Vivendo “encangado”: parentesco, mobilidade e proximidades entre os moradores do Sertão dos Inhamuns (CE)

September 1, 2017 | Autor: Jorge Luan Teixeira | Categoria: Peasant Studies, Anthropology of Kinship, Sertão, Rural Anthropology
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Vivendo “encangado”: parentesco, mobilidade e proximidades entre os moradores do Sertão dos Inhamuns (CE)* Jorge Luan Rodrigues Teixeira (PPGAS-MN-UFRJ/Rio de Janeiro)

Resumo Neste trabalho, penso sobre a relação entre parentesco e mobilidade entre os moradores do Sertão dos Inhamuns (CE) a partir de pesquisa realizada no município de Catarina. Não sendo donos da terra em que trabalham, os moradores muitas vezes não encontram meios de permanecer próximos dos pais, dos filhos e de outros parentes. Dinâmicas próprias à relação de morada também fazem com que os moradores se mudem várias vezes ao longo da vida entre diferentes propriedades, complexificando mais ainda as relações com os parentes. É, então, também na distância que os moradores fazem família, relacionando-se com parentes por meio de visitas, trocas, etc. A dimensão pública das coletividades familiares é analisada brevemente na introdução do artigo. Em seguida, discuto algumas categorias que dizem respeito aos modos locais de fazer parentesco: a “consideração” e a “criação”. Essa apresentação permitirá perceber a importância que a proximidade e a solidariedade têm para esses trabalhadores. Em seguida, penso sobre a relação entre as constantes mudanças de propriedades e o que foi discutido nas seções anteriores. É aí que o “viver encangado” – unidos, próximos – ganha sentido, motivando deslocamentos e a construção de territorialidades e trânsitos que ultrapassam as “extremas” de uma única propriedade. Palavras-chave: parentesco, mobilidade, relação de morada “Na exata hora que vim, fiquei partido, apartado. E a parte que eu vim ficou acesa na que apagou. Desejo e necessidade." - Chico César, Desejo e necessidade

Introdução: sobre o lugar dos aparentamentos As perguntas, as dúvidas, os mal entendidos, as hesitações, os silêncios e mesmo as gafes (as nossas) nos primeiros momentos de inserção em campo são reveladores. Meio desajeitados, tratamos de nos fazer conhecer e de explicar as nossas intenções ali, com as pessoas as quais nos direcionamos. Retrospectivamente, esses primeiros momentos podem jogar luz sobre uma série de observações que fizemos ao longo do tempo de pesquisa: os modos de conhecimento, o local reservado aos                                                                                                                 *   Trabalho

apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.  

 

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estranhos, as relações de poder, a circulação de informações, os modos de fazer/afirmar relações sociais, etc. Para os fins deste artigo, um único momento inicial (e prática de conhecimento local) é interessante para pensar sobre as dinâmicas do parentesco e da mobilidade no Sertão dos Inhamuns. Circulando pelas localidades rurais do município de Catarina - seja acompanhado de um sindicalista, seja com algum morador, seja na garupa de um mototaxista -, eu era com alguma frequência submetido a práticas de mapeamento, precisava ser enquadrado em alguma categoria local. Ficava claro que, tal qual na Zona da Mata mineira (COMERFORD, 2003), ali, no Sertão cearense, os moradores também controlavam a circulação uns dos outros (e também a dos desconhecidos). Essa prática de controle se deixa ver na atenção devotada àqueles que passam pelas estradas ("É Fulano indo pra num sei onde"), mas também em algumas perguntas que me seriam feitas com recorrência, se o ato de perguntar algo não fosse, às vezes, visto como indiscreto e mesmo perigoso 1: "Cê é parente de quem"?, "Cé é parente dele?", "O que é que você anda fazendo aqui?" Foi assim que, para alguns moradores, no início, eu poderia ser alguém fazendo "pesquisa política", um ladrão procurando rotas de fuga nos sítios, alguém do "movimento das cisternas" ou mesmo algum funcionário público interessado em "derrubar o cartão" do Bolsa Família. Quando eu passei a ser o rapaz que fica na casa do Antônio Novo, ou o "neto do Antônio Teixeira lá do Coriti", ou mesmo um dos "Florentinos", a estranheza inicial mudou um pouco de figura - mudança que também se devia à permanência prolongada naquelas localidades. O que práticas e mal entendidos como esses revelam é, por um lado, aquele controle das movimentações e a circulação de informações que constituem e evidenciam um mapeamento das pertenças (geográficas, políticas, familiares) e, por outro, o fato do parentesco e da família serem uma espécie "de referência discursiva básica" (COMERFORD, 2003, p.41) na região. O conhecimento dos vínculos de parentesco, das pertenças familiares e das localizações territoriais (das pessoas e das famílias), é, na região estudada, uma espécie de guia para a ação cotidiana e algo prezado (uma qualidade). Saber quem são "A" e "B" passa, assim, pela consciência de com quem "A" e "B" se aparentam - isto é, a                                                                                                                 1   O

fato de alguém ser muito "perguntador" é, às vezes, motivo de comentários entre as pessoas. Do mesmo modo, um morador com quem tive muito contato às vezes me pedia permissão ("Eu posso lhe fazer uma pergunta? Posso mesmo?") para perguntar algo como: "Você já é formado?"  

 

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quais coletividades familiares ou com quais pessoas estão ligados 2. Tal qual no Sertão pernambucano, poderíamos dizer que "A genealogical framework figures here as a basic organizing device for locating people in relation to each other, although kinship ties do not exhaust this set of social relations" (MARQUES, 2013, p.719). Longe de casa (em outra cidade ou estado) ou não, essas operações de aparentamento (TEIXEIRA, 2014) podem criar alguma espécie de reconhecimento-conhecimento e de predisposição entre pessoas até então desconhecidas. Assim, se "C" e "D" eram desconhecidos um para o outro, ao entrarem em contato, "C" tentará encontrar algum parente de "D" que ele conheça (ou reconheça) de alguma forma, e vice-e-vera. Comumente, esse esforço de mapeamento das pertenças passa (1) pela menção do nome das famílias a que "C" e "D" se ligam, sobretudo quando se trata de um sobrenome comum na região; (2) pela menção de um ou mais nomes de parentes de "C" que "C" acredite, por alguma razão, que "D" possa conhecer; e (3) pelo acionamento de alguma localização territorial: "C", que mora nesse ou naquele Sítio, nesse ou naquele bairro 3. O aparentamento também se deixa ver em outras atividades cotidianas. Ao contar alguma história ou ao se referir a alguém, pode-se lançar mão de algum vínculo para especificar de quem se fala. Essa prática, contudo, é contextual, depende do ato de fala: quando um morador falava de "Zé Gomes" ele poderia estar se referindo tanto a um primo paterno quanto ao irmão, pois os dois indivíduos têm o mesmo nome. No primeiro caso, ele especificava dizendo ser o "Zé [filho] do Antônio Gomes", no segundo, do "Zé Gomes meu irmão". Se, numa conversa com "B", "A" menciona o nome de "C", pode se fazer necessário que ele dê alguma informação suplementar: "C" casado com "D", "C" filho de "E", etc. Essa informação suplementar, contudo, pode variar de acordo com a identidade de "B" e com a existência ou não de relações suas com "C" e sua família: "B" poderia conhecer o pai de "C" sem que conhecesse a sua esposa. Nesse caso, conhecidas as posições de "B", faria sentido para "A" falar em um "C filho de E", mas seria infrutífero falar em termos de um "C casado com D".                                                                                                                 2

