Vivências Passada, Memórias Futuras: a cultura do Linho, do Pão e do Vinho

July 24, 2017 | Autor: Edgar Bernardo | Categoria: Etnography, Etnografía
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MUNICÍPIO DE FELGUEIRAS

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a cultura do LINHO, PÃO e VINHO

Edgar Bernardo Elisabete Martins

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FICHA TÉCNICA Título Vivências passadas - Memórias futuras a cultura do linho, pão e vinho Autores Edgar Bernardo Elisabete Martins Edição Município de Felgueiras Praça da República 4610-116 Felgueiras www.cm-felgueiras.pt Design Ricardo Alves Gabinete de Comunicação e Imagem da Câmara Municipal de Felgueiras Impressão e Acabamento CopiMarco, Lda 500 Exemplares Janeiro 2011 ISBN: 978-989-8221-07-0 Depósito legal: 323193/11

Projecto Vivências passadas - Memórias futuras: a cultura do linho, pão e vinho. Projecto aprovado no âmbito do domínio do Património Cultural do objectivo específico – Qualificação dos Serviços Territoriais de Proximidade do Eixo Prioritário III – Valorização e Qualificação Ambiental e Patrimonial do Programa Operacional Regional do Norte 2007-2013

União Europeia Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional

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SUMÁRIO

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Apresentação Introdução VIVÊNCIAS PASSADAS: uma contextualização

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Do Renascimento à Modernidade Da 1ª à 2ª República Felgueiras e o Vale do Sousa

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‘AS VOLTAS QUE O LINHO DÁ’

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63 63 64 64 65 66 66 72 77 80 87

91 91 92 94 94 99 101 105 105 105 106 109 111 112 114

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O Linho Está-se a Aprontar Cadabulho A Arriga do Linho Está Tiradoiro Secar e Amochar O Engenho Entre a Espadela e o Sarilho A Brancura do Linho Da Dobadoura ao Tear A Terra está Mal Parecida

O PÃO A Terra Gera o Pão O Centeio e o Trigo Do Cadabulho à Sementeira Entre Cegadas e Malhos até ao Moleiro Milho Do Preparar da Terra até ao Cortar do Pendão A Alegria das Desfolhadas A Exultação da Farinha A Farinha para o Pão Destinos do Pão

O VINHO O Vinho é Rei A Videira As Castas Disposição da Videira A Poda de um Burrico Sulfato de Cobre e Cal Vindima Os Trocos Do Alto das Cestas Entre Saias e Calças Ia para o Lagar Cantares e Petiscos Fermentação A Jornada do Vinho

MEMÓRIAS FUTURAS: reflexão conclusiva Notas Bibliografia

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Um campo dourado de milho emoldurado por vinhas verdejantes pontuadas de suculentos cachos de uvas é, felizmente, uma paisagem que encontramos com facilidade nos vales férteis do nosso concelho. Ainda conseguimos ouvir os cantares que cadenciam o trabalho árduo, mas persistente, dos nossos conterrâneos que complementam o sustento ganho nas indústrias do concelho com o que a terra dá. Em Fevereiro, se a Senhora das Candeias estiver a rir, o verdadeiro agricultor sabe que o espera ainda um longo inverno. É este saber, estas vivências que constituem o nosso património imaterial, que queremos preservar, que deram origem ao projecto Vivências Passadas/Memórias Futuras: a cultura do linho, pão e vinho aprovado no âmbito do Programa Operacional Regional do Norte – ON.2 | O Novo Norte, e co-financiado pelo FEDER. Dele resultou o estudo etnográfico que apresentamos nesta monografia e um documentário que preservará e divulgará as imagens, o saber fazer que passou de geração em geração, as cores e sons do trabalho árduo, mas gratificante. Para aqueles que na sua infância tiveram o privilégio de partilhar estes momentos cíclicos da vida agrícola , este projecto permitirá reviver recordações, mas também aprofundar conhecimentos. Para os mais jovens, e sobretudo para as gerações futuras, estes documentos serão fundamentais para o conhecimento deste património que ludicamente será dado a conhecer através da plataforma didáctica vocacionada para o público infantil. Vivências Passadas/Memórias Futuras é também a materialização dos sonhos e trabalho de muitos. Lembramos o fundador do Museu Casa do Assento, Américo Leite, que aí reuniu exemplares de instru-

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mentos de trabalho ligados à cultura do linho, pão e vinho que o presente trabalho ajuda a contextualizar, mas também o trabalho dos Grupos/Ranchos Folclóricos do concelho que nas suas recriações, nas suas danças e cantares invocam estes saberes milenares que estão na génese do nosso desenvolvimento. Com este projecto compreendemos melhor e respeitamos a excelência dos nossos vinhos, a arte e criatividade das nossas bordadeiras que embelezam o linho que no passado era semeado nos nossos campos e tecido aos serões animados das gentes de Felgueiras em cuja casa não faltava o pão de milho. Conhecemos o saber e algumas das técnicas que ainda se repetem ano após ano, indiferentes à evolução tecnológica que facilita a vida. Preservamos e captamos assim as vivências, para que ninguém delas perca a memória.

Inácio Ribeiro Presidente da Câmara Municipal de Felgueiras

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INTRODUÇÃO O presente trabalho contempla o estudo etnográfico realizado no âmbito do Projecto Vivências passadas - Memórias futuras: a cultura do linho, pão e vinho, co-financiado pelo FEDER, na esfera do concurso Património Cultural do ON2, desenvolvido entre 2009 e 2010. A etnografia procura, pelo registo e interpretação cruzada de objectos, de imagens e de textos, sejam eles orais ou escritos, e claro, pela experiência contextualizadora que a presença do etnógrafo permite, uma melhor compreensão da realidade abordada. A etnografia é uma actividade inerente ao pensamento antropológico que procura observar e descrever um determinado povo, ou um segmento de um povo, de maneira minuciosa e profunda.1 Esta monografia não procura ser o sumo totalizante da memória e de todas as outras contribuições disponíveis sobre a cultura dos ciclos apontados, mas sim, uma contribuição que pretende apresentar traços da cultura do concelho de Felgueiras. Este trabalho constitui, portanto, uma primeira abordagem à memória contemporânea sobre um passado cada vez mais distante. Uma memória que incide sobre as tecnologias, técnicas, comportamentos e traços culturais que se circunscrevem ao “tradicional”. Convém adiantar que não é nossa preocupação esclarecer o conceito de tradição, antes procuramos plasmar a comum acepção de “tradicional” que remete para uma esfera de espaço-tempo de definição vaga. Isto é, entendemos que o que é dito ser tradicional implica um contínuo referente a um passado que é, de alguma forma, idealizado e reproduzido pelas gerações contemporâneas com base numa romantização idílica desse mesmo passado.

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Aqui, os “ciclos tradicionais” são, essencialmente, o conjunto de tecnologias de referência, de técnicas aplicadas, de comportamentos, consumos e de processos e actividades humanas que estavam envolvidas na produção do linho, do pão e do vinho, e que eram comuns, pelo menos, até à década de 1970, e que, de algum modo, foram sofrendo mutações e adaptações até à actualidade. Esta monografia é composta por capítulos, que vão desde a presente introdução até à contextualização histórico-geográfica do concelho, passando pela referência às principais alterações que a agricultura sofreu no decorrer da história em Portugal. Apresentamos ainda o levantamento etnográfico dos ciclos do linho, do pão e do vinho, concretamente, a exposição dos modos de transformação da matéria-prima, sua comercialização e consumo dos bens produzidos, sendo esta exposição reforçada pelos contributos de informantes locais.2 Finalmente, concluímos com uma reflexão que procura sintetizar as ilações retiradas no decorrer do desenvolvimento deste trabalho.

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VIVÊNCIAS PASSADAS: uma contextualização

Desde a idade do ferro, mas sobretudo sob o jugo Romano conseguido por Júnio Bruto em 138 a.C.3 , a prática da agricultura expande-se de modo a providenciar a subsistência dos cidadãos, mas também a produzir excedentes que são comercializados de forma mais sistemática e em maior segurança. Esta crescente actividade comercial, em conjunto com os avanços técnicos de armazenamento e de transformação dos produtos, contribui para o cultivo massificado do centeio, cevada e milho miúdo, e ao incremento da produção já existente de linho.4 De outros constantes avanços e recuos na agricultura ao longo dos tempos, nunca alheios à consolidação político-militar das fronteiras que virão a desenhar o rectângulo português, é com a Idade Média que surgem as principais conquistas internas sobre a terra arável, a abertura de canais e valas, a edificação de diques, o aumento das produções e o consumo do azeite e do vinho e o uso preferencial de cereais, como o centeio e o trigo, que se perpetuou até aos nossos dias. Refira-se, por exemplo, que Entre Douro e Minho é um espaço que é, desde o século XI, considerado densamente habitado, onde o regime senhorial da reconquista encontrou “autênticos viveiros humanos” que pela posse de armas e de poderes públicos dominaram a massa humana existente e a submeteram a uma agricultura intensiva,5 “A sociedade do senhorio com o cultivador nasceu primitivamente da miséria do último e da opulência do primeiro. Foi um estado transitório, que a falta de capitais explica (…)”.6

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Um brevíssimo olhar sobre a história da agricultura permite-nos perceber não só como foi sendo ocupado o território, mas também como o quotidiano das populações estava marcado pelo trabalho no campo e, por conseguinte, estabelecem-se contextos para o aparecimento de actividades e práticas que são entendidas como ancoradas num tempo pretérito com origens suficientemente profundas para, por isso também, serem entendidas como tradição. Com este entendimento, fazemos aqui um pequeno balanço das principais etapas da agricultura em Portugal desde o século XV.

Do Renascimento à Modernidade No início do séc. XVI, a auto-subsistência cerealífera como objectivo esbate-se dando lugar à livre circulação e importação de cereais, permitindo um florescimento da pecuária. Neste decurso, também as novas espécies de cereais e vegetais introduzidos prosperam e, no caso do milho 7 (maiz) aliado às hortaliças e ao feijão, substituem gradualmente o trigo e o centeio, contribuindo assim para a melhoria das dietas alimentares camponesas e, consequentemente, para o aumento demográfico das suas populações. As características do cereal milho provocaram alterações drásticas na relação do homem com a terra e por sua vez com os animais, pois permitiu a utilização dos seus excedentes, como a palha e a cana, para fins tão diversos quanto o enchimento de colchões ou o alimento dos animais. Por conseguinte, as sementeiras de trigo caíram em desuso, aumentando a sua importação. Ao mesmo tempo, a produção de azeite foi gradualmente crescendo e, em finais do século XVII, o azeite significava uma sexta parte das exportações no porto de Lisboa e uma sétima parte no Porto. Também a produção de

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vinho cresceu, permitindo às regiões mais a norte uma prosperidade até então desconhecida. No concelho de Felgueiras, a criação de um complexo sistema de rega permitiu contrariar o difícil acesso à água potenciando as já férteis terras. Refira-se o aumento do uso do terreno para a sementeira de milho que obrigou ao uso da vinha dependurada ou em árvore, também designada de vinha de enforcado, na circunvalação dos terrenos.8 O aumento do uso de terras para o cultivo de milho obrigou ao uso de diferentes formas de vinha suspensa, fosse ela amarrada ao longo de arames horizontais sustentados por marcos verticais (vulgo, “esteios”), os chamados “bardos”, a já referida vinha de “enforcado”, ou ainda as características “ramadas” que sobre os terrenos de cultivo os bordejavam (colocadas até sobre zonas de passagem privadas ou caminhos públicos). As transformações sociais, culturais e tecnológicas ocorridas entre os séculos XVI e XVIII alteraram a paisagem e os campos tal como até então eram conhecidos. Para além disso, ao contrário do período medieval que havia sido marcado por uma estratificação social clara, onde a mobilidade social dos indivíduos era restrita à sua condição de origem, à família, ocorreram transformações no próprio tecido social. Com maior capacidade de mobilidade social, os indivíduos constroem novos grupos e uma nova ordem social surge. A ascensão da burguesia mercantil provém e promove a ascensão da preponderância e influência do capital sobre a terra e a sua produção. A nobreza, controladora maioritária da terra, tardiamente se apercebe das mudanças sociais que as trocas comerciais intercontinentais determinam. A procura de bens produzidos no Novo Mundo desequilibra definitivamente as estratificações seculares em Portugal, bem como no resto da Europa. Concomitantemente, a posse de título

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nobiliárquico torna-se um bem adquirível pelas novas elites que buscam o prestígio e os privilégios de uma classe em decadência. Em resposta a esta perda de influência e poder, a nobreza e o próprio clero encontram nas lacunas legislativas e na ausência de um Estado central forte, uma oportunidade para reporem a sua condição. Entre 1750-1777, durante o reinado de D. José, em particular, sob o ministério do Marquês de Pombal, inicia-se um longo processo de modernização do país, reestruturação política e social, e em particular, uma reforma profunda das finanças públicas. Entre as reformas realizadas, destacamos, por exemplo, a aplicação de um sistema de impostos mais eficiente sobre os proprietários de terra. Todavia, neste período, impostos e direitos já banidos eram ainda aplicados ilegalmente nos meios rurais como, por exemplo, a dízima, um direito de portagem sobre os bens que eram transportados pelos lavradores e comerciantes, anterior à nação portuguesa, e que era cobrado pelos dizimeiros a mando dos proprietários. Este tipo de abusos acentuava a clivagem entre os agricultores e pequenos proprietários, e os grandes proprietários, senhores da terra. "Assim, os direitos senhoriais, que em tantos locais vemos serem causa directa da ruína da agricultura, (...) não sofrem limitações.” 9 Para além dos senhores, também os próprios mosteiros e suas ordens eclesiásticas, ao assumirem controlo directo sobre o território ao seu encargo, agravavam os encargos sobre os indivíduos no seu domínio de forma abusiva.10 Durante o final do século XVIII, a agricultura sofre mudanças substanciais, desde logo pelo aumento da procura de trigo e de gado para o consumo da cidade de Lisboa, em franco crescimento, o que obriga a um incentivo da produção destes no lugar das produções

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habituais. Estes incentivos, e até restrições de produção de culturas extremamente lucrativas localmente, como o vinho, trouxeram o descontentamento e permitiram novos abusos, como aconteceu no Alentejo onde os grandes proprietários aumentaram as rendas para forçar o abandono das mesmas, podendo assim implantar a produção de gado no lugar de cereais. O conflito entre agricultores e senhores, e até com a própria Igreja, culminou no ano de 1771, isto, apesar dos códigos legais e fiscais introduzidos por Marquês Pombal. Este clima de conflito é potenciado, portanto, num contexto de crescente dificuldade de controlo sobre a economia e sociedade, de aumento de produção para alimentar a máquina económica nacional, altamente centralizada, e é fruto da incapacidade de adaptação do regime senhorial às novas necessidade sociais. Na verdade, esta incapacidade de adaptação é um dos factores centrais da queda do Antigo Regime, tanto em Portugal, como em França ou no resto da Europa. Gradualmente os senhores vêem a sua renda senhorial diminuir, as suas terras a sofrerem um esgotamento, os seus direitos e privilégios a cair, um aumento da resistência popular rural e da sua capacidade de exação das rendas senhoriais. Esta decadente condição e o aumento da eficiência fiscal do Estado sobre si, força os senhores a recorrerem aos mecanismos que dispunham para resistirem, e até mesmo a manipularem decretos e direitos forais atribuídos pelo Rei. Como terá ocorrido, por exemplo, nos Mosteiros de Pombeiro e de Arnoso, e na comenda de Veade: “Mas foi no Minho, região de «terras apertadas», que vimos surgir maior número de irregularidades desta natureza. Cita-se que por malícia dos procuradores dos vários conventos e comendas, e incúria

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ou conivência dos juízes dos seus tombos, eram neles incorporadas propriedades inteiras pertencentes a reguengos.”11 Apesar das reformas estipuladas por forais desde o reinado de D. Manuel I no início do século XVI, o agravamento da corrupção e opressão sobre os agricultores é assim fruto, por um lado, de um quadro legal confuso, incoerente e pouco claro que não é suprimido pelas novas reformas pombalinas; e por outro, fruto da gradual perda dos rendimentos senhoriais com as novas realidades sociais em meio rural, e do acentuar do controlo e legislação sobre os seus domínios por parte do Estado. No final do século XVIII, os protestos, queixas e confrontos com o poder senhorial multiplicam-se por todo o país, e, nos casos de não cedência, levados às instâncias camarárias e de justiça. Como efeito directo, tanto as autoridades como os senhores respondem com um endurecimento das suas posições. O castigo da rebeldia popular era violento e envolveu por vezes penhoras e execuções às centenas. Um comportamento que apenas incendiou ainda mais as massas camponesas. Num contexto de tumulto, e já no reinado de D. Maria I, são implantadas reformas que não surtem efeitos reais dado que entre 1789-1790 o país mergulha numa crise agravada pela subida repentina dos preços que acelerou o empobrecimento dos pequenos agricultores e engordou as bolsas dos mais abastados. Portugal vê-se subitamente sob o jugo do endividamento externo, então à Inglaterra, que por sua vez se encontra em guerra com a França de Napoleão. Politicamente condicionado, Portugal entra também em guerra com o imperador francês. Com o aproximar dos exércitos napoleónicos, em 1808, D. Maria I foge para o Brasil com a sua corte. O país entra num vazio político que, agravado pela presença de militares

