Vozes e Silenciamentos na Formação Territorial do Brasil: Colonialidade do Saber e Ensino de Geografia

June 24, 2017 | Autor: V. Carvalho Lobac... | Categoria: Geography, Human Geography, Education, Curriculum Studies, Modernity/coloniality/decoloniality
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FEUFF PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGE MESTRADO

VICTOR CARVALHO LOBACK DE FARIA

VOZES E SILENCIAMENTOS NA FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL: COLONIALIDADE DO SABER E ENSINO DE GEOGRAFIA

NITERÓI -RJ 2015

VICTOR CARVALHO LOBACK DE FARIA

VOZES E SILENCIAMENTOS NA FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL: COLONIALIDADE DO SABER E ENSINO DE GEOGRAFIA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção de Título de Mestre em Educação.

Aprovada em 09/07/2015

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Tânia de Vasconcellos – Orientadora (UFF) Profa. Dra. Amélia Cristina Alves Bezerra – Co-orientadora (UFF) Prof. Dr. Valter do Carmo Cruz (UFF) Prof. Dr. Cassiano Caon Amorim (UFJF)

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

F224

Faria, Victor Carvalho Loback de.

Vozes e silenciamentos na formação territorial do Brasil: colonialidade do saber e ensino de geografia / Victor Carvalho Loback de Faria. – 2015. 140 f. ; il. Orientadora: Tânia de Vasconcellos. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2015. Bibliografia: f. 135-139. 1. Ensino de geografia. 2. Colonização. 3. Território. 4. Brasil. I. Vasconcellos, Tânia de. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título. CDD 372.89

Os índios shuar, chamados de jíbaros, cortam a cabeça do vencido. Cortam e reduzem, até que caiba, encolhida, na mão do vencedor, para que o vencido não ressuscite. Mas o vencido não está totalmente vencido até que fechem a sua boca. Por isso os índios costuram seus lábios com uma fibra que não apodrece jamais.

(Eduardo Galeano – Celebração da voz humana/1)

RESUMO

O ensino de Geografia e, em específico, o currículo formal são marcados profundamente pela Colonialidade do Saber. Apesar dos aparatos formais do Colonialismo terem chegado ao fim, a influência que exerceu em corpos e mentes não foi rompida e continua regendo a sociedade. A escola não ficou isenta deste processo e, muitas vezes, contribui para sua manutenção. No presente trabalho, buscamos verificar em que medida o ensino de Geografia contribui para o tensionamento ou para a manutenção de um padrão de saber colonial eurocêntrico, especialmente no que diz respeito à abordagem da formação territorial do Brasil. Nosso percurso se dá a partir da análise do tema em dois livros didáticos de Geografia do 7º ano do Ensino Fundamental – Projeto Araribá e Jornadas.Geo -, utilizados na rede estadual do Rio de Janeiro, assim como das entrevistas com professores da mesma disciplina. Nesta dupla análise que se complementa – livro didático e prática docente –, encontramos pistas para a compreensão da Geografia escolar, especialmente no que tange à formação territorial do Brasil e a construção dos discursos sobre esse processo. Refletimos em que medida as colonialidades do saber e do poder ainda permeiam estes discursos a partir de um saber eurocêntrico. Para tanto, organizamos o presente trabalho em quatro capítulos. No primeiro, discutimos os aportes teóricos sobre Colonialidade do Saber, Currículo e Ensino de Geografia. No segundo momento abordamos a formação moderno-colonial do território brasileiro, ressaltando quais os discursos nacionais emergiram neste processo e quais marcas ainda são percebidas atualmente. No terceiro capítulo analisamos as práticas docentes e, por meio das entrevistas realizadas, tentamos compreender a relação dos professores com os livros de Geografia. Já no quarto capítulo, investigamos os discursos sobre a formação territorial do Brasil que se corporificam nos livros didáticos. Compreendemos que as abordagens referentes à formação territorial do Brasil não se encontram apenas nas seções do livro dedicadas a ela, mas a partir de todos os discursos sobre o país impressos nestes materiais didáticos. Assim, analisaremos os livros didáticos a partir de quatro dimensões: a compreensão dos livros sobre a formação territorial do Brasil, especificamente nas seções dedicadas a ela; a abordagem dos povos na formação territorial do Brasil; as abordagens sobre as Regiões do Brasil; e as noções de desenvolvimento expressadas nestes materiais didáticos. Ao fim da presente pesquisa, são respondidas questões sobre quais discursos acerca da formação do Brasil são elaborados e reproduzidos por livros didáticos e como os educadores tratam este tema, com o intuito de analisar o ensino escolar de Geografia Palavras-chave: Ensino de Geografia. Colonialidade do Saber. Formação territorial do Brasil.

ABSTRACT

The Geography teaching and, particularly, the formal curriculum are deeply marked by coloniality of knowledge. Despite the formal apparatuses of colonialism have ended, the influence exerted on bodies and minds has not been broken and remains ruling the society. The school is not exempt from this process and frequently contributes to its maintenance. In this work, we seek to stablish to what extent the Geography teaching contributes to the tension or the maintenance of a pattern of colonial Eurocentric knowledge, especially concerning the approach of territorial formation of Brazil. Our route starts from this theme analysis in two seventh-grade textbooks of elementary school – “Projeto Araribá” and “Jornadas.Geo” – both adopted by the Government of Rio de Janeiro, as well as from interviews with teachers from the same subject. In this double analysis that complements each other - textbook and teaching practice - we find clues for understanding the school Geography, mainly in regard to the territorial formation of Brazil and the creation of discourses about this process. We reflect on what extent the colonialities of knowledge and power still permeate these discourses from a Eurocentric knowledge. Therefore, we organize this work into four chapters. In the first one, we discuss the theoretical contributions on Coloniality of Knowledge, Curriculum and Geography Teaching. In the second one, we address the modern-colonial formation of the Brazilian territory, pointing out which national discourse emerged in this process and which marks are currently still perceived. In the third chapter, we analyze the teaching practices and we try to understand the relation between teachers and the Geography books through accomplished interviews. Finally, in the forth chapter, we investigate the discourses on the territorial formation of Brazil that are embodied in textbooks. We recognize that the understanding about the territorial formation of Brazil are not only in the book sections dedicated to them, but also inside all the discourses printed in these teaching materials about the country. So, we will analyze textbooks from four dimensions: 1) the comprehension of books about the territorial formation of Brazil, specifically in the sections devoted to it; 2) how both books see the entered peoples in the territorial formation process of Brazil; 3) the way both books address the political regions of Brazil; 4) and the development of notions and concepts expressed in these teaching materials. At the end of this research, questions about which discourses in the formation of Brazil are developed and played by textbooks and how teachers deal with this issue, in order to analyze the teaching of school Geography.

