Viver junto, viver só, só viver: Basbaum comenta Pélbart

July 8, 2017 | Autor: Sergio Basbaum | Categoria: Contemporary Art, Philosophy of Art
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(em 2006, fui convidado pelo coordenador do www.forumpermanente.org, a fazer um relato da fala de Peter Pal Pélbart em 5 de agosto daquele ano, no ciclo de debates que antecedeu e preparou a 27a Bienal de São Paulo, "Como viver junto" -- curadoria de Lisete Lagnado. Este texto é o meu relato reflexivo sobre a fala de Pelbart, intitulada "Como viver-só")

VIVER JUNTO, VIVER SÓ, SÓ VIVER. Certa vez, a propósito do conhecido isolamento de Jean-Luc Godard, Gilles Deleuze descreveu uma solidão rica, "povoada". Peter Pal Pélbart fez menção a essa entrevista, numa das muitas referências evocadas em sua fala no Fórum da Bienal, no Porão da Bienal, no dia 5 de agosto passado -- batizada, ironicamente, Como viver-só. Trata-se do reverso necessário -- do contracampo, diria Godard -- ao mote escolhido por Lisette Lagnado para a presente Bienal de São Paulo. Bienal de um tempo em que "nos arrastamos como zumbis pós-modernos", num "sobrevivencialismo pós-metafísico", no dizer sombrio de Slavoj Zizek, que Pelbart também retoma. Juntos, campo e contracampo enfeixam a dialética aparentemente inescapável da contemporaneidade, que a fala do filósofo procura tatear, através de sua própria solidão, povoada de "Bartlebys", "Blooms", "Gombros" e "Porotos": "Como sustentar um coletivo que preserve viva a dimensão da singularidade?". No contexto descrito por Zizek -- sob o sítio da reordenação rizomática do controle do vivível, sob um viés totalizante de uma escala nova, de uma violência silenciante tão anunciada e previsível como desconhecida --, a arte se coloca a mesma questão e se impõe como experiência cada vez mais necessária.

Já não sabemos estar sós, lembra Pelbart. Vivemos numa sociedade em que o "capitalismo em rede enaltece ao máximo as conexões e esconjura a solidão", e nessa hiperconectividade não pode haver singularidade, há só a "'solidão negativa', socialmente produzida", não a "solidão positiva" de uma resistência à homogeneização, à desertificação do vivido pela sua iluminação ao mesmo tempo indiferente e totalizadora. O estar só impõe um saber dançar na obscuridade, brincar em mundos não iluminados -- ali se encontram luzes de uma natureza outra: o poeta Itamar Assumpção dizia "É preciso estar escuro/ para eu dormir em paz/ mas dentro de mim há uma luz/ que eu não consigo apagar!". Também a solidão -- certamente insone -- de Itamar era ricamente povoada.

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Num contemporâneo de tal modo reduzido àquela dimensão "onde tudo flutua na indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias" -- bem como pessoas -- "infinitamente intercambiáveis e substituíveis", habitado de Blooms e outros Homo Otarius -- solidões menos ou mais reais do teatro semi-adormecido das negociações da cretinice normativa cotidiana que sustenta o real --, o engessamento do fluxo da subjetividade, e a imanente violência que daí deriva, não apontam qualquer horizonte existencial a se abraçar. Mas seria mesmo uma questão dialética? A tese do coletivo -- esse coletivo morno, adormecido em redes de controle -versus a resistência misteriosa, que implode a lógica do real -- a resistência de um Bartleby, um Gombro ou um Poroto e de outras subjetividades irrecuperáveis pela ordem vigente? Não seria mais uma questão de pensar numa "multilética" (que me perdoem os filósofos o abuso da palavra), já que as solidões povoadas são múltiplas, exponenciais, de uma ordem tal que a mera oposição do par viver-junto/viver só não pode dar conta? No recuperar a necessidade e a possibilidade do espaço transbordante das solidões povoadas, o viver-só de que fala Pélbart implode em tantas direções a hegemonia do sentido de um real esvaziado pelo cálculo do vivido, que a dialética da luz e da sombra, do coletivo e do singular, parece, num relance, tornar-se ela mesma prisioneira da armadilha que denuncia.

Mas não é assim. Pelbart censura também essa mesma recaída numa dicotomia simplificadora em Sloterdijk, que tenta superar nosso "solipsismo antropológico" por meio de um "ser dois", por uma "metafísica de duplo" que é preciso, justamente, ultrapassar. E é curioso notar como Merleau-Ponty -- esse filósofo às vezes esquecido no aparente radicalismo dos autores pós-modernos e seu embate com um mundo bem mais complexo e cheio de especificidades --, já havia proposto pensar o real como empreendimento coletivo, cuja riqueza de sentido deveria decorrer da pluralidade das singularidades, de uma intersubjetividade aberta, inacabada. Não há nada nesse Merleau-Ponty que se contraponha ao Deleuze que serve de guia ao viver-só de Pélbart: preservar a riqueza de sentidos do vivido é abrigar, neste vivido -- na negociação dos sentidos do real -- múltiplas subjetividades, às quais devemos ser capazes de ofertar ao menos a possibilidade de constituir não simples conectividades eletrônicas, mas redes de afetos: o "desafio do solitário (...) é sempre encontrar ou reencontrar um máximo de conexões, estender o mais longe possível o fio de suas 'simpatias' vivas", diz, retomando Lawrence. Temos que ser capazes de acolher, no solo mas também no vôo, o Superoutro de Edgard Navarro (num 2

filme excepcional de 1987), que salta do alto do Elevador Lacerda, enquanto grita: "Abaixo a gravidade!". É porque o coletivo quer ser homogêneo e as singularidades são, ou deveriam ser, inúmeras, que não se pode falar em dialética.