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estrangeiros, faz florescer as ideias de mudança de regime e de condição das massas deixadas à sua sorte pela coroa portuguesa. Dois anos depois, com o auxílio inglês, termina uma invasão que abalaria definitivamente o futuro do país. Na verdade, com o fim da invasão em 1810, é assinado um acordo comercial com a Inglaterra que lhe permite reforçar o domínio comercial intercontinental, e agravar a crise económica nacional. Crise esta que em 1811 obriga a Coroa a vender os seus bens, como a terra, que viria a ser adquirida pelos já abastados lavradores e criadores locais, acentuando o fosso entre os ricos e os pobres. Com as invasões haviam sido pilhadas, destruídas e danificadas infraestruturas comerciais e ferramentas agrícolas. Com a emigração para o Brasil, a guerra, a fome e doenças, o número de braços disponíveis para trabalhar as terras estava extremamente reduzido. Com as terras abandonadas, e com uma escassez de gado, os cereais importados vendiam-se por valores mais baixos do que os da produção nacional. Mesmo no caso do vinho, principal produto de exportação nacional, a produção não conseguia competir com os vinhos importados. Portugal atinge nesse ano o mais elevado défice na balança comercial com o estrangeiro.12 Como reflexo directo da insatisfação geral pelo contexto de crise político-económica ocorre a Revolução Liberal de 1820, no Porto, que viria, por um lado, a abrir o caminho para a independência do Brasil, e por outro, à compilação da primeira Constituição Portuguesa e à criação da Monarquia Constitucional, ambos acontecimentos no ano de 1822. O fim dos privilégios pré-constitucionais atenuou as desigualdades sociais, sobretudo as de índole legal, sendo que antigos senhores e agricultores, tal como os burgueses, seriam iguais em direitos e

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deveres à luz da Constituição. Esta procura por uma sociedade mais igualitária consubstanciou-se em medidas, tais como, entre outras: a extinção da dízima, redução da sisa e abolição dos direitos feudais, nacionalização dos Bens da Coroa e expropriação das ordens religiosas, e extinção de outros entraves à livre circulação de bens. O novo uso da terra deu fruto proveitoso aos novos proprietários, e o desenvolvimento dos transportes e das comunicações propiciou o desenvolvimento económico geral, atingindo-se mesmo, entre 1838 e 1855, a auto-suficiência cerealífera. De facto, em 1819 registavam-se dois terços do solo nacional em pousio e em cinquenta anos esse número reduziu para metade e assim, gradualmente, desenvolveu-se então a cultura da batata e do arroz. Por outro lado, também neste contexto, entre 1853 e 1890, o oídio e a filoxera fizeram grandes estragos nas vinhas, dizimando vastas extensões e criando problemas económicos e sociais que se reflectiram na economia regional e nacional, diminuindo a produção e a exportação do vinho. Uma vez mais um acontecimento que demarcou os usos e costumes das populações, pois a necessidade de combate a esses problemas resultou numa nova forma de cuidar da vinha, introduzindo novas técnicas no quadro vinícola. Numa época de reorganização nacional iniciou-se o registo de informação através de inquéritos enviados dos governadores civis aos administradores de concelho. No caso de Felgueiras, através da análise dos documentos preenchidos pelo então administrador do concelho 13 em 1893, encontramos dados referentes à produção de vinho, azeite, aguardente, vinagre e frutos secos. Refira-se que a produção de azeite no concelho era escassa sendo necessária a importação do mesmo de outras zonas do país, como do

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Alentejo ou de Trás-os-Montes, e a de frutos secos estava a decrescer. Todavia, a produção de vinho ressurgia, registando-se em 1897 nas freguesias do concelho um número elevado de pipas de vinho, entre 20 e 100, em vinte e quatro freguesias, e entre 100 e 500 pipas, noutras sete freguesias do concelho.14 Por outro lado, em géneros alimentícios destacam-se a produção de milho com cerca de 1880 toneladas, de feijão com 198 toneladas, e a produção de palha centeia para forragens com 120 toneladas. Os documentos revelam que, no que toca a cereais e leguminosas, o concelho era auto-suficiente e ainda comercializava um terço da sua produção. Relativamente ao vinho, em 1899, foram comercializados dois terços do mesmo, sendo que metade se destinou à exportação, sendo comercializada também metade da produção de aguardente e importadas 100 toneladas de azeite. Os números enunciados, permitem-nos inferir que o concelho de Felgueiras era exportador de cereal e vinho, e importador de azeite. Pretendendo esta fomentar o desenvolvimento da agricultura e contribuir para um maior e melhor conhecimento agrícola da região, em 1895, é fundado o Syndicato Agrícola de Felgueiras. A sua acção inicial era o abastecimento de adubos e correctivos a preços que competiam com os do mercado, e a produção de vinho verde de qualidade, tendo conseguido uma medalha de bronze na exposição de Bordéus em 1896. Em suma, retornando ao contexto nacional, a burguesia aristocratizada vê na criação do Estado moderno uma forma de aplicar uma dupla estratégia de apropriação-exclusão, desejando simultaneamente, os privilégios da antiga nobreza, em particular a posse de terra, e a acumulação de riqueza sacrificando as classes inferiores, nomeadamente, por via da taxação de impostos.

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Isto significa que, se por um lado a garantia de certos direitos balanceou condições sociais e potenciou a possibilidade de uma condição mais próspera a todos os cidadãos, por outro, a concentração de riqueza, e com ela a aquisição de terras, veio propiciar uma mudança de posse das terras, e em resultado, uma mudança de senhores feudais a senhores burgueses.

Da 1ª à 2ª República A conjuntura que a sociedade portuguesa vive, de confronto interno entre classes, de crise económica, défice externo, e de opressão sobre as classes mais dependentes, como a camponesa, acaba por criar condições que levam ao descontentamento das massas e das elites, e com ele ao regicídio e à revolução política com a instauração da 1ª República em 1910. Todavia, a esperança de novas mudanças no sentido da modernização do país, tanto no campo industrial como agrícola, esmorecem com o atropelar constante dos sucessivos governos que fazem o país mergulhar numa instabilidade que em nada beneficiou os seus cidadãos. Como resposta à decadente situação política e social, e após a ditadura militar que durou de 1926 a 1928, Portugal abraça a Constituição do Estado Novo, que coloca no poder Salazar. Durante o Estado Novo, sobretudo até ao final da segunda guerra mundial, Salazar opera inúmeras mudanças económicas e financeiras que permitem um equilíbrio das contas públicas e, com a neutralidade que advoga durante o conflito mundial, um aumento substancial da produção industrial e agrícola nacional. Embebido do fulgor promissor do Estado Novo, a retórica do inevitável Portugal modernizado inferia que "sem o progresso, a tradição morre,

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definha, extingue-se, asfixiada num primitivismo estagnado, fixo em estádios que os séculos ultrapassaram e venceram. E qual é hoje o Povo, urbano ou rural, que se possa dizer civilizado sem que a electricidade não influa no seu trabalho e comande a sua ferramenta?"15 De facto, a partir da década de 1950, o regime abre as portas ao comércio externo e investe na indústria nacional, em infraestruturas, no turismo, nos transportes, etc., e em 1959 adere à Associação Europeia de Livre Comércio. Esta adesão potencia a economia portuguesa e promove uma verdadeira modernização nas tecnologias agrícolas. “Desde há muito que os pequenos e médios agricultores conscientes se apercebiam que, para as suas explorações não se limitarem a uma sobrevivência vegetativa e atingissem o nível de prosperidade que os dignificasse como lavradores e como cidadãos, tinha de se operar uma mutação profundíssima (...).”16 Como exemplo dessa modernização, consideramos os dados referentes à percentagem da população activa agrícola no distrito do Porto que dos 21,7% de 1950, cai para os reveladores 10% da década de 1970.17 O Salazarismo, através de uma articulação entre a potenciação da indústria, sem a supressão total da agricultura, permitiu o contentamento generalizado, ou pelo menos uma estabilização, nas classes dominantes e na classe camponesa. De uma forma astuta, a política do salazarista consegue ultrapassar as contradições internas e transitar de forma lenta mas estável de uma sociedade agrária para a industrial. A necessidade de tantos trabalhadores nos campos é drasticamente reduzida o que, em paralelo com a opressão do regime sobre as liberdades individuais, impele ao êxodo rural e sobretudo à

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emigração, tanto para o Brasil e Europa, como para as províncias ultramarinas. No caso concreto do contexto abordado neste trabalho, todavia, a realidade parece ser contraditória. Apesar da área média de exploração agrícola no distrito do Porto, e no concelho de Felgueiras serem próximas, o número percentual de tractores existentes em Felgueiras por 100 ha é 0,3 em contraste com a média do distrito que é de 0,9.18 Este factor correlacionado com a taxa de analfabetismo associado aos agricultores do concelho, que ultrapassava os 40%, desde logo antevia uma modernização agrícola muito abaixo da média nacional, e com ela um perpetuar das condições de trabalho e de vida dos agricultores. Entre Douro e Minho apresentava, ainda em 1952/54, explorações de parceria que representavam mais de 9% do número total de explorações, decrescendo para cerca de 8% do número, e 7% da superfície total das explorações em 1968.19 De facto, pelo menos desde os anos 40, Portugal via a sua superfície total de exploração decrescer rapidamente, com excepção para as explorações de parceria, entre senhorio e o(s) caseiro(s) ou entre o proprietário e cultivador(es), sobretudo na sub-região Entre Douro e Minho. Este fenómeno das explorações de parceria continuou a subsistir em vários concelhos da sub-região, incluindo Felgueiras, mesmo após a Revolução de Abril de 1974. De acordo com os dados do Recenseamento de 1979, existiam ainda muitos casos de regime de parceria, dos quais o Estado não tinha conhecimento, visto que os contratos deste tipo eram estabelecidos entre os senhorios e caseiros oralmente.20 Tradicionalmente o caseiro utilizava como principal força de trabalho a sua família e submetia-se às exigências do senhorio em contratos verbais de duração anual “com início e fim normalmente a 29 de Setembro (dia de S. Miguel) e,

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desde que não fossem denunciados por qualquer das partes até 60 dias antes do seu termo, consideravam-se automaticamente renovados por igual período de tempo”.21 Com o aumento da emigração e suas remessas, a crescente oferta de emprego proporcionada pela indústria, e difusão dos órgãos de comunicação, o acesso escolar generalizado, etc., o meio rural torna-se consciente e interveniente nas novas normas, valores e comportamentos sociais. Como tal, os caseiros e pequenos agricultores vêem-se forçados a adaptar as suas explorações e produções aos desejos do mercado, e os senhorios a reduzir, ou abolir, o grosso das suas exigências de produção. No que concerne ao concelho de Felgueiras, resta notar que, embora de facto toda esta conjuntura tenha conduzido ao abandono dos campos, o principal responsável por esse abandono no concelho foi também, em larga medida, o aparecimento e propagação das fábricas de calçado. Estas, implantadas desde a década de 1960, travaram o êxodo migratório, e reduziram a necessidade de modernizar a agricultura, o que jogou a favor da continuidade da utilização das técnicas tradicionais, ou da sua lenta renovação e substituição. Os agricultores tornaram-se operários fabris repentinamente, mas não deixaram de produzir e cultivar as suas terras, fosse com a mãode-obra familiar ou assalariada, ainda que apenas para consumo próprio. Esta derivação de agricultores assalariados para operáriosagricultores, pode explicar assim, a mescla tecnológica e técnica na produção agrícola do concelho de Felgueiras, que é simultaneamente marcada por uma industrialização dispersa e repentina,22 e por uma lenta e parcial modernização da produção agrícola.

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Felgueiras e o Vale do Sousa Uma curta alusão à história do concelho de Felgueiras remete-nos para tempos tão remotos quanto a Idade do Bronze, isto tendo, precisamente, a agricultura e o seu desenvolvimento como linha temporal de referência. O Povoado de Cimalhas, alvo de escavações arqueológicas entre 2003 e 2004, demonstra com evidência a existência de povoamentos em Cimalhas anteriores a 2000 a.C., na actual freguesia de Sernande. Os cento e vinte e dois silos com capacidade de armazenamento entre os 400 a 500 litros, bem como objectos relacionados com a produção de cereais e o processo de farinação, são exemplo da ocupação do território e das práticas agrícolas nele desenvolvidas. As povoações concentravam-se em povoados de dimensão ainda pequena situados em pontos elevados e Fotografia aérea da escavação do Povoado de Cimalhas, silo para armazenamento de cereais e um vaso restaurado, respectivamente.

de fácil defesa, os denominados castros, dos quais as evidências ainda remanescentes em vários concelhos de Entre Douro e Minho são prova da sua existência.

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Todavia estes povoamentos foram, com a chegada dos Romanos, sendo assimilados, destruídos, deslocados, e perdem a sua funcionalidade, tendo sido definitivamente abandonados antes da transição para a Idade do Ferro”.23 Novas localizações como a Villa Romana de Sendim, confirmada em 2008,24 evidenciam a influência e o domínio do Império Romano na região desde o século I a.C.: “A sul do rio Vizela e na bacia do Sousa, muitos dos seus povoados - como o castro do Senhor dos Perdidos, o castro do Ladário, o castro de Santa Marinha, o castro de S. Simão, ou o castro da Pedreira - mostram sinais de romanização a partir dos finais do século I a.C., mas até aos finais do século seguinte serão progressivamente abandonados”.25 Com toda uma nova forma de organização política e social, de produção e de comércio, os hábitos vão sendo moldados à imagem da lei romana que, com a proximidade de Bracara Augusta (Braga) e dos seus exércitos é reforçada, permitindo que villas romanas e seus senhores, como a de Sendim, subjuguem vastas extensões. Pondera-se

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que a Villa de Sendim terá experienciado grande produção agrícola e domínio, sobretudo entre finais do século III, devido às expansões detectadas na dita propriedade.26 Com a chegada dos Suevos à península, nomeadamente com a pilhagem de Bracara Augusta pelos Visigodos em 455-456, esta acaba por escapar ao controlo romano e passa a ser a capital dos novos senhores da região a partir de 585. A chegada dos “povos bárbaros” a toda a Europa e a sua adaptação à organização social e religiosa romana existente permite o início de uma nova ordem social. Novos reinos são forjados e a reconquista cristã, potenciada pela ocupação muçulmana do centro e sul da península, reforça o feudalismo, assente no domínio da nobreza e do clero sustentadas pelas populações camponesas.

A Villa Romana de Sendim foi uma grande propriedade agrícola que se estendia no vale entre Sendim e Jugueiros. Era encabeçada por uma casa senhorial de grandes proporções (pars urbana) estruturada à volta de um espaço aberto central, o peristilo, com galerias porticadas, para as quais abriam os quartos (cubicula), a sala de banquetes e recepções (triclinium), e estava dotada de umas termas, onde ainda se conserva o seu hipocausto, e a piscina de água fria. Muitos dos seus compartimentos estavam pavimentados com mosaicos polícromos de decoração geométrica.

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No que se refere a Felgueiras, enquanto um povoado relevante no contexto nacional, tem a sua primeira menção de destaque no testamento de D. Muma, ou Mumadona, como é mais conhecida, datado do ano de 959, onde no qual lega bens, herdades, igrejas, paramentos, alfaias, etc., ao cistério de Guimarães (Igreja da Senhora da Oliveira). Contemporaneamente, num inventário dos bens, igrejas e herdades do rico cenóbio de Guimarães, na mesma Igreja, datada do ano de 1059 são referidas várias freguesias de Felgueiras. Na verdade, com a Reconquista Cristã, entre os séculos X e XII, foram edificadas a maioria das igrejas românicas que hoje adornam o património cultural de Felgueiras, bem como, o mosteiro de Pombeiro. Este, casa de monges Beneditinos, representou um importante epicentro geográfico localizado numa encruzilhada de

Hipocausto das termas da Villa Romana de Sendim, datado do séc. III a.C. Bilha restaurada, do séc. IV/V, encontrada no Triclinium da casa da Villa Romana de Sendim.

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estradas medievais que conduziam a Guimarães, Braga, Porto, todo Trás-os-Montes, e via Lamego, para a Beira. Este mosteiro, nos finais do século XIII, “Com as doações e dádivas dos fieis, tornou-se rico e as suas propriedades e casais estendiam-se ao largo chegando a Vila Real”.27 Em 1112 é criado o couto de Pombeiro por D. Teresa,28 mais tarde, em 1247, D. Afonso III, doa o couto ao mosteiro de Caramos. Já em 1220 durante as inquirições de D. Afonso II, o então julgado de Felgueiras era composto por vinte freguesias. Mais tarde, há menção de doações de D. Dinis a um seu filho bastardo, em 1325, que deteria alguns povoamentos locais, nomeadamente Unhão, mas que logo no reinado de D. Afonso IV foram agregadas às posses da coroa. Felgueiras recebe o seu foral em 1514,29 e em 1515 D. Manuel I atribui Foral a Unhão,30 ascendendo este a concelho controlando as actuais freguesias de Vila Verde, Pedreira, Rande, Sernande, Lordelo e parte de Varziela. Em 1833 o concelho de Felgueiras deixa de pertencer à comarca de Guimarães e é transferido para a de Amarante, tal como o concelho de Unhão. Todavia em 1835 Felgueiras passa para o distrito de Braga e Unhão para o distrito do Porto. Marcado claramente por uma profunda e complexa reorganização política e administrativa durante o século XIX, devemos referir que o concelho de Felgueiras, em 1835, foi repartido em quatro julgados. Já em 1855, Felgueiras conhece a sua condição política mais elevada até à data ao ser elevada a comarca. Alguns anos mais tarde, em Foral de Felgueiras e Foral de Unhão, outorgados por D. Manuel I, em 1514 e 1515, respectivamente.