Keywords: Geography Teaching. Coloniality of Knowledge. Territorial Formation of Brazil..

ÍNDICE INTRODUÇÃO

7

1. PENSAMENTO DESCOLONIAL, CURRÍCULO E ENSINO DE GEOGRAFIA

15

1.1PENSAMENTO DESCOLONIAL E COLONIALIDADE DO SABER 1.2 COLONIALIDADE, CURRÍCULO E ENSINO DE GEOGRAFIA

17 25

2.A FORMAÇÃO MODERNO-COLONIAL DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

34

2.1 O BRASIL-COLÔNIA E A ESCRAVIDÃO 2.2 A CONSTRUÇÃO DO NACIONALISMO, OS DISCURSOS NACIONAIS E UM COLONIAL QUE INSISTE EM SE

36

MANTER

41

3. COLONIALIDADE, PRÁTICA DOCENTE E LIVRO DIDÁTICO: A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL NO COTIDIANO ESCOLAR 49 3.1 CAMINHOS DA PESQUISA 3.2 O QUE PENSAM OS PROFESSORES SOBRE OS LIVROS DIDÁTICOS?

49 52

4. ABORDAGENS, REPRESENTAÇÕES E VISÕES SOBRE A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE GEOGRAFIA 71 4.1 A INTERPRETAÇÃO DA FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL PELOS LIVROS DIDÁTICOS 4.2 OS POVOS E A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL 4.3 REGIÕES DO BRASIL E SUAS ABORDAGENS 4.4 NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO PRESENTES NOS LIVROS DIDÁTICOS

78 88 99 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS

120

BIBLIOGRAFIA

130

ANEXOS

135

ENTREVISTA BASE

135

7

Introdução

“Fornecendo a eles um passado, criamos um amortecedor para suas emoções e os controlamos melhor”. Assim Dr. Eldon Tyrell explica ao caçador de androides Rick Deckard como manobrar os sentimentos insurgentes de suas criaturas, no filme Blade Runner. Em meio ao cenário caótico, ao incutir um passado que não existe, os replicantes são confortados e se docilizam, tendo suas angústias e indagações abafadas por uma memória inventada. Aqueles que não tiveram suas memórias suficientemente consolidadas e apresentarem problemas, precisam ser eliminados. Em comparação com a nossa realidade, embora percebamos que a relação não seja tão simples, verificamos a constante construção de passados, e com eles da nossa identidade, ao longo de nossa geo-história, pelas disciplinas escolares e acadêmicas, pela mídia e outros centros de saber. Tal fato se notabiliza na formação territorial do Brasil, quando discursos nacionais se erguem e sucumbem, deixando para trás rastros de suas construções, de períodos em que imprimiram a marca de sua suposta transcendência, enquanto algo que sempre existiu e sempre haveria de existir do mesmo modo. Neste jogo, vozes se erguem e se impõem para serem ouvidas, a partir do silenciamento de outras. A escola é um espaço privilegiado para a construção e manutenção destes discursos que nos conformam, embora não o seja de maneira determinista. O espaço escolar é um dos primeiros e principais ambientes de socialização com o qual temos contato. É nele que se desenvolvem as relações com o outro, com aqueles que não pertencem ao nosso círculo social imediato da família e trazem consigo valores e histórias diferentes. Na escola confluem diversas visões de mundo, personalidades, identidades, experiências, códigos comportamentais e morais. Além do conteúdo formal previsto no currículo, a construção dos educandos na escola passa necessariamente pela convivência com seus pares. É no encontro com o outro, educandos e educadores, que nos formamos, alterando nossas respectivas formas de nos percebermos no mundo e nele nos orientarmos (ou, majoritariamente, nos ocidentalizarmos). Neste processo o currículo configura-se como um campo de disputas para obtenção do poder de seu discurso, a fim de legitimar visões específicas de mundo, uma “arena política” (Silva, 1996). O currículo formal, assim, é o reflexo das visões de grupos

