Voz Ativa, Voz Politica: organização, resistência e luta no quilombo Ipiranga (Paraíba)

May 22, 2017 | Autor: N. Léo Neto | Categoria: Quilombos, Antropología, Etnicidade
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VOZ ATIVA, VOZ POLÍTICA – NIVALDO AURELIANO LÉO NETO

VOZ ATIVA, VOZ POLÍTICA: Organização, resistência e luta do Quilombo Ipiranga (Paraíba)1 Nivaldo Aureliano Léo Neto*

Introdução

A comunidade remanescente de quilombo sobre a qual este trabalho se debruça, auto-reconhecida como Ipiranga, está localizada no município do Conde, litoral sul da Paraíba, às margens da PB-018. A comunidade conta, aproximadamente, 120 famílias, que obtiveram a certidão de auto-reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares no ano de 2006. Podemos então dizer que, até pouco tempo, a comunidade em questão, assim como outras em situação parecida, adotou uma estratégia de “invisibilização” (OLIVEIRA JÚNIOR, 1999). A atualização da identidade étnica de comunidades negras torna-se, assim, uma reação à ação invisibilizadora da sociedade nacional (ibidem). Partindo da noção de

* Mestre em Ciências Sociais (UFCG). Vinculado ao Laboratório de Estudos em Movimentos Étnicos (LEME). [email protected] 1 Os dados que aqui serão apresentados fazem parte do Relatório de Identificação e Delimitação Territorial (RTID) da comunidade remanescente de quilombo Ipiranga, município do Conde (PB), considerando o contrato CTR/PB05/2012, intitulado “As Flores de (I)Piranga: etnicidade e territorialização em uma comunidade negra no litoral sul da Paraíba”.

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“situação histórica” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1988), veremos como a etnicidade, como elemento feito pelas práticas e apreensões dos indivíduos, pode refletir as tendências positivas de identificação e inclusão de pessoas em determinados grupos sociais. Esta supõe uma trajetória e uma origem, ressaltando que a atualização histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas o reforça (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999). Se a fundamentação da definição de um quilombo torna-se inoperante a partir do binômio fuga/resistência – fuga aqui entendida em um período histórico no qual os escravos fugiam dos “seus senhores” – , o termo resistência pode nos ser útil para a presente análise. Resistir torna-se a pedra de toque para a afirmação étnica destes indivíduos: resistir contra as questões de desemprego, à discriminação racial, contra a posse indevida das terras que ocupam, entre outras. Unidos e organizados socialmente, as moradoras e os moradores da comunidade Ipiranga, estabelecem as suas “fronteiras étnicas” (BARTH, 1969). Resistem, mas não se apóiam em uma cultura do silêncio. As suas identidades estariam embasadas em um dispositivo discursivo, formadas e transformadas no interior da “representação” (HALL, 2003). Perceberemos como, a partir de mecanismos de auto-identificação, reivindicação e exposição de uma identidade étnica diferenciada, a “territorialização”, definida como um processo de reorganização social, implica (i) a criação de uma nova identidade étnica diferenciadora; (ii) a constituição de mecanismos políticos especializados; (iii) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais e (iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999: 22). Como processo de reorganização da comunidade, as mulheres possuem um importante papel. Assumiram o seu lugar de direito, em um processo de empoderamento de sua voz feminina (mas não frágil), atuando nos conflitos agrários da região e, atualmente, representando a comunidade através da Associação da Comunidade Negra do Ipiranga (ACNI), cujo corpo diretor, desde a formação, é constituído, majoritariamente, por mulheres. Utilizando os termos de Beauvoir (1960), estas “não nasceram” mulheres, mas “se tornaram” mulheres. Mas se tornaram mulheres a partir do momento em que resolveram levantar a voz contra as agruras pelas quais passavam cotidianamente. De forma parecida, os moradores se tornaram negros, conforme veremos posteriormente. Possuindo um importante aspecto político, a luta pela terra vem se conectar a uma reivindicação identitária, remetendo a uma “Etnicidade Ecológica” (PARAJULI, 1998). De acordo com o referido autor, os movimentos étnicos se contrapõem a uma lógica de

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apropriação capitalista, ocasionando uma espécie de “arena de conflito em um regime de globalização”. Por dependerem da “natureza” (e aqui, esta se torna uma categoria política) para a sua reprodução física, social e cultural, estas comunidades prezam pela sua conservação, apesar de que isto, internamente aos grupos em questão, não se apresenta como um campo específico do conhecimento (como ocorre na academia científica). Para Grünewald (2011: 19) a terra seria tradicionalizada, já que esta é “elaborada reflexivamente (e simbolicamente) como uma origem que deve sustentar os anseios de comunhão (e continuidade) étnica da comunidade”. O espaço da terra-território (ao invés de terra-mercadoria, como exige a lógica capitalista), torna-se, assim, um espaço de uma existência material e imaterial, onde a cultura é criada e recriada (GUSMÃO, 1999). Procurando ressemantizar o termo quilombo, e discutir não o que ele foi, mas sim discutir como essa autonomia foi sendo construída historicamente, considerando o que ele é no presente (ALMEIDA, 2002), vemos esse surgir como uma forma de organização, de luta, de espaço conquistado e mantido através das gerações (LEITE, 2000).

Se organizar para lutar: sobre a formação da ACNI

A questão da identidade negra, enquanto afirmação étnica de uma comunidade remanescente de quilombo, para os moradores de Ipiranga, basicamente surgiu de um movimento de insatisfação relacionado a sutis diferenças percebidas entre os seus moradores, tendo como base a sociedade circundante. A própria formação da associação de moradores, intitulada Associação da Comunidade Negra do Ipiranga (ACNI), surge, primordialmente, sem estar atrelada a uma questão étnica. Por iniciativa de alguns moradores, deflagra-se um movimento para formação de uma associação visando à reivindicação de alguns serviços básicos, tais como moradia, saúde, abastecimento de água e iluminação pública. Seria mais uma associação, como tantas outras encontradas na região, conforme trechos de depoimentos abaixo2:

A associação ela surge, quando a gente começa a conversar, a gente quer resolver alguns problemas dentro da comunidade, como a questão da água, da energia, do transporte, que a gente não tinha, 2

Optei por omitir os nomes dos participantes, procurando minimizar, quem sabe, eventuais conflitos. Especificamente para este artigo, selecionei trechos de entrevistas de nove pessoas, sendo 7 mulheres e 2 homens.

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essas coisas todas. Só que depois tem uma outra discussão que vai chegar, que é a questão quilombola, que não é uma coisa que nasceu aqui, que na maioria das comunidades acontece isso. Essa identificação: ‘somos uma comunidade quilombola’, é uma discussão que foi sendo trazida pelas pessoas pra cá. Ela não nasceu aqui. Eu percebo assim que ela teve uma, se tinha algumas pessoas que já tinha essa noção, não era da comunidade (Interlocutora 1, 36 anos). Aí [ ] chegou pra mim: ‘Severino, eu tô sabendo que você vai fundar uma associação”, aí eu disse: ‘é’. ‘Você reúne o pessoal aqui na sua casa?”, ‘já estamos nos reunindo’, ‘vamos fundar uma associação quilombola!’. Vamos reivindicar essa questão (Interlocutor 2, 45 anos). Como podemos perceber no primeiro trecho, a questão de uma identidade étnica, enquanto comunidade de remanescente de quilombo, foi suscitada externamente ao grupo, mediante agentes externos vinculados ao Movimento Negro. Se essa questão não “nasce” no seio da comunidade, ela encontra um “berço” que satisfaz as angústias relacionadas ao passado do grupo em questão, como veremos adiante. Por ora, fiquemos com mais um depoimento:

Quer dizer, fosse para o lado da questão étnica também, né? Não só uma associação de uma comunidade, mas uma comunidade negra, com um corte racial. Aí a gente começou essa discussão, veio a AACADE3, que nos deu o fortalecimento, certas orientações, nos mostrou o que era realmente, porque acreditava que aqui era uma comunidade quilombola e foi mostrando alguns tópicos que realmente a gente vai sentindo que...assim, porque aqui é uma grande família, na verdade (...). Então tinha fundamento da gente realmente ser uma comunidade quilombola, dentro daquele novo conceito de quilombo. Nós somos uma comunidade quilombola (Interlocutora 1. Grifo meu). A insatisfação com um passado desconhecido assolava alguns moradores. Fato sobre o qual nos deteremos agora.

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AACADE: Associação de apoio aos Assentamentos e Comunidades Afro-Descendentes.