1882,31 também a administração religiosa de Felgueiras, até aí controlada pela Arquidiocese de Braga, passa finalmente para o Diocese do Porto. Finalmente, em 1927, Felgueiras absorve fregue-

Na página seguinte, perspectiva aérea do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro.

sias pertencentes à comarca de Lousada, e no ano de 1990 ascende a cidade.

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Sobre este constante acerto político e administrativo do concelho, deve ser notado o crescimento da população residente em Felgueiras, sobretudo nos últimos dois séculos. Entre 1258 e 1706 a sua população cresceu apenas dos 4.800 habitantes para 11.000, enquanto que no século XX a sua contagem disparou dos 25.000 de 1930 para os 48.000 em 1981.32 O rápido crescimento da sua população,33 em particular nos últimos dois séculos, contrariou a tendência de desertificação dos meios rurais, mas também permitiu um crescimento desorganizado da malha urbana, também ela já dispersa por si há séculos.34 É de todo este cenário que o actual concelho de Felgueiras resulta numa “região com caracterização própria, dotada duma agricultura fértil e onde a indústria se implantou um tanto esmo por todo lado, sem contudo ter descaracterizado completamente a paisagem natural”.35 Já geograficamente este concelho caracteriza-se por paisagens relativamente homogéneas com vales extensos impregnados de vegetação e pequenas e médias culturas, bem como, pela densidade populacional de pequena dimensão com aglomerados que não ultrapassam os dez mil habitantes. Contando com 59.000 habitantes, o concelho de Felgueiras surge como um dos concelhos mais jovens de Portugal, e mesmo da Europa.36 Situa-se numa área planáltica, e o seu nível climático caracteriza-se como relativamente frio, com uma temperatura anual média que oscila entre os 7º e os 15º,37 sendo uma região demarcada pela geada, que ocorre em média 45 dias por ano e com uma pluviosidade em O concelho de Felgueiras caracteriza-se por paisagens relativamente homogéneas, com vales extensos impregnados de vegetação e pequenas e médias culturas, conforme vemos na imagen da página seguinte.

duas estações, chuva intensa de Outubro a Maio e sem precipitação de Junho a Setembro. Ostentando ainda uma riqueza e complexidade na sua rede hidrológica natural assente, no rio Sousa e seus afluentes, concretamente, o rio Ferreira, rio Mésio e rio Cavalum,

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que tem vindo a sofrer alterações consideráveis pela mão humana ao longo dos séculos. Felgueiras está situada numa região designada de Região de Entre Douro e Minho, mais especificamente denominada de Vale do Sousa, por se encontrar no decurso do rio Sousa que tem a nascente na freguesia de Friande (Felgueiras) e que desagua no rio Douro. O Vale do Sousa reúne características geográficas de acentuada arborização e de pastos abundantes de Inverno, que permitem uma irrigação dos terrenos, bem como, abarca um predomínio do cultivo do milho, sobretudo para alimento de gado, e de cultivo de vinho verde, graças às

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suas encostas. Tido como elemento identificador de uma sub-região do Douro Litoral ou Baixo Douro,38 o Vale do Sousa abarca os concelhos de Penafiel, Paredes, Lousada, Paços de Ferreira, Castelo de Paiva, e claro, Felgueiras. Procurando encontrar no rasto do seu desenvolvimento as marcas de um passado que parece estar definitivamente a desaparecer, Felgueiras, hoje, procura nas produções agrícolas tradicionais, ou parcialmente tradicionais, mais concretamente, do linho, do pão e do vinho, operar um levantamento etnográfico que contribua para reconstruir a memória de um passado recente. As culturas que são visadas neste trabalho sofreram mutações de cariz A região do Vale do Sousa ostenta uma riqueza e complexidade na rede hidrológica natural, assente no rio Sousa e seus afluentes.

diverso até hoje, assim é coerente que agora passemos à sua contextualização, às referidas mudanças tecnológicas e técnicas, e às suas mutações sociais.

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‘AS VOLTAS QUE O LINHO DÁ’ O linho é uma planta herbácea que pode atingir uma altura máxima de 1,1 metros, sendo a sua flor de cor azul ou branca. Composta essencialmente por uma substância lenhosa, no seu interior, e de uma substância fibrosa que a reveste; é desta que se retira a fibra necessária para a produção de tecidos. Trabalhado na nossa península desde, pelo menos, há 4.500 anos, todavia, só com o jugo de Roma e da pax romana, é que o solo foi desbravado e ocupado de forma mais consistente pelas plantações de cereais e outras espécies de plantas que o homem podia consumir e transformar.39 A influência do povo invasor por todo o seu império determinou, e ainda determina, a terminologia latina de boa parte dos termos referentes ao linho como, por exemplo, bragal, tomentos, estriga, espadelar, etc.

Campo de linho amadurecido pelo calor de junho, aguardando as mãos que não tardam a libertá-lo da terra mãe.

Mais tarde, durante todo o período da Idade Média, é visível como o linho é tido como parte integrante do pagamento de taxas e de portagens, por exemplo, em algumas das cartas de foral emitidas desde D. Afonso Henriques.40 O pagamento em linho aos senhores, prolongou-se por vários séculos, atravessando tanto o período da Monarquia, como a 1ª República até à actual; desta feita, como uma parte do pagamento anual dos caseiros aos seus senhorios. Desde sempre o linho obteve larga importância no quotidiano das famílias, sendo um dos materiais mais utilizado para manufacturar vestuário, "(...) no decurso da Baixa Idade Média, as referências expressas ao linho e actividades linheiras (...) são numerosíssimas, atestando com segurança a grande amplitude, aí, do seu cultivo, e a importância e valor que possuíam na vida da nossa sociedade rural e popular…”.41 São diversas as variedades de linho existentes, no entanto, em Portugal, são cultivados sobretudo três tipos: Galego, Mourisco e

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Riga Nacional. No Norte do país, dadas as características do solo e do clima, cultiva-se o linho Galego; considerado como o melhor no que se refere à brancura e finura da fibra. É semeado na Primavera e cresce por dois meses e meio. Para a sementeira escolhem-se campos férteis, de terras fundas e frescas, dispondo de água para regar. Características geo-climatéricas que podem ser encontradas não só no concelho de Felgueiras, mas também em todo o Vale do Sousa.

O Linho Está-se a Aprontar Cadabulho Antes de lavrar o terreno destinado à sementeira, o agricultor fazia o cadabulho ou rapeiro, que consistia em limpar, com uma sachola, as delimitações do terreno de todas a ervas, incluindo as que ficavam junto das videiras, árvores ou muros; com um engaço eram retiradas e espalhadas no campo a fim de se misturarem com o estrume. Esta limpeza era efectuada por alturas da sementeira, entre Abril e inícios de Maio. Depois de efectuado o cadabulho, a terra era estrumada e de seguida lavrada utilizando o arado. Esta técnica agrícola procura revolver a terra, descompactando-a, de modo a garantir que as raízes das plantações se desenvolvam. Os arados eram movidos por tracção animal, usualmente por meio de uma junta de bois.

Na página seguinte. Com a cesta de vime, o agricultor faz a sementeira a lanço da planta do linho.

Depois de lavrar a terra, o passo seguinte era gradar, utilizando para o efeito uma grade 42 puxada por uma junta de bois e conduzida por uma pessoa, que tanto podia posicionar-se à frente da junta de bois, como de pé sobre a grade. Esta tarefa era efectuada em toda a extensão do terreno de modo a desfazer os torrões. Depois de efectuada a sementeira, o terreno voltava a ser gradado, mas desta

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vez com a grade virada ao contrário (com os dentes para cima), de forma a alisar a terra o mais possível. Finalmente engaçava-se a terra, passando um engaço por toda a extensão do terreno, com o objectivo de a alisar ainda melhor; este aspecto era condição fundamental para que o linho crescesse robusto. A semente do linho, a linhaça, era espalhada manualmente (sementeira a lanço) pelo agricultor, que carregava consigo uma saca ou cesta com as sementes. Ao fim de três dias a planta começava a despontar. Ali no Abril... semeava-se o linho e aquilo tinha de ser muito engaçadinho, muito engaçadinho, por causa das ervas, que aquilo não era sachado. Era assim muito engaçadinho e ós depois regado, regavase com água e começava assim a nascer. [Homem, 75 anos, Borba de Godim]

A terra é lavrada e gradada, e depois semeia-se o linho, torna-se a gradar e depois quando ele nascer rega-se! Ele depois cresce até deitar flor depois larga à moda de uma bolinha que é a bagarela. [Mulher, 78 anos, Jugueiros]

A rega do linho variava consoante fosse semeado de Inverno ou na Primavera. No primeiro caso não havia necessidade de o regar, O linho q'ando falaba dezia: a sede passaba q'ando chobia. O linho que

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normalmente se semeava no nosso concelho era-o na Primavera, exigindo regas abundantes. O sistema de rega traduzia-se pela abertura de uma rede de pequenas valas, previamente abertas por altura da sementeira. Esta tarefa era normalmente designada por aleirar. A água enchia as valas que eram propositadamente A frescura da água é conduzida pela abertura de uma rede de pequenas valas, previamente abertas por altura da sementeira do linho.

entupidas, com um basculho (pau onde foram atados na ponta fetos, palha seca, rapão de erva ou trapos), de forma a fazer transbordar a água e assim regar toda a extensão do linhal.

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A Arriga do Linho A colheita ou arriga do linho, ocorria quando a planta apresentava um tom amarelado, sinal de que o amadurecimento total das suas cápsulas estava para breve. Pela Santa Cruz vai ver se o linho reluz! O linho era apanhado normalmente por volta do mês de Junho. Antes mesmo da A arriga (apanha) do linho, com a força das mãos que delicadamente o semeou.

arriga, em algumas localidades, era costume na noite de S. João rebolar pelo linhal, o que indicia um ritual antigo associado à fertilidade.

Quando a cabecinha tinha semente dentro, punha-se amarelinha, às vezes começava a querer abrir e toca a arrancá-lo e ia para o beiral e fazia-se umas mãos-cheinhas para depois poder ripar! [Mulher 82 anos, Felgueiras]

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Depois dos molhos atados, há que transportá-los para a eira a fim de ser retirada a semente para a próxima sementeira.

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Está Tiradoiro O primeiro processo operatório da transformação do linho do estado natural, em planta, para o estado de tecido manuseável denomina-se ripar. Ripar consiste em retirar a baganha da planta, (cápsula onde está a semente do linho, ou linhaça), utilizando para o efeito o ripo ou ripeiro. Este objecto de metal e madeira tem cerca de um metro de comprimento e é constituído por dentes de metal, em pente, com aproximadamente 30 cm cada, assentes numa trave de madeira. Antes de se iniciarem os trabalhos, o ripo é fixado, normalmente na

A força braçal dos homens, em movimentos cadenciados sobre o ripo, separa a semente dourada da planta do linho.

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cabeçalha do carro de bois, no sentido de manter a sua estabilidade e, assim, proceder-se ao arranque da baganha. Esta tarefa era executada por homens, dada a necessidade de um esforço acrescido para efectuar este trabalho. Pegavam nas gabelas (molhos de linho) que lhes eram entregues pelas mulheres e introduziam-nas nos dentes do ripo puxando-as na sua direcção. A baganha caía no chão, sendo-lhe mais tarde retirada a linhaça para a sementeira do ano seguinte. O caule da planta era disposto em molhos, a fim de ser submetido ao tratamento seguinte. Uns de cada banda, os homens é que ripavam o linho... depois, aquilo era uma brincadeira, as mulheres estavam a fazer mão-

Depois de atados pelas mulheres, os molhos de linho são transportados no carro de bois para a água, para serem curtidos.

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cheinhas para eles ripar, e elas botavam um nó no linho e eles metiam aquilo, zumba, e não tiravam, não saía, ficava preso nos dentes... [Mulher, 70 anos, Jugueiros]

Depois de atados pelas mulheres, os molhos de linho eram transportados em carros de bois para a água a fim de serem curtidos. A curtimenta era um processo que usualmente ocorria em presas, rios, tanques, poços; sendo condição necessária que os molhos permanecessem submersos durante aproximadamente oito dias; nesse sentido, eram colocadas tábuas e pedras volumosas sobre os molhos. Para obter uma separação dos elementos lenhosos dos fibrosos a curtimenta, ou curtidouro, era uma operação indispensável.

A curtimenta era efectuada em águas frescas e corredias, colocando pedras e tábuas sobre o linho para evitar que emergisse.

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Quando a curtimenta ocorria nos rios e para que o linho permanecesse submerso, era necessário escavar valas, onde era depositado o linho, sendo de seguida coberto com areia. Tal como no caso anterior, também aqui eram colocadas tábuas de madeira e sobre estas, pedras para que o linho não emergisse. Depois... muito atadinho em molhinhos pequeninos leva-se para o rio, e cobre-se com areia. Escava-se com enxadas e bota-se numa rôta... do cumprimento que se quiser, mete-se assim os molhos. Torna-se a cavar à frente para trás para cima dos molhos, para eles ficarem cobertinhos e está lá oito dias. [Mulher, 78 anos, Jugueiros]

Dependendo das horas, algures entre estas técnicas, tinha lugar o almoço. Dada a quantidade de trabalhadores presentes, o dono da casa era responsável por garantir as refeições. Na verdade, em certos casos, eram as refeições que atraíam os trabalhadores. ...porque naquele tempo comia-se arroz de Estas, comummente, eram compostas por feijão guisafeijões... que era o que havia, não havia do ou arroz de feijão, sardinhas fritas e por vezes um carne! [ou mesmo de tarde]... Sopas de cozido básico e enchidos, acompanhados de broa e vinho... fazia-se uma fornada de pão num vinho. forno... depois de tarde com umas malgas bastante volumosas... primeiro punham vinho tinto.... açúcar e depois é que botavam o pão lá dentro! [Homem, 60 anos, Lixa]

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Secar e Amochar Depois de curtido, o linho era sacudido para extrair uma boa parte da água, sendo de seguida transportado para os montes roçados ou campos limpos, e esticado em linhas a secar, cerca de 15 dias, normalmente sobre vegetação rasteira. Depois de estar empossado, tirávamos do poço e íamos estendê-lo (…), agente estendia-o, lá no monte era plaininho. Ali tudo certinho, uma carreirinha de linho, outra, tudo às carreirinhas. Quando estivesse seco a gente ia lá com a foicinha e pegava na foicinha e vumba, vumba, vumba, apanhava, apanhava um monte dele. E levávamo-lo num carro de bois (…).

Depois de escorrido, o linho é estendido, ordenadamente, no campo previamente limpo.

[Mulher, 73 anos, Borba de Godim]

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Depois de alguns dias a secar, era apanhado com a foucinha em braçados, e seguia para a eira onde secava por completo. Já na eira era amochado. Amochar consiste em bater com um malho no caule, ou pisá-lo por animais (bois) ou até mesmo por pessoas, até ficar quebrado. Depois mexia-se, andava-se com os pés a mexer de uma banda para a outra, como quem mexe o milho. E elas começavam a estalar (…) e então não se podia lá andar descalço! Elas picavam nos pés! A mexer a mexer, eles com os pés em cima daquilo, ia quebrando aquelas varas, e ia começando a mostrar o linho... Depois ia para o moinho. [Mulher, 82 anos, Felgueiras]

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O Engenho Depois de seco e pisado, o linho estava pronto para moer no engenho. Esta complexa ferramenta de madeira é composta por várias rodas dentadas que esmagam o linho sucessivamente até ficar em fibra moída, normalmente em vários maços, ou porções. O linho era passado entre o tambor e os roletes, sendo fracturado e libertando as fibras da maioria das suas componentes lenhosas. Ao atingir a espessura desejada, o “engenheiro” deixava de meter linho no engenho, e, com as palmas da mão, em gestos rápidos e cautelosos, acertava a camada e os seus bordos, até ter folga suficiente, invertendo então a posição do linho.43 O acionar do engenho podia ser efectuado por tração humana, animal,44 hídrica, e mais recentemente eléctrica. Todavia a tracção comum no concelho de Felgueiras e nos concelhos mais próximos, era45 a animal e a hídrica.

Depois de seco e amochado o linho é “triturado” pela força do engenho, movimentado com o vigor e a determinação do Homem.

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Entre a Espadela e o Sarilho Depois de moído, o linho era espadelado, no sentido de libertar as fibras têxteis, da palha. Para efectuar esta tarefa eram necessários dois objectos que funcionavam em conjunto: o espadeladouro, peça em madeira em forma de T invertido, ou um cortiço, onde assentava uma porção de linho, sobre a qual se “batia” Quem tivesse muito pedia onde houvesse com a espadela, espécie de cutelo em madeira, no mulheres, para ir à noite ajudar a espadá-lo sentido de retirar os fragmentos lenhosos que se ali no mês de Agosto. Era um espadadoiro e encontravam nas fibras. As espadeladas eram efectuadas uma espadela e estava ali! A espadela quando por mulheres e traduziam-se em momentos de boa era afiada cortava o linho todo! disposição e de relativa descontracção, onde se cantavam músicas tradicionais, os chamados ternos. [Mulher, 82 anos, Felgueiras]

A espadelada é uma tarefa de mulheres e destina-se a retirar os fragmentos lenhosos que se encontram nas fibras, que saem do engenho.