E quando se toma a descrição de Pélbart do universo experimentado por aqueles que viveram a clínica La Borde, com Félix Guattari -- Jean Oury, Marie Depussé -- ou dos participantes do singular grupo de teatro que Pélbart coordena -- composto de usuários de saúde mental --, parece mesmo que o limite tênue entre um sentido de realidade e loucura, essa linha instável e tão difícil de habitar, é o único lugar em que o mundo é ainda vivível. É apenas diante da visão dessa implosão dos sentidos, do alívio do vazio, do êxtase do nada e da alegria da presença que daí deve emergir -- da perda de todo o real e sua recuperação afinal como o único lugar possível -- que se pode falar em "viver junto", em partilhar o mundo. Mas aí, talvez estejamos, finalmente, no domínio da proposição artística e daquilo que se configura uma das tarefas da arte na contemporaneidade.

Mas Merleau-Ponty também disse certa vez: "quando percebo o outro, há um grau de violência que se torna impossível". Aqui, o conflito contemporâneo posto por Pelbart e a problemática da arte se entrelaçam: intervir no campo sensível, guerrilhar na arena da percepção, parece ser um caminho para que se abram as estreitas sendas que possivelmente reconciliam meu mundo e o dos meus semelhantes. Porque se estamos discutindo uma disposição simples, aquela de "perceber o outro"; e se, ao que parece, não estamos, no nosso registro cotidiano, aptos a fazê-lo, é porque nossos laços perceptivos, os "fios que me ligam ao real", estão de algum modo desbalanceados -laceados, frouxos, alguns: aqueles que me vinculam à vida que merece ser vivida, que me ligam aos meus semelhantes; tensos, rijos, outros: aqueles que me prendem nas redes de controle, nas competições por produtividade, na devora de tudo aquilo que realmente interessa, em nome dos desejos inventados pelo espetáculo -- a sociedade do controle é também a da alienação do próprio desejo, e se não percebo o outro é porque não percebo a mim mesmo. Enfim, se, como diz Pélbart "quando a consistência das formas que antes asseguravam alguma consistência ao laço social apenas reitera a gregariedade atomizada, cabe indagar o que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia", parece ser ainda a arte a melhor resposta de que dispomos. Não que a questão se esgote na dimensão poética e não transborde para a dimensão política -- e ainda: como se a 3

intervenção no terreno do sensível não fosse essencialmente política, já que aí se define a gênese dos sentidos do real, a possibilidade mesma da presentação de um mundo como espaço vivível, que se constitúi no trânsito polifônico das diferentes subjetividades; não se trata de crer que a poesia, por si própria, possa nos salvar: trata-se, antes, de perceber que, sem ela, resta pouco o que salvar.

Em meio a tais embates de constituição de sentido, em meio à batalha pela posse da experiência que tensiona hoje ao limite a questão mesma das instituições que têm se apropriado da experiência inaugurada pela obra de arte, Deleuze-Pélbart reivindicam um mundo em que se possa ir buscar uma solidão "suficiente", a "solidão absoluta" que é ao mesmo tempo "a mais povoada do mundo". Ao ponto em que tal personalização absoluta se converta novamente numa conexão completa, "O ponto mais singular abrindo para a maior multiplicidade: rizoma. Por isso cabe sair do 'buraco negro do nosso eu' (...) desfazer o rosto, tornar-se imperceptível, e pintar-se com as cores do mundo": o retornar ao mundo do viver junto é aí um dissolver-se que não pode se sustentar na idéia tradicional de sujeito, essa criação única da cultura ocidental -- portanto tampouco na dialética que deriva desse sujeito, que constitui, por si só, autonomamente, o sentido do mundo. Tampouco responde a essa superação do sujeito o agenciamento coletivo puro e simples: crimes demais foram e são cometidos por essa alienação da singularidade em nome da força do coletivo -- e, de mais a mais, já dizia Nélson Rodrigues, "toda a unanimidade é burra". No vazio da impossibilidade do sujeito, e dos acordos tenebrosos que por vezes articulam as pulsões coletivas, a impossibilidade da simples dialética do viver junto versus viver-só não pode reunir "o cúmulo da solidão desejante e o cúmulo do socius", como sugeriu Guattari. Talvez, conquistar a atenção que agencie a "polidez" (mas também a "delicadeza", a "gentileza" ou a "suavidade" -- e talvez Pelbart me permita acrescer aqui um "cuidado"), em que cada um possa "se apoderar de outro no seu mundo, conservando-lhe, porém, as relações e o mundo próprios", como propõe Deleuze, demande primeiro dissolver a própria relação campo-contracampo em que se coloca a questão, abrindo uma linha de fuga que desloque, ou desterritorialize o problema. Possivelmente, a poesia possa fazê-lo. Na década de 1970, Gilberto Gil -- então poeta, que, aliás, logo seria bastante criticado justamente por sua suposta a-politização -- revirou o sentido de uma bela canção e arrancou dali a inversão preciosa que abria um território de significação renovada: eu preciso aprender a ser só tornou-se eu preciso aprender a só ser. À generosa -- porém binária -- dialética do viver-junto e do viver-só, vem somar4

se, então, como um presente do poeta à implosão das amarras da lógica, a fórmula delicada do só-viver.

Sérgio Basbaum Novembro 2006

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