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“Quem somos nós? Por que nós estamos aqui?”: o mal-estar da dúvida e a busca de uma identidade

Resgatar um passado que ao longo dos anos foi silenciado, constitui um processo demorado e, muitas vezes, incompleto para as gerações atuais. Quando me refiro a um “passado silenciado”, faço menção ao fato de que as atuais identidades étnicas expostas pelos indivíduos sofreram, de alguma forma, uma opressão que as obrigou a se tornarem “ocultas”. Este processo de silenciamento atuou como uma estratégia (mesmo que imposta) para a permanência desses indivíduos, seja por questões de sobrevivência (causadas pelo fato de perseguições, por exemplo) ou simplesmente porque, naquela “situação histórica” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1988), as identidades sequer existiam ou, mais apropriadamente falando, não como a conhecemos atualmente. Conforme veremos, a questão do reconhecimento como quilombolas é um processo recente, tendo como um início aproximado a formação da ACNI e o conseqüente reconhecimento da comunidade pela Fundação Cultural Palmares (FCP). Desde já, cabe ressaltar que essas identidades manuseadas e resgatadas em um passado apropriado e ressignificado no presente não são inautênticas, espúrias. Pelo contrário, os indivíduos que assim se identificam (e, consequentemente, acabam por serem reconhecidos) acabam por encontrar um vasto repertório de elementos que satisfazem o mal-estar da dúvida de um passado “perdido” (entendendo-se aqui como “silenciado”). A história da comunidade encontra respaldo, principalmente, em dois elementos que não se excluem: (1) a posse ancestral da terra, já que Ipiranga é considerada uma “terra de herdeiros”; e (2) os casamentos/uniões entre familiares (geralmente primos, mesmo que de graus variados), gerando a noção, de acordo com os interlocutores, que “tudo é uma família só”. Para iniciar essa discussão, destaco dois depoimentos coletados durante entrevistas:

Hoje eu tenho essa necessidade. Assim, de saber de onde veio meus antepassados. De onde vieram, quando chegaram aqui. Porque assim, nós temos aqui mais de um centenário, a minha família, né? (Interlocutor 2, 45 anos). Muitas vezes eu ficava pensando: quem era eu? Sou descendente de índio não. Não sei. A gente ficava conversando eu, [Interlocutora 4], [Interlocutora 5] e a gente queria descobrir quem era a gente porque era uma mistura. Morava índio, morava africano e Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 5, nº 1, p. 27 – 59. Jan./Jun. 2013.

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a gente não sabia de quem a gente era descendente (Interlocutora 3, 72 anos). Para a compreensão de como esse questionamento foi iniciado dentro da comunidade, voltemos um pouco na história da ocupação territorial.

“A terra era liberta”: herança, redes de parentesco e distribuição da terra

No “mal-estar da dúvida” do seu passado, os moradores começaram a se questionar, como vimos acima, sobre os seus antepassados, de onde vieram e, principalmente, o que são atualmente. Para Cardoso de Oliveira (2006a: 41), “há de se ter em conta que o reconhecimento – pelos outros – começa com o auto-reconhecimento”. Mas quais são os elementos que podem levar ao auto-reconhecimento como uma individualidade/coletividade diferenciada? No caso da comunidade Ipiranga, podemos considerar que um dos passos iniciais para essa busca e construção4 de uma identidade encontrou suporte no fato da posse da terra. Cabe agora uma volta cronológica para nos situarmos em relação ao processo de ocupação territorial da região. A ocupação da Paraíba deu-se, principalmente, no sentido leste-oeste, do Litoral em direção ao Sertão. No Litoral, baseou-se na produção da cana-de-açúcar, influenciando também na ocupação e no povoamento do Sertão e do Agreste, já que havia a necessidade de especialização das terras, determinando a separação das atividades canavieira e pecuária (MOREIRA e TARGINO, 1997). Portanto, inicialmente, a Zona da Mata voltou-se para a produção do açúcar e o interior (Agreste e Sertão), para a produção do gado e de gêneros alimentícios. Para a presente análise, focaremos a discussão na mesorregião atualmente conhecida como Zona da Mata Paraibana, mais especificamente o Litoral Sul, pelo simples fato da comunidade em questão estar situada nesta área. Temos que, entre os séculos XVII e XIX, a concessão de sesmarias para as aldeias missionárias, a instalação de engenhos e a criação das vilas de índios do Conde e Alhandra forneceram o principal quadro institucional das questões territoriais nesta região, que se manteve periférica em relação aos centros econômicos da capitania (MURA et al., 2010). Data de 1614 a concessão da sesmaria dos

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Levo em consideração que as identidades não são estáticas, mas fluidas e, consequentemente, em constante mudança, construção, transformação, ressignificação.

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índios da Jacoca (atual município do Conde), de acordo com documento registrado por Tavares (1909: 36). Por cerca de vinte anos (1634-1654), a Capitania da Parahyba esteve sob domínio holandês. A guerra para a expulsão destes do solo brasileiro pelos portugueses custou caro aos habitantes da colônia, com engenhos destruídos, proprietários arruinados e a maior parte da sua população vivendo na miséria (CAVALCANTI, 1996). Consta de Elias Herckmans, governador neerlandês da capitania nos anos de 1636 a 1639, fatos que remontam a ocupação dessa área. Segundo este, as aldeias foram abandonadas no ano de 1636, com aprovação do diretor da Capitania, para evitarem os índios as invasões ou os assaltos dos inimigos. Contudo:

Durante certo tempo permaneceram os índios na cidade de Frederica à custa da Companhia, à qual por sua vez prestavam serviço, fazendo estradas e guardas como soldados, até que se lhes designou um lugar que fica a um quarto de hora ao sul da cidade, no caminho que segue para Tibiry, bem como para Goiana. Quando S. Exc. O conde Maurício de Nassau tomou o forte de Porto Calvo, essa aldeia ainda não estava construída; e supondo os índios que não se achavam mais sujeitos aos assaltos dos inimigos, pediram ao diretor desta Capitania que lhes permitisse abandonar a nova aldeia (à qual se começou a dar o nome de Costverloren) e voltar às antigas, o que lhes foi concedido. Propuseram porém os principais que se lhes desse um lugar capaz entre as duas aldeias abandonadas de Joacoaca e Pindaúna onde desejavam construir uma aldeia para habitarem conjuntamente, tanto mais quanto as antigas estavam de tal modo arruinadas que eles preferiam (com os restos delas) levantar uma nova. Ordenou-lhes pois que construíssem ali uma nova aldeia, à qual se deu o nome de Maurícia, e se nomeou para o seu capitão o inglês João Harrison; porquanto cada aldeia tem o seu capitão que é ou neerlandês ou alguma pessoa escolhida dentre os nossos aliados, a fim de mandar sobre ela e vigiar que sejam os índios mantidos em disciplina, instruídos no verdadeiro culto. Para o qual fim também se pôs na referida aldeia um ministro com um consolador dos doentes (ziecken trooster), o qual vai de uma a outra a doutrinar os índios na religião (HERCKMANS, 1639: 24). Com a expulsão dos holandeses, a Aldeia Maurícia não perdeu sua importância, “chamada a partir de então de Jacoca, a aldeia era um ponto estratégico porque ficava exatamente no caminho que ligava a cidade de Nossa Senhora das Neves a Recife e Olinda, além de funcionar como uma primeira barreira para possíveis ataques de índios hostis à capital” (SAMPAIO, 2001: 84). Em 7 de setembro de 1696, fez-se necessária uma Carta

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Régia sobre a terra dos índios da Jacoca, ordenando a restituição de três léguas de terra, por haver queixas de que estas estavam sendo usurpadas por brancos. O referido autor ainda registra, nos documentos consultados por ele, que em 1746 a aldeia da Jacoca era formada por caboclos de língua geral e o seu missionário religioso de São Bento. Organizado de diferentes formas para fins administrativos, eclesiásticos e militares, o espaço em questão foi apropriado e dividido em um imenso mosaico de lugares, que por sua vez representavam as várias formas de ocupação e as estratégias de sobrevivência da população que ali se encontrava (NASCIMENTO FILHO, 2006: 81). A reorganização administrativa do território paraibano passa pela criação de vilas e freguesias, muitas delas oriundas de antigos aldeamentos. A partir de 1726, são criadas cinco vilas de índios na capitania, a partir da elevação de aldeamentos pré-existentes, sendo a Vila da Baía de São Miguel (Baía da Traição); Vila de Monte-Mor (Preguiça); Vila Nova de Nossa Senhora do Pilar (Cariris/Taipu); Vila do Conde (Jacoca) e Vila de Alhandra (Aratagui). Em 1768, a Aldeia de Jacoca tornou-se a Freguesia do Conde em devoção a Nossa Senhora da Conceição (SAMPAIO, 2001). De acordo com Moreira e Targino (1997: 33), “a organização inicial do espaço agrário litorâneo, a exemplo do que ocorreu em toda fachada oriental do Nordeste, baseou-se na produção açucareira destinada ao mercado externo, na divisão das terras em grandes unidades produtivas conhecidas por Engenho e no trabalho escravo”. Tratava-se de um espaço construído e organizado para atender às necessidades de acumulação do capital mercantil. Daí ele ser tido como um “espaço alienado”, ou seja, um espaço produzido para atender necessidades externas. Todavia, com a regressão do sistema açucareiro, na segunda metade do século XVII, significativas mudanças sociais iriam ocorrer no Brasil e, no nosso caso, na região da Mata Sul do atual Estado da Paraíba. Requerendo técnicas específicas para o seu cultivo, dado o seu caráter monocultor, as condições técnico-materiais da produção da cana-de-açúcar reforçam os padrões políticoculturais dominantes de apropriação da terra (MOREIRA e TARGINO, 1997). Daí entenderse porque a produção açucareira, subordinada aos interesses do capital mercantil internacional, teve como suporte a concessão de grandes sesmarias, sendo a distribuição das terras neste sistema, a responsável pelo caráter privado que adquiriu a propriedade da terra (ibidem). Pelo decreto de 17 de julho de 1822, D. Pedro I, na condição de Príncipe Regente, pôs fim ao sistema que, durante mais de dois séculos, regulamentou a distribuição de terras