Para além dos trabalhos de Comerford (2003) e Marques (2002, 2013), o trabalho de Cerqueira (2010) , que será retomado adiante, também pensa sobre essas práticas de mapeamento familiar, dedicando especial atenção à "prosa" sobre a "parenteza do povo" e às visitas entre familiares. Na comunidades dos Buracos (MG), tal qual nos Inhamuns, "assuntar a parenteza" é tanto uma forma de conhecimento quanto uma forma de análise. 3   Trata-se, evidentemente, de uma simplificação (uma ilustração) para os fins deste artigo. O processo é dinâmico e contextual: é indissociável das pessoas (e das coletividades) envolvidas, mas também do contexto da interação.  

 

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Consideração e Criação Para além da evidência do controle da circulação e das suas implicações, o que tais práticas de aparentamento falam sobre o parentesco, sobre o fato de ser parente, no Sertão dos Inhamuns? Falam sobre a projeção pública das famílias, para além do espaço doméstico; falam da família como uma forma de conhecimento e de se fazer conhecer; sugerem que as famílias, mais do que unidades precisas, se fazem, se inventam, a partir de processos regulares de conexão e desconexão (CARSTEN, 2007); mas, para o que nos interessa, falam sobre o estatuto da pessoa 4. Quem Ego é passa, em parte, por aqueles a quem Ego se conecta, por aqueles a quem ele se liga. Isso não se deve apenas ao fato do sangue de uma família ter determinadas características (morais ou não) que são passadas intergeracionalmente, mas porque quando essa ligação é assumida, afirma-se tanto o pertencimento de Ego a uma coletividade (uma família) quanto uma série de relações com as pessoas que se reconhecem como parte dessa coletividade e com outras. Reconhecer ou afirmar um vínculo de parentesco com outrem é uma atitude política. "Política" no sentido de uma política do Eu (do self), porque uma política do Nós (de identidade, de produção de uma identificação com alguém), e vice-e-versa. Afirmar essa identidade pode produzir aproximações e distanciamentos em relação a outras coletividades familiares. Não é a minha intenção pormenorizar os modos locais de fazer parentesco e nem tampouco apresentar respostas definitivas sobre o que é ser parente na região fazê-lo exigiria um investimento etnográfico e bibliográfico de fôlego. Aqui, se discuto categorias que dizem respeito ao idioma local 5 da família e do parentesco, é porque elas se mostraram fundamentais para compreender algumas práticas de mobilidade dos

                                                                                                                4   E,

para o que foi dito e para o que se segue, há semelhanças com algumas observações de John Campbell sobre o estatuto da família e da pessoa entre os pastores Sarakatsani: "In this community an individual cannot exist simply qua individual, he can only be taken account of and evaluated in relation to his family membership [...]" (1964, p.187). Para além das inquestionáveis diferenças entre as duas áreas etnográficas (o Mediterrâneo e o Sertão nordestino) e as especificidades da situação e do modo de vida descrito pelo autor, há um ponto de semelhança: no Sertão, a família também é um (entre outros) modo de (re)conhecimento de alguém e um idioma para o mapeamento dos indivíduos, das suas pertenças e, em última instância, das suas ações e intenções. Às vezes, a desconfiança para com os estranhos, como o pesquisador, reside no fato de que o uso desse idioma, dessa forma de comunicação, não se mostra eficaz.   5   Evidentemente,   dizer que se trata de um idioma "local" não implica em dizer que tais categorias, o seu sentido e certos fundamentos/desdobramentos seus sejam exclusivos aos Inhamuns .  

 

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moradores - sejam elas de ordem mais cotidiana ou não (a mudança para outra propriedade rural, por exemplo). A primeira dessas categorias é a consideração. Para discuti-la, remeto-me brevemente à história de Antônia (que será retomada outras vezes neste artigo), moradora do Sítio São Félix, em Catarina. Antônia tem duas mães: Maria e Rosinha, respectivamente, a "mãe legítima" e a "mãe adotiva", nas palavras da filha. Ou três, se incluirmos Chiquinha, a madrinha, figura importante nessa história. Maria era muito amiga de Chiquinha, gostava muito dela. Essa grande amizade levou a uma promessa feita pela primeira à segunda: ela lhe daria a próxima filha que tivesse. Quando Antônia nasceu, Maria deu a filha para que Chiquinha cuidasse, para que a criasse como filha. Indo visitar alguns parentes distantes, Chiquinha deixou a criança, ainda muito pequena, na casa de uma vizinha, Rosinha, que dela ficaria cuidando enquanto Chiquinha estivesse distante. O que era para ser passageiro se tornou definitivo: Rosinha se afeiçoou à menina e a menina a ela, de forma que Antônia acabou ficando na casa de Rosinha, não retornou para a casa de Chiquinha, que se tornou a sua madrinha. Antônia morou na casa de Rosinha, no São Félix, até o dia do seu casamento com João Salviano - morador de um sítio dos familiares da mãe adotiva. Rosinha era irmã de Francisco Rodrigues Pereira e filha do "coronel" Frutuoso Rodrigues Pereira (os três já falecidos) - grande proprietários rurais, pecuaristas e protagonistas na política local. Rosinha era, pois, tia de Frutuoso Neto (ou Frutuoso, simplesmente), também proprietário e pecuarista, além de prefeito de Catarina por três mandatos - a esposa e um dos filhos de Frutuoso Neto também foram chefes do poder executivo local. Nas eleições municipais de 2012, contudo, o candidato de Frutuoso foi derrotado pelo candidato do então prefeito, que era antigo aliado dos Rodrigues. A tensão que sobreviveu à política incomodava à Antônia - com é de praxe, os vencedores falavam mal e zombavam do lado derrotado. Rosinha, sua mãe adotiva, era tia de Frutuoso. Ou seja, Antônia é prima do político, ainda que eles não tenham o mesmo sangue. Se são "primos", é porque, mesmo não sendo filha legítima de Rosinha, Antônia considera a família que a acolheu, os têm como parentes de fato. E assim faz pleno sentido o seu comentário sobre Frutuoso: "Ele considera a gente como primo. É tanto que eu não gosto nem que ninguém fale [mal] dele". Do mesmo modo, Antônia disse considerar as suas sobrinhas - filhas de Antônio, que era seu irmão de criação -

