VOLTA GEOGRAFIA, VEM VIVER OUTRA VEZ AO MEU LADO...

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VOLTA GEOGRAFIA, VEM VIVER OUTRA VEZ AO MEU LADO...

Itamar Freitas [email protected]

Em 2017, data prevista pelo Plano Nacional da Educação (2014) para a implantação da Base Nacional Curricular Comum, comemoraremos os 70 anos do divórcio ou o fim de uma separação pouco conhecida: a da história e da geografia como curso unificado de formação de professores. Ela se deu aos poucos, em diferentes territórios institucionais, iniciando-se em São Paulo e no Rio de Janeiro. Observando “estratos do tempo”, podemos atribuir algum valor ao fim desse matrimônio. Não sei como os catedráticos de história e geografia percebiam e concebiam seus espaços de atuação. Não sei se tais espaços foram vivenciados harmonicamente, entre as décadas de 30 e 50 do século passado, pelos historiadores e geógrafos pais e padrinhos dos Annales (a revista e a “escola”), onde alguns de nós vão buscar o pedegree da licenciatura em história no Brasil. Não sei também a quem serviu o deslocamento dos atores e a instituição de limites entre a história e a geografia, logo após as “bodas de prata” do referido curso. Os professores universitários devem tê-la comemorado bastante. O currículo de história ampliou-se. Novas cátedras foram criadas, empregando mais profissionais. A ocupação do ensino superior pela história, em parâmetros idênticos às demais ciências, proporcionou a criação de cursos de pós-graduação, que reproduziram em escala o número dos confrades de Clio (Eu me incluo no rol de beneficiados). E os alunos da licenciatura em história-geografia, como reagiram à criação desses novos domínios? Que benefícios e mazelas deve ter criado a separação aparentemente consensual em campos que, agora, reúnem professores universitários de história e professores universitários de geografia? Sabemos que o currículo daquele curso superior não era um primor de projeto acadêmico. José Honório Rodrigues (1913-1987), mirando o Brasil desde o seu lugar de aluno de metodologia histórica, na Universidade de Colúmbia (1944), foi um dos primeiros a torpedeá-lo. Dizia que não passava de um secundário ampliado: história geral, história do Brasil, geografia geral, geografia do Brasil, etnologia brasileira e didática.

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Uma opinião fora do tempo pode afirmar que o historiador carioca tinha e não tinha razão; (1) “Sim, era um curso carente de disciplinas teórico-metodológicas” (Mas não se tratava de um curso de licenciatura?). (2) “Não, Rodrigues exagerava. O currículo prescrito, sozinho, não provê uma boa iniciação profissional, pois são os catedráticos, como Braudel, Taunay, no curso de São Paulo, por exemplo, quem agregam qualidade a um curso de formação” (Então, a que serve a prescrição curricular?). Um comentador sensato, por outro lado compreenderia melhor a situação. O ensino secundário estava restrito a meia dúzia de gatos pingados (gatos angorá) e os alunos da primeira década do curso (230 em 1935 e 474 em 1945, ou 3% do total de discentes no ensino superior, em 1943) não eram recrutados nos mais baixos níveis soócio-econômicos, como hoje ocorre. Além disso, os interesses de Rodrigues (germanófilo via EUA) e de grande parte dos catedráticos alvos da sua crítica (germanófilos via França) convergiam para a formação de um tipo novo de historiador. Um tipo distante do amador que frequentava os institutos históricos (Mas os membros dos institutos históricos não comandaram cátedras no curso superior de história e geografia?). Fazendo as contas, a licenciatura em história-geografia não poderia ser a principal preocupação dos professores universitários (“de” história e “de” geografia) nem de outsiders entre os quais se enquadra José Honório. E os alunos, que pensaram da separação? (Reponho a questão). Na paisagem imaginada dos cursos de história brasileiros, louvamos o caráter interdisciplinar dos Annales, a historicização dos objetos da geografia e a espacialização dos objetos da história. A geografia espraiou-se: das ciências humanas às físiconaturais. A história misturou geologia e cronologia sofisticada para fundamentar uma nova ciência humana (a clássica contribuição fornecida por Braudel). Na escola básica contemporânea, entretanto, ceder uma hora-aula de história (no currículo) à matemática ou à língua portuguesa é até aceitável, mas perder terreno para geografia é escandaloso! O caminho percorrido pelo ensino secundário brasileiro, entre meados do século XIX e meados do século XX, revela também revela esse comportamento. Catedráticos “de” história e “de” geografia vigiaram uns aos outros a cada reforma curricular. Os horários destinados ao ensino sobre o passado brasileiro, americano ou mundial e