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na América Portuguesa, ou seja, a concessão de sesmarias por parte da Coroa àqueles colonos que se mostrassem capazes de assenhorar-se da terra e, ao menos nominalmente, fazê-la produzir (NASCIMENTO FILHO, 2006: 92). O período de 1822 a 1850 foi marcado por uma intensa disputa por terras, ou seja, luta pela produção do espaço, que opunham os proprietários de um lado e do outro a população livre e pobre (ibidem). Em 18 de setembro de 1850, foi aprovada a Lei 601, conhecida como Lei de Terras, cujo pressuposto básico era a mercantilização da terra, limitando o seu acesso a quem tivesse condições de adquiri-la. Para sua eficácia e aplicação, a Lei de Terras dependia da feitura do registro em cada uma das Províncias. A Lei só entraria efetivamente em vigor após o cumprimento dessa exigência em todo o território nacional, o que permitiria ao ministro da agricultura e da justiça, possuir informações fidedignas das terras particulares e daquelas devolutas, pertencentes ao Estado (NASCIMENTO FILHO, 2006). Na Paraíba, o marco desse processo é a demarcação das terras dos índios na década de 1860, pelo engenheiro Antônio Gonçalves da Justa Araújo. Este engenheiro é o ator social responsável pela regularização da ocupação fundiária nos antigos aldeamentos de Alhandra (Aratagui), Conde (Jacoca), Monte-Mór (Preguiça), Baía da Traição e Pilar. Era da competência de Justa Araújo não só a demarcação das antigas sesmarias e a distribuição de lotes entre os índios casados, mas também a avaliação e regularização das posses de particulares e dos arrendamentos porventura existentes nelas. Trabalho que ele realizou entre os anos de 1864 e 1871 (MURA et al., 2010). É da comissão de Justa Araújo que encontramos arquivos que auxiliam a visualização do processo de ocupação territorial da região em questão. Neste processo, observamos a delimitação da “Posse do Gurugy”, do então Lucidato Gomes de Leiros e sua mãe Maria Josefa de Alacão Izaiala. Nesta delimitação, consta o “Sítio Piranga”, com a presença de cinco casas. A questão de existirem poucas casas na região e de existir uma relação de parentesco entre os moradores também serviu como fundamentação para a busca da história da comunidade por parte dos moradores. Em entrevista com Lenita, esta chegou a afirmar que: “Por isso foi que começou nossa história. Porque eram poucas casas”. Alguns moradores relembram que as terras foram doadas, na época, por D. Pedro II5, pois chegaram a ver um mapa com o brasão real. De acordo com uma das interlocutoras:

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Em 1859, D.Pedro II visita a capitania.

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Aí dizia assim, o documento dizia assim: No ano de 1900, do nascimento do menino Jesus, aí foi declarado, tal tal...escrito em letras, uma caligrafia muito boa, do tabelião, não sei quem lá quem foi. Então, aí citava tudinho. E o terreno do Piranga, ia até essa picada de Sinha Aninha e o terreno de Graça, né? Fazia parte, também, desse limite. Se no ano de 1900 a monarquia já tinha sido extinta no Brasil, não devemos desconsiderar o trecho acima, uma vez que a própria interlocutora pode ter se confundido com a data. Cabe ressaltar também que era comum, na época, os documentos iniciarem com a data e seguidos, por exemplo, da expressão: “do nascimento do menino Jesus”. Deixo registrado aqui uma importante característica da comunidade pesquisada, pois a posse de terra, neste caso, veio de doação. Logo, estamos diante de outra significação do que seja um quilombo, conforme veremos posteriormente. Gerou-se, então, a noção de que a comunidade era uma espécie de ilha6, circundada por terrenos de grandes proprietários até a metade do século XX, quando ocorre a desapropriação das fazendas para fins de reforma agrária. Os depoimentos abaixo retratam o discurso dos interlocutores:

Digamos que aqui fosse Ipiranga, aqui Barra de Gramame e Gurugi. Então nós ficava ilhado aqui dentro (...). Nós ilhado aqui dentro. Nosso sítio, cada um tinha o seu sítio (Interlocutora 4, 75 anos). Piranga já era uma ilha dentro do terreno da fazenda (Interlocutora 3, 72 anos). Quando os limites não foram mais respeitados, podemos dizer que os conflitos pelo direito à terra teve seu início. Algumas das famílias dos posseiros e moradores do Gurugi e do Sítio Piranga estão fixadas nestas localidades desde data anterior a 1865 e, a possibilidade destas famílias, mesmo atualmente identificando-se como quilombolas, possuírem vínculos com os indígenas da Jacoca é manifestada por alguns membros do grupo (MURA et al., 2010: 76). Analisando registros de batismos de meados do século XIX, mais especificamente a partir do ano de 1854, depositados na paróquia de Nossa Senhora da 6

Mesmo com a possibilidade de resgatar o conceito de ilha como sinônimo de “isolamento”, em relação aos grupos étnicos, estes não podem ser concebidos como estruturas a parte do contexto no qual estão inseridos. A ausência de mobilidade entre as partes não comporia o quadro situacional, pelo contrário, o amplo deslocamento é que estabelece os mecanismos para esta auto-afirmação.

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Conceição7, encontramos moradores que alegaram residir em Piranga. Se estes não eram escravos (no sentido judiciário do termo), já constituíam o contingente populacional que aflorava nesta época, os chamados “homens livres pobres”. Contudo, registros mais interessantes são os derivados do Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854, que atuou como regulamento para execução da Lei Nº 601 de 18 de setembro de 1850. Em seu artigo 91, consta que todos os possuidores de terras eram obrigados a fazer o registro de suas posses. As declarações deveriam ser realizadas em prazos estipulados, estando os vigários de cada freguesia encarregados de proceder ao registro das terras. Tavares (1989), em esforço realizado em arquivos documentais procurando os registros de terras da Paraíba, registra dois documentos nos quais ocorre a localização do então Sítio Piranga. O registro de posse é realizado por mais de uma pessoa, mais especificamente, uma coletividade. Nele, ainda encontramos a seguinte informação: “um sítio de terras que houvemos por herança no lugar do Piranga”. Esta herança ainda é repassada atualmente. Sobre o processo de criação de sítios ou lugares de “homens livres pobres” dentro dos engenhos, Nascimento Filho (2006: 143) afirma que isto foi uma constante na Mata Sul da Paraíba, substituindo os escravos e povoando de gente as terras onde a cultura da cana não era adequada, seja pela distância da fábrica de açúcar ou de rios, seja pela menor fertilidade das terras. Porém, tal processo de ocupação somente era realizado com a plena autorização dos proprietários. Inclusive, há relatos “que mostram terem sido as pequenas propriedades rurais (os sítios) importantes áreas produtoras de alimentos para o abastecimento dos moradores da capital” (ROCHA, 2009: 97). Ademais, nos arredores dos engenhos, também se produzia lavoura de subsistência. Muitos donos de engenhos costumavam ceder lotes de terras com baixa fertilidade aos então homens livres pobres (ibidem)8. Os moradores eram camponeses sem terra que recebiam do proprietário fundiário a autorização de habitar na propriedade, ocupar um pedaço de terra (os sítios) e nele cultivar uma roça. Em alguns casos, podiam criar animais de pequeno, médio e grande porte. Tinham direito a lenha e a água. Apesar de produzirem essencialmente para o autoconsumo, obtinham eventuais excedentes que vendiam nas feiras livres, às vezes recebiam um salário

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Os registros podem ser consultados no seguinte site: https://familysearch.org. Este possui link para paróquias de vários municípios, incluindo a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, no município do Conde (PB). 8 Ressalto que não devemos deixar de levar em consideração que essa prática era difundida não só entre os senhores-de-engenho, mas à categoria social que a engloba: os grandes proprietários de terra de uma forma geral.

