado de casos”. Moderado porque se busca alguma familiaridade entre os casos estudados, para que seja possível analisar como seus diferentes aspectos se relacionam – assim, o conhecimento acerca dos casos estudados é considerado uma importante meta da pesquisa comparativa. Quanto ao desenvolvimento do método, o autor começa pela seleção de casos de alguma forma relacionados. Para ele, o pesquisador deve usar quadros analíticos para ajudá-lo a ver sentido nas categorias analisadas, enquanto as evidências levam à revisão daqueles quadros analíticos iniciais. Ragin privilegia a busca da diversidade através do método comparativo, no entanto, em pesquisas que enfatizam a diversidade, o foco é posto nas similaridades entre uma categoria de casos com os mesmos resultados (…), o que (1) distingue aquela categoria de outras categorias (...) e (2) explica os resultados manifestados por aquela categoria. Em outras palavras, o estudo da diversidade é o estudo de padrões de similaridades e diferenças entre um dado grupo de casos (Ragin, 1994, p. 106).

Nesta obra, enfoco num primeiro momento as similaridades entre os casos, distinguindo-os de outros casos e expondo os resultados destas similaridades. Num segundo momento, destaco as diferenças (que são o foco principal no método proposto por Ragin, mas que

Vitorias na crise.indd 58

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 59

aqui recebem a mesma atenção dada às similaridades), tentando delimitá-las, classificá-las e, até certo ponto, entender suas razões. Quanto às fontes utilizadas, a intenção foi sempre a de realizar uma pesquisa qualitativa, calcada na análise de fontes escritas primárias e secundárias. Isso implicou, de um lado, em inúmeras visitas a arquivos, às sedes das agremiações, a fundações e bibliotecas para a análise das fontes primárias dos partidos considerados “centrais” na análise e, de outro, num levantamento e na leitura sistemática da literatura relacionada de diversas formas ao tema, tratada aqui como fonte secundária. Para além das fontes, contatei diversos militantes e especialistas nos diferentes países visitados, na qualidade de informantes qualificados, com os quais pude recolher informações valiosas e parte do material utilizado na elaboração desse trabalho. Para concluir este capítulo e seguir para a exposição dos argumentos, apresento as fontes primárias utilizadas. Abal Medina define da seguinte forma os diferentes níveis de envolvimento dos atores sociais que se relacionam com um partido: 1. Dirigentes/líderes; 2. Militantes/participantes/ativistas; 3. Filiados/ inscritos; 4. Simpatizantes/votantes fiéis; 5. Eleitores. Então, para um estudo das estratégias partidárias de coalizão ou de discurso eleitoral se pode fixar como limite os níveis 1 e 2. Se o que se pretende é analisar as transformações organizativas dos partidos, seria útil incluir o nível 3. Para um estudo que queira explicar os efeitos que têm sobre o partido, no longo prazo, determinadas políticas implantadas, o certo seria abarcar também o nível 4. Finalmente, se o objetivo é analisar o potencial eleitoral de um partido, o que os eleitores pensam dele se converte em um dado relevante para a pesquisa (Abal Medina, 2002, p. 40).

Para a abordagem escolhida, recorri aos três primeiros níveis, com incursões ao quarto. Realizei uma análise de conteúdo de programas, estatutos, material eleitoral, relatos e comentários de debates internos, alguns documentos de frações e grupos internos, e registros publicados na imprensa. Consultei os documentos nacionais dos partidos (em especial programas, resoluções congressuais, estatutos e propostas de governo em eleições presidenciais) e das coligações realizadas por eles, o que permitiu acompanhar suas trajetórias, posições oficiais e transformações18. Pesquisei periódicos de caráter nacional dos partidos (revistas, jornais, boletins eletrônicos), o que permitiu acessar análises e debates realizados por integrantes, simpatizantes

Vitorias na crise.indd 59

10/17/11 12:55 PM

60 / Vitórias na crise

e eleitores das organizações. Li obras biográficas e de debates publicadas por dirigentes e/ou intelectuais dos partidos, bem como por fundações19 e núcleos de pesquisa ligados oficial ou extraoficialmente a eles, o que colaborou especialmente para a melhor compreensão de seus debates, disputas, divisões e transformações. Por fim, levantei material da imprensa escrita acerca dos partidos, mas estes foram consultados secundariamente, para suprir lacunas ou oferecer mais informações sobre períodos nos quais não se pôde localizar um volume satisfatório de fontes de outra natureza20. * Agora que foi apresentado um “plano de navegação”, já é possível seguir adiante. Nos capítulos 2, 3, 4 e 5, centro o argumento nos partidos estudados empiricamente – abrindo espaço, quando necessário, para outros partidos, movimentos e lideranças das esquerdas latino-americanas. Baseio a argumentação em fontes primárias e na literatura especializada. Como estes quatro capítulos são dedicados primordialmente a destacar características comuns entre as esquerdas que chegaram ao poder na região, está subentendido que tais características comuns a elas são incomuns na tradição das esquerdas, assim como em boa parte das organizações de esquerda que ainda subsistem nos dias de hoje. Assim, para além da comparação explícita entre os partidos estudados, há um exercício comparativo implícito entre eles, suas tradições e seus pares. E, levando em conta algumas transformações diacrônicas observadas, cabe compará-las com seu próprio passado. Após esses quatro capítulos, procura-se demonstrar no Capítulo 6 como os argumentos desenvolvidos poderiam ser expandidos a outros casos nacionais, estes analisados, por limitações físicas, apenas a partir de literatura secundária. Ao longo do livro, por outro lado, começo a detectar secundariamente as diferenças entre os casos. Assim, finalmente no Capítulo 7 centro a análise nestas diferenças, procurando explorar como elas se manifestam, bem como o que poderia explicá-las.

Vitorias na crise.indd 60

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 61

Notas

1

A reflexividade consiste no constante exame e reforma das práticas sociais com base na informação sempre renovada sobre elas. A separação de espaço e tempo advém do surgimento de meios para o zoneamento preciso das duas dimensões, levando ao aumento de seu distanciamento. Daí deriva em boa parte o desencaixe, que consiste no deslocamento das relações sociais de contextos locais para dimensões espaço-temporais até mesmo globais. Domingues complementa a noção de desencaixe com a de “reencaixe”, destacando os processos de reestruturação de práticas sociais, lado a lado com a desestruturação de relações sociais tradicionais.

2

Este “novo espírito do capitalismo” – necessário à sua justificação – estaria baseado idealmente no que os autores chamam a “cidade por projetos”. Esta nova “cidade” tem exatamente as redes (idealizadas) como base, cujo desenvolvimento concreto foi facilitado em boa parte pelo desenvolvimento das novas tecnologias informáticas que propiciaram o contato à distância em tempo real, e que podem ser compreendidas como relações menos hierárquicas, mais fluidas e não limitadas por fronteiras pré-estabelecidas. No cerne de seu funcionamento estariam os “projetos” (que justificam a existência de uma rede), reunindo pessoas às vezes de origens díspares durante um tempo relativamente curto – mas permitindo a manutenção de contatos e conexões. Desta nova “cidade” derivaria um novo tipo ideal adaptável a ela, bem como formas de funcionamento e de comportamento justificáveis segundo seus parâmetros. O tipo ideal agora seria ativo, inovador, arrojado, adaptado ao risco e fluidez da nova realidade, e detentor de uma extensa rede de contatos, em geral distantes.

3

Corroboro algumas críticas como a de que “os ‘transitólogos’, por focalizarem processos de curta duração, costumam adotar uma visão muito minimalista da democracia” (Hermet, 2001, pp. 14-15). Quanto à ideia de consolidação, vale lembrar que “as democracias nunca estão acabadas e sempre são, por definição, aperfeiçoáveis” (D’Araujo, 2000, p. 218).

4

Enquanto concluo estas páginas, a Concertação disputa mais uma eleição presidencial, que será encerrada no princípio de 2010. Após o desprendimento de setores minoritários em todos os partidos que a compõem, formando novas organizações à sua esquerda e à sua direita, a aliança corre riscos reais de perder uma eleição nacional pela primeira vez.

5

A dicotomia entre “renovados” versus “ortodoxos”, como toda dicotomia, é uma simplificação.

Vitorias na crise.indd 61

10/17/11 12:55 PM

62 / Vitórias na crise 6

Os nomes dizem respeito aos secretários gerais das organizações – daí os distintos nomes assumidos pelo primeiro grupo ao longo da década de 1980.

7

A chegada ao poder dos socialistas se explica em grande parte por sua participação na Concertação e mais especificamente nesta intracoalizão. Em especial, explica-se pelo apoio do PPD que, inicialmente criado pelos socialistas “renovados” para participar das eleições de 1988 e 1989 (nas quais eles não podiam competir com identidade própria), acabou ganhando uma sobrevida, calcado numa identidade fluida e “pós-social”, localizada entre um progressismo e um liberalismo social que apelam à cidadania como um todo. O PPD chegou a receber em diversas eleições mais votos que o PSCh – que manteve um caudal de pouco mais de 10% dos sufrágios até bem recentemente, quando cresceu ligeiramente, enquanto o PPD perdeu parte de seu apoio.

8

Mais informações podem ser obtidas em Silva (2007).

9

Este ponto tem sido bastante explorado pela literatura especializada. Defende-se frequentemente que o Uruguai é um país “partidocêntrico” e “Estadocêntrico”. As identidades colorada e blanca estariam na gênese da nacionalidade (além do Estado, em especial a partir do “battlismo” e sua construção de um Estado social “à uruguaia”). Estes partidos são analisados muitas vezes como “famílias políticas”, com uma poderosa reprodução identitária, passada de geração a geração dentro de cada núcleo familiar. O que Yaffé (2001, 2005) chama de “tradicionalização” da FA passa por duas transformações: pela sua aproximação com ideias dos partidos tradicionais, e também pela construção/invenção de uma tradição identitária, familiar, afetiva. Destaca-se a expansão de votos calcada na transmissão do frenteamplismo entre gerações de um mesmo núcleo familiar, com a chegada à fase adulta de uma juventude identificada com esta nova identidade.

10 Mais

informações podem ser obtidas em Silva (2009).

11 O

movimento katarista, basicamente Aimara altiplânico e surgido no final dos anos 1960, foi fundamental no processo de retomada e “reinvenção” da identidade indígena (enfraquecendo a identidade camponesa e o ideal da mestiçagem), e de autonomização dos movimentos camponeses e originários em relação aos sindicatos tradicionais. Teve papel importante no rompimento do “pacto militar-camponês” e na formação da CSUTCB.

12 A

Guerra da Água foi uma mobilização contrária à privatização da água no departamento de Cochabamba, reunindo sindicatos urbanos, rurais, cocaleiros e boa parte da cidadania do departamento. As mobilizações vitoriosas deixaram um legado de relações e coordenação entre diversos movimentos sociais e políticos, de experiências em torno da realização de assembleias e “cabildos” abertos e, principalmente, simbolizaram nacionalmente o início da contestação da hegemonia neoliberal. Neste ano, recrudesceram as manifestações e cortes de estrada no Altiplano, atingindo níveis crescentes ao longo dos anos seguintes.

Vitorias na crise.indd 62

10/17/11 12:55 PM

Esquerdas latino-americanas atuais: Como estudá-las? / 63 13 Considero

que este tipo, aqui tratado também por “centralista democrático”, assumia, em democracia, diversas características do “partido de massas” – o que faz com que Kirchheimer (1966) classifique a ambos como partidos de “integração de massas”. Nessa obra, considero modelos clássicos de esquerda os partidos “social-democratas” e “centralistas democráticos” (ou “leninistas”). Os primeiros costumavam ser “de massas” (ou de “integração de massas”), e muitas vezes os segundos também.

14 Vacca

(2009) critica a noção de Bobbio, acusando-a de ahistórica. É evidente que esquerda e direita são noções históricas, que mudam de significado de acordo com o tempo e o lugar. No entanto, se partirmos para um “historicismo” absoluto deste e de outros conceitos, não teremos nem ao menos pontos de partida razoáveis para iniciar o debate.

15 Segundo

Panebianco (com evidente exagero) o estatismo era o definidor da identidade de esquerda: “maior intervenção estatal significava políticas ‘socialistas’, e menor intervenção políticas ‘capitalistas’” (1988, p. 270). Destaco a construção da oração no passado, pois para o autor o unidimensionalismo esquerda/direita teria que dividir espaço com novas dimensões, pois o advento do que ele classifica de “pós-industrialismo” ou “pós-materialismo” suscitaria novas questões – basicamente as definidas por Giddens mais tarde como “transversais”.

16 Trata-se

da visão “minimalista” de democracia, na qual a literatura especializada na transição e consolidação das democracias da região baseou suas análises. É a mesma na qual, encerrados tais processos, a crescente literatura acerca da “qualidade da democracia” se baseia para definir atualmente quais são as “melhores” e as “piores” democracias da região (por exemplo, conferir Levine, Molina, 2007).

17 Afirma

também que, apesar de suas vantagens, o estudo comparado apresenta algumas desvantagens, a saber, a dificuldade em “distinguir os fenômenos que podiam ser explicados autonomamente dos que deviam ser entendidos em conjunto com os da outra sociedade estudada; ou de dominar com a mesma profundidade os dois ou mais campos pesquisados, ou, ainda, de traduzir os diferentes códigos e vocabulários empregados pelos (...) [estudiosos] de cada lugar” (Fausto, Devoto, 2004, p. 14).

18 Foram

consultados arquivos dos partidos, como os da Fundação Perseu Abramo (PT) em São Paulo e da Biblioteca Clodomiro Almeyda (PSCh) em Santiago. Foram visitadas diversas sedes nacionais e locais dos partidos, para recolher material e travar contatos. Além disso, arquivos independentes foram visitados, como o Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas en la Argentina (CeDInCI) em Buenos Aires e o Centro de Documentación e Información Bolivia (CEDIB) em Cochabamba. Outra forma de acessar esse material foi recorrendo a compilações impressas de documentos e aos sítios eletrônicos das organizações. Por fim, para reunir fontes diversas foram consultadas as bibliotecas do Congresso do Uruguai (Montevidéu) e da Bolívia (La Paz),

Vitorias na crise.indd 63

10/17/11 12:55 PM

64 / Vitórias na crise Nacional do Chile (Santiago), do Brasil (Rio de Janeiro) e do Uruguai (Montevidéu), da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO) e do Departamento de Ciencia Política da Universidad de Chile em Santiago, do Posgrado en Ciencias del Desarrollo (CIDES), do Centro de Investigación y Promoción del Campesinado (CIPCA) e da Fundación Boliviana para la Democracia Multipartidaria (fBDM), as três últimas em La Paz. 19 Chamo

atenção para o papel exercido pelas instituições de pesquisa e fundações ligadas oficialmente ou extraoficialmente aos partidos estudados (usualmente chamadas think tanks). Estes organismos servem geralmente de núcleo à intelectualidade que gravita em torno dos partidos, e cumprem um papel importante em seus debates e transformações ideológicas. No caso chileno, por exemplo, há o Instituto Igualdad, no brasileiro, a supracitada Fundação Perseu Abramo e o Instituto da Cidadania e, no uruguaio, a Fundación Liber Seregni.

20 Esta

necessidade foi especialmente sentida nos casos uruguaio e boliviano, e diversos periódicos da grande imprensa foram consultados respectivamente na Biblioteca Nacional do Uruguai e nos arquivos do CEDIB.

Vitorias na crise.indd 64

10/17/11 12:55 PM

Organização / 65

capítulo

2

Organização 2.1 – Apresentação

Este capítulo é dedicado a demonstrar que os partidos aqui estudados desenvolveram estruturas organizativas relativamente “fluidas” e “abertas”, apresentando características movimentistas, fracionistas e mesmo frentistas – em parte, estruturadas como redes (Castells, 1999). Ao mesmo tempo, procuram adequar suas estruturas à absorção de novos e amplos grupos sociais, a novas formas – igualmente fluidas e abertas – de militância, a novas relações com a sociedade – aí incluídas novos tipos de liderança. Estas seriam as principais semelhanças entre as esquerdas latino-americanas que chegaram ao poder, quanto ao terreno organizativo. Nesse sentido, elas seriam organizações de novo tipo em comparação às formas organizativas apresentadas tradicionalmente pelos partidos de esquerda (Gunther, Diamond, 2003). De um lado a forma “leninista”, que propõe1 uma organização de militantes (muitas vezes) profissionais, vanguardista, coesionada, disciplinada e vedada a pluralismos e divisões internas por calcar-se na unidade de ação e proposição públicas2 (Lênin, 1973), que encontrou suas maiores expressões nos partidos comunistas. De outro a forma “classista de massas”, organizada com base em núcleos por local de trabalho, com estruturas organizativas burocratizadas e ideologia definida, forte coesão e disciplina interna (Duverger, 1970), que teve suas expressões paradigmáticas nos partidos social-democratas europeus ocidentais. Ao lado dessas novidades, é comum (especialmente entre as lideranças, como seria de se esperar) que tais formas organizativas sejam consideradas “democráticas” em comparação com a tradição centralizadora e burocrática das esquerdas. Desde já, deixo claro um argumento subjacente: estes partidos não chegaram ao poder necessariamente por ser democráticos, mas por desenvolverem estruturas abertas e receptivas às transformações ocorridas na América Latina

Vitorias na crise.indd 65

10/17/11 12:55 PM

66 / Vitórias na crise

nas últimas décadas, adaptando-se às novas formas sociais em gestação na região. O capítulo se estrutura da seguinte maneira: primeiramente construo um argumento negativo. Ao apresentar as características básicas de cada estrutura partidária, suas formas de militância e liderança, e algumas transformações principais ao longo do tempo, tento demonstrar como elas diferem dos dois modelos “clássicos” supracitados. A partir desta exposição, espero demonstrar que essas esquerdas se assemelham entre si, diferem da tradição das esquerdas e de alguns de seus pares atuais, e são mais adequadas às suas sociedades contemporâneas. Na sequência, esperando ter demonstrado essas diferenças em relação ao passado, começo a desenvolver um argumento positivo. Estas organizações se afastaram de modelos antigos, se aproximaram de novos, ou apresentam formas próprias? Destaco então as diferenças entre elas, principalmente no terreno da institucionalização (introduzindo aqui o tema de suas modalidades de liderança e de militância). Por fim, a partir das diferenças organizativas e de graus e formas de institucionalização, bem como do debate da literatura acerca de funções e tipologias de partidos, apresento caracterizações que considero adequadas à compreensão das formas assumidas pelas esquerdas latino-americanas contemporâneas.

2.2 – Heterodoxias organizativas Os partidos mais importantes das esquerdas latino-americanas apresentam, legalmente e na prática, formas de organização heterodoxas em relação à tradição da qual se nutrem. Para começar a demonstrá-lo, nada melhor que abordar o partido mais longevo entre os aqui tratados, o Partido Socialista do Chile (PSCh), para observar como ele se reorganizou de uma forma distinta da sua tradição. No caminho, perceberemos que traços tradicionais de sua organização se mantiveram (adaptados). E que mesmo esses traços podem ter contribuído para sua longevidade e retorno ao poder. Um bom caminho é comparar dois estatutos3 desse partido, o imediatamente anterior ao golpe (de 1972) e o posterior à redemocratização (aprovado em 1994 após anos de debates e modificações). O primeiro organiza o partido nos moldes de qualquer partido leninista, tendência assumida pelos socialistas chilenos a partir de 1967. O segundo legaliza sua atual configuração pluralista. Em 1972, o

Vitorias na crise.indd 66

10/17/11 12:55 PM

Organização / 67

partido se pretendia uma organização de vanguarda, baseada no centralismo democrático, que permitia “a centralização do pensamento de seus membros para materializá-lo em uma ação comum, homogênea e eficaz” (PSCh, 1991). Para que o “postulante” pudesse integrar as fileiras socialistas, deveria ser testado durante seis meses, para só então ser aceito formalmente, após realizar um juramento4. Algo distinto da tolerância atual, que permite a qualquer cidadão filiar-se ao partido sem maiores restrições, e desde então expressar livremente seu pensamento sobre qualquer assunto, se manifestar publicamente a título pessoal de forma distinta às posições partidárias, ou, ainda, professar qualquer credo religioso ou concepção filosófica, desde que seja compatível com posições democráticas, humanistas, libertárias e igualitárias “que inspiram o socialismo” (PSCh, 1994). Nas palavras de Jorge Arrate, secretário geral e na sequência presidente do partido nos primeiros momentos de sua reorganização, tratava-se de um novo Partido Socialista que estava sendo construído, mas ao mesmo tempo este seguia “sendo o velho e querido Partido Socialista”. No entanto, entre a reprodução e a renovação, a segunda prevalecia: a principal novidade que nosso Partido exibe hoje é sua aceitação das diferenças internas como um fenômeno legítimo e enriquecedor da vida partidária. No passado aspiramos à uniformidade e ainda que a vida do Partido nos apresentasse sempre um arco de matizes, nunca quisemos aceitá-lo em sua plenitude (PSCh, 1990a).

No PSCh atual, são reconhecidas formas distintas de organização e atuação. Além dos tradicionais núcleos baseados no local de trabalho ou moradia, há núcleos temáticos, como os ecológicos, de direitos humanos ou do consumidor, culturais, de empresários e artistas – e são esses núcleos que parecem ter vida ativa na organização. Trata-se de um elemento de organização transversal, presente nesta e em outras organizações contemporâneas, que no caso em questão remete até certo ponto às tradicionais “brigadas” socialistas. Até 1965 (quando as tendências socialistas revolucionárias começaram a assumir maior peso), o partido mesclava distintas referências organizativas, inclusive as brigadas, baseadas então em atividades profissionais ou eleitorais, que funcionavam de maneira transversal aos núcleos legalmente instituídos (Ortiz, 2007). Mesmo durante o período leninista do partido, elas continuaram existindo na prática, e suas estruturas e atividades voltadas às eleições tinham um peso muito maior

Vitorias na crise.indd 67

10/17/11 12:55 PM

68 / Vitórias na crise

do que a ala “revolucionária” desejaria. Considero razoável propor que os atuais núcleos temáticos seriam de certa forma releituras da tradição das brigadas, que reapareceram inclusive nos estatutos do partido desde 2006. Pode-se considerar, então, que novidades organizativas introduzidas em sua nova fase são, em parte, releituras e reconhecimentos legais de elementos que sempre estiveram presentes na prática dos socialistas chilenos. Um misto de novidade e releitura também está presente na organização do partido por tendências. Grupos internos e correntes sempre se manifestaram entre os socialistas chilenos, desde sua fundação originada da unificação de diversos grupos, que tinham pouco em comum além de uma identidade de esquerda distinta do comunismo chileno. Mas nunca tal pluralismo se manifestou legal e organizadamente como agora. No processo de reorganização dos socialistas, as tendências (ou “correntes de opinião”, como são nomeadas legalmente) pareceram ser a única forma de reunir grupos de origens distintas no seio da mesma organização. Tal solução pode ter inclusive contribuído – além do sistema eleitoral chileno que exerce uma poderosa força centrípeta em seus partidos, e da progressiva desideologização dos socialistas – para a unidade desde 1989 de um partido que se notabilizou ao longo de sua história por suas divisões orgânicas5. Hoje parece inconcebível um PSCh sem suas disputas internas, muitas vezes fratricidas, entre tendências cada vez mais numerosas, pulverizadas e baseadas em identidades progressivamente distintas das existentes antes da reunificação. Nos primeiros anos de sua reorganização o poder foi disputado somente pela Nova Esquerda, integrada originalmente por membros da ala esquerda do Partido Socialista Almeyda (PS-Almeyda); pelo Terceirismo, composto de setores mais moderados daquele partido; e pelos “renovadores” da Megatendência, formada pelo Partido Socialista Núñez (PS-Núñez) e por lideranças oriundas do Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU). Progressivamente elas tiveram que dividir espaço com novas tendências “transversais”, como a Identidade Socialista (surgida em 1998) e, mais recentemente, a Grandes Alamedas, que reuniu setores das três principais correntes do partido. Nota-se com isso uma transversalidade de lideranças entre os grupos, e o surgimento de tendências que superam as divisões do passado (Ortiz, 2007) – enquanto as originalmente derivadas destas divisões vão igualmente se

Vitorias na crise.indd 68

10/17/11 12:55 PM

Organização / 69

afastando de antigas questões que as mobilizavam. É notável também a pulverização da disputa. Se nenhuma das tendências jamais obteve maiorias significativas – fato reforçado por certa rotatividade no poder, em especial entre a Megatendência e a Nova Esquerda –, agora nenhuma tem qualquer condição de dirigir o partido sem ter que realizar amplas alianças. Nos últimos anos o partido vem sendo liderado por uma coalizão das três principais tendências, encabeçada por Escalona, e a oposição é exercida pela tendência Grandes Alamedas. Para além de debater o que é novidade institucional (como a discriminação positiva por gênero e minorias étnicas), ou o que é um reconhecimento legal de tendências sempre presentes no seio do partido (agora exacerbadas e adaptadas às novas condições societárias), é inegável que o “novo” PSCh desenvolveu uma estrutura distinta de sua tradição. O partido sempre apresentou certa flexibilidade, fracionamento e abertura a inovações – o que explica em parte sua capacidade de sobrevivência e adaptação (Roberts, 1994). No entanto, tais tendências se radicalizaram ao longo da ditadura e se manifestaram em sua reunificação, com a estrutura atual acompanhando a crescente pluralidade, abertura e flexibilidade dos socialistas. Além do mais, tais tendências são reforçadas pelas relações dos socialistas (especialmente suas lideranças e atores de governo) com integrantes do Partido pela Democracia (PPD) e da Concertação como um todo. Por conta disso, formaram-se organismos externos às estruturas e à legalidade partidária que, em certos momentos, superam e diluem ainda mais as estruturas socialistas. Nas relações com o PPD, chegou a ser admitida a dupla militância nos primeiros anos de reorganização socialista, à qual se seguiu uma relação contraditória de coalizão e competição, mas com espaço para diversas atividades comuns. Isso também se deu com toda a Concertação, dando origem à transversalidade das lideranças da coalizão, traduzida em projetos, atividades, eventos, decisões e debates programáticos comuns, aí incluídos influentes institutos de pesquisa relativamente independentes que desenham políticas comuns aos distintos partidos da coalizão, como Chile XXI e Avance. De fato, há uma transversalidade na Concertação, em especial no nível das lideranças, que reduz a autonomia de seus integrantes e gera certo ambiente comum. Na prática – e em certa medida seguindo a legalidade estatutária –, tudo que foi dito leva a um partido até certo ponto pouco organizado e descentralizado, organizado em redes, e com uma projeção

Vitorias na crise.indd 69

10/17/11 12:55 PM

70 / Vitórias na crise

simbólica igualmente baseada em redes, gerando para si uma grande periferia partidária, bastante difusa. Articulou-se um sistema de redes que não são coordenadas nem controladas centralmente, operam como sociabilidade política nuclear, que substitui as velhas estruturas de militância. (…) sua forma real de funcionamento o aproxima do que podemos chamar “horizontalidade regulada”, quer dizer um sistema de ações e decisões que são muito horizontais, exceto naqueles temas que transformam tudo em hierarquias, como, por exemplo, a designação de candidatos ou de funcionários (Escobar Sepúlveda, 2008, pp. 21-22).

O principal ponto de contato entre o PSCh e o Partido dos Trabalhadores (PT) é a organização por tendências autônomas, dando a eles por vezes características “federativas”, que são traduzidas institucionalmente pelo método proporcional de composição das direções de ambos os partidos. Nada mais distante da lógica tradicional da composição de poder majoritária, especialmente leninista, segundo a qual o grupo vencedor ocupa todos os espaços de poder, enquanto os perdedores devem se submeter até o congresso seguinte. Por esse e outros motivos, muitas vezes o PT foi considerado também em seus aspectos organizativos por muitos de seus analistas e por sua própria coletividade6 um exemplo paradigmático de “novidade”, o que incluiria uma estrutura democrática e original. Vimos no capítulo anterior, e vamos constatar ao longo de toda a obra, que há certo exagero nestas formulações. Exagero que foi se ampliando com as metamorfoses do partido – também no que tange ao tema organizativo. No entanto, não é muito difícil demonstrar que o PT difere tanto da organização “leninista” quanto da organização “classista de massas”. Samuels afirma que o que difere o PT “da maioria dos outros partidos de esquerda é o alto grau de participação das bases e concomitantemente relativamente baixo grau de autonomia das lideranças em relação às bases” (2004a, p. 1001). O autor aponta um aumento nos níveis de burocratização e institucionalização petistas (classificados por ele como “médios”), mas destaca que suas instituições legalizam e tornam transparente o próprio controle das bases sobre a direção – ainda não cristalizada. O que se dá, entre outros fatores, pela pulverização e transparência da organização por tendências – elas mesmas institucionalizadas – ou seja, pelo reconhecimento legal do pluralismo petista.

Vitorias na crise.indd 70

10/17/11 12:55 PM

Organização / 71

Leal (2005) segue na mesma direção ao definir o arcabouço institucional do partido: defesa de um ideário consensualista (na medida em que prevê a participação ativa das minorias nos processos decisórios e na constituição das direções, via proporcionalidade), os corpos representativos devem ter relação especular com a base e os mandatos dever ser exercidos de forma imperativa, concebidos como partidários (p. 62).

Ele reconhece que há “grande espaço de participação para os filiados” (id.). No entanto, o autor observa que nos últimos tempos esse arcabouço vem se transformando no sentido de uma maior autonomização (e concentração de poder) da direção em relação às bases. Como vimos no capítulo anterior, Samuels (2004a) também destaca essa tendência, mas explica que houve, em primeiro lugar, uma moderação das bases sociais petistas que derivou no controle da direção pelos moderados. Só então a direção pôde iniciar um processo de autonomização, obtida através de mandatos expressos das bases7. Tal processo se deu notadamente a partir de 1995, quando a Articulação retomou o poder no partido. Esta tendência, a mais forte desde que foi formada em 1983, havia perdido a partir de 1991 (mas principalmente entre 1993 e 1995) o controle da direção para as “esquerdas” do partido, lideradas então principalmente pela Democracia Socialista (um tradicional grupo de orientação trotskista) e pela Articulação de Esquerda (dissidência da Articulação). Desde a retomada do controle, o esforço da Articulação foi notável no sentido de institucionalizar o partido e obter mandatos das bases para autonomizar campanhas eleitorais e financiamentos. A Articulação, tendo se fortalecido ao longo dos eventos partidários seguintes e tornando-se efetivamente hegemônica, acabou por reduzir – mas não de todo – a pulverização de poder no interior do partido. O caráter “movimentista” do PT (conferir o Capítulo 1) – uma reunião de distintos movimentos sociais, sindicatos e organizações socialistas – foi dando espaço a uma maior institucionalização, como foi dito. No entanto, esta continua sendo uma característica do partido, ainda que tenha se enfraquecido, enquanto suas instituições propriamente partidárias foram se fortalecendo. A atividade nas tendências por vezes se sobrepõe à atividade no partido8. A militância no partido continua fluida, com processos simples de filiação, e se baseia não mais numa concepção classista ou “total”, o que é demonstrado pelo

Vitorias na crise.indd 71

10/17/11 12:55 PM

72 / Vitórias na crise

Estatuto do partido desde seu primeiro artigo, que o define: “o PT é uma associação voluntária de cidadãs e cidadãos que se propõem a lutar por democracia, pluralidade, solidariedade” (PT, 2001, p. 17), entre outros valores e metas elencados (apontando para a construção do “socialismo democrático”) que permitem a identificação e a mobilização no partido por variadas razões. A institucionalidade petista prevê esta pluralidade, ao aceitar a formação de núcleos a partir das mais variadas motivações – local de moradia, trabalho e estudo, movimento social, categoria profissional, “temas, áreas de interesse, atividades afins, tais como grupos temáticos, clubes de discussão, círculos de estudo e outros” (PT, 2001, p. 47) –, e ao legalizar a organização de “setoriais” temáticas, dedicadas às mais distintas atividades e identificações: combate ao racismo, mulheres, meio ambiente e desenvolvimento, comunicação comunitária, pessoas portadoras de deficiência, gays e lésbicas, religiosos, criança e adolescente, assistência social, assuntos indígenas... Há claramente espaços legais para identidades múltiplas, na medida em que o partido reconhece tendências e formas de atuar distintas. Ou seja, o PT reconhece que seus integrantes sempre puderam se identificar como petistas e ecologistas, ou petistas, evangélicos e integrantes da tendência Articulação, numa infinidade de possibilidades combinatórias, mutáveis e maleáveis. Além disso – sempre em contraposição à tradição das esquerdas – deve-se explicitar aqui que a figura do “filiado” é a única reconhecida pelas normas legais do partido, deixando de lado a noção de “militante”. A figura jurídica do filiado contém todas as intensidades e modalidades de atuação, o que fica claro no Estatuto, ao definir que o filiado deve ser “tratado de forma respeitosa, sem distinção do grau de disponibilidade militante” (PT, 2001, p. 24). O filiado ao PT deve acatar as decisões coletivas, mas pode manifestar-se publicamente contra elas – um afastamento em relação à concepção leninista. Por fim, podem-se destacar as inovações institucionais que foram introduzidas na vida partidária ao longo dos anos, como a implantação de mecanismos internos de democracia direta como plebiscitos, referendos, prévias eleitorais e consultas às bases. A mais importante delas é sem dúvida a eleição direta das direções em todos os níveis, com voto de todos os filiados (que legalmente possuem o mesmo peso, independentemente do seu grau e forma de atuação), e que refletiu e reforçou transformações significativas do partido, como veremos adiante. Além destes mecanismos, são inovações dignas de

Vitorias na crise.indd 72

10/17/11 12:55 PM

Organização / 73

nota a cota de gênero no preenchimento das direções, a existência de núcleos no exterior e a formação das ouvidorias “com a finalidade de contribuir para manter o Partido sintonizado com as aspirações do conjunto de seus filiados e com os setores sociais que pretende representar” (PT, 2001, p. 133). Acrescento a tudo isto elementos informais, como as relações com movimentos sociais e ONGs. Basta pensar no peso em dado período do Instituto da Cidadania, independente do partido e fundado por Lula, na formulação de programas de governo petistas. Assim, surge um mosaico que permite afirmar que, na mescla de tradição e novidade do PT (Sarti, 2006), a última não deve ser negligenciada. Quanto à Frente Ampla (FA), ela é um organismo fracionado (mais ainda que o PSCh e o PT). Com o tempo, a FA foi passando de coalizão a partido efetivo, enquanto partidos ainda organizados em seu interior começaram a atuar como tendências – e ao mesmo tempo em que novas tendências, de identidade simplesmente frenteamplista, foram se formando a partir de 1989. A FA é uma original experiência de frente/partido de esquerda, por ser literalmente mais “ampla” que outros fenômenos semelhantes, estando mais próxima das experiências de “frentes populares” que de “esquerda” stricto senso (Moreira, 2004); por constituir-se desde sua fundação como frente permanente, um espaço comum com programas, candidatos e estruturas únicas, atuando como um partido perante as leis eleitorais e o sistema partidário; e por sua estrutura própria, que concebeu direções, núcleos e filiados para além das estruturas dos partidos que a formaram (Bayley, 2005). Ou seja, ela concebeu-se como superior à mera soma de estruturas e militantes de seus partidos, como uma expressão autônoma e inédita. Além de coalizão, constitui um movimento, desenhando aos poucos instituições próprias e permanentes, e não apenas direções compostas por representantes dos partidos que a formaram (Caetano, Rilla, 1995; Yaffé, 2005). Isto implicou no reconhecimento, desde o início, de uma militância frenteamplista, na medida em que é possível filiar-se à FA sem integrar seus partidos. Por outro lado, os filiados a estes automaticamente ganham status de membros da FA, atuando em ambas as estruturas, já que os comitês de base legalmente não fazem distinção da participação ou não de seus integrantes em algum setor da FA, convocando a todos os frenteamplistas (FA, 1986). Estava aberto o espaço institucional para a formação de uma identidade frenteamplista junto às diversas identidades partidárias, o

Vitorias na crise.indd 73

10/17/11 12:55 PM

74 / Vitórias na crise

que provavelmente se daria de qualquer forma com o tempo. A FA, por sua natureza frentista, já seria um organismo composto por identidades e formas de militância múltiplas, somadas ou amalgamadas. No entanto, tal multiplicidade desde o princípio foi incrementada pela figura do militante independente. Assim, há a possibilidade de autoidentificação unicamente como frenteamplista, ou como frenteamplista e militante de algum partido integrante – com variações, na medida em que a identidade frenteamplista pode ser primária ou secundária em relação às partidárias. Com o tempo, a FA consolidou uma identidade frenteamplista superior às outras identificações que ainda convivem na agremiação. Progressivamente, as bases frenteamplistas foram se desmobilizando, e reduzindo-se o número de independentes militantes – mas não de indivíduos com identidade difusamente frentista que não se aproximam cotidianamente, mas de forma ocasional da estrutura partidária. No entanto, mesmo com o prevalecimento no interior da FA tanto de militantes partidários quanto das tendências frentistas que foram surgindo, sua identidade própria e a atividade em seus organismos se impuseram amplamente sobre as identificações e ações em seus setores. É simples perceber que a estrutura frenteamplista é distinta das tradições de esquerda. Basta pensar em como ela difere, por exemplo, da organização do Partido Socialista Uruguaio (PSU) e do Partido Comunista Uruguaio (PCU), centrais na formação da FA em 1971. O primeiro mesclava uma linha organizativa leninista a sincretismos nacionais e regionais, enquanto o segundo se organizava (e se organiza) da forma tradicional leninista (Gallardo, 1995, p. 108). Ao formarem a FA, elas (e seus outros integrantes) abriram mão desde o princípio de parte de sua autonomia ao aderir a superestruturas diversas das suas. Pode-se dizer que a FA herdou parte das tradições leninistas de organização, como a valorização da militância, a burocratização e a unidade de ação. No entanto, estas tiveram que “conjugar-se com critérios muito mais flexíveis imperantes em outros vetores convergentes em sua fundação” (Yaffé, 2001, p. 27), como os setores blancos, colorados e os democratas cristãos, além do próprio caráter movimentista presente em sua concepção. Tal processo só foi se aprofundando com o tempo, ao ponto das identidades socialista e comunista, fortes na política uruguaia como “partidos de ideias”, se diluírem no interior de um corpo maior.

Vitorias na crise.indd 74

10/17/11 12:55 PM

Organização / 75

A princípio, a organização frenteamplista era ainda frágil, baseada em núcleos locais relativamente informais e horizontais – sem superar as estruturas e identidades dos partidos que a formavam. Com o tempo, a FA passaria a atuar de fato como um partido “institucional” (Alcántara, 2004), ou como um “partido de coalizão” (Lanzaro, 2004), ganhando em estrutura e organicidade, absorvendo as dos partidos e grupos que se organizam até hoje em seu interior como frações (Garcé, Yaffé, 2005). O surpreendente é que, malgrado a profusão de frações internas e as transformações em diversos níveis vividas ao longo de sua trajetória, a FA sempre manteve sua razoável solidez. Sua estrutura é legalmente concebida como dual (e a princípio quase consensual na tomada de decisões, buscando o máximo de concertação entre seus integrantes). Ela agrega as lideranças e bases dos partidos que a integram, além de suas próprias organizações de base e organizações intermediárias, nas quais podem atuar militantes partidários e independentes, e que foram conquistando espaços na direção ao lado dos representantes partidários. O primeiro setor refletiria, segundo sua própria concepção, seu caráter de coalizão, e o segundo, seu caráter de movimento (Blixen, 1997). Tal divisão de poder se institucionalizou com o Estatuto de 1986, e se ampliou com o Estatuto de 1993, com metade da direção destinada a representantes partidários e tendenciais, um quarto reservado às bases de Montevidéu e um quarto às bases do interior. O espaço de poder de cada base (mais especificamente de cada organismo intermediário, as “zonais” e “departamentais”, formadas a partir das bases) é definido de acordo com o número de votantes em cada uma, e os dirigentes são escolhidos por eleição direta com todos os filiados. Quanto ao espaço destinado a cada fração, era fixo e igual para todas até 1993, e posteriormente passou a ser também definido proporcionalmente mediante eleição direta entre as listas apresentadas pelas frações9. A complexa imbricação entre partido e movimento e entre essas estruturas e as de suas tendências tornou sempre o funcionamento da FA burocrático e pouco ágil. Adicionalmente, houve a partir de 1994 a formatação de estruturas (construídas como círculos concêntricos em torno da FA) da aliança Encontro Progressista e em 2004 também da Nova Maioria. Isto retirou parte do poder das internas da FA sobre o desenho de programas eleitorais e a formatação de alianças, dando certa autonomização e agilidade, especialmente à liderança

Vitorias na crise.indd 75

10/17/11 12:55 PM

76 / Vitórias na crise

de Vázquez (Yaffé, 2005). No entanto, tais estruturas nunca se consolidaram e se democratizaram de todo, sendo baseadas em direções compostas por representantes de cada partido, sem bases e sem a promoção de uma militância própria. Posteriormente (em 2005), os grupos que participavam daquelas duas formações decidiram se integrar à FA, o que demonstra uma vez mais o poderio da estrutura e da identidade frentista sobre as demais, se sobrepondo, ao fim e ao cabo, tanto às de seus setores quanto às dos grupos e partidos que em algum momento decidiram aliar-se a ela. Suas estrutura e identidade mostram-se, com efeito, mais fortes que qualquer correlação de forças em seu interior, pois a cada período eleitoral a fração que reunia maior poder na FA mudou, sem nunca conseguir hegemonizá-la em meio a uma pulverização interna que supera vinte grupos internos neste momento10. Um ponto de contato das estruturas e militância frentista com outros setores sociais, além das estruturas aliancistas heterodoxas e das tradicionais relações fluidas com o sindicalismo, se deu a partir das diversas iniciativas de democracia direta a partir de 1989, previstas na institucionalidade uruguaia e propostas por diversos atores com caráter eminentemente “defensivo” em relação aos governos de turno, geralmente em reação às reformas liberalizantes (Moreira, 2004). Nestas ocasiões, gestaram-se movimentos amplos, transversais, que mobilizaram (em todos os sentidos) recursos frenteamplistas, e incrementaram a atuação transversal de boa parte de sua militância. Nota-se que as diversas formas de relação da FA com seu entorno aumentam ainda mais a fluidez de sua concepção militante. Por fim, um caso paradigmático é o do Movimento ao Socialismo (MAS), com sua estrutura heterodoxa, que conjuga em doses variáveis ação direta com institucional, organizações sociais sindicais e comunitárias com estrutura partidária, levando a discussões inconclusas acerca do caráter legal de alguns de seus atos e sobre se ele é efetivamente um partido, um movimento, um “instrumento político”, etc. Tal debate não é tão intenso entre seus próprios membros, já que a maioria desde o princípio o considera um “instrumento político” dos movimentos sociais, uma espécie de braço político-eleitoral das organizações que o integram – como o partido geralmente se apresenta. É interessante notar que os militantes oriundos de movimentos camponeses e indígenas tendem a definir o MAS como um instrumento dos movimentos

Vitorias na crise.indd 76

10/17/11 12:55 PM

Organização / 77

sociais e dos povos originários, enquanto seus integrantes oriundos de movimentos urbanos e de experiências de esquerda tradicional tendem a qualificá-lo como um partido popular ou de esquerda11. Tais tendências demonstram que origens e concepções diversas levam a expectativas distintas em relação à atuação do MAS, e que ele possui um grau de flexibilidade organizacional que permite a existência em seu seio de uma pluralidade de concepções e estratégias. Uma questão a ser feita é o porquê de se formar nesse momento expressamente um “instrumento” e não um “partido”: A ideia de formar algo distinto de um partido tem duas fontes: por um lado é produto da experiência de democracia que desenvolveu o mundo campesino-indígena, tendo percebido nas diferentes eleições que “os partidos nos dividem”. Por outro lado, esta necessidade de criar algo distinto de um partido é uma resposta à crise de legitimidade dos partidos que também chega à área rural (Zuazo, 2008, p. 28).

Já entre os especialistas que o estudam, o tema é mais polêmico. García Linera (et. al., 2008) o considera uma prolongação política dos movimentos sociais, efetivamente um “instrumento” ou “confederação” de movimentos, reconhecendo, no entanto, que há uma crescente estrutura de parlamentares e funcionários se formando em seu interior. Lazarte (2008) o define como um “protopartido”, pouco institucionalizado, enquanto Zuazo (2008) o apresenta como um partido “com outro nome”, dado que a crise de legitimidade dos partidos bolivianos transforma a mera utilização do termo “partido” em uma ameaça. Tapia (2004) entende o MAS como um “partido de trabalhadores”, numa comparação com o PT. Já Komadina e Geffroy (2007) apresentam o conceito de “movimento político” defendendo a tese de que o MAS, a partir de uma “estrutura dual”, atua nas fronteiras entre a sociedade civil e o campo político em uma dupla direção: codifica e projeta as mobilizações e as representações de diversas organizações sociais no campo político institucionalizado e através da participação eleitoral, apesar de aspirar a transformar as regras do jogo político (p. 20).

Pode-se concluir a partir da pluralidade do debate que o MAS só pode ser considerado um partido num sentido mais maleável do termo, não podendo ser entendido a partir de uma concepção ortodoxa de partido político. O MAS se equilibra ao longo de sua curta

Vitorias na crise.indd 77

10/17/11 12:55 PM

78 / Vitórias na crise

história entre ação eleitoral e direta, e isso se reflete em seu caráter misto, estando no limite do que pode ser considerado um partido, de acordo com a definição de Abal Medina apresentada no capítulo anterior. Neste sentido, o MAS pode ser considerado um partido, assim como, na medida em que age como tal em seu sistema partidário, ele não é um mero reflexo dos movimentos sociais que o integram, abrigando em seu interior estruturas, lideranças e grupos que não se relacionam com tais movimentos. O MAS é um “partido atípico” (Mayorga, 2005), mas ainda assim um partido – com uma amplitude que “rompeu com todas as estruturas políticas, sejam de esquerda ou de direita”, nas palavras de Evo Morales (Morales, 2002a). A construção do “instrumento político”, como dito anteriormente, teve a princípio como núcleo hegemônico o movimento cocaleiro. Os sindicatos formados pelos cocaleiros do Chapare são basicamente “ocidentais”, apresentando, no entanto, características de “sindicatos comunais”, ou seja, estruturas sindicais “ocidentais” (e o próprio nome “sindicato”) mescladas com elementos comunais originários. Os sindicatos, além de instrumentos reivindicativos e de socialização, organizam a vida dos indivíduos e das famílias que os integram, repartindo terras, aplicando justiça comunitária, organizando trabalho voluntário, comercializando produtos cultivados, entre outras funções (García Linera et al., 2008). No entanto, a identidade camponesa continua sendo central, mesclada com elementos relacionados a distintas identidades originárias, presentes por sua vez nos antigos sindicatos cochabambinos que inspiraram o movimento cocaleiro (Soares, 2009). Como foi dito no capítulo anterior, para além do movimento cocaleiro, o MAS reuniu diversos grupos, alguns mais associados a identidades e formas organizativas originárias, outros mais propriamente “ocidentais”. No início, o MAS se organizou a partir de sindicatos, federações de movimentos sociais e grupos camponeses e originários, e se baseou em assembleias (“comunitárias” dependendo da região e do grupo hegemônico a levar adiante a construção do partido) num nível local e, nacionalmente, numa direção formada por representantes dos principais grupos que o integram (uma regra não escrita). A militância no MAS se deu a princípio de forma amplamente “indireta”: o indivíduo era integrante de algum sindicato, movimento social ou organização que decidia integrar em bloco o MAS. Assim, todos passavam a serem membros do partido, mas a identidade masista era secundária – quando existia.

Vitorias na crise.indd 78

10/17/11 12:55 PM

Organização / 79

Logo o MAS manifestou divisões entre estruturas herdadas dos movimentos e nascentes estruturas de funcionários e candidatos eleitos. A princípio a primeira prevaleceu. Mas a partir de 2002 e especialmente de 2003, tornou-se mais intensa a institucionalização partidária e a adaptação ao entorno institucional. Cresceu o esforço de institucionalização nas áreas urbanas, que já não se realizava a partir da superposição entre estruturas sindicais movimentistas e partidárias. Nos centros urbanos o MAS foi se organizando como um partido, com suas seções e comitês. Assim, à militância indireta começaram a se somar filiações diretas ao MAS, paralelamente à formação de uma identidade masista que passa a ser a identificação central de muitos de seus integrantes. No entanto, o MAS segue sendo considerado um partido de baixa institucionalização, apesar de não o ser se tomamos em conta o nível atual de desestruturação dos partidos bolivianos – neste caso, o MAS é possivelmente o único partido realmente organizado nacionalmente e com um centro de poder. No entanto, ainda constitui uma subjetividade coletiva que agrega identidades e estruturas múltiplas. Tudo isso foi incrementando a dualidade de estruturas do MAS, na medida em que a direção, os parlamentares, os setores urbanos e os militantes masistas diretos foram fortalecendo suas posições em detrimento da original lógica assembleísta e movimentista (Escóbar, 2008). Tal dualidade é expressa por seu Estatuto aprovado em 2003, que define sua estrutura interna em dois polos: uma organização partidária territorial e organizações sociais e “naturais”. Tal formulação chega a ser contraditória, ao definir que o partido se organiza de acordo com a divisão territorial do país e pela “atividade ocupacional de grandes agrupamentos sociais ou de identidade cultural”, para em seguida afirmar que seus militantes e simpatizantes “participam na vida orgânica do partido através das organizações naturais” (MAS, 2004, pp. 28-29). Progressivamente, funcionários partidários e especialmente deputados foram gerando uma espécie de “poder paralelo” informal. Nas eleições de 2004 e 2005, já se havia notado a redução do poder das assembleias de base e dos movimentos sociais no seio do partido em favor dos parlamentares e da direção nacional. Os candidatos das cidades médias e grandes nas eleições municipais de 2004 e os candidatos a diversos postos em 2005 foram expressamente nomeados pela direção e por Morales, para se adequar à estratégia nacional do

Vitorias na crise.indd 79

10/17/11 12:55 PM

80 / Vitórias na crise

partido. Decisões contraditórias com o Estatuto, que afirmava que seus candidatos seriam eleitos em assembleias e “aprovados” pela direção (MAS, 2004).

2.3 – Institucionalização, lideranças autônomas e militância fluida

Como vimos, cotejando essas novas experiências de esquerda com suas tradições, houve um aumento das formas de pluralismo organizativo e de tolerância a novas modalidades e graus de militância. A atuação nesses partidos foi concebida originalmente e/ou crescentemente como policlassista, integrada a identidades múltiplas, e baseada em formas distintas de participação. O tipo de fontes utilizadas não permite conclusões cabais acerca da composição social e até certo ponto das experiências dos membros destes partidos, mas aponta para a abertura organizativa e legal a essa pluralidade, o que, se não comprova sua materialização prática, demonstra a forte transformação da autoconcepção e autopercepção destas esquerdas (o que já é bastante para as intenções desse trabalho). Essas esquerdas se estruturam de forma mais plural, heterodoxa e flexível em relação aos modelos nos quais as esquerdas tradicionalmente se baseavam, tornando-se potencialmente mais capazes de representar amplas massas e eventualmente inseri-las no sistema político. Pode-se sugerir que “na maioria dos casos de sucesso, uma sutil combinação de construção de redes para formar movimentos e partidos parece haver estado presente” (Domingues, 2009, p. 185). Além de provável resposta à crescente pluralidade social, “isso ocorre possivelmente também porque as mudanças no aparelho de Estado, levando à dispersão das tomadas de decisão e à política no plano local, aumentam a complexidade e requerem organizações politicamente mais flexíveis” (id.). Este é um ponto de contato entre elas, mas, ao mesmo tempo, nota-se, a partir da observação de suas estruturas, que elas são razoavelmente distintas entre si, e que se modificaram com o passar do tempo. É o que abordo a partir de agora, primeiramente, através do tema da institucionalização partidária e, na sequência, a partir do fenômeno de autonomização das direções e da fluidez da militância. Um fenômeno que começou a ser notado na seção anterior é o da progressiva institucionalização desses partidos. Segundo Panebianco

Vitorias na crise.indd 80

10/17/11 12:55 PM

Organização / 81

(1988), institucionalizar-se implica incorporar valores e metas de fundação, ter valor em si mesmo, assumindo como uma de suas metas sua própria preservação12. Os processos de institucionalização dos partidos seguem ritmos e formas distintas, chegando a resultados variados. É mesmo possível que eles não se institucionalizem, o que, num longo prazo, colocaria em risco sua sobrevivência e reprodução. Esta pluralidade de possibilidades se manifesta nos partidos aqui estudados. As quatro organizações parecem ter feito esforços de institucionalização – até mesmo o MAS, uma organização com elementos “movimentistas” mais fortes, como apontado por diversos autores que analisam sua estrutura (conferir a seção anterior)13. Sugiro aqui que a FA apresentaria o nível mais alto de institucionalização, seguido pelo PT e mais de longe pelo PSCh (este menos institucionalizado, segundo Picazo Verdejo, 2003), enquanto o MAS apresentaria comparativamente uma institucionalização incipiente14. A FA, em sua trajetória de frente a partido, é um caso paradigmático de institucionalização (conferir, entre outros, Yaffé, 2005; Martínez Barahona, 2003), somando uma crescente e intrincada rede organizativa própria às diversas estruturas de seus agrupamentos internos e supra-alianças. Isto geraria uma forte rotinização e uma densidade organizativa que geralmente se cumpre, mesmo à custa de parte da agilidade decisória15. A FA tinha como marca de origem o consenso para a tomada de decisões e a unidade de ação por ser esta a tradição de algumas das forças que a formaram em 1971, mas principalmente por ser a fórmula encontrada para a manutenção da unidade entre organizações já institucionalizadas. Formou-se para isso um edifício institucional de tal envergadura que logo foi se impondo às normas das partes que a integram, caracterizando-a como um partido efetivo. No entanto, a FA teve que encontrar formas de moderar essa tendência, necessidade demonstrada pelas disputas ocorridas entre 1987 e 1989, insolúveis com base nas regras rígidas de resolução de conflitos que regiam a FA, e que terminaram na sua divisão. Para isso, a FA estabeleceu exigências mais baixas legalmente previstas (maiorias qualificadas, maiorias simples) para a resolução de suas disputas (FA, 1993); testou formas de direção mais ágeis e autônomas16; e transferiu informalmente parte do poder decisório para as superestruturas mais simples do Encontro Progressista (EPFA) e da Nova Maioria (EP-FA-NM). Além disso, progressivamente adotou uma concepção de valorização do dissenso e da pluralidade

Vitorias na crise.indd 81

10/17/11 12:55 PM

82 / Vitórias na crise

na disputa de posições programáticas e de poder, que chegou a ser institucionalizada através de mecanismos de enfrentamento e resolução de disputas que reconhecem o pluralismo. No PT e no PSCh, lado a lado com o fomento de uma concepção plural de militância, surgiram mais recentemente tentativas de controlar e reduzir a autonomia e o espaço para o dissenso, ou seja, tentativas de unificação de ação, de redução do espaço para a manifestação de autonomias por partes de seus membros ou frações17. Estas tentativas, longe de bloquear sua pluralidade, buscaram domesticá-la e regulá-la. Essas seriam assim “duas faces de uma mesma moeda”, constituindo um movimento duplo de reconhecimento/regulação e (re)valorizando a unidade neste processo. Desde que legalizou suas tendências em 1987, o PT busca formas de limitá-las (Samuels, 2004a). O próprio reconhecimento jurídico pode ser lido neste sentido, ou seja, o partido procurou legalizá-las para ter meios de regulá-las. Neste processo, organizações que atuavam no PT como partidos tiveram que aceitar as restrições (caso do Partido Revolucionário Comunista, que se dissolveu) ou se retirar (casos da Causa Operária e da Convergência Socialista). Um momento importante para isso foi o I Congresso, no qual Lula simbolicamente se manifestou de maneira independente, por meio de um manifesto próprio, no qual afirmava que “nós temos agora que construir uma tendência chamada Partido dos Trabalhadores” (Lula, 1991a). Naquele congresso, foi defendida uma proposta extremamente restritiva propondo que as tendências deveriam ser provisórias, formadas a cada questão e evento. Ela foi derrotada por outra, que permitia tendências regulares, mas impunha-lhes diversas restrições (PT, 1998a). O PSCh segue caminho semelhante, na medida em que as tendências, funcionais a princípio para facilitar a unificação dos socialistas, chegaram a tal grau de organização que geraram uma forte preocupação entre alguns dirigentes, que pretenderam enfrentar o pretenso problema dando a elas um caráter de organizações transitórias sem disciplina própria (Ortiz, 2007). O Estatuto de 1994 afirma que o militante socialista deve “velar permanentemente pelo fortalecimento da unidade ideológica e política do Partido” e “lutar contra toda tentativa de formação de grupos ou frações em seu interior”. Ao mesmo tempo, “se estabelece formalmente o direito a constituir correntes de opinião no interior do Partido Socialista. Essas correntes são

Vitorias na crise.indd 82

10/17/11 12:55 PM

Organização / 83

conformações transitórias, sem existência permanente nem disciplina própria” (PSCh, 1994). Percebe-se então que legalmente as tendências não são (ou não deveriam ser) “frações”, e sim agrupamentos temporários e “informais”. O MAS seguiu o mesmo caminho, no entanto, este foi bem mais recente e truncado, incompleto. Constituindo, a princípio, basicamente um aglomerado de grupos e movimentos, à medida que foi se institucionalizando (fracamente) o partido procurou estabelecer discursos e ações únicas entre suas partes, elaborar um programa coerente que fosse cumprido por todos, unificar a atuação de sua bancada parlamentar e mantê-la dependente das decisões da agremiação. Segundo o Estatuto do partido, é dever do militante do MAS “acatar disciplinadamente as instruções de seus dirigentes”, assim como “guardar fidelidade aos princípios, programa de governo, e à estrutura orgânica” e “cooperar nas tarefas quando solicitem os organismos competentes” (MAS, 2004, p. 54). Quanto à bancada parlamentar, deve debater e coordenar “com a Direção Nacional do MAS, para desenvolver políticas unitárias a serviço do interesse público” (MAS, 2004, p. 45). Na medida em que os partidos analisados são grupos, organizações e movimentos unificados no seio de uma nova agremiação, sua pluralidade constitutiva é algo dado. Segundo Panebianco (1988), “certa dose de liberdade de movimentos (...), certa dose de flexibilidade tática e estratégica é absolutamente necessária para a sobrevivência da organização” (p. 15). No entanto, pode-se sugerir que organizações devem atingir um nível “ótimo” entre a necessidade de fomentar ou ao menos reconhecer o pluralismo (algo interessante pelas novas características societárias globais e regionais), e a capacidade de atuar ágil e unitariamente. A FA, por ter se institucionalizado comparativamente mais cedo e de forma mais intensa, nos anos 1990 precisou encontrar caminhos para contornar sua excessiva institucionalização, tendo que valorizar o “dissenso” para atingir aquele referido nível “ótimo”. Por outro lado, o PT e o PSCh, provavelmente por estarem então em níveis mais baixos de institucionalização, fizeram esforços para restringir a pluralidade em favor da unidade, da valorização do “consenso” como necessário à preservação de partidos tão heterogêneos. O MAS fez esforços mais tardios e incompletos no mesmo sentido, sendo, entre as organizações analisadas, a que apresenta a densidade organizativa mais incipiente. Nela, os setores

Vitorias na crise.indd 83

10/17/11 12:55 PM

84 / Vitórias na crise

internos possuem maior autonomia, e o poder de decisão e identidade das organizações externas que dela participam (como sindicatos, movimentos sociais e grupos de esquerda) por vezes se sobrepõem aos da própria organização. Outro tema relevante a ser abordado aqui é o da manifestação de novas modalidades de liderança, que de alguma forma se relacionaria com a crescente fluidez e desmobilização da militância partidária. Este fenômeno é claramente notado nos partidos estudados. Lideranças crescentemente personalistas e midiáticas vão surgindo e se impondo. Há uma profissionalização dos partidos, de suas direções e da organização de suas campanhas eleitorais, enquanto núcleos e bases se desestruturaram ou nunca existiram (Alcántara, Freidenberg, 2003). Dos partidos estudados, é interessante abordar a mudança geracional de lideranças na FA que se deu a partir do início dos anos 1990. Seu líder fundador, Líber Seregni, já apresentava características heterodoxas, como sua origem militar (general civilista, nacionalista e democrático) e sua independência em relação aos partidos de esquerda que formaram a frente. Nela, Seregni se impôs exatamente como independente, pairando sobre os grupos que a compunham, apelando ideologicamente a traços da cultura política uruguaia como o battlismo18 e à nascente “mística frenteamplista” – para a qual contribuiu. No entanto, Seregni sempre se impôs como uma liderança orgânica, fiel às regras da FA, à busca de consenso e unidade (Blixen, 1997). Seregni podia ser considerado então o maior e mesmo o único líder propriamente frenteamplista (além de outras figuras independentes de relevo secundário como o general Victor Licandro e o médico Juan José Crottogini). Isto se dava na medida em que outros nomes de peso tinham ascendência sobre seus grupos, mas não sobre toda a frente. Já Vázquez, que o sucedeu, apresenta traços ideológicos heterodoxos como Seregni, e pode ser caracterizado igualmente um outsider, apesar de sua filiação ao PSU. Mas, além disso, apelou a uma convocatória até certo ponto personalista e desideologizada (Caetano, Rilla, 1995), plebiscitária (Gallardo, 1995). Vázquez propõe uma comunicação direta com as massas, em linguagem popular e didática, tratando de fatos concretos. Trata-se, segundo os analistas, de uma liderança “nova” para as tradições de esquerda (Liscano, 2004). O mesmo pode ser dito de lideranças secundárias como Danilo Astori

Vitorias na crise.indd 84

10/17/11 12:55 PM

Organização / 85

e José Mujica, especialmente do último, antiga liderança dos tupamaros, mas recente fenômeno popular midiático (que talvez se explique exatamente por sua aversão à mídia e aos formalismos da política), eleito presidente do Uruguai em 2009. Podem ser realizadas avaliações semelhantes de Lula19, no Brasil, Lagos (que paira sobre o PSCh e o PPD) e Bachelet, no Chile, e Morales (e García Linera), na Bolívia. São lideranças até certo ponto personalistas e com forte apelo midiático, que não baseiam sua liderança propriamente nas estruturas dos partidos que integram, mas na relação direta com as massas por intermediação da mídia (Tironi, 2005). Alguns destes líderes vão sendo tratados por parte da literatura especializada (talvez com certo exagero) como lideranças “caudilhescas”. Seria um “fenômeno novo na esquerda, que pode ter tido antes de 1990 dirigentes de prestígio, mas não caudilhos, dirigentes cujo prestígio provinha mais de cumprir exemplarmente sua função na organização que de uma aura pessoal” (Mazzeo, 2005, p. 92). Esse novo tipo de liderança esvaziaria as instituições e o poder decisório das bases partidárias, mas seria “funcional” às novas formas de fazer política, quando comparado com as lideranças tradicionais das esquerdas. Ele seria um elemento central do que Manin (1997) denominou “democracia de audiência”, que para ele configura uma nova fase na história dos governos representativos. Sua ascensão se explica por transformações como a expansão da mídia de massas, a maior complexificação das questões a serem enfrentadas pelos governantes e a pluralização e fluidez das clivagens sociais. Com todo este incremento da imprevisibilidade, reduziu-se a possibilidade do eleitor expressar sua posição social através do voto, assim como de basear sua escolha em motivações prospectivas. O voto baseado na confiança voltou à cena (como no princípio dos regimes representativos modernos), e a mediação da mídia entre eleitores “flutuantes” e políticos autônomos se fortaleceu. Emergiu uma nova “elite”, o especialista em mídia. “Nesta situação, a iniciativa dos termos da escolha eleitoral pertence ao político e não ao eleitorado, o que explica porque decisões de voto são hoje majoritariamente reativas. (...) O eleitorado surge, acima de tudo, como uma audiência” (Manin, 1997, p. 223, grifos do autor)20. Outro aspecto a ser destacado é a desmobilização e extrema fluidez das bases das esquerdas latino-americanas. Pode-se dizer que isso se relaciona

Vitorias na crise.indd 85

10/17/11 12:55 PM

86 / Vitórias na crise com o clima de “desencantamento” e afastamento com as formas clássicas de participação e militância veiculadas pelas organizações de esquerda, com a crise de um partidarismo “missionário” distanciado das motivações cotidianas ou correntes, com os retraimentos provocados pelos custos encarecidos da participação em aparatos e subculturas partidárias cujas inércias e ritualismo desvalorizam os rendimentos ou “benefícios” militantes, retendo “em permanência” aos mais “interessados” ou de maior “vocação” (Gallardo, 1995, p. 139).

