Voltar a Marx ou voltar ao marxismo do movimento operário?

July 15, 2017 | Autor: Joelton Nascimento | Categoria: Jurgen Habermas, Direito, Marxismo, Jürgen Habermas, Moishe Postone, Direito do Trabalho
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VOLTAR A MARX OU VOLTAR AO MARXISMO DO MOVIMENTO OPERÁRIO?

Joelton Nascimento

Com a crise mundial disparada em 2007-2008 e que alguns autores já nomearam de “crise sem fim”1, muitos declaram algum tipo de “volta a Marx”. Mesmo a revista Valor, cujo teor nada tem de anticapitalista, já declarou abertamente uma “volta de Marx” ao debate público2. Com isso, representantes do marxismo tradicional, que ainda resistia em alguns departamentos universitários embarcaram no clima de retorno ao marxismo, contudo, tomando de maneira excessivamente pobre a palavra “retorno”. Não se empreende uma nova leitura dos textos marxianos em face de uma realidade profundamente alterada, mas retorna-se a Marx como se a revolução industrial microeletrônica não tivesse ocorrido, como se o socialismo de caserna não tivesse colapsado e como se houvesse uma classe fabril numerosa, pauperizada e ávida pela revolução na forma de uma ditadura estatal do proletariado. No campo dos estudos sobre o direito e o estado não é diferente. Vai neste sentido o artigo escrito por Guilherme Leite Gonçalves na revista Direito e Práxis vinculada à Universidade Estadual do Rio de Janeiro3. Não há dúvida de que a “volta à Marx” para a qual Gonçalves faz um chamado é nada menos que vital. É preciso ir além das obtusas teorias do direito e da justiça que apenas levam água para o “moinho satânico” da desigualdade, irracionalidade social e múltiplas crises civilizatórias. A retomada de autores mais ou menos próximos da longa tradição marxista e suas contribuições para o estudo crítico do direito é insubstituível. Contudo, não podemos realizar essa incursão como quem pega uma roupa velha de inverno no armário. O capitalismo não é o mesmo que era antes dos anos 1970 e, mais do que isso: não há mais a constituição e estrutura social de resistência ao capital do mesmo modo que havia antes. E tudo isso implica em modificar substancialmente o arcabouço teórico-crítico.

1

FOSTER, John Bellamy; McCHESNEY, Robert Waterman. Endless Crisis: How Monopoly-Finance Capital Produces Stagnation and Upheaval from the USA to China. New York: Monthly Review Press, 2012. 2 LAMUCCI, Sergio. A volta de Marx? ValorInveste. 26 ago. 2011. Disponível em: Acesso em Dez. 2014. 3 GOLÇALVES, Guilherme Leite. Marx está de volta! Um chamado pela virada materialista no campo do direito. Direito e Práxis. Vol 5, nº 9, 2014.

Embora leve em consideração as muitas transformações das últimas décadas do capitalismo no plano sociológico, Gonçalves permanece tradicional do ponto de vista da teoria crítica. As filosofias do direito, mesmo algumas que têm um viés de esquerda, encontram no filósofo alemão Jürgen Habermas seu mais significativo representante. Habermas, contudo, promove em sua juventude um debate truncado com Marx, equivocando-se a respeito dos conceitos de trabalho e valor, sendo este equívoco vital para se compreender todo o empreendimento teórico habermasiano de apologia ao estado de direito contemporâneo como tivemos a oportunidade de constatar nas páginas da revista Sinal de Menos4. Gonçalves também percebe isso, citando inclusive o artigo da Sinal de Menos acima referido, entretanto, não é capaz de tirar as conclusões adequadas da crítica a Habermas ali realizada. Para ele, o equívoco de Habermas é que seu pensamento resultaria em uma “constrição operada na categoria trabalho”5. Contudo, ali nós escrevemos que:

Como bem lembra Postone, não se trata de saber se Habermas foi justo com ou fiel a Marx, mas se trata de saber se uma determinada teoria social crítica é ou não adequada ao seu objeto. Se a constituição social do trabalho define a especificidade do capitalismo, o fato de se projetar a existência do trabalho de modo trans-histórico – como o fez o marxismo tradicional em sua maior parte, aliás – faz toda a diferença.6