 

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assim como o esposo de uma delas, dono de um dos terrenos daquele sítio 6: "É tudo uma família só". Lembrando do seu casamento, Sival (natural de Mombaça e há mais de oito anos morando em Catarina) conta como ele e Bastiana, prima e esposa, andaram alguns quilômetros ao saírem da casa de Antônio (irmão) e de Neuza (cunhada), onde ela havia passado um período enquanto o primo "trabalhava para o casamento" - isso porque Bastiana foi roubada da casa dos pais, que eram contra a união dela com o primo. Na caminhada da casa de Antônio para a casa do pai de Sival, eles encontraram uma pessoa conhecida: Quando nós vinha chegando no rio, nós encontramo Nonato, uma pessoa muito amiga, amiga do meu pai: 'Sival vei, desculpe eu lhe perguntar, vai embora? Já tá com vista o dia do casamento?' Eu digo: Não, Nonato, é não. É porque a Neuza não tá se dando bem com Bastiana, chegou a aborrecer ela, aí..., 'Rapaz, eu vou lhe dar um conselho. Casa dos outros, Sival, é esquisito. Leve ela e vá na casa dos pais dela, se eles não quiser assinar o papel, ela é sua prima, não desconsidere ela, não'.

Se os pais de Bastiana não assinassem os papeis (afinal, a filha e o genro eram menores de idade), se permanecessem contra a união, Sival não deveria desconsiderar sua prima, abandoná-la, desistir da união. Um rápido exame em algum dicionário de Língua Portuguesa apontará dois significados principais para o verbo "considerar": (1) "examinar" algo, "refletir" sobre algo; (2) "respeitar" algo ou alguém. Tal qual a amizade, a consideração precisa de fundamentos para se desenvolver (para ser afirmada) - o respeito e o apreço se constroem, não se fazem num passe de mágica. Ela é um tipo de "liga" que, numa relação social, predispõe uma pessoa a respeitar, prezar e/ou gostar de outra. Não se considera uma pessoa que se tenha visto casualmente na rua e com a qual não se teve contato duradouro: a consideração passa por características, feitos e demonstrações da pessoa em questão que são "examinados", "apreciados", para usar o vocabulário dos dicionários. Tal qual observado por Marcelin (1996), a consideração pode ser lida como um produto do "reconhecimento". Reconhecer é ter consciência das obrigações e das                                                                                                                 6  Terreno

se refere a uma porção de terra em específico que é da propriedade de alguém ( o que se marca é o fenômeno da posse). Sítio tem usos variados: sinônimo de Zona Rural (quando no plural), um cultivo de ciclo maior que um ano, etc. Para o que nos interessa, Sítio marca uma localidade rural: o Sítio São Joaquim, o Sítio Bonito, etc. Assim, um Sítio (uma dessas localidades) pode ter mais de um terreno, mais de um proprietário.    

 

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responsabilidades de ser aparentado de uma forma particular com alguém: "o parente só é parente se reconhecido como tal" (1996, p.214). Reconhecer, pois, é ter consciência das próprias responsabilidades familiares (enquanto pai, mãe, filho, etc) e não se furtar a cumpri-las. Considerar é uma ação moral, ou seja, que leva o outro em conta e afirma um conjunto de posturas e ações vistas como socialmente recomendáveis ou necessárias. A consideração é usada entre parentes consanguíneos (um primo considera outro, um sobrinho considera o tio), mas também entre aqueles que não são: uma relação que não é de consanguinidade é afirmada como se assim fosse, de sorte que entre aqueles que se considera pode se encontrar apoio, solidariedade e identificação. Foi por isso que Antônia disse considerar Frutuoso e também as sobrinhas: ainda que não fosse, pelo sangue, uma Rodrigues, assim se reconhecia e se dizia reconhecida. Nonato, por sua vez, aconselhou Sival a não "desconsiderar" Bastiana, e se isso aconselhava, era, sobretudo, porque a noiva era sua prima. Assim, considerar os parentes é uma espécie de obrigação moral, é o que se espera, mas isso pode não ocorrer por razões variadas, na medida em que o apreço precisa ser demonstrado (precisa de fundamentos) e os vínculos precisam ser reforçados (MARCELIN, 1996; MARQUES, 2002) 7. Se a consideração afirma o apreço, a solidariedade e um conjunto de posturas em relação à alguém, a criação tem o poder, algo tautológico, de criar parentes e família, de tornar gente. Ainda que a mãe legítima de Antônia fosse Maria, a sua mãe de fato, a mãe que a criou, foi Rosinha. Antônia, por sua vez, criou Abimael, o único filho - que foi dado a ela, ainda recém-nascido, em Iguatu (CE) quando ela e Salviano, o esposo, moraram em um terreno nesse município. Ela já havia tido filhos, mas eles "não se criaram", não vingaram: adoeceram e morreram ainda muito pequenos. Em certo sentido, pois, criação é sinônimo vida ou de viver. Bima, como é chamado, foi criado por Antônia e Salviano, mas, segundo ela, desde cedo sabendo que era adotado. Ao crescer, ele quis conhecer a mãe legítima, mas o encontro acabou não ocorrendo porque a mãe se negou a conhecer o filho, ela o tinha "como morto". Abimael se revoltou com a situação e uma                                                                                                                 7   A

consideração também é uma categoria usada para se referir a uma série de relações que não as familiares - um morador pode dizer que considera o patrão ou que o patrão tem muita consideração por ele, por exemplo. Marques (2002) e Sá (2009), em situações etnográficas bem distintas, observaram usos da categoria que não se referiam, necessariamente, aos familiares. Entretanto, o tipo de disposição e de atitude em relação ao "considerado" é semelhante.  