Esse “desencantamento” se traduz nas iniciativas relacionadas à aceitação de novas modalidades e graus de militância por parte dessas forças, e na substituição de formas clássicas de mobilização e atuação por novas, como a propaganda televisiva, o apelo a novas pautas cidadãs e transversais (ecologia, direitos humanos, ética, republicanismo), as atividades culturais, caminhadas, reuniões em casas de família, associações de bairro e comunitárias, etc. De qualquer forma, os espaços de poder das bases foram sendo reduzidos (o que pode ser ilustrado, por exemplo, pelo esvaziamento de poder dos núcleos petistas, traduzido em seu Estatuto de 2001). Uma parcial exceção é o MAS. Evidentemente, ele se enquadra em tudo que foi dito acerca de maior fluidez e pluralização das formas de militância, que nele se apresentam com ainda mais intensidade. No entanto, nele não se manifesta a desmobilização das bases. Pelo contrário, sua ascensão é um reflexo de uma fase de recrudescimento da mobilização popular na Bolívia. Por outro lado, as chegadas ao poder do PT, da FA e (principalmente) do PSCh se dão em momentos de refluxo da mobilização social em seus países. Notam-se então duas tendências. Em primeiro lugar, um processo de institucionalização presente em todos os partidos, mas com intensidades e temporalidades diferentes, por um lado atingindo um ponto extremo na FA, que chegou a exigir certa desinstitucionalização (por tal fenômeno ser disfuncional ao processo de adaptação vivenciado pelo partido ao longo da década de 1990) e, por outro lado, atingindo um estágio incompleto no MAS. Em segundo, um processo de desmobilização e fluidez da militância e de autonomização das lideranças. Pode-se argumentar que até certo ponto essa segunda tendência poderia contrabalançar a primeira, na medida em que fenômenos como a autonomização da direção e a diluição e pulverização da militância poderiam flexibilizar e agilizar a densidade e a rotinização destas instituições – algo notável, por exemplo, na experiência do PT (Samuels, 2004a).

Vitorias na crise.indd 86

10/17/11 12:55 PM

Organização / 87

2.4 – Pluralidade organizativa Até que ponto as características e transformações das novas e renovadas esquerdas latino-americanas vistas até aqui poderiam aproximá-las dos modelos definidos pela literatura especializada nas últimas décadas? Ou elas ecoariam modelos distintos? Ou mesmo apresentariam características próprias? É o que discuto a partir de agora. Com as transformações ocorridas após as formulações “clássicas” de Duverger, diversos especialistas propuseram novos modelos de partido (conferir o Capítulo 1). Entre estas formulações, considero que as de maior relevância foram propostas por Kirchheimer (1966) e Panebianco (1988). Para Kirchheimer, depois da Segunda Guerra Mundial, “partidos de integração de massas” (aí incluídos os aqui chamados “classistas de massas” e “leninistas”) se desdobram em partidos catch-all, enquanto os antigos partidos de “representação individual” tornam-se exceção. Em sociedades complexas ou “de consumo”, os interesses classistas se diluiriam e ocorreria um processo de desideologização, levando os partidos a trocar um enraizamento nas massas por uma maior audiência e sucesso eleitoral, substituindo projetos gerais por objetivos restritos e metas eleitorais imediatas, buscando ampliar as bases sociais. O partido catch-all é, por definição, não utópico, menos coercitivo quanto às liberdades de seus integrantes e mais flexível. Ele possuiria cinco características em contraposição com seus antecessores: fortalecimento dos líderes; enfraquecimento da militância e diminuição do papel dos filiados; diluição ideológica; diluição classista; e acesso a diversos grupos de interesse. Já Panebianco apresentou o modelo do “partido profissional eleitoral” (próximo à formulação de Kirchheimer), igualmente um desdobramento do que ele chama partido “burocrático de massas”. Tal modelo se caracterizaria pelo crescente peso dos profissionais com saberes específicos no lugar dos burocratas; por um caráter eleitoralista de adesão e uma debilidade dos laços organizativos verticais; pela proeminência dos parlamentares; pelo financiamento por grupos de interesse ou fundos públicos; e pela direção personalista e a ênfase em questões mais específicas (como as ambientais, de segurança individual ou de gênero)21. As motivações para a transição das formas “burocráticas de massas” as “profissionais eleitorais” seriam “ambientais”, fruto da passagem para o pós-industrialismo

Vitorias na crise.indd 87

10/17/11 12:55 PM

88 / Vitórias na crise

ou pós-materialismo decorrendo das mudanças na estratificação social e do impacto da mídia sobre a política e as eleições. Partidos “profissionais eleitorais” são por definição instituições fracas, portanto a passagem de um tipo ideal a outro envolveria algum grau de desinstitucionalização e teria ligação com o fenômeno da “crise dos partidos”. É inegável que há alguma relação entre tais modelos e os partidos estudados nessas páginas. Os dois afastam-se dos modelos “clássicos”. Mas será que as semelhanças se esgotam aí? Em grande medida, não. Como no modelo catch-all, nossos partidos são em boa parte não utópicos, não opressivos e flexíveis. São claramente policlassistas, apresentam certa diluição ideológica, assim como uma redução da militância de massas e o fortalecimento dos dirigentes, possuindo relações com diversos grupos de interesses. Quanto ao modelo “profissional eleitoral”, a pesquisa não permite aferir até que ponto os profissionais de saberes específicos ocuparam o espaço de burocratas nos partidos estudados, assim como suas fontes de financiamento. Pode-se afirmar que a proeminência dos parlamentares é razoável e as direções assumem em parte características mais personalistas que colegiadas22, assim como se observa uma ênfase em questões mais específicas e não em projetos gerais ou nas “grandes ideologias” (isto tem relação com a diluição ideológica de que fala Kirchheimer). É evidente, portanto, que os partidos estudados apresentam elementos dos modelos catch-all e “profissional eleitoral”. Alguns autores, como Lanzaro (2004, 2009), classificam a FA, o PT e o PSCh sem maiores pudores como partidos catch-all. Algumas características de nossos partidos diferem, contudo, destes modelos23. Isso até certo ponto não apresentaria maiores dificuldades, na medida em que aqueles modelos são “tipos ideais”, e poderiam sofrer adaptações de acordo com o ambiente e as características originais de cada partido. No entanto, os principais obstáculos para classificar nestes moldes os partidos estudados são quatro. Primeiro, a limitação que decorre do fato de estudar partidos de esquerda a partir de modelos que enfatizam em demasia o aspecto eleitoral da atividade partidária. Há um aumento do peso eleitoral nesses partidos, mas neles a ideologia segue exercendo um papel importante, não sendo possível caracterizá-los simplesmente como “máquinas eleitorais” (Alcántara, 2004). Segundo, tais modelos são em boa parte “reducionistas”, ou seja, ao proporem um modelo quase universal, não permitem observar na justa medida a pluralidade

Vitorias na crise.indd 88

10/17/11 12:55 PM

Organização / 89

organizativa encontrada nos casos estudados. Terceiro, eles se baseiam em realidades alheias à latino-americana, e deveriam ao menos sofrer adaptações a ela. Quarto, se a ênfase desses autores para elaborar seus modelos é organizativa, meu objetivo é analisar a organização em equilíbrio com suas relações sociais e ideologias. Por essas razões, prefiro considerar que os principais partidos de esquerda latino-americanos possuem elementos dos modelos catch-all e “profissional eleitoral”, mas não se baseiam estritamente neles. Adoto então como referência a tipologia apresentada por Gunther e Diamond (2003) (conferir o Capítulo 1), calcada na organização, ideologia e estratégia dos partidos, que apresenta cinco gêneros de agremiações: “elitistas”, “de massas”, “etnicistas”, “eleitoralistas” e “movimentistas”. Estes, por sua vez, são integrados por quinze espécies (aqui prefiro utilizar o termo “modelos”): os elitistas se desdobram em “tradicionais de notáveis locais” e “clientelistas”; os de massas em “religiosos denominacionais” e “fundamentalistas”, “nacionalistas pluralistas” e “ultranacionalistas”, e socialistas “de classe e massas” e “leninistas”; os etnicistas em “étnicos” e “congressuais”; os eleitoralistas em “personalistas”, “catch-all” e “programáticos”; e os movimentistas em “esquerda libertária” e “pós-industriais de extremadireita”. Tal exagero é adequado à complexidade social contemporânea e também latino-americana, que se exprime através de uma pluralidade de formas partidárias que incluem e ao mesmo tempo superam antigos e novos tipos. Pode-se considerar que partidos como o PT, o PSCh e diversos setores da FA teriam originalmente características de massas – especialmente do modelo “classista de massas”. Mas estes traços nunca teriam sido exclusivos. Por exemplo, o PT e a FA surgiram como uma mescla daqueles modelos com aspectos gerais do gênero “movimentista” – uma organização fluida entre partido e movimento, com elementos pós-materialistas. Ao longo do tempo, estas três organizações, sem perder suas características genéticas próprias, foram se aproximando do gênero “eleitoralista”, mais especificamente do modelo “programático”. Tal definição foi cunhada para diferenciar partidos com peso programático dos outros modelos que integram o gênero “eleitoralista” (tanto o “catch-all” quanto o “personalista”). Já o MAS reuniria majoritariamente elementos do gênero “movimentista” em sua expressão de “esquerda libertária” (basta lembrar de aspectos pós-materialistas presentes em seu discurso e de

Vitorias na crise.indd 89

10/17/11 12:55 PM

90 / Vitórias na crise

sua organização fluida e horizontal) com elementos provenientes do modelo “étnico congressual”, definido como uma aliança de grupos étnicos defendendo a unidade nacional. Quanto ao tema das funções exercidas por um partido, intrinsecamente relacionado ao anterior e aqui isolado apenas para fins analíticos, Kirchheimer reconhece que um partido catch-all deve se equilibrar entre as três funções de um partido: integração, expressão e seleção de candidatos para legitimação popular. No entanto, a função integradora se dá apenas através da relação com grupos de interesse, que são a única garantia de votos em meio à fluidez da sociedade de consumo. A função expressiva se dá enquanto coordenação e arbitragem de interesses organizados na sociedade, ou seja, se manifesta enquanto construção de consensos, especialmente quando no governo. Assim, as duas primeiras funções seguem existindo, mas se dão agora de forma limitada e em grande parte através da função eleitoral, que é a principal do partido catch-all. A ênfase de Panebianco é a mesma. Como foi dito, não concordo inteiramente com essa análise, apesar de reconhecer que os dois autores criticam a visão racionalista e utilitária de que a única função de um partido é eleitoral, nos moldes propostos por Downs (1957). Nesse sentido, a abordagem de Kitschelt (1989) é interessante (conferir o Capítulo 1), por ter sido concebida para analisar as esquerdas contemporâneas, o que o leva tanto a recuperar elementos analíticos crescentemente negligenciados pela literatura especializada (notadamente a ideologia), quanto a reconhecer as transformações vivenciadas nesse campo nas últimas décadas. Além disso, introduz um elemento diacrônico que permite compreender as transformações partidárias através das mudanças de correlação de forças que definiriam em última instância os papéis exercidos por um partido. O autor apresenta fatores “externos” – mobilização das bases sociais, abertura do sistema político e competitividade de um partido – que podem ajudar a compreender a transição dos partidos aqui analisados, grosso modo, a um papel mais moderado. Ao abordar as esquerdas latino-americanas através desse modelo, podem-se compreender alguns aspectos centrais nas transformações vivenciadas por elas. A disputa entre “ideólogos”, “lobistas” e “pragmáticos” (os três tipos ideais de ativistas propostos) parece ter se encaminhado para a relativa hegemonia dos últimos aliados aos segundos, já no final dos anos 1980 no caso do PSCh, e ao longo dos anos 1990

Vitorias na crise.indd 90

10/17/11 12:55 PM

Organização / 91

no caso do PT e da FA. Seguindo as proposições de Kitschelt, o aumento da competitividade eleitoral combinado à crescente desmobilização de suas bases sociais e a um sistema em processo de abertura a novos atores e políticas podem explicar aquela correlação de forças, e dessa forma a metamorfose decorrente. Por outro lado, o aumento da competitividade eleitoral num quadro de altíssima mobilização e cerceamento de novas forças e políticas poderia explicar o papel do MAS, que apresenta posições divergentes e polarizadas em suas disputas internas, configurando uma correlação de forças que o levou a exercer um papel ideologizado e antissistêmico (que arrefeceu, mas não foi de todo superado). Finalmente, quando um partido assume uma posição de hegemonia no sistema partidário, os pragmáticos crescem em número, mas devem dividir espaço com os ideólogos, na medida em que realizar políticas radicais parece não ameaçar o espaço do partido. Isso poderia explicar a atuação governamental radicalizada do MAS, na medida em que pôde comprovar eleitoralmente sua força.

2.5 – Conclusão Vimos que as esquerdas latino-americanas que chegaram ao poder se diferenciam de formas organizacionais tradicionais apresentadas pelas esquerdas, a saber, o modelo “leninista” e o modelo “classista de massas”. Esta característica pode ser lida como uma adaptação da concepção e estrutura de partido ao novo ambiente no qual essas esquerdas devem atuar, uma tentativa de ampliar (e manter) seu atrativo social através do fomento de diversas formas de atuação e identificação, num contexto de metamorfose e complexificação das classes e identidades sociais. Pode-se sugerir que esquerdas com formatos mais flexíveis e parcialmente baseadas em formatos de redes seriam mais adaptadas à etapa atual da modernidade do que alguns de seus pares, que tentam reproduzir formas organizativas “clássicas” das esquerdas do século XX. Partidos mais recentes como o MAS e, em parte, o PT nasceram com formatos organizativos novos. O PSCh foi reconstruído como uma mescla de sua herança própria – desde sempre com dificuldades para reproduzir modelos “clássicos” – e de um “novo partido”, e a FA nasceu como uma contribuição organizativa em si mesma heterodoxa, que progressivamente foi diluindo as referências organizativas tradicionais presentes em alguns de seus integrantes e que a marcavam a princípio.

Vitorias na crise.indd 91

10/17/11 12:55 PM

92 / Vitórias na crise

Mas dado que as esquerdas analisadas se diferem de antigos modelos, de quais elas se aproximariam? Aqui há uma notável pluralidade de formas organizativas. Para compreender essa pluralidade, chamei a atenção para o tema da institucionalização. Estas esquerdas vivenciaram processos de institucionalização, mas mesmo as mais fortemente institucionalizadas encontraram caminhos para manter um bom nível de flexibilidade que favorecesse sua adaptação, que pode ser vista também como um processo contínuo. A institucionalização “flexível e parcial” dessas esquerdas não atrapalhou sua adaptação, ou seja, não as tornou pesadamente burocráticas, (re)aproximando-as de antigos modelos que poderiam estar parcialmente presentes em seu modelo genético. Em especial, ela flexibilizou ainda mais as relações entre lideranças e bases. Por outro lado, algumas delas apresentaram processos de institucionalização incompletos, truncados. Isso ocorreu em boa parte com o MAS. Um fator trazido à discussão sobre institucionalização foi o das modalidades de liderança e de militância. Chamou-se a atenção para o fato de que as lideranças contemporâneas das esquerdas da região também diferem das tradições das esquerdas de maneira geral, e se relacionam com a diluição e o enfraquecimento de suas bases militantes, que são crescentemente plurais, mas, ao mesmo tempo, veem o seu poder diluído. Quanto às lideranças, vimos que Vázquez, Lagos e (progressivamente) Lula seriam exemplos de um “personalismo” crescente. Em alguns casos, temos líderes que tinham pouca ascendência partidária antes de passar por destacadas atividades governamentais. É o caso de Bachelet que, por conta de sua atuação como ministra do governo Lagos, tornou-se um fenômeno de popularidade que os líderes partidários socialistas finalmente não puderam ignorar. Nesse tema das lideranças também poderiam ser propostas algumas diferenças. Talvez algumas das lideranças das esquerdas latinoamericanas pudessem ser consideradas mais personalistas do que a média, dificultando com isso ainda mais a institucionalização de suas organizações. A liderança de Morales é exemplar enquanto articulador informal de seu partido, e dificultador de qualquer articulação formal. Ele exerce um papel de “moderador”, não podendo ser entendido como um líder “populista” tradicional. Morales é o único a exercer liderança por cima do amálgama de correntes sociais e posições ideológicas masistas e, mais do que manipular e manobrar, ele sempre exerceu uma mediação entre elas, assumindo posições de

Vitorias na crise.indd 92

10/17/11 12:55 PM

Organização / 93

equilíbrio, articulação e arbitragem. Assim, ao mesmo tempo em que influi na correlação de forças masista, ele a reflete, e dessa maneira exerce sua liderança de forma quase incontestável (Do Alto, 2007). Os militantes dos partidos mais desinstitucionalizados teriam poucos meios para influir em suas decisões. No caso do MAS, é razoável propor que seus militantes individuais não possuem muitos meios para influir nas instâncias superiores do partido – o que pode ter sido até certo ponto minorado pela institucionalização parcial do partido – e que nele, a força dos setores militantes (nesse caso não de indivíduos, mas de grupos) poderia se manifestar mais facilmente de modo indireto, através de mobilizações dos movimentos sociais, organizações e sindicatos que integram o partido. Constatadas essas e outras diferenças e características, e a partir da tipologia proposta por Gunther e Diamond (2003), propus quais seriam os tipos organizativos mais semelhantes com os partidos aqui analisados. PSCh, PT e FA seriam atualmente “eleitoralistas programáticos”, enquanto o MAS seria uma mescla entre movimento “étnico-congressual” e de “esquerda libertária”. Para compreender as mudanças ocorridas com os partidos ao longo do tempo, abordei o tema das funções partidárias, e recorri às proposições de Kitschelt (1989) de relacionar as disputas entre os setores internos dos partidos com seu entorno institucional e social. A disputa entre “ideólogos”, “lobistas” e “pragmáticos”, a relativa hegemonia de setores “pragmáticos” aliados aos “lobistas”, foi proposta para explicar a “moderação” do PSCh, do PT e da FA. Já um contexto de forte mobilização social com pouca abertura do sistema institucional e partidário a novos atores explicaria o poder de setores “ideológicos” no interior do MAS, e assim seu papel ideologizado e antissistêmico. Ao defender a heterodoxia organizativa das esquerdas latinoamericanas contemporâneas seria interessante discutir até que ponto isso se traduz em democracia interna. Tratar-se-ia de uma questão em aberto, pois as fontes reunidas não se prestam a fundamentar qualquer análise nesta área. Entretanto, e procurando não ser pessimista, é difícil esperar que as bases desmobilizadas e pulverizadas desses partidos tenham maiores poderes para além de accountability vertical, intervenções mais ou menos manipuladas na renovação de lideranças e eventuais participações em decisões gerais quando se dão situações de impasse entre grupos dirigentes24. Nas palavras de Panebianco (1988), é um

Vitorias na crise.indd 93

10/17/11 12:55 PM

94 / Vitórias na crise fato estabelecido (por várias pesquisas empíricas sobre partidos) que os principais recursos de poder tendem a ser concentrados nas mãos de pequenos grupos. A oligarquia de Michels, o “círculo interno” de Duverger, a “ditadura cesarista plebiscitária” de Ostrogorski e Weber, são apenas alguns exemplos que trazem esse fenômeno à mente (p. 37).

Deve-se evitar, no entanto, o fatalismo de Michels (1982) e sua “lei de bronze da oligarquia”, segundo a qual “a organização é a fonte de onde nasce a dominação dos eleitos sobre os eleitores, dos mandatários sobre os mandantes, dos delegados sobre os que delegam. Quem diz organização, diz oligarquia” (p. 238). Mais ainda, que “a oligarquia é como a forma preestabelecida da vida em comum dos grandes agregados sociais” (p. 235). Pode-se até mesmo afirmar genericamente que, dada sua pluralidade ideológica e identitária e sua estruturação fracionada, inclusiva e calcada na deliberação das bases, esses partidos seriam em tese mais democráticos do que a média, ou do que a tradição das esquerdas. Somente não é possível esperar encontrar nos partidos mais democracia que a exercida contemporaneamente em nossas sociedades – que certamente pode ser aperfeiçoada e “ampliada”.

Vitorias na crise.indd 94

10/17/11 12:55 PM

Organização / 95

Notas

1

Ao menos idealmente, visto que na prática os partidos organizados nestes moldes foram por vezes mais complexos e plurais que o esperado.

2

Neste formato de partido, um órgão de imprensa tinha papel central, tanto como unificador do partido quanto como divulgador de suas posições. É interessante notar a precariedade dos órgãos de comunicação das organizações estudadas, que não conseguiram (ou não tiveram por meta) editar órgãos informativos estáveis.

3

Vou utilizar algumas vezes estas “constituições” dos partidos, reconhecendo desde já que há uma distância muitas vezes enorme entre o dever ser e a realidade da vida partidária – algo que qualquer indivíduo que atuou num partido ou o estudou já sabe. Os estatutos nunca podem demonstrar como a vida partidária se organiza exatamente, devido a seus artigos que são descumpridos e às normas consuetudinárias que não constam em suas páginas. Mas podem ser lidos como uma aproximação, ou pelo menos dizem muito acerca das relações de força e das posições hegemônicas na organização quando eles foram escritos, bem como de seus modelos.

4

“Prometeis por vossa honra de combatente do socialismo e pela memória de seus mártires, consagrar vossa vida ao serviço incondicional do partido, da classe trabalhadora e da revolução socialista; entregar vosso espírito e vosso sangue à grande causa de libertar o Chile do jugo imperialista e da exploração capitalista; aceitar a disciplina do partido acima de qualquer outra consideração e ser um esforçado e leal militante socialista?” (PSCh, 1991).

5

A unidade socialista começou a refluir em 2008, quando alguns setores à esquerda da agremiação se retiraram. Isto parece ser fruto de uma tendência à oligarquização de sua direção, bem como do aparente esgotamento da estratégia socialista e da Concertação como um todo.

6

Por exemplo, como se afirma no VII Encontro Nacional do partido (1990): “Característica do partido desde as suas origens, a democracia interna é virtude diferenciada entre o PT e os demais partidos, tanto os burgueses quanto os partidos convencionais de esquerda” (PT, 1998a, p. 447). Já a convocatória do I Congresso (1991) afirma que “o PT pode oferecer um exemplo inédito de democracia interna particularmente significativa em uma sociedade autoritária como a brasileira. Nela, a tradição partidária sempre foi marcada, à direita, pela manipulação e o clientelismo; à esquerda, a despeito dos testemunhos de dedicação e combatividade,

Vitorias na crise.indd 95

10/17/11 12:55 PM

96 / Vitórias na crise as práticas dominantes foram as de grupos minoritários, com escassa implantação social e pautando muitas vezes sua atuação pela intolerância e o dogmatismo” (PT, 1991). 7

Como o mecanismo de eleição direta das direções, aprovado no II Congresso (1999). Trata-se de iniciativa com aspectos a princípios democratizantes, mas que, no entanto, autonomiza as lideranças partidárias, ao retirar poder decisório de bases, militantes e tendências para diluí-lo entre todos os filiados, em tese menos envolvidos na vida partidária e mais influenciados pelas grandes lideranças midiáticas.

8

Apesar de um provável enfraquecimento deste aspecto a partir do fortalecimento da identidade e das instituições petistas e das seguidas iniciativas legais para restringir a atuação das tendências – visível ao cotejar as diversas resoluções sobre tendências aprovadas ao longo do tempo contidas na compilação de documentos editada pelo partido (PT, 1998a).

9

Essa estruturação, aliada ao enfraquecimento das bases, leva por vezes ao efeito colateral da dupla representação de partidos e tendências nos órgãos de direção, na medida em que seus militantes podem se representar tanto como integrantes de frações quanto como independentes (Yaffé, 2001; 2005).

10 Atualmente,

o Movimento de Participação Popular (MPP), ligado aos militantes tupamaros, parece estar se impondo por um período mais longo como a principal força do partido.

11 Estas

tendências são observáveis ao cotejar as entrevistas de parlamentares masistas reunidas por Zuazo (2008).

12 Quanto

ao que Panebianco chama de “modelo genético” do partido, se a organização tem origem geograficamente localizada, a partir da qual se espalha pelo país, e ela se legitima por si mesma e não por organizações externas (sindicatos, movimentos, instituições religiosas), maior é a sua tendência a desenvolver instituições fortes. Quanto às suas disputas internas por poder, uma forte integração (“sistematicidade”) de seus circuitos internos, a coesão da coalizão dominante e seu controle sobre as frações que integram o partido indicam maior institucionalização.

13 Além

da crescente densidade organizativa, pudemos notar em algumas passagens anteriores a presença nessas organizações de uma identidade própria, que é um aspecto atitudinal importante no processo de institucionalização – na medida em que implica em valorização da organização e em sentimento de pertencimento e lealdade entre seus membros. Tratarei mais detidamente deste último aspecto no próximo capítulo.

14 Uma

obra coletiva que aborda essa questão é a organizada por Alcántara e Freidenberg (2003). Nela, a mesma avaliação aqui proposta é defendida mais sistematicamente, exceção feita ao caso do MAS, que não consta na referida obra. No entanto, esse partido é tido como pouco institucionalizado pela literatura que o analisa.

Vitorias na crise.indd 96

10/17/11 12:55 PM

Organização / 97 15 Tal

situação chegou a tal ponto que, nas palavras de Líber Seregni, então presidente da FA, “a realidade nos está demonstrando que esta nossa orgânica, que tem muitas coisas positivas, não é a adequada (…). As relações internas da Frente, incluindo as relações internas dos partidos da Frente, não se adequam à realidade. A realidade superou certa estreiteza” (Seregni, 1991).

16 Um

exemplo neste sentido é a formação do Órgão de Condução Política entre 1993 e 1995, substituindo a direção da FA. As disputas internas, combinadas às altas exigências estatutárias para resolvê-las, levaram o partido a tal paralisia que se formou o referido organismo, para guiá-lo ao longo das eleições de 1994.

17 Um

bom exemplo desse movimento é dado pela declaração do então presidente do PSCh, Camilo Escalona: “um Partido Socialista como o nosso pode e deve ter uma configuração pluralista, mas deve contar necessariamente com uma direção única, com certezas e afirmações compartilhadas e respeitadas por todos. Quero sublinhar que a resposta tampouco é o modelo de partido hierarquizado e monolítico da experiência comunista. Através dele se encarnaram núcleos burocráticos de poder nos partidos de esquerda cujos efeitos foram catastróficos. Mas tampouco pode ser válido um caminho de intermináveis disputas e de anarquização da organização” (Escalona, 2002).

18

O termo é referência ao presidente colorado José Battle (que governou o Uruguai de 1903 a 1907 e de 1911 a 1915). A partir das primeiras décadas do século XX, deu-se a construção no país do que ficou conhecido como “Estado battlista” – experiência próxima de um Estado de bem-estar. Este processo também deu frutos ideológicos: a chamada cultura “battlista”, que permeou amplos setores da sociedade uruguaia ao longo do século XX.

19

A autonomização da liderança de Lula deu-se ao longo dos anos 1990, associada a uma metamorfose parcial de seu perfil, de líder sindical e partidário a liderança crescentemente autônoma e policlassista.

20

Considero que, em meio a essa transformação ambiental, um grande peso explicativo deve ser dado à flexibilidade institucional, à agilidade e à abertura dos partidos analisados. Detentores de autonomia relativa como quaisquer atores sociais e subjetividades coletivas, eles poderiam, malgrado todas as transformações estruturais, e se fossem organizações “fechadas”, ter reproduzido ad infinitum suas tradições à custa de exercer um papel apenas residual em suas sociedades.

21

22

Vitorias na crise.indd 97

Ele difere claramente do partido “burocrático de massas”, na medida em que este se caracteriza pelo predomínio da burocracia; pela filiação como via privilegiada de adesão e laços organizativos verticais; pela proeminência da direção; pelo financiamento pelos próprios membros; e pela direção colegiada e ênfase na ideologia. Deve-se chamar atenção para o fato de que parte dos partidos de esquerda (especialmente entre os comunistas e seus secretários gerais) teve suas

10/17/11 12:55 PM

98 / Vitórias na crise lideranças fortes. Mas sua força geralmente derivava em última instância do cargo que estes líderes ocupavam, ou do fato deles representarem o coletivo dirigente ou o conjunto de seus partidários. Muitas vezes estes líderes, ao se afastar de seus partidos, perdiam apelo. Por exemplo, Luiz Carlos Prestes, que depois de sair do Partido Comunista Brasileiro (PCB) vivenciou o ocaso de sua trajetória. 23 Para

exemplificar, segundo Yaffé (2005) a FA não se ajusta ao modelo catch-all. Aumentou seu caudal eleitoral com base numa estratégia catchall, mas legalmente viu um fortalecimento dos filiados e da importância da participação militante. No entanto, a ação eleitoral ganhou papel central em sua lógica, e houve uma profunda crise de militância depois de 1989, relativizando o efeito dessas normas legais. Também não se ajusta exatamente ao modelo “profissional eleitoral”. Por um lado, os burocratas nunca tiveram maior peso, o partido apelou crescentemente à adesão eleitoral e flexibilizou os laços dos membros com a estrutura, os parlamentares tornaram-se mais importantes e a direção adquiriu forte grau de personalização com Vázquez. No entanto, a vinculação militante e a disciplina seguiram sendo valores importantes, os parlamentares não se autonomizaram de todo, assim como a direção seguiu parcialmente sendo colegiada. O autor considera então que a FA se localiza num ponto intermediário entre os modelos “burocrático de massas” e “profissional eleitoral”.

24 Até

o momento, o MAS parece ser o que apresenta maiores possibilidades para que seus integrantes influam nos rumos do governo. O partido exerce até aqui uma função de síntese dos anseios e pressões de movimentos sociais e sindicais que o integram, e parece jogar um papel mais central que seus pares do continente nas decisões governamentais. No entanto, não é claro se tal força emana da organização partidária em si ou dos movimentos sociais, associações e sindicatos ligados a ela.

Vitorias na crise.indd 98

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 99

capítulo

3

Ideologia e identidade 3.1 – Apresentação

Vimos no capítulo anterior que as esquerdas latino-americanas contemporâneas apresentam uma concepção plural de si mesmas, de suas estruturas e bases, em contraposição à tradição das esquerdas. Nesse capítulo discuto aspectos ideológicos e identitários dessas organizações. Neste campo, assim como no anterior, considero que o principal ponto de contato entre elas é o afastamento em relação às tradições ideológicas e identitárias das esquerdas. Ou seja, nota-se aqui também uma pluralidade em comparação com a tradição de “monolitismo” teórico, da necessidade de seguir referências externas e da obrigatoriedade de representar setores sociais específicos. No limite, as esquerdas aqui estudadas valorizam de maneira crescente a prática e a experiência própria sobre a teoria, afastando-se do “teoricismo” das esquerdas. Também neste campo, demonstram uma flexibilidade, que contribui para uma melhor adaptação a uma realidade social que se complexifica e se modifica rápida e profundamente. Quanto à ideologia, e considerando a história das esquerdas da região, deu-se um afastamento principalmente em relação a referências ideológicas marxistas-leninistas e a experiências vinculadas ao “socialismo real” em suas diversas vertentes. Refiro-me tanto a vertentes “universais”, sendo a principal a soviética, que marcou profundamente as esquerdas do continente ao longo da maior parte do século XX, quanto às de impacto mais regional, notadamente a cubana, relevante em especial nos anos 1960 e 1970 (Löwy, 1999; Sader, 2009). E isso é um traço em parte novo, na medida em que foram poucos os setores das esquerdas continentais que historicamente se definiram como experiências nacionais e originais1. Considero que a referida “independência” dos partidos analisados – que pode ser compreendida como uma busca por originalidade que passa por uma “nacionalização” e uma “regionalização” destas organizações – foi importante para o enfrentamento da crise que se manifestou nas

Vitorias na crise.indd 99

10/17/11 12:55 PM

100 / Vitórias na crise

esquerdas mundiais. Ao garantir espaço simbólico para a adaptação, sua independência também as favoreceu num contexto de profundas mutações sociais, que caracterizaram o período em que essas forças foram fundadas ou renovadas, e no qual ampliaram suas bases sociais e eleitorais em direção à conquista de governos nacionais. Em especial, tal autonomia deixou bastante espaço para a ampliação e a diluição da identidade classista tradicional das esquerdas (calcada na representação da classe operária ou trabalhadora), combinando dois fenômenos. De um lado, um crescente policlassismo, passando de partido operário a partido de todos “que trabalham”, ou todos “que produzem”. De outro, a ascensão de referências alternativas como “etnia”, “nação”, “cidadania” e “povo” que, no limite, subordinam o elemento classista. Estes novos apelos identitários que buscam ampliar a representatividade são funcionais num processo de disputa por hegemonia num ambiente democrático. É evidente que partidos que apelam a uma identidade estritamente (e estreitamente) classista não podem se tornar eleitoralmente hegemônicos. Nas palavras de Przeworski e Sprague (1986), “dado o status minoritário dos trabalhadores, líderes de partidos classistas têm que escolher entre um partido homogêneo em seu apelo de classe, mas sentenciado a derrotas eleitorais perpétuas, ou um partido que luta por sucesso eleitoral à custa de diluir sua orientação de classe” (p. 3). Tal assertiva, notável para entender as experiências das socialdemocracias europeias, se torna ainda mais significativa num período de complexificação, pulverização e diluição das classes e identidades sociais na etapa atual da modernidade, e num continente em que tivemos historicamente (em comparação com os países centrais) classes sociais mais difusas, insistente presença de trabalho informal, partidos políticos nem sempre representativos e estruturados e democracias frágeis. Recordo que um argumento que subjaz esse trabalho é exatamente o de que, se as metamorfoses pelas quais passaram nossas esquerdas apresentam pontos de contato com as experiências social-democratas, elas se relacionam igualmente com tradicionais características sociopolíticas latino-americanas, e também com as transformações globais e regionais ocorridas nas últimas décadas. Esse capítulo está estruturado da seguinte forma: em primeiro lugar, trato da independência teórica e ideológica das atuais esquerdas latino-americanas em relação às experiências denominadas de “socialismo real”, assim como em relação ao marxismo (leninismo)

Vitorias na crise.indd 100

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 101

enquanto ideologia “oficial” – ao qual a maior parte das esquerdas do continente se filiou historicamente. Mas discuto também o afastamento manifesto por parte delas em relação à social-democracia e seus governos. Isso sempre foi um traço comum no continente: poucas de suas esquerdas se filiaram ao longo do século XX a referências ideológicas e práticas da social-democracia europeia. O curioso é que esse afastamento oficial se manteve, mesmo quando algumas delas vivenciaram um processo de moderação que guarda pontos de contato com a trajetória social-democrata. Procuro mostrar que as esquerdas estudadas recorrem a uma considerável amplitude de referências ideológicas que, no limite, são manipuladas de acordo com as necessidades e as mudanças conjunturais. Elas vão construindo também identidades próprias, o que pode ser visto como uma “tradicionalização” de suas identidades, apelando tanto à construção de referenciais próprios quanto a elementos tradicionais nacionais e regionais. Isso não deixa de ser um processo de “invenção de tradições”, no sentido dado por Hobsbawm e Ranger (2002). Por fim, trato da ampliação e da diluição identitária dessas esquerdas que, em última instância, as leva a se posicionarem como partidos “populares”, plurais e “nacionais”. Assim, trata-se de esquerdas “policlassistas”, mas, ao mesmo tempo, “supraclassistas”, na medida em que apelam tanto a amplas referências de classe, quanto a outras modalidades alternativas de identificação com seus eleitores e membros.

3.2 – Esquerdas independentes Uma característica marcante dos partidos aqui analisados é sua relativa independência em relação às referências internacionais do “socialismo real” e da social-democracia, bem como ao ideário marxista (ou qualquer outro) como teoria “oficial”. Nesse sentido, pode-se afirmar que, em comparação com a tradição das esquerdas latino-americanas, elas teriam ampliado sua margem de autonomia, ou seja, teriam avançado no processo de nacionalização das tradições das esquerdas da região. Trata-se de algo parecido com o que havia ocorrido entre as social-democracias europeias na primeira metade do século XX. “Nacionalização” aqui pode ser compreendida em duas chaves, que evidentemente se relacionam: inserção (reinvenção) simbólica das esquerdas às tradições e trajetórias de seus países; e sua expansão por todo o território nacional, na medida em que as

Vitorias na crise.indd 101

10/17/11 12:55 PM

102 / Vitórias na crise

esquerdas latino-americanas muitas vezes se concentraram nas principais cidades e nas regiões mais ricas de seus países (Serna, 2004). O primeiro aspecto é enfatizado nas próximas páginas, na medida em que o considero importante para a realização do segundo. Se as esquerdas latino-americanas posicionaram-se inicialmente como tentativas de ruptura com suas tradições, as novas ou renovadas esquerdas aqui analisadas passaram a assumir-se como parte integrante (numa chave progressiva e reformadora) daquelas tradições. Mas chamo atenção para a expansão territorial em direção ao interior realizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pela Frente Ampla (FA) e pelo Partido Socialista do Chile (PSCh), e para o fato do Movimento ao Socialismo (MAS) já ter nascido heterodoxamente no interior do país, de onde expandiu suas bases para os grandes centros2. Os socialistas chilenos constituem o caso mais paradigmático do que é defendido aqui, na medida em que elementos que se tornariam comuns às esquerdas latino-americanas décadas mais tarde já se manifestavam de alguma forma entre eles desde sua fundação. As características do PSCh, de razoável independência simbólica e autonomia e pluralismo ideológico (que não à toa desembocaram na proposição de uma via original ao socialismo), eram uma exceção em meio a esquerdas regionais que, se não eram propriamente dependentes de decisões vindas de fora, também não eram exatamente originais em termos ideológicos e identitários. No entanto, quando se deu a reunificação do partido em 1989, tais características começavam a se tornar a regra entre as esquerdas mais representativas do continente. Naquele momento, a heterogeneidade ideológica e a falta de referências internacionais já haviam cumprido seu papel ao facilitar a adaptação vivenciada pelo PSCh nos anos 1980, como foi destacado por Roberts (1994). O partido recebeu, ao longo de sua trajetória, influências externas, que eram, contudo, retrabalhadas em chave nacional e combinadas com elementos locais. Desde a sua fundação, e na medida em que os socialistas chilenos buscavam um caminho próprio (chileno e latino-americano) para o socialismo, eles se posicionavam contrariamente à experiência soviética e, de maneira geral, se afastavam de qualquer referência oficial – apesar de muitos deles simpatizarem com a APRA nos anos 1930, com o socialismo iugoslavo nos anos 1950 ou com o cubano nos anos 1960. Quanto a ideologias oficiais, a agremiação se filiou a princípio ao marxismo como ideologia oficial, mas de maneira fluida, aceitando-o como “método de interpretação

Vitorias na crise.indd 102

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 103

da realidade”, mas “retificado e enriquecido por todos os aportes científicos do constante devir social” (Ortiz, 2007, p. 108). Mais que isso, o partido teve como característica marcante desde sua fundação o fato de abrigar diversas correntes ideológicas, desde tendências trotskistas, passando por tendências antioligárquicas, populistas, latino-americanistas, até personalidades intelectuais advindas do anarquismo e do “socialismo humanista”. A sua origem não foi, portanto, o movimento operário, nem o jogo político parlamentar. Originariamente, o PSCh afirmou-se pelo apelo “nacionalpopular”, mesclando um forte sentimento latino-americanista e revolucionário, fundado no marxismo (Aggio, 2002, pp. 85-86).

Grosso modo, ao longo de sua trajetória o PSCh reuniu em seu interior tendências “democráticas” e “rupturistas” (como formas distintas de se chegar ao socialismo, concebido por sua vez de diversas formas). O exemplo mais comum das primeiras se traduziu no Programa Socialista de 1947, elaborado por Eugenio González, e que foi resgatado posteriormente por “renovadores” do partido como forma de justificar suas posições e de disputar a memória socialista, para demonstrar que posições atuais do PSCh sempre estiveram presentes em essência, ou para atestar suas credenciais democráticas. Este programa representou o ponto máximo de recepção pelo partido do que poderiam ser considerados elementos social-democratas em suas primeiras décadas de existência, na medida em que as posições de González, calcadas no “socialismo humanista”, procuraram superar a visão instrumental da democracia, defendendo o caminho ao socialismo como aprofundamento da democracia e dos valores positivos da revolução burguesa. Mas tal formulação assumia uma chave claramente nacional, na medida em que propunha um caminho chileno ao socialismo. Ao mesmo tempo, ele mantinha um caráter classista e anticapitalista, que o afastava de influências social-democratas que vinham já então se afastando de perspectivas revolucionárias. Por outro lado, ao longo dos anos 1960 e princípios dos anos 1970, o partido teve sua maior aproximação a um exemplo externo e a uma ideologia oficial. O PSCh se filiou oficialmente ao marxismo-leninismo a partir de 1967 (curiosamente um elemento pouco presente em sua fundação) e teve como referência importante a experiência cubana, inspirando-se na ascensão dos movimentos guerrilheiros da região. Tratava-se de uma leitura latino-americanista e

Vitorias na crise.indd 103

10/17/11 12:55 PM

104 / Vitórias na crise

nacional de marxismo-leninismo (como sempre se deu em sua trajetória), que seguiu convivendo com outras posições manifestadas no interior do partido. Tal pluralidade desembocou no governo de Salvador Allende, calcado num projeto original de implantação do socialismo pela via eleitoral, que remetia em boa parte ao Programa de 1947. A chegada ao poder por meios legais se deu exatamente no momento em que o partido se radicalizava, revelando assim uma contradição. Tal disputa se manifestou no interior do governo e constituiu um dos fatores complicadores no fracasso da “via chilena ao socialismo”, que acabou não passando de um projeto (Aggio, 2002). Mais tarde, especialmente entre os exilados, começaram a circular algumas referências e se dar intenções de aproximação com experiências social-democratas ou socialistas europeias. Nenhum dos grupos em disputa assumia a filiação a exemplos externos, mantendo a tradição de independência dos socialistas chilenos. No entanto, recebiam acusações dos adversários nesse sentido. Grosso modo, os “renovadores” acusavam os “almeydistas” de se basearem em modelos do Leste Europeu para formular suas políticas, e de dependerem financeiramente deles – durante grande parte da ditadura, diversos dirigentes exilados que vieram a integrar o Partido Socialista Almeyda (PS-Almeyda) se estabeleceram na Alemanha Oriental. Por outro lado, o PS-Almeyda acusava o Partido Socialista Núñez (PS-Núñez) de ser influenciado por referências europeias ocidentais como o eurocomunismo italiano e a social-democracia francesa ou a espanhola – países onde viviam a maior parte de seus dirigentes e membros exilados (Yocelevzky, 2002, p. 244). Quanto às referências ideológicas, o PS-Núñez foi ao longo dos anos 1980 se afastando abertamente do corpus teórico leninista (e mesmo marxista), enquanto o PS-Almeyda seguiu se organizando basicamente em moldes leninistas, e assumindo o marxismo-leninismo como teoria oficial. Por fim, as primeiras posições prevaleceram, e os socialistas chilenos se desfizeram em grande medida de suas referências doutrinárias mais rígidas e de sua aproximação com experiências do “socialismo real”, posicionando-se como um partido de ideias e valores mais que ideológico – num contexto em que as grandes ideologias batiam em retirada, mas não as ideias (nas palavras de Lagos, 1993, p. 23). O PSCh atual definiu sua base ideológica “com uma amplitude que teria deixado perplexos os socialistas de antes de 1973” (Yocelevzky, 2002, p. 254). O marxismo, que sempre teve um peso significativo em sua

Vitorias na crise.indd 104

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 105

definição, agora se tornava uma referência entre muitas outras, não sendo descartado talvez mais pelo peso na tradição do partido e apego de algumas de suas tendências (mas especialmente de parte de suas bases) que por sua atual relevância (Walker, 1990). Segundo a Declaração de Princípios do PSCh (1990b), nele confluem distintas expressões do pensamento emancipador e transformador do mundo contemporâneo, todas inseridas na matriz crítica da sociedade capitalista. É assim que convergem em seu seio o pensamento marxista enriquecido e retificado por todos os avanços científicos e pelo devir social, com as melhores tradições humanistas e com os valores solidários e libertadores da mensagem cristã (PSCh, 1990b)3.

A pluralidade ideológica só se explicitou com o tempo, na medida em que o liberalismo ganhou mais peso: “seguimos assumindo a crítica ao sistema capitalista e a seus efeitos sociais proveniente do marxismo. Mas recolhemos com a mesma força toda a tradição do liberalismo político” (PSCh, 1996). O PSCh também abandonou explicitamente qualquer pretensão vanguardista leninista, na medida em que afirma que “não pode ser nem se sente depositário único e exclusivo dos impulsos e da realização das transformações sociais progressistas. Pelo contrário, comparte esse papel com outros agentes e instrumentos das mudanças democratizadoras” (PSCh, 1990b). A independência relativa do partido ao longo de sua trajetória ofereceu elementos para sua tentativa de se descolar do “socialismo real”, afirmando em seus documentos que o socialismo chileno sempre rechaçou a influência soviética e preservou sua autonomia, cultivando o “latinoamericanismo”. No documento programático que marcou sua reunificação em 1989, o PSCh explicou a crise do “socialismo real” como o fracasso de uma forma de socialismo, não do socialismo como um todo: O que se apresenta como fracasso do socialismo não é tal. É, certamente, o fracasso de um projeto específico dentro do vasto universo das ideias do socialismo. É o fracasso do stalinismo, fundado em uma matriz ditatorial e dogmática que deu origem a um “socialismo burocrático” que o PSCh denunciou e criticou severamente desde sua própria fundação (PSCh, 1989).

No entanto, a tentativa de isolar os socialistas chilenos e restringir a crise ao stalinismo é relativizada por algumas declarações de

Vitorias na crise.indd 105

10/17/11 12:55 PM

106 / Vitórias na crise

importantes dirigentes do partido, em especial daqueles oriundos do PS-Almeyda. Nesse caso, se reconhece que os socialistas chilenos tinham algo a ver com o que ruiu no Leste Europeu. Vejamos algumas declarações. Para Germán Correa, oriundo do “almeydismo”, integrante do Terceirismo e presidente do partido quando proferiu o discurso citado a seguir, Esses regimes [socialistas], fundados no despotismo burocrático do partido único, vieram abaixo como castelos de cartas. (...) Nesse panorama, as esquerdas do mundo retrocedem ideológica e politicamente frente ao impacto (...) do desastre da queda de regimes que, de uma ou outra maneira, constituíram referências e pontos de apoio para validar a viabilidade histórica da proposta socialista. (...) Temos que assumir os fracassos de hoje com valentia em todas as suas implicações e derivações, por custosas e dolorosas que sejam (PSCh, 1992).

Segundo Camilo Escalona, igualmente oriundo do PS-Almeyda e presidente do partido quando deu a seguinte declaração, tivemos que romper com uma visão dogmática do Estado, que não sendo própria do socialismo chileno, influía em nossa proposta desde o auge revolucionário produzido nos anos 1960-1970. Tal concepção que aceitava um papel onipotente do Estado e justificava a instalação de um sistema de partido único, ficou logo, na fronteira entre os anos 1980 e 1990, inteiramente esgotada uma vez derrubada a URSS e o chamado campo socialista (Escalona, 2002).

O atual PSCh também resiste a ser comparado ou a se espelhar em qualquer modelo social-democrata (apesar dos pontos de contato com tal referencial, do qual o partido provavelmente se aproxima mais que do marxista), se reconhecendo como uma experiência nacional, própria. Isso é justificado com o argumento de que a socialdemocracia é originária de um contexto geográfico e temporal particular, inadequado tanto à realidade chilena e latino-americana quanto ao período atual. Talvez tal afastamento oficial se deva também ao temor de que ele pudesse afastar bases socialistas mais ortodoxas, ou dificultar o processo de reunificação (Walker, 1990; Silva, 1993). Fato é que o partido passou a integrar (não sem polêmicas internas) a Internacional Socialista (IS), em tese como parte de um esforço para construir relações internacionais plurais, de modo a garantir sua autonomia.

Vitorias na crise.indd 106

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 107

Resumindo, deve-se levar em conta a histórica autonomia e originalidade dos socialistas chilenos, mas é preciso considerá-la como relativa. Não se deve exagerar neste ponto, como faz atualmente o próprio partido em seus documentos oficiais e nas declarações de alguns de seus dirigentes e intelectuais, revelando um processo de reconstrução de sua memória para que se apresente como autônomo, plural, nacional e democrático desde a sua fundação. O PSCh seria, segundo ele próprio, profundamente nacional, constituindo um reflexo da sociedade e da história chilenas, e sua trajetória seria um patrimônio de seu povo. Se isso não chega a ser uma “falsificação” histórica, trata-se de uma seleção interessada, como em qualquer processo de construção da memória, oficial ou não. Por outro lado, não se deve negar igualmente a presença de tais elementos, como faz Walker (1990), ao propor que o partido sempre foi fortemente influenciado por modelos externos e antidemocráticos – versão que não é corroborada pela literatura especializada. Assim, quando o partido se reorganizou a partir de 1989, estava sob o impacto do fracasso do “socialismo real” e da crise das esquerdas de maneira geral. Mas tinha simbolicamente espaço suficiente para superá-los, num processo em que ampliou sua autonomia, sua originalidade e sua “nacionalização”. A FA e o PT, como o PSCh, tiveram originalmente em seu interior setores que reivindicavam o ideário marxista (e mesmo leninista) e, em menor escala, que recorriam a algum referencial externo de construção do socialismo. No entanto, como no PSCh, essas são posições crescentemente minoritárias nessas organizações. A FA teve em suas origens um partido socialista e outro comunista que se destacavam (em especial o primeiro) por mesclar referências externas práticas e ideológicas com tentativas de adaptação e nacionalização locais. O Partido Socialista Uruguaio (PSU) e o Partido Comunista Uruguaio (PCU), em especial desde os anos 1950, se renovaram buscando inserir-se mais ativamente na vida nacional. O “socialismo nacional” proposto por Vivián Trias entre os socialistas, marcado por uma heterodoxia e um sincretismo (combinando elementos locais, terceiromundistas, “marxistas periféricos” e nacional-populares), foi a principal expressão desse fenômeno (Gallardo, 1995). Tal processo se aprofundou nos dois partidos nas últimas décadas. Até hoje o PSU e o PCU reivindicam o marxismo (leninismo no caso do segundo) como ideologia e o centralismo democrático como modelo organizativo. No entanto, isso se dá de forma bastante fluida e mesclada a

Vitorias na crise.indd 107

10/17/11 12:55 PM

108 / Vitórias na crise

outras referências ideológicas e organizativas. Além disso, ambos se afastaram definitivamente de modelos internacionais de construção do socialismo, fortemente criticados. Já em 1989, mesmo o PCU teceu fortes críticas ao modelo soviético, taxando-o de autoritário e burocrático. A frente teve também em sua fundação a presença de democratas cristãos (que entre suas referências ideológicas curiosamente apontavam naquele momento o socialismo “autogestionário” nos moldes iugoslavos) e de setores blancos e colorados. Para além deles, havia diversos membros independentes, e colaborava para a pluralidade identitária desde suas origens a própria concepção da frente como movimento (além de coalizão). Seja pela presença de setores não marxistas e não afeitos a nenhum modelo, seja pela concepção plural e maior que a mera soma das organizações que participaram da sua fundação, a FA nunca manifestou ideologias e referências explícitas. Nunca se declarou oficialmente marxista, nem mesmo socialista, e nunca tratou mais detidamente de modelos internacionais. Notabilizou-se ao longo de sua trajetória por desenhar programas mais flexíveis e práticos que os de suas organizações-membro, e por se basear em valores ideológicos mais fluidos (nacionalismo, antioligarquia, anti-imperialismo, na sequência progressismo e antineoliberalismo), deixando as definições mais específicas para seus grupos internos. A FA foi experimentando com o passar dos anos uma “tradicionalização”, que se traduz na gestação de uma identidade própria, ela mesma fortemente autônoma, nacional e fluida. Em seu II Congresso Ordinário (1991), o partido se assumiu como ideologicamente plural e policlassista, uma “força nacional, que se enraíza com as melhores tradições históricas e resgata o profundo conteúdo popular, revolucionário e democrático do pensamento e da ação do nosso herói José Artigas” (FA, 1991). Em seu IV Congresso Ordinário (2001), declarou-se uma força política essencialmente pluralista em que confluem organizações e pessoas progressistas de distintas origens filosóficas, ideológicas e sociais, convencidas da necessidade de promover e instrumentalizar mudanças na sociedade uruguaia que melhorem a vida de sua gente, recolhendo da tradição e do ideário artiguista boa parte de sua proposta e sua vocação de luta transformadora (FA, 2001, p. 15).

Vitorias na crise.indd 108

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 109

Tal processo de “tradicionalização” passou pela formulação de uma identidade própria, que se alimentava de valores dos partidos que a integravam, mas, principalmente, pela visão de si mesma como uma força política nacional (arraigada nas tradições sociais e políticas uruguaias) e original (maior que a soma de suas partes, uma coalizão e movimento, unitária e plural, criação própria de seu povo) e pelo culto a símbolos nacionais, em especial José Artigas4 e, secundariamente, o battlismo e a épica revolucionária blanca. A eles foram se mesclando símbolos próprios – seus comitês, sua resistência à ditadura, suas datas festivas e pais fundadores – e foi se gestando, somando-se às tradicionais famílias políticas blanca e colorada, uma “família frenteamplista”, identificação frentista em boa parte “simbólico-emotiva”, muitas vezes passada através das gerações no interior de um núcleo familiar (Argones, Mieres, 1989; Caetano, Rilla, 1995; Yaffé, 2005). No entanto, se organizações tão importantes em seu interior possuíam referências e definições mais específicas, fica difícil imaginar que a FA como um todo pudesse passar incólume pela crise do marxismo e do “socialismo real”. Esta crise se manifestou com mais força exatamente quando as duas principais forças políticas frente-amplistas que não se definiam como marxistas nem se inspiravam no “socialismo real” – Partido pelo Governo do Povo (PGP) e Partido Democrata Cristão (PDC) – saíram da FA, ponto culminante na fracassada “primeira onda” de “renovação” frentista. Nas palavras de Seregni, os acontecimentos da Europa do Leste (…) despedaçaram a estrutura de pensamento de toda a esquerda marxista; de todos, uns mais, outros menos. E esse é o pensamento majoritário na Frente. (…) Mas à Frente enquanto força política, não [afetou]. Porque no nosso programa de vinte anos atrás você pode encontrar uma pós-Perestróica; nada a ver com o “socialismo real”. Mas o ocorrido sacudiu toda uma estrutura ideológica, filosófica, do componente majoritário da Frente e por extensão a toda a Frente. (…) concebíamos a revolução só como um ato violento (Seregni, 1991)5.

Vázquez nesse mesmo período declarou que “para os grandes temas nacionais não há direita, centro nem esquerda: todos os assumimos como uruguaios. Eu sou primeiro uruguaio e depois socialista” (Vázquez, 1992). Além de sempre afirmar a prioridade de sua

Vitorias na crise.indd 109

10/17/11 12:55 PM

110 / Vitórias na crise

identidade nacional e o caráter específico da realidade uruguaia6, o líder da FA seguiu afirmando seu pluralismo ideológico: às vezes caímos na tentação de acreditar que o marxismo é a única ferramenta que ajuda a interpretar adequadamente a realidade. Mas eu acredito que a vida nos ensina que também há outras ferramentas. (...) Uma delas é a concepção cristã. Parece-me que um governo antes de tudo, antes que de esquerda, de direita, do meio, tem que ser humano (Liscano, 2004, p. 44).

Para acompanhar as reações públicas à crise do marxismo e do “socialismo real”, só podemos recorrer às declarações de seus dirigentes, na medida em que a FA nunca se manifestou sobre o tema – apenas alguns de seus grupos. Um silêncio eloquente, que corrobora o que foi dito até aqui: a FA provavelmente teve dificuldades em lidar com o tema (não somente pelo impacto, mas pela quase impossibilidade de sintetizar uma posição oficial entre todos os seus setores), mas pôde se desviar dele na medida em que nunca se declarou marxista (nem mesmo socialista) e sempre se considerou profundamente nacional. Enquanto isso, seus grupos mais relacionados a tais modelos não puderam deixar de sentir os efeitos da crise de forma mais dramática. Em especial os comunistas, maior grupo da FA em 1989, que viram reduzirem-se drasticamente suas bases militantes, sociais e sua votação, para não mais recuperá-las. De qualquer forma, é razoável supor que o impacto da crise de paradigmas e modelos afetou não somente alguns de seus grupos, mas a FA como um todo, sendo um dos fatores a corroborar a “segunda onda renovadora” no partido, levada a cabo principalmente nos primeiros anos da década de 1990. Nesse momento teria havido, além de tudo, um aprofundamento do processo de “tradicionalização” da FA, uma tematização quase forçosa de suas tradições, como sinal indispensável para sustentar e refundar um conjunto de identidades assediadas. Se as ideias estavam “revoltas”, dever-se-ia buscar em “afetos”; se tinha perdido no exterior, podia-se experimentar com outras razões internas (Caetano, Rilla, 1995, p. 55).

Finalmente, um caso exemplar de como se expressaram esses fenômenos na FA é o do Movimento de Libertação NacionalTupamaros (MLN-T), que foi aceito na frente em 1989. Ele costuma ser descrito como um típico movimento revolucionário e socialista

Vitorias na crise.indd 110

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 111

dos anos 1960, marcado pelo impacto da Revolução Cubana, caracterizado desde suas origens por ser teoricamente heterogêneo e original (tendo como referências o marxismo, o leninismo, o anarquismo, o liberalismo e o nacionalismo), pragmático, voluntarista e flexível. Basicamente uma organização marxista, ela se afasta das tradições comunistas, e se aproxima de tradições pragmáticas e plurais. Acima de tudo, trata-se de uma força nacional, que busca inserir-se na tradição política uruguaia. É a organização que chegou “mais longe na sutura das propostas revolucionárias socialistas com a tradição política uruguaia (especialmente com o artiguismo e a épica revolucionária blanca)” (Garcé, 2006, p. 30). Se entre 1989 e 1994, o MLN-T atuou entre os setores mais radicais da FA, tentando impedir seu processo de adaptação ideológica, a partir de 1995 ele foi mudando rapidamente de posição nas disputas internas frenteamplistas. Em especial o Movimento de Participação Popular (MPP, fundado em 1989 por diversos grupos radicais da FA, e hoje integrado apenas pelo MLN-T e independentes) foi se transformando numa força ainda mais aberta, inorgânica, plural e policlassista. Passou a enfatizar principalmente a ampliação das relações com pequenos e médios produtores rurais, abrindo um espaço inclusive institucional para a atuação de militantes autoidentificados como blancos. Plural, autônomo e policlassista como a FA, a corrente hegemonizada pelos tupamaros acabou se tornando desde 2004 o maior setor frentista – guinada surpreendente, tratando-se originalmente de um movimento (ex)guerrilheiro. Neste sentido, o MLN-T e seu MPP são exemplos da adaptação da própria frente que eles integram, facilitada nos dois casos por estruturas e referências ideológicas plurais, flexíveis e heterodoxas. Quanto ao PT, contribuíram em sua construção diversas correntes marxistas (e leninistas) oriundas ou não da luta armada dos anos 1960 e 1970, todas elas críticas da herança comunista brasileira e suas alianças com setores nacional-populares e burgueses. Mas todas elas com suas ideologias oficiais e muitas delas com suas influências internacionais alternativas à experiência soviética. No entanto, essa não era a regra do partido que ajudaram a construir, e no qual essas correntes nunca foram majoritárias. O PT como um todo, em meio a tanta pluralidade em sua constituição e na medida em que seria difícil e mesmo indesejável buscar definições precisas (Lacerda, 2002), aceitou-a como um valor. Fez da necessidade, virtude. “As diferenças

Vitorias na crise.indd 111

10/17/11 12:55 PM

112 / Vitórias na crise

seriam equilibradas na prática; as respostas às grandes questões viriam da luta e na luta” (Aarão Reis, 2007, p. 510). A fluidez ideológica e a aversão a modelos efetivamente foram transformadas em virtude, como se pode aferir através das palavras apologéticas de Lula proferidas no auge da crise do “socialismo real”: poucas vezes na história política de um país houve um partido com as características do PT. Um partido capaz de juntar tantos pensamentos diferentes, capaz de juntar comunistas com cristãos, companheiros que defendem o modelo cubano com companheiros que defendem o modelo não sei de onde. (...) o PT derrubou o Muro de Berlim em 1980, quando nasceu (Lula, 1991b)7.

No mesmo momento, Rui Falcão, presidente do partido durante o breve momento de hegemonia das esquerdas petistas, não fugia muito da visão de autonomia do partido, mas reconhecia sua relação indireta com a crise: começamos antes que muitos a romper com os dogmas; outros quebraram a cara por nós (...). Não carregamos compromissos, nem somos herdeiros do que desabou no Leste Europeu – nem do “socialismo real”, nem da social-democracia. Muito embora, por conta de certa complacência nossa com o que ocorria por lá, possam nos atribuir uma desconfortável ligação (Falcão, 1991)8.

Apesar de suas características de origem, não se pode dizer que o PT pudesse passar incólume pela crise de paradigmas que assolou as esquerdas. O partido nunca teve modelos oficiais, e sempre se definiu (desde documentos de 1979 anteriores à sua fundação) de forma um tanto vaga como “socialista democrático”9, e buscou algumas vezes, de forma ainda mais vaga e autônoma, definir um “socialismo petista”, nunca se reconhecendo como marxista e muito menos leninista – tampouco social-democrata. No entanto, alguns de seus setores tinham exemplos externos ou assumiam ideologias oficiais. Mais que isso: o partido não era tão alheio às tradições das esquerdas como gostava de se proclamar, sendo evidentemente marcado de alguma forma por tais tradições, mantendo, por exemplo, relações fraternas com regimes socialistas, especialmente o cubano. Finalmente, o partido aceitou oficialmente sua relação com a questão durante a realização do I Congresso, cuja convocatória reconhecia não haver

Vitorias na crise.indd 112

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 113 como negar que o pensamento de esquerda e as ideias radicais de transformação da sociedade enfrentam uma grave crise de identidade. (...) Ainda que o PT tenha nascido combatendo estas concepções autoritárias de socialismo que ora estão ruindo, não há como negar o impacto negativo que tal crise tem sobre a cultura política de esquerda em geral, e por consequência, sobre o nosso Partido (PT, 1991).

O I Congresso acabou se convertendo num debate teórico mais aprofundado, no qual o partido se desligou (ou foi desligado por algumas de suas tendências) parcialmente da práxis para se dedicar a maiores reflexões. No entanto, mesmo nele “o acordo em relação ao socialismo permaneceria como sempre fora: vago o bastante para abrigar todas as tendências – a experiência concreta, dizia-se, é que iria apontar os rumos, como se ela pudesse, quase que espontaneamente, emergir definições e conceitos esclarecedores” (Aarão Reis, 2007, p. 517). A social-democracia foi condenada por não almejar o socialismo como meta e por ser um fenômeno factível apenas num dado período histórico superado e em países centrais. Já o colapso do “socialismo real” – que o PT naquele momento saudou como renascimento de povos oprimidos – não era apenas o colapso do stalinismo, da burocracia e do “totalitarismo”, mas sim de muito do que o movimento socialista construiu ao longo do século XX. Ele demonstrava o esgotamento do ciclo de revoluções socialistas daquele século e do modelo de sociedade proposto por elas que, malgrado os avanços sociais e políticos, deixavam a desejar em termos de democracia ou preservação ambiental, não podendo servir de modelo para o socialismo. Modelo ao qual o PT – insistiu-se – nunca se filiou oficialmente. No entanto, o partido reconheceu que diversas vezes tomamos a defesa dos regimes do “socialismo real” com o argumento de que neles, ao menos, os socialistas tinham conseguido resolver os problemas sociais aqui não superados. Nossa crítica apontava para a sua essência antidemocrática, mas incorporávamos suas experiências por aquilo que, supostamente, haviam resolvido historicamente. Essa contradição entre nossa vocação democrática originária e a complacência em relação aos regimes burocráticos impediu que nos antecipássemos criticamente, com todas as consequências decorrentes, em relação às tendências de mudanças que hoje se verificam (PT, 1998a, p. 494).

