Vozes da violência: representação, identidade e cidadania em Conexões Urbanas

June 2, 2017 | Autor: Rodrigo Carvalho | Categoria: Cidadania, Representação, Conexões Urbanas, lugar de fala, dispositivos interacionais
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Vozes da violência: representação, identidade e cidadania em Conexões Urbanas





Resumo
O artigo analisa a forma como o programa Conexões Urbanas gera recursos para o exercício da cidadania de moradores de favela e em que medida eles são gerados. Ao acionar operadores como lugar de fala e dispositivos interacionais, buscamos entender como se constituem as mediações e relações nas favelas. Por meio desses operadores, é possível identificar e apontar diferentes conceitos de cidadania no contexto do programa em análise.

Palavras chave: Conexões urbanas; cidadania; representação; lugar de fala; dispositivos interacionais.


Introdução
As favelas são não somente uma forma de ocupação urbanística, mas também a imagem resultante de uma construção social. Essa construção, em momentos distintos da história, criou e recriou representações sobre este espaço que, por sua vez, corroboram para o nosso olhar sobre elas e sobre o seu lugar na sociedade brasileira. Desta forma,
"As favelas são o resultado da persistência de uma parcela da população colocada à margem da sociedade para se estabelecer como cidadãos: no sentido estrito da palavra, como habitantes da cidade e, no sentido lato, como parte estimada de uma coletividade e de uma comunidade política com direitos e deveres." (CRUZ, p.78,2007)
Mas, de acordo com María Cristina Mata, a prática da cidadania ultrapassa a prática dos deveres e direitos dos indivíduos em relação ao Estado, diz respeito também à capacidade dos indivíduos tornarem-se sujeitos que se façam presentes no espaço público, apresentando demandas e propostas. Desse modo, é importante pensar como os media se apresentam como espaço de visibilidade e de estímulo da produção de direitos e deveres, possibilitando que os sujeitos façam-se visíveis.
Para pensar a relação da mídia com o desenvolvimento da cidadania, escolhemos como objeto de estudo o programa Conexões Urbanas, transmitido através do canal fechado Multishow, apresentado por José Júnior, coordenador-executivo do Grupo AfroReggae. No canal do programa no site do Multishow, Conexões Urbanas é caracterizado como "o braço televisivo de um movimento social", que tem por objetivo "criar elos de conhecimento, cultura e afetividade entre os diversos guetos em que a sociedade se dividiu: ricos e pobres, brancos e pretos". O programa se propõe a levar modelos de entretenimento, lazer, cultura e exemplos artístico-sociais às favelas.
Acreditamos que, nos episódios que iremos analisar, o enquadramento a partir do qual são tratadas as questões sobre a violência urbana e outros aspectos das favelas expressa o entendimento que a polícia - e parte da sociedade que a apoia - tem sobre a periferia, bem como expõe a apreensão dos bandidos em relação a ela. É importante salientar que aqui consideramos bandidos como sujeitos pertencentes a esse ambiente e que, portanto, são também moradores da periferia, assim como alguns dos policiais entrevistados.
Para análise do programa acionamos operadores que nos permitem avaliar os lugares dos falantes e dispositivos de interação ativados nos episódios, além de identificar os tipos de representações das favelas formuladas pelos sujeitos sociais. Esses operadores nos possibilitam compreender em que medida o programa analisado gera recursos para se exercer a cidadania, por meio de visibilidade, reconhecimento, reflexão e discussão.
Considerações metodológicas

Neste estudo, optamos por adotar três metodologias: a Análise de conteúdo, que trata e analisa os conteúdos das mensagens, a busca de seus significados e o conteúdo dos discursos; a Metodologia comparativa, que visa contrastar os eventos entre si; e Revisão bibliográfica, a fim de nos orientarmos a partir das pesquisas anteriores sobre os operadores de análise utilizados.