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(MOREIRA e TARGINO, 1997: 43). Eram obrigados a prestar serviços gratuitos ao senhor (o cambão), dois ou três dias por semana (moradores de condição ou cambãozeiros), ou a pagar uma renda fundiária em dinheiro, o foro, (moradores foreiros). Muitas vezes, além do foro, eram obrigados também a pagar o cambão. Além do morador de condição, existia também o morador agregado (sistema de trabalho mais antigo que era utilizado pelos grandes proprietários) (ibidem: 44). Os moradores mais antigos da comunidade Ipiranga relatam um sistema de trabalho chamado por eles de ticuca (alguns também chamam de cambão). Este sistema seria a obrigatoriedade de trabalhar um dia na semana para o proprietário da terra, conforme veremos posteriormente. De qualquer forma, Ipiranga sempre se configurou como uma “terra de herdeiro”, sendo a ocupação dos terrenos legitimada através de laços de parentesco, tanto de indivíduos nascidos e criados na comunidade, como daqueles que, vindos de fora, estabeleciam uniões conjugais com os moradores.

“Terra de herdeiros”: mobilidade familiar e dinâmica territorial

As primeiras famílias, antepassadas dos atuais moradores da atual comunidade Ipiranga, ocupavam uma área conhecida como “Piranga Velho”. Com as uniões conjugais e a descendência criada, os pedaços de terreno ocupados pela primeira geração eram divididos e outros ocupados, conforme depoimento abaixo:

O Piranga aqui, era um lugar, uma parte, assim, que era de herdeiro, né? Foi de herdeiro. Aí os pais iam morrendo, aí ficando aqueles filhos, né? E herdando aquele pedacinho do sítio que o “véio”9 deixava” (Interlocutora 6, 75 anos). A terra, neste sentido, era de uso coletivo, gerando a classificação, de acordo com os interlocutores, de “terra do comum” 10, conforme excerto de entrevista:

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A palavra “véio” é uma corruptela de “velho”, em alusão às pessoas mais idosas. Frequentemente em

referência à geração anterior, especificamente aos pais. 10

A noção de “terra do comum” também era utilizada para áreas de extração de recursos naturais, como

a mangaba e que hoje são posses de particulares, constituindo as “mini-granjas”, no chamado processo de “minifundização”.

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Era muita terra, que chamava terra do comum. Que era dos herdeiro aqui. Aí todo mundo começou a grilar (Interlocutora 3, 72 anos). A noção de “terra privada” se contrapõe a de “terra de herdeiro”. Contudo, mesmo que nesta última concepção a terra seja de todos e todas, nem por isso deixa de existir uma lógica de apropriação da terra interna ao grupo, baseada em critérios familiares. A “individualidade” 11 existe de uma forma nitidamente diferente da que estamos acostumados a perceber. Antes de prosseguir, cabe destacar trecho de uma entrevista:

Dentro do Ipiranga todinho, cada um tinha o seu sitiozinho (Interlocutora 4, 75 anos). Ao dizer que cada um tinha o seu “sitiozinho”, a interlocutora se refere ao fato de que, mesmo a terra sendo de uso comum, cada família possuía o seu quintal, árvores frutíferas e roças. Mesmo que estas áreas de uso fossem de livre acesso aos moradores, a apropriação destas, salvo alguns casos de extração de recursos naturais, era feita de forma familiar. Como o território da comunidade Ipiranga apresenta algumas fontes de água potável, estes, mesmo que situados dentro do “sitiozinho” de uma determinada família, eram de uso coletivo. Todavia, estes locais eram referenciados com o nome do terreno no qual estava inserido, por exemplo, “fonte de Dona Lina”. Salvo esse caso, outros elementos que, por ventura, estivessem inseridos dentro do terreno das famílias, não eram utilizados coletivamente, como podemos visualizar no depoimento abaixo:

Aqui no quintal do meu pai tinha dois coqueiros, que se chamasse o coqueiro da andorinha e o coqueiro do cavalo preto12. Era bem altão esses coqueiros, que os tirador de coco não subia mais, o coco caía por ele mesmo. Mas era respeitado, ninguém mexia (Interlocutora 3, 72 anos). De acordo com Wolf (1976), analisando as sociedades camponesas:

11

E que esta categoria, aqui utilizada, não seja interpretada como egoísmo. Durante essa entrevista (realizada no dia 27/03), além desta interlocutora, estavam presentes sua irmã, sobrinha e outra moradora. Nesta ocasião, as mulheres comentaram que era frequente árvores receberem “apelidos”. No exemplo referido dos coqueiros, o “coqueiro da andorinha” levava este nome por possuir um ninho desta ave. Sobre o “coqueiro do cavalo preto”, as interlocutoras não sabiam exatamente o porquê deste nome, apenas informaram que ele era envergado. 12

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É também difícil para a maior parte dos camponeses considerar suas posses em um contexto econômico divorciado do abastecimento de seu grupo doméstico. Um pedaço de terra, uma casa, não são meramente fatores de produção; eles também estão carregados de valores simbólicos (p.31: grifos meu). A “unidade de paisagem”, neste caso, constitui-se de elementos que são significativos dentro do universo simbólico13, sejam eles árvores, cemitérios, cacimbas de água, casas-de-farinha, roças e, especialmente, a casa. É na significação da residência que podemos encontrar a primeira forma pela qual os moradores se apropriam do território. A partir da unidade residencial, o território é percebido, construído, significado, simbolizado. O mundo (entendido aqui como o ambiente no qual o indivíduo está inserido) é construído, a “realidade” torna-se socialmente construída (BERGER e LUCKMANN, 1985) e (re)apropriada. Na unidade familiar residem os critérios subjetivos de proteção, porém, sem se desconectarem de um caráter de produção, no sentido de que, naquele terreno, árvores frutíferas podem ser plantadas, plantas medicinais cultivadas e outros itens que por ventura a família necessite. Nesse sentido, o caráter de produção não estaria associado a uma lógica mercantilista, mas como uma existência. Destacando o depoimento abaixo, percebemos como um dos moradores associa o caráter simbólico da casa àquilo que, para ele, constitui outro fator de extrema importância:

É coisa boa você não ter o dinheiro e ter onde botar a cabeça. Você anda por onde andar, aí quando chega lá você diz assim: ‘vou embora pra casa’. E você chega, quando chegar, ninguém mexe com você. A casa da gente é que nem um roçado (Interlocutor 7, 70 anos). Se analisarmos mais densamente as relações imbuídas neste contexto, podemos averiguar que o que conecta a “unidade familiar” (no formato da casa/quintal) e a “unidade de produção” (no formato da roça) é a terra. Falando sobre terra, nos referimos à posse desta. Voltemos ao caso da “terra de herdeiro” contraposta à terra de propriedade individual.

13

Aspectos simbólicos não devem ser compreendidos como algo ligado, necessariamente, às esferas de um ritual qualquer ou associados à crenças, superstições e ilusões. Trata-se, simplesmente, de abordar a cultura como um meio simbólico. Símbolos, neste contexto, indicam algo que existe na mente dos indivíduos e que, por isto mesmo, tornam-se reais a partir do momento em que eles acreditam. Adicionalmente, abordar “símbolos” é imergir no corpus e praxis dos indivíduos, procurando compreender as significações atribuídas ao seu meio ambiente e como, a partir destes, os significados podem ser (re)elaborados.