8 dominantes, a seu serviço para manterem o status quo. Sendo sua constituição reflexo e reforçadora de visões de mundo particulares, vamos ao encontro do currículo escolar de Geografia. Temos claro que todas as disciplinas escolares tendem a reforçar valores dominantes, mas é nas disciplinas de ciências humanas, de modo geral, e Geografia, em particular, que a questão se mostra com mais ênfase. Ainda é relegado à Geografia o papel de construir no educando um sentimento de identidade nacional com base no território. Porém, como em toda construção identitária, alguns elementos são escolhidos em detrimento de outros. À mesma maneira que conteúdos são privilegiados, esses elementos tampouco são escolhidos de modo neutro. Ao contrário, refletem e reforçam padrões esperados das classes dominantes, por elas próprias constituídos. Neste jogo de tensas relações, o poder de organização do currículo escolar figura como elemento fundamental para que tais objetivos possam ser alcançados. Partindo da minha vivência como professor da rede pública do Rio de Janeiro, é possível perceber que a escolha destes elementos de identidade e a forma como são abordados por livros didáticos, sobretudo, denotam o ranço de um pensamento colonial eurocêntrico, que eleva a raça branca e seus feitos em prejuízo de negros e indígenas na formação territorial brasileira. O debate descolonial me instiga desde a graduação, quando tive contato com o primeiro texto (Lander, 2005) a partir de aulas com a professora Dr a. Amélia Bezerra, por quem tive o prazer de ser acompanhado no presente trabalho. Posteriormente, o debate foi ampliado com os professores Dr. Carlos Walter PortoGonçalves e Dr. Valter Carmo Cruz. Vale ressaltar o importante movimento que se realiza atualmente por esses professores do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense para refletir sobre as bases mais profundas nas quais se assenta a Geografia atual, em prol de uma descolonização do saber geográfico. A minha relação entre o pensamento descolonial e a Educação se acentuou à medida em que me afirmei enquanto educador. Já no início da minha prática docente, enquanto professor-pesquisador, percebi como a colonialidade do saber estava afirmada na sala de aula, no imaginário de professores e estudantes. Embora por um lado seja um dificultador conciliar s atividades necessárias de pesquisa e composição deste trabalho com a jornada de docente da rede pública, sobretudo sem apoio institucional ou de financiamento, por outro foi uma experiência riquíssima poder verificar a materialidade

9 dos elementos aqui apresentados em sala de aula. Este trabalho, então, é resultado desta inquietação constante que me move, despertada por uma dimensão teórica a partir da universidade, mas também prática ao encontrar um currículo escolar de Geografia que contribui fortemente para a manutenção desta colonialidade. Este currículo formal, mesmo não dando conta da totalidade da formação do indivíduo não pode ser desmerecido, afinal é organizador das atividades docentes. Assim, pretendemos realizar incursões ao currículo formal a partir de uma das suas maiores expressões: o livro didático, reconhecendo seus impactos no processo de ensinoaprendizagem dos educandos através das práticas docentes conhecidas a partir das entrevistas concedidas por professores. No que se refere à Geografia, o livro didático exerce uma grande relevância na construção das narrativas sobre a formação territorial do Brasil. Cremos ser o instrumento de expressão maior e síntese das competências e conhecimentos desejados pelas classes dominantes para os sujeitos sociais escolarizados. Reconhecendo o potencial escolar na formação social dos indivíduos, grandes desafios ao ensino da Geografia escolar se colocam. Já na década de 70, o geógrafo francês Yves Lacoste1faz duras críticas à Geografia escolar, a qual classifica como uma “disciplina simplória e enfadonha”. Para o autor, esta se constituía como um saber enciclopédico que não apresentava qualquer utilidade prática ao educando, muitas vezes nem ao educador. Sua função era meramente escamotear o real papel da Geografia: seu potencial geopolítico estratégico, centrado na mão dos chefes de Estado e respectivos administradores. Seu interesse depositado declinava ainda mais ao passo em que as mídias de massa cresciam, tomando para si o papel, já escasso, da Geografia escolar altamente descritiva. Não podemos, porém, nos limitar ao movimento de denúncia sobre o que deixou de ser a Geografia escolar, o que ela escamoteou. Tendo conhecimento, de que, conforme nos orienta Lacoste (2009:25), “a sutileza foi a de ter passado um saber estratégico militar e político como se fosse um discurso pedagógico ou científico perfeitamente inofensivo”, é preciso que realizemos o anúncio do que é, ou pode tornar-se, o ensino da Geografia.

Refiro-me à obra “A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra”, na qual Yves Lacoste elabora uma dura crítica à Geografia francesa da época, bem como a seu ensino escolar. Apesar de abordar um cenário francês, boa parte da crítica pode ser aplicada também ao cenário da Geografia brasileira, regida em grande medida por uma corrente positivista. 1

10 Longe de ser uma disciplina meramente voltada à memorização de rios, seus afluentes, climas, feições rochosas ou números populacionais, deve tornar-se uma disciplina que estimule o pensamento crítico sobre o espaço e nossa posição na relação com o mundo. A Geografia é uma disciplina para proporcionar nosso posicionamento no mundo (Santos, 2007). Se posicionar no mundo revela, assim, uma dupla acepção: (1) conhecer sua posição no mundo, o que implica conhecer seu espaço vivido; (2) tomar posição no mundo, se colocar politicamente frente às decisões concernentes à organização do espaço. A razão de saber Geografia é, então, a de compreender melhor o espaço geográfico para nele atuar de forma mais eficaz. É, antes de tudo, um saber estratégico. Retomando a necessária problematização do currículo escolar, devemos reafirmar que sua composição não se restringe à mera lista de conteúdos, estática e esvaziada de interesses. Ao contrário, ele é um campo de disputas ou, nas palavras de Silva (1996), uma arena política. O currículo está ativo, e não apenas reflete visões de grupos que se pretendem hegemônicos, como é contingente de tais relações de poder. Sendo assim, interpretamos o currículo enquanto um produto sociocultural formado por e a partir de tensas relações de poder, e legitimador de tais relações, sendo objeto de desejo de diversos grupos a fim de afirmarem ou formarem sua posição na sociedade, conquistando o poder de representação. De acordo com Foucault (1996:10): “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Nesta disputa por obter o poder de discurso do currículo, grupos e seus respectivos interesses são fortalecidos em detrimento de outros. Cabe, para uma análise crítica, sempre indagar quais grupos e interesses não apenas estão representados, como detêm o poder de representar a outros. E indagar, ainda, quais grupos sequer estão representados, ou foram representados por outros com bases em estereótipos. Ao passo em que grupos nem sequer figuram no currículo, é possível fazer uma relação entre eles e as colonialidades do poder e do saber vigente em nossa sociedade capitalista moderno-colonial. Não por acaso, grupos subalternizados serão os excluídos desta produção de discursos e valores, enquanto grupos dominantes o constituirão. Então, podemos afirmar que o currículo é orientado por dinâmicas da sociedade ao mesmo tempo em que este é orientador destas dinâmicas, em um movimento de retroalimentação.