Naquele congresso, o PT reafirmou e aprofundou sua versão muito própria e nacional de “socialismo democrático” (ou “petista”),

Vitorias na crise.indd 113

10/17/11 12:55 PM

114 / Vitórias na crise

visto como uma construção processual emanada das lutas do povo brasileiro e da radicalização da democracia, e marcado por elementos libertários e antiestatais. Nos anos seguintes, quando o partido se dedicou a tais temas, aprofundou seu afastamento em relação às práticas socialistas do século XX, progressivamente menos debatidas e, por outro lado, não se aproximou de qualquer referência socialdemocrata ou das esquerdas contemporâneas dos países centrais. Em seu II Congresso (1999), o partido foi ainda mais claro em sua autonomia identitária, ao declarar que nasceu e se desenvolveu em meio à crise mundial dos grandes paradigmas de esquerda deste século (...). O PT se afirma como um partido pós-comunista e pós-social-democrata. Não busca o “assalto ao poder” por meio de revolução violenta, nem conquistar o governo e ocupar o aparelho de Estado para amenizar o capitalismo (PT, 1999)10.

Nota-se, ao longo desse processo, uma “nacionalização” do PT, na medida em que o partido com o tempo se integrou “simbolicamente” à política brasileira (além de fazê-lo praticamente, integrando-se ao seu sistema político e expandindo-se nacionalmente). Com isso quero dizer não somente que o partido passou a insistir na construção de uma alternativa “nacional”, algo visível desde sua fundação, mas que foi progressivamente se aceitando como um partido reformador da realidade brasileira, afastando-se do “refundacionismo” de seus primeiros anos. O PT se colocava então em ruptura com a tradição de esquerda brasileira (basicamente o comunismo e o “populismo” condenados pelos petistas), à qual seria, segundo ele próprio, pouco ou nada devedor. O PT nasceu em polêmica com a ideia de frente, aferrada, muitas vezes rigidamente, à ideia de cisão, de autonomia dos “trabalhadores, (...) [com] uma autopercepção messiânica, salvacionista, refundadora de tudo, vingadora intransigente de quinhentos anos de desmandos dos poderosos e misérias dos dominados (Henriques, 2004, p. 24).

Tal visão de ruptura com o passado foi sendo deixada de lado pelo partido, na medida em que ele foi gestando um discurso com elementos mais nacionalistas, aliancistas e reformadores. Já o MAS é fruto, em grande medida, das ações e reflexões das esquerdas bolivianas em torno da síntese entre tradições “clássicas” de esquerda (muitas vezes já adaptadas originalmente numa chave

Vitorias na crise.indd 114

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 115

nacional-popular) e questões relativas aos povos originários e permanências e adaptações de suas tradições e formas sociais. Nele configurou-se uma ideologia contestadora bastante heterodoxa, pouco relacionada a referências marxistas, atravessada por elementos nacionalistas em chave progressista (anti-imperialismo e antioligarquia), dividindo espaço com uma ideologia indianista relativamente moderada. O MAS se equilibrou entre influxos ideológicos socialistas (com elementos “comunitários” imbricados por vezes a “ortodoxos”), nacionalistas e indianistas. O que se reflete em sua identidade calcada nas noções de classe, nação e etnia. Tal originalidade ideológica é traduzida por Morales: somos um socialismo comunitário, baseado no modelo social e econômico do ayllu11, na coletividade, reciprocidade e solidariedade. (...) Aqui não se discrimina nem se marginaliza, eliminamos o sectarismo da esquerda tradicional. Não quero falar mal, mas esse sectarismo restringente acabou com a esquerda tradicional (Morales, 2002b).

O partido – que teve origem mais recente e ainda mais marcada pela realidade nacional que seus pares aqui estudados – teria ainda menos motivações para se filiar a modelos de socialismo, social-democracia ou qualquer outro. Os masistas não costumam sequer esboçar uma análise de modelos externos, apesar de proferirem vez por outra algum elogio fluido à experiência cubana ou à venezuelana, sem tomá-las, contudo, como parâmetros para sua ação. O MAS assumiu uma posição de esquerda, apesar da hostilidade de alguns de seus militantes em relação à “esquerda tradicional” (Zuazo, 2008) e da existência de elementos ideológicos indianistas que se sobrepõem à dicotomia esquerda/direita, a tal ponto que alguns de seus integrantes o concebiam em ruptura tanto com a direita quanto com a esquerda, ao menos em seus primeiros anos (Escóbar, 2008). O partido não pode ser considerado de esquerda num sentido tradicional, pois referências socialistas e especialmente marxistas não têm tanto peso na sua organização. Além disso, uma representação classista exclusiva é deixada de lado em nome de uma representação policlassista, “nacional”, ou mesmo algumas vezes abertamente crítica à noção de classe, apelando a aspectos étnicos e “pós” ou “anti”-modernos (Loayza Caero, 2000). Em suma, “o MAS não é uma estrutura partidária ou uma comunidade ideológica cerrada, à maneira dos velhos partidos de esquerda obcecados por preservar a pureza de seus castelos ideológicos. O MAS

Vitorias na crise.indd 115

10/17/11 12:55 PM

116 / Vitórias na crise

é, sobretudo, um ‘sistema de signos’” (Komadina, Geffroy, 2007, p. 3). Desde o princípio, o MAS foi uma soma entre um indianismo mais moderado que o katarista e um ideário amplo de esquerda, incluindo elementos de “nacionalismo revolucionário” ou “nacional popular” – uma tradição das esquerdas bolivianas desde suas expressões anteriores (García Linera, 2005) –, buscando crescentemente uma pluralidade étnica e de classe e apelando à representação do “povo” e do “popular” (Orozco, 2005), como expresso em um documento de 1996 da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB): “este Instrumento Político responde ao movimento camponês, às nações originárias, ao movimento operário e ao conjunto do povo explorado e oprimido (...) promove todas as formas de organização de nosso povo para enfrentar os opressores, sejam bolivianos ou estrangeiros” (Hernández, Salcito, 2007, p. 284). Desde o princípio, o MAS procurou reunir tanto setores rurais quanto urbanos, indígenas e trabalhadores, conclamando os “pobres” de maneira geral. Dessa forma, desde o início teve como pilares ideológicos tanto a concepção da luta de classes quanto a “cosmovisão andina”. O partido se configurou como um amálgama de distintos setores sociais, movimentos e tendências políticas – com o aumento progressivo de setores de esquerda. A ele se uniram dezenas de organizações sindicais rurais e urbanas e movimentos originários, além de antigos militantes e (mais ou menos renovados) setores trotskistas, guevaristas, maoistas, entre outros. Nas palavras de Morales, “Evidentemente alguns companheiros se somaram ao MAS e dentro desse marco temos certamente marxistas, leninistas, eu diria, até ex-guerrilheiros, não? E essa é a expressão de como é um movimento anti-imperialista” (La Razón, 2002). As propostas masistas assumiram parcialmente até 2002 um tom “antimodernista” (ou “pós-modernista”?) e defensor de um “sistema comunitário”. Por exemplo, segundo documento de 2001, os males da sociedade boliviana resultariam da opção até então tomada por COPIAR e remedar os fundamentos da cultura ocidental. (...) Os conceitos de globalização e economia de mercado se baseiam na cosmologia ocidental, como o velho conceito de PROGRESSO que se desprendia do paradigma científico da modernidade. (...) Agora que chega ao seu fim o cientificismo da modernidade, definitivamente não é possível nem sequer aplicar o conceito de desenvolvimento (MAS, 2004, pp. 4-5, grifos do original).

Vitorias na crise.indd 116

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 117

Já o programa eleitoral de 2005 assumia um tom modernizador e não explicitamente anticapitalista, projetando um Estado plurinacional e democratizado, a nacionalização dos hidrocarbonetos, o investimento em infraestrutura com apoio ao empresariado nacional e a adoção de programas sociais. Em 2005, o MAS se posicionou como um herdeiro de uma tradição mais ampla, não apenas indígena, mas de setores nacionalistas populares e das esquerdas. O partido, que em sua fundação nasceu em ruptura com o passado boliviano mais amplo (mesmo em seus aspectos mais progressistas) e em comunhão apenas com referências históricas mais caras ao indigenismo, foi realizando um processo – ainda inconcluso quando chegou ao poder – de “nacionalização”. A pluralidade masista definitivamente não pode ser resumida em duas correntes, os de “esquerda” e os “étnicos” – como parte dos atores e da literatura costuma fazer (por exemplo, Escóbar, 2008). Há na verdade um sem número de questões que atravessam o MAS, além de diversas formas de sociabilidade – sindicatos urbanos ou rurais, militantes urbanos, grupos de esquerda, movimentos originários – e de identidade – de esquerda revolucionária ou reformadora, nacionalista, nacional popular, étnica, corporativa – que o integram. Esta diversidade, muitas vezes compreendida como um risco à sua sobrevivência e reprodução por parte de seus observadores, se constitui efetivamente (como nos outros casos) numa virtude, que o favorece no caminho ao poder. O partido é, por exemplo, depositário de um manancial de possibilidades ideológicas que permitem tanto gestar programas com elementos “antimodernos” quanto um típico programa reformador e modernizador como o apresentado em 2005.

3.3 – Esquerdas policlassistas e supraclassistas Como vimos até aqui, as forças políticas estudadas se caracterizaram nesse período, grosso modo, pela independência, a pluralidade e a heterodoxia. Neste sentido, estiveram razoavelmente abertas a uma diluição da identidade classista tradicional das esquerdas (operária ou trabalhista), que se processou de maneira relativamente rápida se comparada com partidos de esquerda europeus que passaram por fenômenos parecidos. Deu-se uma progressiva caminhada do PT e do PSCh de partidos operários ou de trabalhadores a formações políticas dirigidas à cidadania e a todo o povo. Desde suas origens, a FA já

Vitorias na crise.indd 117

10/17/11 12:55 PM

118 / Vitórias na crise

era mais aberta (mais que alguns de seus principais integrantes, como o PCU e o PSU), buscando representar o povo uruguaio em contraposição aos partidos políticos tradicionais e à oligarquia – opção que se aprofundou e se adaptou com o passar do tempo –, e o MAS sempre se caracterizou por sua mescla de partido étnico e popular, com o progressivo aprofundamento da segunda identidade. Parece fora de dúvida que essas características favoreceram a adaptação dos partidos às mudanças societárias operadas na região e foram interessantes num quadro de crise do marxismo, do “socialismo real” e das esquerdas como um todo, ao mesmo tempo em que se aprofundaram naquele contexto. Além disso, favoreceram a sua atuação democrática, na medida em que a tradicional representação classista das esquerdas se mostrou historicamente insuficiente para a conquista de apoios majoritários (Przeworski, Sprague, 1986) – e deveria ser ainda mais insuficiente em sociedades periféricas em transição para uma maior complexidade, pulverização social e construção de identidades múltiplas e mutáveis (e num contexto de crise global de paradigmas para as esquerdas). Se a classe operária em sua concepção “clássica” nunca foi majoritária na região, ela o era ainda menos agora, com o aumento dos setores informais e a diversificação social (Portes, Hoffman, 2003). Logo, tornou-se duplamente interessante para essas esquerdas buscar representações poli e supraclassistas, através da entrada no jogo democrático e das transformações que configuram a modernidade contemporânea. Retomo essa dupla motivação (na realidade a existência de dois processos superpostos, fenômeno derivado do desenvolvimento desigual e combinado na periferia da modernidade) no Capítulo 4. O objetivo dessa seção é demonstrar que as esquerdas estudadas modificaram sua oferta, ou seja, que elas passaram a declararem-se representantes de setores sociais mais amplos, e que elas transformaram com isso sua autoidentificação, sua identidade. Não pretendi em nenhum momento realizar uma análise sistemática de quais seriam efetivamente os votantes ou os membros dessas forças, da composição social de suas bases e eleitorado, e se houveram modificações ao longo do tempo – as fontes selecionadas não o permitiriam. Reconheço então – como ademais ao longo de todo o trabalho – que não há um reflexo direto entre o desejo ou o discurso de um partido e sua realidade. Mas considero que elas guardam alguma relação. Por exemplo, um partido declaradamente “operário” não poderia atrair

Vitorias na crise.indd 118

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 119

setores empresariais. Da mesma forma, tais restrições impõem limites entre o eleitorado. Por outro lado, mesmo que um partido opte por diluí-las, apontando no limite para estratégias catch all, tal opção tem seus limites, como Kirchheimer (1966) reconheceu: “se um partido não pode esperar captar todas as categorias de votantes, ele pode razoavelmente esperar captar mais votantes em todas aquelas categorias entre as quais não há conflitos insuperáveis de interesses” (p. 186). Em outras palavras, em princípio, a ampliação da gama de interesses sociais no interior dos partidos aumenta o arco de representatividade da organização partidária e suas chances de êxito eleitoral. Mas algumas combinações são incompatíveis em razão de interesses, valores e objetivos estruturalmente opostos (Rodrigues, 2002, p. 104).

Quanto às bases sociais dos partidos analisados, os trabalhos sobre o tema não costumam tratar da composição social das bases partidárias (uma exceção está em Samuels, 2004a, 2004b), dedicando-se à composição, às origens e formas de recrutamento de suas elites dirigentes e/ou parlamentares (entre outros, Rodrigues, 2002; Serna, 2004; Salcedo, 2005; Marenco, Serna, 2007; Ribeiro, 2007; Ortiz, 2007; Zuazo, 2008). De maneira geral, a literatura especializada aponta historicamente para uma mescla entre setores médios e populares entre as esquerdas latino-americanas, com variações de acordo com o caso analisado (Di Tella, 1997). Trata-se de uma reunião comum às esquerdas: “intelectuais, professores e profissionais liberais (...) podem ‘combinar-se’ (e frequentemente ‘combinam-se’) com lideranças sindicais originadas de classes trabalhadoras” (Rodrigues, 2002, p. 104). Deduz-se então que, na prática, algum policlassismo não seria novidade entre essas esquerdas, mas que ele foi limitado pelo discurso classista. Alguma correlação existe entre o dever ser e o ser, apesar dela se dar somente até certo ponto12. Conclui-se então o óbvio: mesmo que um partido se declare a “vanguarda da classe operária”, sua composição social e suas relações internas não devem se adequar na prática estritamente a isso, mas ao mesmo tempo não podem fugir muito dos limites impostos por tal autopercepção. As evidências demonstram que as esquerdas latino-americanas apresentaram ao longo de sua trajetória um razoável policlassismo – como de resto quase todos os partidos “realmente existentes”. O que me dedico a mostrar é o fato deste policlassismo

Vitorias na crise.indd 119

10/17/11 12:55 PM

120 / Vitórias na crise

ter assumido novos patamares, ter sido mais aceito e perseguido pelos partidos (sendo visto como desejável e não como um “desvio”), sendo diversas vezes até mesmo superado por uma autoidentificação “supraclassista”. Quanto ao policlassismo, aponto que para além da tradicional representação da classe operária ou dos trabalhadores, tais partidos se propõem a representar também setores médios e mesmo frações burguesas. Muitas vezes seu tradicional núcleo de apoio passa a ser visto de forma mais difusa, e em lugar de trabalhadores e operários apela-se aos “pobres”, “miseráveis”, “excluídos”. Neste ponto a noção de classe que tradicionalmente informou as análises das esquerdas é superada, e chega-se ao supraclassismo aqui referido. A noção de “exclusão” ainda poderia ser compreendida a partir de determinado prisma marxista (e ainda assim considerando que esse setor nunca deveria estar incluído, segundo o cânon marxista, numa aliança transformadora). Já as noções de “pobreza” e “miséria” fogem de tal cânon, na medida em que não se baseiam na posição dos atores em relação aos meios de produção. Por fim, apela-se a noções que nem mesmo lateralmente passam pelo classismo, como “cidadania”, “nação” e “povo”, ou a elementos transversais, como etnia e gênero (Giddens, 1996; 1999; Vacca, 2009). Isso deriva de uma revisão da filosofia da história em boa parte determinista e “etapista” na qual as esquerdas tradicionalmente se basearam. “Nesta mesma perspectiva, a erosão do mito da revolução e a crise da noção dos ‘atores centrais e privilegiados’, implicaria na construção de relatos menos pertencentes ao ‘trabalhismo excludente’ e mais abertos a representações e protagonismos amplos e plurais” (Caetano, Rilla, 1995, p. 65). Isso guarda relação com as transformações ocorridas nas últimas décadas, em que o trabalho perdeu parte de sua centralidade social. “A crise da sociedade salarial e do mundo do trabalho acarretou um debate sobre o papel clássico do movimento operário na tradição socialista, como também da incorporação de novos movimentos sociais no marco de sociedades cada vez mais desagregadas e fragmentadas” (Serna, 2004, p. 41). Nesse sentido, deu-se uma forte pulverização classista e identitária, marcada por novos processos de desencaixe e reencaixe. “A modernidade vem se desenvolvendo por meio de poderosos processos de ‘desencaixe’, que reorganizam as identidades e as coordenadas espaço-temporais nas quais as pessoas viviam” (Domingues, 2009, p. 38). O fenômeno

Vitorias na crise.indd 120

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 121

de “reencaixe” o complementa, gerando novas identidades e relações sociais, que assumem contemporaneamente uma pluralidade inaudita. Junto a “clássicos” reencaixes da modernidade (como a cidadania) que seguem vigentes, tomam forma novos fenômenos que os complementam e atravessam, associados a novas formas de subjetividades coletivas: a pluralização dos reencaixes atravessa ademais todas as outras subjetividades coletivas, tais como as classes, os gêneros, as raças, as etnias e as gerações, assim como a família e a nação – trazendo à tona novas formas e mais intensidade às questões étnicas –, além de movimentos sociais. A nação (...) torna-se menos homogênea, devido a processos internos de pluralização, bem como mercê dos impactos externos do aprofundamento da globalização, que multiplica possíveis cursos de vida e tipos de identidade individual e coletiva. Isso significa também que os investimentos emocionais das pessoas, seu vínculo e compromisso com subjetividades abrangentes, tornam-se potencialmente pluralizados (Domingues, 2009, p. 150).

Com tudo isso, a filosofia da história que informava as esquerdas foi posta em xeque exatamente porque boa parte dos fatores sociais nos quais ela se baseia tornaram-se progressivamente mais opacos devido à crescente pluralidade e complexidade social. Daí a dificuldade em sustentar uma via ou um modelo previsto de antemão, propor uma ruptura revolucionária nos moldes tradicionais da “tomada do Palácio de Inverno”, ou determinar “atores centrais”. É evidente que as esquerdas que hoje relativizam tais aspectos de suas tradições encontram maiores possibilidades de sobreviver e crescer. O PSCh declarou em sua reunificação que “aspira a ser um instrumento privilegiado da luta dos trabalhadores, de todos os que sofrem algum tipo de opressão e do povo chileno em seu conjunto” (PSCh, 1990b). Já em 1996 afirmou que o projeto socialista assume (...) o ponto de vista dos explorados, oprimidos, excluídos, dominados. No entanto, pretende representar também o conjunto da sociedade, já que sua proposta é libertadora de todos aqueles que, hoje em dia, baseiam sua vida na acumulação de riquezas materiais e na demanda incessante de bens de consumo suntuário (PSCh, 1996).

Ou seja, ainda que nessas confusas formulações eles prioritariamente visassem um setor social (ainda que definido amplamente

Vitorias na crise.indd 121

10/17/11 12:55 PM

122 / Vitórias na crise

como “trabalhadores”, “explorados”, “oprimidos”), os socialistas chilenos apelavam ao fim e ao cabo para todos – seja através da noção de “povo” ou da argumentação pós-materialista de que os setores dominantes também são passíveis de libertação. Mais tarde, em 2004, o partido definiu sua (ampla) base social com um pouco mais de clareza quanto a seus setores preferenciais e adversários, propondo “estabelecer uma nova aliança da classe trabalhadora e dos setores médios (...) [contra] um segmento de privilegiados [que] vive na opulência apropriando-se do que outros produzem ou criam, dos recursos que a natureza pôs a disposição de todos ou do que as gerações anteriores criaram” (PSCh, 2004). Trata-se, de qualquer forma, de uma formulação muito distante do Estatuto de 1972, que propunha unir, organizar e capacitar “ideológica e praticamente os elementos mais ativos, conscientes e honestos da classe trabalhadora chilena” (PSCh, 1991). Nota-se a insistência na representação das grandes maiorias e, no limite, de todo o povo, cidadania ou nação. Isso pode ser observado a partir de declarações de seus principais líderes. Lagos afirmou numa carta ao congresso do partido em 1992 que os socialistas tinham um “projeto de país”. Escalona, em discurso na comemoração do quinto aniversário de unificação do partido, propôs construir um “projeto nacional das grandes maiorias”. Ominami escreveu em 1995 que o partido deveria se abrir à sociedade, ir além de interesses setoriais ou corporativos (que poderiam contradizer os interesses gerais da nação). Deveria ser “uma força nacional – e não um partido de classe – que olha para o país desde a perspectiva dos setores populares” (Ominami, 1995, p. 53). E Núñez defendeu no sexagésimo sexto aniversário do partido em 1999 que, no caso de Lagos ser eleito naquele ano, seu governo não seria socialista, nem mesmo de esquerda no “sentido clássico do termo”: seria um governo da Concertação, buscando representar “os mais amplos setores da nossa população” (Núñez, 1999). No mesmo sentido, nota-se um esforço para suavizar a contradição entre o partido e os setores empresariais. Em seu discurso de posse como presidente do partido em 1996, Escalona reconheceu a importância da atividade empresarial para o desenvolvimento e declarou que, frente àqueles que nos indicam como inimigos do empresariado, nós queremos ser muito claros: no mundo moderno, nós estamos pela

Vitorias na crise.indd 122

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 123 convivência frutífera entre um Estado regulador capaz de pensar estrategicamente o futuro da nação e uma sociedade civil na qual se desenvolve a empresa privada e pública (Escalona, 1997).

Reconheceu então que esperava que o país fosse governado pelo governo, não pelos empresários, e que o trabalho fosse revalorizado socialmente por sobre o lucro exagerado. Já Núñez, falando como presidente do partido em 1999 foi um pouco mais além, expressando que o discurso socialista deveria chegar a todos os “rincões” do país, aos jovens, às mulheres, aos aposentados, e também aos comerciantes e empresários “que não recebem compreensão nem ajuda do sistema financeiro” (Núñez, 1999). A dicotomia entre setores burgueses “produtivos” e “financeiros”, aliás, foi crescentemente manipulada entre as esquerdas aqui estudadas. Isso se deu na medida em que elas ampliaram seu arco social e partidário de aliados, buscando aproximar-se de setores afetados de alguma forma pelas transformações do capitalismo global e regional nas últimas décadas, como, por exemplo, parte do empresariado industrial de seus países, associado por vezes de forma significativa à noção de empresariado “nacional”. Os programas partidários e principalmente eleitorais destas agremiações foram tornando-se marcadamente antineoliberais ou progressistas, em lugar de anticapitalistas ou socialistas (como veremos no Capítulo 5). Isto permitiu que eles procurassem apoios em setores burgueses, buscando ao menos parcialmente neutralizar o veto desses setores aos partidos de esquerda e, se possível, buscar, através de apelos nacionalistas e desenvolvimentistas, a simpatia dos setores produtivos urbanos e rurais prejudicados pela viragem neoliberal de seus países, e que vinham perdendo lugar para frações burguesas mais associadas ao setor financeiro e ao de serviços. A tentativa de aproximação com setores produtivos se manifestou na FA, especialmente às vésperas das eleições de 1999 e (principalmente) de 2004. Nas duas campanhas, Vázquez reuniu-se com grupos de empresários para afastar seus temores e convencê-los que seu programa poderia contemplá-los. Num destes encontros, Vázquez reconheceu saber que muitos dos empresários ali presentes “não compartilham nossas senhas de identidade política ou têm reservas a respeito de nosso projeto. Neste, os senhores como empresários têm um importante papel para cumprir e necessitamos e queremos que

Vitorias na crise.indd 123

10/17/11 12:55 PM

124 / Vitórias na crise

o assumam” (Brecha, 2004). Na mesma linha, o presidente do PSU, Reinaldo Gargano, disse algo que talvez espante os proletários (...) sou partidário de pedir o conselho de determinados empresários que são honrados e trabalham com eficácia. É gente que está buscando levar seu negócio à frente, é inovadora, põe criatividade e não espera que o Estado lhes dê tudo. A essa gente vou pedir ajuda, entre outras coisas para nos apoiar na seleção dos quadros do governo (Brecha, 2003).

Desde 1999, mas principalmente em 2004, a ênfase na (re)construção de um “Uruguai produtivo”, em lugar de somente “financeiro” e “de serviços”, foi grande nos programas de governo frente-amplistas. A promessa era de que a ênfase de seu governo seria na produção, no crescimento e na geração de empregos, incentivando um “desenvolvimento produtivo sustentável”, com apoio ao (e do) empresariado que soubesse investir, inovar e gerar emprego, com respeito ao meio ambiente e responsabilidade social (FA, 2004; Liscano, 2004). Enfim, tratava-se de implantar o que a FA chamou em diversas ocasiões de “capitalismo a sério”. É visível que tal aproximação aumentou durante a crise que assolou o país. Um momento em que a FA avaliou que alimentar politicamente a crise afetaria negativamente seu previsível futuro governo, e por conta disso se posicionou como virtual partido governante – sustentando uma oposição propositiva e leal até o fim da longa transição que culminou em sua chegada ao poder13. Parte dos setores dominantes do país respondeu com simpatia ao desejo de diálogo e construção de acordos da FA, em meio à percepção de que uma alternativa moderada aos anos neoliberais não seria de todo desinteressante aos seus interesses e à sua preservação. Nas palavras do ex-guerrilheiro tupamaro e atual senador Eleuterio Fernández Huidobro, “nesta transição tão prolongada tem enorme importância a atitude que já vão assumindo alguns setores que, como o empresarial, tradicionalmente foram muito resistentes à esquerda e que estão percebendo que não há motivo para temer” (Brecha, 2003). Para além da ampliação das alianças de classe, a FA lançou mão diversas vezes de um discurso que chegava a superar aquela noção. O partido apelou à cidadania, recurso utilizado moderadamente desde sua fundação, agora trazido ao centro da cena e esgrimido tantas vezes por lideranças de novo tipo como Vázquez e Danilo Astori.

Vitorias na crise.indd 124

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 125

Em grande parte tal discurso “cidadão” calcou-se na valorização e no resgate de valores éticos, republicanos e de “bom governo”. Aqui, a atuação na Intendência de Montevidéu é uma referência constante, tendo levado à gestação de uma “cultura de governo”. Essa chave discursiva foi se impondo e se fortalecendo ao longo dos anos 1990, o que levou a se falar na “cidadanização” da FA (Caetano, Rilla, 1995), fenômeno notável igualmente no caso do PT. Outro apelo policlassista foi igualmente manipulado pela FA desde sua fundação, já então com insistência, e muitas vezes através da dicotomia povo/oligarquia anti-imperialista. Trata-se do apelo à “nação” e ao “povo”, empregados geralmente como sinônimos. Este recurso seguiu se repetindo ao longo do tempo, mas agora numa chave moderada, avessa à referida dicotomia de potencial conflitivo, e próxima de apelos à identidade e a valores nacionais, por vezes em chave liberal. Em meio ao já comentado processo de tradicionalização e nacionalização da FA, o partido tentava posicionar-se como o principal representante da nação ou do povo. Tratar-se-ia do último partido artiguista e battlista numa nação artiguista e battlista, da única força capaz de propor um “projeto de país”, defensor da soberania, do desenvolvimento e da identidade nacionais. Pode-se dizer que o partido passou a buscar as “grandes maiorias nacionais”, apelando no limite a toda a nação, deixando de esperar que as maiorias necessárias ao sucesso eleitoral caminhassem na direção das esquerdas. Movimentos semelhantes podem ser notados no PT. O policlassismo petista se aprofundou a tal ponto que na campanha de 2002 a participação empresarial foi amplamente visível, a começar pela escolha do vice-presidente na chapa, o empresário têxtil José Alencar. Sensibilizados por um programa com razoável enfoque na produção, no desenvolvimento, em investimentos em infraestrutura, no apoio às empresas nacionais, na responsabilidade fiscal e na estabilidade, diversos setores do empresariado responderam ao apelo por um “novo contrato social”. Nas palavras de Eugênio Staub, presidente de uma grande empresa de eletrônicos, “Lula é o mais capaz de juntar empresários, trabalhadores e classe média. Tem essa visão de estadista” (PT, 2002a). Essa eleição foi o ápice de um processo que se manifestou com anterioridade no partido. Já em 1993, Lula propôs uma aliança classista ampla, comum às novas esquerdas latino-americanas, ao afirmar que “não existe nenhuma possibilidade do nosso Brasil voltar a crescer se

Vitorias na crise.indd 125

10/17/11 12:55 PM

126 / Vitórias na crise

não houver quase uma parceria entre governo, empresários e trabalhadores” (Lula, 1993). Para ele, somente os que não queriam a reforma agrária, os especuladores e os que temem mudanças que melhorem a qualidade de vida do povo deveriam temer o PT. Em 1994, afirmando que seu governo se articularia com ideais socialistas, o partido propôs “transferir as responsabilidades das elites falidas que governaram secularmente este país para um bloco de forças hegemonizado pelos trabalhadores das cidades e dos campos, reunindo intelectuais, profissionais e técnicos, pequenos e médios empresários” (PT, 1994). Ao assumir a presidência do partido em 1995, José Dirceu propôs a substituição da “aliança operário-camponesa por uma aliança entre os excluídos e os incluídos” (Dirceu, 1995b), ampliando e, no limite, questionando a noção classista tradicional. Esse recurso à noção de “excluídos” (que por vezes surgem como “setores marginalizados”, e mesmo “descamisados”, logo após a campanha de 1989 na qual Collor apelou seguidamente ao termo) é utilizado amplamente pelo PT, mais que pelos outros partidos estudados. O policlassismo petista, acrescido da noção de “exclusão”, se ampliou na campanha de 1998. Nesse momento o antineoliberalismo começou a se impor como o objetivo palpável do partido, enquanto propostas socialistas foram sendo afastadas para um horizonte longínquo ou utópico. É isso que justificaria teoricamente a ampliação de bases sociais e de votantes, algo que não podia ser observado na campanha de 198914. Com um tom messiânico, o Manifesto em defesa da nação, do emprego, da produção, da moeda e da democracia (título tão longo quanto pleno de significados) defendeu que a mudança que o país necessita exige um novo bloco de forças sociais coesionado em torno de um programa de salvação nacional. Essa grande transformação pede uma nova liderança, capaz de articular patriotismo, sensibilidade social, determinação e capacidade de negociação para produzir uma verdadeira união nacional em torno dos interesses dos trabalhadores, dos excluídos, das classes médias e dos setores empresariais comprometidos com um novo projeto nacional de desenvolvimento. Essa liderança tem um nome: Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 1998b).

Com esse manifesto patriota chegamos ao supraclassismo petista. O apelo nacionalista do partido se incrementou, e expressões como “reconstrução nacional”, “soberania e autonomia”, “desenvolvimento”,

Vitorias na crise.indd 126

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 127

“progresso”, “união nacional” e “presença soberana no mundo” tornaram-se recorrentes, especialmente desde 1998. O partido também apelou crescentemente ao combate à pobreza e à miséria ou indigência. Estes se materializaram na centralidade do combate à fome na campanha de 2002, e nos programas sociais ao longo do governo petista. Além disso, o apelo à cidadania é recorrente, associado ao incremento de valor da “ética na política” e do chamado “modo petista de governar”, demonstrado nas administrações petistas locais e regionais. Ambos, ao longo dos anos 1990, tornaram-se os motes dos programas e campanhas do partido. Por fim, o PT apelou crescentemente à defesa das minorias políticas, questão presente desde sua fundação. Entre os partidos analisados, o PT é o que procura mais fortemente tratar das questões transversais como propostas por Giddens (conferir o Capítulo 1), dedicando-se a temas ambientais, raciais, de gênero e opção sexual – progressivamente comuns às esquerdas latino-americanas. Por fim, trato do MAS, que formou desde o início uma identidade classista plural e difusa, segundo a qual a organização busca representar setores amplos da sociedade definidos, por um lado, a partir de generosas categorias policlassistas, e por outro, de categorias supraclassistas, como seu crescente nacionalismo e leituras étnicas – sua característica mais paradigmática neste sentido, que o distingue da grande maioria das experiências de esquerda da região. Reconheço que o partido desde o início foi marcado pela presença de modelos tradicionais de esquerda15. Desde o I Congresso sobre Terra, Território e Instrumento Político, que chamou à fundação do “instrumento político”, este foi definido como de libertação, anticapitalista e anticolonial (ou seja, um claro amálgama de elementos nacional populares, de esquerda e étnicos); conclamou-se a participação de intelectuais progressistas, membros de juntas vicinais, “trabalhadores, professores, universitários e o resto dos explorados”; e propôsse a luta por um Estado “originário, comunitário, multinacional e socialista” (Escóbar, 2008, p. 196). Posteriormente, o partido sempre buscou alianças com as esquerdas tradicionais. Mas, por outro lado, é inegável que o MAS nasceu atravessado fortemente por questões nacionais (calcadas tanto no antineoliberalismo quanto na tradição nacional popular boliviana) e étnicas. Portanto, nele, os modelos esquerdistas tradicionais existiam originalmente, mas eram menos marcantes que nos outros casos trazidos

Vitorias na crise.indd 127

10/17/11 12:55 PM

128 / Vitórias na crise

para comparação – e essa é uma das especificidades do MAS em relação a seus pares regionais. Neste sentido, os masistas foram acrescentando ao longo do tempo a seu heterodoxo repertório, um maior número de referências tradicionais de esquerda (que nunca chegaram a se tornar hegemônicas), enquanto seus pares se moveram inversamente, incrementando suas posições de esquerda tradicionais inicialmente hegemônicas com questões e percepções mais plurais, amplas e difusas. O curioso é que neste movimento com sinais trocados, todos chegaram ao mesmo ponto: a formação de um diversificado amálgama de referências, bases e apelos sociais. Neste sentido, nas eleições de 2002, o MAS se aproximou mais fortemente das esquerdas, e estas do partido. Ao mesmo tempo, enfatizou-se a busca por uma representação tanto policlassista quanto multiétnica, atraindo trabalhadores urbanos, camadas médias e inclusive o pequeno e médio empresariado, configurando um duplo movimento de aproximação às esquerdas tradicionais e aos setores urbanos, simbolizado na candidatura a vice-presidente de Antonio Peredo16. Durante a campanha, este chegou a visitar a Câmara Nacional de Indústrias, buscando superar os temores “infundados” que os empresários tinham com o crescimento do MAS. Após o excelente resultado eleitoral, deu-se uma ampliação das possibilidades de alianças de classe do partido, que caminhou lado a lado com sua moderação. Após as eleições, começou a se gestar outro tipo de discurso. Segundo Morales, “os empresários honestos que não viveram do Estado estão conosco. (…) Estamos aqui para passar de protestos a propostas e desde o Palácio tratar de resolver pacificamente as políticas anti-humanas, antipátria”. Ao lado da ampliação de suas referências classistas, a questão étnica permaneceu, mas foi sendo relativizada: “Atualmente seria impossível nos refundarmos como 17. Temos bolivianos que vivem aqui e os respeitamos, mas que nos respeitem também (…) não importa que sejam brancos e gringos; se lutam por sua dignidade e direito à vida, estão conosco” (Morales, 2002b). Nas eleições de 2005, manteve-se a mesma tendência. Nelas, o MAS obteve apoio de pequenos e médios empresários, funcionários, intelectuais e profissionais liberais, individualmente e através de suas associações. Em reunião em Cochabamba com funcionários públicos e intelectuais, Morales afirmou querer aprender com eles, e não querer “ensiná-los o bloqueio de estradas” (Opinión, 2005b). Já em reunião na Confederação de Empresários Privados da Bolívia (CEPB), pediu a eles assessoria para seu projeto, prometendo participação do

Vitorias na crise.indd 128

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 129

setor privado na construção da “nova Bolívia”, baseada na “produção” e na “soberania” (temas, aliás, bastante tratados no programa eleitoral masista daquele ano). O então candidato presidencial defendeu que não se tratava de “destruir, mas de construir”. No entanto, num tom acima daquele assumido por seus pares latino-americanos às vésperas de eleições, afirmou que, ao invés de segurança jurídica, “todos devem apostar que exista segurança social, emprego, saúde e educação, porque são as reivindicações do movimento popular e indígena” (Opinión, 2005a). É notável que, ao lado do (poli)classismo masista, deu-se uma moderação da visão étnica do partido, mas este elemento se manteve no repertório partidário, e ao lado dele aprofundou-se o traço nacionalista do MAS. O etnicismo moderado e o nacionalismo permaneceram sendo as chaves identitárias masistas a permitir apelos supraclassistas. O MAS, ao longo de sua trajetória, promoveu um difícil equilíbrio entre etnia, classe e nação, que nunca foi equacionado a contento. Não se deu uma “síntese dialética” entre os elementos, e sim uma reunião heterogênea ou uma bricolagem (Stefanoni, Do Alto, 2006), que traduz a crescente pluralidade social e identitária boliviana, sua “nova conformação híbrida e porosa das classes e identidades sociais” (García Linera et. al., 2008, p. 15). Nas palavras do senador masista Marcelo Aramayo, o “MAS teve a capacidade de estruturar uma síntese do que significam os diferentes sectores sociais, instituições, culturas e povos originários. O MAS é a síntese do país, somos a expressão dessa nação heterogênea”18 (La Razón, 2002). Em meio a um processo de mudanças globais, num contexto social – nacional, regional e global – mutável e plural, gerador de “identidades mistas” (Domingues, 2009), flutuantes e manipuláveis (Albó, 2008), que contribuiu para incrementar uma sociedade já de partida heterogênea, o MAS também desenvolveu uma identidade “mista”, e alianças flutuantes e manipuláveis de acordo com as necessidades do partido, que assim pôde exercer crescente apelo para diversos setores sociais e audiências.

3.4 – Conclusão Vimos que as esquerdas latino-americanas contemporâneas afastaram-se tanto de ideologias oficiais quanto de modelos internacionais a serem seguidos. Elas desenvolveram no lugar disso ideologias

Vitorias na crise.indd 129

10/17/11 12:55 PM

130 / Vitórias na crise

plurais e mutáveis e, no limite, a proposição da construção ideológica “ao caminhar”, gestando alternativas e trajetórias próprias, adequadas à realidade na qual estão inseridas. Com a referida autonomização simbólica e identitária, estas esquerdas também tiveram maior liberdade para ampliar suas relações sociais e seus apelos eleitorais. Isso levou a um afastamento da base preferencial operária (classista), com sua ampliação pluriclassista, com a pretensão de representação de todas as camadas populares e de setores médios e até mesmo de frações das classes dominantes (geralmente os setores burgueses “produtivos”). Mais que isso, se buscou referências supraclassistas ou “pós-classistas”, apelando à nação, à cidadania, a todo o povo. Se os “aliados” se ampliaram, os “adversários” ou “inimigos” se reduziram, ficando restritos ao capital financeiro e a setores mais retrógrados do campo, que em alguns casos recebeu uma vez mais a alcunha de “oligarquia”. No entanto, esse processo teve algumas diferenças entre os casos analisados. Aqui introduzo o tema da “autopercepção revolucionária”, que será tratado no Capítulo 7. As esquerdas que se mostravam mais antissistêmicas antes da chegada ao poder são as que mantêm uma percepção revolucionária de si mesmas, tratando os setores aos quais se opõem (não tão numerosos quanto possa parecer) como seus “inimigos”, e não como seus “adversários” (isso é notado no MAS). A autopercepção revolucionária se baseia numa visão da política enquanto luta e não enquanto competição leal, o que leva, de um lado, a comportamentos e compreensões por vezes inadequados aos limites e tempos das modalidades de representação em chave liberal e, de outro, a discursos violentos (mas raras vezes a ações) contra os “inimigos” do partido, do governo e do povo. É razoável supor que isso esteja na chave de diferenças existentes entre os distintos casos, que serão tratadas mais sistematicamente ao final do livro. Por ora, vale deixar claro que todas as forças de esquerda que chegaram ao poder na América Latina são plurais quanto a sua ideologia e identidade. Mas, mesmo plurais, algumas ainda concebem a política na chave amigo/inimigo.

Vitorias na crise.indd 130

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 131

Notas

1

Entre eles poderíamos considerar a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) peruana em seu princípio, setores progressistas do mexicano Partido Revolucionário Institucional (PRI), ou o próprio movimento revolucionário cubano antes de sua “sovietização”.

2

Por opção metodológica, não trato das relações internacionais dos partidos, através de organismos como o Foro de São Paulo, formado pelo PT em 1990 e que inclui a grande maioria dos partidos de esquerda latino-americanos que governam seus países nesse momento, ou como a Internacional Socialista (IS), da qual participam como membros ativos o PSCh, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e o Partido Socialista Uruguaio (PSU). Também não levo em conta influxos e inspirações de movimentos por uma globalização alternativa, como o Fórum Social Mundial, aos quais os partidos aqui estudados dedicaram atenção. É razoável supor que tais fóruns e relações refletem as posições e características dessas organizações, mas também as reforçam e as inspiram.

3

Vale lembrar que tal abertura foi essencial ao próprio processo de reunificação dos socialistas. Nas palavras de Camilo Escalona, em diversas ocasiões presidente da agremiação, “O processo de unidade socialista foi possível sobre a base de que o Partido se entende sem uma doutrina e um corpo filosófico e conceitual que sejam obrigatórios ao conjunto dos que dele fazem parte” (Escalona, 1995, p. 7). Já Carlos Ominami, importante dirigente e senador pelo partido, justificou a não adoção do marxismo como doutrina oficial argumentando que fazê-lo seria “assumir uma concepção estreita do pensamento (...), impor uma concepção claramente restritiva posto que é perfeitamente possível filiar-se ao ideário socialista sem referência ao marxismo. Desse modo, nas atuais condições do desenvolvimento do pensamento, a autoidentificação como partido marxista resulta arcaica e estreita” (Ominami, 1995, p. 55).

4

Considerado líder da independência e fundador da nacionalidade uruguaia.

5

No discurso de abertura do II Congresso Ordinário (1991), Seregni se manifestou contra a tentativa de golpe na URSS pelos comunistas ortodoxos, ocorrida dias antes: “a FA é amante da paz, da liberdade e da democracia, sustentáculo da legalidade, inimiga da força e defensora dos sagrados direitos e vontade dos povos. Por isso, a tranquilidade depois do fracasso do golpe de estado” (FA, 1991).

Vitorias na crise.indd 131

10/17/11 12:55 PM

132 / Vitórias na crise 6

“Parece-me que as realidades políticas, históricas, culturais, tanto da Inglaterra, Espanha, Alemanha, são distintas da história, da política do nosso país. O que se pode extrapolar são os princípios fundamentais (...). O resto é muito difícil” (Liscano, 2004, p. 49).

7

Se o partido fosse tão alheio ao problema, talvez Lula não tivesse que tentar descolá-lo tantas vezes do “socialismo real”, como o fez no VI Encontro Nacional (1989): “o socialismo que nós queremos construir não passa pela repressão que vimos acontecer com os estudantes chineses que queriam pura e simplesmente liberdade. O socialismo que nós queremos é o socialismo democrático. É um socialismo que pressupõe a contrariedade. É um socialismo que pressupõe as pessoas terem o direito de ser oposição” (Lula, 1989).

8

Na mesma linha, Marco Aurélio Garcia comentava que “bem ou mal, a existência de um ‘socialismo real’, com defeitos, dos quais podíamos nos distanciar, como efetivamente nos distanciamos, constituiu, no plano simbólico, uma referência (ainda que tratada criticamente) para grande parte dos combatentes pela liberdade durante muitas décadas” (Garcia, 1991).

9

No I Encontro Nacional (1981), Lula proferiu um discurso paradigmático que foi tratado desde então como posição oficial. Nele o então presidente do partido questionava: “Estamos, por acaso, obrigados a rezar pela cartilha do primeiro teórico socialista que nos bate à porta? Estamos, por acaso, obrigados a seguir este ou aquele modelo, adotado neste ou naquele país? (...) Vamos continuar, com inteira independência, resolvendo os nossos problemas à nossa maneira”. Acrescentava que não convinha “adotar a ideia do socialismo para buscar medidas paliativas aos males sociais causados pelo capitalismo (...). Sabemos, também, que não nos convém adotar como perspectiva um socialismo burocrático, que atende mais às castas de tecnocratas e de privilegiados que aos trabalhadores e ao povo. O socialismo que nós queremos se definirá por todo o povo” (PT, 1998a, p. 114).

10 Em

seu III Congresso, o PT manteve e aprofundou as posições definidas em fóruns anteriores, e agregou com maior decisão a elas elementos ecológicos e de defesa das minorias sociais e políticas, reunindo à sua concepção de “socialismo democrático” mais dois adjetivos: “sustentável” e “libertário”. De maneira geral, autonomia, originalidade e valorização da prática foram ao fim e ao cabo efetivamente traduzidos em “virtude”, ao menos no estr(e)ito sentido de que tal flexibilidade foi funcional à expansão petista. Nele, o resolveu: “Diferentemente de muitas vertentes hegemônicas no século XX, o socialismo petista não tem uma matriz política ou filosófica única, abrigando ampla pluralidade ideológica no campo da esquerda. Associa a luta contra a exploração econômica ao combate a todas as manifestações de opressão que permeiam as sociedades capitalistas e que – segundo mostrou a experiência histórica – persistiram, e até mesmo se aprofundaram – nas sociedades ditas socialistas” (PT, 2007).

Vitorias na crise.indd 132

10/17/11 12:55 PM

Ideologia e identidade / 133 11 Estruturas

indígenas comunitárias com elementos familiares estendidos e territoriais – permanências e releituras de estruturas sociais pré-colombianas (Soares, 2009).

12 Por

exemplo, boa parte dos partidos comunistas latino-americanos foi tradicionalmente comandada e numericamente integrada por setores médios (profissionais liberais, funcionários, intelectuais) e secundariamente por setores operários ou trabalhadores rurais. Isso é demonstrado no caso dos comunistas brasileiros pelo notável trabalho de Rodrigues (1996), no qual observou uma dicotomia insolúvel entre a importante influência soviética e um progressivo nacionalismo (fruto de seu policlassismo).

13 Avaliação

parecida à realizada pelo PT ao longo da crise brasileira (menos intensa que a uruguaia, deve-se dizer), que motivou entre outras coisas a divulgação da Carta ao Povo Brasileiro.

14 Para

exemplificar, em 1989 o partido afirmou em seu programa que seu objetivo era construir uma nova sociedade socialista, e propôs formar ao longo do governo o “Poder Popular” dos trabalhadores (PT, 1989).

15 Antes

da fundação oficial do partido, o VII Congresso Ordinário (1995) da Federação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses de Cochabamba (FSUTCC), hegemonizada pelos cocaleiros e passo fundamental no processo de formação do MAS, declarava que “não há justiça para os explorados, marginalizados, pobres de nossa nação que é Bolívia, uma Bolívia que é só para os ricos”. E destacava que “todos os camponeses temos a obrigação de velar o nascimento do Instrumento Político e assim também mantê-lo como ao nosso filho, assim madurar e chegar ao poder com justiça para toda a classe explorada dessa nação (...) os explorados e oprimidos do campo e da cidade” (FSUTCC, 1995).

16 José

Antonio Quiroga, intelectual de esquerda, jornalista e sobrinho de Marcelo Quiroga de Santa Cruz (uma das maiores referências históricas da esquerda socialista boliviana), foi convidado a ser candidato a vicepresidente pelo MAS, como símbolo da união de camponeses e intelectuais. Mas Quiroga por fim declinou do convite, e o candidato acabou sendo Peredo, jornalista e escritor marxista-leninista. Vale recordar que um movimento semelhante para simbolizar a intenção policlassista e nacional do partido foi realizado na campanha de 2005, com a indicação de Álvaro García Linera ao mesmo cargo.

17 Qullasuyo

era parte do Império Inca (Tawantinsuyu) que corresponde aproximadamente ao atual território boliviano. Vale recordar que a reconstrução do Qullasuyo era uma das propostas centrais do Movimento Indígena Pachakuti (MIP), o principal adversário do MAS à esquerda no princípio da década de 2000. Essa diferença entre as propostas dos dois ilustra a maior capacidade do MAS em expandir-se social e eleitoralmente, o que efetivamente ocorreu, enquanto o MIP, restrito a suas proposições indianistas mais radicais, terminou desaparecendo da cena política.

Vitorias na crise.indd 133

10/17/11 12:55 PM

134 / Vitórias na crise 18 A

tradução retira parte do significado da expressão, na medida em que Aramayo, ao falar na Bolívia como nación abigarrada (heterogênea, variada), remete à noção de sociedad abigarrada formulada por René Zavaleta. Trata-se de um sociólogo marxista boliviano, cuja obra é particularmente influente entre integrantes do Grupo Comuna, como García Linera, Raúl Prada e Luis Tapia, por sua vez vinculados ao MAS.

Vitorias na crise.indd 134

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 135

capítulo

4

Democracia 4.1 – Apresentação

Como parte importante do processo de adaptação à nova sociabilidade que toma forma na América Latina, as esquerdas analisadas nessa obra apresentam uma compreensão mais positiva da democracia em seus aspectos representativos. As esquerdas da região (e em grande medida as de todo o globo) tradicionalmente valorizaram concepções e aspectos “substantivos” da democracia. No entanto, setores significativos dessas esquerdas vêm reconhecendo seus valores “representativos”, processo que começou há mais de um século na Europa Ocidental. Com esse movimento de integração à democracia, as esquerdas latino-americanas tiraram vantagem do processo de redemocratização da região ao se adaptarem com êxito ao jogo democrático – o que pode ser demonstrado, por exemplo, pela crescente relevância parlamentar destas forças políticas. Estas esquerdas aceitam melhor a democracia em comparação com sua tradição global e regional, e com seu próprio passado nos casos de mais longa trajetória, como o Partido Socialista do Chile (PSCh). Nesse processo foi importante a experiência sofrida durante a ditadura em diversos países da região e a posterior inserção das esquerdas na democracia representativa, com uma abertura inédita por parte dos sistemas políticos latino-americanos a elas e vice-versa. Também foi particularmente importante a opção pela participação por parte de setores “revolucionários” da esquerda, seja no caso de movimentos ex-guerrilheiros, seja em casos mais específicos, como a aceitação do papel oposicionista por parte dos sandinistas e a conversão eleitoral do chavismo. As esquerdas não se constituíram em agentes marginais ou antissistêmicos, e sim em atores relevantes das democracias da região, e esta opção pela integração institucional implicou em mudanças estruturais em sua atuação (Serna, 2004). A valorização desses aspectos “procedimentais” parece ter aumentado nos últimos anos – e certamente a participação em governos

Vitorias na crise.indd 135

10/17/11 12:55 PM

136 / Vitórias na crise

e parlamentos regionais e locais teve um peso nessa transformação (Samuels, 2004a). Nesse capítulo, espero demonstrar a valorização da democracia representativa por parte dos setores majoritários das esquerdas latino-americanas, mas também questionar como elas buscam combinála com concepções de democracia “participativa”, “direta” ou “comunitária”, e em que medida estas formas de participação são concebidas em termos liberais ou não1. De certa maneira, esta questão está no cerne do que poderia ser chamado o grau de “alternatividade” dessas forças. Em última instância, diferenças entre elas devem se relacionar com o fato de que algumas chegaram ao poder representando ainda uma alternativa “antissistêmica”, enquanto outras o fizeram como alternativas mais integradas ao sistema. O capítulo está estruturado da seguinte forma. Primeiramente assumo uma perspectiva mais geral para comentar o longo caminho que as esquerdas percorreram até que seus setores majoritários considerassem a atuação democrática como caminho estratégico para a chegada ao poder. Em seguida, mostro que este processo efetivamente ocorreu entre os partidos analisados, que compreenderam mais “estrategicamente” a democracia num passado recente, inclusive com a redução do emprego de todas as famosas “adjetivações” ao termo, comuns nas formulações teóricas das esquerdas. Procuro demonstrar, a seguir, que a inserção das esquerdas no processo democrático de seus países se deu, no entanto, em níveis, graus e momentos distintos. Pode-se observar desde uma atitude de aceitação incondicional da democracia representativa em seus pressupostos liberais, até uma aceitação crítica de sua necessidade, visando sua reformulação “desde dentro” a partir de concepções “não liberais”. Neste ponto, o Movimento ao Socialismo (MAS) é o caso paradigmático, por isso discutido mais profundamente.

4.2 – O longo caminho A defesa da democracia em seus aspectos “representativos” foi tradicionalmente problemática para as esquerdas, desde a formulação por Marx da noção de “ditadura do proletariado” até o vanguardismo e o elitismo defendidos por Lênin2. O autor propôs formar uma organização hierárquica, militarizada, baseada na confiança entre seus membros para atuar na tomada do poder. Neste contexto,

Vitorias na crise.indd 136

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 137

não cabem “democratismos”. Não é necessária muita imaginação para se ter a tentação de relacionar (ainda que longinquamente) tal formulação ao posterior “terror stalinista”3. No entanto, as formulações leninistas (mais simplificadas e empobrecidas por posteriores releituras) acabaram tornando-se as referências centrais dos partidos comunistas, formados por todo o globo ao longo do século XX. Os partidos comunistas se constituíram, em determinado momento, organizações poderosas entre as esquerdas de diversos países latino-americanos (como Brasil, Uruguai, Venezuela, Cuba e Chile). Outras organizações associadas à tradição leninista também assumiram papéis de destaque na região (como o socialismo chileno e as guerrilhas da Nicarágua, El Salvador, Guatemala e Colômbia). Foi notável a dificuldade das organizações formadas em moldes “centralistas democráticos” em lidar com a relação entre socialismo e democracia – ainda que alguns deles tenham produzido mais tarde leituras heterodoxas e sofisticadas como a do “eurocomunismo”, que teve sua inspiração na obra de Gramsci e que no limite apontou para o “valor universal” da democracia. A democracia seria, segundo esta leitura, o principal valor sobre o qual repousaria a nova sociedade socialista, a partir de um movimento dialético de superação da democracia liberal pela socialista, em que esta eliminaria, conservaria e elevaria a nível superior as conquistas da primeira (Coutinho, 1980, p. 31). Essas organizações de inspiração leninista integrariam a corrente que pode ser chamada de “socialista revolucionária”, e que representa, grosso modo, uma das duas linhas nas quais as esquerdas se dividiram ao longo do século XX. A outra corrente seria a “socialista democrática”, formada em grande parte por partidos social-democratas. Foi no interior desta corrente que a valorização da democracia deu seus passos mais decididos. No entanto, a maioria de seus representantes vivenciou um processo de afastamento em relação aos valores socialistas, na mesma medida em que assumiam sem ressalvas o objetivo de imprimir um conteúdo social à democracia, o que não deveria levar, a priori, à conclusão de que democracia e socialismo são incompatíveis. De qualquer forma, as dificuldades das esquerdas com a democracia podem ser lidas como as dificuldades das sociedades que elas integram em relação a tais valores e concepções. Basta recordar que as primeiras democracias “modernas” só foram se desenvolver em alguns poucos países da Europa Ocidental e nos EUA ao longo do século XIX – ainda assim em sua concepção mais

Vitorias na crise.indd 137

10/17/11 12:55 PM

138 / Vitórias na crise

restrita (com diversas limitações de gênero e raça ao sufrágio, bem como proibições à organização popular) – e se impuseram no final da Segunda Guerra Mundial ou ainda mais tarde em diversos países europeus. Quanto à América Latina (e aos países periféricos como um todo), suas democracias contam poucas décadas, no mais tardar cerca de meio século – e com todas as dificuldades que elas acumulam. Não poderia se esperar então esquerdas muito diferentes de suas sociedades, sendo necessário analisá-las de forma descolada de sua realidade e de seu tempo. A valorização da democracia entre as esquerdas começou, em grande medida, é necessário reconhecer, com formulações “revisionistas” como as de Bernstein (1993) – antecedidas pelas preocupações em torno do sufrágio universal expressadas por Engels em seus últimos escritos. Para Bernstein, não havia sentido em seguir defendendo a construção de uma “ditadura do proletariado”, na medida em que a representação da social-democracia nos parlamentos e sua luta por uma representação popular influente e pelo sufrágio universal seriam inconsistentes com a defesa de qualquer ditadura futura. A democracia assumiu na obra de Bernstein uma centralidade até então inédita nas formulações marxistas. O autor evitou uma definição puramente “formal” de democracia, destacando que “estamos muito mais próximos do coração do problema se nos expressarmos negativamente, definindo democracia como a ausência de governo de classe” (p. 140). Tal definição permitiria ainda incorporar um valor tradicionalmente claro ao liberalismo: a defesa da minoria no que toca à opressão pela maioria. Permitiria também reconhecer diversos valores da tradição liberal como direitos “universais”: os direitos civis, o desenvolvimento da liberdade, o pluralismo. É rara tal valoração numa obra declaradamente marxista – ao ponto de Bernstein apontar o socialismo como um parente próximo ou mesmo herdeiro direto do liberalismo, e defini-lo como “liberalismo organizado”. As instituições, práticas e ideias liberais não seriam contraditórias com o socialismo – este seria o aprofundamento daquelas. A democracia, para Bernstein, era precondição e via para o socialismo. Ela seria um fim em si mesmo: “democracia é ao mesmo tempo meio e fim. É uma arma na luta pelo socialismo, e é a forma pela qual o socialismo será realizado” (p. 142). Em sua época, as propostas de Bernstein foram profundamente criticadas pela grande maioria do movimento socialista internacional.

Vitorias na crise.indd 138

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 139

Luxemburgo formulou uma das críticas mais construtivas, refutando sua associação entre organização democrática e capitalismo: “Não se pode estabelecer, entre o desenvolvimento capitalista e a democracia, qualquer relação geral absoluta” (1975, p. 58). De fato, ao contrário das formulações de diversos autores liberais e mesmo de Bernstein (que a partir do socialismo se aproximou decisiva e acriticamente daquela tradição), de forma alguma a democracia pode ser considerada uma contribuição original e intrínseca ao desenvolvimento da organização capitalista ou uma progressão inelutável derivada da modernidade. Ela depende diretamente, entre outros fatores, da atividade organizada dos próprios explorados e de suas organizações. Autores como Luxemburgo reconheceram isso, e destacaram que a forma de produção capitalista poderia levar, entre outros desenvolvimentos, ao abandono das conquistas democráticas obtidas até então. Algo que sua associação posterior ao nazifascismo ou às ditaduras na periferia do globo viria demonstrar. Ou seja, assim como a democracia não é necessariamente incompatível com o socialismo, ela não é intrínseca ao capitalismo. Além disso, ao contrário do que afirmou Bernstein, em sua tradução histórica a democracia nunca perdeu de todo sua expressão classista, apesar de todas as mediações e controles sociais existentes na prática. A divisão oriunda deste debate e cristalizada pelo surgimento do movimento comunista internacional levou à separação da esquerda mundial ao longo do século XX entre os “comunistas”, pouco afeitos ao debate democrático, e os “socialdemocratas”, crescentemente afeitos àquele debate, mas afastando-se do objetivo socialista. Tal divisão marcou o longo processo de integração das esquerdas ao processo democrático. Para Przeworski e Sprague (1986), com a inserção da socialdemocracia europeia no cenário democrático, a estratégia eleitoral foi progressivamente tomando corpo, sobrepondo-se a uma participação apenas “instrumental” no jogo democrático (utilização do parlamento como tribuna ou, no melhor dos casos, utilização dos espaços institucionais como um reforço para as estratégicas lutas sociais). Com a centralidade da atuação democrática, assumiria um papel igualmente decisivo a necessidade de construir bases majoritárias, com a busca de apoios nas camadas médias da sociedade e no centro do espectro político, mantendo-se, contudo, a preocupação em salvaguardar as bases populares tradicionais das esquerdas. Este movimento tinha evidentemente seus limites, mas onde encontrou

Vitorias na crise.indd 139

10/17/11 12:55 PM

140 / Vitórias na crise

êxito efetivamente guindou as esquerdas ao poder. Considero este o “primeiro processo” de adaptação das esquerdas europeias4, nascido da necessidade majoritária imposta pela aceitação do jogo democrático, e reforçada pela percepção de que, após a Segunda Guerra Mundial, o capitalismo central encontrou um ponto de estabilização baseado na “solução de compromisso” do Estado de Bem-estar Social. Muitos autores consideram que a integração das esquerdas na Europa Ocidental à democracia foi um fator importante na elevação desta a novos patamares, através da expansão e da reformulação de direitos e da construção do Estado de Bem-estar Social (Eley, 2005). No entanto, nas décadas de 1960 e 1970, os países centrais foram marcados por profundas transformações socioeconômicas, expressas no processo de “financeirização” da economia; na renovação e expansão de novos setores de produção e reprodução; no avanço científico-tecnológico; na redução do operariado tradicional e no aumento do setor de serviços; na precarização do trabalho e no aumento do desemprego; no colapso do “socialismo real”; no aprofundamento da globalização; na pulverização e na reconstrução de identidades; na retomada da concepção liberal; e na reforma e redução das redes de bem-estar social. Esta conjuntura de mudanças levou à necessidade de uma nova “adaptação exitosa dos partidos de esquerda à política e economia globais” traduzida nos anos 1990 pelo ciclo político-ideológico do “projeto tecnocrático e centrista ao estilo da ‘terceira via’ da Grã-Bretanha, do ‘novo centro’ da Alemanha, ou da ‘triangulação’ de Bill Clinton” (Hillebrand, 2007, p. 23). Considero que esse seria o “segundo processo” de adaptação das esquerdas. Isso poderia ser lido como mais um movimento em direção a novas bases sociais e ao centro, na medida em que boa parte das antigas bases sociais das esquerdas se diluiu, tornando impossível a conquista de apoios majoritários a partir de formulações social-democratas tradicionais. Este “segundo processo” configurou a chamada “onda rosa” europeia do final dos anos 1990, procurando dar uma resposta mais democrática, social, plural e supranacional às necessidades de reformas associadas à modernidade contemporânea, que até então vinham sendo lideradas no continente por setores “neoconservadores”. Para as esquerdas latino-americanas, a democracia nunca foi uma questão bem resolvida. Ao mesmo tempo em que elas sofreram com as ditaduras da região, só recentemente passaram a eleger o tema

Vitorias na crise.indd 140

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 141

entre suas preocupações centrais. As esquerdas da América Latina tradicionalmente valorizaram concepções e aspectos “substantivos” da democracia, mas muitas vezes deixaram de lado (ou valorizaram como um movimento “tático”) a sua importância enquanto sistema político, ou seja, a “democracia burguesa” (como foi chamada muitas vezes, de forma pejorativa) e seus “formalismos”. Mesmo um processo considerado paradigmático, por apontar para a construção do socialismo em democracia, como foi a experiência chilena, apresentava uma visível e intrínseca dubiedade, refletida nas divisões no interior do PSCh (que serão comentadas mais adiante), mas até mesmo no personagem central do processo, Allende, que não escapava à “adjetivação” crítica à “democracia burguesa” (como expressado em suas declarações, compiladas em Etcheverri, 2007). Considero que as esquerdas latino-americanas recém-convertidas à democracia vivenciaram simultaneamente problemas relativos às duas adaptações sofridas pelas esquerdas europeias em períodos distintos. Neste sentido, elas vivenciaram em certa medida as duas adaptações em um mesmo processo, argumento defendido em outros termos por Van der Linden (2005) para analisar a trajetória recente dos partidos de esquerda da Europa Meridional. Como é comum ao processo de modernização, fenômenos relacionados a diferentes temporalidades se acumulam, incluindo manifestações “pré-capitalistas” que não desaparecem de todo e se adaptam à modernidade. É possível sugerir que estas combinações se dão com maior intensidade e complexidade na periferia da modernidade, na medida em que diversas questões equacionadas de forma “definitiva” nos países centrais não o foram nos periféricos e semiperiféricos. A democratização é um exemplo eloquente desse “desnível”, na medida em que só recentemente ela se impôs na maioria desses países, ainda assim com dificuldades de accountability e diversas expressões de transferência e diluição da soberania popular – como na formulação de “democracia delegativa” proposta por O’Donnell (2004). Aqui mais uma vez se expressa dramaticamente o acúmulo de fenômenos relativos a distintas fases da modernidade. Como exemplo, basta dizer que a democracia vai se impondo na periferia no momento em que os partidos que, em determinado período, constituíram os organismos principais de integração e representação nas democracias centrais, vivenciam atualmente uma crise global. Como demonstra a democratização latino-americana e a integração de suas

Vitorias na crise.indd 141

10/17/11 12:55 PM

142 / Vitórias na crise

esquerdas a este processo, reelaborações e releituras de elementos tradicionais são comuns quando concepções e fenômenos relativos à modernidade central são transpostos a sociedades distintas das quais eles se originaram. Isso leva a uma complexidade notável, na qual o processo dominante de adaptação das sociedades latino-americanas à modernidade contemporânea deve dialogar com questões que foram “resolvidas” na modernidade central em outros momentos, e adicionalmente se articular com elementos originais manifestados na região e em suas diversas sociedades. O processo de adaptação das esquerdas latino-americanas apresenta então características semelhantes às duas adaptações das esquerdas europeias: tanto com o processo de integração à democracia representativa, iniciado ainda durante a primeira fase da modernidade e concluído no auge da segunda fase da modernidade, quanto com o processo de adaptação ao que pode ser considerada a terceira fase da modernidade. Mas, para as esquerdas latino-americanas, o primeiro processo ocorreu ao mesmo tempo em que se deu o segundo, sendo necessário ressaltar que a sua expressão nunca poderia manifestar-se como um “espelho” dos processos vivenciados pelas esquerdas originais. Se as metamorfoses pelas quais passaram as esquerdas da periferia latino-americana da modernidade apresentam pontos de contato com as experiências social-democratas europeias “clássicas”, elas se relacionam igualmente com tradicionais características sociopolíticas latino-americanas, e também com as transformações globais e regionais ocorridas nas últimas décadas.