 

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amiga de Antônia teria dito a ele: "Meu filho... Pode ter certeza que mãe é aquela que cria". Situação similar aconteceu com Van, filho de Antônio Novo e Luizinha, atualmente moradores do Sítio São Joaquim, em Catarina (CE). Pouco tempo depois do nascimento de Van, Luizinha teve outro filho, Valdo. Tendo que cuidar do filho recémnascido, ela não poderia dar toda a atenção de que o outro filho, ainda muito pequeno, precisava. Van foi, temporariamente, para a casa dos avós maternos - moradores na mesma propriedade, em Saboeiro (CE) - enquanto Valdo crescia um pouco, mas eles acabaram se apegando muito ao neto, de sorte que o menino acabou sendo criado por eles. Luizinha conta que Cazuza, seu pai, "quer mais bem" ao neto que aos próprios filhos: ele é obediente, trabalhador e segue a vontade do avô. O fato de Van - hoje morando em Acopiara próximo ao avô - ter sido criado pelos avós maternos não impediu que ele mantivesse contato regular com os pais: por algum tempo eles foram vizinhos, inclusive. Recentemente, Van - que trabalha bem como pedreiro e eletricista - passou um período no (Sítio) Monte Alegre (em Catarina) ajudando o irmão, Valdo, a construir sua casa em um pequeno terreno que ele comprou com o cunhado. Se a distância não impediu contatos regulares, ela também não impediu que Van chamasse Novo e Luizinha de pai e mãe - assim eles são reconhecidos (MARCELIN, 1996). Mas esse nem sempre é o caso. Antônia, por exemplo, não só chamava o pai legítimo, já falecido, pelo nome próprio (José) como o classificava como um "tio". Em parte, talvez isso se devesse ao fato de José ter se casado três vezes - o casamento com Maria, a mãe legítima dela, foi o segundo; mas se assim ela fazia era, sobretudo, porque eles não eram tão próximos, sua relação não assumia as feições de uma relação entre pai e filha: Poisé, eu chamava meu pai era tio. Quando eu peguei a conhecer ele, eu não queria saber dele, né? Eu não morava mais ele. Queria nem saber. Aí madrinha ajeitando, que era meu pai. Aí eu digo: Não, ele não é meu pai, não, vou chamar ele de tio. Eu chamava ele de tio José.

Antônia e o pai não viviam juntos, suas vidas não tinham o grau de interdependência que se espera de uma relação de paternidade - nisso, o vínculo entre José e Antônia era mais fraco do que aquele que a unia com Rosinha, a mãe de criação, e com Chiquinha, a madrinha. "Tio" seria uma figura mais distante, uma categoria de parentesco que foi deslocada para dar conta da relação com o pai legítimo. A

 

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proximidade construída por iniciativa da madrinha não impediu que ele ainda fosse reconhecido assim 8. Assim, de forma parecida ao que foi observado por Carsten (1996, p.12) na ilha de Langkawi, "[...] people are not necessaraily born kin, but may become so. Kinship is a process of becoming, not a fixed state" 9. Na criação - e também a partir de uma série de ações cotidianas -, o parentesco é construído, os vínculos são criados e se desenvolvem a partir de um processo de incorporação de uma pessoa (um parente) em outra(s). Criar é "tornar gente", educar, dotar de entendimento, ensinar valores: é construir proximidade e identificação. Não se trata, evidentemente, de negar a importância do sangue, pois, por exemplo, pessoas de uma mesma família que não se conheciam podem afirmar semelhanças, proximidades e laços ao se conhecerem

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que estou ressaltando é que tais vínculos serão mais fortes na medida em que as vidas desses parentes tiverem algum grau de interdependência. A consanguinidade, por si só, pode afirmar a identificação, o sentimento de pertença a coletividades familiares identificação que pode partir tanto de si quando dos outros -, mas o vínculo é tão mais forte quando é afirmado continuamente a partir de ações e demonstrações, quando a vida de ambos passa por alguma forma de partilha, quando há a implicação (passada e/ou presente) de um no outro 11. Isso se deixa ver em um comentário feito por Antônio Novo e Sival, moradores de terrenos vizinhos, no dia da partida de Zezinho, genro do segundo, para São Paulo 12.                                                                                                                 8   Essas

observações se aproximam do que foi notado por Cerqueira (2010). Os vínculos de parentesco passam pela proximidade, que permite a construção da "intimidade". Quando os filhos são criados longe dos pais existe o risco de que os vínculos sejam perdidos: "Há muitos casos de filhos que vão morar com avós ou tios - ou algum outro 'chegado' - devido à maior proximidade com a escola, às dificuldades financeiras do núcleo familiar originário ou mesmo porque a criança 'dá melhor' com os outros parentes. Em algumas dessas situações, o filho ou filha passa a chamar os pais pelo nome próprio e não pelo termo de parentesco" [grifo meu] (2010, p.80).   9   Janet Carsten observou a força simbólica da comensalidade no processo do parentesco. A lareira (dapur) é uma fonte de unidade do grupo familiar, pois o sangue é formado no corpo a partir dos alimentos ingeridos. Assim, a partilha cotidiana da comida tem o poder de criar "substância" entre os membros do grupo comensal, de forma que na ausência de qualquer outro laço, a comensalidade cria parentesco (1996, p.110).   10   Numa espécie de "trabalho interpretativo da memória" que lembra aquele observado por Carsten (2007, p.86): “I suggest here that in asserting or recognizing certain kinds of continuities while simultaneously disclaiming others, adoptees were engaged in a kind of retrospective memory work of kinship – despite the apparent absence of shared memories of kinship”.   11   Para falar nos termos de Sahlins (2011, p.10): "[...] kinsmen are persons who belong to one another, who are members of one another, who are co-present in each other [...]".   12  Zezinho morava com Marciana, a esposa, e a filha na mesma propriedade que Sival (as casas ficam em frente uma da outra). Uma filha da primeira união de Marciana também mora com o casal. Passado um tempo da partida de Zezinho, Marciana e as filhas também foram para São Paulo.  