11 Comumente, será valorizado no currículo um saber científico europeu. Demais saberes figurarão apenas pejorativamente como tradicionais, ou mesmo atrasados. No tempo linear que rege boa parte do imaginário moderno-colonial, o saber priorizado será o saber julgado na ponta considerada mais evoluída: o da Ciência Moderna europeia. Corroborando nossa argumentação, Santomé (1995) afirma que

As culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de estruturas importantes de poder costumam ser silenciadas, quando não estereotipadas e deformadas, para anular suas possibilidades de reação. (p.161)

Deste modo, é importante analisar o que o currículo fala, mas também os seus silêncios. Verificar como realidades ou grupos são retratados a partir de textos e imagens – em nosso interesse particular, nos livros didáticos –, mas também o que deixou de ser dito, sempre por razões ideológicas, reforçando valores vigentes em nossa sociedade. A abordagem geo-histórica sobre o tema proposto, em diálogo com o debate curricular, se mostra de grande necessidade nos dias atuais. Concordamos com Moreira e Silva (2011) ao afirmarem que “o currículo não é um elemento transcendente e atemporal – ele tem uma história, vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação” (p.14). A fim de compreender como esses discursos compõem o currículo de Geografia e, portanto, o Ensino de Geografia, problematizaremos o currículo escolar desta disciplina. Aliaremos a análise dos livros didáticos e as práticas docentes. Temos claro que essas dimensões analisadas não dão conta de apreender a totalidade do processo de ensino-aprendizagem, contudo nos fornecerão pistas fundamentais para compreendermos a organização do currículo, que tem nelas elementos importantes. Neste movimento de dupla análise, iremos ao encontro necessariamente da formação dos professores e a Geografia acadêmica, muitas vezes aligeirada de debates descoloniais, reforçando estigmas eurocentrados. Uma formação precária e escassa de reflexões que tensionem noções coloniais se colocará como grande obstáculo para uma Geografia Escolar que não vise manter este padrão. Muitas vezes, sem a presença de tais debates, nem sequer há a denúncia da colonialidade vigente, impossibilitando o anúncio

12 de uma prática descolonial. Obviamente esta relação não é direta, uma vez que os sujeitos educadores se formam em múltiplos espaços e convívios, entretanto é a universidade o espaço privilegiado para a construção do saber geográfico formal que será a base para sua prática docente. É possível perceber como o currículo escolar, de modo geral, e de Geografia, em particular, está impregnado por visões cristalizadas de colonialidade. Com origem na expansão ibérica dos séculos XV e XVI, a colonialidade do poder, que também se revela uma colonialidade do saber, mostrou-se mais longa do que o próprio colonialismo. A colonialidade do poder, como argumenta Quijano (2010),

sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal. (p.84)

Já o colonialismo refere-se à estrutura/exploração de um povo sobre outro, de identidade diferente, em outra jurisdição territorial (Quijano, 2010). Todavia, neste não necessariamente estão envolvidas clivagens raciais. Apesar do fenômeno do colonialismo ser mais antigo, a colonialidade se mostrou mais profunda e mais duradoura que o primeiro, sem o qual não poderia existir. Com a formação da América Latina, o Capitalismo pôde enfim se tornar mundial, eurocentrado e aos poucos constituidor do padrão de raça como classificação social, tal qual se dá até os dias atuais. Nesse processo, baseado na indissociabilidade entre saber e poder, emerge uma forma de conhecimento que sustenta todo o aparato capitalistamoderno-colonial da época. O conhecimento científico, como braço importante da missão colonizadora, empreendeu a homogeneização do mundo e a supressão de suas particularidades. Assim, muita experiência foi desperdiçada, reduzindo-se a diversidade epistemológica, cultural e política do mundo. Este epistemicídio (Santos, 2010) só foi e é capaz de ser conquistado com apoio dos aparatos militar, político e econômico do colonialismo e capitalismo modernos. Apenas com esses atos imperialistas impostos aos povos não-ocidentais e não-cristãos foi possível erguer a Ciência Moderna como

13 portadora da verdade universal. Epistemicídio e genocídio sempre andaram de mãos dadas, assim como Ciência Moderna e colonialismo. Tendo a formação territorial do Brasil se desenrolado a partir das expansões ibéricas, sendo parte constituinte do movimento colonial, há uma tendência à reprodução de visões que colocam portugueses e exploradores como os formadores do Brasil, bem como a expansão terrestre que se deu nos séculos subsequentes, principalmente com bandeirantes. Nestas narrativas, muitas vezes são suprimidos os papéis dos povos originários, o genocídio/epistemicídio sofrido por eles e o papel também dos negros escravizados trazidos para o território brasileiro. Mais uma vez, a classificação de raças vigente num mundo com fortes traços de colonialidade oculta, de maneira intencional, o papel daqueles considerados inferiores. Tal epistemicídio, ou violência epistêmica (Castro-Gomez, 2005a), se desenrola até os dias atuais e tem fortes influências na constituição da Geografia escolar. No mergulho ao currículo, vários são os temas percebidos como reprodutores de visões coloniais, com especial destaque para a formação territorial do Brasil. Temos por finalidade em nossa pesquisa verificar como estes discursos se apresentam nos livros didáticos de Geografia e na formação dos sujeitos envolvidos no processo de ensinoaprendizagem. Verificaremos qual é a visão dos docentes e como o currículo de Geografia, seja através dos livros didáticos, seja por meio das práticas, seja pelas metodologias dos professores, contribuem ou não com o tensionamento ou com o reforço de visões coloniais e de subalternidade dos povos no que tange à formação territorial brasileira. Para pensar esta questão, organizamos o presente trabalho em quatro capítulos. No primeiro, empreenderemos uma reflexão acerca do Pensamento Descolonial, do Currículo e do Ensino de Geografia. Realizaremos um debate entre essas três dimensões a fim de compreender os percursos teóricos e iluminarmos nossas questões de pesquisa. O segundo capítulo é uma tentativa de compreender a formação territorial do Brasil. Para tanto, resgataremos brevemente a geo-história desta fundação, refletindo sobre as tensões entre grupos, disputas de poder e interesses introjetados no território brasileiro.