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Com batidas determinadas e certeiras sobre a estriga de linho, pousada no espadeladouro, a espadela é movimentada, libertando a fibra dos fragmentos lenhosos.

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Muitos rapazes novos, ao escutar os ternos, iam ao encontro das mulheres para cantar e dançar, no fim do trabalho.

A separação do linho da estopa é efectuada através dos movimentos delicados da assedagem.

Normalmente, espadela-se o linho por duas vezes, no sentido de o limpar por completo da parte lenhosa; o material que resulta dessa limpeza são os tomentos, usados para tecer panos grosseiros, que normalmente podiam ser utilizados para confeccionar, sacos, panais para a apanha da azeitona, enxergões.46 Seguidamente usava-se um sedeiro para separar o linho (fibras longas) da estopa (fibras mais curtas). O sedeiro é geralmente um cepo de madeira, de forma paralelipipédica revestido de chapa, onde estão implantadas duas ordens de dentes de aço47 de duas espessuras e espaçamentos diferentes. A este processo, de passar as estrigas de linho pelo sedeiro, refinando a sua qualidade, chama-se assedar.

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Uma vez o linho devidamente refinado, as suas estrigas eram fiadas na roca e no fuso. As mulheres iam humedecendo com saliva as fibras, para facilitar a distensão e respectiva torção do fio: “Quando o comprimento do fio produzido obriga a afastar demasiado o braço direito, interrompe-se a fiação, e enrola-se essa quantidade de fio no fuso”.48 De seguida, o fio que se encontrava enrolado no fuso - a maçaroca 49 - era “descarregado” no sarilho, de forma a obter a meada. O sarilho é um instrumento em madeira composto por quatro braços em cruz, de rotação vertical.

Nas noites de Inverno, junto ao calor da lareira, o linho era fiado na roca e no fuso; sendo convertido em meadas por intermédio do sarilho.

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A Brancura do Linho

A brancura do linho passa pela cozedura e barrela das meadas, de onde ressalta a singularidade dos ingredientes usados: cinza e ervas, para além da água e sabão.

Antes de dobadas e tecidas, as meadas eram submetidas a um processo de branqueamento que implicava, numa primeira fase a sua cozedura numa calda constituída por água, cinza, sabão e ervas aromáticas, e numa segunda fase a colocação das meadas num barreleiro: recipiente de cortiça (cortiço), de cestaria (cesto) ou de madeira (dorna) 50 . Depois de colocadas nesse recipiente, as meadas eram tapadas com um lençol, e sobre este era peneirada cinza e vertida água quente. Havia quem juntasse, mais uma vez, sabão e ervas aromáticas. Esta operação era repetida diariamente, pelo menos, durante uma semana. Da operação de branqueamento fazia parte a cora das meadas: ao fim de algumas horas no barreleiro, as meadas eram retiradas e distribuídas no campo ou colocadas de forma ordenada numa cana, e depositadas também no campo. Era fundamental que as meadas fossem abundantemente regadas, de forma a nunca ficarem secas. Ao fim do dia eram recolhidas e o processo voltava a repetir-se nos dias seguintes, até as meadas ficarem completamente brancas.

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Intercalando as barrelas, as meadas são colocadas a corar sobre a vegetação, sendo recolhidas ao fim do dia para serem submetidas a uma nova barrela, no dia seguinte.

(…) botava-lhe o linho dentro daquelas dornas e depois ali uma camada de meadas outra de... a minha falecida mãe metia montrastos, porque metia bom cheiro! Dava-lhe um cheirinho melhor e depois então deitava-lhe a água e punha no fim (…) um pedaço de sabão e a ferver. Aquele sabão derretia, botava por cima uma camadinha de montrastos e seruda, e cinza.. Cobria aquilo muito cobertinho com roupa velha, para não estragar... e ficava aquilo assim a cozer toda a noite.! [Mulher, 82 anos, Felgueiras]

Depois de suficientemente branqueadas e lavadas, as meadas eram colocadas a secar. Era após a secagem do linho que este era pesado e retirada uma porção para pagamento da renda ao senhorio.

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Da Dobadoura ao Tear O linho estava por fim pronto para dobar na dobadoura. Este instrumento de madeira é caracterizado pelos seus quatro braços em cruz dispostos horizontalmente, e era utilizado para transformar as meadas de linho em novelos, prontos a ser colocados na urdideira.51 Ao processo de preparação dos fios para os dispor no tear, denominase urdidura, e requeria a utilização da urdideira. Fisicamente a urdideira é muito semelhante a uma dobadoira, mas de maiores dimensões. A urdidura é feita através do cruzamento de fios que provêem dos novelos de linho, colocados num caixote de madeira com vários compartimentos52 que se chama noveleiro.

No recato da casa, as meadas são convertidas em novelos, cujos fios farão parte da complexa trama que dará origem ao tecido rústico que é o linho. Na página seguinte. Através do cruzamento de fios provenientes de novelos depositados no noveleiro, é efectuada a urdidura a ser “montada” no tear.

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Eu sei tecer e não sei fiar! Sei dobar as meadas na dobadoira, para meter em fio... (...) Anda lá na dobadoira grande, a gente mete as que quer. Cada volta dá quatro [metros]. Temos à moda de um caixote grande cheio de quadrados. Vinte e quatro. Há quem urda só com doze, às vezes há urdidos só com doze quando é peças pequenas. Vinte e quatro dá dois pontos, se for dezoito dá ponto e meio, e se for doze é só um ponto! (...) Tem à moda de uma espadela com buraquinhos e a gente enche os que quer, ou doze ou dezoito ou vinte e quatro. Quanto mais larga for a teia mais voltas tem de dar ao redor. [Mulher, 77 anos, Borba Godim]

O tear é um objecto de madeira, que permite transformar o fio em peças de linho, cruzando-o numa trama complexa, a cargo de uma trabalhadora especializada, a tecedeira. Não havia muita gente que tecia, mas havia mais do que agora. Porque toda a gente de antes fabricava o linho e fazia camisas de linho para os domingos e de estopa para o trabalho! Eu comecei a tecer tinha catorze anos e tenho setenta e sete, e na altura em que comecei a tecer não havia fartura de panos nem nada, nem camisas de pano nem nada. Não é como agora que não falta nada, mas antes o povo cingia-se ao que tinha de casa! Era tudo de linho, pois era. Agora faz-se muito é tapetes forrados por baixo e bordados à volta. Mas antigamente era para fazer lençóis e ainda me lembro de dormir neles, eram ásperos como sei lá! [Mulher, 77 anos, Borba Godim]

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A Terra está Mal Parecida O trabalho do linho representava uma necessidade básica particularmente dispendiosa devido à complexidade das técnicas envolvidas, bem como, devido ao tempo necessário para a sua produção. Hoje, encontramos com facilidade um leque variado de peças de vestuário compostas sobretudo de fio de algodão cruzado com fio sintético. Esta acessibilidade, que se estende até ao custo dessas peças, não era de todo uma realidade há cinquenta anos, não só no concelho de Felgueiras como em todo o país. O linho era semeado em pequenas leiras ou tratos de terreno, agricultado pelos processos tradicionais da região, e pelo agregado familiar; fiado na roca e tecido no tear caseiro que se podia encontrar num compartimento marginal da casa. Como é comum nas produções tradicionais, mais do que a mera eficácia, a eficiência produtiva era extremamente elevada, isto é, o desperdício de tempo laboral e de matéria-prima é minimizado, pelo que todos os processos e suas técnicas serviam apenas como meio para um fim: a produção de pano de linho em todas as suas variantes (tomentos, estopa, ou linho fino) e sua sustentabilidade. Um exemplo dessa sustentabilidade é a recuperação total da semente do linho, a linhaça, para a produção seguinte, não tendo esta outros fins, como o consumo humano ou animal da mesma. Este aproveitamento é latente nas já referidas variantes do linho transformado, onde o expoente máximo é, particularmente o linho mais fino. Dos panos de linho fino faziam-se peças de roupa como camisas, calças, que honravam quem as envergava, mas devido ao seu valor de mercado os lavradores vendiam este linho de qualidade superior nas feiras ou directamente a consumidores com capacidade de o adquirir. Aqui referimo-nos naturalmente aos senhores e

Página anterior. A rusticidade do linho, trabalhada por delicados e hábeis movimentos das mãos de uma bordadeira do concelho de Felgueiras.

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também aos membros do clero, ou seja, a todos os membros de classes abastadas ou de rendimentos, capazes de o adquirir e trabalhar. Só em casos de produção excedente, por exemplo, é que era possível encontrar lavradores com peças de vestuário de qualidade semelhante. Na verdade, a maioria dos lavradores utilizava a estopa para tecer pano para as suas peças de vestuário dedicado ao trabalho e à vida quotidiana, e algumas peças de qualidade superior para eventos específicos como casamentos, baptizados ou até à missa semanal. Da estopa, o linho grosso, faziam-se também sacos para transportar cereal, toldos para secar o milho na eira, Os senhorios queriam a quinta para eles e colchões para a cama 53 (que se enchiam com palha de os pobres dos lavradores nem um quinto centeio, ou com o folhelho do milho). tinham. Hoje a terra está mal parecida, cheia de silvas e assim (…)

A versatilidade do uso do linho já não é tão clara no caso das peças confeccionadas a partir do pano dos tomentos. Este tecido era caracterizado por uma impureza que provocava desconforto a quem o usava, pelo que era apenas comum entre as famílias mais pobres, que não podiam aceder à estopa ou que eram obrigadas a vendê-la para cobrir outras necessidades.

[Homem, Varziela]

Camisa de homem em linho, bordada a vermelho.

Hoje, as peças de linho têm um valor comercial muito acima do que tinham quando era produzido massivamente, o que é natural, mas destaque-se sobretudo o acentuado valor sentimental, social e simbólico, que estas peças adquiriram. Sejam familiares que procuram herdar ou adquirir as mesmas, ou elementos externos que as procuram para outras zonas do país e do estrangeiro, o linho, hoje, é desejado pela sua beleza e “rusticidade”. Uma excepção a esta regra, são os Ranchos Folclóricos. Estas associações de cariz cultural recorrem com relativa frequência à utilização de peças de linho antigo, ou até mesmo de réplicas feitas

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com linho “actual”, de forma a utilizá-las nas suas representações públicas de folclore que reportam aos costumes tidos como tradicionais. Foi há uns vinte anos que as pessoas deixaram de semear! Deixaram de semear um e outro, e um e outro... e acabou! [Homem, 74 anos, Margaride]

O linho deixou mesmo de ser produzido de forma intensiva no concelho há mais de duas décadas. Consequência que poderá ser atribuída aos movimentos migratórios, ao êxodo rural, e à rápida industrialização e modernização, particularmente desde o final da década de 1970. Os elevados custos de mão-de-obra e a complexidade do processo de produção, levaram à sua decadência, que sofre um golpe final com a generalização do algodão, matéria-prima mais barata e de mais fácil manipulação.

Almofada em linho, adornada com o belíssimo Bordado da Terra de Sousa.

Contudo, o linho encontra-se ainda hoje em feiras ou em lojas especializadas, apesar de parte deste ser industrial e, logo, diferente do linho manufacturado. Um exemplo de uma feliz adaptação, no concelho de Felgueiras, reside na utilização do tecido de linho como suporte para a execução do bordado característico deste concelho. Um labor de difícil execução, onde se aplicam as técnicas tradicionais, também elas valorizadas no mercado e como tal com reflexo no seu custo. A qualidade e beleza do bordado funciona como veículo de projecção do linho, uma vez que os bordados mais ricos têm como suporte este tecido de qualidade única, capaz de garantir a sua longevidade.

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O PÃO A Terra Gera o Pão

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No Egipto, o pão tinha o seu lugar no dia a dia e julga-se mesmo que os Egípcios tenham sido o primeiro povo a produzir pão, que rapidamente foi adoptado, em formatos variados, em todo mediterrâneo e Médio Oriente. Com o advento do cristianismo o pão ganha uma nova componente espiritual que, em conjunto com o vinho, reforça o seu papel extra-nutritivo.55 O pão, sem dúvida, é ainda um alimento estruturante na alimentação portuguesa e consequentemente na alimentação do povo do concelho de Felgueiras. O pão, em Portugal, é confeccionado a partir da utilização de três tipos de farinha: milho, centeio e trigo. No concelho de Felgueiras existe uma predominância do uso da farinha de milho, sendo que a de trigo e centeio servem apenas como elemento de ligação, numa proporção de um para dez, ou seja, para dez quilos de farinha de milho mistura-se um quilo de farinha de centeio ou trigo. O pão confeccionado nesta região, predominantemente de farinha de milho, é tradicionalmente denominado broa. Localmente, semeava-se milho, centeio e trigo, no entanto não raras as vezes, e como o trigo permitia maior lucro na sua venda, as famílias menos abastadas vendiam o trigo e faziam pão apenas com milho e centeio. Actualmente, há cada vez mais quem semeie apenas milho, e raramente o centeio e o trigo. Grande parte dos informantes, que contribuíram com o seu testemunho para a execução deste trabalho, compram as farinhas, inclusivamente, preferem comprar a farinha de trigo para substituir a de centeio, alegando que esta já não tem a

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mesma qualidade devido às novas tecnologias de colheita, que alteram a qualidade do cereal, acrescentando-lhe impurezas que modificam o bom sabor do pão.

O Centeio e o Trigo Do Cadabulho à Sementeira O trigo faz parte da família das gramíneas. Um grão de trigo mede cerca de 5mm de comprimento e, quando maduro, fica com um tom dourado. A sua maturação é determinada pela sua cor, podendo ainda o agricultor mastigar alguns grãos assegurando-se de que está seco e estaladiço.56 É o cereal que requer as terras mais ricas e férteis, Invernos frios e Verões quentes e secos. Estende o seu ciclo vegetativo de nove a dez meses.57 Já o centeio que outrora foi considerado uma erva daninha e tido como mais rústico que o trigo, tem uma farinha mais escura e a sua massa não leveda facilmente. O seu ciclo vegetativo é de cerca de dez a onze meses, no final do ciclo pode atingir 1,60m a 1,80m de altura, tendo espigas longas que contêm um grande número de grãos.58 O centeio é um cereal menos exigente e prefere climas mais frios e secos e solos ácidos, adaptando-se às regiões frias de montanha.59 Para a produção do trigo e do centeio, tanto de chão (quando não eram efectuadas valas para a rega e o cereal era semeado livremente por toda a extensão do terreno) como de márzea (quando eram efectuadas valas para a rega), era efectuado o cadabulho, ou seja, era efectuada a limpeza das bordas do terreno. De seguida, no caso do centeio de márzea, a terra era lavrada e gradada, deixando valas abertas, a toda a largura do terreno a fim de a regar.

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Os velhos chamavam-lhe cadabulho, veja lá! Vou fazer a lavoura em tal campo, vou fazer o cadabulho amanhã e depois…junto às árvores… [Homem, 60 anos, Lixa]

Por alturas de Novembro ou Dezembro, procedia-se à sementeira. A sementeira era efetuada a lanço. Quem semeava andava com uma cesta ou um saco a tiracolo onde estavam as sementes e deveria ter alguma perícia para espalhar bem o cereal. De seguida, passava-se a grade para alisar a terra e aguardava-se o nascer dos cereais durante cerca de um mês.

Entre Cegadas e Malhos até ao Moleiro O centeio e o trigo, quando maduros, eram colhidos ou cegados, em ambiente festivo, por volta do mês de Maio ou Junho. De seguida, os cereais eram transportados para a eira onde eram malhados. Malhar

Depois do centeio malhado, a palha, ou colmo era utilizada para alimento dos animais e para o enchimento dos enxergões (colchões de antigamente)

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Esse é que era o colmo que se enfiava nos colchões, uma vez por ano. E não era confortável, dum lado era alto e do outro era baixo, não é como agora os colchões. (...) Tirava-se aquela palha que vinha toda trilhada, moída, e lavava-se o colchão e tornava-se a encher de novo! [Mulher, 73 anos, Várzea]

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tinha o propósito de separar o cereal do seu caule também designado por palha. No fim dos cereais malhados, a palha do trigo era colocada em medas e servia apenas para alimentar o gado ao longo do Inverno. A palha de centeio, ou colmo, era amarrada através de um vencilho (palha de centeio humedecida) e servia, para o alimento do gado, e para encher os enxergões (colchões de antigamente), normalmente confeccionados em tomentos ou estopa.

Depois de malhado, o grão era transportado para o moinho em carros de bois ou no dorso de mulas, a fim de ser moído.

Milho Do Preparar da Terra até ao Cortar do Pendão Os navegantes portugueses e espanhóis que seguiram os primeiros exploradores foram os responsáveis pela implementação do milho na Europa. A introdução do milho é considerada por alguns autores,

No meio da paisagem verdejante, a inevitabilidade de nos depararmos com belíssimos campos de milho, é uma constante no nosso concelho.