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Sabemos que o Sítio Piranga tinha limites definidos e que, justamente por isso, era respeitado (conforme veremos, ainda houve um processo de “grilagem” das terras dessa comunidade) pelos proprietários que circundavam seu território. A Posse do Gurugy, pertencente a Lucidato Gomes de Leiros e sua mãe Maria Josefa de Alacão Izaiala e que, posteriormente, passa a compor a Fazenda Gurugy, dos irmãos Nilson e Nelson Albino Pimentel, por volta do ano de 1949, serviu como ponto de comparação para os moradores14. Se o Sítio Piranga não possui um único dono (logo, uma coletividade era instaurada nas normas da herança), Gurugy sempre teve a figura de um único dono, conforme trecho de entrevista abaixo:

Era de herdeiro, sabe assim...não tinha, assim, um proprietário. Agora lá em Gurugi, já era outra repartição, esse Nilson Pimentel dominava pra lá, né? Aqui era assim, terra de herdeiro, cada um tinha um pedacinho e até hoje continua. Quando minha mãe morreu, meu pai deixou um pedacinho aí na frente, onde mora duas filhas minhas (Interlocutora 6, 75 anos). Exemplo significativo da comparação entre a propriedade de uso comum e a individual, além de demonstrar como a situação se modificou, ao longo dos anos, foi recolhido em duas entrevistas realizada com uma moradora:

No meu crescimento, a terra, minha mocidade, minha infância de doze a treze anos, era liberta. Cada um botava um roçado onde quisesse. Não tinha esse caso de dizer: “não, aqui você não bota não”. Vamos supor, eu moro aqui. Se aí na frente tivesse um pedaço de terreno, oxente, podia botar um roçado. A terra era liberta! Não tinha isso não. Mas depois que pegou pra esse negócio de cada cá possuir o seu, run! Que nem aí Almir Correia, que nem Doutor...como é? Esse...assim, a terra. Quem tinha aquela terra, ave Maria! A terra era solta, agora veio ficar mais da minha infância, de dezesseis anos por diante, ave Maria. Ficou em ponto de ninguém poder botar um roçado. Quem tinha mais, não queria dar. Quem tinha menos, não queria dar. E foi o tempo que esse pessoal andaram pelo INCRA, pra ganhar a terra, né? Outros dormia pelos matos, acampado (Entrevista realizada em sua residência, no dia 25/02). Nesse tempo não tinha, eles moravam assim, tinha o proprietário, morava na terra do proprietário, né? Mas não tinha que 14

Posteriormente, no discurso dos moradores, surge a figura da Fazenda Gramame, do então Almir

Correia.

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nem hoje, né? Hoje cada cá tem seu pedacinho, uma casinha, uma parcela, uma coisa, mas naquele tempo não. O dono, primeiramente Jesus e na Terra tinha cada cá, né? Aqui é fazenda de fulano, aqui a terra de fulano, mas naquele tempo, nós mesmos, pai, não tinha não. Morava na propriedade do dono, de quem tinha. (...) Hoje nós tamos num tempo, que nós pra sair daqui prali pra tirar qualquer pauzinho pra fazer qualquer coisa, um cabo de vassoura, uma coisa, nós tem que se vir o dono, pedir. Mas naquele tempo era liberto. Em qualquer canto se tirava um pedaço de pau, em qualquer canto se fazia um mói de lenha, em qualquer um canto se fazia isso. E em qualquer um canto se botava um roçado. Aí era se agradar do terreno (Entrevista realizada em sua residência, no dia 28/03). A terra era liberta! Com isto, a interlocutora se refere ao tempo no qual a terra era de todas e todos, não possuindo um único dono que a explorava e aos seus moradores (através de determinados regimes de trabalho). Contudo, ao longo dos anos e por diversos motivos15, os lotes de terra dos herdeiros começaram a ser vendidos por eles próprios, não para pessoas internas a comunidade ou que já estavam ligadas a ela de alguma forma (por exemplo, parentes de pessoas que vinham de outras cidades e que estabeleciam uniões conjugais com moradores da comunidade), mas às pessoas externas, que não possuíam nenhum vínculo. Tem-se o início do ingresso de indivíduos que, atualmente, não se auto-reconhecem e tampouco são identificados, pela comunidade, como quilombolas. Por parte de alguns, isso remete a uma indignação, conforme exemplo abaixo:

Eu pegar um pedaço de chão e vender, eu não vendo nunca! Eu tô vendendo a vida. Isso é vida. E essa vida dá pra eu e os filhos. Aí quando a minha vida fica comprida, é quando o que eu tenho, deixo pros filhos. E os filhos, to feio de dizer aqui, quando eu morrer, zelem o que eu deixei. Enquanto vocês zelar o que eu deixar, ainda estão me respeitando (Interlocutor 7, 70). A entrada de pessoas “de fora” da comunidade é percebida como um agravante (se não direta, indiretamente) para algumas pessoas. Quando todos os moradores eram da mesma família, a noção de proteção era maior (chegando um dos interlocutores a afirmar que: “A gente pra dormir aqui fechava a porta se quisesse (...). Isso aqui era uma benção”),

15

Podemos elencar como motivos desde o histórico de conflitos agrários da região, até a falta de incentivo para a agricultura familiar, encontrando, na figura do “atravessador”, um agente que retém boa parte do lucro da produção.

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uma vez que todos se conheciam. Mas com a venda/aluguel de casas e/ou a venda dos terrenos, pessoas desconhecidas começaram a chegar, conforme pode ser constatado abaixo:

Se alguém alugar uma casa, vem uma pessoa de fora. Se alguém vender um terreno, vem outra pessoa de fora, mas se ninguém vender terreno ou alugar, a raça16 é uma só (...). Se fosse no meu gosto, na minha opinião, era a mesma família. Porque aí a gente pode chegar na casa de um, tranqüilo. Pode chegar na casa de outro, tranqüilo. Mas já esse povo que vem de fora, ninguém pode chegar lá (Interlocutor 7). Além dessa percepção, foi afirmado que a maioria das pessoas externas à comunidade (não pude precisar um número) não participam da vida comunitária, pouco se importando com os recentes acontecimentos (principalmente, e por razões óbvias, sobre a confecção do RTID):

Uma grande maioria do Ipiranga que veio de fora, não se introsa com a comunidade, não participa, não quer nem saber se aquilo ali é quilombo ou não, não tá nem aí pra nada e ainda tá atrapalhando! Tem essa ala ainda né? Principalmente os estrangeiros que tem aqui dentro (Interlocutora 5, 49 anos). Sobre os problemas relacionados à violência, não podemos incutir nas pessoas de fora todo o problema, o que acabaria por servir como uma válvula escapatória. Devemos ter em mente que a construção da PB-018 (mesmo que o fluxo desta tenha diminuído por causa da PB-008) facilitou o deslocamento para a cidade de Jacumã e Conde. Esta estrada, por sua vez, e conforme vimos anteriormente, cruza a comunidade Ipiranga e Gurugi, sendo que estas se situam a sua margem. Adicionalmente, estabelecimentos comerciais foram construídos, inclusive bares. Sobre estes, registramos que eram motivos de constantes brigas e mortes, já que, por se situarem à margem, atraíam qualquer pessoa que por ali transitassem, geralmente homens. Estes, não conhecendo as pessoas da comunidade e, possivelmente, alcoolizados, começavam a seduzir mulheres comprometidas, estopim necessário para as discussões. Portanto, o problema da violência na comunidade Ipiranga, como em todas as outras localidades, é algo multifacetado e complexo, não podendo se restringir a uma só condicionante, mas reconhecendo agravantes e fatos somatórios.

16

O interlocutor utiliza aqui “raça” significando “família”.

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Por ora, cabe uma breve revisão do que foi exposto até agora. Temos que os moradores afirmam que a área ocupada por eles foi doada por D. Pedro II e intitulada, na Carta Topographica do engenheiro Antônio Gonçalves de Justa Araújo, no ano de 1866, como Sítio Piranga. Essa terra, de uso comum, era repassada através de herança. Posteriormente, diversos fatores favoreceram o ingresso de pessoas externas à comunidade e que, segundo os interlocutores, propiciaram o aumento no nível de violência da região. Ao longo dos anos, uma parte desta terra foi respeitada pelos grandes proprietários que circundavam a comunidade. Em todo este movimento, os moradores começam a se questionar sobre os motivos de serem “diferentes” dos moradores de outras localidades, tendo como ápice o auto-reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo. Mas por que essa terra era respeitada? Quais foram os motivos que levaram D. Pedro II (ou outra pessoa, na época) a doar uma quantidade de terra próxima a terrenos devolutos? Como a posse da terra, na forma coletiva, auxiliou nesse processo da busca de uma identidade étnica? No próximo tópico, nos deteremos na compreensão de como a identidade desses indivíduos foi sendo construída e ressignificada.

Entre índios, caboclos e africanos: o “ser” negro quilombola

Relembrando um pouco a ocupação histórica da região, encontramos registros de índios da etnia Tabajara17. Se este passado não é reivindicado como atributo de uma identidade étnica pelos atuais moradores da comunidade, nem por isto torna-se de menor importância, tanto para a atual afirmação enquanto quilombola como pelo fato constituinte de traço histórico de Ipiranga. Se os antigos moradores comentaram que os pais nunca falaram nada sobre quilombos e quilombolas, mas sim sobre a presença de índios e caboclos, temos várias nuances de uma subjetividade entremeada por aparatos jurídico-políticos. Em uma primeira análise, se as gerações anteriores não passaram nada às atuais gerações (mais antigas da comunidade, por sua vez) sobre o fato de serem quilombolas ou de existir um quilombo na região, isto não quer dizer que nada sabiam sobre este fato.