 

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O sogro disse sentir falta do genro, com quem trabalhava e de quem gosta muito ("Zezim é um homem bom. É gente boa"). Pensando sobre a situação, Novo e Sival disseram ao mesmo tempo: "Um genro é um fí!". Isso era verdade, sobretudo, para Sival, que não tem nenhum filho homem: "Meu filho é ele, né? Ele é muito controlado com a gente, a gente se entende bem, como você sabe". Sival poderia contar com Zezinho para fazer alguma viagem, para alguma ajuda, para trabalhar nas empeleitas atividades que, comumente, cabem a um filho 13. Vivendo encangado No que tange à reprodução da família camponesa, a condição de morador coloca problemas diferentes daqueles enfrentados pelos sitiantes. Uma série de trabalhos realizados sobre grupos camponeses brasileiros pensa sobre as práticas de herança e de migração dos pequenos proprietários, mas, comparativamente, poucas pesquisas pensaram sobre como os moradores enfrentam essas questões - trabalhos como os de Johnson (1971) e de Sigaud (1979) são exceções. A situação é ainda mais complexa porque esses dois "grupos" (ou essas duas condições) não são imiscíveis: os moradores podem ter parentes (primos, irmãos, pais) que são pequenos proprietários, o que torna difícil falar em termos de uma "família de moradores", no sentido de um "grupo familiar" (THOMAS & ZNANIECKI, 1974), de uma "família extensa" 14. Para além disso, um morador (ou um filho seu) pode se tornar um pequeno proprietário e um pequeno proprietário (ou um filho seu) pode se tornar um morador. Em que reside a diferença entre as duas condições no que tange às estratégias de reprodução familiar? A resposta mais simples é algo óbvia: se os moradores não vivem e não trabalham "em cima do que e seu", se tomam de conta "do alheio", esse não é o caso dos pequenos proprietários - ainda que eles possam, se julgarem necessário,

trabalhar

no

alugado

para

algum

proprietário

ou

se

deslocar

                                                                                                                13  Entre

pequenos sitiantes do sertão piauiense, Godoi notou algo parecido. A sucessão dos direitos sobre a terra poderia ser dada ou aos filhos homens, ou ao genro, por intermédio da filha. "Muitas vezes os sogros referem-se aos genros pelo termo filho. [...] os termos de parentesco estão condicionados pelas relações sociais que eles simbolizam" (GODOI, 1999, p.77). O que se produz, nesse caso, é uma espécie de "deslizamento" das categorias de parentesco similar ao realizado por Sival e Novo, mas também aquele de Antônia, que chamava o pai legítimo de "tio".   14   Dada a polissemia da categoria "família" - que, nessa e em outras regiões, pode se referir a muitas coletividades diferentes - optei daqui em diante por falar em "família de moradores" ou "família nuclear" para me referir àqueles familiares que vivem numa mesma casa de morada.  

 

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temporariamente para outras regiões do estado e do país (WOORTMAN, 2009). Para usar os termos de Garcia Jr. (1990), se os pequenos proprietários podem desempenhar, na terra, atividades ligadas à condição de liberto, esse não é o caso dos moradores, sujeitos. A posse da terra fundamenta muitas das diferenças. Os pequenos proprietários da Irlanda (ARENSBERG & KIMBALL, 1968), os camponeses da Polônia (THOMAS & ZNANIECKI, 1974), os pequenos produtores paraibanos (HEREDIA, 1979), os sitiantes mineiros (MOURA, 1978) e os camponeses sertanejos (GODOI, 1999), não obstante as inúmeras diferenças sócio-históricas, culturais e geográficas e as estratégias por eles desenvolvidas, enfrentam um problema similar: a escassez de terra e o crescimento e casamento dos filhos15. Não há uma única possibilidade aberta para os filhos dos moradores quando eles se casam. Aqui, me deterei brevemente sobre uma trajetória comum (o filho do morador que se torna, também, morador) e sobre as estratégias desenvolvidas pelos trabalhadores. A morada como tal está associada à casa de morada, que é tanto a casa (cedida pelo patrão) quanto a terra e o trabalho a que o morador terá acesso "na terra dos outros": a relação supõe a residência e o trabalho (GARCIA JR., 1990, p.38), ou seja, o acesso aos meios de produção é condicionado pelo proprietário. Se entendo a morada como uma condição, é porque se dizer "morador", tão-somente, não faz sentido: um morador é morador de "Fulano" ou do terreno de "Sicrano"; mas também porque "Antes de pedir morada ou entre uma morada e outra, o trabalhador não é morador" (PALMEIRA, 2009, p.204). O morador é em relação. O filho do morador, ao casar, pode constituir ele mesmo uma casa de morada, mas a saída da casa paterna para a casa própria não é, na maioria das vezes, imediata, dando margem a arranjos temporários. É comum que os recém-casados passem algum tempo na casa ou dos pais da noiva, ou dos pais do noivo enquanto não se mudam para uma casa de morada. Ao tirar a prima da casa paterna, Sival levou Bastiana temporariamente para a casa de um irmão enquanto "trabalhava para o casamento". Ao casarem, Novo e Luizinha moraram por algum tempo em um cômodo da casa dos pais dela enquanto ele e um tio construíam a casa de taipa em que morariam - casa essa construída no mesmo terreno em que viviam os pais de ambos, no município de                                                                                                                 15  Problema

que tem fundamentações diferentes e que leva a respostas e estratégias variadas, que passam pela migração dos filhos para cidades ou regiões de fronteira, o dote dado à família do noivo, pelo casamento tardio de um dos filhos, etc.  

 

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Saboeiro. Valdo, filho de Novo, passou algum tempo na casa dos pais ao "se juntar" com Cida. Ao "fazer um negócio" com o dono de um dos terrenos do Sítio São Joaquim, Valdo se mudou com a mulher para uma casa de morada vizinha àquela em que os pais viviam - a casa foi reformada pelo proprietário com esse fim. Algo semelhante também ocorreu com o pai de Maria (hoje moradeira do Sítio Ingazeira, em Catarina) e sua família: ao se mudarem de Catarina para um terreno em Saboeiro, a família viveu algum tempo na casa de outro morador enquanto aquela em que viveriam era construída. Se tais arranjos são provisórios é porque um dos ideais daqueles que se casam é serem "donos de casa", e isso significa não dividir o mesmo teto com outro casal, na medida em que fazê-lo também divide a autoridade sobre a residência: "It is inconceivable to the moradores that any household could have more than one dominant couple, and any married couple expects full control over its own set of resources in labor and property" (JOHNSON, 1977, p.29). Foi por essas razões que Bastiana (na história mencionada na sessão anterior), mesmo não morando junto com o noivo no arranjo provisório que fizeram, não ficou muito tempo na casa de Antônio (irmão de Sival): ela não concordava com a divisão das tarefas domésticas e estava sob a autoridade de Neuza, dona da casa. Para além dessa mudança inicial (algo fundadora), os moradores costumam mudar de um terreno para outro com relativa frequência. Geraldo, atualmente morando em uma casa própria no Sítio Fechado, me diria: "[...] quem mora no alheio [tá] sempre aqui, acolá, tem que mudar o canto, né?" As razões para tais deslocamentos são variadas e não dizem respeito, única ou necessariamente, a causas de ordem econômica e/ou ambiental (as Secas), mas também a uma série de considerações morais e familiares. É sobre essas últimas que me deterei a partir daqui 16. E embora o "viver encangado" que dá título ao artigo diga respeito à família de Geraldo, a ela me voltarei mais adiante. Mudando de uma propriedade para outra pelas mais variadas razões, os moradores comumente se afastam de outros familiares, chegando a ir, inclusive, para regiões e propriedades até então desconhecidas; mas, não raro, a mudança de uma

                                                                                                                16   Cabe

ressaltar, contudo, que essa divisão aqui operada é metodológica - uma diversidade de fatores e motivações comumente impulsiona a mudança. Defendo que essa forma de mobilidade (entre casas de morada) diz respeito à moralidade, à economia e ao parentesco e, também, que, para além do patrão e do morador, a relação de morada na região envolve a atuação de outros agentes (TEIXEIRA, 2014).  