Nosso objeto de estudo inicial é o programa Conexões Urbanas, transmitido pelo canal fechado Multishow. Para o trabalho em questão, selecionamos como corpus os episódios 1 e 2 da 2ª temporada do programa. A temática principal desses episódios é a violência urbana, vista por duas óticas: a da polícia e a dos bandidos. Esse corpus é o que compõe o evento narrativo que trata da relação entre policiais, bandidos e moradores de periferia. É a partir desse evento narrativo que buscaremos analisar os discursos dos atores sociais envolvidos nos episódios e também compará-los.
Para analisar em que medida o programa gera recursos para o exercício da cidadania, utilizaremos como operadores de análise o lugar de fala dos atores presentes no vídeo, a representação da favela e os dispositivos interacionais presentes nos episódios analisados.
Quem fala
No evento narrativo em questão, nos deparamos com três tipos de lugares de fala. Há o lugar de fala do apresentador, José Júnior, e além dele, os lugares de fala restantes podem ser demarcados em dois grupos: o dos policiais e o dos bandidos.
O lugar de fala de José Júnior é permeado por duas características principais do falante: ele se identifica como morador da periferia e é também o apresentador do programa. José Júnior possui uma relação pessoal com muitos dos entrevistados e com a própria causa dos moradores, fato a partir do qual podemos observar o objetivo de legitimar a fala dos personagens.
A partir do exercício do papel de um apresentador, percebemos nele a intenção de demonstrar credibilidade no conteúdo apresentado e, por isso, a busca de compreender o fundamento dos argumentos dos entrevistados, abrindo margem para que o espectador possa escolher com o que concordar. Quando José Júnior pergunta se, para o traficante, existe "bandido bom e bandido ruim" e logo depois quer saber o que seria um "bandido bom" sob a ótica do entrevistado, ele procura um distanciamento dessa opinião, o que é confirmado quando ele faz a pergunta a outro traficante: "Você tem consciência de que droga é ruim?". Apesar da aproximação entre os papeis de apresentador e personagem pelo ambiente comum em que viveram, podemos entender nisso uma tentativa de isenção quanto à opinião dos bandidos.
A demarcação dos lugares de fala entre policiais e bandidos é possível principalmente a partir da análise do lugar sociológico dos falantes. Contudo, os discursos são aqui analisados além dessa dualidade salientada a partir do modo de construção do programa (perceberemos que em alguns aspectos as opiniões de policiais e bandidos são semelhantes). No Conexões Urbanas, essa oposição é sugerida na sua própria divisão, que segrega um grupo do outro, dando voz a apenas um deles por episódio.
As grandes divergências nas construções discursivas de policiais e bandidos têm como um de seus motivos as características socioculturais em que os dois grupos estão baseados. Essas características dizem respeito ao lugar do falante - "sua inserção de classe, sua posição no mundo da produção, seu estatuto social" (BRAGA, J: 2000. P. 166). O policial constrói seu discurso a partir do pressuposto de que ele se identifica com a instituição em que trabalha e com as vivências pelas quais passou. Do mesmo modo, o bandido apresenta sua fala atrelada ao grupo com o qual se identifica.
Pensando na relação de contrariedade entre os grupos mencionados, fica claro que esse é um dos casos em que "a construção de lugares de fala se caracteriza pelo trabalho discursivo em áreas de fronteira" (BRAGA, J: 2000. P. 174). É a partir dessa oposição estabelecida pelo programa que os espectadores recebem e interpretam as falas das personagens, criando novos sentidos sobre o que é dito.
Todos os lugares de fala, contudo, estão sob um mesmo contexto: a favela ou, ainda, a relação entre policiais e bandidos na favela. Os discursos são construídos a partir desse contexto, de modo com que a fala faça sentido de acordo com a perspectiva pela qual se observa o problema em questão. De acordo com Bakhtin, a linguagem "conecta sujeitos para que produzam significados de maneira partilhada e intersubjetiva" (FABRINO apud Bakhtin, 2006), assim perspectivas comuns configuram a união desses grupos, uma vez que indivíduos que se identificam aproximam-se pela linguagem.