17

Como atesta o “Relatório de fundamentação antropológica para caracterizar a ocupação territorial dos

Tabajara no Litoral Sul da Paraíba”, Instrução Técnica Executiva nº 34/DAF/2009, elaborado por Fábio Mura, João Martinho Braga de Mendonça, Estêvão Martins Palitot, Henrique Sampaio, Amanda Marques e Aline Paixão.

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O início do declínio da escravidão na capitania da Parahyba ocorreu por volta de 1850. Contudo, o vulto da escravidão não deixava de assolar as casas e as mentes dos moradores, inclusive dos chamados “homens livre pobres”, pois estes, na constituição do seu trabalho, não queriam ser identificados como escravos e, tampouco, perderem a sua liberdade (MEDEIROS e SÁ, 1999). Qualquer informação que remetesse a presença de negros fugidos, nessa época, poderia acarretar em mudanças na região, por causa das forças policiais. Aliado a isto, não devemos desconsiderar o fato de que, antigamente, os mais velhos não permitiam que os mais jovens participassem das conversas, sequer passassem por perto quando adultos estivessem reunidos18. Muito se “perdeu”, conforme os interlocutores afirmam. Mas, principalmente, devemos ter em mente que a categoria hoje reconhecida como quilombo/quilombola assume outras significações. Mais uma vez, se as gerações anteriores não comentavam nada sobre serem quilombolas, talvez isso se deva simplesmente ao fato de que, na época, quilombo significava, estritamente, uma reunião de negros fugidos. Com a ressignificação dessa categoria e, por sua vez, direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988, através do artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), os atores sociais passaram a estabelecer outras formas de conexão com o seu passado e consolidação de uma identidade étnica. De acordo com os interlocutores, a terra do Sítio Piranga deveria ser respeitada, pois era “terra de caboclo”, conforme trecho de entrevista abaixo:

Interlocutora 5: minha avó dizia que nesse mapa tinha: respeitar a propriedade Piranga. Não era Ipiranga. Interlocutora 3: Dos caboclos! Piranga dos Caboclos. Em outra ocasião, também durante entrevista-coletiva19, o assunto sobre os caboclos é novamente comentado, dessa vez, com esclarecimentos sobre o que é “ser caboclo”:

18

Este fato foi elencado inúmeras vezes durante as entrevistas, chegando-se a comparar a situação atual com a vivenciada antigamente. Algumas informações (algumas delas, por sinal, apenas remetendo ao conhecimento de nomes de pessoas) adquiridas nessa época, eram escutadas pelas crianças (hoje a geração mais antiga) que se escondiam dos adultos. 19 Entrevista realizada no dia 27 de março, na casa da interlocutora 3, contando, além de sua presença, a de sua filha, sua irmã e outra moradora da comunidade.

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Interlocutora 4: Que era isso que nós perguntava: quem somos nós? Por que nós estamos aqui? Nós não somos de Gurugi, temos o sítio aqui e nos documentos, que constava nos documentos deles, do proprietário, constava que respeitar a terra dos caboclos! Quer dizer, que ele deu um nome assim, qualquer. Interlocutora 5: Que é a mistura de negro com índio, que é o caboclo.

A percepção acima difere da noção clássica do caboclo, como um indivíduo gerado da miscigenação entre povos indígenas e europeus, além de ser utilizado como um termo genérico para os índios não-aldeados. Aparentemente, dentro da comunidade, funda-se mais a noção do caboclo próximo ao índio. No depoimento abaixo, também podemos visualizar a construção da categoria “moreno(a)”, conforme exposto antes:

Aqui nasci, aqui me criei. Meu pai nascido e criado aqui também. Um caboclo, um caboclo não... era um moreno. Bem moreno. Trabalhava na agricultura. Minha mãe também (Interlocutora 6). O caboclo surge como um construto social no qual podem ser visualizados critérios de estabelecimento de fronteiras étnicas, com o seu caráter de inclusão e exclusão. Se a figura do índio é “inexistente” na memória das pessoas mais antigas, esta emerge, principalmente, na figura do caboclo. Os entrevistados reconhecem que a região foi habitada por índios, inclusive obtendo-se, dessa percepção, a única informação registrada, neste estudo, sobre a derivação do nome da comunidade:

Sítio Ipiranga. Esse nome é o seguinte. Devido, que de antes, o nome dos índios, era um nome meio invocado. Tá entendendo? Porque a palavra deles, não é a da gente hoje. Então eles colocaram aqui como se fosse os índios Ipiranga (Interlocutor 7, 70). Se o índio “some” da região, emerge a figura do caboclo. Este, por sua vez, se faz presente na história de algumas famílias da região, devido, principalmente, à sua ascendência:

Eu vejo falar em caboclo, mas o meu pessoal aqui, minha família mesmo não falava não. Caboclo! Agora aqui dentro de Gurugi e Ipiranga tinha gente que era, ainda era, ainda tinha parte com caboclo. Tem gente dentro de Gurugi, de Ipiranga não Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 5, nº 1, p. 27 – 59. Jan./Jun. 2013.

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sei não, mas que tinha parte de caboclo. Ainda tinha famílias dependendo, a família dos caboclos (Interlocutora 8, 72 anos). Podemos encontrar, na fala acima, outro critério de diferenciação (elencada objetivamente por algumas pessoas) entre Gurugi e Ipiranga. Os relatos indicam que a história de Gurugi é marcada pela figura de duas personagens: Mãe Bu e Pai Caboclo. Inclusive, separando o que hoje é conhecido por Gurugi (entendendo-se aqui como a antiga Posse do Gurugy), registra-se a presença de algumas localidades, como Gurugi, Gurugizinho, Gurugi da Praia, Gurugi dos Bodes e Gurugi do Pau Velho. Sobre esta última, um dos interlocutores afirma que o Gurugi do Pau Velho era “sítio dos caboclos”, dos Tabajara. Como não nos cabe aqui adentrar a história de Gurugi, auto-reconhecida, atualmente, como remanescente de quilombo20, voltemos para a comunidade Ipiranga. Em suma, mesmo que se reconheça a presença (histórica, inclusive) de índios e caboclos na região, os atuais moradores da comunidade Ipiranga não utilizaram este fator como a pedra de toque para a sua afirmação étnica. Conforme vimos, outros critérios foram percebidos/manuseados, tais como a posse da terra (na modalidade de “terra de herdeiro”) e características fenotípicas, a semelhança de “raça”. Mas qual seria o motivo de alguns interlocutores não utilizarem recorrentemente, o que poderia ser esperado de nossa parte, a identidade de quilombola? Mais especificamente, quais seriam os motivos que poderiam levar os moradores a utilizarem a categoria “moreno(a)” ao invés de “negro(a)”? É difícil ser negro em nosso país, tão marcado pelos grilhões da escravidão, carregando o estigma de ter sido o último país a declarar a abolição da escravidão e, contudo, ainda continuar com regimes de escravidão ou semi-escravidão. Os anos passam, leis são promulgadas, mas a forma de dominação continua, praticamente, a mesma, apenas muda quem são os “senhores”. O depoimento abaixo demonstra um pouco da dificuldade encontrada de se assumir enquanto negro:

Se assumir negro não é muito fácil não gente. Tem pessoas que diz assim, que a gente não nasce negro, se torna negro a partir do momento em que vai se identificando com determinadas coisas, vivendo no coletivo (Interlocutora 1, 36). 20

Atualmente, o RTID desta comunidade encontra-se em elaboração. Talvez, após a sua finalização, novos dados possam surgir e que contestem a visão dos moradores da comunidade Ipiranga ou, mais provavelmente, consigam preencher lacunas que por ventura fiquem neste relatório, uma vez que as comunidades Ipiranga, Mituaçu e Gurugi estão fortemente ligadas por laços de parentesco e de luta por acesso à terra.