 

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família nuclear de uma propriedade para outra acaba motivando a mudança de outros familiares ou para o mesmo terreno, ou para próximo a ele. Assim ocorreu com a família de Sival, por exemplo. Morando no Sítio Sabonete (Mombaça), João, pai de Sival, tinha boas relações com Cícero Paraibano, o gerente de uma das propriedades vizinhas, o Mulungu (Acopiara). No Mulungu, João ia tirar a lenha para a moagem que fazia no terreno em que morava. Quando estava saindo da propriedade, o gerente acabou indicando João para tomar conta dela. João veio para o Mulungu e trouxe consigo os filhos, mas não só aqueles que ainda moravam na sua casa: Sival, já casado com Bastiana, também veio, ocupando uma casa de morada diferente daquela do pai. Se João se tornava morador de Gaspar, o proprietário, o mesmo também ocorria com o filho. Mais tarde, ao se aposentar, João se mudou com a esposa para Catarina, onde vivia uma filha, outros familiares e amigos. Quando João faleceu, a mãe de Sival ficou sozinha em casa: não havia mais nenhum filho que pudesse cuidar dela. Foi por essa razão, sobretudo, que Sival se mudou do Mulungu, onde vivera catorze anos, para o Sítio Bonito, em Catarina. Ali, ainda que na Zona Rural (a mãe vivia na sede do município), ele teria como "ver" sua mãe - e por "ver" entenda-se "cuidar". Quando Antônia se casou com Salviano (um morador) depois de alguns meses de namoro, ela se mudou para a propriedade em que ele já trabalhava - passava, então, à condição de moradeira. A união tinha uma "cláusula" firmada entre os dois por insistência da mulher: ela casaria com ele, mas com a condição de que passado algum tempo (um ano) eles se mudariam para o local de onde ela havia saído, isto é, o São Félix. Nesse caso, a mudança equivalia a uma saída da condição de morador, pois passariam a viver, temporariamente, na casa de Rosinha, sua mãe de criação. Se Antônia queria voltar ao sítio em que nasceu, não era por vontade de sair da "terra dos outros", mas pelo desejo de ficar próxima das suas "velhinhas": a mãe e a madrinha. Mais tarde, o mesmo desejo (ou, antes, necessidade) de proximidade faria com que ela e o marido se mudassem do município de Iguatu (onde pegaram Abimael para criar) para o São Félix. De modo parecido, Novo e Luizinha se mudaram por duas vezes seguindo os pais dela. Na primeira vez, a insistência da mãe dela, Francisca, fez com que se mudassem para um terreno próximo àquele ao que ela estava vivendo - tinham, portanto, patrões diferentes, moravam em propriedades distintas, mas estavam próximos. Ao chatear-se com o patrão em decorrência de um negócio não concretizado  

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(a ofensa era mais moral do que econômica), Novo voltou com a esposa para a propriedade de onde haviam saído - onde os pais dele e outros familiares viviam. Na segunda mudança, a promessa de um melhor "negócio" - uma condição econômica mais confortável - aliada à insistência de vários familiares da esposa fez com que Novo saísse de onde estava. Saía, então, do município de Saboeiro para a vizinha Acopiara. Sairiam de Acopiara, por sua vez, porque Novo "não se deu" com o lugar, não gostava do Manoel Gonçalves. Para além disso, sentia falta do lugar em que nasceu e dos parentes que lá permaneceram: "Meu sentido era no Coriti direto. [...] Parece que eu tava vendo o movimento, trabalhando com os menino ali e tudo". E, mais uma vez, se mudou - mas não sem os protestos da mulher. Essa situação, em específico, é exemplar para o que aqui é discutido. Morando "na terra dos outros", os projetos pessoais (e familiares) de Novo e Luizinha tornaram-se, momentaneamente, incompatíveis: o ideal seria que os parentes de um e de outro estivessem próximos deles, que fossem vizinhos e morassem sobre a mesma terra. Como essa situação não era mais possível - como foi outrora, na juventude de ambos -, tratava-se de desenvolver alguma estratégia de aproximação (uma política da proximidade) associada à perspectiva de melhorar de condições (i.e. "caçar melhora", ter "progresso") Hoje, morando no São Joaquim (depois de outras andanças), há a possibilidade, ainda que distante, do casal se mudar novamente. É que Valdo - o filho que morava no São Joaquim e com quem Novo costumava contar na roça, nas empeleitas e na luta com o gado - se mudou com Cida, a mulher, e João Vítor, filho dela, para o Sítio Monte Alegre (Catarina), onde, como observado acima, comprou um chão com Lau, um dos cunhados, e construiu uma casa. Outra filha do casal, a mulher de Lau, também mora no Monte Alegre. Luizinha pensava que o esposo não permaneceria no São Joaquim sem o filho, "Aí é nós ir pra lá". Entretanto, as estratégias de aproximação e essas políticas da proximidade não passam ou exigem, necessariamente, a mudança de uma propriedade para outra. Se as distâncias entre as propriedades são consideráveis para quem anda à pé, a difusão e o uso das motocicletas permite, por exemplo, que Valdo e Lau ajudem Novo em algum serviço, ou que Novo e Valdo ajudem Zé Gomes - primo do primeiro e tio do segundo -, vencendo as distâncias com uma rapidez desconhecida há alguns anos. Muitas vezes, esses encontros são combinados previamente por meio dos aparelhos celulares sem que haja a necessidade de uma viagem unicamente para fazê-lo. Para além dessas ajudas, as motocicletas permitem que os parentes se visitem com relativa frequência, morem eles  

