Voando numa semente de dente-de-leão

July 22, 2017 | Autor: João Silva | Categoria: Creative Writing, Crónica, Escrita
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Agora conto eu…
Voando numa semente de um dente-de-leão
O vento ainda era frio, mas, às escondidas, a natureza já se espreguiçava num longo acordar. Por todo lado o ar trazia já a azáfama da bicharada: formigas encarreiradas carregando mundos; abelhas namoriscando todas as flores que encontravam, competindo com borboletas floridas pelo melhor lugar; lagartixas espraiando nos ainda fracos raios de sol; escaravelhos de todas as cores e feitios correm apressados de um lado para o outro…
Com este acordar cíclico, mas no entanto sempre surpreendente, chegam também as cores do que outrora tinha sido monótono e sombrio; chega também o riso das crianças. É hora de ir brincar lá para fora, depois de dias de uma aparente hibernação.
Como ela gostava daqueles dias de sol à tardinha e de percorrer com as mãos as pontas ainda húmidas das ervas. De repente parou. Acho que viu alguma coisa especial: algum bicho para qual olha com especial atenção? Ou uma flor que terá aprisionado o seu olfato? Já sei o que foi! Vejo agora que segura uma semente de dente-de-leão, na mão. Ela sabe que não faz mal arrancar «Estou a ajudar a natureza!», diz ela, como se fosse uma entendida nestas questões da biologia. O facto é que estava mesmo a ajudar, pois estava a substituir o seu amigo vento e dar-lhe uma ajudinha.
Sem perder muito tempo e de dente-de-leão na mão, fechou os olhos e soprou com força. É assim que se pedem os desejos: fecha-se os olhos e guarda-se todos os nossos sonhos nos nossos pulmões. Por breves momentos tudo fica suspenso à nossa volta e até a natureza parece querer esperar, curiosa por saber o que vai dentro de nós. Depois tudo acelera e à medida que libertamos o ar aprisionado nos pulmões, vamos projetando naquela semente de flor todas as nossas expetativas e sonhos. Abrimos os olhos e esperamos que a realidade à nossa volta esteja diferente, como se uma pequena semente de dente-de-leão fosse capaz de fazer o que muitas vezes nós não conseguimos ou não temos coragem. Mas nem por isso deixamos de soprar: é isso que nos torna humanos, ou seja, a nossa capacidade de sonhar.
E ela sabia disso. Com o seu sonho preparado, soprou como sempre soprava e deixou-se levar pela sua imaginação. Consigo ver pelo seu rosto que ela vai à boleia do seu sonho, agarrando-se a uma das sementes de dente-de-leão. Deixou-se arrastar pelo seu amigo vento, sem querer a responsabilidade de escolher o seu caminho. Ainda era cedo: primeiro é preciso sonhar, construir castelos impossíveis, brincadeiras tontas e dizer coisas sem sentido. Só depois disso, muito depois disso é que é preciso acordar para perseguir os nossos sonhos.
Ainda era tempo de sonhar para ela: sentia-se bem, sentia-se leve, sem peso, a confiar em quem a levava pela mão, a confiar na natureza e no seu amigo vento. De olhos fechados, sobrevoou os campos, ainda verdes por ainda não terem sido beijados de forma intensa pelo sol; sobrevoou pelas copas das árvores ainda a recuperar as cores, que se encontravam povoadas pelo chilrear de pequenos pardais que por ali namoriscavam; sobrevoou pelo rio e passou levemente a mão pelas suas águas frescas, como se quisesse fazer desenhos na sua superfície. Depois abriu os olhos, e aqueles breves segundos, duraram horas. Horas felizes com toda a certeza.
Não sei ao certo com o que sonhava, apenas posso imaginar o significado daquele sorriso enquanto soprava a semente de dente-de-leão.
Diz o poeta que o sonho comanda a vida. Quero acreditar que sim, mas para mim já acho suficiente que a torne suportável.
João Cunha Silva (escritor, professor e amante da vida)

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