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Se ser negro é difícil, ser negro quilombola pode ser ainda mais complicado, devido, justamente, aos estigmas que essa noção pode carregar como dita classe minoritária. Contudo, o negro quilombola surge como ator social intimamente conectado com uma característica da noção histórica de quilombo: a resistência. Se os “senhores” mudam, a resistência permanece a mesma. Versando sobre resistência e dificuldade de se afirmar, devido, justamente, às opressões históricas sofridas, não devemos deixar de elencar uma das mais antigas formas de dominação do homem sobre o homem, na forma da opressão do homem sobre a mulher (justamente pelo fato de uma ininteligível incompreensão do “ser mulher”). Na comunidade Ipiranga, há um forte processo de encaminhamento para a autonomia da mulher. Através da formação da ACNI, estas descobrem os seus direitos e se propõem a iniciar uma luta pela conquista destes. Conquistas tanto do ponto de vista familiar, adquirindo a casa própria21, quanto pela questão dos direitos perante a “sociedade masculina” (entendida aqui como um sistema de opressão sobre a mulher). Para Sales (2007: 438), “ao ingressar em movimentos, as mulheres rurais criam possibilidades de se afirmarem como portadoras de um saber-poder no campo da política, que lhes proporcione também repensar seu cotidiano”. Seguindo um histórico de lutas, elas “tornam-se” negras e, sobretudo, mulheres! Logo, elas não se “tornam” mulheres negras como a sociedade vigente espera delas, mas, essencialmente, como “mulheres negras”, dotadas de livre expressão e capacidade de optar pelo o que querem. Para Touraine (2010: 27), “ser mulher não é a pura constatação de um estado de fato, mas a afirmação de uma vontade de ser”, logo, “definir-se como mulher significa colocar no centro da vida certo relacionamento para consigo mesma e construir uma imagem de si como mulher”. Construindo essa imagem de si enquanto mulheres, estas se organizam, revelando um aspecto da organização interna da comunidade, o que não vem se desconectar de uma afirmação identitária. Sobre este fato agora nos deteremos.

O “ser” mulher quilombola

Para todos os que participarem mais atenciosamente da vida da comunidade, salta aos olhos a presença maciça de mulheres solteiras (muitas com filhos). Durante as reuniões 21

Na comunidade Ipiranga, muitas casas de alvenaria foram construídas através de programas do governo federal. Estas casas, por sua vez, estão no nome das mulheres.

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quinzenais da ACNI, as mulheres se fazem presentes, chegando aos poucos, a passos lentos pela idade ou devido às crianças que carregam em seus colos. A própria gestão da associação, em seu corpo diretor, é constituída, principalmente, por mulheres22. Quando questionada sobre esse fato, algumas pessoas possuem opiniões diferentes, mas que, em parte, não se excluem. Primeiro, há a percepção de que as mulheres participam mais na vida comunitária justamente porque há muitas mães solteiras. Esta percepção foi proferida por um homem, durante uma entrevista-coletiva com uma mulher. Durante este acontecimento, esta demonstrou um pouco de insatisfação, contra-argumentando que “é melhor estar solteira, sozinha, cuidando dos meus filhos, que estar casada com fulano”23, esclarecendo, logo em seguida, o seu ponto de vista:

Tem essa questão de dizer mãe solteira, mas tem essa questão também da mulher assumir, de ir às reuniões, de ocupar os espaços. Mais adiante, a interlocutora detalha mais a sua percepção/vivência:

Eu acho que a mulher é que percebe mais os problemas. Ela vivencia mais. Então, na medida que é ela que tem que correr atrás de buscar o alimento, ela é que tem que gerenciar a renda da família, quando tem alguma coisa de organizar, de ficar melhor, ela vai atrás mesmo. Em busca dessa melhoria. Aqui, infelizmente, a gente tem uma tradição, eu acho até que positiva, que as mulheres é que trabalham. As mulheres aqui sustentam os homens. Refletindo sobre o seu cotidiano, vivenciando-os diretamente, as mulheres passaram a querer ocupar os espaços e a não dependerem mais dos homens para as suas atividades, gerando até uma suposta “inversão” de papéis atribuídos (conforme depoimento acima). Para tal, podemos pensar, tal como Touraine (2010):

a identidade que as mulheres afirmam (...) não é somente a rejeição da dominação social, ela é, sobretudo, a afirmação da experiência vivida da própria subjetividade que emergiu e, consequentemente, a confirmação da capacidade de pensar, de agir, de esperar ou de sofrer por si mesma (p. 32). 22

No dia 9 de junho do corrente ano, a quarta gestão da ACNI foi eleita com 100% do seu corpo diretor formado por mulheres. 23 Por mais de uma vez pude presenciar/participar de conversas nas quais tive conhecimento, inclusive com relatos das próprias envolvidas, de separações conjugais por conta de atitudes opressoras contra elas. As envolvidas, inclusive, tinham conhecimento da lei Maria da Penha.

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Devido ao desinteresse dos homens, caberia às mulheres esperarem pelos benefícios que almejam e, ainda por cima, sabendo que a sua voz deve ser emudecida, silenciada pelo fato de serem mulheres? Não foi essa a resposta encontrada pelas mulheres da comunidade Ipiranga, conforme percebemos no depoimento abaixo:

Os homens não tem esse interesse que as mulheres tem de lutar pelos seus direitos. Através da Associação elas conheceram muitos direitos que elas tinham mas não sabiam. Então elas foram batalhar, correr atrás. Então só mulheres se interessam. Pra você ver que as mulheres que lideram as suas casas. Não só as suas casas, como a comunidade (Interlocutora 9, 23 anos). Com isto, concordo com Touraine (2010: 54) quando este afirma que “é para elas mesmas que as mulheres se voltam e, se elas agem dessa forma, é antes de tudo porque querem afirmar-se como sujeitos livres e responsáveis e não como produtos do poder masculino”. Elas passam da consciência de objetos à consciência de sujeitos, em um processo de construção de si que implica um certo amor para consigo mesma24. Esta luta pelo processo de construção de si não deixa de ter o seu caráter político e, portanto, situada em um campo político. Para tal, devemos visualizar o campo político ao mesmo tempo “como campo de forças e como campo das lutas que têm vista a transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado momento” (BOURDIEU, 2012a: 164). Como o campo político é perpassado pelas desigualdades de gênero, percebemos a divisão dos ditos competentes e aqueles que precisam ser representados. Como constatou Sales (2007: 438): “as mulheres sempre estão incluídas entre os que precisam ser representados, entretanto, aquelas que estão inseridas nos movimentos sociais têm demonstrado que as diferenças entre mulheres e homens não podem afirmar falta de competência política das mulheres”. Essa formação ocorre no cotidiano, na luta contra tudo o que as assolam, em questões de fonte de renda ou problemas relacionados à comunidade, como o abastecimento de água ou a construção de casas. Aqui cabem considerações sobre o que podemos considerar sobre uma “esfera pública” (na forma de uma vida política) e uma “esfera privada” (na forma da unidade doméstica). Para Okin (2008):

Argumentos importantes nos debates contemporâneos dependem da suposição de que questões públicas podem ser 24

Deixa-se de ser, nos dizeres de Touraine (2010), uma “mulher-para-o-outro” para se tornar uma “mulher-para-ela-mesma”.

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facilmente diferenciadas de questões privadas, de que temos uma base sólida para separar o pessoal do político. Algumas vezes explicitamente, mas mais freqüentemente de maneira implícita, perpetua-se a idéia de que essas esferas são suficientemente separadas, e suficientemente diferentes, a ponto de o público ou o político poderem ser discutidos de maneira isolada em relação ao privado ou pessoal (p.305: grifos meu). Se não devemos discutir isoladamente, em uma visão reducionista, o que é considerado como público e privado, penso que, para tal, devemos reconhecer que independente de qualquer categorização dicotômica, os processos que aí estão envolvidos estão imersos em “relações de poder” (FOUCAULT, 1979). Pensado nos moldes do referido autor, o poder não deve ser visto como algo que pode ser localizado aqui ou ali, mas que é exercido em rede, na qual não só indivíduos circulam, mas estão em posição de serem submetidos ou de exercer esse poder. Recorrendo a Bourdieu (2012b: 8), o poder e, no seu caso, “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Para ter a sua eficácia, o “poder simbólico” necessita da legitimidade por parte dos dominados, já que “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras” (idem: 15). Logo, “simbolicamente votadas à resignação e à discrição, as mulheres só podem exercer algum poder voltando contra o forte sua própria força, ou aceitando se apagar, ou, pelo menos, negar um poder que elas só podem exercer por procuração” (BOURDIEU, 2011: 43). Quando as mulheres da comunidade Ipiranga começaram a não mais legitimar o poder do qual elas eram submissas, passaram a ter sua voz ativa e política. Com esse posicionamento, as mulheres conseguiram reverter, em alguns aspectos, a relação que possuíam com homens:

É uma comunidade mais lidada com mulheres, as mulheres que lideram. Tudo bem, o homem trabalha e às vezes coloca comida dentro de casa, mas as mulheres é que mandam. Aqui em casa mesmo, são 4 mulheres para um homem. Aí geral, as mulheres mais é que mandam dentro de suas casas. É orgulho. Antigamente as mulheres viviam embaixo dos pés dos homens, mas hoje mudou, a situação reverteu. A maioria dos homens é que depende das mulheres. Pelo menos aqui na comunidade é assim. Em Gurugi também. Muitos homens trabalham, sim! Mas quem comanda mais é as mulheres (Interlocutora 9, 23 anos). Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 5, nº 1, p. 27 – 59. Jan./Jun. 2013.