O que apontamos nessas notas é que, para haver uma crítica radical – que vai até às raízes – e consequente da filosofia legitimadora do direito do estado moderno de Habermas, seria preciso criticar sua abordagem tradicional à categoria trabalho e à categoria valor. Entretanto, na suposta crítica de Gonçalves a Habermas, que sustenta o seu “chamado” de volta a Marx, nem uma coisa nem outra é realizada. De nossa perspectiva, Gonçalves permanece enredado na aporias habermasianas pois rejeita abandonar os pressupostos do marxismo tradicional do movimento operário, único modo de efetivamente ultrapassar os impasses da filosofia legitimadora do direito de Habermas.

4

NASCIMENTO, Joelton. Notas sobre a filosofia do direito de Habermas. Sinal de Menos, nº 3, 2009. Disponível em http://www.sinaldemenos.org 5 GONÇALVES, Guilherme Leite. Op. cit., p. 317. 6 NASCIMENTO, Joelton. Op. cit., p. 70.

A crítica da categoria trabalho

Ao invés de compreender a profundidade da crítica de Moishe Postone a Habermas7, Gonçalves a toma apenas para indicar as imprecisões e os equívocos habermasianos, mas não suas consequências. Assim, contrariando as referências que utiliza, ele afirma que faltou a Habermas usar a categoria trabalho tanto em seu “valor explicativo”, como em seu “potencial para fundar o projeto emancipatório”8. Tanto no livro de Postone quanto nas nossas notas é justamente o oposto que se busca afirmar. Habermas, apesar de tirar consequências distintas daquelas do marxismo tradicional, parte de semelhante caracterização trans-histórica do trabalho. Em suma, para Gonçalves, seria preciso que Habermas fosse ainda mais ortodoxo, não menos9. Partindo disso, o que segue é a toada tradicional do marxismo do movimento operário: mais economia política compreendida na chave de mais luta antagônica de classes e, sobretudo, mais ontologia do trabalho. Entretanto, repetimos o seguinte:

...bem compreendida, a crítica marxiana não é meramente a crítica do “ponto de vista do trabalho”, antes, “as formas sociais categoriais da mercadoria e do capital não escondem simplesmente as verdadeiras relações sociais do capitalismo, de acordo com Marx, antes, elas são as relações fundamentais do capitalismo, formas de mediação que são constituídas pelo trabalho nesta sociedade”. Ou seja, o “ponto de vista do trabalho” é o objeto e não o ponto de vista da crítica.

Em suma: se é para abraçar a ontologia do trabalho, criticar Habermas é apenas um exercício de sociologia e não tem o significado teórico-crítico que Gonçalves pretendeu alcançar em seu artigo. Tanto é verdade que suas considerações acerca da persistência de uma classe trabalhadora fabril como “refutação” das teses sobre a crise da sociedade do trabalho – especialmente as de Offe e Gorz – são as mesmas da sociologia do trabalho: o número de trabalhadores, segundo os dados da OIT, etc,. A partir daí o autor deduz conclusões acerca das “energias utópicas”10 da classe trabalhadora fabril, ao gosto ainda atual do marxismo tradicional do movimento operário.

7

Autor que Gonçalves cita a partir da obra POSTONE, Moishe. Tempo, Trabalho e Dominação Social. São Paulo: Boitempo, 2014. 8 GONÇALVES, Guilherme Leite. Op. cit., p. 318. 9 O interessante é que Gonçalves reconhece nossa afirmação de que Habermas era marxista ortodoxo, tradicional, a respeito da categoria trabalho (p. 317); contudo ele sequer desconfia que isso invalida boa parte da quimérica crítica que ele realiza do filósofo alemão. 10 Id. Ib., p. 321, n. 27.

Dito de modo mais claro: se se concorda que “Habermas tem razão quando afirma que a síntese social concebida por Marx se dá pelo trabalho”11, só resta uma contestação sociológica às suas teses e não se atinge efetivamente o cerne de sua filosofia social.

11

Id. Ib.,p. 317.

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