Tipos de representações
Considerando que o evento narrativo do presente trabalho contempla dois sujeitos sociais, são apresentados novos e diferenciados elementos da favela, o que nos possibilita identificar formas de representação distintas, além das comumente transmitidas. Para abordar essas representações, tomemos como base o conceito de Stuart Hall que afirma que
"a representação – ao articular mapa conceitual de idéias e linguagem – é a prática que nos possibilita conferir significado ao mundo e compartilhá-lo em alguma medida com o outro, levando-nos a pertencer à mesma cultura e a construir um mundo social" (HALL apud ROCHA, p.11. 2006).
A favela como local de carência é uma das representações presentes no discurso dos policiais entrevistados no episódio "Conflitos I-Polícia", e que reflete a imagem formulada pela sociedade sobre a favela, que é vista como metáfora da pobreza. Tal representação, no entanto, é contraposta com a situação econômica de bandidos, que são vistos pelos policiais como economicamente favorecidos, considerando o fato de possuírem melhores casas com móveis e eletrodomésticos sofisticados.
Desde o início dos anos 2000, quando o tráfico tomou grande destaque no cenário midiático, há um deslocamento no enquadramento da favela como lugar de carência para lugar de violência. No primeiro episódio analisado, as cenas de troca de tiros entre policiais e bandidos, as imagens de traficantes fortemente armados e de policiais fazendo ronda nas favelas durante horas seguidas reporta-nos a este deslocamento de representações, apresentando a favela como metonímia da violência.
"A partir dos anos 2000 a pobreza urbana deixa de ocupar espaço na agenda pública da mídia e em seu lugar a questão da segurança pública começará a ganhar mais relevância.
Como sintoma desta mudança, a narrativa midiática abandonaria os elementos estruturantes do discurso típico da política da piedade" (VAZ; BAIENSE, p.10, 2011)

A partir do olhar dos policiais entrevistados no episódio em que são os atores principais, a favela é retratada como um local onde os moradores são passivos, acostumados e conformados com a realidade da violência. Entretanto, para eles, associado a esse aspecto está o fato de a favela ser um local sitiado pelo crime, como já dito anteriormente, onde ocorre forte repressão dos bandidos para com os moradores, de forma que os segundos não têm autonomia e poder de fala naquele ambiente: dessa forma, a favela é caracterizada como lugar de opressão.
Considerando que "novos atores procurarão ocupar o espaço midiático para aí tematizar e discutir questões de seu interesse e abrir novas perspectivas de participação e discussão político-cultural" (ROCHA, 2006), é possível perceber novas formas de representação da favela no episódio "Conflitos II- Bandidos".
Esse episódio dá espaço aos moradores de favela que são bandidos, de modo a possibilitar que eles expressem a maneira como interpretam seu papel dentro da periferia, o motivo da participação no tráfico, a visão que possuem da prática que realizam e como percebem a favela em que vivem. Assim, a distinção entre moradores comuns e bandidos, apesar de clara, não impede que os bandidos representem a favela.
Um ponto importante de convergência entre os discursos de policiais e bandidos é em relação ao comportamento infantil. Acredita-se que as crianças se inspiram no ator social que está mais próximo a ela. Nesse sentido os bandidos entrevistados avaliam que são eles o espelho ou a inspiração das crianças da favela, como pode ser percebido na seguinte fala: "As crianças se espelham no que está mais perto; como não há nada do Estado aqui, se espelham na gente". Apesar de tal ponderação, eles entendem que o tráfico é uma prática negativa e por esse motivo afirmam não permitir o ingresso de crianças no crime. Contudo, mesmo como prática negativa, os bandidos acreditam que se trata de um exercício que oferece a eles a oportunidade de se colocarem contra o sistema e a sociedade que os oprime. Dessa forma, o crime representa para eles o poder de fala, a voz que possuem na sociedade, uma forma de serem vistos e fazerem justiça a favor dos seus.