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Curiosamente, essa forma de agir acabou gerando um critério atributivo, por parte de agentes externos, às mulheres das comunidades Ipiranga e Gurugi. Por serem reconhecidas como mulheres trabalhadoras, gera-se a impressão de que são boas mulheres para se casar, já que os homens possuiriam uma fonte de renda (vinda da mulher) e, ainda por cima, podendo ter relações extra-conjugais (talvez até como necessidade para símbolo de masculinidade), conforme entrevista abaixo:

Aaa, querer casar com uma mulher de Gurugi? Porque elas só prestam pra levar cangaia e ainda sustenta o homem. Aí eu digo: ‘é, mas se pegar uma besta! Porque se pegar uma mulher mesmo, a mulher quebra o homem no pau e ainda pega a vadia que tiver com ele’. Por parte dos homens, eles percebem que as mulheres são mais atuantes na comunidade, mas não expressam a relação apresentada por estas sobre o fato delas “comandarem”. A maioria não participa nas reuniões quinzenais e, segundo uma das entrevistadas, alguns possuem uma percepção negativa da reunião, conforme depoimento abaixo:

Eles pensam que é besteira. Que a gente se reúne lá pra falar da vida dos outros (Interlocutora 9). Até agora, vimos como os moradores da comunidade Ipiranga vão consolidando a sua identidade étnica. Procurando resgatar antigos valores encontrados na memória das gerações mais antigas, os indivíduos colhem os significados que comporão o arcabouço da sua identidade. A geração mais antiga, atuando como os “guardiões da tradição” (GIDDENS, 2005), ajudaram a resgatar o passado histórico da comunidade que, por sua vez, auxiliou no auto-reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo. Antes de passar para o próximo tópico, cabem aqui considerações históricas que irão auxiliar na compreensão da dinâmica de uma afirmação de uma identidade étnica. Analisando o caso dos índios do Nordeste, Pacheco de Oliveira (1999b) considera que não podemos supor ou reforçar a crença de que os habitantes de uma dada sociedade indígena, atualmente, seriam anteriores à constituição da nação brasileira. Lançando mão das considerações teóricas desse autor, podemos visualizar que as comunidades se modificam ao longo do tempo, já que lidamos com uma cultura dinâmica ao invés de estática, estruturada e imutável ao longo do tempo. Portanto, para compreendermos melhor o fenômeno da Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 5, nº 1, p. 27 – 59. Jan./Jun. 2013.

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formação de uma identidade quilombola para os moradores da comunidade Ipiranga, devemos ter em mente que, tal como as formulações de Sahlins (1990: 7), “a história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas”, sendo o contrário também verdadeiro “esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática”. Portanto, cultura e identidade estariam em fluxo constante, não sendo estáveis e concedidas, mas fluidas e mais ou menos construídas de forma consciente (KUPER, 2002: 270). A cultura (e aqui poderíamos colocar também a noção de identidade) seria justamente a organização da situação atual em termos do passado (SAHLINS, 1990:192), mesmo que este passado seja construído, “imaginado” historicamente (COMAROFF e COMAROFF, 1992) e por que não simbolicamente, ou até mesmo tendo como base uma tradição inventada (HOBSBAWM, 2008). Nesta perspectiva, conforme já alertara Grünewald (1999), qualquer enfoque respaldado sobre uma oposição passado/presente não teria sentido, sendo mais lógico nos voltarmos para a estrutura da conjuntura, que para Sahlins (1990:15), seria “a realização prática das categorias culturais em um contexto histórico específico, assim como se expressa nas ações motivadas dos agentes históricos, o que inclui a microssociologia de sua interação”. Como passado “imaginado” historicamente, compreendo o fato das comunidades elaborarem novas identidades colhendo antigos valores. Portanto, seguindo os pressupostos de uma “etnografia da imaginação histórica” (COMAROFF e COMAROFF, 1992), a tarefa consiste em:

estabelecer como as identidades coletivas são construídas e tomadas em seu contexto cultural particular; como elas tornam-se reais, essenciais, qualidades personificadas para aqueles que vivem-nas; como elas tornam-se átomos naturais da existência social (COMAROFF e COMAROFF, 1992: 44, tradução minha). Se a cultura é dinâmica e os significados são reavaliados na prática, os moradores da comunidade Ipiranga colheram os seus “antigos valores” para a constituição de uma identidade diferenciada da população circundante. Justamente por ser dinâmica, o significado de quilombo passa a ser modificado, ressignificado para os moradores. Através de sua organização política, o “Novo Quilombo” é formado.

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“Esse povo é quilombola, a nossa luta é todo dia, toda hora” 25: a resistência e o “novo quilombo”

Nos tópicos anteriores, visualizamos todo o processo de formação da identidade da comunidade em questão. De como eles colheram “antigos valores” para ressignificarem o fato de “ser quilombola” nos dias atuais. Nesse processo, ressalta-se que não devemos “frigorificar” as definições conceituais do que seja um quilombo (ALMEIDA, 2002). Se a fundamentação da definição de um quilombo torna-se inoperante a partir do binômio fuga/resistência, o termo resistência torna-se útil para a presente análise. Através da resistência, intimamente associada ao resgate de um “passado histórico”26, o “Novo Quilombo” é formado. O “Novo Quilombo” é o nome do grupo de coco-de-roda, cujos participantes, em sua maioria, são da comunidade Ipiranga27. A camisa que a maioria dos participantes utilizam, principalmente nas apresentações em que o grupo é contratado, retrata duas mãos unidas: uma branca e outra negra. Questionada sobre isso, Ana Rodrigues28 comenta que este desenho ilustra os povos (brancos, negros e índios) que habitavam a região e que colaboraram para a formação, inclusive, da comunidade Ipiranga. A isto, percebemos que o “novo quilombo” (neste caso, não o grupo de coco-deroda), antes de “ser” quilombo, é “novo”. Por ser novo, em sua constituição, há a presença de outros elementos formadores que não necessariamente o negro cativo da época colonial. A formação do grupo de coco-de-roda, adquirindo, posteriormente, um caráter performático, contribuiu decisivamente para a articulação da comunidade em torno de uma prática comum, servindo também como embasamento da afirmação de sua identidade. As crianças, neste processo, começaram a participar ativamente da dança, aprendendo o seu passado através 25

Trecho do seguinte coco-de-roda: “Ê meu pai quilombo, esse povo é quilombola/ A nossa luta, é todo dia, toda hora/ Ê meu pai quilombo, viva ao povo quilombola/ A nossa luta, é todo dia, toda hora/ Ê meu pai quilombo, eu também sou quilombola / A nossa luta, é todo dia, toda hora/ Ê meu pai quilombo, esse povo tem história / A nossa luta, é todo dia, toda hora”. A música pode variar um pouco, dando liberdade a quem canta de inserir nome de pessoas, logo após o “Ê meu pai quilombo, (nome da pessoa) é quilombola”. 26 Para resistir, há a necessidade de se saber ao que (ou a quem) se resiste. Nesta tomada de consciência, uma “volta ao passado” torna-se imprescindível para compreender a situação vivenciada no presente e, consequentemente, elencar as atitudes que devem ser tomadas visando ganhos futuros. 27 Alguns dos participantes desse grupo são da comunidade vizinha de Gurugi. Isto pode demonstrar a circulação de elementos culturais e de indivíduos entre essas comunidades, o que acaba por atravessar a história das duas populações. 28 Aqui mantive o nome real, uma vez que este trecho versa sobre uma manifestação cultural específica. Além disto, Ana, atualmente, é a pessoa de referência no grupo “Novo Quilombo”.

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das músicas e letras. Estas, por sinal, carregam uma memória coletiva, um registro de acontecimentos passados, do árduo trabalho, da percepção do negro escravo. Mas as músicas não carregam somente um passado, transbordam a subjetividade das pessoas, expondo o que pensam. Sobre isto, destaco, em vias de encerramento, trecho de coco composto por Lenira:

Já fui escravo, hoje sou um quilombola, Amanhã sou tabajara e depois não sei quem sou

Em sua forma lírica o coco retratado acima demonstra, basicamente, um pouco da ocupação territorial histórica na região. Mas, acima de tudo, demonstra como o processo de afirmação de uma identidade étnica, muitas vezes, longe de passar por uma única via, se constitui em uma polifonia, múltiplos caminhos que levam a um só caminho ou, neste caso, múltiplas identidades que se complementam em seu suposto paradoxo.

AGRADECIMENTOS

À Darllan Rocha, pela leitura da primeira versão do manuscrito, e Luana Poliseli, pela tradução do resumo.

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