Buscamos

também

referenciar

alguns

discursos

nacionais

que

14 pautaram/pautam a construção geo-histórica do Brasil e povoam o imaginário na construção da nação. No terceiro capítulo, refletimos sobre as práticas docentes e suas relações com os livros didáticos no cotidiano escolar. O diálogo é realizado a partir de entrevistas concedidas por professores. Buscamos compreender suas visões sobre os livros didáticos, como lidam com estes materiais em suas práticas, suas impressões acercadas abordagens impressas sobre a formação territorial do Brasil e como lidam com este tema em sala de aula. Ampliando a análise, chegamos ao quarto capítulo e em nossa investigação dos livros didáticos. Buscamos verificar em que medida os materiais didáticos selecionados – Projeto Araribá e Jornadas.Geo – contribuem para um tensionamento ou uma manutenção de noções coloniais de poder e de saber. Nosso percurso se dá a partir de quatro categorias: o que os livros interpretam como formação territorial do Brasil; as abordagens dos povos que formaram/formam o território brasileiro; as abordagens das regiões do Brasil; e as noções de desenvolvimento presentes nos livros didáticos.

15

1. Pensamento Descolonial, Currículo e Ensino de Geografia

A Ciência Moderna se conforma e se reproduz a partir de um pensamento abissal (Santos, 2010). Essa perspectiva gera uma linha divisória, a partir da qual se aparta a realidade em dois universos distintos. De um lado da linha, as verdades são confirmadas segundo seu próprio método científico, deslegitimando saberes e distintas verdades do outro lado da linha, sobretudo aquelas com as quais não sabe lidar ou não passaram pelo seu crivo. Fundante do pensamento abissal, o saber europeu se coloca no mundo como ciência arrogante, fruto de uma raça hierarquicamente superior e, de modo mais cruel, naturalmente superior. Contra a natureza não há subterfúgios, apenas conformismo. Entretanto, não fora natural este processo de constituição e aceitação de um saber europeu pretensamente universal e verdadeiro. Para êxito desta configuração, foi necessário a invenção do outro a fim de satisfazer os estereótipos criados para legitimar a exploração. “A construção do imaginário da ‘civilização’ exigia necessariamente a produção de sua contraparte: o imaginário da ‘barbárie’” (Castro-Gomez, 2005:176 – grifos do autor). Essa forma de fazer ciência que se convencionou como moderna e se pretende universal se trata, na verdade, desde o princípio de um saber específico, limitado geohistoricamente. Suas raízes coincidem com a expansão colonial europeia à América, das quais são reflexo. Não foram apenas caravelas que aportaram em Santo Domingo e Porto Seguro, descobrindo o “Novo Mundo”. Havia todo um aparato político-econômicomilitar-científico para inaugurar um novo padrão de poder moderno-colonial, sustentado na classificação social a partir da ideia de raça. Para teóricos europeus, como Max Weber, a razão europeia seria fruto de um conjunto de ações inerentes às sociedades ocidentais a fim de passarem da tradição à modernidade. Deste ponto de vista, não haveria qualquer relação entre a gestação deste fenômeno e do surgimento das ciências sociais com o empreendimento do colonialismo além-mar na América, África ou Ásia. Neste sentido, o colonialismo não significou destruição e espoliação, mas o início de um processo tortuoso, e inevitável, rumo ao desenvolvimento e à modernização (Castro-Gómez, 2005). Este é o imaginário colonial

16 que vem sendo reproduzido por boa parte ciências sociais ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Frontalmente contrários a este movimento, nas palavras de Castro-Gómez (2005), as teorias pós-coloniais

demonstraram, no entanto, que qualquer narrativa da modernidade que não leve em conta o impacto da experiência colonial na formação das relações propriamente modernas de poder é não apenas incompleto, mas também ideológico. Pois foi precisamente a partir do colonialismo que se gerou esse tipo de poder disciplinar que, segundo Foucault, caracteriza as sociedades e instituições modernas. (Castro-Gómez, 2005:177 – grifo do autor)

Apesar do importante movimento empreendido pelos autores pós-coloniais em refletir a relação entre modernidade e colonialidade, muitos deles lançam mão de pensadores ocidentais como principal instrumento teórico. Tal opção compromete a radicalidade da crítica ao eurocentrismo, a crítica feita à raiz da questão, uma vez que não rompe com padrões de pensamento constituídos. Neste sentido, uma perspectiva que vise romper com os cânones ocidentais, deve basear-se em cânones mais amplos do que estes. De acordo com Grosfoguel (2010),

a descolonização do conhecimento exigiria levar a sério a perspectiva/cosmologias/visões de pensadores críticos do Sul global, que pensam com e a partir de corpos e lugares étnicoraciais/sexuais subalternizados. (Grosfoguel, 2010:457-458)

Apesar dos esforços empreendidos por teóricos descoloniais, este pensamento encontra fortes resistências no meio acadêmico, ainda intimamente ligado aos padrões de construção do conhecimento eurocêntricos da ciência moderna. A pedagogia moderna, tão forte em nossas escolas, é fruto desse pensamento abissal no qual se baseia a colonialidade do saber e um de seus braços. Como defende Arroyo (2014), a escola pensa

17 os coletivos humanos em linhas radicais. Do “lado de cá”, estariam os cultos, civilizados, racionais detentores da verdade científica; “do outro lado”, o déficit dos incultos, ignorantes, primitivos e inconscientes, aqueles dominados pela falsidade das crendices. A partir desta razão arrogante, seria papel das escolas resgatá-los, conduzi-los à moralidade, à verdade e à civilização. Conjunto deste movimento, a educação parte dos ditos civilizados e cultos para “Outros”, carentes deste resgate para sua redenção e condução à verdade. As marcas deste discurso são latentes no ensino escolar, sobretudo no currículo de Geografia, e delatam um pensamento colonial ainda em voga em nossa sociedade, expressado a partir do apagamento ou da produção de estereótipos sobre grupos subalternizados, suas culturas e saberes. Para uma pedagogia que não desmereça e oculte os “Outros” e seus saberes há que se desconstruir o “Nós” como síntese positiva da humanidade e a escola como redentora de povos sem cultura.