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como Ribeiro (1987), uma das grandes revoluções das sociedades europeias, após a queda do Império Romano. O milho é um cereal muito rentável proporcionalmente aos outros cereais, pois cada espiga fornece grãos abundantes e graúdos e a sua maturação faz-se em apenas quatro a cinco meses, podendo a planta atingir os três metros de altura. No entanto, exige mais cuidados que os restantes cereais, na medida em que tem de ser sachado e regado para dar um boa produção. Distinguindo o milho branco do amarelo, que praticamente só se destina aos animais, a farinha do milho branco é utilizada para confeccionar a broa, um pão pesado e compacto que, misturado com centeio ou trigo, dá um pão lêvedo, mais leve e digestivo.60 Antes de se proceder à sementeira, por alturas de Abril/Maio, a terra é estrumada à medida que o estrume é recolhido nas cortes. Antes de lavrar, o agricultor procedia ao cadabulho ou rapeiro, de seguida a terra era lavrada e gradada com um arado e uma grade, respectivamente, puxado por uma junta de bois. Actualmente este trabalho é efectuado com tractores.

Da preparação da terra para receber a semente, faz parte a sua fertilização através da utilização do estrume (fertilizante natural).

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Depois de fertilizados, os terrenos frescos e fundos, característicos do Noroeste de Portugal, são revolvidos pelo arado e alisados pela grade, para acolherem a semente do milho.

Na página seguinte. O equilíbrio da força humana e da força animal conduzem o semeador na sementeira da planta do milho.

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Quando a sementeira era efectuada a lanço, ao preparar a terra abriam-se de imediato as valas, com o sacho, para na altura adequada efectuar a rega. O agricultor que semeava a lanço levava a semente dentro de uma cesta ou de um saco a tiracolo, aberto à altura do peito e “começava a semear pelo extremo lateral direito do terreno, caminhando compassadamente e lançando o grão com a mão direita meio fechada, em movimentos semi-circulares (…) chegando ao extremo do campo voltava a semear nova faixa a seguir…”.61 Mais tarde, apareceram os semeadores, objectos, inicialmente em madeira e metal, e mais tarde construídos apenas em metal, compostos por uma caixa com um separador no seu interior que originava dois

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compartimentos (semeador de duas linhas): um para o feijão outro para o milho, produtos semeados em simultâneo. A caixa estava assente numa estrutura composta, normalmente, por duas a três rodas. Conforme as rodas se iam movimentando, as sementes depositadas no referido reservatório, que possuía um orifício, iam caindo na terra.

Semeador de duas linhas, composto por um recipiente com divisória, onde são colocados o milho e o feijão, para serem semeados em simultâneo. Em baixo, planta do milho a despontar, cerca de duas semanas após a sementeira.

Quando a sementeira era efectuada com semeador, a preparação do sistema de rega era diferente da sementeira a lanço, isto é, antes da sementeira era efectuado um rego a todo o perímetro do campo, chamado rego mestre. Mais tarde, quando a planta já tinha cerca de um palmo de altura e já tinha sido sachada (limpeza das ervas daninhas) mondada (retiradas as plantas de milho mais débeis) adubada e arrendada (achegada a terra para o pé da planta), é que se construíam múltiplos regos, ou tornas, a toda a largura do campo. Por essa altura dava-se início ao processo de rega, que se prolongava até o milho estar maduro. A sacha e o arrendar do milho, eram efectuadas com uma enxada pequena; mais tarde, surgiram os sachadores/arrendadores metálicos, puxados por um boi e amparados na parte traseira por um homem, vindo facilitar substancialmente a execução destas tarefas. Depois, o milho crescia e quando estivesse desta alturinha era sachado. Mais tarde o meu falecido pai já tinha um sachador, com duas sacholas e o boi a puxar ia rentinho ao milho e cortava a erva. Passado 15 dias de fazer esse trabalho tinha-se de usar o mesmo sachador com sacholas diferentes, em vez de juntar, arrendar. Que era o arrendador. Deixávamos aí umas cinco ou seis linhas no máximo, consoante o terreno fosse plano tinha de ser menos, se não…mais. [Homem, 60 anos, Lixa]

Era comum o agricultor semear o milho em simultâneo com o feijão; como este ficava maduro antes das espigas era colhido mais cedo.

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Depois com uns regos…depois o milho crescia e … tínhamos feijões, porque normalmente os lavradores aproveitavam o terreno e junto do milho semeavam feijões. Quando o milho já estava grande e as espigas talhadas, tirávamos os feijões e ficava só o milho. [Homem, 60 anos, Lixa]

Em finais de Setembro retirava-se o pendão, a ponta do milho, que é utilizado como alimento do gado. “Como o milho é uma planta de flor unisexual, a flor masculina, no topo - o pendão - após a fecundação não tem mais serventia; e por isso é cortado e serve de penso para o gado”.62

Paisagem característica do Noroeste de Portugal, onde se destaca um campo de milho pronto a ser sachado, de forma a crescer mais robusto.

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A Alegria das Desfolhadas Até ao início de Outubro faziam-se as desfolhadas. Antes de se efectuar a desfolhada era necessário retirar a espiga de milho da planta. A colheita da espiga podia efetuar-se de duas formas: podia ser retirada após o corte da planta pela base, ou directamente da planta ainda na terra. Depois de retiradas, as espigas eram colocadas em cestos de vime, e de seguida transportadas para a eira para serem desfolhadas. Depois de retirada a folha, as espigas de melhor qualidade eram guardadas no espigueiro, para serem malhadas por alturas de Abril/Maio, as restantes guardavam-se no beiral ou alpendre, e eram malhadas a seguir à desfolhada, até finais do Outono. O folhelho (a folha retirada da espiga) era utilizado, noutros tempos,

A espiga de milho, depois de madura, pode ser retirada directamente da planta ainda na terra, ou retirada após o corte da planta.

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para encher os colchões confeccionados de tecido de tomentos ou estopa. O folhelho é ainda hoje aproveitado para misturar na terra, funcionando como fertilizante. Depois… pronto, amadurecia e estava na fase da desfolhada. O que é que a gente fazia… aquilo era muito milho levávamos aí uma semana, juntava-se uns amigos, hoje estava-se aqui na minha casa, amanhã na casa do outro (…) até à noite a cantar e a desfolhar! Depois ceava-se alguma coisa e no fim era sardinhas e vinho. Depois… em minha casa fazia assim,… a quinta era muito grande, dava muito milho e não podia ser malhado todo de uma vez senão a eira não chegava. (…) as melhores espigas escolhiam-se para o espigueiro e as outras iam para o beiral. [Homem, 60 anos, Lixa]

Depois de desfolhadas, as espigas de melhor qualidade são guardadas no espigueiro e malhadas durante a Primavera.

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A seguir ia para a eira, malhava-se, com o malho. Punha-se no canto do alpendre. Era à porrada, era um pau comprido com outro na ponta e zumba zumba, horas e horas. Depois havia a malhadeira, antes não, e a malhadeira ia para nossa casa num carro de bois, e depois para a do outro. [Mulher, 73 anos, Várzea]

Após a desfolhada, efectuada aos serões, as espigas de menor qualidade eram debulhadas na eira com o malho, sendo, de seguida, o milho guardado em grandes caixas de madeira, de forma a ser utilizado ao longo do ano.

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A desfolhada era quase sempre uma tarefa que decorria com a ajuda de familiares e amigos em clima de reciprocidade, aliando o trabalho ao festim. Era realizada usualmente à noite, sendo uma actividade caracterizada pelo convívio e festa entre géneros, onde mesmo quem não era convidado, se ouvisse um terno 63 ao longe, aparecia para a festa, havendo sempre sardinhas e vinho para os que chegavam para ajudar.

Como anteriormente ficou assinalado, as espigas, antigamente, eram debulhadas com o malho ou mangual, objecto em madeira composto por duas peças: o pírtigo, com cerca de 50 cm, de secção, normalmente quadrangular, e a mangoeira, rectilínea, e de secção circular, com 1m/1,50m de comprimento e 10c de diâmetro. Batia-se com este objecto nas espigas a fim de separar os grãos de

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milho do carolo. Mais tarde, apareceram máquinas específicas para debulhar (separar os grãos do carolo), as malhadeiras, que vieram aligeirar substancialmente o esforço dispendido pelo agricultor nesta tarefa. Estas máquinas, eram transportadas num carro de bois, e tinham um motor que as accionava. Mais tarde as malhadeiras passaram a ser instaladas num tractor, que era posicionado debaixo do beiral ou alpendre, de onde eram despejadas as espigas directamente para a malhadeira, a qual funcionava com o apoio do motor do tractor. Por fim, depois de o milho secar cerca de 15 dias, era limpo e armazenado nas tulhas o tempo necessário até à sua utilização. Inicialmente o cereal era limpo com um crivo, passando, mais tarde, a utilizar-se uma máquina para o efeito, a tarara. Uma parte da produção era retirada para pagar a renda ao senhorio, outra parte servia para pagar outros serviços, como por exemplo, o “apoio espiritual” ao pároco local. No fim do milho estar malhado vai para a eira secar. Ia para a eira secar, depois de seco limpava-se com uma limpadeira, (tarara) até no meu tempo de pequenino punham numa pá de madeira e atiravam ao ar e depois o vento é que limpava. E ao crivo também. Depois vai para a caixa ser armazenado, para a tulha... como queiram. [Homem, 71 anos, Várzea]

Na página seguinte. No nosso concelho, a moagem do milho era efectuada em moinhos hidráulicos, de sistema de rodízio, constituídos pelas penas e pelo fuso.

O milho depois de seco era metido nas caixas, a renda era dada ao senhorio até aos Santos!(…) Nós tínhamos de pagar alguma coisa ao padre. Hoje é em dinheiro, mas naquele tempo era um alqueire ou dois de milho (…) Isto era até ao fim do ano, agora é em dinheiro (…) naquele tempo não. Carregava-se com os saquinhos de milho e ia-se levar e ele deitava na caixa dele. [Homem, 60 anos, Lixa]

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A Exultação da Farinha Após o trabalho agrícola, uma parte do milho era levada ao moleiro para fazer a farinha necessária para a produção do alimento indispensável à sobrevivência. A moagem era uma fase intermédia entre o cultivo dos cereais e a confecção do pão. Os cereais eram transportados para o moinho em sacos, umas vezes no carro de bois, outras vezes às costas, ou no dorso das mulas. Os moinhos típicos do concelho de Felgueiras eram hídricos de sistema de rodízio. Iam com duas sacas de milho às costas até ao moinho para fazer farinha…Em Chelos ainda há um moinho a funcionar. Nesta zona há muitos rios e por isso havia muitos moinhos. [Mulher, 76 anos, Jugueiros]

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A força da água incide nas penas do rodízio, fazendo-as girar em simultâneo com o fuso, comunicando um movimento de rotação de transmissão directa que fazia girar a mó e transformar o milho em farinha.

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O moinho era um engenho complexo composto por duas partes, uma inferior, e outra superior. Na parte inferior, denominada “inferno”, localizava-se o rodízio, composto por duas peças em madeira: as penas e o fuso. A água era conduzida por canais na direcção das penas; ao incidir nestas, a água, que saía com pressão, fazia-as girar em simultâneo com o fuso, comunicando, assim, um movimento de rotação de transmissão directa que fazia mover a mó, localizada na parte superior do moinho. O milho encontrava-se depositado na dorneira (recipiente em madeira, situado por cima da mó) caindo gradualmente para a mó onde era moído.

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Comprava farinha, éramos pobres, comprávamos a farinha numa casa que havia. A gente ia comprar a farinha, os quilos que queria, e depois fazíamos o pão numa gamela. [Mulher, 82 anos, Felgueiras]

A carroça entrava lá dentro, e ia por ali a fora, tinha uns fregueses já antigos e ia lá com a carroça e carregava logo duzentos ou trezentos quilos. Ali para o Arrabal, Caramos, Moure, Sendim... ia lá levar a farinha. Chegava lá, descarregava, despejava e levava-lhes um dinheiro, um dinheiro combinado, não é!? [Homem, 83 anos, Sendim]

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A Farinha para o Pão Depois de moída, e já em casa, a farinha é peneirada para confeccionar o pão. Ao ser peneirada, a farinha mais fina caía na gamela, e a mais grossa, o farelo, ficava na superfície da peneira e era utilizado para alimentar os animais domésticos; actualmente é usada, também, para vedar a porta do forno, depois de previamente misturada com água. Depois peneirávamos a farinha, porque a farinha trás farelo, e o farelo ficava na peneira em cima. A gente peneirava a farinha, para ficar só mesmo a farinha para o pão. [Mulher, 82 anos, Felgueiras]

Numa cozinha rústica, a farinha é peneirada para a gamela; a mais espessa (farelo) fica retida na rede da peneira e é utilizada para alimento dos animais domésticos ou para tapar o forno.

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A farinha era então amassada na gamela ou masseira (peça de mobiliário em madeira situada na cozinha), constituída por uma parte inferior com duas portas, utilizada por vezes, para guardar as farinhas e o fermento. A parte superior da gamela, em formato de arca, era utilizada para amassar a farinha. A tampa tinha a função de cobrir a arca melhorando as condições de fermentação do pão. Depois de peneirada para a gamela, a farinha era misturada com água tépida, ou com água a ferver temperada posteriormente, consoante a tolerância e perícia de quem a amassava. Se for muito quente, … o pão fica enqueijado... água temperada, nem fria nem quente! [Mulher, 78 anos, Jugueiros]

Na gamela são misturados e amassados, vigorosamente, os ingredientes para confeccionar a broa: água tépida temperada com sal, fermento e farinha.

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Deixo-a ferver, se a farinha for muito mansinha boto só morna, mas ás vezes é mais áspera e a água é mais quentinha. [Mulher, 73 anos, Várzea]

Era socialmente discriminatório o facto de “não ter mão” para o tempero adequado do pão: Ai! Aquela mulher é porca! Ficou salgado! É ditado Velho! Rosa 78 anos, de Jugueiros. Com a água tépida e respectivamente temperada de sal, chegava a vez de misturar o fermento: pequena porção de massa retirada da ultima cozedura Nós de uma fornada para a outra já deixamos um fermentinho, não é!?... já foi há tantos anos que agente esquece... deixávamos um bocadinho de fermento que ficava ali, e depois na outra semana quando íamos cozer a broa, aproveitávamos, que era para ajudar a levedar a massa...

o massa. Outrora, esta cruz era acompanhada de uma

[Mulher, 82 anos, Felgueiras]

reza que procurava abençoar a sua fermentação,

de pão, e que se deixou a repousar até à cozedura da próxima fornada. Depois de amassar muito bem a farinha, já com a água e o fermento, deixava-se a massa a levedar num dos cantos da gamela, durante cerca de uma hora, usualmente com um sinal de cruz que atravessava toda

desempenhando este rito uma função de prática propiciatória, todavia, após entrevista a vários informantes verificou64

-se que a reza já não fazia parte integrante do rito, ficando a auspiciosidade reduzida à reprodução da cruz. Cruz esta que procurava a protecção do alimento face ao demónio.65 Fazia-se uma cruz. (…). Eu lembro-me de falar com a minha falecida mãe... oh mãe, eu ouvi dizer que no fim de se amassar se dizia umas palavrinhas, como é que são?!? ooh minha filha não me venhas perguntar que eu também ouvi dizer que se dizia mas nunca me ensinaram, não sei como é! ... [Mulher, 77 anos, Felgueiras]

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(...) depois quando vai ao forno [benze com a pá]... Era a moda antiga pronto! Isto não é bruxedo... é a fé, é a fé! [Mulher, 78 anos, Jugueiros]

Uma vez levedada, a massa era repartida em pequenas porções, colocadas individualmente na emboladeira, 66 para dar forma ao pão. Quando o forno começava a ficar suficientemente quente, as brasas eram periodicamente remexidas com o auxílio da ferelha, pá de forma quadrada e espalmada, em ferro e com cabo de madeira.

O calor das brasas é metodicamente espalhado pelo forno, por intermédio da ferrelha, facilitando a melhor distribuição do calor.

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O forno atingia temperaturas elevadas reconhecendo-se que estaria suficientemente quente para cozer o pão quando as paredes apresentassem um tom esbranquiçado, ou vermelho consoante o tipo de pedra do interior do forno. Por essa altura, retiravam-se as brasas do centro, com a ajuda da ferrelha, limpava-se essa parte central com uma vassoura de giesta. As giestas eram colhidas no monte em Abril, antes de florarem, e atadas com arame ou fiteira. Antes de introduzir o pão e tapar o forno, quem o confecciona, tem por hábito fazer o bolo, utilizando a mesma massa do pão. A cozedura é extremamente rápida e em forno aberto. Estes bolos eram consumidos pela família ou visitas, logo após a cozedura.

Antes de cozer a broa, havia quem cozesse o chamado bolo, de formato redondo e achatado, tradicional desta região. O bolo era confeccionado com a utilização de uma pequena porção da massa destinada ao pão, que era batida sobre a pá de madeira com a palma da mão até ficar espalmada e com uma forma circular. Os bolos, eram

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colocados no interior do forno, sem tapar a porta, e em alguns minutos, cerca de três a cinco, eram retirados e consumidos com sardinhas fritas, ou colocados desde logo no forno com carne entremeada ou gorda, na sua superfície. Estes bolos eram consumidos pela família ou visitas, logo após a cozedura. Eram também ofertados, ainda quentes, assumindo um cariz de hospitalidade e benquerença.