Os sujeitos sociais do episódio II refutam ainda a representação da favela como lugar de carência. Como moradores do local, a representação para eles não abarca somente a carência em que a favela vive, de modo que o principal ponto defendido por eles é a demanda de políticas públicas que os moradores e o território apresentam – é demonstrada aí uma certa atividade dos moradores em função da cidadania.
Percebe-se uma dualidade de discursos nos episódios analisados, em que são considerados os pontos de vista daqueles que estão na favela para trabalhar e são detentores dos discursos hegemônicos em contraposição aos daqueles que vivem no local e fazem parte do tráfico, sendo os responsáveis por apresentar discursos com novas representações da favela, de seus moradores e do crime. Dessa forma, as representações da favela se contrapõem, se complementam e nos oferecem duas visões diferentes de um mesmo local.
Dispositivos Interacionais
De acordo com José Luiz Braga "são um lugar adequado para fazer dialogar e tensionar mutuamente conhecimentos sobre tais aspectos, permitindo gerar proposições e perguntas voltadas para sua articulação" (BRAGA, p.1, 2011). Segundo Braga, é necessário que sejam definidos parâmetros específicos a serem analisados na pesquisa, assim "cada episódio comunicacional, na sua prática de fenômeno em ação, recorre a determinadas matrizes interacionais e modos práticos compartilhados para fazer avançar a interação" (BRAGA, p. 5, 2011).
Dessa forma, podemos entender os dispositivos interacionais como tais matrizes acionadas, desenvolvidas e transformadas para que as interações ocorram e se mantenham. Sendo assim, é possível observar quatro grandes dispositivos no evento narrativo selecionado: aproximação, autoafirmação, convivência e familiaridade.
O dispositivo de familiaridade é nítido em ambos os episódios escolhidos, podendo ser observado logo na fala de abertura de José Júnior. O apresentador afirma que os episódios se propõem a entrevistar quem está diretamente relacionado ao tema da violência urbana e exibe depoimentos de pessoas pertencentes aos dois principais grupos - à escolha da produção do programa - que esse contexto engloba: policiais e bandidos. O dispositivo da familiaridade se faz presente nessa premissa, uma vez que o objetivo do programa é buscar mais legitimidade e autoridade nas falas dos entrevistados. Pretende-se alcançar esse objetivo ao dar voz àqueles que vivenciam e que teoricamente estão mais próximos do tema discutido, sendo capazes de discuti-lo com mais propriedade.
Soma-se à familiaridade o dispositivo de aproximação nessa busca por uma representação mais fiel da realidade. No primeiro episódio, sobre os policiais, José Júnior acompanha uma operação da polícia na favela. Os trechos tentam exibir a rotina desse trabalho da forma mais legítima possível, mostrando como os policiais se articulam, como agem e se comportam. O programa tenta atingir certo grau de veracidade propondo-se a acompanhar as ações da polícia na íntegra, seguindo todos os seus passos.
Além disso, como já mencionado, no episódio sobre os bandidos, José Júnior afirma conhecer pessoalmente um dos entrevistados, falando brevemente sobre como se relacionaram ao longo do tempo. A esse trecho podemos atribuir o dispositivo da convivência, já que ao relatar que conhece o entrevistado, José Júnior - apresentador e figura dotada de autoridade no programa - atribui mais credibilidade e relevância às considerações e depoimentos dessa pessoa, que passa a ser retratada não somente através do próprio ponto de vista, mas também pelas afirmações feitas pelo apresentador.
Por fim, ainda é notável o dispositivo da autoafirmação como um dos mais frequentes em todo o evento narrativo, acionado frequentemente pelos dois grupos sociais. O discurso utilizado pelos policiais e pelos traficantes constantemente defende suas respectivas posições, ideologias e atitudes. No episódio I, o delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Carlos Oliveira, garante que as ações da polícia nas favelas são extremamente eficazes no combate à violência e à criminalidade. No episódio II, os criminosos entrevistados muitas vezes se apresentam como cidadãos de demanda, se manifestam e reivindicam sobre a opressão e a ausência de determinados setores do Estado na favela. Através dessas premissas, os traficantes defendem a posição que ocupam e afirmam que, apesar do crime, agem em prol da comunidade em que vivem e auxiliam seus moradores, e ainda dizem ter orgulho de serem criminosos e se vêem como revolucionários. Os discursos das figuras entrevistadas estão buscando constantemente a legitimação de sua posição, de sua ideologia e de seus modos de agir.