1.1Pensamento Descolonial e Colonialidade do Saber

Apesar dos movimentos de independência trazerem liberdade em relação aos dispositivos oficiais do colonialismo e todo seu aparato militar, os traços da dominação ainda persistem sob a forma de colonialidade do poder e do saber. Por colonialismo, compreendemos a estrutura de dominação/exploração política e econômica do trabalho e recursos naturais de uma determinada população sobre outra de identidade diferente, cujas sedes centrais se encontram em outra jurisdição territorial (Quijano, 2010). Por sua vez, as colonialidades do poder e do saber se engendraram dentro desta perspectiva colonialista e se mostram mais duradouras que o padrão de poder que as conformaram. Com a invasão da América, pela primeira vez na história, confundem-se as escalas mundial e global. A visão do mundo deixa de ser a de um pequeno espaço restrito à Eurásia e África para finalmente abarcar a América. Agora ele finalmente é a totalidade do globo, porém suas narrativas continuam originárias da Europa, que não deixara de ser o centro deste mundo recém-descoberto – por eles –, nem cartográfica, nem

18 ideologicamente. A partir dela serão escritos relatos pretensamente universais, porém, como todo espaço deixa suas grafias, o resultado não poderia ser outro senão um saber particular. Apesar de emergir localmente, devido ao seu poder econômico, bélico e, consequentemente, ideológico, a história contada a partir da Europa ganha dimensões universais. O poder colonial europeu faz um relato particular legitimar-se como narrativa universal. Colonialidade e Modernidade são fenômenos que se imbricam, portanto a compreensão do primeiro não pode prescindir de um debate sobre o segundo. De acordo com Dussel (2005)2, há dois conceitos de Modernidade. O mais difundido é eurocêntrico, provinciano e regional. A modernidade seria a passagem da imaturidade à emancipação por meio da razão3, proporcionando um marco para o desenvolvimento do ser humano. Ocorrido durante o século XVIII, este processo teria como base a Reforma Inglesa, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Nesta perspectiva, todos os eventos propulsores da Modernidade são intraeuropeus e se desenvolvem independentemente dos eventos globais. Por outro lado, em acordo com Dussel (2005), definimos a Modernidade como fruto de um processo no qual o mundo moderno é o “centro” da história global. Não fora possível uma narrativa nesta escala anteriormente a 1492, antes do avanço sobre a América. Deste modo, a colonização europeia é o marco da Modernidade e todos os demais eventos são desdobramentos de um século e meio deste processo. São seus resultados, não pontos de partida. A Europa Moderna, pela primeira vez, pode colocar-se como centro global e subalternizar todas as outras culturas como sua periferia. Compreendemos a colonialidade como a faceta obscura que os modernos tanto tentam ocultar. A face que dá sustentação ao padrão de acumulação capitalista. Portanto, modernidade e colonialidade se imbricam e se sustentam mutuamente.

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DUSSEL, E. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, E. (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO, 2005. 3 Com a Razão, o homem pode colocar-se no centro do universo, espaço antes ocupado por Deus. É a razão que o conduz à dominação, vista como legítima. Os racionais seriam superiores e avançados em relação àqueles que ainda mantinham suas crenças divinas. A compreensão do mundo não passa mais pela sintonia com o cosmos, mas agora é apreendido pela razão.

19 No pensamento descolonial, se insere o necessário debate sobre classificação racial, surgida em seu sentido moderno a partir da conquista ibérica da América (Quijano, 2005)4. Novas referências fenotípicas foram criadas, como índios e negros, e outras foram redefinidas, como espanhol, português ou europeu. Deixaram de ser meras referências indicando procedência geográfica para se constituírem como instrumentos de identidade e classificação. Com o desenrolar das relações sociais construídas – relações de dominação –, estas características raciais passaram a servir como hierarquização dos povos. A ideia de raça serve para legitimar o domínio colonial europeu sobre a América e o restante do mundo. Práticas já existentes de dominação ganham o argumento de naturalização da superioridade branca sobre outras raças, a fim de legitimar seu poder constituído. Raça passou a ser o primeiro critério para distribuição populacional nas estruturas de poder da sociedade. Com novas identidades históricas, passou a se impor a divisão racial do trabalho no sistema capitalista mundial. Negros, indígenas e brancos passaram a ser sistematicamente incluídos nas estruturas de escravidão, servidão e trabalho assalariado, respectivamente, em escala global. Cada forma de trabalho esteve articulada a uma raça particular (Quijano, 2005). Nesta relação, o controle de uma forma de trabalho passa a ser simultaneamente o controle sobre um grupo específico subalternizado. Esta divisão racial do trabalho, mesmo que não mais esclarecida, se perpetua até os dias atuais. O capitalismo mundial foi, desde sua origem, moderno-colonial e eurocentrado. Ao passo que se expande o domínio europeu, expande-se também todo seu aparato ideológico. Os povos que colonizaram territórios e populações tradicionais também colonizaram mentes e saberes. O eurocentrismo e suas relações sociais construídas não foram desdobramentos naturais da história universal, de uma raça branca superior às demais, mas sim processos de violência. Nesta visão, o outro, o bárbaro ou incivilizado, não é capaz de se autorrepresentar, não tem competência para se expressar. Este vínculo entre conhecimento, disciplina e

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QUIJANO, A. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO, 2005.