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aqueles reservados ao estudo do cosmos, das camadas da terra e dos deslocamentos populacionais não poderiam ser confundidos. Opa! Sem querer, deixei escapar uma informação importante: a separação (ou a autonomia) das disciplinas escolares história / geografia é anterior à criação dos cursos de licenciatura. Com esse dado, podemos concluir que a autonomização da história e da geografia ou a segregação espacial do aprendizado dos modos de produção/retenção do conhecimento histórico e do conhecimento geográfico, na condição de licenciaturas, atenderia, então, a demandas da escolarização básica? Mas, desde quando, no Brasil, a maioria dos catedráticos ou professores universitários de licenciatura trabalhou efetivamente pensando na “formação” de crianças e adolescentes? Aí está outra pergunta que deve continuar sem resposta por vários lapsos de tempo. Quem estiver interessado em respondê-las de modo plausível pode começar questionando a si próprio: (1) “Como posso justificar a autonomia das disciplinas história e geografia nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio?” (2) “Como posso justificar a manutenção dessa autonomia, diante do fato de a história e geografia serem geridas por um só professor, na escola primária, desde o século XIX?” (3) “Como defenderei a manutenção da área controlada por licenciados em história nos concursos públicos, diante de uma provável integração provida pela base nacional curricular comum nos anos finais e no ensino médio?” Se você, professor de história, excluir a hipótese de que a autonomia da históriadisciplina-escolar é uma providencial barreira ao retorno dos estudos sociais – supostamente criados no cenário da recente ditadura militar –, não será fácil persuadir os mudancistas, pois o argumento carece de provas. Se “repassar a questão aos universitários”, a resposta demorará ainda mais. E se “os universitários” solicitarem o auxílio de alguns pesquisadores do ensino de história eles vão aconselhá-lo a revisitar os princípios que sustentam a transformação da história em campo que produz conhecimento científico – de Kant a Droysen e de Bloch a Braudel. Eles também vão convidá-lo a observar a aula de um qualificado professor dos anos iniciais do ensino fundamental. Seguindo tais conselhos, entenderão perfeitamente as razões do meu canto: “Volta [geografia], vem viver outra vez ao meu lado”, na doce interpretação de Gal Costa, que nada tem de passadista. Compreenderão porque empreguei conceitos “típicos” da geografia em cada parágrafo deste texto.

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Mas como o que vale, no nosso ambiente, na maioria da situações comunicativas, é o discurso da autoridade, perpetro minha posição, encerrando com as palavras daquele historiador de historiadores – Reinhart Koselleck (1923-2006) – que justificou a adoção de Estratos do tempo (2000) como título da sua última obra, da seguinte maneira:

O historiador precisa servir-se dessas metáforas retiradas da noção espacial se quiser tratar adequadamente as perguntas sobre diferentes tempos. A história sempre tem a ver com o tempo, com tempos que permanecem vinculados a uma condição espacial, não só metafórica, mas também empiricamente [...]. Os espaços históricos se constituem graças ao tempo, que nos permite percorrê-los e compreendê-los, seja do ponto de vista político ou do econômico. Mesmo quando a força metafórica das imagens temporais têm origem em noções espaciais, as questões espaciais e temporais permanecem entrelaçadas” (Koselleck, 2014, p. 9).

Bom fim de semana!

Referências

RODRIGUES, José Honório. História corpo do tempo. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 16-17. CUNHA, Luiz Antônio. A universidade temporã. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 270, 276, 301-303. KOSELECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da PUC-RIO, 2014.

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