Se um rapaz viesse com o cabelo arrepiado andava ougado... então levava-se a alguém que cozesse e tinha de comer um bocado bolo com azeite atrás da porta! [Mulher, 78 anos, Jugueiros]

Depois do bolo, era a vez de cozer a broa. O forno era habitualmente fechado com uma tampa de ferro, vedada nas suas extremidades com farelo, cinza, ou lama, amassados com água, ou ainda com bosta, de forma a que o forno ficasse bem vedado para não perder calor.

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Com cinza amassada, porque na minha casa não havia bosta e tapava-se com cinza! [Mulher, 82 anos, Felgueiras]

Tapar a porta é com farinha. Coloco um bocado de massa numa bacia e tapo. Após a cozedura do bolo, o pão é imediatamente introduzido no forno, cuja porta é tapada, normalmente com uma mistura de farelo com água. Após 45 minutos, o forno era aberto e retirada a broa, podendo ser degustado, por vezes, ainda quente.

[Mulher, 73 anos, Várzea]

Após cerca de 45 minutos a uma hora o pão estava cozido, era retirado com a ferrelha e colocado de forma invertida sobre o tampo da gamela a repousar. Tal procedimento, dizia o povo, evitava que o pão enqueijasse ou azedasse.

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Destinos do Pão O pão é um alimento muito usado na nossa tradição gastronómica e pode ser encontrado nas mais variadas receitas de pratos tradicionais, desde entradas, pratos de peixe, pratos de carne e sobremesas, seja como acompanhante ou como ingrediente principal. A broa, para além de ser muito apreciada sem acompanhamento, ajustasse bem a inúmeros outros alimentos, podendo até ser cortada ou partida em pedaços para ser consumida durante a refeição, ou com outros ingredientes como queijos, presuntos, etc.67 Muitos dos costumes associados ao ciclo do pão têm vindo a ser alterados. A título de exemplo temos o caso das desfolhadas, que tinham um propósito produtivo concreto, e que em simultâneo eram acontecimentos de festividade e convívio; actualmente assumem uma forma de folclorização como propósito primordial de reconstrução tradicional desses acontecimentos, para deleite próprio ou como representação para elementos externos. Daí toda a caracterização que os elementos que dela tomam parte usam, como as peças de vestuário tradicionais em linho, ou o uso simbólico de ferramentas obsoletas, como o malho. Em muitos casos é um evento que é representado por elementos de ranchos locais, ou por indivíduos particulares que valorizam essas práticas tradicionais e procuram revivê-las. Uma outra variante deste fenómeno são as desfolhadas parcialmente mecanizadas, ou seja, a remoção da folha das massarocas é manual, mas a debulha é mecanizada. Nestes casos não existe pretensões de recreação historicista, pelo que o uso de trajes tradicionais não é comum, mas continuam a ocorrer as festividades musicais e de dança tradicional. Nas suas variações, estas desfolhadas são acompanhadas

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de uma refeição que é tendencialmente de gastronomia tradicional, mas que escapa à escassez e reduzida variedade de alimentos que caracterizava estes acontecimentos outrora. As doses de alimentos meticulosamente calculadas num contexto de pobreza ou de recursos muito limitados, deram lugar à abundância e à qualidade, na confecção dos pratos, bem como, ao consumo do vinho de produção familiar local, adicionou-se toda uma variedade de sumos gaseificados, bebidas brancas importadas, água engarrafada, etc. Para além das recriações ritualizadas de eventos como os referidos, os casos de modernização parcial ou total foram sendo reforçados sobretudo pelos emigrantes que, através do capital reunido em anos ou décadas de trabalho, regressam aos seus locais de origem. Em Felgueiras, como em tantos outros concelhos do nosso país, vislumbram-se inúmeras recuperações de antigas habitações mas também dos seus antigos campos de cultivo. Motivados por uma valorização da posse de terra e dos frutos do seu trabalho, são os emigrantes um dos principais grupos responsáveis pela repescagem de algumas rotinas, hábitos culturais e agrícolas ao nível local. Como claro elemento de prestígio local, a posse de uma casa e a exploração agrícola de um terreno adjacente, joga como painel de exposição de certas capacidades e competências, valores e atitudes que, reconhecidos como em decadência, potenciam o status social destes indivíduos. O mesmo poder-se-ia dizer, por exemplo, dos elementos que regressam ao campo depois de várias décadas de trabalho em grandes centros urbanos. À parte de toda a transformação ao longo dos tempos, a broa tradicional de milho e centeio (ou trigo) no concelho de Felgueiras, mantém de forma continuada a sua produção, embora a uma escala

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inferior tanto devido à oferta diversificada de outras formas de pão, como devido ao custo e trabalho necessários para a sua produção. Os fornos tradicionais de construção específica foram substituídos pelos fornos de instalação directa (pré-construídos) e pelos fornos de metal. As farinhas são adquiridas nos supermercados e nas padarias e provêem de pacotes de produção industrial, e as brasas que são retiradas dos fornos não são colocadas nos lares para preparar outras refeições. O consumo de broa no concelho de Felgueiras está ainda muito disseminado, havendo algumas famílias, sobretudo rurais, que cozem a broa em casa segundo os processos tradicionais. São sobretudo as mulheres mais velhas que assumem esta tarefa, umas vezes semanalmente, outras em ocasiões associadas a eventos especiais, como desfolhadas, vindimas, e festividades várias; não só para consumo próprio, mas também, para venda a vizinhos, familiares ou elementos exteriores (tanto à aldeia como até ao concelho). Apesar de tudo, podemos concluir que a confecção do pão de forma tradicional encontra hoje um espaço pontual e uma produção diminuta considerando a totalidade da população. Aqui entendemos como tradicional apenas a tríade 68 do uso da gamela para amassar o pão, o fermento e o forno a lenha.

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O VINHO O Vinho é Rei Mesmo antes do aparecimento do homem, já a terra estava coberta por uma espécie de liana, antecessora das contemporâneas plantas da família das ampelídeas, a que pertence o género Vitis e, principalmente, o subgénero Euvitis, cuja espécie vinífera está na génese da totalidade dos vinhos do Mundo. Paleontólogos afirmam que a fermentação espontânea teve lugar na Época Secundária, o fabrico do vinho não se deve no entanto ter verificado antes do sexto milénio. “O vinho não precisou de ser inventado; bastou que um cacho de uvas tivesse permanecido algum tempo num recipiente capaz de reter sumo”.69 Em Portugal a cultura da vinha é muito antiga, apontando-se a sua origem para a época pré-romana, pois já o historiador grego Políbio, 210-128 a.C., quando se ocupava da Lusitânia, lhe fazia referência.70 A qualidade do vinho depende muito do clima em que está inserido sendo mais indicadas as temperaturas elevadas com forte luminosidade solar e reduzida pluviosidade. Em Felgueiras, com todas as suas condicionantes climáticas aliadas aos terrenos onde se pratica esta cultura, prepondera o vinho verde, com um travo leve e ligeiramente ácido próprio dos vinhos desta região. Este concelho, pertence à região Demarcada dos Vinhos Verdes, mais concretamente à sub-região do Vale do Sousa, garantindo actualmente a qualidade dos seus vinhos através de um selo de certificação, sendo que as principais castas utilizadas são, para os vinhos brancos: Loureiro, Alvarinho, Arinto (conhecido localmente por Pedernã) e Trajadura. Para os tintos é o Vinhão e para rosados o Espadeiro.

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A Videira Os terrenos tal como para as outras culturas têm que ser escolhidos e tratados para o cultivo da videira, sendo que a primeira actividade para a produção do vinho trata-se da preparação da terra para receber as videiras. Após o terreno limpo, plantavam-se as videiras, mais concretamente os seus bacelos que antigamente eram só de qualidade jaqué ou corriola, sendo que o primeiro era bravio.71 Estes bacelos eram transplantados de outro terreno e normalmente feitos a partir de uma vide que se cortava de outra videira e se enterrava, deixando 3 elos fora da terra e um dentro da terra, chamando-se a este processo embacelar. Sobre o bacelo punha-se carrasco ou mato que posteriormente apodrecia servindo de fertilizante para a videira. Antigamente era tirada vide de outro ano, cortava-se no elo, tirava-se 3 elos de fora e metia-se na terra. Cortava-se a meio do elo que era para apanhar raízes. Não é enxerto é... bacelo! (...) tem de ficar a altura suficiente debaixo de terra para apanhar raízes e fora da terra para rebentar, ia dois anos. Depois é arrancada e plantada onde a pessoa entender que é preciso. [Homem, 71 anos, Várzea]

Um ano ou dois depois de ser plantado, o bacelo era enxertado, por volta do mês de Março, com a casta desejada, podendo também ser arrancado e plantado onde houvesse necessidade, e apenas enxertado no lugar correspondente. A raiz do bacelo quando era plantada tinha Na página seguinte. As mãos calejadas mas hábeis do enxertador, por alturas do mês de Março tratam da enxertia das videiras com a casta desejada.

de ficar bem esticada, ou seja tinha de se abrir um buraco fundo e largo para que as raízes não ficassem dobradas. De seguida estacavam-se as videiras, podava-se e punha-se fiteira. A videira podia dar uvas no ano da enxertia ou apenas no ano seguinte.

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É semeado e enxertado depois.. aqui é jaqué ou corriola... jaqué é bravio... depois é enxertado com a qualidade que cada um quer... aqui é tinto espadeiro... É enxertado na maré de Março. Algumas vezes desenvolve mais... (...). Se o enxerto for na nossa corriola, na nossa vide antiga, não é importada, dura a vida de uma pessoa ou mais! Esta aqui, aquela ali oh! Esta vide deve ter perto de 100 anos! [Homem, 45 anos, Vila Verde]

Mas a plantação é esta, abre-se uma cova funda, eu dava sempre um metro de profundidade. Uma cova larga, larga que é para a raiz da videira quando for, desenvolver. E depois um bocadinho de terra em cima da videira e despois carrasco e se não fosse carrasco, eu ia, tinha uma bouça, eu ia à bouça cortava um pouco de mato, botava ali dentro, depois ia apodrecer e a videira procurava aquilo, procurava aquilo, era uma valentia, era era, era sim. Portanto a lavoura é esta.... [Homem, 87 anos, Felgueiras]

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As Castas Como região demarcada que é, Felgueiras tem algumas castas recomendadas e por isso mesmo os enxertos usados eram de castas específicas consoante o vinho que se queria produzir. Para o vinho verde tinto, que é o mais virtuoso, as castas utilizadas eram: vinhão, batoca, azal, pederná, trajadura, loureiro, borraçal, pinhal; para o vinho verde branco: malvasia, semilão carvalhal branco, azal, pederná, trajadura e loureiro; e para o vinho espadeiro: espadeira branca e tinta, que amadurece mais tarde. A uva espadeira branca também é conhecida por douradinha ou engana rapaz (douradinha porque fica com um tom dourado quando está madura, e engana rapaz porque fica amarelinha muito cedo, dando a falsa impressão de já estar madura).

Disposição da Videira

Na página seguinte. Este é o sistema de condução da vinha que melhor caracteriza a paisagem vinícola do concelho de Felgueiras: a vinha de enforcado. Dependurados nas árvores, os cachos de uvas, de difícil acesso, são colhidos com o apoio de escadotes de madeira de grandes dimensões, manuseados com perícia por vindimadores experientes.

Na Região Demarcada dos Vinhos Verdes e, em geral, no Noroeste de Portugal, as videiras e a forma de instalação da vinha são das características dominantes que moldaram a paisagem. Ao longo dos tempos, verificaram-se algumas alterações nos sistemas de condução da vinha, em parte devido aos processos de modernização que facilitaram os arranjos e as condições de produção do vinho. Neste contexto, e em termos da cultura vinícola, definem-se e dividem-se em dois sistemas de condução da vinha: os Sistemas de Condução Tradicionais e os Sistemas de Condução Modernos. Podemos assim identificar os seguintes:

Sistemas de Condução Tradicionais Uveiras ou vinha de enforcado - é o sistema de instalação mais antigo da região dos vinhos verdes e carateriza-se pela plantação de videiras

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(que podem de ir de uma a quatro) junto a árvores, geralmente são castanheiros, choupos ou plátanos. Neste sistema de condução, a vinha cresce pela árvore, entrelaçando-se com os ramos que servem de suporte à vinha. Este sistema é utilizado normalmente nas fronteiras dos campos de cultivo, pode atingir uma altura de cinco metros ou mais, com podas intercaladas anualmente. Em geral, dispensa adubos, mas os vinhos são de inferior qualidade, de baixo teor alcoólico, devido às doenças a que as videiras estão sujeitas, uma vez que os tratamentos em altura são muito difíceis. Uma particularidade deste sistema de condução é a utilização de grandes escadas, localmente conhecidas por passais. Estas escadas feitas em madeira, podem ser de seis ou doze passais, sempre números pares, consoante a altura para as quais são utilizadas na vinha.

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Arjões - sistema de condução que se caracteriza por várias árvores nas fronteiras dos campos, utilizando-se arames a uni-las, numa altura até 8 metros, onde as videiras crescem. Também localmente conhecidos por arjoados, são semelhantes à vinha de enforcado que deriva da produção vinícola conciliada com outras culturas. A grande vantagem deste sistema é a pouca ocupação do solo e mão-de-obra. Em termos de vindima e qualidade do vinho é muito semelhante à vinha de enforcado. Ramadas - sistema de condução de vinha em disposições horizontais com a utilização de ferro ou madeira e arame, normalmente assentes em granito. Situam-se em caminhos, largos, logradouros públicos (tanques ou fontes) e na borda dos campos de cultivo. Este sistema de vinha contínuo permite a plantação de outras culturas por debaixo.

Na página seguinte. A variedade dos sistemas de condução da vinha, entrelaçada com o colorido singular de uma agricultura variada, tornam a nossas paisagens únicas, repletas de vida.

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Sistemas de Condução Modernos Bardo - Este sistema de condução de vinha é composto por uma linha de estacas até 2 metros de altura, intervalados de 6 a 8 metros, que suportam 4 a 6 arames. As videiras são plantadas com 1,5 metros de intervalo e achatadas para frutificarem próximo do solo. As videiras distanciam-se cerca de 3 metros, o que permite o tratamento mecanizado. A longevidade é bastante curta e a produção irregular devido ao desenvolvimento do sistema vegetativo. Cruzeta - A cruzeta é um sistema de condução de vinhas contínuas utilizado desde a década de 70. Consiste num poste vertical com 2 metros de altura e outro horizontal, formando uma cruz entre si de 5 a 8 metros, são unidas por um fio de arame. Junto de cada cruzeta plantam-se quatro videiras para crescerem até aos braços da cruz. Podem-se ainda verificar algumas variantes deste sistema, como por exemplo a utilização de um terceiro arame unindo o topo das cruzetas e servindo de suporte a duas outras videiras que acompanham o poste vertical. A utilização do sistema de suporte das videiras, está associado a diferentes formas de plantação. Do ponto de vista técnico, existe alguma dificuldade de tratamento das videiras, para além da possibilidade de sombras lesivas ao amadurecimento da uva, o tratamento mecanizado, em particular, e a pulverização é dificultada do lado de dentro da videira. Neste sistema de condução da vinha são necessários cerca de 8 anos de maturação para atingir a máxima produção.

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Cordão - Este sistema é semelhante ao da cruzeta e a sua estrutura identifica-se com a dos bardos. É constituído por linhas de apoio espaçados entre 6 e 8 metros e distantes entre si de 2,5 a 3 metros onde a videira (...) Antes era tudo árvores... Era! chega aos arames sem Antigamente era tudo vinho do ramificação, acamando-se enforcado. Depois mais tarde é que se para se situar na zona começou a fazer de bardo. De bardo era vegetativa e produtiva. O mondar as árvores e botar arames para sistema tem duas variantes. as vides dar melhor vinho. (...) Pode ter um só arame de apoio Antigamente também havia bardo, mas à videira com cerca de 1,5 como havia muita miséria não havia metros do solo, e/ou dois aradinheiro para comprar arames! Depois mes para permitir a expansão começaram a fazer bardos e depois vegetativa e dos cachos de ramadas. Aconteceu isso comigo. Ficauvas. Em termos de tratavam sempre presas nas árvores para mento, exposição e arejamennão estorvar o campo. to são bastante positivos, mas a [Homem, 71 anos, Várzea] utilização de um cordão duplo ou sobreposto pode provocar muita sombra à videira. Neste sistema de condução, na poda e vindima é necessário utilizar escadotes e reboque do tractor. A produção, em sistema de cordão simples, deverá surgir ao quarto ano, com uma média de 18 pipas por hectare. Em cordão sobreposto, a produção pode chegar às 20 pipas por hectare, valor que se consegue no sexto ano de plantação.