4.3 – Integração democrática A aceitação da democracia e a adaptação às suas regras parece ter se aprofundado nas últimas décadas entre as esquerdas latinoamericanas, contribuindo para que elas se apresentassem como alternativas viáveis, ou seja, como atores mais ou menos “confiáveis” para amplos setores da sociedade. Serna (2004) destaca o papel da “reconversão democrática” das esquerdas latino-americanas nas recentes “transições” e “consolidações” democráticas da região, chamando a atenção para a importância dos atores de esquerda nesses processos, convertidos agora em alternativa potencial de poder, bem como em promotores de uma participação cidadã mais plural no processo eleitoral. Assim, eles teriam constituído “um fator de contenção para a

Vitorias na crise.indd 142

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 143

emergência de movimentos ou atores antipolíticos que poderiam ter tolhido os processos de democratização” (p. 31). Tomando por base uma noção “minimalista” de democracia (como as de Bobbio ou de Dahl apresentadas no Capítulo 1), pode-se considerar que as esquerdas latino-americanas chegaram ao poder por meios democráticos, governando até o presente dentro destes mesmos limites. Basicamente, os setores majoritários das esquerdas da região se integraram ao jogo democrático e aos valores procedimentais da democracia, em parte porque os sistemas políticos do continente agora estão abertos a elas e, por outro lado, a democracia se tornou de maneira crescente o único jogo disponível para ser jogado. Além das novas forças de esquerda, representadas, por exemplo, por setores do MAS ou do Partido dos Trabalhadores (PT), tradicionais setores comunistas, socialistas e nacional-populares abraçaram a democracia representativa não só de forma “tática”, mas “estratégica”, como caminho para a aplicação e o aprofundamento de suas propostas. Um exemplo evidente é a trajetória do PSCh, de um partido declaradamente revolucionário e marxista-leninista com posições ambíguas quanto à democracia antes de 1973 a uma força moderada, plural, aberta e pró-sistêmica durante a redemocratização. As novas condições da região e do globo, assim como o fracasso de referências de esquerda ditatoriais, favoreceram em grande medida a mudança adaptativa das esquerdas novas ou tradicionais, tornando o ambiente mais propício às esquerdas democráticas (mais plurais, flexíveis e menos dogmáticas) e desfavorável às que seguissem rechaçando tática e estrategicamente as concepções e práticas democráticas. A transformação ocorrida na relação entre o PSCh e a democracia é provavelmente a mais profunda entre os casos estudados. A comparação é evidente quando se pensa na organização anterior ao Golpe de 1973, que se pretendia leninista e vanguardista e propugnava a derrubada revolucionária do capitalismo. Ocorre que, para além de sua estrutura autoritária e concepção rupturista, havia um notável pluralismo interno. Isso terminou por colocar o partido no centro de um projeto de transição ao socialismo a partir das instituições da “democracia burguesa”, como definido diversas vezes por Allende (então um dos mais democratas entre os socialistas chilenos). Provavelmente o partido era menos democrata do que alguns de seus analistas e sua memória “oficial”5 gostariam de admitir. Para Aggio

Vitorias na crise.indd 143

10/17/11 12:55 PM

144 / Vitórias na crise

(2002), houve então notáveis dificuldades e “limitações da esquerda para consubstanciar a via chilena em uma via democrática, uma vez que se encontrava assentada muito mais numa visão já cristalizada da cultura política do socialismo do que em elementos fundadores de uma via nova e original para a construção socialista” (p. 154). Não é necessário ir tão longe para notar tal transformação. Basta voltar a 1989, poucos meses antes da reunificação do partido, quando o Partido Socialista Almeyda, na impossibilidade de participar das eleições com sua face própria, registrou com aliados a legenda Partido Amplo de Esquerda Socialista (PAIS na sigla em espanhol), que fracassou e logo foi dissolvida. A legenda em seu programa afirmava “não haver uma democracia autêntica sem igualdade, como tampouco sem uma participação efetiva dos chilenos nas decisões que lhes dizem respeito” (PAIS, 1989). Poucos meses depois, na declaração de princípios do PSCh (com a inclusão a princípio minoritária das forças políticas que integraram o PAIS), afirmava-se que o partido iria contribuir sempre para a defesa e para o constante aperfeiçoamento da democracia (...) a unidade do socialismo e da democracia se funda em sua permanente e suprema aspiração a conseguir a igualdade e a liberdade de todos os seres humanos, considerando ilegítimo sacrificar uma em função da outra. O regime político democrático não é, portanto, uma simples forma de administração da ordem existente, mas a via para sua própria transformação (PSCh, 1990b).

Finalmente, no congresso de 1998 afirmou-se categoricamente que “a pior democracia será sempre ética e politicamente superior a qualquer ditadura” (PSCh, 1998). Trata-se de um longo percurso desde o leninismo, passando pela defesa por parte dos almeydistas às vésperas da reunificação socialista de uma “democracia autêntica” (somente possível com igualdade social), até o “novo” PSCh, que propugnava a princípio a unidade entre socialismo e democracia, e que passou finalmente a defender a superioridade de qualquer democracia sobre qualquer ditadura. Partindo do pressuposto de que o socialismo não seria incompatível com a organização democrática (ao menos se ele for concebido como um processo, um “fazer-se”, e não como imposição de uma lógica global antagônica), pode-se dizer que, entre as propostas dos socialistas chilenos, não se encontra uma síntese criativa entre socialismo

Vitorias na crise.indd 144

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 145

e democracia, notando-se uma crescente relevância da segunda em detrimento da primeira. É como se os polos da igualdade e da liberdade fossem associados àquelas noções, e o valor da liberdade crescentemente assumisse um peso maior do que o valor da igualdade. O impacto da ditadura constitui um fator importante para a conversão democrática dos socialistas chilenos (assertiva que poderia ser estendida a todo o subcontinente), como é destacado por autores como Walker (1990) e Silva (1993). Roberts (1994) faz, contudo, uma importante ressalva, ao mostrar que tal impacto se deveu ao pluralismo e à flexibilidade práticos de sua estrutura e ideologia, que tornavam permeáveis ao “aprendizado democrático” os partidos herdeiros do legado socialista chileno, então esfacelado. No momento da refundação do partido, este fato evidentemente se combinou ao colapso do “socialismo real”. Com isso, quando o PSCh propõe alternativas, estas se associam ao “aprofundamento da democracia” e à sua extensão a todos os campos da vida social, culminando na construção, a partir do Estado chileno pós-ditatorial6, de um “Estado Social de Direito” (algo semelhante à formulação clássica do Estado de Bem-estar Social) que fosse descentralizado, participativo, eficiente e transparente. Para isso, seria importante desenvolver formas diretas de participação cidadã. Não ficamos satisfeitos em alcançar a plena democracia representativa. Nesse sentido, a participação local dos cidadãos nos assuntos que diretamente lhes competem, assim como sua participação regional e nacional, mediante plebiscitos e referendos em temas transcendentes de caráter político e moral, resultam fundamentais numa sociedade moderna” (PSCh, 1996)7.

Pode-se dizer que o MAS vivenciou um processo de aceitação da democracia representativa e de integração a ela, mas que tal processo se deu de forma diversa e mais truncada do que (por exemplo) no PSCh. O partido se equilibra ao longo de sua curta história entre as democracias representativa, participativa e comunitária. O projeto original de construção de um “instrumento político” foi de transferir à arena político-eleitoral o poder de coesão exercido pelos sindicatos comunais e pelas associações. A Lei de Participação Popular (LPP) de 1994, promulgada durante o primeiro governo de Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-1997), teria oferecido uma janela de oportunidades para os movimentos, que a aproveitaram. A LPP apontava para a descentralização municipal no contexto das reformas institucionais

Vitorias na crise.indd 145

10/17/11 12:55 PM

146 / Vitórias na crise

de segunda geração, segundo a pauta do Banco Mundial, implantadas nos anos 1990 no continente. Ela organizou os municípios rurais (muitos dos quais existiam apenas no papel), incrementou o poder municipal e dedicou ao nível local parte do orçamento nacional, além de prever um papel de fiscalização e controle por parte de organizações camponesas e comunitárias (como os ayllus), que passavam a ser reconhecidas legalmente (Albó, 2008). Além disso, outra reforma constitucional criou a figura dos deputados uninominais, que poderia favorecer o potencial voto territorializado dos movimentos camponeses e originários. Tais reformas fortaleceram a tese do “instrumento político” que já estava em discussão – e teriam favorecido seu sucesso posterior (Van Cott, 2005). A viabilidade dessa proposta foi mostrada já nas primeiras eleições das quais o MAS participou, obtendo votações majoritárias nas localidades específicas nas quais ele se organizou num primeiro momento – votações semelhantes às que a agremiação receberia posteriormente a nível nacional. Deste modo, o partido carregou, desde sua concepção, a marca da integração à democracia representativa, tendo sido fundado com este objetivo. No entanto, para os movimentos e militantes que o integravam, a tática eleitoral era a princípio exatamente isso, uma “tática” complementar às mobilizações populares de resistência ao neoliberalismo e aos “partidos tradicionais”. O MAS era visto como um meio de representação eleitoral, mas, ao mesmo tempo, de articulação extrainstitucional e extraeleitoral de seus movimentos, sindicatos, associações e militantes individuais. As eleições disputadas em 1995, 1997 e 1999 tiveram um papel fundamental na consolidação do partido, bem como no fortalecimento da liderança de Morales – fatores nem sempre reconhecidos pela literatura. Elas demonstravam que o caminho eleitoral era viável, e encorajavam setores e militantes sociais antes desconfiados a adotá-lo, ainda que muitas vezes apenas como tática para acumulação de forças (Escóbar, 2008). Especialmente após o resultado obtido na eleição presidencial de 2002, a “resistência” foi deixando de ser a estratégia principal e a participação eleitoral foi passando de movimento tático a estratégico. Evidentemente, este não foi um processo simples, e a tensão entre as duas permaneceu. As mobilizações de rua, os bloqueios de estradas e as marchas continuaram sendo alimentadas pelo partido, mas agora geralmente para fortalecer e legitimar a estratégia eleitoral de chegada ao poder. No acidentado caminho do

Vitorias na crise.indd 146

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 147

“protesto” a “proposta”, a democracia seguiu sendo valorizada numa chave participativa ou direta baseada na democracia de base ou de consenso exercida nos sindicatos comunais. O partido expressava em seu programa “sua profunda convicção no desenvolvimento de uma Democracia Comunitária, de consenso e Participativa, de conteúdo social e econômico. Esta democracia deve contar com mecanismos políticos que constituam canais de vinculação entre o governo e todos os setores populares” (MAS, 2004, p. 22). Observa-se um incremento do respeito à legalidade e à representação, mas trata-se de um processo lento e relativamente inconcluso. Um discurso de Morales proferido em uma sessão do Congresso, ainda em 2002, preservava a visão crítica da democracia representativa característica dos primeiros anos do MAS: Que tipo de democracia temos? Aqui não temos uma verdadeira democracia. (…) só vai haver democracia quando o povo refundar este país, porque os quéchuas, os aimaras, os trabalhadores, nós não participamos da fundação do país em 1825. Os próprios colonizadores refundaram o país, já é hora de que os donos absolutos desta nobre terra (e com gente digna, honesta, profissionais de classe média, da classe alta que estão conosco) se incorporem para refundar o país mediante uma Assembleia Constituinte, popular e das nações originárias (Morales, 2002c).

No entanto, ao longo da crise que assolou o país em 2003 e que levou à derrocada de Sánchez de Lozada, e no início do governo de seu sucessor, Carlos Mesa (apoiado pelo MAS como forma de “defender a democracia em perigo”, o que levou setores radicais a acusá-lo de “neoliberal”), seu discurso acerca da democracia assumiu um tom moderado. Como nesta entrevista de Morales (2004), na qual afirmava que o MAS “aposta na democracia, para chegar ao governo mediante o voto e desde ali fazer profundas transformações no Estado, mas de maneira pacífica. (…) [Pergunta]: Assim como o rotulam de ‘neoliberal’ ou ‘oficialista’, como se identifica em uma só palavra? [Resposta]: ‘Democrático’”. Desde então, apesar de sua dubiedade (refletindo a dualidade que marca a atuação do partido), o MAS assumiu um posicionamento relativamente mais integrado (em comparação com seus primeiros anos), propondo basicamente soluções institucionais e democráticas aos eventos que se sucederam entre 2003 e 2005, que culminaram em sua votação majoritária.

Vitorias na crise.indd 147

10/17/11 12:55 PM

148 / Vitórias na crise

A vitória masista se explica em parte por sua metamorfose em “oposição democrática” nos anos imediatamente anteriores e, em parte, pelo esgotamento do projeto neoliberal local e pela crise de representação que se manifestou na derrocada do sistema de partidos. A pluralidade do MAS o ajudou a chegar ao poder, e nesse tema específico gerou uma compreensão ao mesmo tempo positiva e crítica da democracia, propondo uma combinação de democracia representativa com elementos participativos e diretos. Sua pluralidade permitiu ao partido uma flexibilidade tática e estratégica e uma “combinação de retórica radical com decisões moderadas” (Mayorga, 2007, p. 59). Calcado em propostas étnicas e de esquerda moderadas, tal vitória parecia resolver o empate entre as “duas Bolívias”, que o partido deveria superar optando por um lado, sem a completa exclusão do outro. No entanto, o “empate” se reproduz durante o governo de Morales, em termos geográfico-ecológicos, socioeconômicos e étnicos (Albó, 2008). Quanto ao PT, trata-se de um partido que sempre teve a democracia como um tema central em sua atuação. Isso é evidente na ênfase de sua democracia interna em contraposição aos partidos de esquerda “tradicionais”, na defesa de um “socialismo democrático” em contraposição às experiências do “socialismo real”, no apoio ao poder local e à descentralização como meio para o “aprofundamento da democracia”. O partido surgiu nos estertores da ditadura, e em franca oposição a ela. Mas também se posicionou claramente como oposição ao processo de democratização da forma como se deu no país, tida como “conservadora” e “fraca” pelo partido. De certa forma, assim como se posicionava de forma radicalmente contrária à ditadura, o PT se colocou radicalmente contra a nova ordem que a sucedeu. Já em 1979, durante seu processo de fundação, o partido caracterizou o processo de redemocratização como contraditório e fruto do interesse de se “promover uma conciliação com os de cima, incluindo a cúpula do MDB [Movimento Democrático Brasileiro], para impedir a expressão política dos de baixo, as massas trabalhadoras do campo e da cidade” (PT, 1998a, p. 51). E fez uma importante ressalva: Se o regime autoritário for substituído por uma democracia formal e parlamentar, fruto de um acordo entre elites dominantes que exclua a participação organizada do povo (como se deu entre 1945 e

Vitorias na crise.indd 148

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 149 1964), tal regime nascerá débil e descomprometido com a resolução dos problemas que afligem o nosso povo e de pronto será derrubado e substituído por novas formas autoritárias de dominação – tão comuns na história brasileira (p. 53).

Por fim, declarava um tanto indefinidamente sua intenção de “apoderar-se do poder político e implantar o governo dos trabalhadores, baseado nos órgãos de representação criados pelas próprias massas trabalhadoras com vistas a uma primordial democracia direta” (p. 53). O partido evidentemente não se posicionou em seus primeiros anos contra a democracia, mas especificamente contra o conteúdo conservador que ela estaria assumindo no processo de redemocratização. Como foi dito, a agremiação, que nasceu em oposição à ditadura, sempre valorizou a democracia em diversos sentidos, mas até então numa chave mais “substantiva”. O PT chegou a denunciar as “limitações” do processo constituinte, do qual participou, tendo, contudo, se recusado a assinar a nova Carta (através de seus deputados constituintes, entre eles Lula), por considerá-la “conservadora”. O objetivo do partido naquele contexto, como declarado em documento de 1986, era constituir uma “real alternativa, tanto à transição conservadora quanto às tentativas de ressurgimento do populismo e da direita” (PT, 1998a, p. 236). Durante esse período, o PT, como era comum na relação tradicional das esquerdas com a democracia, ainda costumava defendê-la em versões “adjetivadas”, diversas da realmente existente ou da versão majoritária, propugnando uma democratização “real”, “econômica”, “plena”, “efetiva”, “direta”, etc. A variedade de adjetivos ao longo dos documentos petistas daqueles anos é enorme, servindo basicamente para expressar que a “democracia formal”, típica do capitalismo, deveria ser transformada na “democracia real”, que deveria ser própria do socialismo (como afirmado no V Encontro Nacional de 1987). As seguintes declarações contidas no documento aprovado como base para o plano de governo do partido em 1989 são ilustrativas de sua visão da democracia. Após defender textualmente que um regime com as características daquele vigente no país não poderia ser considerado uma democracia, afirmava que o primeiro compromisso do governo do PT é o de construir uma democracia efetiva da maioria, com a mais ampla participação popular nas

Vitorias na crise.indd 149

10/17/11 12:55 PM

150 / Vitórias na crise decisões do governo e da sociedade. (...) O PT defende a democracia efetiva e não a democracia meramente formal e truncada. (...) A defesa de uma democracia real e efetiva apoia-se na convicção, também, de que o socialismo se constrói com democracia (PT, 1998a, p. 404).

Malgrado o tom radical e desafiador que seu discurso ainda manteria por algum tempo, deve-se dizer que o PT começava a vivenciar sutis transformações, que iriam levar à sua moderação e à sua integração ao sistema. Sua postura “isolacionista” começava a refluir, permitindo a realização das primeiras alianças. O partido começava seu processo de enquadramento das tendências internas e, principalmente, aumentava a valorização das eleições (um indício é o crescente volume de documentos tratando desse tema que o partido passaria a produzir), das experiências governamentais e da atuação de seus parlamentares, em detrimento da organização dos trabalhadores e de suas lutas. A postura independente e antissistêmica do partido foi sendo substituída pela abertura a alianças, pela integração ao sistema político e pela aceitação das instituições. Pode-se considerar que, em seus primeiros anos, o PT procurou formular uma concepção de “socialismo democrático”. Ao longo dos anos 1990, foi afastando-se de referências socialistas e definindo seu projeto como o de uma “revolução democrática” calcada numa vaga “democracia radical”, ou seja, numa “radicalização” e “aprofundamento” da democracia como transformação com um conteúdo revolucionário em si. Um esforço nesse sentido seriam as numerosas experiências de orçamento participativo, implantadas pelo partido em suas administrações municipais e estaduais. Ainda que nem sempre tenham tido o sucesso esperado, constituíam genuínas tentativas de apoderamento popular, na medida em que retiravam parte do poder do executivo local ou regional e principalmente das câmaras e assembleias, ou seja, dos representantes, para transferi-lo à intervenção direta da cidadania (individual ou organizada)8. Por fim, mais recentemente o partido foi se afastando também da concepção de sua ação e projeto como “revolucionários” em qualquer sentido, propondo reformar, aperfeiçoar e renovar a democracia e as instituições. Um elemento central neste processo (descrito aqui de forma sumária) foi a longa transição (grosso modo entre 1988 e 2002) desde a defesa de uma democracia radical e “basista”, sustentada em conselhos populares e no poder local, até a aceitação

Vitorias na crise.indd 150

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 151

mais decidida de instituições, práticas e valores da democracia representativa, sem que se abandonasse de todo a defesa de seu “aprofundamento” através do incremento da participação popular e da descentralização, vista crescentemente como o fortalecimento da sociedade civil ou da participação dos cidadãos enquanto indivíduos “atomizados”. A proposta socialista democrática do partido nos anos 1980 resultou na concepção mista de “revolução democrática” dos anos 1990, chegando finalmente à ênfase nas reformas institucionais e na “democracia com inclusão e justiça social” nos anos 2000. Diversos exemplos podem ilustrar a nova forma de atuação do partido em relação às instituições e sua crescente compreensão da atuação democrática numa chave mais próxima da representação e de referências do liberalismo político. Um deles é a sua participação na crise que terminou afastando Fernando Collor da Presidência em 1992. O partido demorou a se manifestar pela saída do presidente (o que só ocorreu quando manifestações multitudinárias haviam tomado as ruas do país), e o fez propondo a via constitucional (que terminou por prevalecer) e a utilização da figura jurídica do impeachment em caso de comprovação pelo Congresso da conduta irregular do presidente. Enquanto isso, forças de extrema-esquerda (incluindo setores do partido) exigiam desde muito antes a defesa da mobilização popular para a derrubada do presidente, a negação do direito à posse do vice-presidente e a antecipação de eleições. Na época, para o PT, afastar o presidente e combater a corrupção equivalia textualmente a “defender a democracia e a ética”. Outro exemplo é a tentativa do partido de posicionar-se como defensor da democracia brasileira (democracia em chave claramente liberal), tentando impor ao ímpeto reformista do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998) a alcunha de “antidemocrático”. A manobra é visível em discurso de Lula pronunciado em 1997: As urnas de 1994 não foram convocadas para eleger um monarca, um déspota esclarecido ou um ditador. (...) democracia não é consenso obrigatório em torno da verdade do presidente. A democracia não é ditadura da maioria (...). Somos parte fundamental, essencial, indispensável da democracia brasileira. Prosseguiremos lutando (...) pelo aprofundamento da democracia nesta terra (Lula, 1997)9.

Finalmente, é interessante citar a postura que o PT assumiu no princípio do segundo mandato de Cardoso (1999-2002), quando o

Vitorias na crise.indd 151

10/17/11 12:55 PM

152 / Vitórias na crise

país enfrentou uma forte crise financeira logo após a reeleição de seu presidente. Na época, o partido o acusou de ter postergado informações e ações para enfrentar a crise que começava a se manifestar durante as eleições, o que poderia eventualmente ter trazido problemas à sua reeleição. Mais uma vez contrariando setores de extremaesquerda de dentro e de fora do partido e organizações populares, o PT assumiu uma postura legalista e institucional, rechaçando majoritariamente em seu II Congresso (1999) o lema “Fora FHC [Fernando Henrique Cardoso]”, e enfatizando a preparação para as eleições municipais do ano seguinte e presidenciais de 2002. A seguinte declaração de José Dirceu acerca dos resultados do congresso é ilustrativa da guinada realizada pelo partido, informando não somente sobre a mudança na concepção democrática do PT, mas praticamente sobre todos os temas tratados nesse trabalho: nosso II Congresso representa a possibilidade concreta do PT ser governo no Brasil. O Congresso armou o partido com uma política programática de alianças e aprovou mudanças que podem viabilizar nosso objetivo de construir uma aliança política mais ampla do que a esquerda (...) assume a questão nacional, radicaliza a questão social e, definitivamente, faz do PT o partido da democracia. (...) [O Congresso não aprovou o lema “Fora FHC”.] O Congresso aprovou “derrotar FHC” e construir um governo popular, ou seja, queremos que FHC deixe o governo democraticamente (Dirceu, 1999).

Ao chegar ao poder, a concepção de democracia majoritária no PT não diferia radicalmente da tradição liberal, como demonstra a garantia, expressa na Carta ao Povo Brasileiro, de que as mudanças projetadas pelo partido “seriam feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais” (Lula, 2002b), ou a avaliação realizada por Lula no dia seguinte de sua eleição, de que as eleições haviam sido “uma vitória da sociedade brasileira e de suas instituições democráticas, uma vez que elas trouxeram a alternância de poder, sem a qual a democracia perde a sua essência”. Para Lula, a “grande virtude” da democracia seria permitir “ao povo mudar de horizonte quando ele acha necessário” (Lula, 2002a). A trajetória da Frente Ampla (FA) em relação ao tema da democracia guarda semelhanças com a do PT, mas sua transformação é mais discreta. De certo modo, a FA, como já foi dito, produz reflexões e toma decisões acerca da realidade uruguaia mais imediata, de

Vitorias na crise.indd 152

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 153

sua organização interna, das táticas eleitorais e propostas alternativas – deixando para seus grupos internos os debates estratégicos e teóricos de maior envergadura. Este procedimento oferece-lhe provavelmente uma flexibilidade estratégica e, acima de tudo, contorna debates e definições que poderiam levá-la a cisões. Grosso modo, a FA sempre se definiu como uma força “popular democrática”. Em seu princípio ela carregava (como seus setores hegemônicos) uma visão “tática” da democracia, ou seja, a ideia de que as instituições e liberdades políticas típicas da “democracia burguesa” forneceriam um ambiente mais propício ao desenvolvimento e à atuação das esquerdas, mas não estariam na base de uma transição ao socialismo, não havendo clareza acerca de sua preservação e desenvolvimento na nova organização socioeconômica. Os objetivos imediatos da FA em sua fundação passaram pela preservação da legalidade, das garantias e direitos constitucionais em meio ao recrudescimento do autoritarismo, que culminaria na ditadura. A FA afirmava que o Estado de Direito já havia sido cancelado pelas medidas de exceção então impostas, e que se deveria lutar pela sua “recuperação”. Mas ao mesmo tempo, afirmava que tal organização era insuficiente e deveria ser transformada, no momento oportuno, para adequar-se às transformações socioeconômicas que a FA projetava, dando lugar a uma “democracia autêntica”. O futuro enfrentamento definitivo entre povo e oligarquia era tido como inevitável. Vê-se que o projeto original da FA era ao mesmo tempo defensivo e ofensivo, e que ao lado da defesa (ou restauração) das instituições, liberdades e garantias próprias do Estado de Direito em sua feição liberal, projetava-se a sua superação. Para que preservar algo que se esperava estar esgotado dali a pouco? E mais, como restaurar o que estava sendo progressivamente cancelado, ao mesmo tempo em que se alimentava uma polarização que levava àquele cancelamento? Após a redemocratização, a FA começou a esboçar uma mudança sutil em sua relação com a democracia, que os setores majoritários no partido propunham “consolidar” e “aprofundar”. A FA construiu sua autoimagem em meio à derrocada da democracia uruguaia como uma tentativa de contraposição a este processo e como a principal força de resistência durante o período ditatorial. A repressão sofrida pelo partido, sua efetiva atuação pela redemocratização e o elevado número de presos e assassinados entre seus representantes (compreendidos desde logo como “mártires” da luta pela democracia) legaram ao partido

Vitorias na crise.indd 153

10/17/11 12:55 PM

154 / Vitórias na crise

importantes elementos em sua construção identitária como força democrática em chave “popular” ou “avançada”, contribuindo com seu processo de “nacionalização” e “tradicionalização”, bem como com a configuração da “família frenteamplista”, aí incluída a transferência geracional do frentismo (conferir os Capítulos 2 e 3). Grosso modo, até 1989 a FA ainda carregava certa dubiedade em relação à democracia representativa, o que explica parcialmente a ruptura do partido – descontadas as disputas por poder no partido e por espaço nas chapas eleitorais, bem como as distintas concepções acerca de sua estrutura interna. Deu-se a saída de setores que eram então apoiadores mais decididos de uma valorização das instituições da democracia representativa e da estratégia eleitoral como o único caminho para a chegada ao poder. Refiro-me ao Partido pelo Governo do Povo (PGP) e ao Partido Democrata Cristão (PDC). Daí a defesa por parte desses setores de uma “cultura de governo”, de uma “oposição responsável”, da formação de alianças amplas e da integração total ao sistema político. Por outro lado, entrava na FA um novo setor que defendia a necessidade de se criar uma “nova democracia” (definida de forma vaga), e que se recusou, inclusive, a apresentar candidatos próprios nas eleições daquele ano – o Movimento pela Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T). Para aclarar as diferenças, vale recorrer a formulações acerca do tema apresentadas nesses dois extremos. O PDC concebia o conflito no interior da FA como a disputa entre duas concepções distintas. Por um lado, as posições “críticas ao vanguardismo e a todo tipo de messianismo, sensíveis a uma revalorização das formas democráticas e dos processos participativos e plurais de mudança social” (concepções à qual o partido se filiava). Por outro lado, os defensores “das velhas teses prevalecentes nos anos 1960, inspiradas, sobretudo, nas visões marxistas mais ortodoxas” (PDC, 1989, p. 8). Já o MLN-T considerava a democracia uruguaia “mentirosa e mitigada pelo enorme saldo de injustiça social que encerra uma democracia bastante cerceada, como que escondendo aqui e ali, no ‘veremos’ de algum senhor ministro, a ameaça do garrote” (MLN-T, 1988, p. 1). Em contraposição, o movimento propunha um “socialismo nacional”, “pluripartidário, democrático, participativo”, calcado na construção de um “poder popular” (p. 9). No entanto, e apesar da correlação interna de forças aparentemente desfavorável, a mudança se aprofundou com a crise do

Vitorias na crise.indd 154

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 155

“socialismo real” (pouco debatida pela FA, mas com impacto direto em seus principais setores) e com a perspectiva da chegada ao poder, antecipada pela experiência de governo em Montevidéu a partir de 1990. O peso deste último fator fica evidente na declaração de Seregni, ao afirmar que desde a “recuperação democrática sentimos que o papel que ocupávamos na cena política nos levava inevitavelmente, em mais curto que longo prazo, a ser opção real de governo e, por conseguinte, à necessidade imperiosa de mudar de mentalidade” (Seregni, 1991). Deu-se então por parte da FA uma crescente valorização das instituições da democracia representativa, mas, a princípio, calcada na noção de que só haveria uma “autêntica” democracia “política” se fosse acompanhada de uma “real” democracia “econômica e social” (FA, 1994, p. 16). Essa valorização se combinou com a defesa de mecanismos de democracia direta. Tal defesa foi efetivamente traduzida na participação do partido nas diversas iniciativas plebiscitárias de democracia direta (previstas pela institucionalidade uruguaia), convocadas por iniciativa própria ou de setores sociais próximos a ela, quase sempre para reduzir os efeitos ou paralisar (com razoável sucesso) a aplicação do projeto neoliberal. Ela se combinou também, a princípio, com a valorização do poder local e da descentralização, através de juntas locais e de órgãos representativos das organizações sociais (como proposto no programa de governo de 1989). Tal processo foi parcialmente levado a cabo na Intendência de Montevidéu, nos primeiros anos do mandato de Vázquez. Com o tempo, no entanto, esse elemento de participação se esvaziou, sendo até certo ponto substituído pela noção de boa administração ou “bom governo” (Chavez, 2004). De maneira geral, essa transformação de paradigmas na Intendência de Montevidéu refletiria e, ao mesmo tempo, influiria na mudança mais geral de paradigmas da FA, crescentemente marcada por concepções mais moderadas e com alguns elementos liberais. No princípio dos anos 1990, a visão da democracia uruguaia e das instituições representativas já era mais positiva do que na fundação da frente, e já se notava que o projeto frenteamplista não propunha superar a institucionalidade democrática por outro modelo, mas sim aprofundá-la. No II Congresso Ordinário (1991), o partido afirmou considerar “a democracia como parte essencial de seu modelo. Nesse sentido defendemos todas as instâncias da democracia representativa, mas consideramos que ela deve ser aprofundada facilitando as formas

Vitorias na crise.indd 155

10/17/11 12:55 PM

156 / Vitórias na crise

de democracia direta que prevê nossa Constituição e promovendo outras” (FA, 1991). Assim, a defesa das instituições representativas já era inequívoca, devendo-se complementá-las com mecanismos de democracia direta. No mesmo congresso, o partido mostrou, no entanto, que tal defesa não o levava ainda a considerar os mecanismos da democracia representativa suficientes por si só para configurar uma democracia “plena” ou “verdadeira” (a democracia ainda era “adjetivada”): a luta pela democracia, por preservá-la e fortalecê-la, é um compromisso de todos e constitui uma convicção profundamente enraizada em nosso povo. Mas, além de conservar a democracia, é necessário aprofundá-la. Os direitos humanos, civis e políticos que um Estado de direito garante são fundamentais, e é compromisso de todos fortalecê-los. Mas isso não é suficiente, porque não constituem todos os direitos do homem. Por isso a FA (...) luta por alcançar a democracia plena. A isso chamamos aprofundar a democracia (...) transformar essa democracia que hoje vivemos, numa verdadeira democracia onde o povo seja protagonista (FA, 1991).

Na mesma linha, afirmou-se em diversas ocasiões que os governos conservadores levavam a cabo uma política “antidemocrática”, e que haveria uma contradição entre neoliberalismo e democracia – tese defendida principalmente nos primeiros anos do segundo governo de Sanguinetti (1995-2000), período em que a FA exerceu uma oposição mais decidida e contestatória. Nas eleições de 1999, o programa proposto já mudaria de tom, atribuindo um papel central às reformas e aperfeiçoamentos institucionais, à defesa da estabilidade e da transparência e ao debate de problemas de governabili dade e gestão. Ao mesmo tempo, as propostas de participação perderam espaço, sendo entendidas mais como manifestação de “cidadãos” que de organizações sociais ou expressões locais. De maneira geral, compatibilizou-se com mais harmonia os valores e instituições da democracia existente com o que ela poderia se tornar, ou seja, compreendendo-se representação e participação não como polos distintos, onde o segundo assume a primazia, mas como elementos integrados: O respeito dos direitos humanos e o fortalecimento e aprofundamento da democracia constituem eixos fundamentais da nossa ação. Só uma democracia forte, capaz de avançar progressivamente em sua

Vitorias na crise.indd 156

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 157 dimensão social e de participação, de fazer-se mais profunda e radical (...), será o marco adequado para que nós uruguaios encontremos os caminhos de nossa felicidade coletiva num ambiente propício para a plena realização individual (EP-FA, 1999, p. 9).

Por fim, chegou-se à “transição responsável” e à “mudança à uruguaia”10 proposta em 2004, quando a FA chegou ao poder com apoio majoritário. A dimensão da participação como elemento central na construção de uma “democracia autêntica” não desapareceu, mas ficou visivelmente relegada a um plano secundário. Neste momento, defendeu-se que a democracia existente deveria ser aperfeiçoada no que toca a “direitos e responsabilidades cidadãs, relacionamento entre a sociedade e o Estado, fortalecimento da dimensão social do Estado, qualificação do sistema político... enfim, a democracia não é perfeita, mas é aperfeiçoável. Sempre é possível democratizá-la um pouco mais” (EP-FA-NM, 2004, p. 40). A conclusão, expressa na declaração de Vázquez pouco antes das eleições, era a de que “não há melhor sistema político, ao menos pelo que foi demonstrado até agora, que a democracia. (...) Acreditamos na democracia em toda sua dimensão, representativa, participativa. Eu não quero um sistema cubano no Uruguai” (Liscano, 2004, pp. 61-62).

4.4 – Integração incondicional ou integração crítica Parece que a aceitação da democracia representativa é um traço marcante das esquerdas governantes latino-americanas. Todas elas atuaram democraticamente antes de chegar ao poder, participaram de eleições limpas e plurais e através delas foram eleitas, governando até o momento a partir do respeito aos pressupostos democráticos mínimos. Mas seria possível estabelecer uma diferença entre os que “aceitam” as regras da democracia representativa e suas instituições como uma forma de realizar seus objetivos, e os que terminam por “crer” em seus pressupostos e aceitá-los integralmente? As esquerdas governantes latino-americanas progressivamente se inseriram no processo democrático de seus países, mas em diferentes níveis, graus e momentos. Como foi antecipado no início do capítulo, é razoável supor que haveria desde uma aceitação incondicional da democracia representativa em seus pressupostos mais liberais, até uma aceitação crítica de sua necessidade, visando sua reformulação

Vitorias na crise.indd 157

10/17/11 12:55 PM

158 / Vitórias na crise

“desde dentro” a partir de concepções “não liberais”. Nota-se pelo apresentado nas páginas anteriores que o PSCh, o PT e a FA estariam naquele primeiro grupo. Volto então agora ao caso do MAS, para propor que sua participação nas instituições representativas bolivianas teria se dado num nível distinto, provavelmente por ter sido mais tardia e truncada, e por ter ocorrido num contexto de colapso do sistema político e das instituições do país. Quando os primeiros parlamentares masistas foram eleitos, sua atuação era amplamente antissistêmica, como se depreende do seguinte discurso de Ramó n Loayza em sessão congressual de 1997: “quem ganhou a democracia? Não sendo os pobres foram os ricos, que a comandaram desde suas casas e enganaram a todo o país” (Loayza, 1997); ou do discurso de Morales em 1998: “a democracia que temos na Bolívia é ainda uma competição dos poderosos, é uma queda de braço de certos interesses econômicos. Queríamos uma democracia onde haja justiça, igualdade e, assim, talvez o povo boliviano possa crer nesta democracia” (Morales, 1998). Em 2001, Morales apresenta sua visão da democracia boliviana. O trecho é esclarecedor: Eu e nossas comunidades camponesas originárias entendemos por democracia onde a maioria tem que administrar a comunidade, o Estado neste caso, e não as minorias. Nós entendemos que as maiorias governem, mas temos uma democracia na qual as maiorias não governam, uma democracia na qual nem mesmo os parlamentares que estamos aqui governam, mas sim os chefes de partidos, famílias e isso para nós não é nenhuma democracia. Às vezes me sinto equivocado de ter chegado ao Parlamento porque pensei (e pensamos como organizações) que entrando como deputados na democracia iríamos resolver os problemas sociais, econômicos, a injustiça em si, mas me dou conta que aqui não se resolve (...). Eu me recordo quando fizemos algumas interpelações que são fundamentalmente para censura e mudança de políticas e aqui não se aceitava. Então obrigados tivemos que ir a bloqueios de estradas para que à força pudéssemos mudar políticas e até pudemos mudar leis ou anular contratos que são lesivos aos bolivianos. (...) Assim não há uma verdadeira democracia (Morales, 2001).

Tal percepção acerca da democracia deve ter se aprofundado quando Morales foi sumariamente afastado das atividades parlamentares por seus colegas, acusado de ter fomentado a partir da tribuna um enfrentamento no qual morreram camponeses, soldados e um

Vitorias na crise.indd 158

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 159

policial, em virtude da decisão do governo de fechar mercados de comercialização de coca no princípio de 2002. Quando o líder do MAS foi reeleito para o Congresso em 2002, destacou na comemoração de vinte anos da democracia boliviana que na cultura dos quéchuas, dos aimaras, a democracia significa que as maiorias governem, que o povo decida sobre seu futuro, nela há consensos e não simplesmente imposições, caprichos. Nós não compartilhamos da Constituição, mas quando queremos fazer cumpri-la, aqui mesmo os parlamentares não a respeitam. (...) Graças à consciência de nossos irmãos e irmãs do campo e da cidade, aqui estamos presentes justamente para questionar e acabar com esta democracia formal que está a serviço das transnacionais (Morales, 2002c).

Nota-se a partir destes discursos a desilusão com a participação nas instituições da democracia, e a percepção de que a mobilização popular seria a responsável por efetivas mudanças, relegando a atuação parlamentar a um plano secundário, auxiliar. De maneira geral, para Morales a democracia boliviana seria governada pela minoria (as famílias abastadas e os partidos tradicionais), pela “oligarquia”, a serviço do imperialismo. Basicamente, tal democracia “formal” não seria “verdadeira”, e suas instituições não teriam grande utilidade, já que decisões significativas não eram tomadas efetivamente. Ela deveria, portanto, ser superada em favor de uma democracia direta, com elementos “comunitários” e consensuais. Ao que parece, a Constituição não era reconhecida pelo partido, a qual ele recorria somente de forma instrumental, quando convinha aos interesses de suas bases sociais organizadas. As instituições ilegítimas (por terem sido construídas sem a participação das maiorias) deveriam ser substituídas por uma nova institucionalidade, num processo de refundação do país, dessa feita com a participação de todos os interessados. Vimos anteriormente, no entanto, que especialmente entre 2003 e 2005 o MAS e seu principal líder procuraram adequar, de forma mais decidida, sua ação à institucionalidade vigente, e passar uma autoimagem democrática numa chave mais convencional, contemporaneamente aceita. Especialmente nas crises de 2003 e 2005, o MAS procurou saídas constitucionais. Para reforçar tal assertiva, cito as declarações do senador Filemón Escóbar ao longo da crise de 2003, quando afirmou que o MAS queria “consolidar a democracia, senão os problemas no país vão se aprofundar” (Escóbar, 2003b). Escóbar

Vitorias na crise.indd 159

10/17/11 12:55 PM

160 / Vitórias na crise

procurou provar que “nós defendemos a democracia e a forma de defender a democracia é com a renúncia de Sánchez de Lozada, (...) e o último argumento do líder do MAS [Morales], sucessão constitucional, leva a que nós, os ‘destruidores da democracia’, resultamos mais democratas que os outros partidos [‘tradicionais’]” (Escóbar, 2003a). Evidentemente nesses anos seu projeto eleitoral assumiu precedência sobre a mobilização popular, que deveria a partir de então servir de apoio para aquele projeto. Tal mudança tem provável relação com fatores como o sucesso eleitoral do partido em 2002, as novas alianças políticas e sociais realizadas por ele, sua incipiente institucionalização e a progressiva entrada de setores sociais médios e altos em suas fileiras. Nota-se, nos anos imediatamente anteriores à sua chegada ao poder, declarações e propostas semelhantes às recolhidas nos casos do PSCh, do PT e da FA. No entanto, a questão democrática não estava equacionada para esse partido como para os outros analisados. O MAS se debatia, em meio à profunda crise vivida no país, entre concepções distintas e dificilmente conciliáveis de democracia, tendo iniciado muito recentemente seu processo de aceitação de elementos que poderiam ser considerados mais “representativos” da democracia – enquanto os outros partidos estudados já davam então os passos finais nesse processo. Ainda durante a crise de 2003, o MAS lançou o manifesto “Defender a democracia!”, mas sua concepção de democracia se afastava ainda de elementos mais “representativos”. Defendeu-se uma nova institucionalidade democrática, afirmando-se que ela não é somente formada por “procedimentos eleitorais, mas [significa], fundamentalmente, fazer com que os Direitos Humanos se respeitem e sejam os mecanismos através dos quais nós nos relacionamos”. O MAS propugna uma “democracia sustentada na sociedade civil”, “inclusiva, participativa e emancipadora”, que, para ele, já se encontrava em construção a cada manifestação e em cada organização popular, e se mostrava distinta da “suposta ‘democracia’” adequada aos interesses da oligarquia (MAS, 2003a). Quando o MAS chegou ao poder, se filiava em larga medida a uma leitura mais “participativa” da democracia, mas não fica claro até que ponto e de que forma essa visão ainda convivia com a antiga concepção de democracia direta, com claro conteúdo social e econômico, sustentada pelo partido majoritariamente ao menos até 2002, e que representava de certa forma uma defesa do “comunita-

Vitorias na crise.indd 160

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 161

rismo” praticado pelos povos originários e idealizado pelas diversas formulações do indianismo. Tal concepção poderia se aproximar em certo sentido da postura tradicional das esquerdas de aceitação instrumental da democracia11. É razoável supor que o MAS teria se afastado em grande parte desta visão, aderindo ao jogo democrático, ainda que com a perspectiva de democratizá-lo. Este teria sido um dos movimentos de moderação e integração ao sistema político e à democracia representativa que favoreceram sua chegada ao poder. Mas parece evidente também que tal movimento se deu de forma acelerada, tardia e inconclusa.

4.5 – Conclusão Espero ter demonstrado que a aceitação dos valores e da participação democrática está presente nas esquerdas latino-americanas atuais. A “crença” no valor e na primazia da democracia representativa parece ser mais forte em partidos como o PSCh, o PT e a FA. Haveria, neste caso, uma crescente integração à democracia representativa, numa chave “social”, ou seja, de defesa de instituições democráticas mais inclusivas, participativas e com elementos de justiça social. A visão de democracia que o PSCh, o PT e a FA sustentavam quando chegaram ao poder não negava a concepção liberal de democracia, que dá primazia à noção enquanto regime político, enquanto conjunto de regras formais para estabelecer a representação justa e transparente dos representantes pelos representados. Sem tentar incutir em tal afirmação nenhuma pretensão normativa, considero que esses partidos não apenas se adequaram a tais regras como forma de chegar ao poder, mas terminaram por acreditar que tais regras são as únicas disponíveis. Entretanto, fizeram-no numa chave “participativa” ou “cidadã”, com eventuais mecanismos e instâncias de participação e controle, com ênfase no poder local e no valor do espaço público. Trata-se então de uma visão que essencialmente aceita a primazia da concepção democrática em chave liberal, mas que não o faz em sua concepção mais pura e atomista, constituindo uma alternativa às teorias mais “elitistas” da democracia (enfocadas somente na competição eleitoral justa pelo poder representativo). Tratase de uma concepção de democracia representativa mais “ampliada”, participativa e inclusiva, com certo conteúdo social.

Vitorias na crise.indd 161

10/17/11 12:55 PM

162 / Vitórias na crise

Por outro lado, viu-se que o MAS participa das instituições representativas da democracia, mas o faz com restrições, levando adiante uma concepção de democracia com elementos comunitários e consensuais. Tais restrições se reduziram nos anos imediatamente anteriores a sua chegada ao poder, quando a participação na democracia representativa começou a ser vista pelo partido como uma estratégia, não apenas como tática para a acumulação de forças dos setores e movimentos sociais que o integram. Pode-se observar, desta forma, uma diferença entre MAS, de um lado, e PT, FA e PSCh, de outro. Considero que todos os casos analisados se localizam em espaços intermediários entre a concepção “minimalista” de democracia e a concepção “substantiva” de democracia clássica entre as esquerdas, caracterizando-se por distintas abordagens e ênfases e assumindo diferentes posições num mesmo contínuo.

Vitorias na crise.indd 162

10/17/11 12:55 PM

Democracia / 163

Notas

1

Isso se relaciona com fatores como a valorização por parte dessas organizações dos movimentos sociais e de suas relações com eles (cf. Mirza, 2006), e pode se manifestar por meio de experiências participativas, descentralizadoras e plebiscitárias (cf. Dagnino, Olvera, Panfichi, 2006).

2

A discussão acerca do caráter nacional ou universal das propostas organizativas de Lênin está presente nas esquerdas desde sua formulação. Somente com notável esforço se pode retirar dos escritos de Lênin indicações de alguma intenção de propor um modelo revolucionário aplicável a realidades distintas – a começar porque ele afirma categoricamente que sua proposta se refere “apenas” à Rússia autocrática. O mais profícuo seria buscar a explicação para a cristalização e expansão do modelo leninista no poder autorreferente da Revolução Russa e na atuação da Terceira Internacional (Internacional Comunista).

3

Trotsky fez tal associação, ao apontar que as “fórmulas organizativas primitivas” propugnadas por Lênin levariam a noção original marxista de “ditadura do proletariado” (sobre o restante da sociedade) a metamorfosear-se em ditadura do partido único e autoritário “sobre o proletariado”. Substituir-se-ia o “domínio político da classe pelo domínio organizativo sobre a classe” (1977, p. 443).

4

Essa proposta é semelhante à noção de “duas metamorfoses” vivenciadas pelas esquerdas europeias, defendida por Van der Linden (2005).

5

A memória do partido, seletiva, mutável, permeada de silêncios e ressignificações como qualquer memória social (Pollack, 1989) foi mobilizada nas últimas décadas por seus órgãos oficiais e direções para defender a tese de que os socialistas chilenos sempre foram democratas, ainda quando a grande maioria do movimento socialista mundial não o fosse.

6

Há uma recorrente preocupação com a consolidação da democracia política, com a resolução da “transição inconclusa”, que para os socialistas só teria se dado com a superação dos chamados “enclaves autoritários” durante o governo de Lagos.

7

A visão do poder local como lócus privilegiado para o “aprofundamento” da democracia é evidente para o PSCh, que considera que a partir dele poderia materializar-se um processo mais real de democratização (como formulado em diversos programas de governo do partido a nível local).

Vitorias na crise.indd 163

10/17/11 12:55 PM

164 / Vitórias na crise 8

Estas experiências não foram transferidas diretamente à administração petista nacional. No entanto, as iniciativas de implantação de diversos conselhos com participação da cidadania, e especialmente do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, poderiam ser considerados projetos nesse sentido.

9

No mesmo contexto, o então presidente do PT José Dirceu afirmava que o governo “é autoritário, caminha para o autoritarismo e quer fazer uma reforma política eleitoral autoritária” (Dirceu, 1997).

10 Cambio

a la uruguaya é uma expressão e noção recorrente há tempos entre a opinião pública, os analistas e a população uruguaia, e se refere à propalada tradição nacional de mudanças com moderação, gradualismo, estabilidade e respeito à tradição, quase uma combinação de mudança e conservação.

11 Tradicionalmente

dita “burguesa” (que nunca poderia ser efetiva, dado seu corte classista), enquanto se planejava sua superação por uma democracia popular. Esta seria direta (calcada em conselhos, plebiscitos e na primazia do partido), “efetiva” ou “substantiva”, por calcar-se na progressiva superação social e econômica do domínio de classe, com um necessário e temporário domínio da maioria sobre a minoria – a clássica “ditadura do proletariado” sobre os elementos burgueses.

Vitorias na crise.indd 164

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 165

capítulo

5

(Anti)neoliberalismo 5.1 – Apresentação

Esse capítulo procura demonstrar que as organizações de esquerda que conseguiram chegar ao poder na América Latina mantiveram, ao longo de suas trajetórias e em distintos graus, discursos alternativos aos que se convencionaram chamar de “neoliberais”. Estas concepções alternativas constituíram fatores importantes para a sua ascensão, quando o esgotamento dos modelos baseados naquele corpus teórico começou a se manifestar. Espero ter mostrado anteriormente que as esquerdas latino-americanas contemporâneas ampliaram sua independência quanto a teorias e a modelos gerais, e que este movimento contribuiu para que elas pudessem expandir suas bases sociais (conferir o Capítulo 3). No entanto, tal movimento expansivo resultaria num fracasso se as organizações conquistassem novos espaços, bases e eleitores, perdendo ao mesmo tempo seu antigo “patrimônio” (um “jogo de soma zero”), o que representa uma possibilidade concreta, tendo em vista os inúmeros casos de partidos que realizaram “conversões” ideológicas e lograram novos apoios, recursos e votos à custa de antigos. Esse duplo movimento de expansão/conservação impõe então limites claros aos partidos, que não podem realizar movimentos mais bruscos de reposicionamento no sistema partidário sem angariar perdas. Tais limites podem ser mais rígidos dependendo de fatores como as relações dos partidos com os movimentos sindicais e sociais que os apoiam, ou a existência de um partido que represente uma ameaça significativa à sua esquerda. As heterogeneidades ideológicas e identitárias das esquerdas analisadas devem ter tido seus limites, na medida em que elas mantiveram suas identidades de esquerda – ainda que com maior ou menor sucesso em cada caso, especialmente quando elas passaram a atuar como forças de governo. Nesse capítulo, espero demonstrar que as esquerdas aqui estudadas mantiveram seu caráter “alternativo” e oposicionista com base,

Vitorias na crise.indd 165

10/17/11 12:55 PM

166 / Vitórias na crise

em larga medida, na crítica ao “neoliberalismo” – mesmo sem conseguir desenvolver tão claramente projetos de desenvolvimento distintos. As forças políticas estudadas conseguiram se apresentar (ainda que em diferentes níveis) como efetivamente diferentes, ou ao menos capazes de propor reformas às ideias e políticas neoliberais que vinham sendo adotadas com diferentes graus de intensidade nestes países. Neste processo, elas se posicionaram como forças “alternativas”, “progressistas”, e efetivamente foram guindadas ao poder enquanto depositárias de um desejo difuso por “mudanças”. Tais valores foram associados a essas forças políticas por suas diversas combinações de sensibilidade social, relação com setores organizados progressistas da sociedade civil, “novidade”, “reserva moral” e “ética” (Dirmoser, 2005), em maior ou menor medida em chave oposicionista ao neoliberalismo. O capítulo se organiza em quatro partes. Na primeira, examino (mais detidamente que no Capítulo 1) as proposições básicas do neoliberalismo e sua aplicação na América Latina. Na segunda, procuro mostrar como as forças de esquerda estudadas efetivamente desenvolveram uma crítica à crescente hegemonia neoliberal, e como isso contribuiu para a manutenção de seu caráter crítico e “alternativo” – malgrado suas transformações e adaptações, mostradas ao longo de toda a obra. Na terceira parte procuro demonstrar que houve, no entanto, diferenças neste processo. Grosso modo, algumas dessas esquerdas ou alguns de seus setores foram permeadas por alguns dos valores neoliberais vigentes, levando a cabo uma crítica mais moderada à sua hegemonia, enquanto outras esquerdas desenvolveram uma crítica mais decidida de tais paradigmas, apontando para sua completa superação. Por fim, sistematizo os argumentos apresentados no capítulo.

5.2 – Neoliberalismo e hegemonia O esgotamento das diversas formas “Estadocêntricas” (entre elas o nacional-desenvolvimentismo latino-americano) se relacionou com a reestruturação produtiva vivenciada pelo capitalismo nas últimas décadas e a superação do “ciclo fordista”. O neoliberalismo teria sido gestado, segundo Vacca (2009), a partir da revalorização do mercado em setores – como os da indústria eletrônica, da comunicação, de energia e os setores espacial, militar e cultural – que lograram

Vitorias na crise.indd 166

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 167

se reestruturar e dar um salto de produtividade, superando a crise econômica mundial dos anos 1970 e 1980. Este salto era sustentado por inovações científico-tecnológicas e pela chegada da internacionalização do capital a um novo patamar, ampliando a globalização dos mercados e a presença da “forma mercadoria” em setores antes pouco permeáveis a ela (saúde, educação, cultura, informação). Assim, colocavam-se em discussão as barreiras tradicionalmente opostas pelos Estados à mundialização dos mercados, bem como alguns aspectos do “Estado social”. (...) Seja pelas características da composição demográfica do Welfare que gerava a “crise fiscal” e a “crise de legitimação”, cada vez mais entrelaçadas, seja porque a nova morfologia das forças produtivas e dos mercados permitia a penetração direta da forma valor até mesmo nos setores de reprodução, o “Estado social”, nas suas formas conhecidas entre os anos trinta e os anos setenta, estava irremediavelmente condenado (Vacca, 2009, p. 75).

O Estado de bem estar social sofreria desta forma profundas transformações, passando (na melhor das hipóteses) de uma concepção ampla e de proteção social incondicional a outra parcial e de proteção social condicionada e temporal, isto é, de um “Estado protetor” a um “Estado possibilitador” (Merkel, Petring, 2008). Buscou-se uma redução das dimensões estatais e dos investimentos sociais (combinada à preocupação com o equilíbrio fiscal), e foram introduzidos, na concepção do Estado de Bem-estar Social, diversos elementos de “condicionalidade” e “temporalidade”, instituindo a responsabilização por parte dos beneficiados (Hillebrand, 2007)1. Em alguns casos, procurou-se ir além dessas reformas, com versões mais próximas do modelo de “Estado mínimo” (como em experimentos latino-americanos, desde a ditadura no Chile até as reformas de Carlos Menem na Argentina). Seguindo a definição de Thorsen e Lie (2006), o neoliberalismo pode ser considerado um conjunto mais ou menos plural de propostas político-econômicas que advogam que “o único propósito legitimado do Estado é salvaguardar a liberdade individual (especialmente comercial), bem como fortes direitos de propriedade” (p. 14), levando evidentemente a uma defesa do Estado mínimo e à legitimação das desigualdades, se estas derivarem das escolhas de atores individuais atuando livremente no mercado. Transposta ao nível internacional, a política neoliberal tem como elementos principais a defesa

Vitorias na crise.indd 167

10/17/11 12:55 PM

168 / Vitórias na crise

do livre mercado e do livre comércio entre os diferentes países. Para os autores, o neoliberalismo não é uma retomada de um liberalismo rejuvenescido, na medida em que alguns de seus aspectos, como as regras formais da democracia e o “império da lei”, não perderam seu apelo. Trata-se de um “descendente radical do liberalismo ‘propriamente’, no qual demandas liberais tradicionais por ‘liberdade igualitária’ foram postas de lado pela demanda por liberdade total para os talentosos e seus empreendimentos” (p. 16). Ainda segundo Thorsen e Lie, não podemos exatamente afirmar que vivemos em uma “era neoliberal”. Com efeito, a extrema complexidade da realidade contemporânea não permite que ela seja definida a partir de um conjunto tão básico de propostas, apesar de elas terem sido (e ainda serem em grande medida) centrais na visão de mundo que animou e justificou as atividades de setores dominantes da sociedade e da política nas últimas décadas. Mesmo em países periféricos como os latino-americanos, que viram arremedos incompletos do modelo de Estado de bem estar social, com projetos de modernização estatalmente orientados e de substituição de importações, era visível a ascensão de outro modelo. Tal processo foi agravado na região pela “crise da dívida” e seus surtos (hiper)inflacionários, a partir do final da década de 1970 e do começo da década de 1980. A partir de então, o Estado deveria abrir mão de sua capacidade de intervenção, metamorfoseando-se em gestor das finanças públicas, enquanto a atuação “em liberdade” das forças do mercado propiciaria a retomada de um ciclo de crescimento econômico e, posteriormente, uma redistribuição “automática” de renda (Boron, 2002). Os primeiros experimentos neoliberais se deram de forma autoritária, tendo sido iniciados durante a ditadura no Chile (1973-1990) e, em parte, na Argentina (1976-1983) e no Uruguai (1973-1985), assim como no regime de “partido predominante” do México (desde o princípio dos anos 1980). Em seguida, começaram a se dar os experimentos neoliberais em democracia, como na Bolívia, já a partir de 1985, e na Venezuela, a partir de 1989. A crise vivenciada pela América Latina explica, em parte, a abertura para mudanças radicais de paradigmas por parte de políticos, dos setores produtivos, da opinião pública e da população em geral. Para Stokes (2001), a mudança drástica (policy switch) entre as propostas políticas apresentadas por certos líderes nas campanhas eleitorais e o que foi efetivamente realizado durante

Vitorias na crise.indd 168

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 169

o governo constituiu um elemento importante em alguns dos primeiros experimentos neoliberais em democracia. Muitos destes líderes se basearam em novas modalidades de liderança apartidárias, ou que levaram seus partidos tradicionais a viradas radicais. Eram geralmente líderes de bases sociais fluidas e desmobilizadas, detentores de forte retórica, por vezes plebiscitários e refratários a aspectos liberais da democracia. Por todas essas características, logo receberam o recorrente selo de “populistas”, agora metamorfoseados em “neopopulistas”2. A delicada relação entre as novas democracias latino-americanas e a implantação do neoliberalismo foi em parte comentada anteriormente (conferir o Capítulo 1). A formação e a consolidação das democracias contemporâneas latino-americanas se deram num contexto adverso, marcado, em primeiro lugar, pelo esgotamento do nacional-desenvolvimentismo e pela crise econômica dos anos 1980 (derivado das mudanças estruturais na economia mundial na década anterior, que levaram à “crise da dívida”, seguida da hiperinflação) e, em segundo lugar, pela implantação do neoliberalismo como resposta a estes processos. Para Weyland (2004), o neoliberalismo teve um duplo papel em relação à democracia na América Latina, causando efeitos positivos e negativos. De um lado, a integração desses países ao mercado mundial teria reduzido os espaços internos para a formação de governos autoritários, seja pela defesa da democracia exercida pelos novos organismos regionais, seja pela mudança de orientação da atuação norte-americana com o fim da “guerra fria”. De outro, a implantação da política neoliberal desmobilizou de tal forma movimentos sindicais, líderes e partidos radicais, ao mesmo tempo em que fortaleceu setores empresariais e investidores externos, que propostas radicais (potencialmente polarizadoras e desestabilizadoras em democracias frágeis e desiguais) não tiveram mais espaço, contribuindo assim para a estabilização das democracias da região. No entanto, para o autor o recrudescimento da influência externa retirou grande parte da autonomia popular para eleger propostas alternativas, e a desorganização dos setores subalternos restringiu os meios para o controle popular e a responsabilização dos governantes. Assim, o neoliberalismo teria contribuído para a “sobrevivência” das democracias da região, mas também para sua “baixa qualidade”, que explicaria em grande parte aquela “sobrevivência”. A “baixa qualidade” democrática estaria diretamente relacionada ao fenômeno “neopopulista”, que teria sido

Vitorias na crise.indd 169

10/17/11 12:55 PM

170 / Vitórias na crise

um veículo importante de implantação do neoliberalismo e ao mesmo tempo teria sido alimentado pela desinstitucionalização e desmobilização social que o neoliberalismo e o próprio “neopopulismo” promoveriam. Trato mais detidamente do tema do “(neo)populismo” no Capítulo 7. Por ora creio ser necessário destacar, mais do que os aspectos positivos, os impactos negativos do neoliberalismo sobre as democracias da América Latina. Nenhuma razão ligada à governabilidade pode servir de justificativa para a consolidação de democracias com reduzida participação e controle popular, desorganização da sociedade civil e restrição a políticas alternativas. É possível sustentar inclusive que o neoliberalismo não resolveu (na realidade ampliou) os problemas sociais centrais da região, entre eles seu persistente “abismo social”. Portes e Hoffman (2003) demonstram o aumento da desigualdade e a piora de outros indicadores sociais na década de 1990 – além do aumento da criminalidade e da migração de latino-americanos para outras regiões do globo. Pode-se supor que o aumento da percepção de que o neoliberalismo levou, de um lado, à estabilização e à integração na economia global, mas terminou, de outro, por não resolver os problemas estruturais das sociedades latino-americanas, contribuiu para explicitar os limites daquelas políticas: “justamente por ter sido laboratório das experiências neoliberais, a América Latina viveu a ressaca dessas experiências” (Sader, 2009, p. 32). A crise de hegemonia das políticas neoliberais abriu uma “janela de oportunidade” para as esquerdas. Ela foi aproveitada por aquelas esquerdas que lograram se integrar à democracia “realmente existente” (pelo menos em alguma medida), passando a valorizá-la, por mais “baixa qualidade” que pudesse ter; e por aquelas que souberam ou puderam se diferenciar em alguma medida da hegemonia neoliberal. Se no Capítulo 4 me dediquei a mostrar a relação dessas esquerdas com a democracia, a partir de agora trato de sua relação com o neoliberalismo.