Cidadania em Conexões Urbanas
No texto "Comunicaión y cidadanía. Problemas teórico-políticos de su articulación", Maria Cristina Mata aponta o cidadão de necessidade como um sujeito desprovido de seus direitos sociais, cada vez mais marginalizado, sendo representado pelo meio através da voz de um especialista ou explorado em sua condição marginal. É justamente sob essa ótica que os policiais vêem os moradores.
De acordo com Mata, a representação que se faz e que fazemos de nós mesmos é intermediada pela comunicação, que se constitui como parte do exercício da cidadania na atualidade. Nesse sentido, ao apresentar representações da favela a partir da ótica institucional da polícia e a partir de uma organização criminosa, os episódios apresentam uma maneira de se fazer constituir a cidadania a partir de discussões a respeito de demandas e necessidades pelas quais passam os moradores da periferia.
Já os "sujeitos de demanda" são aqueles que, conscientes de suas necessidades, são retratados como seres providos de direitos quando se organizam em situações específicas ou mobilizações sociais. De acordo com a construção discursiva dos bandidos, é aqui que os moradores da periferia se enquadram - como sujeitos que são conscientes de suas necessidades e que percebem a ausência do Estado em sua comunidade - embora não sejam reconhecidos como sujeitos institucionalmente organizados.
A cidadania comunicativa remete diretamente aos direitos civis. Segundo Maria Cristina Mata, essa cidadania diz respeito ao reconhecimento da capacidade de ser sujeito de direito e de demanda no domínio da comunicação pública e no exercício desse direito. Esse conceito nos leva a outra premissa: é preciso que o cidadão se considere cidadão e se identifique como agente social. Para isso, na construção da cidadania, é importante que a mídia lhe possibilite encontrar mecanismos de se ver representado na esfera pública.
O conceito e a definição de cidadania nos levam a perceber que o exercício da mesma está relacionado, em muitos pontos, à representação que temos de nós mesmos, à representação que criamos individualmente ou coletivamente de nós mesmos e do outro. Nesse sentido, os meios de comunicação poderiam ter um papel fundamental, como sendo um dos espaços em que as pessoas "aprenderiam" a ser cidadãs. A mídia, ao mostrar-se como mediadora de diálogos entre vários saberes, culturas e visões de mundo, seria então uma aliada para a elaboração e a apropriação comum desses saberes.
Críticas
O evento narrativo possui alguns aspectos problemáticos quanto à geração de recursos para o exercício da cidadania. Os personagens retratados, em ambos os grupos sociais dos episódios, são demasiadamente humanizados. O episódio dos policiais exibe trechos em que o delegado da Polícia Civil, Carlos Oliveira, se encontra em um churrasco na favela; contudo, sua fala se mantém pertencente à instituição policial. Há uma tentativa de retratá-lo como uma figura pertencente tanto ao grupo da polícia quanto ao dos moradores de favela, com um provável objetivo de reforçar a credibilidade do delegado acerca do tema da violência, já que ambos os grupos se relacionam diretamente a ela. Essa tentativa é questionável, sobretudo ao se considerar que os episódios analisados não dão voz aos demais moradores de favela, que também são diretamente afetados pela violência. Sendo assim, a voz dos moradores no programa é ausente, limitada à opinião de outros grupos presentes no ambiente da favela, que se apropriam de suas concepções sobre os moradores como uma forma de legitimar suas posições, mas sem representá-los plenamente.