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A Poda de um Burrico A vinha necessita de constantes cuidados e ao longo de todo o ano se impõem as tarefas relacionadas com o seu tratamento. As podas faziam-se depois das vindimas, de Dezembro a Fevereiro, usando tesoura, fouce e fiteira; sendo normalmente uma actividade solitária, que o lavrador desempenha ao longo dos referidos meses. Diz a lenda que a poda foi um processo descoberto acidentalmente por um burro que ao roer uma videira, esta deu excelente produção no ano seguinte. (…) Diz a lenda que um viticultor havia ido para a sua vinha com uma carrocita de estrume, puxada por um burro. Ali chegado, e enquanto trabalhava, prendeu o burrico a uma estaca espetada num talude cheio de cardos. Mas a corda não ficou bem presa, o animal soltou-se e afastou-se dos cardos pelintras e espinhosos. Tentado por uma verdura que fugia à sua alimentação usual o burrico atirou-se, então, aos rebentos da vinha e, metodicamente, limpou umas tantas plantas. (…) Mas qual não foi a sua [do viticultor] surpresa quando, na Primavera seguinte, as videiras «comidas» eram as que exibiam mais abundante frutificação. Ali estava o sinal evidente de uma mensagem de Dionísio, o protector dos viticultores! E a partir daí, a poda entrou nas práticas correntes do amanho da vinha. (AMARAL, 1994:41)

Apesar da poda ser um processo simples pode apresentar várias formas, tais como: a poda corrida, poda de arco e poda em espinha.

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Acaba a vindima … começa a poda. Já se poda muito em Dezembro, Janeiro e Fevereiro porque depois, em Março já começa a sair a arrebentar! E depois a partir daí tem que se fazer tudo na vide, tudo limpo... [Homem, 60 anos, Lixa]

Após as vindimas, o agricultor inicia a poda. Normalmente uma actividade solitária, que o lavrador leva a cabo entre os meses de Dezembro e Fevereiro, utilizando a tesoura de poda, as fiteiras e, no caso da vinha de enforcado, a fouce.

Há várias podas também, podas diferentes.... esta é a poda de arco, nasce na vide e faz um arquinho, como aquela ali, por exemplo. Estes assim são os arcos. Depois há a poda corrida… a vide vem sempre para a frente. As novas em vez de serem atadas para o lado são para a frente, sempre para a frente nunca para trás! Há a de espinha que o arco saí à beira ao arame e vem rente ao arame e não faz o arco para cima... vem só (...). [Homem, 45 anos, Vila Verde]

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Sulfato de Cobre e Cal As videiras depois de podadas e quando os rebentos atingem quatro a cinco centímetros, são sulfatadas, sendo que a primeira sulfatação ocorre em fins de Abril ou princípios de Maio. A calda preparada, vulgarmente chamada calda bordalesa, era composta por água, cal fervida e sulfato de cobre. Actualmente, há quem adquira e aplique sulfatos com diferentes composições; tal como tradicionalmente, são aplicados na videira de quinze em quinze dias, até meados de Agosto. Ao longo dos tempos, verificou-se uma evolução das máquinas de sulfatar, no sentido de facilitar a tarefa ao agricultor. Uma das primeiras máquinas consistia numa espécie de carrinho de mão com duas rodas e um depósito em cobre,

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tapado. Este aparelho estava ligado a uma cana, que, por sua vez, tinha encaixado na extremidade um tubo comprido, que possibilitava sulfatar as vides instaladas em locais mais altos. Apareceram ainda os pulverizadores de dorso, mais tarde o atomizador de dorso e actualmente o atomizador accionado pelo tractor. No princípio de Maio... Despois de véspera. Quem diz de véspera, pode ser no mesmo dia, o sulfato põe-se a derreter. Há quem o derreta cum água quente, p'ra ser mais depressa, mas num é bom!...Tira l'acção ao sulfato… Uma pessoa põe cum tempo pa ele derreter. Num balde cum água, dentro dum saquinho e aquilo derrete… E despois atão, bota-se dentro duma barrica. Dantes usava-se uma barrica de madeira… é, mas agora é numa barrica de cimento. Bota-se, enche-se a barrica mais ou menos, até que possa levar esse produto. E bota-se lá isso, a calda dentro. Quer dizer, só o sulfato!... Só a calda do sulfato. E despois, queima-se a cal, que ela… tem de ser queimada... Porque dantes era em pedra, agora é moída, mas ela

Quando as folhas da vide começam a abrolhar, há que protegê-las das doenças sulfatando-as de imediato. Esta tarefa prolonga-se até meados de Agosto, de forma a garantir que os cachos de uvas amadureçam saudáveis. Antigamente eram utilizadas máquinas de sulfatar rudimentares, que exigiam um esforço substancial por parte de quem as manuseava. Com o decorrer do tempo, a tarefa foi-se aligeirando por intermédio da utilização de um atomizador que é transportado e accionado pelo tractor.

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serve na mesma. Queima-se a cal, deixa-se arrefecer um bocadinho. Mesmo porque, ela vai a ferver não é... Na cal, p'ra ferver bem é com água quente, mas tem que estar água ali logo própria porque ela começa logo a ferver e foge, e foge! E despois, pega-se naquela cal, deixa-se assentar, até oito dias, até se for preciso,… até quinze, mais, num interessa, é consoante a pressão da cal. Deixa-se estar naquela envasilha, depois tira-se c'uma colher, tira-se p'ra um balde e dissolve-se c'um água, fica a água toda branquinha. E bota-se naquela barrica,... ela tenha o sulfato lá dentro. O sulfato, quer dizer, já derretido,… E depois é que fica a cor, azul... Dá cor azul, pronto. E despois há o aparelho p'ra aplicar. Ou um motor de pressão ou máquina de braço, agora essas máquinas de braço já num há, eram antigas. É o motor.” E portanto, depois aplica-se. Aplica-se na bideira. Quinze dias, ao fim dos quinze dias tem de ser sulfatado outra vez... Eles dizem, pode ser binte. Mas eu nunca fui a isso. De quinze em quinze dias. Só se o tempo num me deixasse às vezes porque chovia... E depois, cinco, seis, sete vezes, cinco é pouco, seis também é pouco. Eu cheguei a sulfatar nove vezes. Consoante o ano frio… Consoante o ano. [Homem, 87 anos, Felgueiras]

A partir de meados de Junho faz-se a poda verde, que consiste em cortar dois elos na fronte dos cachos, de modo a que as uvas fiquem mais expostas à luz solar e amadureçam com mais facilidade. Ainda por alturas do mês de Junho, as pipas começavam a ser preparadas para receber o vinho da próxima colheita; eram lavadas, colocadas a secar e raspadas com uma enchó. Mais tarde, perto da vindima, eram tapadas. A prensa e o lagar eram igualmente lavados, e preparada a adega para o dia da vindima. Actualmente muitas das pipas em madeira foram substituídas pelas cubas em inox, sendo todavia igualmente despejadas e lavadas para receber o vinho novo.

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Vindima Os Trocos Em finais de Setembro, inícios de Outubro, iniciava-se a vindima em comunidade (família, vizinhos e/ou amigos), sendo definidos os trocos, isto é, devido à carga laboral desta actividade sazonal, praticavam-se actos de reciprocidade entre a comunidade; por exemplo, se uma família ajudava o vizinho na sua vindima, o vizinho e respectiva família iam apoiar aquele no dia em que vindimava as suas uvas; este processo alargava-se à sua rede social mais próxima.

Havia aqui umas vinte ou trinta quintas à volta e nós dávamos um troco, eles vinham para nós e nós íamos para eles, não era pagável, era o troco! [Homem, 60 anos, S. Jorge de Vizela]

Nesse tempo as uvas estão a ficar prontas e tem de se colher... o que é que acontece, é um intercâmbio. Eu tenho uma vindima, imagine, preciso de 20 homens para me ajudar, claro que tenho de dar 20 trocos! Se houver mais de um homem em cada casa mais fácil é porque dá para dar trocos para casa do outro... e amanhã vou para outro lado. [Homem, 60 anos, Lixa]

Do Alto das Cestas A vindima implica a utilização de um conjunto de utensílios e ferramentas, do qual fazem parte o escadote (tradicionalmente de madeira de eucalipto), as tesouras, as unhas, as navalhas e as cesta de vime que são descidas com uvas do alto das videiras até aos cestos, outrora de vime e actualmente de plástico, sendo de seguida transportados para o lagar. Actualmente, existe neste contexto um misto de saudosismo e de adaptação tecnológica, em particular em quintas de pequena e média dimensão. Nas vindimas utilizam-se sobretudo os escadotes de madeira, sendo que, muitos agricultores, dado o seu reduzido peso, usam com frequência as escadas de

Em dia combinado, por alturas de Setembro até meados de Outubro, a vindima começa ao alvorecer. Os escadotes, os cestos e as tesouras estão a postos para um dia de trabalho que se adivinha longo.

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Na página seguinte. A dureza do trabalho de vindimar, impede as mulheres de executar esta tarefa; prestam, sobretudo, apoio aos vindimadores, recolhendo e despejando cestas de uvas. Em algumas casas agrícolas ainda são as mulheres que transportam os cestos carregados de uvas para o lagar, não pela sua particular disponibilidade física, mas pelo domínio da técnica de carregar o cesto sobre a cabeça até ao destino.

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alumínio. Por outro lado, os raladores manuais foram substituídos pelos motorizados e os carros de bois, para transportar os cestos de uvas substituídos por tractores ou carrinhas modernas. Apesar da paisagem vinícola desta região estar em profunda alteração, no que diz respeito ao sistema de suporte da videira, ainda é muito frequente depararmo-nos com a vinha de árvore ou enforcado. Assim, é comum encontramos nas vindimas escadotes em madeira, de grandes dimensões, com um sistema de cordas capaz de fazer descer as cestas carregadas, do topo das árvores até ao chão (sistema esse, por vezes doloroso para quem manuseava as cordas de forma pouco cautelosa, podendo provocar queimaduras nas mãos). Eu ainda me lembro de a gente meter um tubo de plástico na corda e andava encostado na nossa beira e quando fosse descer da corda corria do tubo. [Homem, Pombeiro]

As cestas quando desciam eram normalmente despejadas por mulheres. No sentido de serem alertadas para a descida das cestas e para a sua devolução depois de despejadas, os homens gritavam “torna”.

Entre Saias e Calças Vindimar era uma tarefa árdua e como tal destinada exclusivamente aos homens. Sendo que as videiras eram altas e a saia fazia parte “obrigatória” da indumentária da mulher, não era adequado subir o escadote. Permaneciam no chão prestando apoio aos vindimadores, recolhendo as cestas que despejavam nos cestos.

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D’antes era... os homens a colher as uvas e as mulheres a arrastar os cestos, feitos de madeira, à cabeça. [Mulher, 73 anos, Várzea]

Como era tudo em árvores... porque as mulheres tinham medo de assubir lá para cima! (...) [Homem, 71 anos, Várzea]

Para além de não colherem as uvas, as mulheres não participavam na pisa. Uma das explicações para esta situação consistia, por um lado, no facto de poderem estar menstruadas e assim estragar o vinho, por outro, no facto de ser uma tarefa bastante dura, que podia demorar entre quatro a cinco horas, e para a qual as As mulheres não! Algumas iam para casa mulheres não estariam fisicamente preparadas. Já noutros e outras ficavam no lagar a ver! Outras concelhos vizinhos, como Guimarães, havia mulheres que ficavam a desfolhar, desfolhar milho! participavam na pisa das uvas, usando para o efeito calças, [Homem, 60 anos, Lixa] que arregaçavam até ao joelho.72

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Curiosamente, nas vindimas, ainda se encontra uma divisão laboral de género, onde os homens, ainda numa situação de superioridade face às mulheres, continuam a colher as uvas, ao passo que as mulheres a carregar os cestos pesados, já de plástico, para o lagar, ou para a carrinha que os vai transportar para o lagar. Esta divisão laboral é particularmente pertinente visto que o motivo que afastava as mulheres da vindima em escada, era a vestimenta tradicional feminina. Ora, actualmente, nas vindimas a maioria das mulheres, sobretudo as gerações mais novas, usam calças, ou pelo menos, dispõem de vestuário variado que lhes permite escapar ao problema da falta de privacidade. Nas vindimas estão ainda claramente definidas as diferenças de género, tal como ocorria tradicionalmente, se bem que a justificação prática do pudor deixa de fazer sentido, sendo agora visível até algum acentuar injustificado desta diferenciação hierárquica. Serve aqui o exemplo dos casos em que os homens são servidos de vinho pelas mulheres de forma constante e a pedido, bem como, ao contrário das mulheres, são-lhes ainda fornecidos cigarros pelo lavrador dono da casa. Numa nota suplementar, refira-se que as mulheres que carregam os cestos são sobretudo as mais velhas, não pela sua particular disponibilidade física, mas pelo domínio da técnica de carregar o cesto sobre a cabeça até ao seu destino. Um saber que também perde lugar entre as gerações mais novas. Já no pisar das uvas o fenómeno é mais flexível. Se por um lado, devido ao clima de celebração que envolve todo o dia de trabalho, as mulheres e crianças são por vezes convidadas a pisar as uvas nos lagares, noutros casos a actividade é ainda reservada aos homens enquanto as mulheres assistem.

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Ia para o Lagar No lagar, no caso do vinho verde tinto, por norma, as uvas são primeiramente esmagadas no caniçal (ralador) e só depois, no lagar, são pisadas; sendo que antigamente eram utilizados apenas os pés para esmagar as uvas, o que prolongava por cerca de 4 a 5 horas esta tarefa. De seguida, consoante a temperatura ambiente, o vinho permanecia no lagar, entre cinco a seis dias a fermentar, antes de ser colocado nas pipas. No caso do vinho verde branco e do vinho verde espadeiro ou espadal (rosê), as uvas são esmagadas no ralador e o vinho colocado de imediato nas pipas, técnica chamada bica aberta, dando-se assim a sua fermentação directamente nas pipas.

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Apesar de ser tarefa árdua, o pisar das uvas era uma actividade frequentemente acompanhada por festa e boa disposição, que se prolongava pela noite dentro. Terminada a pisa, o vinho permanecia no lagar entre 5 a 6 dias a fermentar, antes de ser colocado nas pipas.

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O bagaço que fica no lagar é prensado na prensa, e o vinho que daí é retirado é acrescentado ao restante que já esta nas pipas. Depende... Se o tempo for quente pisa-se e ao outro dia está fervido. Depois de ferver aí dois dias tira-se, porque no fim de ferver ele fica azedo. O vinho começando a ferver é docinho, porque passado um dia ou dois fica mais... agre… se tiver muito calor ele azeda mais depressa e vai-se mais depressa. Se tiver frio leva mais tempo a ferver e aguenta mais tempo! [Homem, 71 anos, Várzea]

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Cantares e Petiscos Apesar de tarefas árduas, vindimar e pisar as uvas, eram actividades

As refeições no dia da vindima ficavam a cargo do dono da casa. Outrora, a comida não abundava na casa do lavrador comum; no entanto, reservava sempre o melhor que tinha e com relativa fartura, para servir nesse dia.

frequentemente acompanhadas por festa, onde se juntavam concertinas e violas e se cantava em ambiente de boa disposição. Bebia-se aguardente, vinho da caneca, acompanhado de vários petiscos de acordo com as posses do dono da casa. Conotadas como actividades de rica camaradagem que no final confluíam “numa borga” onde “comia-se e bebia-se muito e havia animação”. Eu próprio cantei muito, gosto de cantar, sempre gostei. Púnhamonos a cantar no lagar a desafiar outro cá fora, com viola e a cantar, isso era uma coisa… muito bonita! Se houvesse uma pisada em tal lado nós íamos todos para tocar… isto agora não tem nada a ver com o tempo de antes. Antes era bonito, era uma coisa importante! [Homem, 65 anos, S. Jorge de Vizela]

A comida outrora, ao contrário de hoje em dia, não abundava na casa do lavrador comum. No entanto, o dono da casa reservava o melhor que tinha e com relativa fartura, para servir nesse dia, a pensar naqueles que vinham a sua casa dar os trocos. A gestão desta escassez de alimentos era uma tarefa difícil para as famílias mais pobres. Comíamos lá e quando fosse na nossa casa comiam cá… Agora é muito melhor! Agora não tem nada a ver com isso. Chegávamos às vezes a irmos comer e a comida não chegar! A rapar as panelas a ver se dava. Era pouco. Era frango com massa ou arroz! Era o que se comia antes, no lagar davam café com trigo, com nozes, era conforme… punham sopa com bacalhau…. Não era como hoje, aquela cesta de panados. Antigamente, Deus me livre de antes haver um que desse aquilo! [Homem, 65 anos, S. Jorge de Vizela]

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Na produção de vinho tudo era aproveitado, pele e grainha da uva (bagaço) eram transformadas em aguardente vínica, muito apreciada na região. A obtenção desta bebida era efectuada através de um sistema rudimentar mas eficaz, o alambique.