20 ocultação do outro, Santiago Castro-Gomez (2005) chama de “violência epistêmica”. Assim, colonialidade do saber empreendeu a eliminação das muitas formas de saber dos povos nativos para soerguer o conhecimento europeu útil à dominação. Embora não tenham sido completamente exterminadas, as formas de saber e produção do conhecimento dos povos nativos perderam sua legitimidade ideológica, sendo subalternizadas ao pensamento europeu, agora visto como objeto de desejo dos demais povos, seu ponto de chegada. Baseada na indissociabilidade entre saber e poder, emergiu uma forma de conhecimento que sustenta todo o aparato capitalista-moderno-colonial da época. O conhecimento científico, como braço importante da missão colonizadora, empreendeu a homogeneização do mundo e a supressão de suas particularidades. Assim, muita experiência foi desperdiçada, reduzindo-se a diversidade epistemológica, cultural e política do mundo. Esta violência epistêmica só foi e é capaz de ser conquistada com apoio dos aparatos militar, político e econômico dos Estados capitalistas modernocoloniais. Somente com esses atos imperialistas impostos aos povos não-ocidentais e nãocristãos foi possível erguer a Ciência Moderna como portadora da verdade universal. Violência epistêmica e genocídio sempre andaram de mãos dadas, assim como Ciência Moderna e colonialidade. A Ciência Moderna, assim, se constitui desde o início como um saber arrogante e, portanto, abissal. Historicamente, rejeitou como verdade tudo que não passasse por seu crivo, se autoproclamando a verdade universal. Para Gaston Bachelard (1972), a ciência deveria romper com o senso comum e seu saber rudimentar para enfim adentrar no reino da cultura científica difícil. Para tanto, seria necessário criar uma linguagem superior inteligível apenas na “cidade científica”: uma linguagem difícil para uma ciência difícil. Estes argumentos de Bachelard, no século XX, têm origens claras no início da modernidade. A separação radical entre sujeito/objeto, ciência/senso comum, corpo/mente são as bases do pensamento cartesiano. René Descartes, com a criação do ego cogito (penso, logo existo), inaugura uma nova fase no pensamento moderno ocidental. Ao dissociar completamente corpo e mente, Descartes conseguiu criar um pensamento (que se dizia) não-situado nem histórico, nem geograficamente e, portanto, universal, originado a partir do ponto zero (Castro-Gomez,

21 2005a). Assim, o pensamento moderno oculta suas origens e as marcas que lhe conformaram. Deixa de ser o discurso de um indivíduo interessado, situado no tempo e no espaço, para tornar-se algo transcendental, neutro e que, por surgir do ponto zero, poderia servir a qualquer espaço-tempo. Este ego cogito cartesiano só se torna possível, como nos recorda Dussel (2005), pois foi precedido 150 anos por um ego conquiro (conquisto, logo existo), na expansão europeia a partir da Península Ibérica. A conformação da conjuntura política, econômica e social do colonialismo forneceu as bases para a arrogância cartesiana de assemelhar sua razão a Deus e a um pensamento que só pode ser universal e centro do mundo pois este fora conquistado. Quem domina o mundo, domina o discurso sobre o mundo. Desconstruindo o pensamento cartesiano, afirmamos que “falamos sempre a partir de um determinado lugar situado nas estruturas de poder” (Grosfoguel, 2010: 459). Os nossos conhecimentos são sempre situados geo-historicamente e não escapam às condicionalidades e hierarquias de raça, classe e gênero. Falamos sempre a partir de um lócus de enunciação (ibid), um ponto do espaço situação na geopolítica do conhecimento e, portanto, interessado e não-neutro. Ao dissociar o sujeito da fala de seu espaço-tempo e condições étnico-racial, sexual, de gênero e classe, como realizado pela Ciência Moderna ocidental, cria-se um mito de saber universal verdadeiro que oculta não apenas o indivíduo como toda a base moderno-colonial no qual o saber se configurou. A Europa apenas consegue se tornar centro da economia-mundo e a Ciência Moderna se constituir como saber universal graças à expansão colonial e subalternização dos demais povos. Como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também controlou a subjetividade, a cultura e a produção do conhecimento (Quijano, 2005). Ciência moderna, assim, não apenas é resultado do colonialismo como também é seu braço e constituinte do imaginário de colonialidade que perdurará até os dias atuais. Neste processo, povos colonizados foram expropriados de suas culturas através de processos extremamente violentos de negação do seu universo simbólico, impedindo sua (re)produção de conhecimento. Em seguida, forçaram os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores, tanto quanto necessário para sua subjugação e

22 internalização da dominação5. De acordo com Quijano (2005), no longo prazo esta violência teve como resultado uma colonização, sobretudo, das perspectivas cognitivas e do imaginário, ou seja, da cultura. Toda a dominação para se tornar eficaz deve introjetar no dominado a naturalidade de sua subalternização. Neste jogo, o colonialismo gerou nos europeus um traço que já era comum nas dominações coloniais: o etnocentrismo. No entanto, este etnocentrismo, agora baseado na classificação social a partir da ideia de raça tornava-os naturalmente superiores. As diferenças culturais e étnico-raciais passaram a constituir hierarquias, um dos pilares da colonialidade/modernidade europeia. Em conjunto com a dominação pela força, esta configuração cognitiva, de colonialidade do saber, se mostrou fundamental para ratificar o domínio europeu sobre outros povos e firmar seu posto como centro do mundo e centro da verdade universal.

Os europeus geraram uma nova perspectiva temporal da história e resituaram os povos colonizados, bem como as suas perspectivas históricas e culturas, no passado de uma trajetória histórica cuja culminação era a Europa. Porém, notavelmente, não numa mesma linha de continuidade com os europeus, mas em outra categoria naturalmente diferente. Os povos colonizados eram raças inferiores e – portanto – anteriores aos europeus. (Quijano, 2005:238 – grifos do autor).