5.3 – Esquerdas e contra-hegemonia As principais forças políticas que integram as esquerdas latinoamericanas contemporâneas desenvolveram e mantiveram, ao longo do tempo, discursos e concepções alternativas ao neoliberalismo. Isso constituiu um importante fator para a manutenção de seu perfil

Vitorias na crise.indd 170

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 171

crítico e para a sua ascensão, quando começou a se manifestar o esgotamento e a superação parcial do neoliberalismo. Se elas em grande medida foram deixando pelo caminho concepções anticapitalistas, ou transferindo-as para um futuro distante, quase utópico, elas mantiveram, no entanto, um elemento crítico ao “capitalismo realmente existente”, mantendo assim sua denúncia do status quo (moderada no caso chileno, por tratar-se de “crítica interna”). A opção pela atuação em democracia (conferir o Capítulo 4), por um lado, e a crítica ao neoliberalismo, por outro, parecem ter sido uma combinação interessante para a chegada das esquerdas latino-americanas ao poder. Desde sua fundação, o Partido dos Trabalhadores (PT), ainda que de forma incompleta e plural, formulou uma concepção própria de socialismo (conferir o Capítulo 3). Ao longo dos anos 1980, o partido apresentou-se claramente como anticapitalista. No entanto, desde sua primeira campanha presidencial de 1989, o PT começou a destacar o impacto do neoliberalismo e a sua crescente centralidade como o adversário a ser enfrentado. Naquela eleição, o partido chamou a atenção para o perigo representado pela candidatura de Fernando Collor de Mello, “variante populista do neoliberalismo”, que poderia unificar setores de direita e de centro tornando-se uma candidatura “realmente competitiva” (PT, 1998a, p. 371). Foi a primeira vez que a expressão “neoliberalismo” surgiu no vocabulário petista, tornando-se mais recorrente durante o governo de Collor (19901992) – o primeiro no país a implantar sistematicamente projetos de privatização, redução de gastos e abertura ao mercado mundial, que podem ser associados ao corpus neoliberal3. O antineoliberalismo chegou definitivamente ao centro da formulação petista no princípio do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) que, especialmente em seus primeiros anos, aplicou políticas associadas ao neoliberalismo então em voga, como privatizações, liberalização econômica e comercial e redução de gastos. A atuação petista, após a derrota numa eleição que o partido considerava ganha, se tornou bastante defensiva, apontando para a “resistência” ao neoliberalismo, “porque achamos que do jeito que eles [governo] estão fazendo vão praticamente esfacelar o nosso país” (Lula, 1995). Pode-se considerar que o movimento de transição de um anticapitalismo a um antineoliberalismo no PT, iniciado moderadamente no final dos anos 1980, teve sua virada definitiva nesse momento4. Isso se deu pela derrota de 1994, pela forma como se organizou o

Vitorias na crise.indd 171

10/17/11 12:55 PM

172 / Vitórias na crise

governo de Cardoso (com grande maioria e iniciativa para levar adiante um reformismo de características neoliberais) e pela reorganização de uma maioria moderada no PT em torno da Articulação, que a partir de então foi ampliando sua hegemonia interna5. Progressivamente, a construção de uma sociedade alternativa começou a ser transferida para um futuro distante, cedendo espaço a propostas de “inclusão” dos marginalizados, de defesa dos setores produtivos e da soberania nacional (a questão nacional começou a ganhar destaque nas propostas do partido) e de interrupção das privatizações e da flexibilização de direitos sociais e trabalhistas. A identificação positiva com uma sociedade alternativa cedeu espaço a uma identificação negativa calcada no antineoliberalismo, em noções como “resistência” e “defesa”. Levaria tempo para que o partido abandonasse uma postura defensiva, apesar de suas declarações de que tinha por meta encontrar uma alternativa tanto ao presente neoliberal quanto ao passado nacional-desenvolvimentista “caduco”, em suas palavras (PT, 1998a, p. 617). Com o antineoliberalismo como pedra angular (associado por vezes pelo partido a elementos autoritários e antiéticos) e a oposição “total e intransigente” ao governo de Cardoso como sua expressão, o PT pôde justificar a busca pela ampliação de suas bases sociais e alianças políticas. Nas palavras do então presidente do partido José Dirceu, “o grande perigo para o Brasil é o neoliberalismo”, portanto se deveriam ampliar “ao máximo” as alianças com o objetivo de derrotar aquela política (Dirceu, 1995a). A meta seria unificar todos os setores sociais enfrentados por qualquer razão com o projeto neoliberal e obter “o apoio de setores antineoliberais e de oposição a FHC [Fernando Henrique Cardoso], para além da esquerda” (Dirceu, 1998). Deveria ser construída uma ampla aliança social, em torno de um novo projeto nacional de desenvolvimento com distribuição de renda e com a participação, inclusive, de setores médios e de empresários industriais (“setores da produção”) prejudicados pelo neoliberalismo, o que terminava por definir os setores nacionais e internacionais do capital financeiro como os grandes (praticamente os únicos) adversários do partido, algo ensaiado em 1998 e explicitado em 2002. Esta seria a única forma de enfrentar a hegemonia de um projeto que, para o partido, levava adiante uma “globalização perversa”, que era “entreguista” e que promovia “injustiça, exclusão social e desemprego”. Como explicitado na campanha de 1998, o

Vitorias na crise.indd 172

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 173

objetivo agora era propor um programa de governo que não poderia se confundir com o programa “socialista” do PT, de longo prazo, irrealizável durante o período de um governo. O governo petista deveria realizar reformas que, “ainda que situadas no marco de uma sociedade capitalista, se chocam com o capitalismo realmente existente no Brasil” (PT, 1998a, p. 675, grifo no original). A princípio, a ampla aliança de forças no poder se posicionou com certo sucesso como detentora de um projeto “reformador” e “moderno”, adaptado às propostas então globalmente hegemônicas. Enquanto isso, as esquerdas, na defensiva, foram inúmeras vezes associadas ao “arcaísmo” e ao “atraso”. Na campanha de 1998, notouse que esse golpe atingiu o partido em cheio, e que ele tentou revertêlo, sem sucesso: [o governo] optou por uma política econômica irresponsável que deixou o país dependente dos especuladores, totalmente vulnerável diante da anarquia financeira internacional. (...) A crise mundial e seu impacto no Brasil são a evidência do fracasso da estratégia neoliberal (...). O projeto de FHC é obsoleto, arcaico e está na contramão da história. Fracassa em todo o mundo e sofre sucessivas derrotas. O moderno é a proposta da União do Povo [Muda Brasil, aliança partidária formada então pelo partido] (PT, 1998b).

Somente com a crise econômica vivenciada pelo país após aquelas eleições, e principalmente mais tarde, com outra crise que se manifestou nos final do segundo governo de Cardoso, o PT pôde retomar certa ofensiva. Mas o fez em chave marcadamente moderada e, ao mesmo tempo, assumindo algumas das “ideias-força” do neoliberalismo, o que tornou o partido tolerável a setores sociais ainda mais amplos, completando a equação que o levou ao poder. A Frente Ampla (FA), no programa de governo de 1989, avaliou que se implantava no Uruguai uma política neoliberal (por vezes a expressão “política conservadora” era usada como sinônimo), e que ela estaria presente desde o período ditatorial. Essa era a posição do então presidente do partido Líber Seregni (que muito cedo antecipou que a tarefa do partido a partir de então deveria ser a de construir uma maioria nacional contra o neoliberalismo): “estamos frente à continuidade da política neoliberal em sua forma mais crua, tal como a aplicou a ditadura” (Brecha, 1989, p. 4). Logo a oposição ao neoliberalismo tornou-se (de forma semelhante à do PT) o centro

Vitorias na crise.indd 173

10/17/11 12:55 PM

174 / Vitórias na crise

da atuação política frenteamplista e o núcleo básico para a construção de alianças sociais e políticas, o que foi manifestado oficialmente desde o II Congresso Ordinário (1991). Para Tabaré Vázquez, o neoliberalismo não teria grande sucesso no país, na medida em que não se adequava à “alma” do povo uruguaio, opondo-se à sua história e tradições: A concepção neoliberal, que é a competição livre por excelência num mercado desumanizado, define com clareza o egoísmo, o personalismo. Triunfa quem consegue as melhores posições, mas nem todos têm as mesmas possibilidades. Numa concepção humanista de sociedade, por outro lado, importa mais o homem que os números e os resultados econômicos. (...) Nosso povo é eminentemente solidário (...) somos mais sentimentais e nos guiamos mais pelo humano e pelo social (Vázquez, 1992).

Essa afirmação informa muito acerca da transformação que então se dava na FA. O partido se esforçou em nacionalizar-se, apresentar-se como parte (e progressivamente principal intérprete) da “identidade uruguaia”. Para os frenteamplistas, tratava-se de uma identidade solidária e humanista, marcada pela construção de uma versão própria de Estado social (o battlismo) ao longo do século XX e pelo “artiguismo” na gênese da nacionalidade. O partido se esforçou para apresentar-se como herdeiro dessas tradições, como eminentemente social, ético, solidário e humanista (não mais socialista), contrapondo estes valores ao neoliberalismo, visto como “antissocial”, “antiético”, “individualista” e “desumano”6. Deve-se reconhecer que (dando certa razão ao otimismo expressado por Vázquez) a FA e os setores progressistas organizados da sociedade tiveram razoável sucesso em retardar a implantação de políticas neoliberais no país, através da utilização de recursos plebiscitários presentes na constitucionalidade uruguaia (conferir o Capítulo 4). A FA vivenciou, entre o final dos anos 1980 e o princípio dos anos 1990, um processo de moderação ideológica. Progressivamente o partido se apresentou com um projeto e identidade “progressista”, que passava por uma forte oposição ao neoliberalismo. Garcé e Yaffé (2005) cunharam a expressão “era progressista” para definir a nova fase da FA, em referência à formação do Encontro Progressista-Frente Ampla (EP-FA), em 1994, e em oposição ao “frentismo” fundacional. Poder-se-ia apelar agora a quase todos os setores da população, com

Vitorias na crise.indd 174

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 175

exceção dos setores financeiros, do comércio de importação e de seus aliados políticos. Em suma, poder-se-ia apelar a um “pacto social”, em lugar do “conflito” que foi historicamente a marca de grande parte das esquerdas. Grandes empresários, comerciantes e estancieiros deixavam assim de ser adversários, e passavam a potenciais aliados. Tal proposição foi formulada no IV Congresso Ordinário (2001), segundo o qual “o conjunto do povo e distintos setores ligados à produção necessitam e apostam no desenvolvimento soberano do país”. Esta constituía a alternativa ao projeto neoliberal, que se encontrava naquele momento em vias de se esgotar. O neoliberalismo estaria “destruindo o aparato produtivo e questionando a viabilidade do país como tal”, e favoreceria setores ínfimos da população (caracterizados por vezes como uma “oligarquia”, categoria utilizada tradicionalmente pelo partido), associados ao capital financeiro e à importação (FA, 2001, p. 19). As seguintes palavras de Vázquez proferidas em 2003 exemplificam o ponto de chegada nesse processo: não é uma revolução o que vamos fazer. É um processo evolutivo, e como todo processo evolutivo leva tempo, requer grandes esforços, e requer o concurso de toda a sociedade, da inteligência da sociedade em seu conjunto. Aqui têm que estar envolvidos os trabalhadores, os empresários, os produtores, os exportadores, os cooperativistas, as forças políticas (Liscano, 2004, p. 78).

Em lugar do socialismo, a FA passou a propor um “capitalismo a sério” (supondo-se que o neoliberalismo não o fosse...). A formulação elaborada passava basicamente por uma globalização alternativa com inserção soberana do Uruguai (e com ênfase na integração regional); pelo apoio à produção (industrial e agrária), à exportação e ao emprego; pela ampliação de políticas sociais e democratizadoras; e pelo equilíbrio entre o papel do mercado e um Estado moderadamente interventor e regulador, transparente e ético. Ao lado da progressiva moderação ideológica e da ampliação de alianças, a FA se caracterizou pela oposição decidida aos governos dos partidos “tradicionais”, em especial ao governo de Julio María Sanguinetti (1995-2000), classificado de “antinacional”, “antipopular” e “antidemocrático”. A combinação de moderação e oposição foi muito semelhante à do PT no mesmo período (com seu auge igualmente em meados da década de 1990). Mais uma vez da mesma forma que o PT, considerando estar próxima de chegar ao poder, a FA

Vitorias na crise.indd 175

10/17/11 12:55 PM

176 / Vitórias na crise

moderou as críticas ao governo, num último esforço para mostrar-se como uma oposição “responsável” e “propositiva”7 (não mais “total”, agora defensora de uma mudança gradual, sem “sobressaltos”, “à uruguaia”). Vale ressaltar que isso se deu num contexto de crise econômica ainda mais profunda que a brasileira do mesmo período. Ao que parece, PT e FA, a um passo de constituírem seus próprios governos, precisavam, para confirmar tal expectativa, demonstrar a certos setores que suas vitórias não se converteriam em fatores de aprofundamento da crise. Veremos na próxima seção que, com isso, ambos chegaram ao poder assumindo algumas “ideias-força” próprias do neoliberalismo. Por ora, vale reforçar que a combinação analisada até aqui, acrescida de um esforço final de moderação (de uma oposição “total” a uma “propositiva”), parece ter sido funcional a ambos os partidos – como Garcé e Yaffé (2005) o demonstram para o caso uruguaio: por um lado, a necessária moderação e fluidez ideológica e organizativa necessárias à expansão social e eleitoral e, por outro, uma marcada oposição aos governos constituídos e ao capitalismo “realmente existente” (o neoliberalismo), permitindo preservar a unidade interna, antigas bases sociais e apoios eleitorais, e a continuidade com o passado, fundamental à reprodução identitária de esquerda e à preservação da cultura partidária. Como se afirmou no III Congresso Ordinário da FA, sua estratégia valorizava “tanto a contundência opositora quanto a necessidade de elaboração programática alternativa, que reivindica (...) a conquista das maiorias nacionais e que rechaça tanto a assimilação ao modelo dominante quanto o fundamentalismo estéril” (FA, 1996, p. 23). Apesar de manifestada explicitamente, esta combinação não é fruto somente de um cálculo racional de atores autônomos, mas depende igualmente de fatores estruturais, do comportamento de outros atores, de limites institucionais e de influxos internacionais. Tais limitações ficam mais evidentes quando se analisa o Partido Socialista do Chile (PSCh). Este partido também se posicionou como oposição ao neoliberalismo, e o fez necessariamente mais cedo, desde que esse projeto começou a ser implantado no país pela ditadura. Vale recordar que o Chile foi o primeiro país da região no qual se “experimentaram” tais políticas, e a oposição a elas se confundiu com a oposição à ditadura. No entanto, em 1990 essa situação mudou. Os governos da Concertação, segundo Moulian (2002), mantiveram, no

Vitorias na crise.indd 176

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 177

essencial, o mesmo modelo aplicado pela ditadura, mas agora em moldes democráticos que, ainda assim, se mostravam limitados pela transição pactuada que se processou nos moldes institucionais impostos pela ditadura. Por outro lado, para Garretón (2007), apesar dos “enclaves autoritários”, os governos da Concertação foram realizando modificações progressivas no modelo, em alguns aspectos superando-o, e em outros o moderando com reformas institucionais e projetos sociais. Não é minha intenção analisar a fundo tal processo. No entanto, se as transformações ocorridas nas últimas duas décadas não devem ser vistas com exagerado otimismo (como em Castells, 2005), também não podem ser desconsideradas (como em Sader, 2009). Considero, assim, que o modelo aplicado pela ditadura foi reformado nos dois primeiros governos concertacionistas, encabeçados pela Democracia Cristã (DC). O enfoque foi posto então claramente na regulação dos mercados e no investimento estatal para a superação da pobreza, através da convicção de que os mercados livres não promovem justiça social. Esta é evidentemente uma concepção diversa da levada a cabo durante o período ditatorial. Para Castells (2005), tratar-se-ia claramente de dois modelos distintos: um “autoritário liberal excludente” implantado pela ditadura, e um “democrático liberal inclusivo” desenvolvido pelos governos da Concertação. Considero que este processo foi aprofundado pelos dois governos concertacionistas seguintes, liderados pelos socialistas. Mais do que investimentos sociais e regulação, agora reformas institucionais mais profundas e uma intervenção estatal mais decidida seriam levadas a cabo. O que não foi superado em relação ao modelo anterior foi principalmente o desenvolvimento baseado na exportação, em sua grande maioria (mas não somente), de produtos primários, em meio a uma política de adesão incondicional ao mercado livre (Landerretche, Lanzarotti, Ominami, 2004). Mas isso não deveria ser suficiente para caracterizar o modelo chileno atual como estritamente neoliberal. O que haveria hoje seria um modelo “misto”, o que não se difere essencialmente do que vem sendo aplicado por governos progressistas no Brasil ou no Uruguai. É evidente que suas limitações explicam, em parte, a crescente insatisfação notada no interior do próprio PSCh, em especial desde que este passou a encabeçar os governos concertacionistas, que desembocaram no recente afastamento de setores minoritários descontentes com os rumos do partido e que avaliaram o projeto da Concertação

Vitorias na crise.indd 177

10/17/11 12:55 PM

178 / Vitórias na crise

como esgotado. A título de exemplo, já em 2001, o partido avaliou que, “junto com rechaçar taxativamente o modelo neoliberal que ainda persiste, se requer definir um modelo alternativo ao neoliberalismo e impulsionar um novo modelo de desenvolvimento” (PSCh, 2001). Apesar de ser parceiro secundário em uma coalizão que reformou o modelo calcado no neoliberalismo, sem superá-lo de todo, o PSCh seguiu se definindo como antineoliberal, ao mesmo tempo em que foi se afastando de propostas socialistas, ainda que se mantivesse “oficialmente” ligado ao socialismo enquanto meta final, quase utópica. Tal processo foi iniciado entre os setores socialistas “renovados” ainda nos anos 1980, e foi consolidado no conjunto dos socialistas com o processo de reunificação. O antineoliberalismo, que constituía um elemento a mais na crítica ao capitalismo por parte dos socialistas chilenos, passou a ser o que restou de “contestatório” ao partido, na medida em que a transição democrática foi se completando. Nesse sentido, o PSCh esteve próximo do PT e da FA, apesar desses dois partidos terem atravessado os anos 1990 e o princípio dos anos 2000 na oposição, com mais liberdade e necessidade de confrontar a política hegemônica. Desde sua reunificação em 1989, a política do PSCh girou em torno de dois eixos: a conclusão da transição à democracia mediante a superação dos “enclaves autoritários” (conferir o Capítulo 4); e a superação do modelo neoliberal legado pela ditadura. Nota-se o esforço dos dirigentes socialistas que reconstituíram o PSCh para, de um lado, demarcar sua posição antineoliberal e, de outro, para garantir que os esforços pela “renovação” interna e as limitações impostas por sua participação no governo e numa transição com as características da chilena não diluíssem o caráter alternativo do partido. Nota-se também que o referido caráter alternativo passava agora em grande medida pela oposição ao neoliberalismo. Jorge Arrate, em discurso no Congresso Extraordinário (1990) que concluiu a reunificação socialista e o escolheu como presidente da agremiação buscou evidentemente delimitar o espaço para a “renovação” partidária, assim como para a adaptação concertacionista ao modelo neoliberal, afirmando ser contrário a substituir o velho credo que congelou a teoria uma vez e para sempre e que desmoronou no mundo inteiro, por um novo credo. (...) A renovação que a direita propicia para o socialismo consiste em nossa desaparição pela via da renúncia à nossa identidade

Vitorias na crise.indd 178

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 179 essencial. (...) Não deve se confundir a renovação com o pragmatismo tosco da década que termina e que deixa um sedimento de egoísmo, inumano espírito de competição e darwinismo social que será superado (...) renovação, sim, a partir do socialismo e para o socialismo, não contra o socialismo. Renovar-se ou morrer, sim! Mas o Partido Socialista não requer morrer para renovar-se. (...) Nossos povos não devem estar submetidos à opção de viver sob tirania e pobreza ou viver com democracia política e pobreza (PSCh, 1990a).

Um artigo de Clodomiro Almeyda de 1992 (“O Partido Socialista como eu quero”) foi aprovado textualmente como documento partidário no Congresso Extraordinário de 1998, que recebeu o nome do dirigente (então recentemente falecido). Nele, Almeyda manifestou a convicção da “vigência do socialismo” e reafirmou as críticas ao capitalismo em sua atual versão neoliberal, que deveria ser contraposta a uma “alternativa democrática avançada”. No entanto, essa alternativa deveria opor-se igualmente ao “populismo demagógico e ao testemunhalismo contestatório”. Almeyda desejava que seu partido se esforçasse para “atualizar suas posições à luz das mudanças produzidas no mundo e no país nos últimos tempos, sem que essa necessária readequação (...) [significasse] o abandono de seus princípios fundacionais e a renúncia à sua história e aos símbolos que definem sua identidade” (Almeyda, 1992; PSCh, 1998). Ricardo Lagos, em carta enviada ao Congresso Geral Ordinário Programático (1992), afirmou que o governo concertacionista era de “vocação nacional, (...) que não cede ao populismo nem se satisfaz somente em conservar o existente”. Em seguida, definiu o projeto socialista como um projeto de país e não de minorias, nem centrado unilateralmente numa só dimensão da sociedade, seja o mercado ou o Estado. (…) se fizéssemos como insistem em fazer os neoliberais que nada aprenderam das experiências já superadas de [Ronald] Reagan e [Margaret] Thatcher em seus países, e nos propuséssemos como objetivo principal deixar a sociedade livre ao automatismo dos mercados, esperando que estes façam o milagre de converter a pobreza em riqueza, então terminaríamos por aniquilar o tecido social, concentrando nuns poucos os recursos e capacidades, deixando a grande maioria entregue à sua própria sorte (PSCh, 1992)8.

Mais tarde, em 1996, o então presidente socialista Camilo Escalona declarou ter

Vitorias na crise.indd 179

10/17/11 12:55 PM

180 / Vitórias na crise a convicção de que numa economia de mercado o modelo neoliberal não constitui a única opção. Estamos convencidos de que é possível uma alternativa de desenvolvimento nacional que outorgue um rol útil e eficiente ao mercado para o qual se requer um Estado com efetiva capacidade regulatória e redistributiva.

E decretou: “humanismo versus neoliberalismo é o dilema que cruza nossa sociedade” (Escalona, 1997). Por fim, em 2002 o PSCh reafirmou entre seus princípios o socialismo como resposta ao neoliberalismo e ao capitalismo globalizado. (...) Quando o poder econômico se concentra, constitui um perigo para a democracia, especialmente quando luta por estabelecer o Estado mínimo neoliberal, que faz possível manter privilégios, eternizar desigualdades intoleráveis e afetar a sustentabilidade ambiental do crescimento (...). O capitalismo selvagem cada vez mais globalizado (...) provoca e reproduz desigualdades (...), desigualdades às quais não nos resignamos e contra as quais lutamos (PSCh, 2002).

Essas declarações mostram que a luta dos socialistas chilenos era contra o “capitalismo realmente existente”, em sua versão neoliberal, “selvagem”. Pode-se afirmar que a dicotomia primária alentada pelo partido se traduzia agora em termos de “capitalismo selvagem” versus capitalismo “regulado”, “social” e “humanizado” ou, nas palavras de Escalona, em termos de “humanismo versus neoliberalismo”. Não deveriam restar dúvidas de que, entre as esquerdas contemporâneas latino-americanas, o socialismo chileno é a força política que mais abertamente se aproxima das versões mais clássicas da socialdemocracia europeia – apesar de não o admitir, e provavelmente de efetivamente não o ser (isso será discutido no Capítulo 7). O Movimento ao Socialismo (MAS) se estruturou em torno de duas oposições, uma de média duração e outra de muito longa duração. A primeira oposição foi exatamente ao neoliberalismo9, que seria a nova expressão do imperialismo e das “oligarquias” (ou “elites”, ou “poderosos”). Segundo o MAS, entre 1985 e 2005, “o neoliberalismo destruiu o Estado nacional, aumentou a corrupção, a partidocracia erodiu a democracia e nossos recursos naturais foram entregues às empresas transnacionais” (MAS, 2006, p. 3). Já a segunda oposição se constituiu em relação à dominação exercida pelas elites e pelos aliados externos sobre o Estado e as grandes maiorias nacionais que se estabeleceu ao longo de toda a história boliviana,

Vitorias na crise.indd 180

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 181

traduzida em “dependência externa”, “colonialismo” e “neocolonialismo interno”. Para o partido, as grandes maiorias não participaram da fundação nacional, tendo sido desde então excluídas e dominadas por um regime “neocolonial” ou “semicolonial”. A esta dicotomia se somou, além de um nacionalismo e anti-imperialismo radicais, a perspectiva indianista, que permitia compreender a realidade boliviana como binária, uma Bolívia “ocidental” e outra “andina e amazônica”. Apesar de setores importantes do MAS adotarem essa visão (conferir Escóbar, 2008), esse nunca foi o denominador comum do partido. Mas esteve presente em sua primeira campanha presidencial em 2002. Para o MAS, o neoliberalismo estava fortemente associado a influxos externos como o imperialismo e as empresas transnacionais. Segundo o programa de governo de 2002, o que existia era uma “economia mundial totalitária e global, um mundo ‘sem fronteiras’ agora chamado ‘neoliberal’” (p. 2). Os governos e partidos neoliberais bolivianos buscaram “gerar uma lógica de capitalismo individual (...), alimentar a fração financeira da burguesia” (p. 4). Essas políticas de MORTE, como economia de mercado, globalização, exportação e importação, venda e compra de tudo e para tudo, liberalismo e neoliberalismo, industrialismo e modernidade, não estão fazendo outra coisa que afundar-nos no atraso, na dependência, na opressão e na morte de nossa cultura andina e amazônica (MAS, 2002, p. 5, grifo no original).

Até 2002, o MAS inseriu sua oposição ao neoliberalismo num contexto maior, de crítica mais ampla ao capitalismo10 e de rechaço (com elementos indianistas) à modernidade como um todo (conferir o conteúdo dos documentos publicados em MAS, 2004). O partido sempre foi pluriclassista, associando a noção de “camponês” à de “indígena”, e defendendo a necessidade de unificação de todos os explorados da Bolívia contra a oligarquia e seus partidos (conferir o Capítulo 3). Mas, após as eleições daquele ano, passou a alimentar de forma mais decidida seu caráter amplo e a diluir seu indianismo. Junto a isso, ao mesmo tempo em que manteve seu antineoliberalismo, começou a se afastar de propostas anticapitalistas e antimodernas. A oposição de média duração ao neoliberalismo se manteve sem maiores alterações, mas a oposição de longa duração associou-se mais propriamente ao projeto de “refundação” do país. O partido

Vitorias na crise.indd 181

10/17/11 12:55 PM

182 / Vitórias na crise

seguiu propondo algo mais radical que encerrar o período neoliberal, o que se materializou nas propostas de Assembleia Constituinte e de reconstituição estatal, que tinham por objetivo suprimir o “neocolonialismo”, sem superar necessariamente o modo de produção capitalista ou as ideias associadas à modernidade. Agora o partido apelava mais fortemente a um nacionalismo de esquerda11, heterodoxo e em chave antineoliberal (uma dicotomia “povo/oligarquia” numa chave renovada, em lugar de uma potencial dicotomia “ocidente/indígena”); a propostas mais claramente associadas à esquerda (com o recrudescimento da entrada de setores de esquerda no partido); e a uma oposição mais legalista e moderada. Com isso, abriu-se a possibilidade de um apelo mais amplo, direcionado decididamente aos setores urbanos, às classes médias e aos “empresários nacionais” (conferir o Capítulo 3), um apelo às maiorias, virtualmente a todo o “povo”. Evo Morales afirmou em 2003 que a Bolívia atravessa uma difícil situação, como resultado das políticas impostas pelas instituições financeiras e implantadas por nossos governantes locais (...) que deixaram o país em ruínas. O modelo neoliberal fracassou na Bolívia, causando somente mais divisão entre ricos e pobres. (...) A Bolívia se converteu num exemplo mundial de dignidade que pode derrotar o neoliberalismo. (...) A maioria dos bolivianos não quer uma “guerra civil devastadora”, como diz o expresidente [Gonzalo Sánchez de Losada]. Pelo contrário, queremos mudanças profundas através de um processo pacífico (...). É tempo de que nós bolivianos tomemos o destino em nossas mãos, sem ter que prestar contas a nenhum interesse econômico estrangeiro (Morales, 2003).

O MAS continuou sendo um partido antissistêmico, o que constituiu um traço funcional num processo de crise do neoliberalismo, das instituições estatais e dos partidos até então majoritários. O partido parece ter sido guindado ao poder efetivamente como depositário de um desejo mais marcado por “mudanças”. No entanto, o MAS se posicionou como “alternativa” ao neoliberalismo, aos partidos tradicionais e às instituições estatais excludentes, em lugar de opor-se ao capitalismo, como em seus primeiros anos, ou à civilização moderna, à Bolívia ocidental e branca e a toda a trajetória pregressa da nação, como parte de seus membros defendeu em certo momento. Assim, o partido assumiu um tom mais conciliador (a não ser com a chamada “oligarquia”), buscando inserir-se na trajetória nacional em chave

Vitorias na crise.indd 182

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 183

progressista, associando-se a tradições das esquerdas, do movimento sindical e da Revolução de 1952. Pode-se notar, a partir da análise apresentada até aqui, que essas esquerdas se afastaram, de maneira geral, do anticapitalismo de suas origens (que constitui um elemento tradicional neste campo político), adotando um discurso “antineoliberal”. Ou seja, as propostas socialistas ou anticapitalistas, de modo geral, foram para um segundo plano discursivo (no melhor dos casos como uma meta longínqua), ao mesmo tempo em que se formulou uma negação ao neoliberalismo enquanto modalidade de capitalismo “realmente existente”. Considero que, através deste recurso, tais esquerdas tenham se moderado, sem perder, contudo, o seu apelo crítico e alternativo – essencial para preservar seus apoios, bases, votantes e as relações com setores organizados da sociedade –, ao mesmo tempo em que ampliavam e flexibilizavam seus apelos em diversos sentidos, buscando novos apoios ou, ao menos, um maior nível de tolerância e confiança por parte de setores mais amplos de suas sociedades. O PT e a FA parecem ter encontrado, ao fim deste processo, um equilíbrio interessante para seus projetos de poder, constituindo neste sentido casos exemplares. Tal equilíbrio parece não ter sido atingido pelo PSCh e pelo MAS (com diferenças importantes entre os dois). No entanto, devido a características sociais e institucionais diversas em seus países, ambos terminaram também por chegar ao poder. Vejamos então como se manifestaram estas diferenças.

5.4 – Alternativa total ou parcial Considerando o que poderia ser chamado de “espírito da época”, ou seja, o impacto simbólico e prático do corpus neoliberal em nossas sociedades e nos espaços de poder e de formulação ideológica, pode-se propor a seguinte questão: até que ponto as mesmas organizações que fizeram oposição ao neoliberalismo foram permeadas pelo que queriam combater? Veremos que, com distintas formas e gradações, este processo de fato ocorreu. A tolerância por parte das forças estudadas para com as reformas implantadas na região parece ter aumentado. De maneira geral, pode-se considerar que, se num primeiro momento houve um afastamento progressivo do anticapitalismo na direção de um antineoliberalismo, e que num segundo momento este antineoliberalismo foi, em certa medida, diluído numa

Vitorias na crise.indd 183

10/17/11 12:55 PM

184 / Vitórias na crise

visão crítica da política macroeconômica mais “ortodoxa”, ou de alguns de seus elementos. O PT e a FA moderaram suas críticas – traço que foi notado com mais discrição no MAS. Já o PSCh passou por esse processo um pouco mais cedo, e desde então não ultrapassou os limites programáticos definidos por sua participação na Concertação. Nesse sentido, o MAS teria se mantido marcadamente antineoliberal. “Vamos sepultar o neoliberalismo e enfrentar com a força do povo ao imperialismo norte-americano”, decretou Morales no ato de encerramento de sua campanha (Brecha, 2005b). O PSCh teria se mantido moderadamente antineoliberal, enquanto o PT e a FA teriam caminhado no sentido da moderação dos socialistas chilenos, mas sem atingirem o mesmo grau. Além disso, em sua chegada ao poder (e durante seu governo), o MAS se propôs como antissistêmico, mediante elementos e propostas que não podem ser entendidos apenas como uma crítica ao neoliberalismo. Além de se mostrar mais antineoliberal que os outros casos analisados, o partido demonstrou ser uma alternativa vinda de fora do sistema (de partidos e institucional), que caminhava então para o colapso. Os masistas associaram a oposição ao neoliberalismo a outra oposição mais estrutural e de longo prazo, uma oposição ao sistema político e às instituições estatais bolivianas. Após sua vitória, Morales declarou que “com estas eleições começa uma nova época de nossa historia”, declarou Morales após sua vitória, e Álvaro García Linera a definiu como “uma revolução” (Brecha, 2005a). O processo de moderação e de adaptação do MAS foi tardio, parcial e inconcluso em relação aos outros partidos analisados. Seu processo de moderação se deu principalmente no sentido de um afastamento em relação a propostas anticapitalistas e socialistas, tendo ocorrido de forma tardia em relação a seus pares de países vizinhos. Foi também parcial e inconcluso comparativamente aos outros partidos, por ter se mantido até a sua chegada ao poder como um partido tanto marcadamente antineoliberal quanto antissistêmico de maneira geral. Para além das diferenças estruturais e institucionais entre os países e das diferenças de trajetória entre os partidos, a relação substantiva com os movimentos sociais deve ter um peso explicativo aqui. Proponho que uma relação mais orgânica da esquerda política com a social permitiria uma posição mais alternativa em relação ao neoliberalismo. O MAS seria o melhor exemplo dessa combinação, enquanto partido de formação “externa” (no sentido dado por Panebianco, 1988) que, até certo ponto, atua como uma federação de movimentos

Vitorias na crise.indd 184

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 185

sociais, sindicais e indígenas. Além disso, a institucionalização poderia ser outro fator a intervir nesse processo, relacionando-se de alguma forma com as relações estabelecidas com setores “externos”. Neste ponto, o MAS seria novamente o melhor exemplo, na medida em que sua institucionalização comparativamente fraca se relaciona (na realidade ambos se alimentam mutuamente) com sua relação com movimentos e grupos “externos” de diversos tipos (conferir o Capítulo 2). Tanto a participação dos movimentos quanto a relativa desinstitucionalização do MAS ainda nas eleições de 2005 podem ser ilustradas pelas declarações de Santos Ramirez, então porta-voz do partido, reproduzidas pelo diário La Razón (seria desnecessário insistir nas diferenças em relação às campanhas realizadas pelos outros partidos de esquerda da região): O MAS organizou sua equipe de campanha como se organiza uma confederação sindical, e formou um corpo colegiado de vinte líderes dos movimentos sociais para tomar as principais decisões políticas do processo. (…) O MAS não trabalha com nenhuma empresa de pesquisas, nem de monitoramento nem de publicidade, e para medir os resultados de sua campanha utiliza os representantes dos movimentos sociais, que “se encarregam de fazer seminários nacionais, provinciais e municipais, para ver como se recebe desde as bases as propostas do partido” (La Razón, 2005).

O PT e a FA mantiveram, ao longo do tempo, seus laços e relações com movimentos sindicais e sociais (os movimentos sindicais e sociais progressistas de maneira geral continuaram relativamente próximos a petistas e frenteamplistas, e estes seguiram participando em número razoável daqueles). Serna (2004) demonstrou que “a militância em organizações sindicais ou agremiações de trabalhadores e estudantes continuou sendo o principal mecanismo de recrutamento dos quadros dirigentes da esquerda”. Mas reconheceu que “as transformações estruturais das classes trabalhadoras assalariadas clássicas (...) repercutiram sobre os quadros dirigentes de esquerda no sentido de ir substituindo progressivamente a centralidade da fábrica em direção da escola (...) como lugar de recrutamento social” (p. 118). Além da referida mudança no padrão de recrutamento das elites partidárias, as relações entre os partidos de esquerda e as organizações sociais agora não pareciam ser da mesma natureza que provavelmente o foram um dia: de instrumentalização e dependência de

Vitorias na crise.indd 185

10/17/11 12:55 PM

186 / Vitórias na crise

movimentos pelos partidos. Por exemplo, Mirza (2006) defende uma autonomia de “alta” a “média” entre os movimentos sindicais e sociais no Brasil e no Uruguai. O autor aponta, por exemplo, para uma grande autonomização por parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil, e para uma autonomia moderada por parte da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no Brasil e da Plenária Intersindical de Trabalhadores – Convenção Nacional de Trabalhadores (PIT-CNT) no Uruguai. Uma das principais teses de Mirza é que a perda de legitimidade de algumas das instituições democráticas (sobretudo dos partidos e do Parlamento) contribuiria para o fortalecimento dos movimentos sociais, favorecendo especialmente a emergência de novos movimentos. Assim, sistemas partidários consolidados ou em vias de consolidação guardariam relação com movimentos consolidados, enquanto sistemas partidários desinstitucionalizados ou avançando nessa direção teriam relação com movimentos sociais novos ou em seus primeiros estágios de desenvolvimento (inovadores, antissistêmicos, mas não antidemocráticos). As recentes relações de petistas e frenteamplistas com os movimentos sindicais e sociais evidentemente não são tão intensas quanto as do MAS. O PSCh é um exemplo extremo nesse sentido, não tendo podido refazer de forma mais sólida seus tradicionais laços com os movimentos sindicais e sociais organizados, ao mesmo tempo em que estes não conseguiram reencontrar seu antigo vigor12. Mas estas relações poderiam refletir também momentos distintos das mobilizações nos diferentes países, estando ligadas a um movimento de refluxo no Brasil, no Uruguai e especialmente no Chile, e a um movimento de ascensão na Bolívia. O estágio de mobilização dos movimentos sociais em cada país deve guardar relação com o maior ou menor “radicalismo” das esquerdas, fator que deve ser destacado, especialmente mais adiante, quando apontarmos com mais ênfase para as diferenças entre as esquerdas estudadas. O que foi dito até aqui se relaciona com o processo de institucionalização e de moderação do PT, da FA e do PSCh, que desenvolveram estruturas partidárias mais sólidas e profissionalizadas (o que é mais chamativo no caso do PT, que teve uma “origem externa” como o MAS), processo que foi vivenciado somente parcialmente pelos masistas. Um processo de moderação e institucionalização semelhante e concomitante ao destes partidos poderia ser apontado nos movimentos sociais do Brasil, do Uruguai e do Chile (basta pensar na CUT

Vitorias na crise.indd 186

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 187

brasileira). No que tange especialmente aos movimentos sindicais, com todas as transformações societárias do período na direção da precarização e da informalidade do trabalho e da pluralização de suas formas (Portes, Hoffman, 2003; Domingues, 2009), deu-se um enfraquecimento e moderação do sindicalismo no período (Samuels, 2004a, para o caso brasileiro; Sader, 2009; Cardoso, 2008). No caso do MST, no Brasil, que assumiu práticas mais radicais e propostas antineoliberais, pode-se notar, a partir de 1995, um progressivo esforço por parte do PT no sentido de desassociar-se simbolicamente daquele movimento. As críticas ao neoliberalismo elaboradas pelo PSCh foram mais moderadas, aceitando alguns elementos associados àquele corpus teórico. O partido criticou mais ou menos abertamente os governos concertacionistas, propondo sempre modificações desde o seu interior. Por vezes reconheceu as limitações daquele projeto, chamando a atenção para os seus pontos de contato com o modelo legado pela ditadura e para o caráter conservador e moderado da transição, expressando o temor de que as “renovações” vivenciadas pelo partido o levassem longe demais de seus ideais originais (conferir Ortiz, 2007, em especial as diversas declarações críticas proferidas pelos dirigentes socialistas e compiladas pelo autor). Talvez esta fosse uma nova manifestação do caráter ambíguo que teria percorrido toda a sua trajetória, que pode ser traduzido no “difícil nexo entre um discurso ideológico muitas vezes radical (...) e uma práxis política bastante flexível, (...) pragmatismo político e sentido de realidade” (Ortiz, 2007, pp. 470-471). Deve-se considerar que os limites institucionais, políticos e culturais para a atuação dos socialistas chilenos nas últimas décadas foram provavelmente os mais rígidos de toda sua trajetória. Assim, uma contestação mais radical ao neoliberalismo evidentemente não pôde ser desenvolvida pelo PSCh, na medida em que os governos da Concertação reformaram o modelo legado pela ditadura, sem superá-lo de todo. No entanto, o partido manteve suas críticas, e com isso se diferenciou “internamente” de seus parceiros de coalizão. Nesse sentido, o antineoliberalismo do PSCh teve seu papel. Mas este foi distinto do exercido em outras esquerdas do continente, para as quais ele se constituiu no principal diferencial em relação aos governos de centro e direita, o que caracterizava tais esquerdas como oposições, mantendo a sua identidade política, apesar de suas adaptações. Por isso, o PSCh é o partido que coloca mais problemas à proposição desenvolvida aqui, de que a insatisfação com o neoliberalismo

Vitorias na crise.indd 187

10/17/11 12:55 PM

188 / Vitórias na crise

foi central para a chegada das esquerdas contemporâneas ao poder na América Latina. Com efeito, o PSCh já se encontrava no poder de forma secundária desde 1990, integrando um governo que desenvolvia uma versão flexível de neoliberalismo, em comparação com a versão implantada pela ditadura. O partido não poderia ser fortemente antineoliberal, dados os limites impostos pela atuação na Concertação (especialmente num primeiro momento). A situação ambígua, por vezes “esquizofrênica”, de “apoio crítico” aos governos dos quais participava (em menor medida essa postura se manifestou até mesmo nos dois governos liderados pelos socialistas) pode explicar a dificuldade do partido, apesar de seus esforços, em ampliar sua votação no período, como fizeram os outros partidos estudados. O PSCh manteve uma votação relativamente estável desde a transição democrática, em torno de dez pontos percentuais. Talvez isso se explique por ele não ter conseguido se diferenciar o suficiente de seus parceiros de coalizão para recuperar votos mais radicais (a oposição de esquerda à Concertação reuniu no mesmo período pouco mais de cinco pontos percentuais), enquanto a competição pela conquista do centro se manteve acirrada. Por um lado, a moderação expressa pelo partido teria contribuído para torná-lo, ao longo de duas décadas, um aliado leal do centro político, que terminou por tolerar seu interesse em comandar a coalizão e mudar seu enfoque. Por outro lado, o partido teria propostas alternativas o suficiente para apresentar-se como uma renovação moderada, uma mudança na continuidade, uma alternativa de esquerda que não romperia com a Concertação, mas proporia sua versão “de esquerda”, mais justa, igualitária e humanista. Desta forma, o desejo difuso por mudanças e a insatisfação com o neoliberalismo teria influído na ascensão dos socialistas chilenos, assim como nos outros países, mas de forma mais moderada, expressa através das alternativas limitadas oferecidas tanto pelo sistema eleitoral binominal quanto pela transição conservadora. Essa proposta de mudança moderada foi expressa pelo partido através da candidatura de Ricardo Lagos a presidente (derrotada nas primárias da Concertação) em 1993, e de sua segunda candidatura, em 1999 (desta vez vitoriosa nas primárias e na eleição), calcadas na “mudança na continuidade” e no “crescimento com equidade”. O partido representava uma inflexão à esquerda, mantendo-se, contudo, nos limites da Concertação e preservando a essência de seus governos. Lagos declarou, em 1992, que sua proposta era “de mudança

Vitorias na crise.indd 188

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 189

e progresso para a sociedade chilena, mantendo a continuidade com a essência dos postulados do governo do presidente [Patrício] Aylwin”. Para defendê-la, fez uma apologia do socialismo, mas um socialismo “renovado”, com inclusão, redução da desigualdade social, e com um papel moderado para o Estado: Alguns dizem que com os muros que caíram no mundo a visão socialista tem que esperar. Não compartilho dessa ideia. Sempre fui um dos que creem que enquanto existir o muro entre os ricos e os pobres, enquanto existir o muro entre os que acedem à educação e os que ficam marginalizados dela, enquanto existir o muro entre os que têm acesso à saúde e o que tem que fazer fila para obter como resposta só um número, enquanto existirem os muros que fazem de nossos países sociedades onde uns são modernos e outros estão no atraso, enquanto existirem esses muros, a hora do socialismo está aqui (...). [Não] devemos aumentar unilateralmente a ação do Estado, supondo que este deve comandar a economia, a sociedade e a cultura mediante disposições administrativas e burocráticas, já que terminaríamos por afogar a criatividade da sociedade e de seus membros, que tão urgentemente necessitamos para desenvolver nossas capacidades” (PSCh, 1992).

O programa de governo de 1999 defendeu a “igualdade de oportunidades”, no lugar de uma “igualdade artificial”, propôs a centralidade do crescimento com equilíbrio fiscal e um equilíbrio entre a função do Estado e do mercado: A igualdade de que falamos é a que busca criar oportunidades; a que permite a justiça social, a desconcentração econômica, política e territorial. (...) Sem um crescimento econômico que gere mais e melhores empregos, não fecharemos a brecha da desigualdade. (...) Sabemos que a igualdade não pode ser criada artificialmente pelo Estado. Mas tampouco nasce automaticamente do mercado. O Estado e o mercado são somente instrumentos para apoiar a dignidade humana. Para isso o governo deve cumprir suas responsabilidades como garantidor dos direitos sociais básicos das pessoas (PSCh, 1999).

O programa representava uma inflexão de esquerda do projeto concertacionista, através de uma preocupação maior com a igualdade e com a expansão de direitos sociais (além da defesa da conclusão definitiva da transição por meio de reformas constitucionais que abolissem os chamados “enclaves autoritários”). Reconheciam-se as dificuldades e insuficiências dos governos concertacionistas liderados

Vitorias na crise.indd 189

10/17/11 12:55 PM

190 / Vitórias na crise

pelos democratas cristãos, bem como a crise econômica então vivida no país. Propunha-se uma mudança de rumos, na direção de um grau mais elevado de progressismo, igualdade, participação estatal e expansão de direitos sociais, ao mesmo tempo em que se procurava manter os “avanços” obtidos pela coalizão. Essas propostas de mudança moderada, com a preservação de elementos do modelo anterior, vistos agora como positivos, e a presença de um estatismo parcial e “modernizado”, podem ser encontradas no PT e na FA, nas eleições que os guindaram ao poder. Na iminência de constituírem seus governos próprios, estes partidos moderaram suas críticas ao neoliberalismo (antes radicais) e, neste sentido, aproximaram-se das posições do PSCh. Para expor este ponto, nada melhor que recorrer às avaliações feitas por Luís Inácio Lula da Silva acerca do II Congresso petista, em 1999. Para ele, seu partido havia saído do evento “com cara de maior responsabilidade”, “não somente como partido de oposição, mas como uma grande opção de poder para o Brasil”, assumindo “uma postura consequente com o seu papel de partido institucional, que tem o dever de oferecer à sociedade alternativas gerais de poder, distinguindo-se dos movimentos sociais e de suas entidades” (Lula, 1999). O processo de moderação petista e de gestação da “alternativa de poder responsável” teve seu ápice no programa de governo do partido em 2002 (PT, 2002a), que sustentou o incentivo à produção sem voltar ao “velho protecionismo” e sem “prescindir das empresas, da tecnologia e do capital estrangeiro” (p. 8); defendeu o incentivo à agroindústria, “um dos maiores bens do Brasil” (p. 9); propôs que a herança legada pelo governo anterior (abertura indiscriminada, privatizações, desorganização da indústria nacional, financeirização, dívidas e crise econômica) exigiria uma “lúcida e criteriosa transição” (p. 10); e explicitou o “compromisso com a responsabilidade fiscal e a estabilidade das contas públicas” (p. 11), o respeito às instituições, aos marcos legais, contratos e compromissos internacionais estabelecidos (aí incluído o pagamento da dívida externa). À diferença do desenvolvimentismo clássico, a competitividade, o investimento externo e a abertura estariam na base do novo projeto de desenvolvimento, daí a necessidade de manutenção da estabilidade, da transparência e do equilíbrio. O que já estava contido no programa eleitoral petista foi defendido de forma paradigmática pela “Carta ao povo brasileiro” (Lula, 2002b), na qual se enfatizou que a mudança proposta tinha um

Vitorias na crise.indd 190

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 191

sentido moderado e “cuidadoso” de crescimento econômico, inclusão e pacificação social. Além de moderada, ela seria progressiva e negociada, e incluiria o respeito aos contratos e ao equilíbrio fiscal. O ponto principal foi expresso na declaração de que “as mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais”. A “Carta” não constituiu exatamente uma novidade em relação ao programa já apresentado, mas uma explicitação de novos paradigmas, num momento crítico da campanha. O risco de aprofundamento da crise em caso de confirmação da vitória petista parecia exigir então um rápido e enfático aceno “tranquilizador” ao mercado de capitais. Além disso, buscou-se igualmente acalmar uma parcela do eleitorado que ainda via o PT com desconfiança (Machado, 2007). Qual seria então a diferenciação do governo petista em relação ao anterior? Ao lado da importância atribuída ao equilíbrio macroeconômico, ao superávit primário das contas públicas, à abertura e ao controle de juros, que não deveriam ser abandonados (não excluindo a participação do capital financeiro), enfatiza-se uma intervenção estatal em duas direções concomitantes: o fomento à produção industrial e agrícola em lugar do predomínio da financeirização; e o combate à injustiça social produzida pelos mercados. Ou seja, de uma crítica radical ao neoliberalismo, o partido passou a propor a preservação do que considerava seus pontos positivos ou incontornáveis, no bojo de um modelo de desenvolvimento com maior presença estatal, tanto no apoio à produção e ao emprego, quanto no enfrentamento à desigualdade e à (extrema) pobreza. A crítica radical ao governo anterior persistia, mas era agora relativizada na prática pela aceitação parcial de suas políticas. Já foi dito que, às vésperas de chegar ao poder, a FA moderou suas críticas, esforçando-se para mostrar-se “responsável” e “propositiva” – e que isso se deu num contexto de grande crise econômica. O programa apresentado pela FA em 2004 é muito semelhante ao do PT em suas linhas gerais, propondo uma mudança gradual, sem “sobressaltos”, “à uruguaia”. Naquele momento de crise, a FA chegou a avaliar que a existência do Uruguai enquanto nação independente estaria ameaçada, o que serviu de justificativa para a ampliação ainda mais decidida de apoios e alianças, na direção de um efetivo “acordo nacional”. No programa, a FA se comprometeu a realizar uma “transição responsável”, preservando características do modelo anterior, de forma a garantir o cumprimento dos acordos internacionais já concretizados

Vitorias na crise.indd 191

10/17/11 12:55 PM

192 / Vitórias na crise

e a realização de novos, ainda que em termos distintos; a abertura comercial, o fomento à competitividade e a defesa do investimento externo; a responsabilidade fiscal e a estabilidade macroeconômica; a geração de um ambiente propício para a atividade empresarial, a defesa do funcionamento eficiente dos mercados e o respeito aos direitos de propriedade; o saneamento, a profissionalização, a transparência e a eficiência do Estado; e a reforma do sistema impositivo sem o aumento da carga tributária (EP-FA-NM, 2004; Riet, 2004). No entanto, agora o enfoque seria posto no desenvolvimento, na produção e no emprego, em lugar da financeirização. Haveria maior intervenção e investimento estatais, configurando-se, no entanto, um estatismo moderado: “não se trata de mais ou menos Estado em relação ao mercado, mas de um Estado mais dinâmico, qualificado, inclusivo e eficiente” (EP-FA-NM, 2004, p. 10). Este Estado deveria, de um lado, fomentar a produção nacional – assim como um setor financeiro que se voltasse para o investimento produtivo –, a exportação, a educação e a inovação científica e, de outro, deveria reduzir as desigualdades e apoiar emergencialmente os setores mais pobres. Danilo Astori, líder do setor mais moderado do partido, foi anunciado antecipadamente por Vázquez como o ministro da Economia em caso de vitória. O anúncio veio ainda no princípio da campanha e durante uma visita dos dois aos EUA, no que constituiu um visível aceno aos mercados. Assim, no que toca ao tema do neoliberalismo, o caso do MAS parece ser, em linhas gerais, o que mais se destaca em relação aos demais. No momento da chegada ao poder, o PT, a FA e (mais claramente) o PSCh propunham uma oposição moderada e uma superação progressiva e incompleta do neoliberalismo. Enquanto isso, o MAS ainda propunha sua superação mais imediata e decidida, inserida numa transformação do Estado, das instituições e do sistema partidário bolivianos.

5.5 – Conclusão Como se viu, as esquerdas aqui analisadas tiveram no antineoliberalismo um grande diferencial para que desenvolvessem e mantivessem seu caráter alternativo e sua identidade própria num período de crise de seus paradigmas. Neste contexto, elas se afastaram, em grande medida, da proposição de uma alternativa radical anticapitalista

Vitorias na crise.indd 192

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 193

ou socialista, concentrando-se nas críticas ao “capitalismo realmente existente”, representado pelo neoliberalismo implantado na região. “O socialismo, que desde a vitória da Revolução Bolchevique fez parte da história do século XX, praticamente desapareceu, sendo substituído pela luta antineoliberal” (Sader, 2009, p. 120). O combate ao neoliberalismo assumiu, em larga medida, um caráter defensivo, de “resistência” e “denúncia”, tanto por parte dos partidos de esquerda, quanto dos movimentos sociais progressistas. Só mais recentemente algumas propostas alternativas começaram a ser gestadas, mesmo assim retomando, por vezes, alguns elementos associados originalmente ao neoliberalismo. Assim passamos às diferenças no interior desse processo. O “grau” de oposição ao neoliberalismo foi distinto nos diversos casos estudados. De um lado, o PT, a FA e, num ponto mais extremo, o PSCh, aceitaram em suas proposições alguns elementos do corpus teórico neoliberal. Este processo se deu mais cedo no PSCh, durante a transição à democracia, enquanto no PT e na FA ele ocorreu nos anos que antecederam a chegada ao poder. Estes partidos mantiveram uma postura “defensiva”, tendo dificuldades para gestar alternativas mais efetivas, desenvolvendo, por isso, projetos “híbridos”. De outro lado, o MAS se afastou tardiamente de referências a um projeto alternativo de sociedade, e manteve críticas relativamente mais fortes ao neoliberalismo. Além disso, seu programa manteve uma perspectiva mais radical e “ofensiva”, defendendo algo mais que a reforma ou a superação do neoliberalismo nos moldes implantados no continente, propondo a “refundação” das instituições estatais, do sistema político e partidário e a reconfiguração de sua sociedade. Aqui Bobbio pode ser retomado (conferir o Capítulo 1). Viu-se que, segundo este autor, o tema da igualdade é central para as esquerdas, a ponto de ser o elemento básico a distingui-las das direitas. Não haveria razão para supor que fosse diferente no caso dos setores hegemônicos das esquerdas latino-americanas contemporâneas, principalmente em sociedades marcadamente desiguais. Nota-se a constante centralidade da temática social e da ênfase igualitária nas propostas dos partidos estudados. Assim, eles podem ser considerados de esquerda. No entanto, ocorreu uma mudança de abordagem e enfoque. O socialismo passou a ser localizado, na melhor das hipóteses, num futuro longínquo, abrindo espaço a propostas mais imediatas de igualdade de “oportunidades”, de inclusão e de democratização. Por exemplo,

Vitorias na crise.indd 193

10/17/11 12:55 PM

194 / Vitórias na crise

enquanto nos anos 1980 as propostas sociais dessas esquerdas eram marcadas por um caráter “universalista”, pôde-se notar posteriormente uma mudança consistente na direção da “focalização”, voltando-se para a superação da pobreza, da miséria e da exclusão, com uma abordagem progressiva e reformadora (Sant’Anna, Silva, 2008). Evidentemente o antineoliberalismo não pode ser explicado apenas como uma escolha tomada de forma livre e autônoma por parte dessas esquerdas. Este processo foi marcado pela profunda crise de seus paradigmas, vivenciada globalmente pelas esquerdas como um todo. Era difícil assumir uma postura ofensiva e “maximalista” em meio à percepção generalizada de que as propostas revolucionárias teriam que ser ao menos adiadas para um futuro longínquo, na medida em que a organização capitalista em sua nova forma neoliberal se expandia e as alternativas até então “realmente existentes” entravam em colapso. No entanto, nesse momento de crise teórica e identitária, essas esquerdas, que poderiam ter realizado uma conversão total às propostas em voga (numerosos setores de esquerda e centroesquerda o fizeram), mantiveram um caráter alternativo e oposicionista, aferrando-se, para isso, ao antineoliberalismo e às críticas ao capitalismo “realmente existente”, ainda que a alternativa pudesse não ser uma sociedade organizada em bases radicalmente distintas das atuais. É razoável supor que este movimento até certo ponto dependeu de escolhas autônomas dos atores, mas se relacionou também com outros fatores mais estruturais, como suas origens, as relações históricas com setores sociais organizados e a configuração de seus sistemas eleitorais e partidários, aí incluída sua proximidade ou afastamento de setores políticos tradicionais. Como hipótese para futuros trabalhos, pode-se sugerir que o equilíbrio entre certa moderação discursiva (diluição do anticapitalismo) e uma renovação e heterodoxia programáticas, sem que se perdesse o caráter alternativo (através do antineoliberalismo), pode ter sido um diferencial global das esquerdas que foram atores relevantes nas últimas décadas. Estas esquerdas se mostrariam vitoriosas quando comparadas com outras forças políticas originadas do mesmo campo político que realizaram movimentos de “soma zero”, perdendo antigos apoios (e sua identidade de esquerda) enquanto conquistavam novos; e também quando cotejadas com setores que se mantiveram “paralisados”, enquanto perdiam bases sociais em meio a transformações globais que não lograram processar.

Vitorias na crise.indd 194

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 195

Notas

1

Trata-se evidentemente de uma simplificação, proposta por razões argumentativas. Por exemplo, Merkel e Petring (2008) demonstram que os governos social-democratas europeus dos anos 1990 reformaram o Estado de bem estar social com intensidades diferentes. Desde os que o renovaram pouco (como os socialistas franceses e os social-democratas alemães, tendo por isso resultados no governo mais fracos, segundo os autores), até os que o renovaram demais, afastando-se da essência de justiça social e redistribuição da social-democracia (como o trabalhismo inglês). Como de costume, a modernização sem o abandono dos objetivos originais, levada a cabo pelas social-democracias escandinavas, é considerada por esses autores a ideal.

2

Para Weyland (especialmente 2003; também 2004), por exemplo, a convergência inicial entre “neopopulismo” e neoliberalismo explicaria em grande parte a implantação e a viabilidade deste último no continente.

3

O partido pareceu avaliar com rapidez o impacto do neoliberalismo no continente e sua razão de ser, e o explicitou em seu I Congresso (1991): “o neoliberalismo se apresentou como projeto de ajuste do capitalismo no continente. Poderosa ofensiva ideológica dos centros de poder do capitalismo internacional, o neoliberalismo implica também um conjunto de medidas de desregulamentação do processo de expansão capitalista precedente, baseado no nacional-desenvolvimentismo e no modelo de substituição de importações” (PT, 1998a, p. 488).

4

Nesse contexto, o V Encontro do Fórum de São Paulo (Montevidéu, 1995) definiu como prioridade o combate ao neoliberalismo e aos governos que o implantavam no continente, propondo um esforço na formulação de alternativas. Partidos importantes no Fórum (como o PT) assumiram naquele momento essa postura, mas evidentemente as decisões em fóruns internacionais reforçaram e alimentaram tais decisões.

5

As mudanças internas começaram pela autocrítica da campanha presidencial de 1994. No X Encontro Nacional (1995), o PT considerou que não conseguiu se posicionar como alternativa ao neoliberalismo e ao nacionaldesenvolvimentismo, que avaliou mal a eficácia do Plano Real, e teria que superar a precariedade e amadorismo de sua organização e de suas finanças. Propôs então “uma reflexão mais crua sobre nossa imagem na sociedade, o efeito exterior de nossas lutas internas, as ambiguidades políticas e ideológicas que temos, nossas dificuldades em realizar um ajuste de contas mais severo com as duas heranças socialistas deste século: o comunismo e a social-democracia” (PT, 1998a, p. 629).

Vitorias na crise.indd 195

10/17/11 12:55 PM

196 / Vitórias na crise 6

Em discurso no II Congresso Extraordinário da FA (1994), que lançou sua primeira candidatura a presidente, Vázquez afirmou que no Uruguai “funciona uma máquina que produz miséria: é a concepção neoliberal que aplica o atual governo, que aplicou o anterior, e o anterior ao anterior. É uma concepção desumanizada, egoísta, partidária, do ‘salve-se quem puder’ e do ‘que triunfe o mais forte’. Essa concepção marginaliza, gera pobreza e atenta contra os pilares da democracia” (Vázquez, s. d., p. 155). Mais tarde, em discurso no IV Congresso Ordinário (2001), Vázquez faz curiosa distinção entre liberalismo “clássico” e neoliberalismo, demonstrando certa simpatia pelo primeiro: “ainda não sabemos por que se chama neoliberal, pois de novo tem pouco e de liberal menos. Na realidade, trata-se da velha ortodoxia conservadora segundo a qual deve haver muitos despossuídos para que haja alguns privilegiados” (FA, 2001, p. 46).

7

Vale observar que essa forma de oposição foi proposta por setores da FA como a Assembleia Uruguai (AU) de Danilo Astori e por Seregni já em 1995, quando o partido assumiu uma oposição “total” a Sanguinetti capitaneada por Vázquez. Essa diferença teria sido uma das razões para o afastamento de Seregni da liderança partidária. O apelo daqueles setores só se concretizou na prática em meados do governo de Jorge Battle (2000-2005).

8

No mesmo evento, o até então presidente do partido Ricardo Núñez afirmou que o neoliberalismo é uma versão selvagem de capitalismo, que aprofundava ainda mais as diferenças sociais produzidas por aquele sistema. Reconheceu que “o mercado pode ser um instrumento útil para o crescimento, mas não assegura que esse crescimento seja distribuído com equidade (…) em nosso país se requer uma forte e ativa presença da ação pública através do Estado. (…) nessas opções estão, no fundo, nossas profundas diferenças com o neoliberalismo implantado durante o regime passado”. Germán Correa, escolhido presidente do partido naquele evento, referiu-se à contradição de que naquele momento a direita chilena apelava aos pobres, os mesmos pobres que ela havia produzido “com o modelo neoliberal de economia que nos impuseram sob a ditadura”. E que a direita, para enfrentar a pobreza, levantava “demagogicamente a bandeira das privatizações como único caminho de solução, como se alguma privatização tivesse servido alguma vez para melhorar a condição dos pobres!”. Naquele congresso, o PSCh criticou “clara e decididamente o neoliberalismo, que pretendeu impor uma nova forma de economicismo tecnocrático, autoritário e simplista. (...) Isso só conduz ao fomento de um capitalismo selvagem, extremamente vulnerável às flutuações externas e repleto de instabilidades e custos sociais” (PSCh, 1992).

9

Antes da formação do MAS, os setores sociais que viriam a integrá-lo tinham a oposição ao neoliberalismo como referência. Por exemplo, os cocaleiros se organizaram desde cedo numa resistência em chave antioligárquica, anti-imperialista e antineoliberal. Ao longo dos anos 1990, eles exerceram o papel principal na resistência ao neoliberalismo.

Vitorias na crise.indd 196

10/17/11 12:55 PM

(Anti)neoliberalismo / 197 10 Morales

afirmou em 2002 que “o neoliberalismo é a reprodução do sistema capitalista e o capitalismo é o pior inimigo da humanidade, o sistema mais selvagem do mundo” (Morales, 2002b).

11 O

programa de governo aprovado pelo partido em 2003 (“Cinquenta propostas concretas para encarar a crise”) constitui um bom exemplo, sendo basicamente anti-imperialista, nacionalista e estatista, sem maiores conotações étnicas. Basicamente um programa “democrático e popular”, mais facilmente compreensível com base no que as esquerdas da região propõem (MAS, 2003).

12 Se

antigos movimentos sociais não puderam exercer o apelo que outrora tiveram, novos movimentos como os relacionados às minorias indígenas (majoritariamente mapuches) tiveram relativamente melhor sorte (e eles não possuem maiores vínculos com os socialistas). No mais, os movimentos que chamaram a atenção no Chile contemporâneo foram mais propriamente espontâneos (e igualmente sem vínculos diretos com os socialistas), como o movimento dos estudantes do ensino secundário em 2006, conhecido como “revolução dos pinguins” pela semelhança entre seus uniformes e a aparência do animal.

Vitorias na crise.indd 197

10/17/11 12:55 PM

198 / Vitórias na crise

Vitorias na crise.indd 198

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 199

capítulo

6

Expandindo a argumentação 6.1 – Apresentação

Vimos

que algumas importantes características são compartilhadas pelos partidos analisados mais sistematicamente nessa obra. O Partido Socialista do Chile (PSCh), o Partido dos Trabalhadores (PT), a Frente Ampla (FA) e o Movimento ao Socialismo (MAS) podem ser considerados organizações com estruturas “heterodoxas”; com ideologia plural e autônoma em relação a paradigmas e referências tradicionais; mais adaptadas e integradas à democracia, especialmente em relação a seus elementos “representativos”; e críticas ao corpus teórico neoliberal hegemônico na região. Espero ter demonstrado como essas características as favoreceram em suas trajetórias até o poder. Nesse capítulo, pretendo apontar que essas características são compartilhadas por outras organizações de esquerda latino-americanas que tiveram o mesmo sucesso, contribuindo para a compreensão desses fenômenos. Tratarei das seguintes organizações: o Movimento V República (MVR), posteriormente Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV); o movimento Pátria Altiva e Soberana (PAÍS) do Equador; a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) da Nicarágua; e a Frente Farabundo Martí pela Libertação Nacional (FMLN) de El Salvador. Como foi dito no Capítulo 1, esses casos receberam uma atenção menor, sendo analisados a partir de uma rigorosa revisão de literatura secundária, mas não de fontes primárias. Assim, a intenção por ora é demonstrar que os argumentos apresentados até aqui devem possuir um poder explicativo mais geral1. No próximo capítulo, em que as diferenças entre os casos serão abordadas mais sistematicamente, recorro tanto aos partidos que vêm sendo analisados desde o início do livro quanto aos que são discutidos a partir de agora. O capítulo se estrutura da seguinte forma. Analiso essas organizações a partir dos quatro temas desenvolvidos nos capítulos anteriores, seguindo a mesma ordem e estilo de argumentação: organização;

Vitorias na crise.indd 199

10/17/11 12:55 PM

200 / Vitórias na crise

ideologia e identidade; democracia; e (anti)neoliberalismo. Por fim, aponto de forma apenas sugestiva como as ideias desenvolvidas aqui poderiam, de um lado, se relacionar com os casos nos quais algumas propostas associadas às esquerdas e o desenvolvimento de “governos progressistas” encontraram caminhos “alternativos” de expressão e, de outro, se adequar a outras organizações de esquerda da região importantes nos últimos anos, que por diversas razões não puderam vencer eleições nacionais.

