Voando como Dédalo

August 13, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Philosophy
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VOANDO COM DÉDALO por Waldísio Araújo A civilização grega valorizou o ideal de manutenção de cada ser em seus limites constitutivos e em seu raio de ação. O mito da queda de Ícaro, estruturado pela noção de hybris, expressa a busca do autoconhecimento e autocontenção capazes de assegurar a harmonia e interdependência das ordens individual, coletiva e cósmica. Aprisionado com seu filho Ícaro numa fortaleza a mando de Minos, rei de Creta, que o acusava de cumplicidade com os amores de sua esposa Passífae com um touro branco, o engenhoso Dédalo construiu dois pares de asas, usando cera e penas de aves, a fim de evadir-se pelo ar. Após Em pleno vôo, Dédalo contempla o corpo de seu filho aconselhar o filho a não voar demasiado baixo Ícaro, morto na praia. Pintura em Herculanum. (para não molhar as penas na umidade do mar, tornando muito pesadas as asas) nem muito alto (para que o calor do sol não derretesse a cera), lança-se com ele do alto da torre da prisão e abandona Creta em direção ao ocidente. Empolgado e autoconfiante, porém, Ícaro sobe cada vez mais e o sol lhe derrete as asas, fazendo-o cair e morrer no mar. Esse mito valoriza a coragem e engenhosidade do homem, suas conquistas frente à natureza e frente a si mesmo – e, apesar da morte do filho, Dédalo continuará sua viagem até a Sicília, onde fundará um templo em honra de Apolo, deus da razão, ao qual deixará como oferenda as asas que lhe permitiram a liberdade. O que está em questão e se condena aqui, contudo, é a vã pretensão de ultrapassar os limites humanos e, assim, invadir o território reservado aos deuses na ordem universal; em outras palavras, alerta-se para que se não cometa o erro fundamental da hybris, a desmedida que provoca o ciúme dos deuses e a perdição do infrator ou de sua descendência. O equilíbrio cósmico, que mantém em justa proporção as partes do universo entre si e com o todo, fora arduamente conquistado com a vitória dos Deuses sobre os Titãs. após a qual as forças desordenadas do Caos deixaram de atuar livremente e à mercê unicamente do Tempo (Cronos) avassalador. Doravante tais forças permanecem, ameaçadoras, nos subterrâneos do mundo, mas são conjuradas dia a dia pelo trabalho coletivo dos deuses, dos homens e dos outros seres, num contexto em que qualquer transgressão dos limites constitutivos de cada ser cria uma instabilidade de forças que pode provocar no mundo, na coletividade ou dentro de cada homem a irrrupção caótica ameaçadora que, por uma lei imanente de justiça, terá que ser compensada para que o todo volte à sempre provisória estabilidade. Em decorrência disso, cabe aos seres humanos buscarem o conhecimento de sua própria natureza, capacidades e limites, a fim de melhor determinar sua posição, função e finalidade na ordem universal. Porém, o homem possui uma razão também criadora de ordem, uma certa semelhança

com os deuses que lhe parece autorizar a não conformar-se em imitar o espontâneo ajustamento dos outros animais ao mundo, e isso o leva a arriscar-se para além do que lhe é lícito ambicionar. Ocorre que a deusa Hybris destacava-se por passar a maior parte do tempo no mundo dos homens, e podemos observar seus estragos na loucura e suicidio de Ajax, filho de Telamon, após lhe ser negada a armadura de Aquiles morto; na punição dos desmandos dos pretendentes de Penélope contra os bens de Ulisses; na cegueira que levou Édipo à ruína; no nascimento de Minotauro como castigo ao rei Minos por ter este subtraído dos deuses o belo touro branco destinado ao sacrifício; na humilhação de Belerofonte ao tentar elevar-se ao Olimpo montado no cavalo alado Pegasus… ou neste fracasso de Ícaro ao voar temerariamente em direção ao sol. A hybris desempenhou entre os gregos o papel de um “mal fundamental”, do qual todos os outros males derivam e do qual estes, aliás, são meras formas particulares. Por outro lado, podemos considerar como tentativas de fugir da hybris todo um trabalho de legisladores, religiosos, filósofos, historiadores, políticos, mitógrafos, pedagogos, artistas ou mesmo urbanistas antigos, em cujas realizações entrevemos uma surda ou ruidosa vontade de preservação do homem em seus limites naturais. Diante de tudo isso pode parecer surpreendente que a civilização grega tenha se permitido elevar-se tão altivamente aos níveis de criação que todos nós conhecemos. O próximo artigo, intitulado Aprisionando-se como Ulisses (clique para ver), tentará explicar por que Dédalo, ao aconselhar a Ícaro não arriscar-se demasiadamente alto, nem por isso proibiu-lhe e a si mesmo de voar. Waldísio Araújo [email protected]

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