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em outros sítios, na rua (Catarina) ou em outros municípios. E uma visita sempre é um motivo para outras visitas - há sempre as casas de "conhecidos" que ficam no meio do trajeto. Assim, se as motocicletas levam e trazem os passageiros, elas também transportam recados, novidades, alguma encomenda, etc para o vizinho, para o patrão, para o parente com quem se vai encontrar em breve, etc. Situação similar a essas ocorreu com Geraldo. Natural da Serra da Lagoinha, Zona Rural de Icó (CE), "extrema com a Paraíba", ele, jovem e solteiro, veio para Catarina em 1951 com os pais. A mudança se deveu ao desejo dos pais de morarem próximos a uma filha, que, ao se casar, passou a morar no Sítio Açudinho. Foi justamente para o Açudinho que os pais de Geraldo foram, mas eles não se demoraram: no ano seguinte, em parte motivados por uma grande Seca, retornaram o município de Icó. Geraldo não acompanhou os pais, permaneceu no Açudinho e se casou com Francisca (Dona Chica) em 1954. Passados vinte e três anos ali, Geraldo se mudou para outros propriedades (algumas delas pertencentes ao mesmo dono, Frutuoso, o primo de Antônia a que me referi na seção anterior), mas acabou, com o tempo, retornando para o Açudinho. Quando Geraldo morou no Sítio São Domingos, Eraldo, um dos seus filhos, conheceu Vanda, que morava no Açudinho com os pais - como ambas as propriedades eram de Frutuoso, os trânsitos entre elas eram constantes. Quando o pai se mudou para essa propriedade pela última vez, Eraldo casou com Vanda e eles passaram a residir numa casa de morada ali. Quanto aos pais de Vanda, antes de morar no Açudinho, eles também viveram em diferentes propriedades, fizeram várias mudanças. Se todos esses deslocamentos parecem confusos para o leitor, eles também são percebidas assim pelos moradores: "Um enlinhado grande", como diria Taíne, filha de Vanda, que ouvia a mãe me contar essa história de vida cheia de mudanças. Do Açudinho, Geraldo se mudou para o Sítio Bonito. Ele foi para uma casa (a maior da propriedade) que ficaria desocupada com a saída do antigo morador. No Bonito, Geraldo seria o vaqueiro da criação - situação que permite obter um maior "ganho", sobretudo se o vaqueiro é remunerado na sorte 17, o que seria o caso. Vanda e Eraldo, casados, também se mudaram em seguida para a mesma propriedade, como ela me relata:                                                                                                                 17  A

remuneração pela sorte tem as suas raízes na colonização do Sertão nordestino. Na sorte, o vaqueiro é  remunerado em cabeças de gado  (bovinos) ou  criação (ovinos e/ou caprinos): de cada quatro, ou cinco, animais nascidos, um é do vaqueiro.    

 

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LUAN: Aí quando foi pra vocês vir pra cá, porque foi que cês viero? VANDA: É porque o pai dele [Geraldo, pai de Eraldo] veio... TAÍNE: Só anda encangado [rindo] VANDA: [risos] Eles só moram encangado um no outro. TAÍNE: Onde mora um, tem que morar tudo. VANDA: É, é mesmo! Aí o pai dele veio, aí ficou tentando puxar a gente. TAÍNE: Pela gola [risos]. VANDA: [risos] Ficou tentando puxar nós. Aí o pai dele toda vida foi apegado com nós, sabe? Tudo no mundo deles é eu pra fazer as coisa pra eles. Aí vai e ajeita pra nós vir pra perto deles. Aí a mãe mais o pai também é apregado comigo. Aí vai e ajeita pra vir atrás também [risos]. Pra vir tudo atrás. Aí nós tamo tudo aqui de novo. Junto novamente. Tudo pertim um do outro aí.

Quando Geraldo e Dona Chica se mudaram para o Bonito eles fizeram de tudo para trazer Eraldo e Vanda para a mesma propriedade: a nora os ajudava frequentemente nas mais diversas situações. As palavras usadas Vanda e pela filha para descrever a situação não deixam ver apenas esse caráter de ajuda, solidariedade, mas também demonstram ideais de união e de proximidade: "apegado", "encangado", "apregado". Seguindo a mudança da filha, "puxada pela gola" pelo sogro, os pais de Vanda também saíram do Açudinho para o Bonito. Ainda que Vanda tenha morado em diferentes casas nessa propriedade, nenhuma delas ficava muito distante da casa dos pais ou dos sogros: como resultado, ela e os filhos iam frequentemente às casas deles. A palavra "encangado", usada em diversas situações no sertão nordestino, se refere ao que não pode ou não consegue se manter separado. De uma criança que seja muito próxima de outra se diz: "Ele só vive encangado no outro". A palavra vem de "canga": a peça de madeira que, colocada entre o pescoço e o dorso, une os bois que puxam um carro, de sorte que o veículo não consegue andar se os bois - lado a lado, "encangados" - não avançarem juntos. Para os bois, a canga lhes aprisiona, os une entre si. Sem a canga, os animais estariam separados, o carro não seria puxado, permaneceria estanque. A expressão que dá título a esse artigo, usada por Vanda no relato citado acima, poderia ser usada para tratar de muito do que foi discutido até aqui: (1) a dimensão pública das famílias, que se deixa ver nas práticas de aparentamento e identificação (por si ou por outrem) às coletividades familiares: um parente é encangado n'outro; (2) a afirmação dos vínculos familiares por outros meios que não o sangue e a consanguinidade, demonstrando, por um lado, o parentesco como um processo de incorporação e, por outro, a importância da implicação cotidiana da vida de

 

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um (parente) na vida do outro; e, por fim, (3) a proximidade como um motor para a mudança entre propriedades rurais, ainda que tal deslocamento não implique, necessariamente, numa mudança imediata de condição ou no aumento dos "ganhos", em maior "chance" (i.e. condições para ter progresso). É sobre uma implicação particular desse último ponto que me deterei na conclusão deste artigo. Conclusão: sobre algumas redes e configurações Uma das questões que a forma de mobilidade discutida na sessão anterior problematiza é o enfoque exclusivo ou privilegiado na família nuclear - "[...] le cadre étroit de la famille nucléaire" (GESSAT-ANSTETT, 2001, p.116). O que a expressão "viver encangado" tenta traduzir não diz respeito apenas à união e à solidariedade do "grupo matrimonial" (THOMAS & ZNANIECKI, 1974) e do "grupo doméstico" (FORTES, 1969), daqueles que dividem uma mesma casa de morada, mas a uma ligação, uma relação, mais ampla que relaciona diferentes famílias (famílias de morador) e diferentes casas levando a deslocamentos duradouros (as mudanças) ou não (as visitas, as ajudas, os dias de serviço, etc). Ainda que por outros meios e com outros fins, as práticas de aparentamento deixam ver essa agregação dos parentes frente aos oturos. O que está em jogo aqui é tanto a solidariedade familiar quanto o afeto, a proximidade pelo prazer (ou necessidade) da proximidade e o ser-mútuo a que Sahlins (2011), Campbell (1964) e outros se referem