6.2 – Organização Outras experiências de esquerda do subcontinente além das analisadas anteriormente podem ser entendidas como organizações originalmente “heterodoxas” ou fortemente adaptadas, afastando-se em diversos sentidos do repertório organizativo tradicional associado às esquerdas. No caso de organizações novas, podem ser citados movimentos como o MVR e o PAÍS, fluidos, instáveis e personalistas, formados a princípio para servir de veículos a seus líderes. No caso de “adaptações”, são bons exemplos tanto a FSLN quanto a FMLN. De qualquer modo, a pluralidade organizativa das esquerdas latinoamericanas contemporâneas mostra-se de forma notável, quando pensamos nos casos de lideranças progressistas que chegaram ao poder sem ao menos contar com partidos minimamente institucionalizados a sustentá-los, apoiando-se, ao contrário, em movimentos difusos, fundados para sustentar suas candidaturas, ou no caso de antigas frentes guerrilheiras metamorfoseadas em partidos que lograram vencer nas urnas na Nicarágua e em El Salvador. A fluidez organizativa do MVR constituiu-se numa unanimidade entre os analistas. Para Maringoni (2009), ele “não passa de um arremedo partidário. Desorganizado e sem maiores objetivos que não seguir o presidente e servir de abrigo a candidatos oficiais, o MVR não consegue pautar o debate de ideias e ter um funcionamento orgânico regular” (p. 34). Para Harnecker (2003), foi “um partido eleitoral aluvional, que recruta muitos oportunistas que sabem que somente com o apoio de Chávez podem ser eleitos para diferentes cargos” (p. 5). Para López Maya (2008), o MVR era uma estrutura eleitoral vertical e centralizada, a serviço da candidatura de Chávez, sem espaços de debate, nem pretensões de formar ideologicamente seus membros. Sua heterogeneidade era maior que

Vitorias na crise.indd 200

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 201 a do MBR-200 [Movimento Bolivariano Revolucionário 200], facilitando uma gestão onde o componente pessoal da autoridade foi se tornando determinante (p. 56).

As origens do MVR podem ser buscadas no Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR-200), formado em 1982 como uma organização militar secreta, que progressivamente foi tecendo contatos com civis (principalmente com as esquerdas), mantendo-se essencialmente militar ao longo de sua trajetória. Após o fracasso do golpe tentado em 1992 (que, no entanto, consolidou a liderança de Hugo Chávez no MBR-200 e o popularizou), o movimento começou a se mover lentamente na direção de uma maior aproximação com os civis, percebendo de forma crescente que o caminho através das instituições seria mais proveitoso. Foi assim que Chávez e seus seguidores decidiram participar das eleições de 1998. Para isso, fundaram o MVR no ano anterior, julgando que a estrutura do MBR-200 não era adaptável à disputa eleitoral. O primeiro deveria ser mais flexível e contar com maior grau de participação civil do que o segundo, que possuía uma estrutura organizativa pouco ágil, era dominado por militares e possuía setores resistentes à participação eleitoral. Além disso, o MVR permitiria estabelecer alianças com outros partidos e movimentos sem que comprometessem a organização original2. No entanto, o sucesso eleitoral fulminante e sucessivo do MVR terminou por eclipsar o MBR-200 (López Maya, 2008)3. Montou-se então um partido inserido na legislação vigente relativa a esse tipo de organização, ainda que, na prática, uma parte das regras que regiam sua vida interna tenha se tornado “letra morta”: “Chávez não lidera um partido orgânico e disciplinado, mas uma federação de interesses locais e eleitorais. No fundo, o novo presidente, que se batera por tantos anos contra a participação em eleições, crescera na esteira da antipolítica e da aversão popular aos partidos” (Maringoni, 2009, p. 112). O antipartidarismo foi uma marca da cultura organizativa do MVR, traduzido em seus estatutos e na decisão de se nomear “movimento” para evitar paralelos com os “partidos tradicionais”, e de organizar-se de forma heterodoxa, com base em “círculos patrióticos” (Pereira Almao, 2003). Nesse sentido, o próprio Chávez desenvolveu, na campanha de 1998, um discurso antipartidos (e anti-institucional de maneira geral). O lançamento do PSUV no final de 2006 foi mais uma tentativa, feita “de cima para

Vitorias na crise.indd 201

10/17/11 12:55 PM

202 / Vitórias na crise

baixo”, de dotar o processo político de um núcleo partidário mais estruturado e de massas, após algumas iniciativas infrutíferas no sentido de institucionalizar e democratizar o MVR. Há muito pouca literatura especializada dedicada ao movimento PAÍS, provavelmente porque se trata de um fenômeno recente, e porque o PAÍS se mostra ainda incipiente e desinstitucionalizado. Pode-se propor que ele possui características muito próximas às apresentadas pelo MVR. O PAÍS surgiu como “a plataforma eleitoral impulsionada por [Rafael] Correa para participar nas eleições [de 2006], se apresentou como um novo movimento cidadão alheio a toda estrutura partidária” (Ramírez Gallegos, Minteguiaga, 2007, p. 89), agregando setores diversos das esquerdas (Conaghan, de la Torre, 2008). O ápice de sua estratégia antipartidária foi não apresentar candidatos ao Congresso Nacional. Após chegar ao poder, procurou por diversos meios manipular o sentimento antipartidário da maioria da população (Pachano, 2008) para emplacar o projeto de Assembleia Constituinte, convocado por plebiscito e não por iniciativa do Congresso. Essa instituição teve primeiramente seu poder diluído e, após a posse da Assembleia de caráter “originário”, foi dissolvida (Conaghan, de la Torre, 2008). Assim como Chávez, Correa assumiu autonomia em relação aos outros partidos, movimentos e organizações sociais, mas também em relação a seu próprio movimento. “A fragilidade das mediações coletivas (partidos, movimentos) e institucionais (Congresso, sistema de partidos) incentiva a busca de uma conexão direta entre o líder e a cidadania e prefigura respostas decisionistas na gestão pública” (Ramírez Gallegos, Minteguiaga, 2007, p. 94). O caso da FSLN é considerado sui generis, na medida em que passou por três estágios organizativos distintos. Tratava-se, desde sua fundação em 1961, até a tomada insurrecional do poder em 1979, de uma organização guerrilheira, dividida, na prática, ao longo de boa parte dos anos 1970, em três correntes relativamente autônomas (sua unificação se deu pouco antes da “ofensiva final”). Enquanto esteve no poder, entre 1979 e 1990, adquiriu características de um “clássico” partido-Estado leninista e de vanguarda, constituindo uma organização semiestatal, corporativa, responsável pela seleção de quadros para o regime e fortemente burocratizada. Atuou, assim, nos moldes de um partido leninista no poder, apesar de não ter havido na Nicarágua um regime político de partido único (e sim pluralista),

Vitorias na crise.indd 202

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 203

nem uma economia propriamente socialista (se articulou um sistema misto). Por fim, desde que deixou o poder, a FSLN se metamorfoseou em um partido marcadamente eleitoral, estatutariamente organizado em moldes democráticos4, pluralista e partícipe leal das instituições democráticas (Santiuste Cué, 2003; Martí i Puig, 2009). Nota-se assim que a organização passou por duas metamorfoses. Se na primeira teve um desenvolvimento adequado às tradições de esquerda do século XX, na segunda viu-se reduzida e profissionalizada. Constituiu-se numa organização plural, flexível e aberta, aproximando-se assim das formas de partido que vêm se manifestando na modernidade contemporânea, sendo amplamente debatidas pela literatura (conferir os capítulos 1 e 7). No entanto, Santiuste Cué (2003) destaca que, já em suas primeiras fases, a FSLN teve características particulares, com um componente ideológico mais plural, “uma estrutura organizativa mais pragmática, assim como uma ampla relação com uma rede de organizações sociais e políticas” (p. 483). Na prática, redes informais foram se constituindo em paralelo a sua organização formal, enquanto a liderança central de Daniel Ortega foi assumindo progressivas cotas de autonomia. A flexibilidade e a capacidade adaptativa do partido explicam sua sobrevivência após um afastamento do poder que poderia ter sido fatal. Adicionalmente, explicam também sua habilidade (e a autonomia de seu líder) de articular, a partir de uma aliança heterodoxa com parte de seus rivais do Partido Liberal Constitucionalista (PLC), reformas institucionais que levaram à redução das exigências para uma vitória eleitoral em primeiro turno5. A FMLN também passou por um processo de mutação orgânica e ideológica nos anos 1990. No entanto, enquanto a FSLN teve que deixar de ser um partido-Estado, a FMLN passou de uma organização guerrilheira (mais exatamente uma frente de organizações guerrilheiras relativamente autônomas, estágio que a FSLN deixou em 1979), a partido eleitoral, estruturado como parte do processo de paz que superou a guerra civil desenvolvida desde 1980. Este processo foi concluído nas eleições gerais de 1994, em que a FMLN disputou pela primeira vez. Evidentemente, a origem guerrilheira imprimiu uma forte marca ao novo partido, mas ele também foi marcado por uma de suas características originais mais heterodoxas (para uma guerrilha): o pluralismo. No entanto, ele rapidamente encontrou novas clivagens ideológicas, geracionais e de estilo que superaram as divisões

Vitorias na crise.indd 203

10/17/11 12:55 PM

204 / Vitórias na crise

organizativas anteriores, construindo uma nova institucionalidade democrática6. Deu-se uma “generalização da competição eleitoral e do pluralismo” através da “investidura dos candidatos pelos militantes [mais exatamente por qualquer filiado], limitação da renovação dos mandatos eletivos, introdução de cotas de representação para mulheres e jovens, favorecendo a emergência de lideranças partidárias que não participaram diretamente da guerrilha” (Garibay, 2004, p. 7). Adicionalmente, reforçando seu pluralismo, a FMLN se organizou a princípio como um partido de tendências. Posteriormente, as tendências foram eliminadas. No entanto, na prática o partido continua apresentando divisões mais ou menos formais. No Capítulo 2, foi abordado o tema da institucionalização. Notou-se então uma tendência à institucionalização entre os partidos analisados, mesmo no MAS, que se apresentou como o mais desestruturado. Sugiro que a FMLN integrou essa tendência à institucionalização, configurando um dos casos de maior sucesso. Para Martín Alvarez (2006), em decorrência da burocratização e da diferenciação de papéis no interior do partido próprias de seu processo de institucionalização, na FMLN começam a aparecer novas esferas de desigualdade entre os quadros – que agora desenvolvem uma participação de tipo profissional – e os militantes de base. Percebe-se também uma tendência à oligarquização de seus quadros dirigentes, que se reflete numa baixa capacidade de renovação da cúpula partidária (p. 115).

Essas são tendências claramente perceptíveis também no PT, na FA e no PSCh. Por outro lado, a institucionalização limitada notada no MAS é bastante evidente também nos casos venezuelano e equatoriano. Esses partidos apresentaram uma tendência discreta à institucionalização, bem como esforços nesse sentido – o lançamento do PSUV é um bom exemplo. No entanto, essa tendência parece limitada, principalmente pelo peso de suas lideranças personalistas7; pelo antipartidarismo que marcou os processos de crise nos quais elas chegaram ao poder; por elas não terem vivenciado um processo de estruturação na oposição; e pelos (nada simples) processos de refundação das instituições desenvolvidos por seus governos, potencialmente desestabilizadores num curto e médio prazo. Por fim, a FSLN constitui um caso atípico nesse sentido. No entanto, deve-se frisar que houve um processo de desinstitucionalização,

Vitorias na crise.indd 204

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 205

quando se toma como referência o formato de partido-Estado assumido anteriormente pela organização. Mas não se pode considerar a FSLN um partido desinstitucionalizado em forma absoluta: “ele se debilitou como organização burocrática ao ver-se reduzido apreciavelmente em seu tamanho. No entanto, o partido seguiu se mantendo como a organização partidária mais forte e melhor estruturada do país” (Santiuste Cué, 2003, p. 496). Pode ser sugerido que, em termos comparativos regionais, sua estruturação se aproximaria do nível atingido por partidos como o PT, a FA, a FMLN e o PSCh. Foi apontada também no Capítulo 2 a tendência a um fenômeno provavelmente relacionado de autonomização de lideranças e desorganização das bases. Quanto ao primeiro, o papel de Chávez é paradigmático. Para López Maya (2004), a própria variedade e heterogeneidade de seu movimento levam Chávez a ser “o único capaz de mediar ou calar as diferenças internas, o que reforça o caráter imprescindível do líder e imprime à ação de governo as diretrizes ideológicas dele” (p. 59)8. O MVR sempre foi um movimento de “escassa solidez interna” exatamente por estar inserido no “processo de desenvolvimento da personalização da política que o país vive desde 1993, como mecanismo de estabilização frente à deterioração do sistema de partidos” (Pereira Almao, 2003, p. 585). A liderança de Correa provavelmente exerceria o mesmo papel de estabilização em meio à crise do sistema de partidos equatoriano. A liderança de Ortega também poderia ser lembrada aqui, tendo progressivamente unificado e reorganizado seu partido em torno de si, chegando a se tornar o “vínculo vivente” entre a organização e seus eleitores. Nesse processo, a sede do partido foi transferida para sua residência, e sua esposa e seus filhos adquiriram crescente ascendência sobre a organização. Martí i Puig (2009) defende que o processo de adaptação vivenciado pela organização desde 1990 se explica mais pela capacidade do líder e de seu grupo em desinstitucionalizar a FSLN do que pela pressão do “entorno” ao qual o partido teve que se integrar. Este passou de partido-Estado a uma organização plenamente adaptada a um entorno democrático representativo, formado por partidos profissionalizados, flexíveis, relativamente informais e com forte peso do líder9. O caso de Maurício Funes em El Salvador é o mais surpreendente, por ele ter se tornado popular a partir de sua atuação na sociedade civil (como articulista televisivo progressista), sendo então convidado pela FMLN para

Vitorias na crise.indd 205

10/17/11 12:55 PM

206 / Vitórias na crise

concorrer à Presidência. Um partido que não se notabilizava por apresentar fortes lideranças (preservando uma direção colegiada) recorreu a uma liderança independente, fora do controle da organização. Por outro lado, pode-se sugerir que, nessas organizações, os militantes dos partidos mais desinstitucionalizados teriam poucos meios para influir em suas decisões. Isso é visível no caso do PAÍS e do MVR, desinstitucionalizados e dependentes de seus líderes. Quanto ao FSLN e ao FMLN, os dados de segunda mão consultados não permitem ir além da sugestão. Retomo aqui o debate em torno das “funções” e tipologias partidárias iniciado no Capítulo 2. Para Kitschelt (1989), a progressiva hegemonia de setores internos chamados por ele de “pragmáticos” (aliados aos “lobistas”), em detrimento dos “ideólogos”, levaria a uma “moderação” e à “integração” da organização ao “ambiente”. Pode-se notar na FSLN e na FMLN o trânsito de um caráter mais ideológico e radical a uma atuação mais pragmática e integrada ao sistema partidário. Quanto ao MVR e ao PAÍS, eles chegaram ao poder rapidamente, sem a possibilidade (ou necessidade) de desenvolver qualquer processo de moderação, num “ambiente” progressivamente crítico e pouco afeito à integração de novos atores em sistemas partidários cristalizados, levando-os a uma atuação potencialmente antissistêmica. Em seus países, o neoliberalismo deu sinais mais dramáticos de esgotamento, aliado à crise de suas instituições e sistemas partidários, monopolizados por partidos tradicionais. Nesse contexto, tais partidos puderam chegar ao poder numa chave mais contestatória. Quanto à tipologia organizativa, a partir das proposições de Gunther e Diamond (2003) é possível sugerir que a FSLN e a FMLN, originalmente organizações “leninistas” com alguns elementos “movimentistas”, se aproximariam atualmente do modelo que os autores denominaram “eleitoralista programático” (organização basicamente eleitoral que preserva um peso para os elementos ideológicos). No primeiro, haveria adicionalmente uma possível proximidade com elementos “catch-all” (Martí i Puig, 2009). Já o MVR/PSUV e o PAÍS se aproximariam do modelo “personalista” (organização concebida para sustentar pretensões eleitorais e governamentais de seu líder), com certa influência “movimentista”10. Por fim, afirmei no Capítulo 2 que o objetivo perseguido era mostrar que essas organizações apresentam características heterodoxas,

Vitorias na crise.indd 206

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 207

mais adaptadas à modernidade contemporânea e à evolução global dos partidos (favorecendo seu acesso ao poder). Mas não afirmava com isso que elas fossem internamente democráticas. O mesmo pode ser dito em relação às organizações analisadas agora. Nesse sentido, expectativas mais promissoras poderiam ser nutridas em relação ao FMLN, e mais pessimistas em relação aos outros três partidos.

6.3 – Ideologia e identidade Proponho no Capítulo 3 que as esquerdas latino-americanas afastaram-se tanto de ideologias “oficiais” quanto de modelos a serem seguidos – traços característicos das esquerdas no século XX. Elas desenvolveram, em seu lugar, ideologias plurais e mutáveis e, no limite, propuseram a construção ideológica “ao caminhar”, gestando alternativas e trajetórias próprias, adequadas à realidade na qual estão inseridas. Essa conclusão poderia ser aplicada para compreender tanto o amálgama discursivo esgrimido por Chávez e Correa ao longo de suas trajetórias, quanto aquele desenvolvido pela FSLN e pela FMLN. Movimentos crescentes na direção de um “policlassismo” e de um “pluriclassismo” foram outros fenômenos destacados. Apesar das diferenças nacionais e dos diversos recursos empregados, trata-se de um fenômeno encontrado em outros movimentos de esquerda do subcontinente. Basta pensar no amplo e heterogêneo apelo bolivariano ao povo, com aspectos messiânicos, religiosos e nacionalistas, ou no amálgama de recursos manipulado pelo PAÍS – um misto de cristianismo, nacionalismo, ética, socialismo e antineoliberalismo –, ou ainda no nacionalismo da FSLN e da FMLN – com elementos místicos recentemente empregados pela primeira. O MVR careceu de definições ideológicas precisas, baseando-se nas tradições nacionais venezuelanas (Harnecker, 2003) e desenvolvendo uma síntese complexa, inconclusa e sempre em mutação. López Maya (2008) apresenta o bolivarianismo como uma “nova esquerda”, liberada pela crise do “socialismo real” para recorrer a referências próprias. A organização herdou do MBR-200 uma leitura progressista e contemporânea dos legados de Simón Bolívar, de seu professor Simón Rodriguez, e do líder federalista e anticaudilhista Ezequiel Zamora, que lutou na guerra federal de meados do século XIX. Os três constituem a “árvore de três raízes” na qual o bolivarianismo afirma se sustentar11. Sua ideologia é

Vitorias na crise.indd 207

10/17/11 12:55 PM

208 / Vitórias na crise um amálgama de sonhos e ideais populares, nacionalistas e libertários, com base numa interpretação particular de certos processos da história venezuelana como, entre outros, a gesta libertadora contra o colonialismo espanhol e a guerra federal, e a uma noção do popular vinculada aos despossuídos, excluídos e desamparados (Pereira Almao, 2003, p. 585).

Adicionalmente, Chávez declarou em diversas ocasiões ter se inspirado em experiências militaristas que ele considera “progressistas”, como os governos de Velasco Alvarado no Peru (1968-1975) e de Omar Torrijos no Panamá (que governou o país “de fato” entre 1968 e 1981). São recorrentes também suas referências ao “cristianismo popular”, e seu estilo discursivo messiânico e milenarista já foi apontado por mais de um analista (por exemplo, conferir Gott, 2004, pp. 191-192). Por fim, Chávez sempre foi influenciado (assim como muitos de seus companheiros) por referências da tradição das esquerdas mais heterodoxas e regionais, principalmente pela revolução cubana. No entanto, em seus primeiros anos de atividade, ele travou contatos com setores de diversos matizes ideológicos, relutando em se posicionar claramente à esquerda. Quando o MVR foi fundado, essa opção já estava mais clara, e o novo partido logo buscou alianças prioritárias com setores desse espectro político. A partir de 2005 e principalmente de 2006, deu-se uma virada discursiva no bolivarianismo, com o desenvolvimento da noção de “socialismo do século XXI”, “um conceito vago associado a valores como a solidariedade, a fraternidade, a justiça, a liberdade e a igualdade” (López Maya, 2008, p. 69). Segundo Chávez, ele deveria recorrer ao cristianismo “autêntico”, ao marxismo e ao bolivarianismo, articulando ideais como a moral, a ética, o nacionalismo, a democracia. Além disso, deveria ser eminentemente social, não econômico, o que o permitiria promover a propriedade privada “honesta”, baseada em relações de trabalho “harmoniosas” (citado em Maringoni, 2009, pp. 174-175). Com toda a indefinição, o bolivarianismo nunca deixou de recorrer a uma ampla base social, baseada acima de tudo numa noção particular e indefinida de povo e, secundariamente, na defesa de minorias étnicas. Procurou também aproximar-se de setores da “burguesia nacional”, especialmente em seus primeiros anos, e a iniciativa e a propriedade privadas sempre tiveram espaço no projeto bolivariano – e mesmo no “socialismo do século XXI” (SaintUpéry, 2008; Maringoni, 2009).

Vitorias na crise.indd 208

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 209

As referências ideológicas do PAÍS são ainda mais amplas e menos resolvidas. O recurso à noção de “pátria”, presente no nome do movimento, é recorrente, com lemas como “para voltar a ter pátria” e, em seguida, “a pátria já é de todos”. São retomados elementos nacionais, como canções escolares patrióticas e referências (mais discretas que na Venezuela) a Bolívar. Mais que a noção de “povo”, Correa e o PAÍS recorrem à de “cidadão”, nomeando o processo em curso como uma “revolução cidadã” (ou “democrática”), e buscando articular diversas demandas sociais sob aquela noção. O “humanismo cristão” é outro dos elementos discursivos esgrimidos (Correa foi missionário católico na juventude), além de características pessoais associadas a Correa e transferidas ao processo, como ética, “mãos limpas” e autonomia em relação à “partidocracia”, às “oligarquias” e ao “imperialismo”. Por fim, há algumas referências ao “socialismo do século XXI” (ou a uma versão própria de “socialismo cristão”), ainda que de forma mais discreta do que no caso chavista. Ortiz (2008) desenvolve uma interessante análise do programa de governo do PAÍS de 2006. O autor destaca que o programa pretende apelar a todos os equatorianos, através das noções de “cidadania”, “solidariedade” e “sonhos comuns”. Defende um “desenvolvimento equitativo” que respeite a pluralidade social, o pluriculturalismo e as especificidades nacionais. Para o autor, o discurso articulador de Correa é ainda mais inclusivo e vinculante que o de Chávez, recorrendo apenas a uma frágil referência classista, através da noção de “despossuídos”. Coerentemente com seu projeto, a busca de uma ampla representação social tem sido uma constante por parte do PAÍS. Ele é um amálgama de setores oriundos de diversas correntes de esquerda, de cidadãos independentes e de organizações e ONGs que lutam por ética na política e contra a “partidocracia” – muitos dos quais tomaram parte no movimento cidadão que forçou a renúncia de Lucio Gutiérrez à Presidência em 2005 (Conaghan, de la Torre, 2008). Há referências substantivas aos indígenas, num momento de descenso das organizações políticas indígenas, que eram poderosas até o início da década de 2000. Buscase atrair também os “setores produtivos” da burguesia, através da defesa do funcionamento dos mercados e da geração de riquezas e da competitividade do país, acompanhados por um Estado “eficiente”. A FSLN se organizou, desde seus primórdios e principalmente em seu governo, como uma organização “popular” e não estritamente classista (operária), com elementos nacionalistas e anti-imperialistas:

Vitorias na crise.indd 209

10/17/11 12:55 PM

210 / Vitórias na crise uma identidade que estava enraizada numa combinação do marxismo com influências significativas da luta empreendida por Augusto César Sandino na década de 1930, da teologia da libertação, e do triunfo do Movimento 26 de Julho em Cuba (...) uma ideologia em certa medida idiossincrática, que tomava de Sandino seu caráter nacionalista e anti-imperialista, e do marxismo-leninismo sua concepção de vanguarda revolucionária, a ideia de luta de classes e o objetivo de alcançar o socialismo (Santiuste Cué, 2003, p. 487).

O partido vivenciou logo após sua saída do poder uma disputa (grosso modo) entre os autodenominados “renovadores” e os “principistas”. Os primeiros defendiam maior diálogo com outras forças, o desenvolvimento de uma formação política pluriclassista e propositora de um amplo consenso social. Os segundos primavam por maior combatividade, pela defesa dos pobres e pela manutenção da vocação revolucionária e vanguardista (Martí i Puig, 2009, p. 114). A disputa se “resolveu” com o afastamento de boa parte dos primeiros entre 1994 e 1995. No entanto, isso não impediu que, a partir do governo liberal de Arnoldo Alemán (1996-2001), o sandinismo estivesse mais aberto à negociação e a acordos políticos, e que o pluriclassismo, a autonomia identitária e o nacionalismo, nutridos tradicionalmente pelos sandinistas, se aprofundassem em anos mais recentes. Na campanha de 2006, a heterodoxia identitária chegou ao ápice, com a utilização do lema “paz e amor”, a defesa da “reconciliação”, do “perdão” e do “otimismo”; o apelo aos setores produtivos e a aliança com elementos saídos das hostes conservadoras; e o recurso a elementos místicos esotéricos por parte de Ortega e de sua esposa Rosario Murillo (figura central na campanha e posteriormente no governo). A “campanha sandinista evitou falar de conflito e de classes sociais e preferiu elaborar uma dinâmica festiva e despolitizada” (Martí i Puig, 2008, p. 289), confirmando a diluição ideológica e ampliação social da organização12. Quanto à FMLN, sua ideologia (assim como a da FSLN) passava desde o princípio por um “socialismo definido mais propriamente em termos antioligárquicos, anticapitalistas e anti-imperialistas” (Artiga González, 2003, p. 158). A estratégia da frente (que sempre albergou setores sociais médios em seu interior, tendência que se aprofundou quando ela se estruturou como partido) passava pela revolução e também pela democracia, assim como por amplas alianças com religiosos progressistas, esquerdas democráticas, setores da intelectualidade e da

Vitorias na crise.indd 210

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 211

iniciativa privada (Sue-Montgomery, Wade, 2006). Martín Alvarez (2006) nota que, já ao longo dos anos 1980, seu dogmatismo e radicalidade foram mitigados, devido a fatores como a percepção de que não haveria solução militar para a guerra civil; a moderação e a renovação dos setores dominantes locais e das forças políticas de direita (que passaram por um processo de “modernização” e adesão ao neoliberalismo); e adicionalmente pelo peso de transformações internacionais como a crise do “socialismo real”. Com isso, a frente aceitou o pluralismo, a propriedade privada e a necessidade das negociações. Sua estruturação como coalizão obrigou, desde sempre, seus setores internos a buscarem soluções negociadas, característica que se manteve quando a organização se transformou em partido, apresentando distintas frações organizadas em seu interior. Apesar do afastamento/expulsão dos setores mais moderados do partido (autodenominados “renovadores”) após as eleições de 1994, houve no longo prazo modificações da ideologia da FMLN. O socialismo seguiu sendo seu horizonte final, integrando a identidade coletiva da organização. Mas a estratégia para atingi-lo passaria agora pelas reformas. O partido se declarou comprometido no esforço pela reconciliação e unidade nacional, quando historicamente privilegiou “a luta de classes como motor da história”. (...) longe de continuar se identificando como um partido de classe, como “a vanguarda da classe trabalhadora”, a FMLN passa a se considerar como um partido “de ampla base popular” e ideologicamente pluralista (Artiga González, 2003, pp. 160-161, citações reproduzidas pelo autor a partir de diversos documentos partidários).

Tudo isso se refletiu ao fim e ao cabo na campanha eleitoral vitoriosa de 2009, que apelou a todos os setores sociais e evitou manipular elementos radicais associados às suas tradições.

6.4 – Democracia No Capítulo 4, a progressiva crença em valores da democracia representativa foi apontada entre os partidos analisados. Esse fenômeno foi essencial para que a opção pela participação institucional fosse tomada por parte dessas organizações, aprofundando-se ao longo de suas experiências eleitorais e em governos locais. O mesmo poderia ser sugerido também para os partidos e movimentos abordados

Vitorias na crise.indd 211

10/17/11 12:55 PM

212 / Vitórias na crise

agora. No entanto, o processo teve evidentemente condições de se desenvolver mais nos dois partidos centro-americanos que progressivamente se integraram aos seus sistemas partidários, tendo a oportunidade de cultivar uma cultura de participação nas instituições democráticas e de administração pública num Estado de Direito. Basta recordar que ambos administraram as capitais de seus países e outras cidades importantes (desenvolvendo em geral gestões transparentes e participativas), além de manter bancadas parlamentares consideráveis (mais recentemente a maior do país no caso da FMLN). Mas a aceitação (numa chave mais crítica) da democracia representativa também pode ser encontrada no MVR e no PAÍS. Nesse sentido, esses movimentos se aproximariam mais da relação do MAS com a democracia, descrita no Capítulo 4. A relação do bolivarianismo com a democracia representativa foi a mais problemática entre os casos analisados, mas ainda aqui pode ser notada uma evolução. Chávez, que desde os anos 1970 fomentava movimentos militares que visavam o golpe de Estado – finalmente tentado sem sucesso em 199213 –, após ser anistiado e deixar a prisão em 1994 defendeu o boicote às eleições. Ele deixou essa posição para aceitar a participação institucional menos de dois anos antes de sua eleição para presidente, e o fez de maneira até certo ponto “instrumental”, na medida em que considerava “podre” e “enganosa” a democracia vigente em seu país. Chávez chegou a afirmar que “o que eles chamam de sistema democrático, nesses últimos anos, não é diferente, na substância, do que chamam, por exemplo, de ditadura de Marcos Pérez Jiménez [1952-1958] (...). Por trás dessa figura, desse caudilho, com boné ou sem boné, a cavalo, de Cadilac ou Mercedes-Benz, (...) está o mesmo esquema que domina a economia, a política, a mesma negação dos direitos humanos, do direito dos povos a protagonizar seu destino” (citado em Gott, 2004, pp. 66-67). No entanto, ao atacar as instituições, ele propôs substituí-las por novas instituições democráticas. O MVR conseguiu uma meteórica ascensão enquanto os partidos tradicionais desmoronavam. O processo transformador ocorrido desde então se deu num ambiente de respeito ao pluralismo e às liberdades individuais, legitimado por consultas populares, consideradas sempre limpas pelos observadores internacionais. A princípio, “ao liderar o processo Constituinte e estabelecer novos parâmetros institucionais, Chávez tornou-se o fiador da legalidade e logrou empurrar os

Vitorias na crise.indd 212

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 213

setores das classes dominantes que tentaram derrubá-lo para a periferia da atividade política” (Maringoni, 2009, p. 170). No entanto, o fato de o processo ter começado exatamente com o objetivo declarado de derrubar uma “falsa” democracia e instaurar uma “verdadeira” em seu lugar deu origem a uma postura por vezes tática em relação à democracia representativa. Após a reeleição em 2006, Chávez manifestou “mais claramente tendências a enterrar as instituições liberais” (López Maya, 2008, p. 69), algo provavelmente paralisado pela derrota no referendo de 2007, que pretendia reformar profundamente a Constituição nesse sentido14. Seria possível então que o movimento e seu líder tivessem progressivamente que se adequar às instituições e às novas regras estabelecidas, “normalizando-se” e deixando de lado o esforço de “revolução permanente”. No entanto, este é somente um dos desdobramentos viáveis, o que mantém o caso venezuelano numa posição em certo sentido dúbia em relação à democracia representativa, mais incerta que a de outros casos manifestados na região. No que tange especificamente ao MVR, desde a sua fundação ele defendeu a democracia participativa e o “poder popular”. No entanto, segundo Ellner (2008), poderia ser notada uma distinção. A ampla base de apoios sociais do processo venezuelano nutriria atitudes que vão desde uma completa dependência até uma desconfiança em relação ao líder e especialmente a seu partido. Enquanto a postura destes movimentos sociais seria de superação ou substituição dos mecanismos representativos pelo “poder popular”, a postura do MVR seria de defesa “do ‘poder popular’ como um complemento do governo representativo, não como a fonte suprema da tomada de decisões” (p. 53) – e seu líder oscilaria entre as duas posições. Neste sentido, a posição do MVR e agora do PSUV não diferiria tão radicalmente das outras esquerdas cotejadas nestas páginas. Entretanto, para confirmar esta afirmação de Ellner, seria necessário realizar uma pesquisa mais aprofundada do caso venezuelano – algo reservado para trabalhos futuros. O PAÍS também dedica especial atenção às modalidades de democracia direta, mas provavelmente com menos vigor e com menos elaboração programática. O movimento defende mecanismos plebiscitários e de consulta e apoderamento popular, enquanto a princípio enfraqueceu e reformou os mecanismos tradicionais de representação. Correa e seu movimento assumiram uma modalidade de governo “decisionista”, um esforço de “campanha permanente” associado

Vitorias na crise.indd 213

10/17/11 12:55 PM

214 / Vitórias na crise

“a uma variedade extrema de presidência plebiscitária” (Conaghan, de la Torre, 2008, p. 269). A batalha pela opinião pública para estabelecer uma relação direta do governante com as massas é um aspecto central de seu governo, associada às subsequentes eleições e campanhas, de caráter plebiscitário. A função de “motivador” da “revolução cidadã” é considerada central pelo próprio Correa. A mesma avaliação poderia ser feita em relação ao bolivarianismo. No entanto, as modalidades de democracia representativa nunca foram contestadas, e a própria organização e sistemática participação eleitoral do PAÍS apontam nesse sentido15. Um processo de integração mais claro à democracia representativa é perceptível tanto na FSLN quanto na FMLN, sendo, aos poucos, reconhecido pela literatura especializada. Martí i Puig e Santiuste Cué (2008) apresentam evidências, através das opiniões dos parlamentares dos dois partidos, de que eles aceitam majoritariamente a democracia representativa como forma de governo. Para os autores, apesar da polarização ideológica encontrada nos dois países (tradicional e simbólica), esses parlamentares integrariam junto a seus colegas de outros quadrantes ideológicos uma nascente elite parlamentar que partilharia valores comuns (seriam nesse sentido progressivamente insiders). Apesar disso, setores minoritários dos dois partidos seguiam nutrindo certas desconfianças quanto à transparência de algumas de suas instituições – o que, para Martí i Puig e Santiuste Cué, estaria ligado à rejeição, ao longo da maior parte de suas trajetórias, do que era considerada por eles a “democracia burguesa”16. Os autores afirmam que a “democracia representativa como forma de governo foi aceita unilateralmente pela maioria [dessas] elites políticas” (p. 96), mas destacam que a concepção de democracia nutrida pelas esquerdas valoriza o elemento redistributivo, constituindo um ideal de “democracia social” que busca “expandir a democratização da sociedade através da participação direta de grupos sociais e não somente via eleições” (p. 101). Trata-se de uma combinação de elementos representativos e participativos comuns a todas às esquerdas analisadas nessas páginas. A combinação específica apresentada por essas duas organizações se aproxima especialmente da encontrada nas experiências partidárias mais institucionalizadas e longevas do sul da região. Desde seu governo revolucionário, a FSLN procurou preservar o pluralismo e a democracia representativa, ainda que com dificuldades. Tais dificuldades não vinham somente da influência de concepções

Vitorias na crise.indd 214

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 215

leninistas em seu interior, mas também da recusa de participação por boa parte dos setores oposicionistas, da beligerância da administração norte-americana e dos problemas derivados da guerra civil. A derrota eleitoral de 1990 e o colapso do chamado “socialismo real” abriram uma crise de identidade, que foi resolvida a favor daqueles que propugnavam uma continuidade com a bagagem ideológica e política do partido. Um fato que, no entanto, não impediu que o FSLN ao longo da década de 1990 tenha incorporado a defesa da democracia como parte de seu ideário político (Santiuste Cué, 2003, p. 487).

Nesse sentido, o partido defende que a democracia política deve ser desenvolvida, junto a uma democracia “social e econômica”. A FMLN completou um longo caminho rumo à integração ao sistema político nacional e à aceitação dos pressupostos da democracia representativa e das instituições vigentes. O partido passou a se definir como “propiciador da democracia sabendo que, desde suas origens a combateu por ser ‘formal e burguesa’” (Artiga González, 2003, p. 160)17. Esse caminho não foi linear, já que nas eleições de 1999 os setores mais “moderados” puderam indicar um candidato próprio à Presidência, e os setores tidos como mais “ortodoxos” retomaram a maioria na sequência, indicando o tradicional líder comunista Shafik Handal para a Presidência em 2004. Sugerindo que a integração do partido é um processo mais complexo que a simples disputa entre seus setores internos, o programa apresentado em 2004 foi basicamente moderado. No entanto, com a campanha em andamento, houve um retorno a um discurso mais tradicional e de corte revolucionário e anti-imperialista, em resposta aos pesados ataques da adversária Aliança Republicana Nacionalista (ARENA) e à forte polarização (Garibay, 2004). Finalmente, entre 2004 e 2009 houve um processo mais marcado de moderação discursiva. Na campanha de 2009, o partido apelou a uma base social expandida, incluindo até o médio empresariado e setores militares, e defendeu incisivamente o apoio à iniciativa privada e à estabilidade social e econômica.

6.5 – (Anti)neoliberalismo Defendi no Capítulo 5 que as esquerdas analisadas, em meio à crise de seus paradigmas e do avanço das concepções neoliberais na região, assumiram a crítica contra-hegemônica ao neoliberalismo como

Vitorias na crise.indd 215

10/17/11 12:55 PM

216 / Vitórias na crise

um elemento central de suas estratégias, um diferencial que agiu como garantia para a manutenção de seu caráter alternativo. Isso provavelmente as favoreceu quando a crise hegemônica dos paradigmas neoliberais começou a se manifestar. As esquerdas do continente propõem reformas ao neoliberalismo, em alguns casos moderadas, em outros mais radicais. Com isso, elas seguiram se posicionando à esquerda, apesar de não serem anticapitalistas num sentido “clássico” (e por isso serem todas “moderadas” em certo sentido). O mesmo poderia ser dito acerca de outras experiências de esquerda no subcontinente. Elas não propõem com clareza a superação do capitalismo – ou ao menos não o faziam quando chegaram ao poder. Só no caso venezuelano, depois de anos de governo, a superação do sistema de relações socioeconômicas começou a ser apontada como meta, ainda sem clareza e efetividade. O MVR e o PAÍS teriam uma perspectiva mais antissistêmica e a possibilidade de construir com mais decisão uma alternativa contra-hegemônica. Pelo menos a princípio não se tratava de um projeto de superação do capitalismo, mas de uma tentativa de “refundação” do país em novos moldes. Por outro lado, a FSLN e a FMLN propuseram reformar o neoliberalismo na direção de sua superação, mas ao mesmo tempo assumiram progressivamente alguns de seus elementos. Isso teria se dado no caso da FSLN já nos últimos anos do governo sandinista, e se aprofundado durante o longo período na oposição (Zimmermann, 2006), manifestando-se mais tarde no caso da FMLN. Os setores que formaram o MVR (assim como as organizações de esquerda que o apoiaram) vinham de uma oposição relativamente longa ao neoliberalismo, desde que este começou a ser implantado com mais decisão no país ao final da década de 1980. O bolivarianismo se colocou como alternativa ao neoliberalismo e, mais do que isso, também às instituições e ao sistema de partidos, em franca decomposição ao longo dos anos 1990. Isso refletia a falência da hegemonia dos partidos “tradicionais” e o fim da bonança petroleira que a sustentou em seu auge. O MVR se posicionou como crítico do “capitalismo neoliberal” e defensor de um “‘capitalismo humanista’ como via para inserir-se nas proposições da chamada ‘terceira via’ que o Primeiro Ministro britânico Tony Blair manifestou” (Pereira Almao, 2003, p. 590). Esse “capitalismo humanista” se basearia (para além do desenvolvimento de uma nova cultura e ética de solidariedade) no desenvolvimento de uma economia “humanista”, “autogestionária”

Vitorias na crise.indd 216

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 217

e “competitiva”. Haveria uma complementaridade entre Estado e mercado – com o apoio ao empresariado nacional e a aceitação de investimentos estrangeiros. Nota-se que as propostas do MVR não eram tão radicais na economia quanto na política, e essa tendência se manteve ao longo da trajetória da organização. O que se vê então é uma crítica centrada no neoliberalismo e não no sistema capitalista – e preservando alguns paradigmas associados ao “neoliberalismo”, como a integração ao mercado mundial, a defesa da eficiência estatal e o equilíbrio das contas públicas. Um quadro semelhante pôde ser notado na ascensão de Correa e do PAÍS, cujo mote era resgatar o Equador da “longa noite neoliberal”. A distinção entre um capitalismo “humanizado” (ou “cristão”) e um capitalismo “selvagem” é recorrente no movimento. As críticas ao neoliberalismo são fortes e centrais em seu discurso, associadas ao ataque às instituições e à “partidocracia”. Referências vagas a um “socialismo do século XXI” (ou “cristão”) vão surgindo pontualmente (com menos decisão que na Venezuela), carecendo igualmente de maiores definições. Vê-se em ambos os países que o antineoliberalismo é central, mas vem acompanhado de críticas mais gerais – derivadas do contexto de crise político-institucional vivenciado por ambos os países –, que buscam reorganizar radicalmente a as instituições existentes. Na FSLN, além de não vir acompanhado de críticas às instituições e ao sistema político, o antineoliberalismo é em si menos radical. Em seus anos de oposição (especialmente na década de governos liberais, de 1996 a 2006), a organização desenvolveu uma dupla (e errática) estratégia: um ativismo opositor articulado a esforços negociadores formais e informais com seus adversários. Esse segundo elemento foi o que reforçou a integração do partido ao sistema político. Enquanto isso, o primeiro elemento se associava com um discurso antineoliberal e com a manipulação da retórica e da memória revolucionárias do “sandinismo histórico”. Sua oposição ao neoliberalismo, baseada na ideia de que não só é necessário o desenvolvimento de uma democracia política, mas também de uma democracia social e econômica, que busque a defesa dos interesses dos setores populares, é a base de seu programa político. Em outras palavras, como rezava uma das partes da Plataforma Eleitoral da FSLN para as eleições presidenciais de 1996, “reativação econômica com justiça social”. Essa é a mensagem que a FSLN pretende passar atualmente à sociedade nicaraguense (Santiuste Cué, 2003, p. 488).

Vitorias na crise.indd 217

10/17/11 12:55 PM

218 / Vitórias na crise

Pode ser observada uma maior tolerância aos setores dominantes “produtivos” potencialmente afetados pelo neoliberalismo e pela crescente abertura comercial em relação aos EUA. Ela teve em 1996 o empresário agropecuário Juan Manuel Caldera como seu candidato a vice-presidente. Na campanha vitoriosa de 2006, o partido chegou ao extremo de ter como candidato a vicepresidente o banqueiro e antigo integrante dos “contras”18 Jaime Morales Carazo. O enfoque no crescimento econômico, na produção e na geração de empregos foi o mote da campanha de 2006, na qual a FSLN se colocava como a “solução” para os problemas básicos do país. A defesa de “crescimento econômico com justiça social” propõe, de um lado, contrabalançar a liberdade do mercado com mais Estado e, de outro, a realização de investimentos e intervenções governamentais na direção da redução da pobreza e da desigualdade (sem criticar radicalmente todos os aspectos da concepção neoliberal). As propostas da FMLN podem ser entendidas nessa mesma chave. Nesse sentido, o antineoliberalismo (num contexto de progressivo bipartidarismo polarizado) é o núcleo de sua oposição à ARENA, de caráter fortemente neoliberal desde o final dos anos 1980, sendo responsável pela aplicação no país de projetos associados àquele corpus teórico. A defesa do setor produtivo da economia (industrial e agrícola) em lugar de sua financeirização aproximou o partido de alguns setores do empresariado nacional e das elites rurais, ampliando seu arco de apoios sociais. As propostas alternativas ao neoliberalismo constituíram-se na base para a construção da vitoriosa imagem de “mudança”, “esperança” e “renovação” propagada nas eleições de 2009.

6.6 – Expandindo (um pouco mais) a argumentação Espero ter dado uma resposta multicausal à questão de como as esquerdas latino-americanas contemporâneas chegaram ao poder (proposta no Capítulo 1). Procurei evitar explicações unicausais, centradas no maior grau de desigualdade, na crise econômica, em uma maior mobilização popular ou em uma menor institucionalização nos países que presenciaram vitórias eleitorais das esquerdas. Algumas delas mostrar-se-iam incorretas. Por exemplo, a esquerda chegou ao poder nos países menos desiguais do subcontinente (Chile e Uruguai) e no mais desigual (Brasil); nos países mais institucionalizados (Chile

Vitorias na crise.indd 218

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 219

e Uruguai) e nos menos institucionalizados (como a Bolívia); nos países mais mobilizados socialmente (Bolívia e Equador) e nos relativamente pouco mobilizados (Chile, Uruguai, Brasil a partir de meados dos anos 1990). Esses fatores poderiam servir como elementos explicativos das diferenças entre as esquerdas vitoriosas, mas não de suas vitórias em si. Por outro lado, as crises econômicas e sociais que denotaram o esgotamento prático (mas não simbólico) do neoliberalismo explicam algo, mas não tudo. Elas se manifestaram como “janelas de oportunidades” a esquerdas que eram antineoliberais, mas que puderam crescer e chegar ao poder também porque se adaptaram organizativa, identitária e ideologicamente (fruto de um processo de aprendizagem) tanto à heterogeneidade e à complexidade da modernidade contemporânea como manifestada no subcontinente quanto à disputa democrática. De qualquer forma, espero que os argumentos apresentados tenham contribuído para uma melhor compreensão da “onda” de esquerda que percorreu a América Latina na última década. Eles poderiam ser úteis mesmo para analisar países nos quais a referida “onda” se traduziu em governos progressistas que não emanaram de alternativas partidárias de esquerda. Por exemplo, o peronismo na Argentina – historicamente filiado às correntes nacional-populares do subcontinente, e nos anos 1990 adepto do neoliberalismo. O peronismo em versão progressista do casal Kirchner desembocou, no fim das contas, “no reconhecimento da primazia do sistema institucional, por meio do protagonismo do Partido por sobre os movimentos sociais” (Svampa, 2008, p. 208). Assim, apesar de ter havido na Argentina uma crise institucional e política (para não falar de sua dimensão social) de proporções comparáveis às ocorridas na Venezuela, Bolívia e Equador, enquanto esses países gestaram soluções antissistêmicas, na Argentina o “peronismo infinito” (Svampa, 2005) pôde oferecer uma saída peculiar e inesperada à crise. Néstor Kirchner buscou a princípio uma alternativa “transversal” ao seu Partido Justicialista (PJ), baseada no discurso da “nova política”, que procurava atrair as “classes médias progressistas” para seu projeto. Isso se traduziu institucionalmente na Frente para a Vitória, agrupando partidos de centro e centro-esquerda e tendo composição variável de acordo com o distrito eleitoral no qual se organizava (Svampa, 2008). A Frente sustentou sua campanha presidencial em 2003 e a de sua esposa Cristina Fernández de Kirchner em 2007. No entanto, em 2008

Vitorias na crise.indd 219

10/17/11 12:55 PM

220 / Vitórias na crise

a estratégia foi abandonada, e Kirchner voltou a apostar nos canais institucionais tradicionais e mais especificamente no PJ, no qual exerceu a presidência até sua derrota nas eleições parlamentares de 2009. O fator complementar nessa equação foi a incapacidade das esquerdas argentinas em construir alternativas consistentes, traduzindo para o campo político-institucional a efervescência e a criatividade movimentista que floresceu durante a crise de 2001 e 200219. Svampa (2008) explica essa incapacidade a partir de fatores internos e externos. Entre os externos, aponta a “produtividade política” do peronismo, que se nutriria “de uma hábil liderança presidencial que sintetiza legado decisionista e eficácia populista, assim como de uma demanda de normalidade institucional veiculada por uma sociedade golpeada pelo desaparecimento da ilusão neoliberal (...) e a posterior ameaça de dissolução social” (p. 206). Entre os internos, destaca a tendência das esquerdas tradicionais em buscar instrumentalizar e hegemonizar os novos movimentos sociais; a aliança das esquerdas de tradição nacional-popular com o kirchnerismo; e certo ethos autonomista no interior dos movimentos sociais que recusa a construção de articulações políticas e institucionais “superiores”. A chegada ao poder de Fernando Lugo no Paraguai em 2008, sustentado por uma frente heterodoxa de partidos, movimentos e organizações chamada Aliança Patriótica para a Mudança (APC na sigla em espanhol) é outro exemplo de “governo progressista” que não foi gestado majoritariamente desde partidos de esquerda. Os pequenos partidos de esquerda paraguaios se aliaram a movimentos sociais progressistas e ao principal partido de oposição, o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), basicamente conservador, que se tornou o principal ator da frente e indicou o vice-presidente Federico Franco. Como na Argentina, as esquerdas paraguaias se mostram incapazes de sustentar uma alternativa partidária consistente, tendo elegido apenas um parlamentar nas eleições de 2008. Isso fez com que a base de sustentação de Lugo fosse heterogênea e por vezes hostil, sendo constituída principalmente pelos representantes do PLRA que, em 2009, anunciou sua saída do governo, gerando graves problemas de governabilidade – além das previsíveis dificuldades em gerir um Estado que foi administrado de forma prebendária por mais de seis décadas pelos colorados. Lugo, originalmente bispo católico progressista envolvido com os movimentos sociais e liderança oposicionista de ascensão meteórica,

Vitorias na crise.indd 220

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 221

se filiou ao Partido Democrata Cristão (PDC) local para poder concorrer à eleição. Em sua campanha e governo, procurou se distanciar de outras experiências de esquerda do subcontinente e buscar um caminho próprio, enfatizando a justiça social e o nacionalismo. Assim, seu governo pode ser considerado “progressista” no mesmo sentido do argentino, mas sua ascensão não se baseou propriamente nas esquerdas partidárias paraguaias, mas numa liderança autônoma, sustentada por uma coligação de atores de diversos espectros políticos e formas organizativas (Palau, Ortega, 2008). É evidente que o cumprimento por parte de uma organização de esquerda das condições apontadas ao longo do trabalho não a levou necessariamente ao poder no subcontinente. Há exceções, como os setores de esquerda em países como o México e a Colômbia, que poderiam preencher esse perfil ao menos em parte, mas não obtiveram até agora o mesmo sucesso que seus pares. Para entender os poucos casos nos quais essa combinação não deu resultados até o momento, pode-se lançar mão da intervenção de fatores relacionados aos contextos nacionais, tais como: a configuração de cada sistema partidário; regras eleitorais desfavoráveis; a expressão de fenômenos propriamente “extralegais”; a existência de forças à esquerda dessas organizações que as contestam simbolicamente, apesar de não competirem eleitoralmente; além de fatores relacionados à própria agência coletiva e individual desses atores. Deve-se chamar a atenção para a probabilidade de ter havido fraudes eleitorais em duas eleições nas quais as esquerdas estiveram muito próximas da vitória no México (em 1988 e 2006). As instituições construídas ao longo de décadas do regime autoritário de partido dominante mexicano parecem não ter sido suficientemente renovadas para permitir a completa aceitação das esquerdas pelo sistema (Bartra, 2006). Deve-se destacar também o sucesso no poder local das esquerdas mexicanas e colombianas. A primeira governou seguidamente a Cidade do México, enquanto a segunda já administrou, através de diversas formações políticas, algumas das principais cidades do país (Chavez, Goldfrank, 2004). Pode-se sugerir que a democracia mexicana ainda seja “incompleta”, e que ainda haveria limitações institucionais (e possivelmente extralegais) para o advento das esquerdas ao poder. Adicionalmente, a presença simbólica dos zapatistas, que não concorrem a eleições, mas contestam abertamente as esquerdas institucionais, teve seu papel nas derrotas (por

Vitorias na crise.indd 221

10/17/11 12:55 PM

222 / Vitórias na crise

pouca margem e com suspeita de fraude) do Partido da Revolução Democrática (PRD). Na Colômbia, país no qual há uma situação não resolvida de guerra civil, essa questão assume o papel central nas eleições nacionais, o que é extremamente delicado e problemático para as esquerdas institucionais, na medida em que as anacrônicas esquerdas guerrilheiras do país estão entre os atores principais do conflito, e evidentemente não recebem qualquer simpatia por parte da ampla maioria da população. Note-se que na Colômbia, assim como na Venezuela, na Bolívia, no Equador e (parcialmente) na Argentina, deu-se um processo de crise das instituições e do sistema partidário, no qual os partidos “tradicionais” (liberais e conservadores) ruíram. No entanto, nesse país não se deu uma solução à esquerda como nos citados anteriormente (ainda que a solução argentina tenha sido peculiar, dandose através de uma nova versão progressista do peronismo). Surgiu na Colômbia uma saída personalista pela direita, a de Álvaro Uribe, lançando mão do discurso da segurança e da luta contra a guerrilha, associada nesse discurso ao “terrorismo” (Echandía Castilla, 2008). No entanto, em oposição ao “uribismo” e às guerrilhas de esquerda, vão se constituindo novas esquerdas democráticas com razoável potencial eleitoral (Garavito, 2005). O Peru se aproximaria do exemplo colombiano, tendo vivenciado desde o final dos anos 1980 processo semelhante de desagregação político-institucional, respondido igualmente por outsiders que se posicionaram mais à direita, como Alberto Fujimori e Alejandro Toledo e, atualmente, por um “renascimento” em chave conservadora da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) (Tanaka, 2008). As esquerdas peruanas, que tiveram um momento de ascensão nos anos 1980 com a Esquerda Unida (IU na sigla em espanhol, que chegou ao governo de Lima), parecem ter sido bloqueadas da mesma forma que na Colômbia pela presença destrutiva, até os anos 1990, de guerrilhas marxistas: o Partido Comunista do Peru – Sendero Luminoso (PCP-SL) e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA). Em ambos os países, nota-se assim uma dificuldade maior de renovação por parte das esquerdas e de bloqueio dos setores que se esforçam nesse sentido. Isso poderia ser a chave para a compreensão da impossibilidade até aqui de projetos “modernos” vitoriosos de esquerda nesses países – o que fica como sugestão para futuros trabalhos.

Vitorias na crise.indd 222

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 223

6.7 – Conclusão Neste capítulo, procurei mostrar a possibilidade de expandir a argumentação desenvolvida até aqui a outros casos nacionais que mereceram, por diversas razões, uma menor atenção durante a pesquisa, sendo analisados a partir de fontes secundárias, mas não primárias. Como explicitado no Capítulo 1, os casos analisados mais detidamente foram escolhidos por serem caracterizados pela participação de organizações minimamente estáveis, definíveis mais claramente como de esquerda e com alguma trajetória prévia à chegada ao poder – permitindo assim alguma harmonização e viabilidade da pesquisa. Mas optei por trazer à discussão casos que ficaram de lado num primeiro momento, com o intuito de demonstrar que os argumentos desenvolvidos nos capítulos anteriores poderiam se adequar com poucas modificações a outras experiências de esquerda na América Latina. Vimos que as organizações discutidas neste capítulo apresentam características comuns às dos partidos analisados anteriormente, e igualmente “heterodoxas” em relação às formas tradicionais cultivadas pelas esquerdas. Vimos também que, assim como seus pares analisados sistematicamente, elas são marcadas ideologicamente pela independência em relação a modelos e ideologias tradicionais, apresentando profundo “ecletismo” nesse sentido; mostram-se de alguma forma adaptadas à democracia representativa; e têm no antineoliberalismo um fator central de construção identitária e de estratégia oposicionista. Na sequência, fiz alguns comentários acerca da potencialidade de se empregar os mesmos argumentos em relação a processos políticos “progressistas” que não tiveram organizações de esquerda como fatores importantes em seu desenvolvimento, bem como para outras esquerdas importantes da região que não chegaram ao poder. Espero com isso ter contribuído para a compreensão da chegada ao poder das esquerdas latino-americanas contemporâneas. No próximo capítulo, levando em conta as oito organizações introduzidas na discussão, analisarei as diferenças entre essas esquerdas.

Vitorias na crise.indd 223

10/17/11 12:55 PM

224 / Vitórias na crise

Notas

1

Mas isso deverá ser explorado com maior profundidade em futuros trabalhos.

2

O MVR foi apoiado pelos principais setores das esquerdas, entre eles o Movimento ao Socialismo (MAS), a maioria do partido Causa Radical (A Causa R ou LCR na sigla em espanhol) que para isso fundou o Pátria Para Todos (PPT), e o Partido Comunista Venezuelano (PCV).

3

Na prática, desde então o MBR-200 deu lugar ao MVR, apesar de uma tentativa de seu líder em 2001 de retomar o primeiro como uma coordenação de movimentos sociais, enquanto o segundo ficaria dedicado às atividades eleitorais e ao governo (iniciativa que não vingou).

4

O estatuto da FSLN afirma textualmente que o partido se organiza para ganhar eleições, a via atual para chegar ao poder. Além disso, legaliza uma “estrutura perfeitamente homologável à dos partidos de tradição de esquerda que existem e competem numa democracia liberal” (Martí i Puig, 2009, p. 113).

5

A partir das eleições de 2001, seriam necessários apenas 40% dos votos para uma vitória no primeiro turno, ou 35% se a diferença do primeiro para o segundo colocado fosse de mais de 5%. Foi exatamente nessa segunda condição que a FSLN recuperou o poder em 2006, com os 38% dos votos que recebeu Ortega, contra 29% de votos do segundo colocado. A vitória também se deveu a uma consequência não intencional do acordo entre sandinistas e liberais: sua contestação por parte de um setor dos liberais, um dos fatores para a divisão do partido e a consequente apresentação de dois candidatos, dividindo o voto conservador (Martí i Puig, 2008). Provavelmente, se tivesse havido um segundo turno, a soma de votos dos candidatos conservadores levaria à derrota dos sandinistas.

6

Ao mesmo tempo as identidades e marcas das cinco organizações originárias foram desaparecendo, dando lugar a uma só identidade. É impossível não traçar paralelos com o processo vivenciado pela FA (conferir o Capítulo 2).

7

Panebianco (1988) considera esse tipo de liderança quase sempre desinstitucionalizante, principalmente quando sua organização é fundada pelo líder e em torno dele, para sustentar seus projetos de poder.

8

Para a autora, as confrontações políticas ocorridas entre 2001 e 2003 foram outro fator que reforçou a característica (em suas palavras) “cesarista” da liderança de Chávez. “Os partidos da aliança patriótica mostraram ser

Vitorias na crise.indd 224

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 225 pouco eficazes para coordenar a defesa do Presidente e de seu governo, produzindo-se na prática uma estratégia exitosa que vinculou diretamente o presidente com setores populares (...) aliados com a Força Armada e sem articulação com o MVR ou outras organizações da aliança (p. 59). 9

O autor parece associar essas características aos partidos de “notáveis” do século XIX, o que poderia levar a uma compreensão equivocada da FSLN como uma organização “ultrapassada”. No entanto, se recordarmos que esses traços são provavelmente majoritários nas democracias atuais, é possível ver a questão pela perspectiva oposta. Manin (1997) argumenta exatamente neste sentido quando defende que a etapa atual na história dos governos representativos (a “democracia de audiência”) apresenta algumas semelhanças com relação às primeiras democracias representativas modernas – a confiança como elemento chave na decisão de voto, a valorização do indivíduo, a maior autonomia entre representante e representado e a menor coincidência entre as posições manifestadas pela opinião pública e as expressas nas eleições. Mas as características gestadas agora não constituem uma “volta ao passado”, pois têm motivações distintas, se manifestam por meio de novas configurações, e evidentemente são plenamente adaptadas à modernidade contemporânea.

10 Por

sinal não há exatamente uma novidade nesse tipo de organização, nem mesmo quando se pensa nos países “centrais”. Entre muitos exemplos, basta recordar do gaullismo francês e sua liderança personalista e estruturação fluida.

11 Esse

pensamento “articula o ideal libertário, de coesão e mobilização de Bolívar; a interpretação que fazem de Rodríguez a respeito da importância que este dedicou à economia social e à educação popular; e às ideias de ‘terra e homens livres’, ‘eleição popular’ e ‘horror à oligarquia’ de Ezequiel Zamora na guerra federal (1859-1863), cuja síntese consideram a ideologia bolivariana” (Pereira Almao, 2003, p. 589).

12 Ela

não diferiu radicalmente da campanha derrotada das eleições de 1990, que apresentou uma plataforma moderada, centrou-se na figura de Ortega e abandonou cores e símbolos do sandinismo. Essa tendência pode ser associada à orientação dos últimos anos do governo revolucionário, em especial desde 1987, de buscar uma aproximação com o capital privado através de um “pacto social”, fomentando o mercado livre e os incentivos ao lucro para reativar a economia estagnada pelos anos de guerra civil (Zimmermann, 2006).

13 “A

insurgência foi vista por alguns setores da população como um ato de oposição ao governo e suas políticas (...), mas não quebrou a preferência pela democracia que o venezuelano vem experimentando consistentemente há mais de trinta anos. Esse foi um fator que indubitavelmente teve importância na adoção da via eleitoral que Chávez e o MBR-200 adotaram no final da década de 1990; além do que o aprofundamento do descontentamento lhes permitiu apreciar o vazio de representação popular que

Vitorias na crise.indd 225

10/17/11 12:55 PM

226 / Vitórias na crise enfrentavam os partidos tradicionais e que eventualmente poderia ser ocupado por uma nova e vigorosa proposta de apelação popular. Desse modo, puderam inserir o radicalismo numa apelação popular revolucionária, que por transitar na via eleitoral não deixava dúvidas de que a democracia estaria a salvo” (Pereira Almao, 2003, p. 587). 14 Uma

boa análise do conteúdo das reformas propostas e das prováveis razões da derrota foi apresentada por López Maya (2008). A autora observa no mesmo artigo a profundidade dos debates em torno da democracia direta na Venezuela desde os anos 1990 em comparação com outros países da região. Para ela, outros países estavam envolvidos em transições de ditaduras para democracias nas quais “o debate tendeu a privilegiar as virtudes da democracia procedimental, adiando a substantiva ou profunda para mais adiante” (p. 77). Enquanto isso, os venezuelanos estariam buscando aprofundar a democracia procedimental que eles já tinham, e que estava experimentando então uma profunda crise.

15 Isso

é mais evidente quando cotejamos seu posicionamento com o da principal força de esquerda anterior, o Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik – Nova Maioria (MUPP-NM), e especialmente suas dificuldades eleitorais e divisões a partir de 2002. Parece que as dificuldades do MUPP-NM, entre outros fatores, devem-se ao seu apoio ao golpe de 2002, que pôs em questão a vocação democrática do partido. Além disso, o posicionamento legalista parece ser importante para a posterior chegada ao poder. Em sua decadência deve ter pesado também o apoio em posição subalterna à candidatura e aos primeiros meses de governo de Lúcio Gutierrez. A imagem de outsider do partido certamente foi abalada, e tal imagem foi um elemento importante na ascensão de esquerdas em países que vivenciaram colapsos de suas instituições e sistemas partidários.

16 Os

dados utilizados dizem respeito à virada da década de 1990 para a de 2000. É razoável supor que dados colhidos mais recentemente fossem ainda mais favoráveis à democracia representativa e suas instituições.

17 A

Carta de Princípios da FMLN (1995) afirma que ela procura “construir uma democracia política real e participativa, na qual os cidadãos possam desfrutar de todas as liberdades políticas e exercer seus direitos, especialmente seu direito a eleger e a revogar livremente seus governantes; a uma correta administração de justiça; à segurança jurídica entendida como uma garantia e serviço à sociedade; à liberdade de associação, livre expressão e liberdade de credo e religião; e ao exercício de todas as liberdades fundamentais que possibilitem o pleno gozo de direitos” (citado em Artiga González, 2003, p. 160). Note-se que os principais direitos políticos liberais estão contidos nessa concepção de democracia.

18 Os

chamados “contras” foram os indivíduos e setores contrários à revolução sandinista que se mobilizaram militarmente (com apoio norte-americano) contra o novo regime, dando origem à guerra civil vivida pelo país nos anos 1980.