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Fermentação No fim de pisado, o vinho tinto ficava a fermentar dentro do lagar durante alguns dias e voltava, por vezes, a ser pisado só para acamar o bagaço. O vinho seria envasilhado e deixado dentro das pipas ou cubas durante alguns meses, tendo posteriormente que ser acrescentado. Para a trasfega do vinho do lagar para as pipas utilizava-se um recipiente de metal designado por almude, actualmente a trasfega é efectuada por uma bomba específica, motorizada. Aguardava-se um a dois meses e fazia-se a prova do vinho por alturas do S. Martinho; No São Martinho, prova o teu vinho e batoca-o bem abatocadinho! Durante o mês de Janeiro/Fevereiro, o vinho estava pronto para se beber, procedendo-se à trasfega para garrafões e/ou garrafas. ... Janeiro, Fevereiro. Já dá para provar mas depende, depende porque enquanto o vinho estiver a ferver, está bem encobado. O São Martinho é porque já está a deixar de ferver não é!? Se apertar uma pipa com ele a ferver pode rebentar, mas provar é Janeiro... porque quando se engarrafa vinho é para Janeiro, Fevereiro (...) [Homem, 71 anos, Várzea]

Depois de produzido o vinho, as suas sobras designadas por bagaço (peles e grainha da uva), tendo sido previamente espremido na prensa, era transportado para o alambique a fim de ser, segundo designação popular, queimado e obter a aguardente vínica, muito apreciada na região. Depois de queimado, o bagaço era utilizado como fertilizante para a terra. Actualmente, a produção de aguardente é controlada por lei e nem todos os proprietários de alambiques podem queimar bagaço. Quem pretende produzir aguardente terá de estar certificado pela Associação Vinícola.

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[o bagaço] antigamente ia para o alambique fazer aguardente! Mas agora deitam-no fora. É, bota-se na terra já não vai para o alambique! Antigamente ia para o alambique fazer o bagaço, mas agora... (...) antigamente … queimava muito bagaço, queimava bagaço sei lá mais de mil quilos, dois mil quilos de bagaço. Dava uma quantidade ao dono do bagaço mas ficava com outro, e eles não iam ficar com ele em casa! Era para vender. Mas agora não podem. (…) Antigamente era assim: pegava-se no carro de bois, botava-se o bagaço, levava-se ao alambique. [Homem, 71 anos; Várzea]

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A Jornada do Vinho Segundo a Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos, o vinho verde é um vinho leve, com baixo teor alcoólico, frutado e fresco, produzido exclusivamente na Região Demarcada dos Vinhos Verdes, localizada no Noroeste de Portugal, entre o rio Minho e o rio Douro, cuja denominação remonta a 1908. As características deste vinho são o resultado, por um lado, das condições edafoclimáticas daquela região - o solo e o clima - e factores sócioeconómicos e, por outro, das castas seleccionadas e a forma de cultivo. É aconselhado para acompanhar refeições leves e equilibradas, tais como, saladas, peixes, mariscos, carnes brancas, tapas, etc. A designação do nome “vinho verde” refere-se à frescura e idade e não à cor ou pouca idade de maturação da uva, como se crê frequentemente. Apesar de, em Felgueiras, muitos agricultores produzirem vinho apenas para consumo próprio e para vender a vizinhos e amigos, uma parte significativa é vendida à Adega Cooperativa, a fim de ser comercializado em Portugal e no estrangeiro. O vinho parece ser o produto que mais prosperidade garante e o mais adequado ao modo de vida dos produtores felgueirenses. Ano após ano, o vinho verde, pelas suas características únicas, vai conquistando mais apreciadores pelo mundo inteiro, e sendo a procura crescente, também a oferta tende a subir. Assim, esta atenção no vinho verde justifica uma maior aposta na sua qualidade. Antigamente na área de Felgueiras, predominava a casta Azal, enquanto hoje as castas recomendadas e efectivamente enxertadas são outras. O Azal dá um vinho mais ácido e de reduzida durabilidade, sendo que no mercado se procura essen-

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cialmente vinhos leves, esta casta teve de ser compensada, equilibrada ou substituída por outras, como Pedernã ou Loureiro. A par desta transformação, existe actualmente um programa estatal de apoio à reconversão das vinhas, visando uma maior produtividade e qualidade das uvas. Todo este processo de reconfiguração vitícola é acompanhado pela Cooperativa Agrícola de Felgueiras, dada a exigência de qualidade das uvas e do vinho para se poder comercializar com sucesso.

A beleza da cor intensa dos cachos de uvas remetem-nos para vivências passadas que a memória mantém no presente e projecta para o futuro.

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MEMÓRIAS FUTURAS: reflexão conclusiva Há menos de meio século atrás, a maximização do aproveitamento das terras aráveis era, de facto, uma realidade em que se envolvia grande parte da comunidade, fosse por necessidade, por contrato comercial ou por reciprocidade. Todavia, actualmente é, por ventura, difícil visualizar os imaginários de gerações mais antigas que viram esses campos cultivados, sobretudo quando reconhecemos que a memória, com o avançar do tempo de vida, tende a simplificar e seleccionar sentimentos, sensações e quadros contextuais muito específicos. Contribuindo para um padrão de identificação do passado rural como um exemplo de comunitarismo e solidariedade, em oposição a um presente caracterizado por um certo individualismo e aparente perda de identidade que promovem a disjunção dos valores e da moral entre gerações. Sucintamente, uma romantização do passado. Todo o processo de mudança do contexto rural foi caracterizado por uma galopante revolução tecnológica marcada pelo uso de máquinas, sobretudo com a substituição da tracção animal pelo motor de combustão, o uso dos motores de rega, das debulhadoras motorizadas, prensas eléctricas, bem como, pelo surgimento das cubas de inox, dos cestos e sacos de plástico, das botas de borracha, dos escadotes de alumínio, e claro das sementes melhoradas e os adubos químicos, etc., “(...) guiados por novos ideais de prestígio os homens entregam-se à cultura material industrial (...) enquanto as mulheres são mantidas no trabalho braçal, apeadas das máquinas”. 73 Toda uma nova paisagem técnica e tecnológica que permitiu uma produção mais eficiente sem necessitar de um território de maior

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dimensão. Gradualmente os terrenos foram sendo repartidos, abandonados, a sua área de cultivo diminuída, e com ela a necessidade de grupos de trabalho numerosos desaparece, como eram exemplo os ranchos migratórios sazonais. Aos agricultores que não foram reformando as tecnologias agrícolas restou o abandono da actividade, o aumento da extensão dos terrenos por cultivar, ou a não cedência ao novo método e com ela a continuidade de uma produção com grande sacrifício, e pela mão da remuneração do trabalho familiar. O trabalho agrícola de pequena dimensão é realizado sobretudo por familiares que modernizam parcialmente as técnicas e as ferramentas de modo a compensarem a reduzida dimensão do terreno agrícola e da força de trabalho. Adicionalmente a remuneração é forçosamente inferior aos valores praticados nos mercados, e muitas vezes o pagamento é parte da produção, o que viabiliza a sua continuidade. Sem grande surpresa a revolução tecnológica que atingiu o contexto rural foi, como vimos, acompanhada, por vezes de forma até acelerada, por fenómenos sociais como a emigração, o êxodo rural, a propagação da indústria fabril, a rápida alfabetização e escolarização das populações, entre vários outros fenómenos que poderíamos referir. Todo este cenário é particularmente visível no Concelho de Felgueiras, onde estão disseminadas de forma relativamente homogénea as inúmeras fábricas de calçado, entre outras, onde são visíveis os sinais de urbanização acelerada e de multiplicação de novos serviços. Na verdade, a “rápida ascensão” de Felgueiras a cidade é em si um exemplo da industrialização repentina e do crescimento económico, que em paralelo com a proximidade a grandes centros urbanos, como a cidade do Porto, reuniu

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condições para a concentração e multiplicação da sua população, e com ela o surgimento de uma malha urbana em expansão que invade os antigos campos agrícolas. Toda a transformação alterou fortemente as técnicas, as ferramentas e a produtividade. Simultaneamente ocorreu uma silenciosa reconfiguração na força de trabalho humana, boa parte dela especializada e de reconhecido estatuto local. É essencial considerar os inúmeros homens e mulheres que viram a sua perícia técnica no trabalho agrícola perder parcial ou totalmente a sua utilidade. Foram os agricultores e moleiros, entre outros trabalhadores ligados directa ou indirectamente à vida agrícola, com larga experiência e de elevada competência técnica, procurados pelas suas capacidades únicas ou particularmente eficientes, que perderam mercados dos quais haviam aprendido a depender. Falamos também de cesteiros, carpinteiros, tecedeiras, e tantos outros que formados de base nas suas artes pelos seus progenitores, ou mestres locais, viram-se despidos de um trabalho que sempre dominaram e que repentinamente é considerado obsoleto. Sem a necessidade tanto de numerosos grupos, como de elementos específicos, são as máquinas com os seus automatismos, sob o controlo de um punhado de homens, que selam num rugido motorizado o seu domínio sobre os campos. O prestígio social parece escapar à sua ligação secular à terra, e passa a estar associado à ligação com a máquina: “O estatuto social dado pela máquina (...) em torno da mecanização molda-se um quadro cultural próprio: indumentária, gestos e saber aplicado derivam das exigências requeridas pela mecânica e já não do contacto directo com a terra”.74

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O impacto social de todo este processo encontra-se também nos rituais agrícolas e nas suas manifestações mais festivas e de elevada sociabilidade. Os saberes perdem lugar na memória, os homens vêem-se forçados a modificar a forma de trabalhar ou o próprio ofício. Não é defendido qualquer tipo de reprovação face às consequências do avanço tecnológico e das mudanças sociais que ocorreram. Existe mesmo uma bipolaridade na memória de quem reflecte sobre o passado rural. Ele é simultaneamente romantizado, e racionalizado, pois, é reconhecido que as transformações que ocorreram trouxeram o fim do duro e mal remunerado trabalho agrícola, e a melhoria generalizada das condições de vida. Os antigos senhorios das terras que acumulavam riqueza que provinha da terra trabalhada pelos seus caseiros, lavradores e trabalhadores, etc., e os párocos locais, que numa condição social superior e de proximidade com os senhorios, garantiam o seu sustento também com base no trabalho dos mesmos, desapareceram apenas, para ver novos elementos surgirem. Burocratas, administrativos, políticos locais, emigrantes, migrantes pendulares, empresários, e tantos outros elementos provenientes das mais variadas situações ocupam o rural. Em suma, hoje o espaço rural não é só agrícola visto que esta já não é garantia do seu sustento, nem batuta das suas relações sociais. O contexto rural já não pode ser caraterizado meramente pelo seu pendor agrícola, mas antes como um contexto aberto, amplo e diversificado, em suma, uma sociedade rural complexa e múltipla na sua variedade. Como procurámos demonstrar, as transformações ocorridas não erradicaram totalmente as formas agrícolas tradicionais e as manifestações culturais decorrentes das mesmas, antes, promo-

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veram a sua transformação e adaptação. Em suma, o pão caseiro, a broa, pode ser apenas produzido em pontuais fornos a lenha, mas o seu consumo é ainda procurado, tanto por gentes locais como de outros pontos do país e da península; e o vinho verde, antes destinado sobretudo ao consumo local e regional, é hoje produto de uma região demarcada que atravessa fronteiras no seu prestígio e qualidade. O concelho de Felgueiras tem ainda, espalhado na sua memória social e material, na sua riqueza histórica e paisagística, um futuro promissor que tudo deve ao seu passado. Falamos com interesse, por exemplo, da produção industrial vitivinícola, e da memória de tantas profissões extintas ou nesse processo, como a do cesteiro; Mas falamos ainda da produção industrial do calçado, uma parcela valiosa da cultura industrial portuguesa, que concentra em Felgueiras um património que merece o seu espaço e o seu destaque. Isto é, Felgueiras tem património de potencial que é amado pelos seus habitantes e apreciado pelos seus visitantes. Património esse que ainda merece um olhar mais aprofundado, como no caso dos ciclos aqui abordados, mas também um património vasto por desbravar, explorar e desfrutar.

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Vivências passadas - Memórias futuras: a cultura do linho, pão e vinho, contribuirá activamente para que não sejam esquecidos os valores rurais que fundamentaram a identidade colectiva de todos quantos partilham este território na actualidade. Enquanto meio de transmissão inter-geracional daquele testemunho, por certo que avivará a memória dos mais velhos e sedimentará o espírito de pertença dos mais novos. É sobretudo a estes que o livro se destina.

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NOTA S 1. DIAS, 1990:56.

3. MATTOSO (1992:252).

26. “A partir desta fase, quase diríamos, de monumentalização, podemos falar com certeza do estabelecimento de uma propriedade com as características de uma verdadeira villa rustica, constituída por uma casa senhorial de grandes proporções à cabeça de uma propriedade agrícola que parece ocupar todo o vale.” PINTO, 2008:19.

4. Idem (1992:277).

27. DIAS, J. 1993:46.

5. Ibidem (1992:171).

28. “Dentro deste Couto dou quanto aí tenha de reguengo quer de mandato juntamente com seu saião e caritel, fora do mesmo Testamento de Guimarães, que tem em Vila Pouca. Dou e confirmo isto que acima consta ao Mosteiro de Santa Maria, sob o nome de Pombeiro (...)” Tradução efectuada por J. A. Coelho Dias (Frei Geraldo) a partir do texto publicado em: Documentos Medievais portugueses: documentos régios: documentos dos Condes Portugualenses e de D. Afonso Henriques A. D. 1095 – 1785.

2. Serão inseridas citações de entrevistas realizadas entre Agosto e Novembro de 2010, onde a privacidade e confidencialidade estão garantidas pelo seu anonimato.

6. SILVA, Rebello da (1884:55). 7. Capaz de produzir até três a quatro vezes mais quantidade que o centeio e o trigo. 8. Passando posteriormente a ser disposta em ramada nas orlas dos terrenos de cultivo. 9. TENGARRINHA, 1994:68-69. 10. Idem, p.71. 11. TENGARRINHA, 1994:110. 12. TENGARRINHA, 1994b:77. 13. Arquivo da administração do concelho, dossier nº1629. 14. Inquérito à produção de vinho 1897, no Arquivo da Administração do Concelho, dossier nº1628.

29. Ver CRAESBEECK, Francisco Xavier da Serra, 1992, Memórias ressuscitadas da Província de Entre Douro e Minho. Ponte de Lima. Edições Carvalhos de Basto, Lda. 30. FREITAS, Eduardo de, 1985, Felgerias Rubeas : subsídios para a história do concelho de Felgueiras. 2ªed. Porto: [s.n.].

15. GOMES, 1948:220.

31. PORTO. Bispo, 1871-1899 (Américo Ferreira dos Santos Silva) - Relação geral das freguesias da diocese do Porto. Porto : Typographia da Palavra, 1882.

16. PEREIRA, 1979:144.

32. FERNANDES, 1989:26.

17. Dados retirados de PEREIRA, 1979:31.

33. Crescimento de 17% da população registado entre 1991 e 2001 (INE-Censos 2001).

18. PEREIRA, 1979:231. 19. CALDAS, 2001:53. 20. Idem, 2001:135-37. 21. Ibidem 2001:60. 22. Ver PINTO, Madureira (1985:98) na sua abordagem ao Vale do Sousa e à sua caracterização típica de sub-região agrorural típica.

34. A dispersão populacional encontra-se justificada, entre outras razões, na abundância de ribeiras e nascentes que permitiram a subsistência das gentes através do seu aproveitamento. A água e o seu consumo determinaram, no decorrer dos séculos, a selecção dos espaços para habitar e laborar. 35. GOMES et al, 1996:90.

23. PINTO, 2008:15.

36. Ver http://www.cm-felguerias.pt.

24. Situada na base do Castro de Sendim, descoberto em 1932, ver PINTO, Ruy de Serpa, O Castro de Sendim. Felgueiras (Nota Preliminar), Homenagem a Martins Sarmento (18331933), S.M.S., Guimarães, 1934. pp. 376-380.

37. FERNADES,1989:19.

39. OLIVEIRA et al, 1991:10.

25. PINTO, 2008:15.

40. OLIVEIRA et al, 1991.

38. Como reflecte PINTO Madureira, 1985:97.

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41. SILVA, 1868:249.

57. BARBOFF, 2005:13.

42. Tradicionalmente toda em madeira e mais tarde com dentes de ferro; é vista mais recentemente totalmente de ferro.

58. Idem. 59. INGRAM e SHARPTER, 2002:14. 60. BARBOFF, 2005:15.

43. OLIVEIRA et al, 1991: 45-56.

61. Idem, 1995:30.

44. Usualmente bois. 45. Actualmente não se encontram engenhos em funcionamento.

62. OLIVEIRA, 1995:33. 63. Grupo de pessoas a cantar.

46. OLIVEIRA et al, 1991:71

64. BARBOFF 2005:89.

47. Idem, 1991:72

65. INGRAM e SHAPTER, 2002:7.

48. Ibidem, 1991:100.

66. Pequena bacia em madeira

49. Agente chamava era de maçaroca ao linho enrolado no fuso. Borba de Godim.

67. INGRAM e SHAPTER, 2002

50. Quando em maior quantidade. 51. GRAÇA, 1943:66. 52. Comummente doze a vinte e quatro.

68. A multiplicidade de pequenas variações na cozedura do pão levou-nos a simplificar desta forma o processo tido como tradicional. 69. AMARAL, 1994:30. 70. VASCONCELOS, 1982:624.

53. Denominados de enxergões. 54. MARTINS, Maria Emília, 1989, in Primeira Colectânea de Poetas Felgueirenses, Edição da Câmara Municipal de Felgueiras.

71. Actualmente há porta-enxertos de muitas qualidades, que são importados. 72. VASCONCELOS, 1982:626.

55. INGRAM e SHAPTER, 2002:9.

73. BRANCO, 2005:132.

56. INGRAM e SHARPTER, 2002:12.

74. BRANCO, 2005:101.

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BIBLIOGRAFIA

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União Europeia Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional

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