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. Se a proximidade é um meio, ela

também é um fim em si mesma. Para o que é aqui discutido, uma casa (uma "família nuclear") não pode ser entendida por si só sem que se perca algo de vista. Uma casa de morada faz parte de uma configuração de casas (MARCELIN, 1996), sejam essas casas de outros moradores, de pequenos e grandes proprietários, de trabalhadores urbanos, etc. Mas ainda que entre os moradores a casa também não seja uma "entidade isolada", ainda que ela seja "um dos centros focais de acumulação e de distribuição das redes domésticas"                                                                                                                 18

Entretanto, não afirmo que a família é sempre uma justificativa, um idioma, e um meio para a aproximação e a agregação - seria mais fácil e cômodo afirmar que os vínculos familiares são sempre uma motivação para o deslocamento dos moradores, mas esse não é o caso. Assim como as relações familiares podem ser uma motivação para aproximações elas também podem produzir afastamentos, distanciamentos. Se a consideração se ganha e se demonstra, ela também se perde; se há a solidariedade familiar e o ser-mútuo, também existem forças de fissão e lutas entre coletividades familiares antes indivisas e com interesses relativamente comuns (MARQUES, 2002). Para algumas indicações nesse sentido em relação aos dados aqui discutidos, remeto a outro trabalho (TEIXEIRA, 2014).  

 

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(ibid, p.131), ela não possui o peso que Marcelin observou no Recôncavo Baiano. E se não possui não é porque a casa, em sentido geral, seja desvalorizada, mas porque, como observado, os moradores se mudam com alguma frequência ao longo de suas vidas. Explorando a categoria em questão, no caso dos moradores poderíamos pensar a configuração de casas como dinâmica também em outro nível: os familiares mudam de casas e essas mudanças dão novas feições às relações que interligam os habitantes desse conjunto de residências. Se a casa "é pensada e vivida em sua inter-relação com outras casas que participam da mesma construção (ibid, ibidem) - e se, examinados tendo em vista esses redes familiares, os deslocamentos e as migrações dizem respeito a um processo de extensão, desenvolvimento, negociação e redefinição das relações (OLWIG, 2007, p.9) -, as mudanças fazem com que tais inter-relações sejam avaliadas e vividas de forma diferente tanto por aqueles que se mudam quanto por aqueles que permanecem. Assim, esses deslocamentos podem ser vistos como uma tentativa de reproduzir da melhor forma possível uma configuração particular de relações familiares. A aproximação, a proximidade, pode ser, tal como observado por Johnson (1971) - pensando sobre a morada no sertão cearense 19 - e Gessat-Anstett (2001, p.119) - tratando das famílias russas "no contexto estrutural de penúria próprio ao período soviético" - uma estratégia, uma garantia de apoio e ajuda para esses trabalhadores rurais. O que está em jogo é uma estratégia residencial que passa pela identificação e solidariedade familiares com a consequente produção de deslocamentos territoriais e a afirmação de uma rede de parentesco em que circulam tanto objetos, quanto informações, força de trabalho e, porque todas essas e também outras coisas, pessoas. Assim sendo, se a forma de mobilidade aqui considerada pode ser entendida tal qual as modalidades de migração a que Woortman (2009, p.217) e os sitiantes sergipanos se referem - como estratégias importantes nas "práticas de reprodução" (social e econômica) camponesas, ela também pode ser vista como produtora e como                                                                                                                 19   Se

Allen Johnson foi um dos poucos antropólogos a ter estudado a relação de morada no sertão nordestino, ele também foi um dos únicos a ter investido na análise das "relações horizontais" (econômicas, no seu caso): entre moradores e seus parentes e entre moradores. Fazendo pesquisa no sertão cearense na década de 1960, Johnson afirmava a distância geográfica como um impedimento para o relacionamento regular entre parentes (na mesma propriedade ou não). Das cerca de cinquenta casasfamílias da propriedade, 18% estavam ligadas por laços de parentesco e vinte e duas estabeleciam relações econômicas (trocas de bens e/ou trabalho) com parentes fora da fazenda Ainda que os produtos (e o trabalho) trocados entre moradores não-parentes fossem os mesmos daqueles trocados entre moradores parentes, haveria uma maior "obrigação" no segundo caso: "As one informant put   it, gift exchange between kin is an 'expression of unity'" (1971, p.111). Os parentes eram fontes importantes de segurança e apoio e, no geral, melhores vizinhos do que os não-parentes, pois, se vendo como parte de uma "unidade maior" (ibid, p.30), haveria menos conflitos com eles.  

 

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um produto (uma evidência) dos modos locais de fazer parentesco - assim, "encangado" e "encangando". Bibliografia ARENSBERG, Conrad & KIMBALL, Solon. Family and community in Ireland. 2.ed. Cambridge: Harvard University Press, 1968. CAMPBELL, John. Honour, family and patronage: a study of institutions and moral values in a greek mountain community. Oxford: Oxford University Press, 1964. CERQUEIRA, Ana Carneiro. O "povo" parente dos Buracos: mexida de prosa e cozinha no cerrado mineiro. 373 f. (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS/Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2010. CARSTEN, Janet. The heat of the hearth: the process of kinship in a malay fishing community. New York: Oxford University Press, 1997. ______. Connections and disconnections of memory and kinship in narratives of adoption reunions in Scotland. In: ______. (Ed). Ghosts of memory: essays on remembrance and relatedness. New York: Blackwell, 2007. p.83-102. COMERFORD, John. Como uma família: sociabilidade, territórios do parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. FORTES, Meyer. Introduction. In: GOODY, Jack (Ed.). The developmental cycle in domestic groups. Cambrige: Cambridge University Press, 1969. p.1-14. GARCIA JR., Afrânio Raul. O sul: caminho do roçado: estratégias de reprodução camponesa e transformação social. São Paulo: Marco Zero; Brasília: MCT-CNPq, 1990. GESSAT-ANSTETT, Élisabeth. Du collectif au communautaire: à propos des réseaux familiaux dans la Russie post-soviétique, L'homme, n.157, p.115-136, 2001. GODOI, Emília Pietrafesa de. O trabalho da memória: cotidiano e história no sertão do Piauí. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. HEREDIA, Beatriz. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores no Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. JOHNSON, Allen. Sharecroppers of the sertão: economics and dependence on a brazilian plantation. Stanford: Stanford University Press, 1971. MARCELIN, Louis. L'invention de la famille afro-americaine: famille, parenté et domesticité parmi les noirs du Recôncavo da Bahia, Brésil. 382 f. (Doutorado em Antropologia Social) - PPGAS/Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 1996.

 

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