Vitorias na crise.indd 226

10/17/11 12:55 PM

Expandindo a argumentação / 227 19 A

tentativa mais bem sucedida de organização de esquerda entrou em colapso exatamente na esteira da crise: a Frente País Solidário (FREPASO). O partido/frente de existência efêmera nos anos 1990 tornou-se um exemplo recorrente de partido de “novo tipo” ou de “nova esquerda” (Novaro, Palermo, 1998). Foi considerado um caso paradigmático de partido organizado em torno de lideranças midiáticas e bases fluidas, que obteve êxito em grande parte com base no desempenho de seus dirigentes, especialmente Carlos “Chacho” Álvarez e Graciela Fernández Meijide. Estes líderes, com um discurso calcado num “progressismo difuso” e numa clivagem ética de “cansaço moral” e de “gente comum contra políticos”, se valeram da mídia para “se descolar dos pequenos aparatos militantes e do discurso ideológico de alguns dos setores que conformavam o partido” (Abal Medina, 1998, p. 12). Na FREPASO, a modalidade de liderança midiática, combinada a uma militância “cidadã”, de “opinião”, desarticulada ao extremo, exerceu um papel importante para bloquear sua institucionalização e manter sua alta capacidade de adaptação e flexibilidade tática, contribuindo tanto para seu rápido crescimento quanto para seu desaparecimento. Pode-se dizer assim que no curto prazo a FREPASO obteve êxito ao ser o primeiro partido a romper o bipartidarismo argentino e chegar ao poder como segunda força em uma coalizão com a União Cívica Radical (UCR). No entanto, seu nível de desinstitucionalização e o fracasso do governo e da aliança dos quais participou acabaram bloqueando sua própria reprodução.

Vitorias na crise.indd 227

10/17/11 12:55 PM

228 / Vitórias na crise

Vitorias na crise.indd 228

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 229

capítulo

7

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais 7.1 – Apresentação

Esse capítulo é dedicado a sistematizar e aprofundar a discussão acer-

ca das diferenças mais destacadas entre as esquerdas latino-americanas contemporâneas e, a partir disso, debater o tema das tipologias, recorrente na literatura especializada. O objetivo principal dos capítulos anteriores foi destacar semelhanças entre elas que podem explicar porque estas esquerdas chegaram ao poder num contexto eminentemente crítico para as tradições e os projetos das esquerdas (o que foi a primeira hipótese apresentada no Capítulo 1). No entanto, ao longo desse esforço para demonstrar o que essas esquerdas têm em comum, algumas diferenças tornaram-se evidentes. Nesse capítulo, elas serão retomadas e aprofundadas, servindo de base à tipologia que pretendo desenvolver em seguida. A partir desta discussão, espero chegar ao núcleo que diferencia as chamadas “novas esquerdas” da região (Garavito, Barret e Chavez, 2005; Natanson, 2008) entre elas. Pretendo demonstrar que, apesar das semelhanças encontradas, as diferenças são igualmente significativas, fornecendo evidências suficientes para confirmar que é possível classificar as esquerdas do subcontinente em grupos distintos (o que foi a segunda hipótese apresentada no Capítulo 1). Este capítulo apresenta a seguinte estruturação: antes de discutir as bases para uma tipologia, abordo a literatura que tem sido produzida em torno do tema, enfatizando minhas discordâncias em relação a ela. A partir desse debate, analiso os conceitos mais utilizados por essas tipologias, explicando as razões pelas quais prefiro deixá-los de lado. A seguir, analiso e sistematizo as diferenças entre as esquerdas, seguindo a mesma tematização proposta ao longo do livro (organização, ideologia, relação com a democracia e com o neoliberalismo). Por fim, com base tanto na crítica à literatura quanto nas diferenças detectadas entre os casos, proponho uma tipologia própria. Trata-se de um exercício no qual o mais importante a ser destacado é a defesa de uma análise sistemática, complexa e dinâmica das esquerdas latino-americanas contemporâneas – o que nem sempre caracteriza os debates em torno do tema.

Vitorias na crise.indd 229

10/17/11 12:55 PM

230 / Vitórias na crise

A tipologia constituída deve ser adequada à diversidade das esquerdas que chegaram ao poder no subcontinente. Por isso, casos que não receberam tanto destaque nas páginas anteriores, tendo sido analisados no Capítulo 6, são mantidos na discussão, numa tentativa de demonstrar o poder explicativo dos argumentos aqui desenvolvidos. É preciso assinalar que o modelo apresentado ao final deste capítulo é basicamente uma classificação de partidos e organizações políticas, na medida em que todo o trabalho foi desenhado tendo essas organizações como unidades de análise, e não os governos que elas encabeçam. Por razões metodológicas, isso pode levar a diferenças adicionais em relação a outras tipologias apresentadas pela literatura, pois boa parte delas (provavelmente a maioria) se baseia em impressões ou em análises mais sistemáticas acerca dos resultados dos chamados “governos progressistas” (Lima, 2008; Sader, 2009) ou simplesmente “novos governos” (Moreira, Raus, Gómez Leyton, 2008) da América Latina. No entanto, as relações dessas organizações com os governos que encabeçam influenciam em alguma medida a classificação proposta, estando mais presentes aqui do que nos capítulos anteriores. Na medida em que aqueles capítulos se dedicavam a explicar a chegada das esquerdas ao poder, não caberia tratar da relação dos partidos com os “governos progressistas”. Ao contrário, agora se torna difícil não levar esse fator em conta. Logo, a atuação mais recente desses partidos como forças governistas (ou seja, suas trajetórias após a chegada ao poder) será considerada nesse momento. Tal opção mantém coerência com o desenho metodológico desse trabalho, que privilegia a comparação entre os partidos, sem abordar diretamente seus governos.

7.2 – Classificando esquerdas: um novo tema do debate regional

A revisão da literatura que farei a seguir não é exaustiva, Ainda assim, mas procura abordar os trabalhos mais significativos produzidos acerca do tema. Uma das características mais comuns nos trabalhos em torno das esquerdas latino-americanas atuais parece ser o desejo de estabelecer tipologias classificatórias. Sem dúvida, a mais comum é a dicotomia que sugere a existência de “duas esquerdas”, uma “socialdemocrata” ou “democrata” e outra “populista” ou “autoritária”, proposta por alguns estudiosos com intenção quase sempre normativa, em que a primeira é vista como uma esquerda “boa” e

Vitorias na crise.indd 230

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 231

a outra como “má”. Organizações como o Partido Socialista do Chile (PSCh), o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Frente Ampla (FA) em geral são associadas à primeira corrente, enquanto o Movimento ao Socialismo (MAS), o Movimento V República (MVR), mais tarde Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e o movimento Pátria Altiva e Soberana (PAÍS) integram a segunda. A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), quando são levadas em conta, são posicionadas ora num polo da escala, ora noutro. Castañeda (2006), seguido entre outros por Reid (2007), propõe a nomenclatura de “socialdemocratas” e “populistas”, ainda que aponte também para o autoritarismo dos segundos (nesse caso, populismo e autoritarismo estariam muito próximos). Estes autores parecem “aterrorizados” pela ameaça autoritária dos “populistas”, e sua meta é demonstrar a todo custo que se trata de duas esquerdas distintas, que uma delas é “certa” e a outra “errada”, e que é essencial posicionar-se nessa “batalha pela alma da América Latina”. Aqui o simplismo é absoluto, e não há muito que dizer acerca dessas posições combativas e parciais. No entanto, há outros autores que utilizam os mesmo termos propostos por Castañeda, mas baseiam suas conclusões em análises mais elaboradas e menos normativas1. É o caso de Panizza (2006), Roberts (2008) e Lanzaro (2009), que destacam que os “socialdemocratas” têm raízes em sistemas partidários e instituições sólidas, enquanto os “populistas” são o resultado de sistemas partidários e instituições em colapso, fruto das reformas de mercado no continente. Uma perspectiva, portanto, mais “institucional” e, em larga medida, “estrutural”2. Segundo Panizza, os primeiros contextos teriam levado suas esquerdas a adotarem a estratégia denominada “socialdemocrata”, ou teriam levado tais esquerdas a predominarem; e os segundos contextos teriam permitido que elas adotassem a estratégia “populista”, ou levado estas a predominarem. A estratégia política seria o diferencial, na medida em que todas elas são democráticas, “reformistas” no sentido clássico e, até aqui, ortodoxas no nível macroeconômico. Para Lanzaro, as primeiras se baseiam em partidos institucionalizados, e as segundas em movimentos ou partidos não institucionalizados. Todas aceitaram a via eleitoral para a chegada ao poder, mas não entronizaram os valores “republicanos”. Assim, todas são democratas num primeiro olhar, mais instrumental, mas umas são mais democratas que

Vitorias na crise.indd 231

10/17/11 12:55 PM

232 / Vitórias na crise

outras. Para Roberts, mas também para os outros autores, as esquerdas “populistas” se originaram onde os processos de reforma estrutural “neoliberal” deixaram as instituições e sistemas partidários em colapso, enquanto as esquerdas “socialdemocratas” se desenvolveram em ambientes que suportaram as reformas sem desagregar-se. As primeiras propõem (no limite) reformar as instituições nas quais estão integradas, enquanto as segundas são outsiders que pretendem superá-las. Há também os autores que não utilizam os termos “socialdemocratas” e “populistas”, preferindo a dicotomia de “democratas” e “autoritários”. Petkoff (2005) inaugura esta proposição, sendo seguido por Mires (2008), entre outros. Sua análise estabelece matizes dentro dos dois grupos e das relações entre eles, mas sua proposição é tão combativa, parcial e “militante” quanto a de Castañeda. Para Petkoff, os “democratas” (ou “modernos”) teriam aprendido com as ditaduras, com o fracasso da luta armada e do “socialismo real”, com o exercício do governo em distintos níveis e com a atuação parlamentar, tornando-se responsáveis, modernos e reformistas (termo esvaziado agora de sua velha carga negativa). Por outro lado, os “autoritários” (ou “conservadores”, “arcaicos”, “reacionários”, etc.) estariam mais próximos das tradições das esquerdas e não teriam vivido um processo de modernização em toda sua plenitude, estabelecendo governos com fortes tendências autoritárias que, se (ainda) não podem ser caracterizados como ditatoriais, tampouco poderiam ser considerados autênticas democracias. Já autores como Lazo Cividanes (2007), Rouquié (2007), Reynoso (2008) e Cleary (2009) buscam analiticamente um equilíbrio entre semelhanças e diferenças das esquerdas. Para Lazo Cividanes, todas elas compartilham a construção de um novo discurso hegemônico antineoliberal – argumento utilizado também por Reynoso, que as denomina “pós Consenso de Washington”. Para Rouquié, há muito em comum entre esses “governos de alternância”, como os objetivos da “integração social e a luta contra a pobreza por um lado, a reabilitação do Estado e da política por outro”. Para Cleary, todas estas esquerdas se originaram em países com maior tradição de mobilização classista, mais recentemente estruturada como oposição ao neoliberalismo. No entanto, as diferenças também são consideradas. O argumento “institucional” é retomado, com o abandono de noções como populismo ou autoritarismo. Lazo Cividanes propõe a existência de esquerdas “institucionais” e “anti-institucionais”, assim

Vitorias na crise.indd 232

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 233

como Reynoso, que as denomina “institucionalistas” e “decisionistas”, e Cleary, que sugere que as esquerdas mais radicais se originaram em países com baixa institucionalização do sistema partidário, enquanto as mais moderadas surgiram em países com alta institucionalização. Já Rouquié propõe, de um lado, esquerdas “possibilistas”, com maior trajetória e inserção institucional, que pretendem tornar suas sociedades progressivamente mais justas e inclusivas e, de outro, esquerdas outsiders, nacionalistas e estatizantes. Todas elas estariam longe de qualquer populismo ou autoritarismo, ainda que as segundas se aproximem de uma concepção “plebiscitária” da democracia. Percebe-se que o argumento “institucional” é o mais recorrente na literatura especializada, provavelmente pelas especificidades do campo da ciência política atual, onde se produz a maior parte dos trabalhos sobre o tema. Esse argumento “institucional” estará presente em minha tipologia, ainda que de forma mais lateral – assim como o esforço em equilibrar semelhanças e diferenças. Há alguns autores que buscam classificações distintas, por vezes mais complexas e matizadas. Garcia (2008) percebe diferenças de origem, basicamente políticas e institucionais, entre o Brasil e os países do Cone Sul, por um lado, e países andinos, por outro (o autor localiza sua análise nos países sul-americanos). Ele conclui que, enquanto as esquerdas do primeiro grupo simplesmente propõem novas políticas, as do segundo grupo buscam “mudanças de época”. Assim o autor aceita uma diferenciação, mas evita nomeá-la em termos de “socialdemocratas” ou “democratas” versus “populistas” ou “autoritários”. Garretón (2006) aponta um tipo de esquerda que propõe a reconstrução da nação e da sociedade, bem como das relações entre Estado e sociedade, a partir da política. Em alguns casos, isso se daria através de partidos (como no Chile e no Uruguai) e, em outros, através de lideranças (como na Venezuela). Ele também chama a atenção para outro tipo de esquerda, que propõe as mesmas reconstruções a partir da própria sociedade, seja através da chave étnica (como na Bolívia), seja através de movimentos “altermundialistas”. O autor que apresentou a explicação mais heterodoxa para o surgimento de uma esquerda mais radical e outra mais moderada é Weyland (2009), com sua abordagem cognitivo-psicológica crítica ao “institucionalismo” da maioria das explicações apresentadas. Para ele, há uma relação interveniente entre a desagregação institucional de algumas democracias latino-americanas e o surgimento de esquerdas

Vitorias na crise.indd 233

10/17/11 12:55 PM

234 / Vitórias na crise

radicais. Esses seriam fenômenos coincidentes, não causais. Weyland assinala, inclusive, que os países que viveram desagregações institucionais não foram os mesmos aonde o neoliberalismo chegou mais longe em sua implantação. Assim, um “grau” maior de neoliberalismo não parece gerar por si mesmo insatisfação popular. A variável independente aqui seria então a existência ou a possibilidade de obterem-se vultosas rendas derivadas de recursos naturais. Isso geraria uma percepção psicológica de autonomização da política e de redução dos constrangimentos econômicos, de alargamento das possibilidades, o que ofereceria espaço para a radicalização dessas sociedades, sendo aproveitado por suas esquerdas. Por fim, há os autores que, em última instância, desconsideram as diferenças entre as esquerdas regionais, destacando suas semelhanças. Nesse sentido, é analiticamente interessante referir-se mais detidamente a Sader (2009), pois, entre os autores que enfatizam as semelhanças entre os casos, ele é o que assume uma posição mais “intermediária”, e porque pretendo recuperar alguns de seus termos mais adiante. Sader considera alguns casos (especialmente Bolívia, mas também Venezuela e Equador) como construtores mais decididos de um projeto “contrahegemônico” ao neoliberalismo, em meio a uma forte “crise de hegemonia”. Esses casos apontariam para a transformação das relações de poder através da refundação estatal, e seriam, deste modo, os mais avançados no desenvolvimento da “nova estratégia das esquerdas latino-americanas” e de um “pós-neoliberalismo”3. Mas tanto esses casos quanto os mais “moderados”, que apenas “flexibilizaram” o neoliberalismo sem apontar mais decididamente para sua superação, seriam “progressistas” e contribuiriam à construção do “pós-neoliberalismo”, pois priorizam a integração regional em lugar dos tratados de livre-comércio defendidos pelos EUA e a promoção de direitos sociais dos mais pobres. Para Sader, há uma pálida linha divisória entre os diferentes casos, mas isso perde toda a relevância em comparação com o que separa essas esquerdas das experiências de direita do continente4. Há outros autores que enfatizam as semelhanças entre as esquerdas latino-americanas. Entre eles, pode-se citar Ramírez Gallegos (2006), que considera que elas “compartilham um conjunto de processos e propostas que autorizam a falar de um ciclo político comum” (p. 32), tentando incrementar o papel do Estado, mas ao mesmo tempo são distintas caso a caso. Saint-Upéry (2008) segue de perto

Vitorias na crise.indd 234

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 235

Ramírez Gallegos, ao defender uma pluralidade de esquerdas. Ele acrescenta que a tese da divisão entre duas esquerdas “não se sustenta nos fatos e não explica nada” (pp. 16-17), mas reconhece um ciclo comum, ideologicamente moderado e potencialmente integracionista em termos de política externa. Natanson (2008) reconhece que há algumas diferenças entre as esquerdas, que são mutáveis de acordo com o tema analisado. Por isso elas não podem ser generalizadas sob nenhum esquema. O autor se afasta desta forma da proposição de qualquer dicotomia, e destaca que a esquerda latino-americana governante (no singular) é “pós-revolucionária, pragmática, flexível, democrática, aberta às minorias, desideologizada” (p. 272). Já Stokes (2009) propõe que os governos de esquerda da região não significam um retrocesso no processo de globalização, mas, antes, uma tentativa de equilibrar a exposição aos mercados globais com um papel mais ativo dos Estados. Esta é a característica que une a todos. A classificação proposta mais adiante tem certo parentesco com a abordagem de Rouquié (mas também com todos os autores que valorizam o elemento “institucional”) e com a análise de Sader, nos termos propostos para compreender as diferenças entre as esquerdas da região. Ela agrega também a noção defendida por todos os que enfatizam as semelhanças, de que as esquerdas latino-americanas compartilham um “ciclo político comum”. Por enquanto, podemos resumir a profusão de posicionamentos da literatura especializada no quadro seguinte. Quadro 1:1: Literatura sobresobre as esquerdas latino-americanas atuais Quadro Literatura as esquerdas latino-americanas atuais Ênfase nas diferenças

Ênfase nas semelhanças

“Social-democratas” e “populistas” Castañeda (2006):”militante” Panizza (2006), Roberts (2008), Alcántara (2008) e Lanzaro (2009): “analíticos”, argumento institucional

Sader (2009): duas esquerdas, ambas “pós-neoliberais”

“Democratas” e “autoritários” Petkoff (2005) e Mires (2008: “militantes” “Institucionais” e “outsiders” Rouquié (2007), Lazo (2007), Reynoso (2008) e Cleary (2009): argumento institucional

Ramírez Gallegos (2006) e Saint-Upéry (2008): “ciclo político comum” acima de notáveis diferenças nacionais Natanson (2008): “esquerda governante” acima de diferenças em cada tema Stokes (2009): esquerda moderadamente globalizada

“Políticos” e “sociais” Garretón (2006) “Rentistas” e “não rentistas” Weyland (2009)

Vitorias na crise.indd 235

10/17/11 12:55 PM

236 / Vitórias na crise

7.3 – “Populismo”, “social-democracia” e “autoritarismo”: modos de (não) usar Antes que possamos seguir adiante, alguns esclarecimentos e observações se fazem necessários, mais especificamente quanto ao que considero o equívoco de se utilizar os conceitos de “populismo”, “socialdemocracia” e “autoritarismo” como núcleos analíticos para a tipificação das esquerdas latino-americanas atuais. Começo pelo “populismo”. Alguns autores o utilizam de forma “militante” (vimos o caso de Castañeda, 2006). Outros o utilizam de forma analítica, mas não explicam a razão para o emprego do termo (vimos o caso de Alcántara, 2008). São poucos os autores que propõem a utilização do termo e procuram explicar suas razões (um exemplo é Panizza, 2006). Seria mais simples utilizar o termo “populismo” enquanto categoria “histórica”, da maneira como foi aplicado nos debates sobre o subcontinente para compreender as dificuldades da passagem para a modernidade, que ensejaram experiências nacional-populares “clássicas” em substituição aos regimes oligárquicos. Nesse sentido, um exemplo paradigmático é a análise do populismo elaborada por Germani. Para ele, o fenômeno seria “um tipo particular de movimento social e político que é produto de uma modalidade assincrônica dos processos de transição da sociedade” (Domingues, Maneiro, 2007, pp. 31-32). O populismo teria sido uma solução (entre outras possíveis) para o equacionamento da anomia social e desarmonia derivadas de um acelerado e desigual processo específico de transição à modernidade. Assim empregado, o conceito teria limitações na sua aplicabilidade a experiências contemporâneas, e essa é a direção da crítica de Dirmoser (2005). Para ele, a categoria “perde todo o sentido quando é reduzida a um ou dois traços sobressalentes e é projetada a contextos totalmente diferentes” (p. 32). Mas o conceito nesse sentido também poderia ser considerado “fracassado”, pois “visa atestar negativamente a emergência e a participação de massas na política latino-americana ou mesmo o caminho latino-americano para a modernidade”, quando os “acontecimentos e os processos referidos a ele produziram democratização e avançaram o moderno nas sociedades latino-americanas” (Aggio, 2009, p. 150). No entanto, a categoria costuma ser empregada para nomear uma profusão de experiências, a começar pelos populismos “originais” do

Vitorias na crise.indd 236

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 237

final do século XIX, russo e norte-americano, chegando aos “neopopulismos” europeus e latino-americanos. Qual seria o ponto de conexão entre todos os processos políticos que foram definidos como populistas? Utilizada desta forma, a categoria perde grande parte do seu poder analítico. Além disso, é carregada em geral de grande normatividade negativa, sendo utilizada quase sempre para desqualificar os que (se supõe) merecem tal alcunha. Os debates mais gerais em torno do termo (quando não é utilizado com essa carga normativa) caracterizam-se por uma grande polissemia. Para tentar superar tais dificuldades, autores como Weyland (2001; 2003) e Freidenberg (2007) têm tentado evitar definições “substantivas” do conceito (como conteúdo econômico e social, ou uma modalidade de relação com classes definidas), buscando compreendê-lo enquanto estratégia política. O populismo se refere, neste caso, a uma relação entre líderes personalistas que exercem o poder em contato direto e desinstitucionalizado com seguidores desorganizados. Considero que a abordagem mais criativa é a de Laclau (2009)5, que consegue contornar a referida polissemia. Este autor se aproxima da compreensão do populismo enquanto modalidade política, sem um conteúdo “substantivo”. No entanto, sua abordagem está longe de ser “pragmática” e caracteriza-se por um grau maior de sofisticação6. Para Laclau, o populismo não é algo “perigoso”, que está nas margens da atividade política, mas faz parte do funcionamento de toda comunidade, estando inserido em toda ação política. Ele valoriza os aspectos “irracionais” do populismo vistos normalmente como “retóricos”, expandindo o papel da irracionalidade na realidade social a toda atividade política e resgatando a retórica como parte de uma “racionalidade social ampliada”. O que é considerado “vago” e “dicotômico” nas construções populistas constitui, para o autor, uma necessidade inerente à lógica política. Esta tem que ser vaga para absorver a complexidade e a heterogeneidade social, e deve ser dicotômica, pois a construção de identidades e a equivalência de demandas passam por uma operação simplificadora. Laclau parte da noção de “demanda”, assinalando que, em todo ato social, coexistiriam a lógica da diferença e a lógica da equivalência, numa tensão sempre presente. Num sistema institucional que fosse capaz de processar demandas separadamente, estas não encontrariam equivalência entre elas, seguindo como demandas particulares. Numa sociedade que demonstra dificuldades em processá-las (e

Vitorias na crise.indd 237

10/17/11 12:55 PM

238 / Vitórias na crise

todas na realidade encontram tais dificuldades, em diferentes graus), abre-se a possibilidade para o surgimento da lógica da equivalência, formando cadeias de demandas, constituindo a base para qualquer construção hegemônica alternativa. Na medida em que a referida tensão entre diferença e equivalência é insuperável, a totalidade é impossível. O lugar da totalidade é “vazio”, e só pode ser preenchido através de uma simplificação. Sem deixar de ser particular, uma parte (plebs) teria que assumir, através de uma “nominação” (“investidura radical”), a representação do todo (populus). Este processo nada mais é do que a construção de hegemonia no sentido gramsciano. A identidade que quer se tornar hegemônica é a parte que assume o papel do todo, tornando-se nesse processo o que o autor chama um “significante vazio”, não por não poder ser significado, mas por estar representando um espaço constitutivamente impossível. Resumindo, formar-se-ia uma equivalência entre partes, através da representação do todo por uma das partes. Esta operação é possível pela percepção de exclusão das partes em relação ao poder, que passa a ser então seu antagonista. Isso nada mais é do que a construção do sujeito “povo”, de uma identidade popular, que só pode se basear numa dicotomia social. Assim, mais que um tipo de movimento com conteúdo claro, um regime ou um conjunto de características descritivas, o populismo seria somente a ênfase posta numa lógica política presente em toda atividade social. É “simplesmente um modo de construir o político” (Laclau, 2009, p. 11). A análise de Laclau privilegia o “momento equivalencial” em detrimento do “diferencial”, enfocando o momento no qual a unificação de demandas dá lugar à cristalização do laço equivalencial enquanto tal, à valorização do “povo” em si. Apesar de ser somente uma forma de articulação (adaptável a qualquer conteúdo), Laclau evidentemente a vê como um elemento necessário à construção de hegemonias alternativas no “capitalismo globalizado”. Isso leva a uma discreta inversão da normatividade tradicional do conceito de populismo: o que poderia, pela natureza de sua abordagem, passar de “negativo” a “neutro”, se converte em ligeiramente “positivo”. Se o populismo nada mais é que uma ênfase, uma questão de grau ou proporção (e o próprio Laclau o reconhece em Natanson, 2008, p. 213), quando uma lógica relacional, presente na natureza mesma da política, torna-se efetivamente populista? Como é possível avaliá-lo, medi-lo? Toda construção política seria em parte populista. Um impossível ator não populista seria adepto da resolução puramente particular

Vitorias na crise.indd 238

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 239

de cada demanda pulverizada, num ambiente total hiperinstitucionalizado. Os atores menos populistas no mundo real talvez estivessem próximos de um liberalismo puro – o que talvez possa explicar porque o liberalismo político (e acadêmico) costuma ser o mais “alarmado” perante atores tidos como “populistas”. Por outro lado, todo ator que se pretenda popular e nacional (como todos os analisados aqui) poderia ser classificado sem maiores dificuldades como populista ou potencialmente populista. Isso retira a validez da noção de populismo de Laclau para nosso propósito, centrado na busca por uma unidade analítica essencial na diferenciação entre as esquerdas latino-americanas. No sentido dado por Laclau, nossas esquerdas poderiam ser todas mais ou menos populistas, com uma diferença apenas de grau. Assim, em qualquer sentido que se dê ao conceito, parece ser melhor deixá-lo de lado, na medida em que tende a ser “de má qualidade, polêmico e vazio” (Rouquié, 2007) 7. Já a noção de “socialdemocracia” não é carregada da mesma negatividade que o conceito de “populismo”, mas é acompanhada de grande polissemia. “Socialdemocracia” poderia ser entendida ao menos de três formas. A primeira seria histórica, referindo-se a um regime ou a uma regulação política, social e econômica típica da Europa Ocidental do pós-guerra, na qual seus partidos socialdemocratas8 se tornaram os principais defensores do keynesianismo e se afastaram progressivamente e oficialmente do marxismo, equivalendo, desta forma, aos Estados de Bem Estar Social do auge da segunda fase da modernidade em sua tradução europeia. Nesse sentido, seria difícil aceitar a utilização do termo em períodos, contextos e regiões distintas, devido à virtual impossibilidade atual da gestação de Estados regulados naqueles termos, aliada à crônica impossibilidade de se gestar tais Estados na periferia. Nesse sentido, qualquer esquerda governante latino-americana estaria muito longe de apontar na direção da construção de um Estado desse tipo. A segunda forma de se compreender o termo seria como definidor de um corpus programático específico, desenvolvido ao longo do século passado e assumido e compartilhado por distintas forças políticas espalhadas pelo globo, em geral associados à Internacional Socialista (IS). Os paradigmas originais para essa forma de atuação política teriam sido dados por Eduard Bernstein, ao qual já se fez referência no Capítulo 4. Tratava-se de um rótulo que, no princípio, nomeou uma pluralidade de partidos socialistas e trabalhistas, ainda no século XIX

Vitorias na crise.indd 239

10/17/11 12:55 PM

240 / Vitórias na crise

e, como seguiu sendo utilizado, passou a diferenciar, ao longo do século XX, parte dos setores democráticos e nacionais das esquerdas (basicamente europeias) dos setores então nomeados “comunistas”, ou seja, passou a nomear um dos lados em meio à divisão das esquerdas nesse período. O que ele significaria hoje, quando essa diferença central se esvaiu? O que seria exatamente uma doutrina socialdemocrata nos dias de hoje? Uma abordagem desse tipo levaria a enormes dificuldades, pois teríamos que delimitar o conteúdo de um corpo de ideias fluido e indefinido, ou simplesmente aceitar sem maiores discussões que as correntes políticas que assim se nomeiam compartilham algo mais além de um rótulo por vezes interessante. Quanto aos casos aqui abordados, nenhum deles se considera socialdemocrata – até porque a doutrina socialdemocrata (repito, algo difícil de ser definido) nunca teve grande impacto sobre as esquerdas do continente (conferir o Capítulo 3)9. O partido que mais se aproximaria disso seria o PSCh, inclusive tendo se filiado à IS. No entanto, trata-se de algo não reconhecido pela própria organização, pois, como se viu, uma das principais características dessas forças políticas é a pluralidade ideológica e identitária. A terceira forma seria mais abstrata, mais simples e mais útil, definindo “socialdemocracia” como um tipo específico de atuação política. Por exemplo, Panizza (2006) e Roberts (2008) parecem seguir esse caminho ao utilizarem o termo em seu sentido mais essencial para definir qualquer experiência de reforma gradual do capitalismo dentro dos moldes da democracia liberal na direção de mais justiça social e igualdade. É somente nesse sentido que poderíamos classificar as atuais forças de esquerda do continente como “socialdemocratas”. No entanto, a noção de “socialdemocracia” em tais termos perde muito de sua capacidade definidora, podendo ser aplicada a uma gama enorme de processos políticos, tanto no subcontinente latino-americano quanto no mundo. Ela serviria, por exemplo, para os regimes nacional-populares latino-americanos do século XX, mas também, para além de toda a retórica utilizada por algumas delas, a todas as forças de esquerda governantes no continente (todas elas até aqui reformadoras do capitalismo na direção de mais justiça social e igualdade, como Panizza o reconhece). Nesse sentido, ela não seria uma unidade analítica útil nesse debate. Considero então que somente neste último sentido o termo “socialdemocracia” poderia ser utilizável com alguma clareza. No entanto, sua contribuição não seria de grande monta, pois o que se quer é comparar e encontrar diferenças entre as esquerdas latino-americanas.

Vitorias na crise.indd 240

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 241

Finalmente, o tema da utilização da noção de “autoritarismo” (e de democracia em contraposição) para distinguir casos de esquerda no continente foi abordado anteriormente, portanto, passo por ele mais rapidamente aqui. Afirmei no Capítulo 4 que as esquerdas latino-americanas se integraram às suas democracias, e assim chegaram ao poder de forma “limpa”, por caminhos democráticos e legais, reconhecidos pela comunidade internacional. Até o momento, nos países nos quais elas foram reconfirmadas no governo, isso ocorreu mediante processos eletivos, com ampla liberdade de opinião e de oposição, sempre reconhecidas por organismos internacionais especializados. Desta forma, houve um reconhecimento, por parte dessas forças políticas, dos mecanismos da democracia representativa em sua definição “mínima”, como procedimentos de um tipo de regime político (definição apresentada por autores como Bobbio e Dahl, por exemplo, conferir o Capítulo 1). Assim, partindo das mesmas definições “mínimas” aceitas pela grande maioria dos autores, ficaria difícil considerar o autoritarismo como parâmetro central das divisões entre as esquerdas do subcontinente. Se recorrêssemos então a concepções de democracia que superassem a simplista dicotomia entre democracia “representativa” e “direta”, ironicamente algumas forças de esquerda consideradas autoritárias poderiam até se tornar em muitos aspectos as mais democráticas... Mas não levarei a argumentação tão longe. Prefiro apenas apontar a insuficiência contida na utilização da “acusação” de autoritarismo para classificar setores das esquerdas do subcontinente. Viu-se que as duas díades mais comuns – “socialdemocratas e populistas” e “democratas e autoritários” – por diversas razões não chegam ao âmago da questão, seja porque suas noções centrais se prestam a todos os casos ou a nenhum deles, seja porque elas carregam grande normatividade ou polissemia. Passo agora às diferenças entre as esquerdas do continente, que perpassam as quatro dimensões discutidas a seguir.

7.4 – No que as esquerdas se distinguem? Ao longo do livro vimos que existem diversos traços comuns às esquerdas latino-americanas contemporâneas. Mas é evidente que diferenças também podem ser encontradas, não apenas relativas a especificidades nacionais. Se elas forem significativas a tal ponto que

Vitorias na crise.indd 241

10/17/11 12:55 PM

242 / Vitórias na crise

permitam falar em distintos tipos de esquerda, deve evitar-se classificações normativas e termos carregados de negatividade. As classificações propostas deveriam superar a lógica dicotômica, em direção a uma concepção multidimensional e mutável, que não deixe de levar em conta nem o que as esquerdas latino-americanas têm em comum, nem a diversidade de experiências e a especificidade de cada caso. Para avançar um pouco mais nessa direção, serão sistematizadas, a seguir, algumas diferenças entre os casos, e a exposição será organizada a partir dos quatro temas desenvolvidos nesse trabalho. No interior de cada um desses quatro eixos temáticos, serão apresentados primeiramente os casos estudados de forma mais sistemática (PT, FA, PSCh e MAS). Na sequência (e tomando esses casos principais como referência) serão introduzidas as organizações discutidas no Capítulo 6 (MVR/PSUV, PAÍS, FSLN e FMLN). Adicionalmente, e apenas quando necessário, farei referência também a transformações recentes vivenciadas pelas organizações – lembrando que suas evoluções enquanto partidos de governo a princípio não constituem um objeto de estudo desse trabalho. Por último, ao fim de cada eixo analítico discutido, apresentarei contínuos, nos quais os partidos analisados se posicionam. São linhas espaciais desenvolvidas com base em resultados qualitativos. Por isso, não pretendem ter nenhuma precisão matemática, e sim expressar as diferenças entre os casos estudados, para facilitar o entendimento do leitor.

Organização: graus de institucionalização Vimos no Capítulo 2 que as estruturas organizativas das forças políticas mais representativas das esquerdas latino-americanas atuais diferem dos modelos apresentados tradicionalmente pelas esquerdas (“classistas de massas” e “leninistas”). No entanto, nota-se uma considerável pluralidade organizativa entre essas “novas esquerdas”. Para compreender tal pluralidade organizativa, introduzi o tema da institucionalização. Um fenômeno que pôde ser notado é a progressiva institucionalização dessas esquerdas. No entanto, apesar de esse movimento apontar para o mesmo caminho, elas apresentam graus de institucionalização distintos, seja pelo tempo de existência, seja por características de seus “modelos genéticos”, seja por suas relações com outros grupos organizados. Vimos que o MAS se destaca como o caso de menor institucionalização, em relação à FA, ao PSCh e progressivamente ao PT.

Vitorias na crise.indd 242

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 243

Segundo Panebianco (1988), se um partido retira sua legitimidade de organizações exteriores a ele (sindicatos, movimentos, instituições religiosas), é menor sua tendência a desenvolver instituições fortes. Esse é, em boa medida, o caso do MAS, formado a princípio como uma coalizão de movimentos sociais. O PT e a FA lograram superar progressivamente sua “origem externa” (sindicatos, movimentos sociais e organizações de esquerda no caso do primeiro, partidos no caso do segundo). Para Panebianco, uma baixa integração de circuitos internos (“sistematicidade”), a coesão da coalizão dominante e o controle exercido sobre as frações que integram o partido denotam baixa institucionalização. O MAS poderia ser enquadrado aqui. Esse era também, em parte, o caso do PT e do PSCh. Ao longo do tempo eles buscaram manifestamente uma maior estruturação e unidade. Além disso, há, entre as esquerdas latino-americanas, casos mais recentes de formação organizativa (o MAS constitui mais uma vez um caso exemplar). Finalmente, devese levar em conta que algumas organizações de esquerda na América Latina não se consideram partidos na acepção do termo (como, por exemplo, o MAS, na medida em que essa era uma concepção muito forte entre alguns de seus setores nos primeiros anos). Quanto ao tipo de liderança e sua autonomização em relação à organização (tema discutido também no Capítulo 2), é preciso ressaltar que todos os partidos analisados têm lideranças que não são comuns às tradições de esquerda. No entanto, algumas delas assumiram um grau de autonomia notável, e seu poder deriva por vezes mais de si próprias que de suas organizações (o que colaboraria para uma baixa institucionalização). Isso parece ocorrer especialmente com Evo Morales, até certo ponto com Luiz Inácio Lula da Silva, com Tabaré Vázquez e com Michelle Bachelet. Este fenômeno remete à formulação da “democracia de audiência” proposta por Manin (1997, conferir o Capítulo 2), que aponta a centralidade da relação entre votantes “flutuantes” e líderes autônomos, mediada apenas pela mídia de massas. Ao introduzir outros casos na análise (as organizações discutidas no Capítulo 6), podemos de forma aproximativa posicioná-los numa escala a partir do que foi aferido acerca dos quatro casos analisados mais sistematicamente ao longo do livro. Se posicionamos o MAS num estágio de menor institucionalização em comparação com seus pares, o MVR e o PAÍS devem estar próximos dele. Essas organizações apresentam uma baixa “sistematicidade”, não apresentam uma coalizão dominante estável (apenas um líder que estrutura grupos de

Vitorias na crise.indd 243

10/17/11 12:55 PM

244 / Vitórias na crise

poder instáveis a partir de suas relações), nem um controle estabelecido sobre seus grupos internos. Elas foram estruturadas recentemente, e o MVR se dissolveu, inclusive, para integrar o PSUV, ainda pouco estruturado. Finalmente, líderes “personalistas” se impõem a essas organizações desde o princípio, na medida em que estas foram construídas em torno daqueles. Isso é algo particularmente notável no caso do MVR/PSUV, o que explica seu caráter “movimentista”, mesmo agora que seu líder impõe a tarefa de transformá-lo num partido mais unificado, e também no caso do PAÍS. Em contrapartida, a FSLN e a FMLN poderiam se aproximar mais dos partidos institucionalizados – apesar da FSLN ter vivenciado um processo de relativa desinstitucionalização quando teve que deixar de ser um “partidoEstado”, e da crescente liderança de Daniel Ortega ter exercido um papel desestruturante sobre a organização. Assim, quanto ao tema da organização, é preciso destacar que as esquerdas latino-americanas têm como principal diferença (na qual atuam uma diversidade de causas) o grau de institucionalização vivenciado por cada uma delas. O gráfico apresentado abaixo traduz as distâncias entre os casos. Propomos que FA e PT são os mais institucionalizados, e PAÍS e MVR/PSUV, os menos. Os dois fazem esforços atualmente para se institucionalizar, e a transformação organizativa do segundo aponta nessa direção10. Mas a evolução recente dessas organizações não parece suficiente para modificar a proposição apresentada abaixo: Gráfico 1: 1:Grau Graude deinstituicionalização institucionalização Gráfico FA PT

FMLN PSCh

FSLN MAS

MVR/PSUV PAÍS

Identidade e ideologia: sistêmicos e antissistêmicos Como demonstrado no Capítulo 3, as esquerdas latino-americanas, de maneira geral, não têm mais uma ideologia “oficial” nem modelos externos a serem seguidos, permitindo sua “libertação simbólica” e facilitando sua busca por amplas bases sociais, “policlassistas” e “supraclassistas”. Nota-se que algumas dessas esquerdas vivenciaram um afastamento mais marcado em relação às referências socialistas

Vitorias na crise.indd 244

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 245

ou anticapitalistas. O PSCh, o PT e a FA parecem manter as referências socialistas em seus programas como forma de homenagear suas tradições e trajetórias. O MAS não se coloca claramente metas socialistas ou anticapitalistas. Em seus princípios, apontava para a possibilidade de uma superação da modernidade e demonstrava um afastamento tanto de referências capitalistas quanto socialistas. Mais tarde, na eleição de 2005 e durante seu governo, aponta para uma profunda e indefinida reforma do capitalismo boliviano. Tais diferenças não são exatamente decisivas, e na prática elas não têm levado até este momento a nenhuma experiência anticapitalista. O fator mais importante de distinção entre as esquerdas latino-americanas não passa exatamente pelo anticapitalismo. Tal diferença se traduz na autopercepção revolucionária ou “rupturista” que algumas delas têm de si mesmas e dos processos que elas encabeçam, que gira em torno da noção de “refundação” de suas sociedades e instituições. Essa visão diz respeito às esquerdas mais antissistêmicas antes da chegada ao poder ou menos integradas ao sistema político no qual entraram para concorrer a eleições. Para além do fato de essas forças se considerarem ou serem efetivamente anticapitalistas ou socialistas (isso até aqui não está claro), tal percepção resulta numa atuação nem sempre adequada às noções liberais de representação e atuação política. Como se sabe, a autopercepção revolucionária se baseia numa visão da política como luta e não como competição leal, o que leva por vezes a comportamentos e compreensões “majoritárias” e inadequadas aos limites e tempos das modalidades de representação, e a discursos (mas raramente a ações) violentos contra os “inimigos”. Assim, muitas vezes há certa tendência por parte da literatura especializada a classificar essas forças políticas como autoritárias. O que, no entanto, é bastante problemático, já que elas, para além da retórica, seguem atuando dentro dos limites básicos da democracia representativa. Com isso, a noção “revolucionária” do MAS passa pela “ruptura” com o passado, mas tal ruptura não se traduz obrigatoriamente num projeto claramente anticapitalista, configurando-se em novas instituições e num sistema político mais inclusivo. Por outro lado, os partidos mais integrados ao sistema político, que se veem como parte integrante da institucionalidade vigente, aceitando, sem releituras radicais, as práticas e tradições da política nacional, são mais “renovadores” ou “reformadores” que “rupturistas ou “refundadores”. O PSCh é o partido mais integrado, mais

Vitorias na crise.indd 245

10/17/11 12:55 PM

246 / Vitórias na crise

independente de referências rupturistas e classistas, propondo uma renovação da política, e de temas e programas já existentes e em execução anteriormente, sendo seguido de perto pelo PT e pela FA. A “autopercepção revolucionária” desenvolvida pelo MAS em sua chegada ao poder pode ser notada nesse mesmo período pelo MVR/ PSUV e no PAÍS. As três organizações responderam a uma grave crise político-institucional apresentando-se como outsiders, e propondo a superação do status quo através de uma “refundação” eminentemente política, sem que isso significasse propriamente um novo regime socioeconômico. O MVR/PSUV é o partido menos integrado ao antigo sistema político e à sua institucionalidade e o mais relacionado com simbologias “rupturistas”, revolucionárias. Os processos de chegada ao poder da FSLN e do FMLN se aproximariam mais dos casos que propuseram renovar ou reformular as políticas implantadas em seus países, movimentando-se no interior do sistema político-institucional vigente, ou seja, como insiders. Se considerarmos a evolução mais recente das organizações, o MVR/PSUV (e até certo ponto o PAÍS) tem defendido a construção de alguma forma vaga de “socialismo do século XXI”, em alguma medida inspirado nas velhas experiências do “socialismo real” (para além das deferências à experiência cubana). Essa inflexão segue indefinida e, por ora, não nega a proposição de que essas esquerdas diferem entre elas mais pela percepção do aspecto revolucionário do processo que encabeçam, do que propriamente por levarem a cabo transformações revolucionárias no sentido “clássico” do termo. Assim, até o momento uma tradução espacial do que foi dito aqui pode ser encontrada no gráfico a seguir: Gráfico 2: 2:Integração Integraçãoaoaosistema sistema Gráfico FSLN PSCh

FA PT

FMLN

MAS

PAÍS

MVR/PSUV

Democracia(s): integrações distintas Como discutido no Capítulo 4, as esquerdas latino-americanas se integraram à democracia “realmente existente” na região. Houve um reconhecimento por parte dessas forças políticas dos mecanismos da

Vitorias na crise.indd 246

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 247

democracia representativa em sua definição “mínima”. No entanto, o PT, a FA e especialmente o PSCh parecem nutrir uma “crença” mais forte nas instituições representativas da democracia, ainda que numa chave “social”, ou seja, de defesa de instituições democráticas mais inclusivas, participativas e com elementos de justiça social. Enquanto isso, o MAS demonstra uma aceitação mais “crítica” desses procedimentos, mesclada a elementos de democracia “comunitária” debatidos e experimentados especialmente por movimentos sociais que o integram. Vê-se que a diferenciação entre as esquerdas latino-americanas atuais não se daria, dessa forma, em torno da aceitação da democracia, mas em torno da sua participação, em chave mais ou menos crítica, no jogo democrático. Por um lado, as esquerdas que participam da democracia de forma mais crítica propõem a combinação das formas representativas (reformadas ou “refundadas”) com formas de democracia direta, participativa ou mesmo “comunitária”. Por outro lado, as esquerdas que se tornaram menos críticas defendem a importância das instituições da democracia representativa em si mesma, valorizando a concepção da democracia enquanto regime político, mas numa versão que não pode ser classificada como liberal em seu sentido mais “ortodoxo” e “puro”, na medida em que elas propõem combiná-la com instituições abertas à participação tanto do cidadão quanto de organizações da sociedade civil. Todas elas se localizariam em espaços intermediários entre a concepção “minimalista” de democracia e a concepção “substantiva” de democracia clássica. Algumas defenderiam o valor das instituições da democracia representativa em si mesma, da concepção da democracia enquanto regime político (mas numa versão que não seria liberal “ortodoxa”, na medida em que se defende a participação tanto do cidadão quanto de organizações da sociedade civil). Já outras participariam do jogo democrático propondo a combinação de formas representativas com formas “diretas” e “participativas”. Algumas forças políticas aceitam a institucionalidade democrática progressivamente sem maiores reservas, enquanto outras se integram a ela numa chave crítica, com esporádicas ações no limite da antiga institucionalidade que eles vêm transformando, e com a defesa mais contundente de elementos de democracia direta. Se introduzirmos os outros casos nacionais, veremos que o MVR/ PSUV e o PAÍS se aproximam do MAS. Essas organizações surgiram em meio a contextos nacionais de profunda crise e de colapso dos sistemas partidários, o que as levou a adequar-se à institucionalidade

Vitorias na crise.indd 247

10/17/11 12:55 PM

248 / Vitórias na crise

democrática “realmente existente” em seus países, questionando a realidade que a mesma institucionalidade permitiu sustentar no período anterior (o poder das “oligarquias”, a ingerência externa, os partidos tradicionais, a corrupção...). Elas buscaram em geral inserir-se nesses mecanismos para mudá-los assim que possível, contribuindo para o surgimento de assembleias e novas constituições na Venezuela, na Bolívia e (com polarização, mas com menor enfrentamento aberto) no Equador. No entanto, não podemos defini-las como “autoritárias” simplesmente por buscarem superar as instituições existentes. São essas organizações que, em geral, experimentam as mais fortes tentativas de combinar a democracia representativa com as concepções e os mecanismos da democracia direta, garantindo a realização de referendos, plebiscitos e a participação de organizações da sociedade civil e de poderes locais e comunais. Esta questão encontra-se, em certa medida, no cerne de algumas proposições alternativas que essas forças políticas pretendem desenvolver11. Por outro lado, a FSLN e a FMLN passaram por um processo de valorização dos aspectos “procedimentais” da democracia e das instituições existentes ao longo das últimas décadas, aproximando-se da trajetória vivenciada pelo PT, pela FA e pelo PSCh. Esse fenômeno foi mais intenso nos casos das esquerdas mais institucionalizadas e de mais longa trajetória. A participação em governos locais e em parlamentos exerceu um papel importante nessa mudança12. Por fim, é difícil avaliar como a atuação enquanto partido governista teria interferido nesse posicionamento. Em tese, ela poderia ter um efeito “moderador” sobre todas essas organizações, sem modificar em última instância o posicionamento relativo delas. Procuro traduzir o posicionamento das organizações analisadas no gráfico seguinte: Gráfico 3: 3: Integração Integraçãototal totalà àdemocracia democracia representativa representativa

PSCh

FA

FMLN

PAÍS

PT

FSLN

MAS

MVR/PSUV

(Anti)neoliberalismo: até que ponto? No Capítulo 5, viu-se que as esquerdas analisadas desenvolveram um posicionamento crítico em relação ao neoliberalismo, e que isso

Vitorias na crise.indd 248

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 249

foi um grande diferencial para que elas tenham mantido seu caráter “alternativo” e sua identidade num período de profunda crise global dos paradigmas das esquerdas. Mas, para além dessa semelhança, uma diferenciação pode ser proposta, a partir do “grau” de oposição ao neoliberalismo demonstrado – algo difícil de ser medido empiricamente, mas avaliável. Isso se relacionaria adicionalmente com a existência, em seus programas, de uma perspectiva mais radical e profunda, implicando na defesa de uma nova ordem e não apenas em propostas de reforma ou superação do neoliberalismo nos moldes implantados no subcontinente. É evidente que tais diferenciações dependeram, até certo ponto, de escolhas autônomas dos atores, mas também estão ligadas a outros fatores de ordem estrutural, como suas origens, as relações históricas com setores sociais organizados e a configuração de seus sistemas eleitorais e partidários, inclusive a sua relação com setores políticos tradicionais. Essas mesmas organizações que fizeram oposição ao neoliberalismo foram permeadas, de formas e com gradações distintas, pelo que queriam combater. Aqui é provável que sua maior profissionalização e institucionalização tenham exercido um papel importante. Partidos como o PT e a FA, que tiveram um processo de atuação parlamentar e governos regionais e locais num contexto adverso, parecem ter assumido valores mais próximos, senão do programa de reformas neoliberais das últimas décadas, ao menos do ideário liberal clássico e da concepção liberal de política e representação. A mudança do PSCh ocorreu ainda mais cedo e é mais evidente, passando de partido oficialmente marxista-leninista a partido que declara em seu programa ter influências ideológicas (entre outras) do marxismo, do cristianismo e do pensamento liberal. O PSCh se posiciona quase como um caso à parte, e isso se explica por diversos fatores, como a força exercida pela direita nos estertores da ditadura (e desde então); a participação dos socialistas na Concertação (com isso atuando dentro de certos limites programáticos); os “enclaves autoritários” legados pela ditadura e mantidos por um longo período; e o principal dos “enclaves” que ainda se mantém, o sistema binominal (conferir o Capítulo 1). De qualquer forma, todos esses partidos terminaram por propor, em certa medida, uma reforma do modelo neoliberal, tendo dificuldades em conceber e operar na prática uma superação de tal modelo.

Vitorias na crise.indd 249

10/17/11 12:55 PM

250 / Vitórias na crise

Por outro lado, temos as organizações que, mais do que propor reformar o neoliberalismo, apresentam uma perspectiva mais “heroica” de sua atuação, relacionada com a já referida “autopercepção revolucionária”. Elas manipulam outros elementos para além do antineoliberalismo, como o elemento étnico presente no MAS. Em geral, não se trataria, pelo menos no princípio, de um projeto de superação do capitalismo, mas de uma tentativa efetivamente de “refundação” do país em novos moldes, passando pela recomposição do Estado e das instituições como um todo, e igualmente do sistema político e partidário. Ao introduzirmos outros casos nacionais, vemos que o MVR/ PSUV e o PAÍS se aproximam claramente do padrão apresentado pelo MAS, devido ao caráter antissistêmico de ambos. Por outro lado, a FSLN e a FMLN não manipulariam elementos desse tipo, apresentando como diferenciação central (como o PT, a FA e o PSCh) a crítica ao neoliberalismo (progressivamente “moderada”). Eles proporiam um afastamento em relação à sua versão mais ortodoxa, ao mesmo tempo em que passam a aceitar alguns de seus pressupostos, como, por exemplo, a eficiência estatal, o equilíbrio das contas públicas, o papel do mercado e a abertura em relação ao mercado mundial. Vale dizer que mesmo os casos considerados mais “radicais” aceitaram (ao menos tacitamente) elementos comumente associados ao corpus teórico neoliberal. No entanto, ainda assim defendo que é possível encontrar diferenças efetivas de “grau” na crítica ao neoliberalismo, algo aprofundado pela presença de outros elementos mais estruturais na busca de alternativas a ele. Por fim, quanto à evolução recente, nota-se que, no caso venezuelano, depois de anos de governo a superação do sistema global de relações socioeconômicas (anticapitalismo) começou a ser apontada como meta, ainda sem grande clareza. Essa proposta de atuar com o horizonte de superação do capitalismo (mais que superar o neoliberalismo), como era a tradição da maioria das esquerdas, poderia progressivamente afastá-lo de seus pares da região. Por ora, podemos traduzir o que foi dito em um gráfico no qual, mais uma vez, encontramos nas extremidades o PSCh, defendendo um programa de reformas ao modelo chileno (basicamente propondo uma transição a um regime de bem-estar), e o MVR/PSUV, defendendo sem clareza um “socialismo do século XXI”, que guarda alguns pontos de contato com o socialismo do século XX.

Vitorias na crise.indd 250

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 251 Gráfico neoliberalismo Gráfico 4: 4: Moderação Moderaçãodadacrítica críticaaoao neoliberalismo FMLN FA PSCh

PT

PAÍS FSLN

MAS

MVR/PSUV

7.5 – Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas Depois de sistematizadas as diferenças entre as organizações de esquerda latino-americanas, podemos propor uma tipificação. Na seção anterior partiu-se das quatro organizações analisadas ao longo de todo o livro (PT, FA, PSCh e MAS) para agregar a elas as quatro discutidas no Capítulo 6 (MVR/PSUV, PAÍS, FSLN e FMLN). Viu-se ao longo desse trabalho que o que as esquerdas latino-americanas contemporâneas têm em comum é pelo menos tão significativo quanto o que as distingue. Por isso, as classificações propostas não podem estabelecer divisões profundas e definitivas entre os casos. Devem posicioná-los em contínuos (como foi feito na seção anterior), ou num único esquema gráfico (como será feito adiante), o que permite inclusive mudanças de posicionamento ao longo do tempo. Preliminarmente, deve-se destacar a dificuldade representada pelos casos que não podem ser classificados como partidos com facilidade. Isso ocorre até certo ponto com o MAS (conferir o Capítulo 2). Esta característica aparece de forma mais nítida no MVR/PSUV (pelo menos até recentemente) e no PAÍS. A proeminência de uma liderança sobre uma organização flexível e com pouca institucionalidade, fundada originalmente com o objetivo de sustentar o líder num projeto eleitoral, configura organizações posicionadas, pelo menos em seus primeiros anos, no limite entre partido e movimento. Isso oferece mais espaço para movimentações imprevistas e mudanças de rota por parte de seus líderes (conferir o Capítulo 6). Para compreender as diferenças entre essas organizações, é importante levar em conta antes de tudo as distintas situações ambientais vividas em cada caso, que influíram nas transformações ocorridas ao longo do tempo. Para isso, retomo o debate em torno das “funções” partidárias (iniciado no Capítulo 1). Com base na metodologia proposta por Kitschelt (1989), pode-se argumentar que alguns

Vitorias na crise.indd 251

10/17/11 12:55 PM

252 / Vitórias na crise

partidos chegaram ao poder numa chave menos contestatória, tendo que aprofundar seu processo “adaptativo”. Para usar a terminologia do autor, isso teria se dado com a progressiva hegemonia interna de setores “pragmáticos” aliados aos “lobistas”, em detrimento dos “ideólogos”. Outros partidos mantiveram uma disputa equilibrada entre os diferentes setores internos, num “ambiente” mais hostil e refratário a novas forças. Nestes países, o neoliberalismo deu sinais mais rápidos e dramáticos de esgotamento, aliado à crise de suas instituições e sistemas partidários, monopolizados por partidos tradicionais. Neste contexto, tais partidos puderam chegar ao poder numa chave mais contestatória. Assim, a transformação notada no PSCh, no PT e na FA pode ser vista como o trânsito de um papel mais ideológico e radical a uma atuação mais pragmática e integrada ao sistema partidário. Tal processo foi notável até a chegada ao poder, mantendo-se posteriormente. Por outro lado, percebe-se uma leve moderação do MAS em seu curto caminho até o poder, bem como um grau maior de indefinição (conferir o Capítulo 2). Pode ser sugerido que a FSLN e a FMLN vivenciaram processo semelhante ao dos primeiros. Quanto ao MVR e ao PAÍS, eles chegaram ao poder rapidamente, sem a possibilidade ou a necessidade de desenvolver qualquer tipo de moderação. O primeiro apresenta uma tendência mais perceptível à radicalização nos últimos anos, em especial na sua recente transformação em PSUV (conferir o Capítulo 6). Outra discussão a ser retomada aqui é a da tipologia partidária (apresentada no Capítulo 1). Viu-se que, a partir dos modelos de organizações partidárias propostos por Gunther e Diamond (2003), pode-se considerar que o PT, o PSCh e diversos setores da FA teriam originalmente características de partidos de massas, do tipo “classista de massas”. Atualmente, sem perder características desses modelos originais, eles se aproximariam do tipo “eleitoralista programático”, que corresponde a partidos que enfatizam o âmbito eleitoral sem perder seu conteúdo programático, diferenciando-se, portanto, do modelo “catch-all”. Já o MAS reuniria majoritariamente elementos movimentistas de “esquerda libertária” – como os aspectos pretensamente “pós-modernistas” de seu discurso, uma organização fluida e horizontal – com elementos provenientes do modelo “étnico-congressual”, que se refere a uma aliança de grupos étnicos defendendo a unidade nacional (conferir o Capítulo 2).

Vitorias na crise.indd 252

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 253

A FSLN e a FMLN, originalmente organizações leninistas com alguns elementos movimentistas, se aproximariam atualmente do mesmo modelo “eleitoralista programático”, enquanto no caso do primeiro haveria uma possível proximidade com elementos “catchall” (Martí i Puig, 2008; 2009). Já o MVR/PSUV e o PAÍS apontariam para o modelo “personalista” (organização concebida para sustentar pretensões eleitorais e governamentais de seu líder), com certa influência movimentista (conferir o Capítulo 6). Assim, uma tipificação organizativa desses partidos atualmente (recordando que não devem ter se diluído de todo os elementos de seus modelos originais) pode ser resumida no quadro a seguir. Nota-se que as diferenças em torno das funções partidárias se manifestam de forma semelhante às tipologias. Quadro 2: Tipologia organizativa das esquerdas governantes latino-americanas Tipos de partidos

Partidos

Eleitoralista programático

PT, FA, PSCh, FSLN, FMLN

Movimentalista / Étnico-congressual

MAS

Personalista

País, MVR/PSUV

Fonte: Gunther, Diamond, 2003; elaboração própria.

É chamativo que nos quatro eixos analíticos discutidos na seção anterior, as organizações consideradas se posicionam em escalas semelhantes, com poucas variações. É interessante observar também que as organizações classificadas agora como “eleitoralistas programáticas” se posicionam sempre agrupadas num extremo dos gráficos, enquanto as classificadas como “personalistas” assumem posições opostas, no outro extremo dos gráficos, e que a organização “mista”, mais complexa, classificada como mescla de “movimentista” e “étnico-congressual”, assume um posicionamento próximo às últimas, mas até certo ponto “mediano”. Além disso, é notável como essa tipologia partidária pode ser associada a mudanças de “funções” partidárias e de hegemonia interna dessas organizações, que se relacionam, por sua vez, a variações do meio ambiente no qual estão inseridas. Toda essa notável semelhança de posicionamentos permite classificar as esquerdas latino-americanas. Essas esquerdas possuem muitos pontos de contato, como foi dito. Para além dos aspectos mais evidentes (são esquerdas, latino-americanas, governantes, contemporâneas),

Vitorias na crise.indd 253

10/17/11 12:55 PM

254 / Vitórias na crise

elas encontram-se basicamente afastadas de modelos organizativos e referenciais “clássicos”, porque aceitam participar e governar na democracia e porque são críticas do neoliberalismo. Assim, são integrantes de um mesmo grupo, que pode ser dividido em dois subgrupos. Essa assertiva pode ser traduzida na ilustração seguinte: 5: Subgrupos das esquerdas latino-americanas GráficoGráfico 5: Subgrupos das esquerdas latino-americanas

Esquerdas latino-americanas

FMLN PSCh

PT FSLN

MAS

MVR/PSUV

FA

PAÍS

Esquerdas “renovadoras”

Esquerdas “refundadoras”

Assim, vê-se que as esquerdas latino-americanas enquanto tais constituem um único “conjunto”, mas elas se dividem em dois “subconjuntos”: as “renovadoras” e as “refundadoras”. As primeiras são caracterizadas por um grau maior de institucionalização, maior integração ao sistema político, aceitação das instituições da democracia representativa na forma “realmente existente” em seus países e pela crítica moderada ao neoliberalismo. As segundas são caracterizadas por um nível mais baixo de institucionalização, menor integração ao sistema político, pela integração crítica às instituições da democracia representativa e pela crítica radical ao neoliberalismo. As primeiras pretendem “renovar” a política e o governo de seus países com uma abordagem mais igualitária, estatizante e ética. As segundas propõem “refundar” suas institucionalidades, seus sistemas partidários e o Estado como um todo, superando mais radicalmente o status quo vigente no momento em que chegaram ao poder, associado geralmente a um colapso dos sistemas partidários e institucional.

Vitorias na crise.indd 254

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 255

Mais uma vez, é evidente que isso não se explica apenas pelo voluntarismo dos agentes sociais. O que fica claro é que os partidos que se inseriram em estruturas institucionais relativamente estabilizadas tenderam a uma maior institucionalização, a uma moderação e à valorização da representação, realizando (num tempo relativamente curto) trajetórias em direção ao centro político para captar votos e apoios. Nos países com sistemas partidários mais estáveis, nos quais os partidos continuam sendo os condutores dos processos eleitorais, as esquerdas desenvolveram organizações mais estruturadas, competitivas e integradas “de forma a evitar o transbordamento do conflito político e contribuir para a sua moderação” (Anastasia, Ranulfo, Santos, 2004, p. 35). Enquanto isso, partidos e movimentos recémfundados (como o MVR e o PAÍS) ou de curta trajetória (como o MAS) se aproveitaram de institucionalidades em colapso para construir maiorias, sem a necessidade ou a possibilidade de encararem um processo de institucionalização, de moderação ou de internalizarem mais fortemente os valores hegemônicos da democracia representativa. Adicionalmente, sobretudo o MAS, mas também o PAÍS, chegaram ao poder no auge da iniciativa de movimentos sociais, ainda no bojo de longos ciclos de protesto, enquanto os movimentos sociais e sindicais brasileiros, por exemplo, entraram num ciclo de retração e defensiva a partir dos anos 1990, certamente influindo na moderação do PT, que chegou ao governo nacional mais tarde. Assim, diferenças estruturais e temporalidades distintas são importantes fatores explicativos das diferenças entre essas esquerdas. Essa classificação não pretende ser uma reprodução da velha dicotomia entre esquerda “reformista” e “revolucionária”. Com efeito, por um lado todas as esquerdas analisadas são “reformistas” no sentido tradicional do termo, na medida em que todas chegaram ao poder pela via legal e, de uma forma ou de outra, governam dentro dos limites democráticos e, por outro, elas não caminham com clareza (até aqui) na direção da superação do sistema econômico-social. Ambos os modelos de esquerda no continente se traduzem em processos de reforma. Mas alguns propõem reformas sem questionar e superar em definitivo o neoliberalismo, enquanto outros propõem reformas articuladas com a meta de refundar o “Estado em torno da esfera pública, de modo a possibilitar a constituição de um novo bloco de forças no poder e o avanço na resolução da crise hegemônica na direção pós-neoliberal” (Sader, 2009, p. 129).

Vitorias na crise.indd 255

10/17/11 12:55 PM

256 / Vitórias na crise

A classificação proposta se afasta das dicotomias defendidas por grande parte da literatura, pois considera que, num sentido mínimo, todas elas são democráticas, e recusa, por outro lado, o conceito de populismo. Acredito que esses não constituem eixos apropriados para estruturar uma tipologia dessa natureza, sendo mais interessante frisar a gestação de projetos distintos, que se explicam pelas diferenças entre os atores e organizações, mas também por conjunturas, institucionalidades e temporalidades distintas. A diferenciação proposta é, portanto, mais descritiva do que normativa e possui um caráter dinâmico. Ela parte de bases distintas e reconhece as semelhanças entre os casos. Além disso, assume somente em parte os argumentos “institucionais” endossados por boa parte dos autores que discutem o tema, e não oferece argumentos para refutar a priori a explicação “cognitivo-psicológica” de Weyland (2009), ou a mais sociológica de Garretón (2006). A diferenciação proposta aqui – sem concordar com análises que destacam exclusivamente as semelhanças entre os casos ou defendem a incapacidade de compará-los – procura, no entanto, destacar que as esquerdas governantes latino-americanas integram subconjuntos potencialmente mutáveis (o que se traduz graficamente pela interseção dos dois subconjuntos), e não conjuntos isolados e estancados. No primeiro subgrupo, o PSCh é a organização que mais se afasta do segundo subgrupo, o que coincide com o fato de este partido ser, entre os casos comparados, o que mais se aproxima do que, por convenção, se considera a “centro-esquerda” do espectro político. Já a FSLN é a que se aproxima mais do segundo subgrupo, por suas relações internacionais com os partidos que o integram, e por sua retórica ligeiramente mais radical que a de seus pares mais próximos. No segundo subgrupo, o MAS é o que mais se aproxima do primeiro subgrupo, por ser o que experimentou com maior profundidade um processo de institucionalização e moderação antes de chegar ao poder. Já o MVR/PSUV é o que se afasta com mais força do primeiro subgrupo.