No episódio dos bandidos, a humanização dos traficantes ocorre de maneira semelhante. O programa os exibe como cidadãos de demanda, os criminosos falam sobre a ausência do Estado em diversas instâncias como justificativa para a posição que ocupam, afirmando que agem em prol da comunidade, atendem suas demandas e ajudam os moradores com aquilo que lhes falta por parte do Governo. Ainda há uma representação institucionalizada do tráfico no programa, que é comparado com outros empregos e atividades exercidas na sociedade. Em seus depoimentos, os traficantes se igualam a outros tipos de trabalhadores e ainda reforçam noções de organização e valores morais entre os criminosos, equiparando o tráfico de drogas a uma instituição.
Desse modo, apesar de criminosos, os atores sociais se apresentam como moradores de favela, cidadãos de demanda e defendem suas práticas como um ato institucionalizado e necessário. Essa forma de representação é controversa uma vez que, apesar de os traficantes falarem como cidadãos de demanda, eles sequer podem mostrar o próprio rosto ou voz no programa. Estes atores são figuras sem identidade, um dos preceitos básicos de um cidadão; além disso, suas atividades são clandestinas, completamente fora da legalidade. Portanto, as representações dos traficantes como cidadãos de demanda, que conhecem e reclamam por seus direitos, bem como a institucionalização do tráfico no programa são aspectos problemáticos, uma vez que essas figuras e suas atividades fogem completamente dos exercícios de cidadania.
Considerações finais
Ao falarmos sobre a geração de recursos para a cidadania dos moradores de favela, lidamos com um conceito socioeconômico e cultural problemático em nossa sociedade. O modo como os moradores de favela são geralmente representados (e muitas vezes analisados), como visto anteriormente, passou por um trajeto de mudanças ao longo do tempo, principalmente a partir da década de 1950.
José Luiz Braga aponta sobre a possibilidade de nos depararmos com "'zonas de produção' de novos lugares de fala naqueles espaços em que a vida é percebida como problema não resolvido, nas circunstâncias que exigem uma mudança de percepção (...)" (BRAGA, J: 2000. P. 174). Vemos, portanto, a favela como um universo de conflito ideológico no qual emergem novos lugares de fala.
A partir da representação do Conexões Urbanas, vemos uma nova percepção em relação à própria ideia de cidadania dos moradores de favela – eles são mostrados como cidadãos que demandam, têm consciência de suas necessidades, porém não têm plenitude de sua cidadania. Essa cidadania é buscada por eles em seus discursos. Nos episódios analisados, a fala dos bandidos, em diversos momentos, cobra políticas públicas do Estado e coloca os moradores como um grupo de sujeitos que demandam essas ações.
No episódio "Conflitos II- Bandidos", é mostrado como os bandidos estão apartados do sistema social pela atividade ilegal que exercem e, por isso, não são representados como um grupo de sujeitos de direito. Uma vez que não podem ter sua identidade revelada, os bandidos não desfrutam nem mesmo de um dos princípios básicos para o exercício da cidadania: a identidade individual. Da mesma forma, apesar de se retratarem como uma instituição, não se trata de um grupo institucionalizado: não há regras pré-estabelecidas e nem uma hierarquia de comando que permita identificar porta-vozes e líderes, por exemplo.
Por fim, é possível considerar o programa Conexões Urbanas como um produto midiático capaz de produzir recursos para o exercício da cidadania. A partir da noção de cidadania comunicativa, podemos afirmar que o programa apresenta dois tipos de cidadania: a primeira é a cidadania formal, que se dá por meio da presença de José Júnior como indivíduo detentor de direitos no campo da comunicação. A segunda, pelo formato no qual o evento narrativo se apresenta, é a cidadania reconhecida, visto que os sujeitos reconhecem os direitos inerentes à condição de membros de uma comunidade. Entretanto, apesar de reconhecerem tais direitos, não o exercem. É importante ressaltar que essa constatação diz respeito aos episódios analisados, considerando que o programa Conexões Urbanas como um todo, apresenta, principalmente, a cidadania exercida.
Referências
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Comunicação e cidadania: construção de demandas e reivindicação de direitos - parte da dissertação da mestranda Lorena Caminhas consultada para a produção da análise
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