7.6 – Conclusão Nesse capítulo, abordei primeiramente, em linhas gerais, o “estado da arte” do debate em torno das esquerdas latino-americanas – que aponta geralmente para tentativas de construção de tipologias classificatórias. Procurei intervir criticamente neste debate, recusando algumas das premissas e dos conceitos geralmente utilizados.

Vitorias na crise.indd 256

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 257

Na sequência, apresentei com maior sistematicidade as diferenças entre as esquerdas, notadas preliminarmente ao longo do trabalho. Finalmente, a partir daquelas críticas e das diferenças encontradas entre os distintos casos (e adicionalmente de análises organizativas desenvolvidas anteriormente e aqui retomadas), propus uma tipologia das esquerdas que chegaram ao poder na América Latina contemporânea, apontando para o núcleo diferencial entre elas. Nesse capítulo procurei, em primeiro lugar, expandir os limites temporais da análise. Se os capítulos anteriores enfatizavam o período que se encerra com a chegada ao poder, a questão proposta agora subentende a consideração das trajetórias dos partidos analisados até o momento em que se tornaram forças governistas. Assim, como fica evidente, o modelo proposto leva em conta as suas metas enquanto foram oposicionistas, mas também diz respeito a suas trajetórias enquanto partidos de governo. Assim, ele não constitui um mero “instantâneo” dessas organizações em sua chegada ao poder, mas informa efetivamente sobre suas trajetórias mais gerais. O modelo apresentado possibilita, desta forma, uma abertura para as modificações diacrônicas, podendo vir a sofrer adequações mais adiante, de acordo com transformações ocorridas no subcontinente. Em segundo lugar, a partir dos quatro primeiros casos apresentados, que mereceram uma análise mais aprofundada ao longo do livro, foram posicionados os quatro casos introduzidos no Capítulo 6, de acordo com as semelhanças que estes guardariam em relação ao PT, à FA, ao PSCh e ao MAS. Assim, procurei sugerir uma tipificação potencialmente “geral”, capaz de abarcar a totalidade dos casos surgidos até aqui. Evidentemente, o que foi dito apresenta certas limitações, no que toca à FSLN, à FMLN, ao MVR/PSUV e ao PAÍS, uma vez que não trabalhei com fontes primárias nestes casos, ao contrário dos casos principais, analisados mais sistematicamente. A princípio, foram notadas diferenças importantes entre o PT, a FA e (num extremo) o PSCh de um lado, e o MAS do outro. Finalmente, sugeri que a FSLN e a FMLN se aproximariam dos primeiros casos, enquanto o MVR/PSUV e o PAÍS se assemelhariam ao segundo. Trata-se evidentemente de algo que deverá ser mais testado em futuros trabalhos.

Vitorias na crise.indd 257

10/17/11 12:55 PM

258 / Vitórias na crise

Notas

1

Tal distinção entre classificações mais “militantes” e “analíticas” deve ser feita para a compreensão das diferenças de fundo entre elas.

2

Já Alcántara (2008) parece estar mais interessado em comprovar empiricamente a existência de uma esquerda “social-democrata” e outra “populista”, e adere aos termos sem maiores discussões. O mérito de seu trabalho é trazer dados que apontam efetivamente para uma diferenciação entre as esquerdas do subcontinente. Considerando que esses são países presidencialistas e que os presidentes possuem relativa autonomia, os líderes mais à esquerda de seus partidos coincidiriam com os considerados “populistas” pela literatura, seriam os mais personalistas e efetivamente polarizariam a vida política. Enquanto isso, os líderes que se posicionam na mesma posição ideológica de seus partidos ou à sua direita coincidiriam com os casos considerados “social-democratas”.

3

Trata-se de uma “categoria descritiva, que designa diferentes graus de negação do modelo, mas não ainda um novo modelo, e, ao mesmo tempo, um conjunto híbrido de forças que compõem as alianças sobre as quais se baseiam os novos projetos” (p. 64).

4

Entre essas experiências de direita, como Colômbia, México, Peru e Costa Rica, o autor agrega o Chile que, por ser defensor convicto da abertura comercial global, favoreceria as pretensões “imperiais” norte-americanas. O posicionamento do Chile na análise de Sader é mais importante do que parece, pois demonstra que nela a ênfase recai sobre o antiimperialismo, o que é coerente com o leninismo do autor.

5

O autor esteve às voltas com o tema desde os anos 1970 (por exemplo, conferir Laclau, 1978). No entanto, discuto apenas sua última formulação, por ser a mais sistemática e completa.

6

Entre os autores analisados anteriormente, a abordagem de Panizza (2006) é a que mais se aproxima da de Laclau. Para ele, “o populismo é um modo de identificação política disponível a todo ator político que opera numa formação discursiva na qual a noção da soberania popular é seu corolário inevitável, o conflito entre os poderosos e os excluídos são elementos centrais de seu imaginário político” (p. 11). Trata-se de uma operação política, a construção de um povo excluído em oposição a um status quo, que geralmente tem chances de emergir num contexto de forte crise e esgotamento da capacidade das instituições para processar demandas populares.

Vitorias na crise.indd 258

10/17/11 12:55 PM

Para uma tipologia das esquerdas latino-americanas atuais / 259 7

O próprio Laclau reconhece os problemas do debate em torno do “populismo”, e seu objetivo é superá-los. Para ele, esse conceito está na “metade do caminho entre o descritivo e o normativo (...). Uma característica persistente na literatura sobre populismo é a reticência – ou dificuldade – para dar um significado preciso ao conceito. A claridade conceitual – melhor nem falar de definições – está visivelmente ausente deste campo. Na maioria dos casos, a compreensão conceitual é substituída pela invocação a uma intuição não verbalizada, ou por enumerações descritivas de uma variedade de ‘características relevantes’”(p. 15).

8

Anderson (1996) vai mais longe, destacando que esses Estados existiram apenas na Europa do Norte. O autor nomeia os partidos majoritários das esquerdas desses países como “social-democratas”, enquanto denomina os partidos de esquerda da Europa Meridional “eurossocialistas”.

9

A partir dos anos 1980, houve um aumento no número de partidos latino-americanos que passaram a se declarar social-democratas, alguns deles aderindo à IS. Mas o que haveria em comum entre a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) peruana, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a Ação Democrática (AD) venezuelana e o Partido Libertação Nacional (PLN) costarriquenho?

10 Mas

o fazem enquanto partidos governantes e dentro da nova institucionalidade que eles mesmos constroem. Isso provavelmente não possui o mesmo significado analítico que a institucionalização vivida pelas organizações antes de chegarem ao governo, enquanto partidos oposicionistas.

11 Aqui

também a relação mais intensa com movimentos da sociedade civil (como no caso do MAS) deve favorecer a valorização de tais concepções e mecanismos.

12 A

participação nas instituições e a possibilidade clara de chegar ao poder teriam um peso considerável. Elas teriam moderado inclusive o MAS, que era mais radical e étnico em seus primeiros anos de existência.

Vitorias na crise.indd 259

10/17/11 12:55 PM

260 / Vitórias na crise

Vitorias na crise.indd 260

10/17/11 12:55 PM

Considerações finais / 261

Considerações finais

Apresentarei a seguir uma sistematização das ideias mais importan-

tes desenvolvidas ao longo do livro, tratando de todos os casos sem discriminá-los. Em segundo lugar, farei uma avaliação dos “governos progressistas” e das perspectivas das esquerdas latino-americanas. Do Capítulo 2 até o 6, procurei compreender (questão proposta no Capítulo 1) como as esquerdas chegaram ao poder em grande parte dos países latino-americanos na última década. Para isso, procurei identificar traços compartilhados por elas. No Capítulo 2, vimos que os mais importantes representantes das esquerdas do subcontinente se afastaram dos tradicionais modelos organizativos associados a esse quadrante político, seja o modelo “classista de massas”, tradicionalmente associado aos setores de centro-esquerda ou de esquerda democrática, seja o modelo “leninista”, associado às correntes comunistas. Além disso, vimos que elas vivenciaram processos de institucionalização, tendo, no entanto, chegado ao poder em estágios distintos desse processo. Algumas delas vivenciaram processos mais “completos”, após mais ou menos longas trajetórias em meio a sistemas partidários relativamente estabilizados – como o Partido dos Trabalhadores (PT) do Brasil, a Frente Ampla (FA) do Uruguai e o Partido Socialista do Chile (PSCh). Outras não vivenciaram essa experiência em toda a sua plenitude, mantendo-se, em larga medida, desinstitucionalizadas – como o Movimento ao Socialismo (MAS) da Bolívia. Além disso, se tais forças se afastaram de modelos organizativos “clássicos”, elas não o fizeram na direção de um único novo modelo. Assim, ao distanciar-se de formatos organizativos pouco adaptáveis à modernidade contemporânea (por serem pouco flexíveis e calcados na mobilização coletiva e em identidades em desagregação), elas assumiram formas diversas (até certo ponto “híbridas”), de acordo com as realidades locais, não mais através de uma “fórmula” universal. A partir dessa constatação e da dimensão da institucionalização, propus algumas chaves analíticas desenvolvidas pela literatura especializada

Vitorias na crise.indd 261

10/17/11 12:55 PM

262 / Vitórias na crise

para demonstrar, compreender e classificar a pluralidade de formas organizativas e de metas expressa por essas esquerdas. No Capítulo 3, mostrei que as esquerdas do subcontinente se afastaram dos modelos ideológicos tradicionais nesse campo político, notadamente das experiências do “socialismo real” e do marxismo(-leninismo) enquanto ideologia “oficial”, em certo sentido “nacionalizando-se”. Isso permitiu o afastamento em relação a referências em franco colapso e a adequação à crescente fluidez e heterogeneidade social contemporânea. Com isso, configuraram-se diversas possibilidades, como a abertura às mais diversas referências progressistas do PSCh, ou a fusão de indigenismo e nacionalismo popular do MAS. Abriu-se, acima de tudo, a possibilidade para a ampliação dos setores sociais que essas esquerdas pretendem representar, aumentando potencialmente suas bases sociais e eleitorais. Notou-se, efetivamente, um crescente pluriclassismo e supraclassismo entre elas. Além da ampliação dos setores potencialmente aliados, com a inclusão de camadas médias e de setores “produtivos” da burguesia, é notável o recurso a referências como “pobres”, “cidadãos”, “povo” ou “nação”. No entanto, ao final desse capítulo, afirmei que partidos atuando em contextos mais estabilizados e menos críticos teriam assumido uma identidade “sistêmica”, enquanto organizações atuantes em contextos críticos, de colapso institucional ou forte mobilização teriam se posicionado como “antissistêmicos”, contra as instituições e os partidos tradicionais. No Capítulo 4, procurei demonstrar que, num sentido “mínimo”, essas esquerdas são democráticas, afastando-se da imagem comumente associada a esquerdas de todos os quadrantes, em especial as do subcontinente. As esquerdas latino-americanas atuais aceitaram a democracia em seus aspectos representativos, entraram na disputa democrática, e foram aceitas como adversários pelos seus contendores (algo difícil até pouco tempo na região). Assim, essas esquerdas se adaptaram à democratização vivenciada no subcontinente, podendo aproveitar-se de suas possibilidades – que se mostraram, ao fim e ao cabo, mais frutíferas do que alguns de seus setores críticos mais recalcitrantes tendem a admitir1. Mas, nesse capítulo, foi possível notar também que, se algumas delas se aproximaram ao longo de suas trajetórias do que se poderia considerar a visão mais comum e “minimalista” de democracia (ainda que não de todo), outras demonstraram uma postura mais crítica a tal visão, aproximando-se de projetos de

Vitorias na crise.indd 262

10/17/11 12:55 PM

Considerações finais / 263

democracia “direta”, “participativa” e “comunitária” – como o MAS. Mais uma vez, os partidos que atuam em contextos estáveis seriam os mais “adaptados”, enquanto aqueles que vivenciam situações críticas seriam os menos “adaptados”. No Capítulo 5, destaquei o antineoliberalismo dessas esquerdas, o que lhes permitiu preservar seu caráter alternativo e oposicionista em meio às intensas reformulações e movimentações descritas. Se essas esquerdas são distintas, em diversos pontos, de tradições desse campo político, era de se esperar que houvesse o risco de afastamento em relação àquela identidade como um todo, acarretando a perda de bases sociais populares e a conquista de novos setores heterogêneos. O antineoliberalismo teria servido como um “dique de contenção”, impedindo que se estabelecesse um jogo de “soma zero”, garantindo-lhes o papel de oposição à esquerda no espectro político, ao mesmo tempo em que antigas estruturas, valores e identidades eram transformados nos partidos de mais longa duração, ou simplesmente não se manifestavam entre os de formação recente. No entanto, viu-se que o antineoliberalismo “arrefeceu” pouco antes que os partidos de mais longa trajetória e inseridos em contextos estabilizados chegassem ao poder, enquanto se manteve mais intenso e associado a uma “refundação” naqueles oriundos de países que vivenciavam crises estruturais. No Capítulo 6, retomei os argumentos apresentados nos capítulos anteriores acerca dos fatores que explicariam a chegada das esquerdas ao poder nos quatro casos nacionais analisados a princípio, procurando testá-los em outros quatro casos. Foram eles: a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) da Nicarágua, a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) de El Salvador, o Movimento V República, mais tarde Partido Socialista Unido da Venezuela (MVR/PSUV) e o Pátria Altiva e Soberana (PAÍS) do Equador. Com esse exercício, procurei demonstrar a utilidade desses argumentos para uma compreensão mais ampla da pluralidade de fenômenos nacionais associados à “onda” de esquerda que percorreu a América Latina na última década2. Finalmente, no Capítulo 7 (questão proposta no Capítulo 1) procurei verificar se haveria diferenças suficientes entre essas esquerdas que justificassem a proposição de uma tipologia, largamente debatida na literatura especializada. Defendi que as diferenças sistematizadas permitem a delimitação de dois projetos de esquerda. Ambos, no

Vitorias na crise.indd 263

10/17/11 12:55 PM

264 / Vitórias na crise

entanto, integrantes de um “ciclo comum”, crítico ao neoliberalismo, mas sem lograr superá-lo de todo até o momento, nem propor a construção de alternativas gerais ao capitalismo. Apontei a existência de esquerdas que se apresentam como “renovadoras” de suas sociedades e instituições, e de esquerdas que se propõem “refundadoras”. As primeiras se adequaram a sociedades mais desmobilizadas e a instituições relativamente estáveis, enquanto as segundas encontraram espaço em sociedades com crises estruturais e com instituições em colapso. Entre as primeiras, apontei o PT, a FA, o PSCh, a FSLN e a FMLN. Entre as segundas, agrupei o MAS, o MVR/PSUV e o PAÍS. O objetivo era propor uma diferenciação baseada em elementos distintos daqueles que servem de base para a maior parte das tipologias desenvolvidas pela literatura (e analisadas nesse mesmo capítulo). Note-se que as crises econômicas vividas no Chile, no Brasil e no Uruguai – antes da chegada ao poder do PSCh (passando de força secundária a principal da Concertação), do PT e da FA – intensificaram o processo de moderação desses partidos, e não o contrário. Logo, quando falo de “crise” refiro-me a um movimento estrutural, a uma crise “orgânica”, na qual se manifesta uma crise de direção políticosocial, algo notado na Bolívia, na Venezuela e no Equador. Nesses países, o modelo neoliberal e o bloco de forças que o sustentava foram fortemente contestados, o que se observa, em alguma medida, por todo o subcontinente. Mas certamente não é somente com o fracasso do modelo neoliberal que essas crises se relacionam, é também com o esgotamento de formas de organização estatal, dominação social, baixa inclusão político-social e monopólio partidário, expressos em mais largas durações. Nesses países, constata-se uma “crise de hegemonia”, uma “crise do Estado em seu conjunto” (Gramsci, 2002, v. 3, p. 60), que está longe de ser solucionada, podendo se estender por um longo período. Com isso, a possibilidade de hegemonia neoliberal vê-se reduzida, e assume primazia “o momento da dominação, no qual o Estado e a coerção têm um papel tão central a cumprir” (Domingues, 2009, p. 192). Insisto aqui no abandono da concepção de “populismo”. Alternativamente, na Venezuela e no Equador, o “empate catastrófico” de forças sociais e políticas, surgido no bojo da crise hegemônica, teria resultado, até o momento, em experiências de lideranças “heroicas” que constituiriam formas de “cesarismo progressista” – com certos elementos “jacobinos” em sua manifestação. Segundo

Vitorias na crise.indd 264

10/17/11 12:55 PM

Considerações finais / 265

Gramsci, “o cesarismo é progressista quando sua intervenção ajuda a força progressista a triunfar, ainda que com certos compromissos e acomodações que limitam a vitória” (2002, v. 3, p. 76). Já na Bolívia, apesar de certos aspectos de “arbitragem” contidos também na liderança de Morales e na atuação do MAS, os novos grupos sociais e políticos no poder são os que mais poderiam ser tratados como construtores em potencial de uma nova hegemonia e consenso, configurando um novo “bloco histórico”, que nada mais é do que a identificação concreta e sem contradições de fundo entre novos conteúdos econômico-sociais e novas formas ético-políticas (Gramsci, 2002, v. 1, p. 308). Nos países onde os sinais de esgotamento do neoliberalismo se manifestaram com menor intensidade, ou estiveram descolados de outras desagregações institucionais (como Brasil, Chile, Uruguai, Nicarágua, El Salvador e ao fim e ao cabo mesmo na Argentina), é provável que elementos do paradigma neoliberal permaneçam com mais intensidade e por mais tempo no repertório dos blocos de poder que vão se configurando, mesclados a propostas mais ou menos alternativas e heterodoxas. Esses blocos não se configuram como “novos” e potencialmente construtores de uma nova hegemonia, estando “bloqueados” de diversas maneiras (Domingues, 2009, p. 192)3. Se as esquerdas “refundadoras” se diferenciaram das esquerdas “renovadoras”, no que toca à reconstrução da institucionalidade e à reconfiguração das relações sociais e de poder e de seus sistemas partidários, o mesmo não se pode dizer, de forma tão clara, no que diz respeito aos resultados sociais de seus governos até o momento. Nesse sentido, todos os governos progressistas da região tiveram resultados apenas moderadamente positivos. Se fôssemos utilizar o critério da promoção da igualdade como parâmetro de avaliação, veríamos que todos eles só poderiam (nesse aspecto prático) ser considerados “de esquerda” num sentido muito moderado e fluido (Sant’Anna, Silva, 2008) – daí a preferência aqui pelo termo “progressista” para nomear esses governos. Por fim, como já foi dito, se todas as esquerdas analisadas rejeitaram em alguma medida as experiências neoliberais anteriores, seus governos, mais do que simplesmente ter que conviver com o legado deixado por aquelas experiências, não conseguiram até aqui superá-las em definitivo, mesmo entre os “refundadores”, apesar de todos os governos terem resgatado em alguma medida o papel do Estado e introduzido reformas e elementos heterodoxos em

Vitorias na crise.indd 265

10/17/11 12:55 PM

266 / Vitórias na crise

diversas áreas. Assim, também quanto ao desempenho de governo, as semelhanças entre as diversas experiências parecem ser tão significativas quanto as diferenças. Enfim, espero que a análise desenvolvida tenha contribuído para a compreensão da recente “onda” de esquerda na América Latina. Ao que parece, se as questões postas pela literatura especializada ao longo da década que se encerra giraram em torno da compreensão da ascensão dessas esquerdas e de suas diferentes manifestações, o foco progressivamente deverá ser posto na análise de suas experiências de governo e de suas relações com o poder. Na medida em que a “onda” de esquerda começar a refluir e novas alternativas forem sendo gestadas (algo natural num ambiente democrático), a necessidade de uma avaliação dessas experiências se imporá com mais força. É razoável supor que a realização de um “balanço” do primeiro ciclo regional de governos de esquerda da história da América Latina constituirá uma tendência crescente na literatura especializada nos próximos anos. A rápida observação esboçada aqui dos governos progressistas reforça a impressão deixada pela análise da trajetória das organizações de esquerda, desenvolvida ao longo do trabalho: a necessária mudança na região mais desigual do mundo parece seguir mais lenta do que se poderia desejar. De qualquer forma, assim como na versão anedótica do julgamento de Galileu Galilei, ao menos deve ser reconhecido que, “no entanto, ela se move” – malgrado o esforço de alguns em questionar até mesmo essa possibilidade.

Vitorias na crise.indd 266

10/17/11 12:55 PM

Considerações finais / 267

Notas

1

Um exemplo é a potencialidade contida nas experiências de orçamento participativo levadas a cabo pelo PT (e a princípio pela FA em Montevidéu). Assim como nas tentativas de organização de conselhos integrados pela cidadania no governo nacional petista, e nas negociações tripartites entre Estado, empresários e trabalhadores, instituídas pelo governo nacional frenteamplista.

2

Com a provável necessidade de ressalvas pontuais, como as dificuldades maiores no caso venezuelano com os aspectos representativos da democracia.

3

Entre todos os casos considerados mais “moderados”, talvez no chileno fosse possível apontar mais claramente a presença de elementos do que Gramsci chamou de “transformismo”, no qual setores que pareciam irreconciliavelmente inimigos vão sendo absorvidos a uma ampla classe dirigente.

Vitorias na crise.indd 267

10/17/11 12:55 PM

268 / Vitórias na crise

Vitorias na crise.indd 268

10/17/11 12:55 PM

Referências e fontes / 269

Referências e fontes

Referências AARÃO REIS, Daniel (2007). “O Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses, perspectivas”. In: Aarão Reis, Daniel; Ferreira, Jorge (orgs.). As esquerdas no Brasil, 3º volume. Revolução e democracia. (1964...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ABAL MEDINA, Juan Manuel (2002). “Elementos teóricos para el análisis contemporáneo de los partidos políticos: un reordenamiento del campo semántico”. In: M. Cavarozzi, J. M. A. Medina (comps.). El asedio a la política. Los partidos latinoamericanos en la era neoliberal. Rosário: Homo Sapiens. ______________________ (1998). “Viejos y nuevos actores en el escenario posmenemista: de Evita a Graciela, la experiencia del Frente Grande/ FREPASO”. XXI International Congress of Latin American Studies Association, 24-26/09/1998. AGGIO, Alberto (2009). “É �������������������������������������������������� possível ainda mobilizar o conceito de populismo?” Política Democrática, ano VIII, n. 23. ______________________ (2002). Democracia e socialismo: a experiência chilena. São Paulo: Annablume. ALBÓ, Xavier (2008). Movimientos y poder indígena en Bolivia, Ecuador y Perú. La Paz: CIPCA. ALCÁNTARA, Manuel (2008). “La escala de la izquierda. La ubicación ideológica de presidentes y partidos de izquierda en América Latina”. Nueva Sociedad, n. 217. ______________________ (2004). ¿Instituciones o máquinas ideológicas? Origen, programa y organización de los partidos políticos latinoamericanos. Barcelona: ICPS. ______________________, FREIDENBERG, Flavia (coords.) (2003). Partidos políticos de América Latina. México: Fondo de Cultura Económica, Instituto Federal Electoral, 3 v. ANASTASIA, Fátima, RANULFO, Carlos, SANTOS, Fabiano (2004). Governabilidade e representação política na América do Sul. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, São Paulo: UNESP. ANDERSON, Perry (1996). “Introdução”. In: Anderson, Perry, Camiller, Patrick (orgs.). Um mapa da esquerda na Europa Ocidental. Rio de Janeiro: Contraponto. ARGONES, Nelson, MIERES, Pablo (1989). “La polémica en el Frente Amplio: ¿pugna por contenidos organizacionales o institucionales?” Cuadernos del CLAEH, n. 49.

Vitorias na crise.indd 269

10/17/11 12:55 PM

270 / Vitórias na crise ARTIGA GONZÁLEZ, Álvaro (2003). “El Salvador”. In: Alcántara, Manuel, Freidenberg, Flavia (coords.). Partidos políticos de América Latina. Centroamérica, México y República Dominicana. México: Fondo de Cultura Económica, Instituto Federal Electoral. BARTRA, Armando (2006). “La izquierda mexicana en la encrucijada: de la resistencia al fraude electoral a la Convención Nacional Democrática”. Revista OSAL, ano VII, n. 20. BECK, Ulrich (1994). Risk society: towards a new modernity. Londres, Thousand Oaks, Nova Delhi: Sage Publications. BERNSTEIN, Eduard (1993). The preconditions of socialism. Cambridge: Cambridge University Press. BLIXEN, Samuel (1997). Seregni, la mañana siguiente. Montevidéu: Brecha. BOBBIO, Norberto (2004). O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra. _____________________ (2000). Estado, governo, sociedade. São Paulo: Paz e Terra. ______________________ (1995). Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Unesp. BOIX, Carles (1998). Political parties, growth and equality. Conservative and social democratic economic strategies in the world economy. Cambridge: Cambridge University Press. BOLTANSKI, Luc, CHIAPELLO, Ève (2002). El nuevo espíritu del capitalismo. Madri: Akal. BORON, Atílio (2002). Estado, capitalismo e democracia na América Latina. São Paulo: Paz e Terra. CARDOSO, Adalberto (2008). “Sindicatos e neoliberalismo na América Latina”. In: Lima, Maria Regina Soares de (org.). Desempenho de governos progressistas no Cone Sul: agendas alternativas ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: Edições IUPERJ. CAETANO, Gerardo, RILLA, José (1995). “Izquierda y tradición: un problema y su versión en Uruguay”. In: Caetano, Gerardo, Gallardo, Javier, Rilla, José. La izquierda uruguaya: tradición, innovación y política. Montevideo: Trilce. CASTAÑEDA, Jorge (2006). “Latin America’s left turn”. Foreign Affairs, may/june. CASTELLS, Manuel (2005). Globalización, desarrollo y democracia: Chile en el contexto mundial. Santiago: Fondo de Cultura Económica. ______________________ (1999). A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra. CHAVEZ, Daniel (2004). “Montevideo. De la participación popular al ‘buen gobierno’”. In: Chavez, Daniel, Goldfrank, Benjamin (eds.). La izquierda en la ciudad – participación en los gobiernos locales de América Latina. Barcelona: Icaria. CHAVEZ, Daniel, GOLDFRANK, Benjamin (eds.) (2004). La izquierda en la ciudad – participación en los gobiernos locales de América Latina. Barcelona: Icaria. CLEARY, Matthew (2009). “A two-stage explanation of the new Latin American left”. XXVIII International Congress of the Latin American Studies Association (LASA), Rio de Janeiro.

Vitorias na crise.indd 270

10/17/11 12:55 PM

Referências e fontes / 271 CONAGHAN, Catherine, DE LA TORRE, Carlos (2008). “The permanent campaign of Rafael Correa: making Ecuador’s plebiscitary presidency”. Press/Politics, v. 13, n. 3. COUTINHO, Carlos Nelson (1992). Democracia e socialismo. São Paulo: Cortez. ______________________ (1980). A democracia como valor universal – notas sobre a questão democrática no Brasil. São Paulo: LECH. DAGNINO, Evelina, OLVERA, Alberto J., PANFICHI, Aldo (orgs.) (2006). A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo: Paz e Terra. DAHL, Robert (1997). Poliarquia – participação e oposição. São Paulo: Edusp. DALTON, Russel J., WATTEMBERG, Martin P. (2000). “Unthinkable democracy: political change in advanced industrial democracies”. In: R. J. Dalton, M. P. Wattemberg (eds.). Parties without partisans: political change in advanced industrial democracies. Oxford: Oxford University Press. D’ARAUJO, Maria Celina (2000). “Debates: a transição do regime militar para a democracia”. In: Castro, Celso, D’Araujo, Maria Celina (orgs.). Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro: FGV. DIRMOSER, Dietmar (2005). “Democracia sin demócratas – sobre la crisis de la democracia en América Latina”. Nueva Sociedad, n. 197. DI TELLA, Torcuato (1997). Historia de los partidos políticos en América Latina, siglo XX. Santiago: Fondo de Cultura Económica. DO ALTO, Hervé (2007). “El MAS-IPSP boliviano, entre la protesta callejera y la política”. In: Monasterios, Karen, Stefanoni, Pablo, Do Alto, Hervé. Reinventando la nación en Bolivia. La Paz: CLACSO, Plural. DOMINGUES, José Maurício (2009). A América Latina e a Modernidade Contemporânea: uma interpretação sociológica. Belo Horizonte: Editora UFMG. ______________________ (2007). Aproximações à América Latina: desafios contemporâneos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ______________________ (2002). Interpretando a modernidade – imaginário e instituições. Rio de Janeiro: FGV. ______________________, MANEIRO, María (2007). “Revisitando Germani: a interpretação da modernidade e a teoria da ação”. In: Domingues, José Maurício. Aproximações à América Latina: desafios contemporâneos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. DOWNS, Anthony (1957). An economic theory of democracy. Nova Iorque: Harper & Row. DUVERGER, Maurice (1970). Os Partidos Políticos. Rio de Janeiro: Zahar. ECHANDÍA CASTILLA, Camilo (2008). “El fin de la invulnerabilidad de las FARC. El estado actual del conflicto armado en Colombia”. Nueva Sociedad, n. 217. ELEY, Geoff (2005). Forjando a democracia. A história da esquerda na Europa, 1850-2000. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. ELLNER, Steve (2008). “Las tensiones entre la base y la dirigencia en las filas del chavismo”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, v. 14, n. 1.

Vitorias na crise.indd 271

10/17/11 12:55 PM

272 / Vitórias na crise ESCÓBAR, Filemón (2008). De la revolución al pachakuti – el aprendizaje del respeto recíproco entre blancos e indianos. La Paz: Garza Azul. ESCOBAR SEPÚLVEDA, Santiago (2008). “El Partido Socialista de Chile: una organización de redes”. Instituto Igualdad, Papeles de Trabajo, n. 6. ETCHEVERRI, Catriel (2007). Salvador Allende, la revolución desarmada. Buenos Aires: Capital Intelectual. FAUSTO, Boris, DEVOTO, Fernando J. (2004). Brasil e Argentina – um ensaio de História Comparada. São Paulo: 34. FREIDENBERG, Flávia (2007). La tentación populista. Una vía al poder en América Latina. Madri: Síntesis. GALLARDO, Javier (1995). “La izquierda uruguaya: la parábola de los ‘zorros’ y los ‘leones’”. In: Caetano, Gerardo, Gallardo, Javier, Rilla, José. La izquierda uruguaya: tradición, innovación y política. Montevidéu: Trilce. GARAVITO, César A. Rodríguez, BARRETT, Patrick S., CHAVEZ, Daniel (eds.) (2005). La nueva izquierda en América Latina – sus orígenes y trayectoria futura. Bogotá: Norma. ______________________ (2005). “La nueva izquierda colombiana: orígenes, características y perspectivas”. In: Garavito, César A. Rodríguez, Barrett, Patrick S., Chavez, Daniel (eds.) (2005). La nueva izquierda en América Latina – sus orígenes y trayectoria futura. Bogotá: Norma. GARCÉ, Adolfo (2006). Donde hubo fuego. El proceso de adaptación del MLN-Tupamaros a la legalidad y a la competencia electoral (1985-2004). Montevidéu: Fin de Siglo. ______________________, YAFFÉ, Jaime (2005). La era progresista. El gobierno de izquierda en Uruguay: de las ideas a las políticas. Montevidéu: Fin de Siglo. GARCIA, Marco Aurélio (2008). “Nuevos gobiernos en América del Sur: del destino común a la construcción de un futuro”. Nueva Sociedad, n. 217. _____________________ (2005). “Pensar a terceira geração da esquerda”. In: Fortes, Alexandre (org.). História e perspectivas da esquerda. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, Chapecó: Argos. GARCÍA LINERA, Álvaro (coord.), LEÓN, Marxa Chávez, MONJE, Patricia Costas (2008). Sociología de los movimientos sociales en Bolivia. La Paz: Diakonia, Oxfam, Plural. ______________________ (2005). “Indianismo y marxismo – el desencuentro de dos razones revolucionarias”. Barataria, ano 1, n. 2. GARIBAY, David (2004). “Salvador. Les défis du renouvellement. Le FMLN et les élections de 2003 et 2004”. Problèmes d’Amérique Latine, n. 54. GARRETON, Manuel Antonio, et al. (2007). América Latina no século XXI: em direção a uma nova matriz sociopolítica. Rio de Janeiro: FGV. ______________________ (2007). Del postpinochetismo a la sociedad democrática. Globalización y política en el Bicentenario. Santiago: Random House Mondadori. ______________________ (2006). “Modelos y liderazgos en América Latina”. Nueva Sociedad, n. 205.

Vitorias na crise.indd 272

10/17/11 12:55 PM

Referências e fontes / 273 GIDDENS, Anthony (1999). A terceira via – reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record. ______________________ (1996). Para além da esquerda e da direita – o futuro da política radical. São Paulo: Unesp. _____________________ (1991). As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp. GOTT, Richard (2004). À sombra do libertador: Hugo Chávez e a transformação da Venezuela. São Paulo: Expressão Popular. GRAMSCI, Antonio (2002). Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 6 v. GUNTHER, Richard, DIAMOND, Larry (2003). “Species of political parties: a new typology”. Party Politics, v. 9, n. 2. HARNECKER, Marta (2003). “Venezuela: uma revolución sui géneris”. Seminário de LAC (Foro Social Mundial III). HENRIQUES, Luiz Sérgio (2004). “Uma pedagogia interrompida”. Política Democrática, n. 8. HERMET, Guy (2001). “As transições democráticas no século XX: comparação entre América Latina e Leste Europeu”. In: Abreu, Alzira Alves (org.). Transição em fragmentos: desafios da democracia no final do século XX. Rio de Janeiro: FGV. HERNÁNDEZ, Juan Luis, SALCITO, Ariel (orgs.) (2007). La Revolución Boliviana. Documentos fundamentales. Buenos Aires: Newen Mapu. HILLEBRAND, Ernst (2007). “La izquierda después de la ‘tercera vía’”. Nueva Sociedad, n. 211. HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence (2002). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra. KECK, Margareth Elizabeth (1991). PT: a lógica da diferença. O Partido dos Trabalhadores na construção da democracia brasileira. São Paulo: Ática. KIRCHHEIMER, Otto (1966). “The transformation of the Western European party systems”. In: Joseph LaPalombara, Myron Weiner (eds.). Political parties and political development. Princeton: Princeton University Press. KITSCHELT, Herbert (1989). The logics of party formation: ecological politics in Belgium and Western Germany. Ithaca: Cornell University Press. KOMADINA, Jorge, GEFFROY, Celine (2007). El poder del movimiento político. Estrategia, tramas organizativas e identidad del MAS en Cochabamba (1999-2005). La Paz: CESU, DICYT-UMSS, Fundación PIEB. LACERDA, Alan Daniel Freire de (2002). “O PT e a unidade partidária como problema”. Dados, v. 45, n. 1. LACLAU, Ernesto (2009). La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. ______________________ (1978). “Política e ideología en la teoría marxista. Capitalismo, fascismo, populismo. Buenos Aires: Siglo XXI. LANDERRETCHE G., Oscar, LANZAROTTI, Mario, OMINAMI P., Carlos (2004). “El desarrollo económico de Chile en la encrucijada: o como las viejas controversias impiden abordar los nuevos problemas”. Foro 21, n. 34.

Vitorias na crise.indd 273

10/17/11 12:55 PM

274 / Vitórias na crise LANZARO, Jorge (2009). “La social-democracia criolla”. Análise de Conjuntura OPSA, n. 3. ______________________ (coord.) (2004). La izquierda uruguaya: entre la oposición y el gobierno. Montevidéu: Fin de Siglo. LAZARTE R. Jorge (2008). Derrumbe de la “res-publica” – los procesos electorales en Bolivia: 2002, 2004 y 2005. La Paz: Plural. LAZO CIVIDANES, Jorge (2007). “Luchas hegemónicas y cambio político: el avance de la izquierda suramericana en perspectiva comparada”. Colombia Internacional, n. 66. LEAL, Paulo Roberto Figueira (2005). O PT e o dilema da representação partidária: os deputados federais são representantes de quem? Rio de Janeiro: FGV. LÊNIN, Vladimir Ilich (1973). Que Fazer? Lisboa: Editorial Estampa. LEVINE, Daniel H., MOLINA, José Enrique (2007). “La calidad de la democracia en América Latina: una visión comparada”. América Latina Hoy, n. 45. LIMA, Maria Regina Soares de (org.) (2008). Desempenho de governos progressistas no Cone Sul: agendas alternativas ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: Edições IUPERJ. LINZ, Juan J., STEPAN, Alfred (1999). A transição e consolidação da democracia – a experiência do Sul da Europa e da América do Sul. São Paulo: Paz e Terra. LISCANO, Carlos (2004). Conversaciones con Tabaré Vázquez. Buenos Aires: Colihue. LÓPEZ, Santiago (2005). “Partidos desafiantes en América Latina: representación política y estrategias de competencia de las nuevas oposiciones”. Revista de Ciencia Política, v. 25, n. 2. LÓPEZ MAYA, Margarita (2008). “Venezuela: Hugo Chávez y el bolivarianismo”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, v. 14, n. 3. LÖWY, Michael (org.) (1999). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. LUXEMBURGO, Rosa (1975). Reforma, revisionismo e oportunismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. MACHADO, Ralph (2007). Lula A.C. – D.C.: política econômica antes e depois da “Carta ao Povo Brasileiro”. São Paulo: Annablume. MANIN, Bernard (1997). The principles of representative government. Cambridge: Cambridge University Press. MARENCO, André, SERNA, Miguel (2006). “¿El cambio ideológico – electoral contribuye a la rotación de las elites políticas? Izquierdas y derechas en los congresos brasileño, chileno y uruguayo”. X Congreso de la Sociedad Latinoamericana de Estudios sobre América Latina y el Caribe (SOLAR), La Habana. MARINGONI, Gilberto (2009). A revolução venezuelana. São Paulo: Editora UNESP. MARTÍ I PUIG, Salvador (2009). “Mutaciones orgánicas, adaptación y desinstitucionalización partidaria: el caso del Frente Sandinista de Liberación Nacional (FSLN), 1980-2006”. Revista de Estudios Políticos, n. 143.

Vitorias na crise.indd 274

10/17/11 12:55 PM

Referências e fontes / 275 ______________________ (2008). “El regreso de Ortega: los primeros pasos de su segunda administración”. Revista de Ciencia Política, v. 28, n. 1. ______________________, SANTIUSTE CUÉ, Salvador (2008). “What are the differences between the left and right in Central America today? A debate about the attitudes of political elites and the nature of democracy in Nicaragua, El Salvador and Guatemala”. Stockholm Review of Latin American Studies, n. 3. MARTÍN ALVAREZ, Alberto (2006). “De movimiento de liberación a partido político: el Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN)”. In: Martí i Puig, Salvador, Figueroa Ibarra, Carlos (eds.). La izquierda revolucionaria en Centroamérica. De la lucha armada a la participación electoral. Madri: Catarata. MARTÍNEZ BARAHONA, Elena (2003). “Uruguay”. In: Alcántara, Manuel, Freidenberg, Flavia (coords.). Partidos políticos de América Latina. Cono Sur. México: Fondo de Cultura Económica, Instituto Federal Electoral. MAYORGA, Fernando (2005). “La izquierda campesina e indígena en Bolivia. El Movimiento Al Socialismo (MAS)”. Revista Venezolana de Ciencia Política, n. 28. MAZZEO, Mario (2005). MPP: orígenes, ideas y protagonistas. Montevidéu: Trilce. MERKEL, Wolfgang, PETRING, Alexander (2008). “La social-democracia en Europa. Un análisis de su capacidad de reforma”. Nueva Sociedad, n. 217. MICHELS, Robert (1982). Sociologia dos partidos políticos. Brasília: Editora Universidade de Brasília. MIRES, Fernando (2008). “Socialismo nacional versus democracia social. Una breve revisión histórica”. Nueva Sociedad, n. 217. MIRZA, Christian Adel (2006). Movimientos sociales y sistemas políticos en América Latina. Buenos Aires: CLACSO. MOREIRA, Carlos, RAUS, Diego, GÓMEZ LEYTON, Juan Carlos (coord.) (2008). La nueva política en América Latina: rupturas y continuidades. Montevidéu: Flacso Uruguay, UNLa, Arcis, Trilce. MOREIRA, Constanza (2004). Final de juego: del bipartidismo tradicional al triunfo de la izquierda en Uruguay. Montevidéu: Trilce. MOULIAN, Tomás (2002). Chile actual: anatomía de un mito. Santiago: LOM. NATANSON, José (2008). La nueva izquierda: triunfos y derrotas de los gobiernos de Argentina, Brasil, Bolivia, Venezuela, Chile, Uruguay y Ecuador. Buenos Aires: Debate. NOGUEIRA, Marco Aurélio (2003). “O século dos paradoxos e a reposição do marxismo.” In: Aggio, Alberto, Lahuerta, Milton (orgs.). Pensar o século XX – problemas políticos e história nacional na América Latina. São Paulo: Ed. UNESP, 2003. NOVARO, Marcos, PALERMO, Vicente (1998). Los caminos de la centro-izquierda: dilemas y desafíos del FREPASO y la Alianza. Buenos Aires: Losada. O’DONNELL, Guillermo (2004). Contrapuntos. Ensayos escogidos sobre autoritarismo y democratización. Buenos Aires: Punto Sur.

Vitorias na crise.indd 275

10/17/11 12:55 PM

276 / Vitórias na crise OROZCO, Shirley (2005) “Trayectoria política e ideológica: historia del Movimiento al Socialismo (MAS)”, Barataria, ano 1, n. 2. ORTIZ, Andrés (2008). “Populismo y transnacionalidad. Una hipótesis sobre el liderazgo de Chávez y Correa”. Ecuador Debate, n. 73. ORTIZ, Edison (2007). El socialismo chileno: de Allende a Bachelet (19732005). Santiago: Fundación Fiadelso. PACHANO, Simón (2008). “Calidad de la democracia y colapso del sistema de partidos en Ecuador”. Seminario “Partidos políticos y calidad de la democracia”, México DF, 26-28 noviembre de 2008. PALAU, Marielle, ORTEGA, Guillermo (2008). “Paraguay: el nuevo escenario de disputa de los movimientos populares”. Revista OSAL, ano IX, n. 24. PANEBIANCO, Angelo (1988). Political parties: organization and power. Cambridge: Cambridge University Press. PANIZZA, Francisco (2006) “La marea rosa”. Análise de Conjuntura OPSA, n. 8. PEREIRA ALMAO, Valia. “Movimiento V República (MVR)”. In: Alcántara, Manuel, Freidenberg, Flavia (coords.) (2003). Partidos políticos de América Latina. Países Andinos. México: Fondo de Cultura Económica, Instituto Federal Electoral. PETKOFF, Teodoro (2005). Dos izquierdas. Caracas: Alfadil, 2005. PICAZO VERDEJO, Inés (2003). “Chile”. In: Alcántara, Manuel, Freidenberg, Flavia (coords.). Partidos políticos de América Latina. Cono Sur. México: Fondo de Cultura Económica, Instituto Federal Electoral. POLLACK, Michael (1989). “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, v. 2, n. 3. PORTES, Alejandro, HOFFMAN, Kelly (2003). “Las estructuras de clase en América Latina: composición y cambios durante la época neoliberal”. Santiago: Serie Políticas Sociales, n. 68. PRZEWORSKI, Adam, SPRAGUE, John (1986). Paper stone: a history of electoral socialism. Chicago: University of Chicago Press. RAGIN, Charles C. (1994). Constructing social research – the unity and diversity of method. Thousand Oaks: Pine Forge Press. RAMÍREZ GALLEGOS, Franklin, MINTEGUIAGA, Analía (2007). “El nuevo tiempo del Estado. La política posneoliberal del correísmo”. Revista OSAL, ano VIII, n. 22. ______________________, Franklin (2006). “Mucho más que dos izquierdas”. Nueva Sociedad, n. 205. REID, Michael (2007). Forgotten continent. The Battle for Latin America’s soul. New Haven, Londres: Yale University Press. REYNOSO, Diego (2008). “La brecha entre mayorías institucionales y preferencias ciudadanas en los gobiernos pos Consenso de Washington”. In: Moreira, Carlos, Raus, Diego, Gómez Leyton, Juan Carlos (coord.). La nueva política en América Latina: rupturas y continuidades. Montevidéu: Flacso Uruguay, UNLa, Arcis, Trilce. RIBEIRO, Pedro J. Floriano (2007). “Parlamentarização, grau de renovação e participação feminina no Diretório e Executiva Nacionais do PT (19802005)”. XXXI Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu.

Vitorias na crise.indd 276

10/17/11 12:55 PM

Referências e fontes / 277 ROBERTS, Kenneth (2008). “Is social democracy possible in Latin America?” Nueva Sociedad, n. 217. ______________________ (2002). “El sistema de partidos y la transformación de la representación política en la era neoliberal latinoamericana”. In: Cavarozzi, Marcelo, Medina, Juan Manuel Abal (comps.). El asedio a la política. Los partidos latinoamericanos en la era neoliberal. Rosário: Homo Sapiens. ______________________ (1994). “Renovation in the revolution? Dictatorship, democracy, and political change in the chilean left”. Working Paper, n. 203. RODRIGUES, Leôncio Martins (2002). Partidos, ideologia e composição social: um estudo das bancadas partidárias na Câmara dos Deputados. São Paulo: Edusp. ______________________ (1996). “PCB: os dirigentes e a organização”. In: Fausto, Boris (dir.). História geral da civilização brasileira, tomo 3, v. 3: o Brasil republicano – sociedade e política (1930-1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. RONIGER, Luis (2005). “Global times once again: representative democracy and countervailing trends in Iberoamerica”. Iberoamericana, n. 17. ROUQUIÉ, Alain (2007). “La democracia hoy: el jardín de los senderos que se bifurcan”. Temas y Debates, n. 13. SADER, Emir (2009). A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana. São Paulo: Boitempo. SAINT-UPÉRY, Marc (2008). El sueño de Bolívar: el desafío de las izquierdas sudamericanas. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica. SALCEDO, Rodrigo (2005). “La elite política de la Concertación: reproducción o reemplazo”. In: Hidalgo, Paulo (ed.). Política y sociedad en Chile. Antiguas y nuevas caras. Santiago: Catalonia. SAMUELS, David (2004a). “From socialism to social democracy: party organization and the transformation of the Workers’ Party in Brazil”. Comparative Political Studies, v. 37, n. 9. ______________________ (2004b). “Las bases del PT: ideología versus personalismo en su apoyo electoral”. América Latina Hoy, ano/v. 37. SANTANA, Marco Aurélio (2003). “Trabalhadores em movimento: o sindicalismo brasileiro nos anos 1980-1990”. In: Ferreira, Jorge, Delgado, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano, v. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. SANT’ANNA, Júlia, SILVA, Fabricio Pereira da (2008). “Esquerdas latinoamericanas e gasto social: há coerência entre propostas e práticas?” Revista Debates, v. 2, n. 1. SANTIUSTE CUÉ, Salvador (2003). “Nicaragua”. In: Alcántara, Manuel, Freidenberg, Flavia (coords.). Partidos políticos de América Latina. Centroamérica, México y República Dominicana. México: Fondo de Cultura Económica, Instituto Federal Electoral. SARTI, Ingrid (2006). Da outra margem do rio: os partidos políticos em busca da utopia. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

Vitorias na crise.indd 277

10/17/11 12:55 PM

278 / Vitórias na crise SCARROW, Susan E. (2000). “Parties without members? Party organization in a changing electoral environment”. In: R. J. Dalton, M. P. Wattemberg (eds.). Parties without partisans: political change in advanced industrial democracies. Oxford: Oxford University Press. ______________________, WEBB, Paul, FARREL, David M. (2000), “From social integration to electoral contestation: the changing distribution of power within political parties”. In: R. J. Dalton, M. P. Wattemberg (eds.). Parties without partisans: political change in advanced industrial democracies. Oxford: Oxford University Press. SERNA, Miguel (2004). Reconversão democrática das esquerdas no Cone Sul – trajetórias e desafios na Argentina, Brasil e Uruguai. Bauru: EDUSC, 2004. SILVA, Fabricio Pereira da (2009). “Equilíbrios precários. A trajetória do Movimento ao Socialismo e seus dilemas”. In: Domingues, José Maurício, Mota, Aurea, Soares, Alice, Pereira da Silva, Fabricio (orgs.). A Bolívia no espelho do futuro. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ. ______________________ (2007). “Esquerda uruguaia no poder: a trajetória da Frente Ampla e seus dois primeiros anos de governo”. Observador online (OPSA), v.2, n. 6. SILVA, Patricio (1993). “Social democracy, neoliberalism and ideological change in the Chilean socialist movement, 1973-1993”. Ibero Americana, Nordic Journal of Latin American Studies, v. XXIII: 1-2. SOARES, Alice (2009). “A emergência das identidades étnicas na Bolívia contemporânea. Processos e atores”. In: Domingues, José Maurício, Mota, Aurea, Soares, Alice, Pereira da Silva, Fabricio (orgs.). A Bolívia no espelho do futuro. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ. STEFANONI, Pablo, DO ALTO, Hervé (2006). Evo Morales, de la Coca al Palacio. La Paz: Malatesta. STOKES, Susan (2009). “Globalization and the left in Latin America”. www. yale.edu/macmillanreport/resources/Stokes_GlobalizationLeft.pdf ______________________ (2001). Mandates and democracy: neoliberalism by surprise in Latin America. Cambridge: Cambridge University Press. SUE-MONTGOMERY, Tommie, WADE, Christine (2006). A revolução salvadorenha. São Paulo: UNESP. SVAMPA, Maristella (2008). Cambio de época: movimientos sociales y poder político. Buenos Aires: Siglo XXI. ______________________ (2005). La sociedad excluyente – La Argentina bajo el signo del neoliberalismo. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara. TANAKA, Martín (2008). “Del voluntarismo exacerbado al realismo sin ilusiones. El giro del APRA y de Alan García”. Nueva Sociedad, n. 217. TAPIA, Luis (2004). “Izquierdas y movimiento social en Bolivia”. In: García Linera, Álvaro, Prada, Raúl, Tapia, Luis. Memorias de octubre. La Paz: Muela del Diablo. THIES, Michael. (2000). “On the primacy of party in government: why party can survive party decline in the electorate”. In: R. J. Dalton, M. P. Wattemberg (eds.). Parties without partisans: political change in advanced industrial democracies. Oxford: Oxford University Press.

Vitorias na crise.indd 278

10/17/11 12:55 PM

Referências e fontes / 279 THORSEN, Dag Einar, LIE, Amund. “What is neoliberalism?” University of Oslo. classshares.student.usp.ac.fj/MG409/2009/Readings/Topic%203/ Thorsen%20and%20Lie.pdf TIRONI, Eugenio (2005). “La cuarta ruptura. Reflexiones sobre comunidad, participación y liderazgo en el Chile de hoy”. In: Hidalgo, Paulo (ed.). Política y sociedad en Chile. Antiguas y nuevas caras. Santiago: Catalonia. TROTSKY, Leon (1977). “Jacobinismo y social-democracia”. In: strada, Vittorio (ed.). ¿Qué Hacer? Teoría y práctica del bolchevismo. México: Ediciones Era. VACCA, Giuseppe (2009). Por um novo reformismo. Brasília: Fundação Astrogildo Pereira, Rio de Janeiro: Contraponto. VAN COTT, Donna Lee (2005). From movements to parties in Latin America: the evolution of ethnic politics. New York: Cambridge University Press. VAN DER LINDEN, Marcel (2005). “Metamorfoses da social-democracia europeia (1870-2000)”. In: Fortes, Alexandre (org.). História e perspectivas da esquerda. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, Chapecó: Argos. WAGNER, Peter (2004). A sociology of modernity: liberty and discipline. Londres, Nova Iorque: Routledge. WALKER, Ignacio (1990). Socialismo y democracia – Chile y Europa en perspectiva comparada. Santiago: CIEPLAN / Hachette. WEYLAND, Kurt (2009). “The rise of Latin America’s two lefts? Insights from Rentier State Theory”. Comparative Politics, v. 41, n. 2. ______________________ (2004). “Neoliberalism and democracy in Latin America: a mixed record”. Latin American Politics & Society, v. 46, n.1. ______________________ (2003). “Neopopulism and neoliberalism in Latin America: how much affinity?” Third World Quartely, v. 24, n. 6. ______________________ (2001). “Clarifying a contested concept. Populism in the study of Latin American politics”. Comparative Politics, v. 34, n. 1. WHITE, John Kenneth (2006). “What is a political party”. In: R. S. Katz, W. Crotty (eds.). Handbook of party politics. London: Sage. YAFFÉ, Jaime (2005). Al centro y adentro. La renovación de la izquierda y el triunfo del Frente Amplio en Uruguay. Montevidéu: Librería Linardi y Risso. ______________________ (2001). “Del Frente Amplio al Encuentro Progresista: el camino de una izquierda moderada. Acerca del itinerario reciente de la izquierda uruguaya (1984-2000) – n. 1”. Departamento de Ciencia Política, Facultad de Ciencias Sociales, Documento de Trabajo, n. 26. YOCELEVZKY, Ricardo (2002). Chile: partidos políticos, democracia  y dictadura (1970-1990). Santiago: Fondo de Cultura Económica. ZIMMERMANN, Matilde (2006). A revolução nicaraguense. São Paulo: UNESP. ZUAZO, Moira (2008). ¿Cómo nació el MAS? La ruralización de la política en Bolivia. Entrevistas a 85 parlamentarios del partido. La Paz: Fundación Ebert.

Vitorias na crise.indd 279

10/17/11 12:55 PM

280 / Vitórias na crise

Fontes ALMEYDA, Clodomiro (1992). “El Partido Socialista, como yo lo quiero”. Santiago: s. ed. BAYLEY, Miguel Aguirre (2005). Frente Amplio – “la admirable alarma de 1971”. Historia y documentos. Montevidéu: Cauce. BRECHA (2005a). “Por primera vez somos presidente”, n. 1048, 23/12/2005. ______________________ (2005b). “Evo Morales – Sepultaremos al neoliberalismo”, n. 1047, 16/12/2005. ______________________ (2004). “Creer o reventar”, n. 987, 28/10/2004. ______________________ (2003). “Una transición con reloj adelantado”, n. 942, 19/12/2003. ______________________ (1989). “El Frente Amplio pasa a la ofensiva”, n. 184. DIRCEU, José (1999). “‘Revolução democrática’ expressa possibilidade do PT ser governo. Entrevista com José Dirceu”. PT Notícias, n. 87. ______________________ (1998). “A vitória da política de alianças”. PT Notícias, n. 62. ______________________ (1997). “A Conferência de Brasília”. PT Notícias, n. 41. ______________________ (1995a). “Entrevista com José Dirceu”. Teoria e Debate, n. 30. ______________________ (1995b). “Entrevista com José Dirceu”. Brasil Agora, n. 73. EP-FA (1999). El otro programa. El cambio a la uruguaya. Tabaré presidente. Montevidéu: s. ed. EP-FA-NM (2004). El gobierno del cambio: Dr. Tabaré Vázquez. La transición responsable. Montevidéu: Friedrich Ebert Stiftung. ESCALONA, Camilo (2002). Porque somos socialistas. Santiago: s. ed. ______________________ (1997). Discursos del presidente del Partido Socialista de Chile, Camilo Escalona. Santiago: s. ed. ______________________ (1995). Entrevistas y discursos del presidente del Partido Socialista de Chile Camilo Escalona. Santiago: s. ed. ESCÓBAR, Filemón (2003a). “Discurso en la octava sesión de Congreso Ordinario”. Redactor Congreso Boliviano – 2003. ______________________ (2003b). “Discurso en la sexta sesión de Congreso Ordinario”. Redactor Congreso Boliviano – 2003. FA (2001). IV Congreso Ordinario. Montevidéu: s. ed. FA (1996). III Congreso Ordinario del Frente Amplio “Cro. Prof. Juan José Crottogini”. Montevidéu: s. ed. ______________________ (1994). Congreso Extraordinario. 1, 2, 3 de Julio de 1994. Montevidéu: s. ed. ______________________ (1991). II Congreso Ordinario. Montevidéu: s. ed. ______________________ (1986). Estatuto del Frente Amplio. 19 Abril 1986. Montevidéu: s. ed. FALCÃO, Rui (1991). “Socialismo, por onde começar? Posição privilegiada”. Teoria e Debate, n. 16.

Vitorias na crise.indd 280

10/17/11 12:55 PM

Referências e fontes / 281 FSUTCC (1995). “VII Congresso Ordinário de la Federación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Cochabamba”. Cochabamba: CIPCA, CENDA, INCAS, FEPADE. GARCIA, Marco Aurélio (1991). “De volta à Estação Finlândia”. Brasil Agora, n. 0. LA RAZÓN (2005). “El MAS usa una estructura sindical para su organización”. 25/09/2005. ______________________ (2002). “Ocho tendencias pueden poner en jaque a Evo y al MAS”. 08/09/2002. LOAYZA, Román (2000). Movimiento campesino, 1996-1998. La Paz: Fondo Editorial de los Diputados. ______________________ (1997). “Discurso en la primera sesión preparatoria de Congreso”. Redactor Congreso Boliviano – 1997. LULA (2002a). “Compromisso com a mudança”. São Paulo, 28/10/2002. ______________________ (2002b). “Carta ao Povo Brasileiro”. São Paulo, 22/06/2002. ______________________ (1999). “O Congresso do PT e o Brasil”. PT Notícias, n. 87. ______________________ (1997). “Um marco na defesa da democracia. Discurso de Lula durante o ato pela reforma agrária, Brasília, 17 de abril”. PT Notícias, n. 42. ______________________ (1995). “Entrevista – Lula”. Brasil Agora, n. 66. ______________________ (1993). “Entrevista com Lula”. Brasil Agora, n. 37 ______________________ (1991a). “Manifesto aos petistas”. Brasil Agora, n. 1. ______________________ (1991b). “Entrevista: Lula – Mãos à obra”. Teoria e Debate, n. 13. ______________________ (1989). “Discurso de Lula no VI Encontro Nacional”. Boletim Nacional, n. 46. MAS (2006). Asamblea Constituyente para refundar Bolivia. La Paz: s. ed.. ______________________ (2004). Poder, territorio, sabiduría, “por la soberanía de los pueblos”. La Paz: s. ed. ______________________ (2003a). “¡Defender la democracia! Comunicado del Movimiento al Socialismo, 13 de octubre de 2003”. Revista OSAL, ano IV, n. 12. ______________________ (2003b). Congreso Nacional. Programa de gobierno. 50 propuestas concretas para encarar la crisis. La Paz: s. ed. ______________________ (2002). Territorio, soberanía, vida – Programa de gobierno – Todo depende de nosotros mismos”. La Paz: MAS. MLN-T (1988). ¿Por qué un Frente Grande? Montevidéu: s. ed.. MORALES, Evo (2004). “Entrevista”. Los Tiempos, 23/05/2004. ______________________ (2003). “Devolviendo la dignidad a Bolivia”. La Razón, 30/11/2003. ______________________ (2002a). “Entrevista con Evo Morales”. La Voz, 12/10/2002. ______________________ (2002b). “Entrevista Evo”. El Deber, 08/07/2002.

Vitorias na crise.indd 281

10/17/11 12:55 PM

282 / Vitórias na crise ______________________ (2002c). “Discurso en la quinta sesión de Congreso Ordinario”. Redactor Congreso Boliviano – 2002. ______________________ (2001). “Discurso en la cuarta sesión extraordinaria”. Redactor Congreso Boliviano – 2001. ______________________ (1998). “Discurso en la séptima sesión de Congreso Nacional”. Redactor Congreso Boliviano – 1998. NÚÑEZ. Ricardo (1999). “Intervención del senador Ricardo Núñez Muñoz, presidente del Senado y del Partido Socialista de Chile, en el 66º aniversario de su fundación (Pleno del Comité Central, 24 de abril de 1999)”. Cuadernos de El avión rojo, n. 8. OMINAMI, Carlos (1995). “El socialismo del siglo XXI, diez proposiciones”. Cuadernos de El avión rojo, n. 3, ano 1. OPINIÓN (2005a). “Evo pide a empresarios asesoramiento para encarar plan económico y político”. Cochabamba, 06/10/2005. ______________________ (2005b). “Un grupo de profesionales y empresarios proclama a Evo Morales como candidato”. Cochabamba, 20/07/2005. PAIS (1989). Partido Amplio de Izquierda Socialista – Propuesta programática (para la discusión de las bases del partido y las organizaciones sociales del pueblo de Chile). Santiago: s. ed. PDC (1989). La ruptura del Frente Amplio. Antecedentes y documentos. Montevidéu: Cencadec. PSCh (2004). XXVII Congreso Partido Socialista de Chile: “el partido con la mayoría”. Documento político marco – Comisión Política. Santiago: s. ed. ______________________ (2002). Principios e identidad del Partido Socialista (Conferencia Nacional de Organización, Santiago, 16 a 18 agosto de 2002). Santiago: s. ed. ______________________ (2001). Resoluciones del XXVI Congreso General Ordinario “verdad y justicia”. Santiago: s. ed. ______________________ (1999). Programa de Gobierno Ricardo Lagos – Para crecer con igualdad. Santiago: s. ed. ______________________ (1998). Resoluciones del Congreso General Extraordinario “Clodomiro Almeyda Medina” del Partido Socialista de Chile. Santiago: s. ed. ______________________ (1996). La Patria pertenece a todos los chilenos (acuerdos políticos-programáticos del Partido Socialista de Chile) – XXV Congreso Ordinario. Santiago: s. ed. ______________________ (1994). Estatuto. Santiago: s. ed. ______________________ (1992). Congreso General Ordinario Programático – Discursos. Santiago: s. ed. ______________________ (1991). “Estatutos del Partido (1972)”. In: Conferencia Nacional de Organización. Santiago: s. ed. ______________________ (1990a). Discurso de Jorge Arrate en el Plenario Solemne del Congreso de Unidad Salvador Allende. Santiago: s. ed. ______________________ (1990b). Declaración de principios en la inscripción legal del Partido Socialista. Santiago: s. ed.

Vitorias na crise.indd 282

10/17/11 12:55 PM

Referências e fontes / 283 ______________________ (1989). “La unidad socialista: documento de acuerdo político-doctrinario”. Convergencia, n. 17. PT (2007). “III Congresso”. pt.org.br/portalpt/images/stories/arquivos/ resolucoes3congresso.pdf ______________________ (2002a). “Panfleto do Comitê de Empresários Lula Presidente”. São Paulo: s. ed. ______________________ (2002b). Programa de governo 2002 – Coligação Lula presidente – Um Brasil para todos. São Paulo: s. ed. ______________________ (2001). Partido dos Trabalhadores: Estatuto. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. ______________________ (1999). Resoluções do II Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores. São Paulo: s. ed. ______________________ (1998a). Partido dos Trabalhadores – resoluções de encontros e congressos (1979-1998). São Paulo: Fundação Perseu Abramo. ______________________ (1998b). “Manifesto em defesa da nação, do emprego, da produção, da moeda e da democracia. União do Povo Muda Brasil frente à crise”. São Paulo: s. ed. ______________________ (1994). “Bases do programa de governo 1994. Lula presidente: uma revolução democrática no Brasil”. São Paulo: s. ed. ______________________ (1991). “Reorganização do partido será o desafio do Congresso”. Jornal do Congresso, n. 1. ______________________ (1989). As bases do plano alternativo de governo. Síntese popular. São Paulo: s. ed. RIET, Gonzalo (2004). Danilo Astori – La economía del cambio – El pensamiento del ministro. Montevidéu: La República. SEREGNI, Líber (1991). “Entrevista con Líber Seregni”. Brecha, n. 299, 23/08/1991. VÁZQUEZ, Tabaré (s. d.). Discursos del Dr. Tabaré Vázquez. Montevidéu: Presidencia del Encuentro Progresista – Frente Amplio. ______________________ (1992). “Entrevista con Vázquez”. Brecha, n. 366, 04/12/1992.

Vitorias na crise.indd 283

10/17/11 12:55 PM

284 / Vitórias na crise

COLOFON

Vitorias na crise.indd 284

10/17/11 12:55 PM

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.