Neste movimento em que a Europa é o ponto de chegada, inaugura-se o que Boaventura de Sousa Santos (2007) chama de monocultura do tempo linear. Aí estão embutidos conceitos de progresso, desenvolvimento e modernização em oposição ao simples, pré-moderno, primitivo e selvagem. No tempo linear, ou se está à dianteira (Europa – centro) ou se está aquém de seu objetivo (periferia). Nega-se a contemporaneidade aos povos subalternizados para poder promover à Europa seu caráter universal. “A humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade moderna” (Santos, 2010:39).

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Neste ponto destacam-se os papéis da Igreja Católica com suas missões jesuíticas de doutrinação e civilização de indígenas na América ibérica.

23 Com a lógica linear do tempo, embora simultâneos, os saberes não são contemporâneos, negando-lhes a copresença no cenário global, um dos traços do pensamento abissal constituinte da colonialidade do saber. O saber europeu, representado pela Ciência Moderna, se encontra na extremidade final da linha do tempo, enquanto saberes não-europeus estarão em estágios anteriores, em déficit relacionados ao primeiro. Desta maneira, passam a ser uma etapa rumo à inatingível razão e verdade plenas naturais do conhecimento eurocêntrico, posto que lhes é natural sua condição de subalternidade. Eurocentrismo nos impede de pensar o mundo a partir de nossa própria perspectiva. Emerge como fruto da racionalidade moderno-colonial (Quijano, 2005), enquanto

perspectiva

dual

e

dicotômica

entre

corpo/mente,

emoção/razão,

natureza/sociedade. Por ser a razão dominante, “o eurocentrismo não é exclusivamente, portanto, a perspectiva cognitiva dos europeus, ou apenas dos dominantes do capitalismo mundial, mas também o conjunto dos educados à sua hegemonia” (Quijano, 2010:86). O eurocentrismo opera como um dos mais fortes pilares da racionalidade moderno-colonial e conforma o pensamento das diversas partes do globo. A dominação europeia foi bem-sucedida em introjetar nos povos e em seus saberes a perspectiva da naturalização de sua inferioridade e consequente supremacia eurocêntrica. O colonialismo que atingiu corpos e força de trabalho também colonizou mentes. O imaginário também foi colonizado e o eurocentrismo impôs seu modo de percepção e produção de conhecimento. Segundo Santos (1989, 2007, 2010) devido à racionalidade moderna, atravessamos uma crise geral das ciências sociais. As teorias atualmente produzidas em um número restrito de países europeus não dão conta da totalidade das necessidades globais. O desperdício de experiência proporcionado pela Ciência Moderna está no cerne de sua própria crise. O pensamento local europeu e eurocêntrico não é capaz de dar respostas aos problemas globais. Ao defender que atravessamos um período de crise paradigmática, Santos (2007) postula que não necessitamos apenas de novos conhecimentos, mas de novas formas de produzi-los. Nosso tempo é caracterizado por problemas modernos para os quais não encontramos soluções modernas. Passamos por uma crise geral das Ciências Sociais na qual precisamos abandonar o protagonismo da Ciência Moderna europeia e inseri-la num

24 conjunto maior de ecologia de saberes. A compreensão do mundo é muito maior do que a compreensão ocidental de mundo e, por isso, os saberes geo-historicamente marginalizados têm muito a ensinar. Para Santos (1989), apoiado em Kuhn (2010 [1962]), não passamos simplesmente por uma crise de crescimento, a mera “insatisfação perante métodos ou conceitos básicos”. Períodos como esse são marcados pelo vigor da ciência em questão, o transbordamento de seu potencial. Vivemos uma crise de degenerescência. Estas são crises de paradigma que atravessam todas as disciplinas, em maior ou menor grau. Em suas palavras: “significam o pôr em causa a própria forma de inteligibilidade do real que um dado paradigma proporciona e não apenas os instrumentos metodológicos e conceituais que lhe dão acesso” (p.18). A ecologia de saberes proposta, longe de desacreditar a ciência, propõe um diálogo horizontal entre saberes. O que Santos (2007) defende é o “uso contrahegemônico da ciência hegemônica”. Os limites e as possibilidades de cada saber se reconhecem, em última instância, no encontro com outros saberes. Quanto menos conhecedor for de outros saberes, menos conhecerá os seus próprios limites e possibilidades. Para obter êxito, contrariando a tese de Bachelard (1972), precisamos romper não com o senso comum, mas com esta hierarquização. Ou seja, retomar o diálogo e pôr fim à separação radical entre saberes. Ciência, senso comum e toda sorte de saberes não podem mais ser apartados e hierarquizados a partir de padrões abstratos.

É uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a Ciência Moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles, sem comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que conhecimento é interconhecimento. (Santos, 2010:53)

Sendo assim, os conhecimentos interagem e dialogam a partir de sua utilidade e adequação ao contexto. A Ciência Moderna, não mais um saber atópico, universal e verdadeiro, passa a ser um dos postos em diálogo. Proporcionando o encontro de saberes,

25 se reforçará o caminho para a justiça cognitiva global, sem a qual se impossibilita a justiça social global (Santos, 2007, 2010). Torna-se necessário emergir e reconhecer saberes locais, saberes do Sul ou de qualquer parte do planeta, para uma ecologia de saberes. Denunciar a colonialidade do saber e do poder que conformam nossa estrutura social é parte do necessário anúncio para uma nova democracia cognitiva. Devendo-se ao fato de não ser exclusividade europeia, o eurocentrismo estende seus tentáculos pelo mundo e pelos diversos espaços de socialização mundial. Como um desses espaços, a escola não está imune a seus impactos. Ao contrário, muitas vezes servirá como agente difusor do eurocentrismo. Todas as disciplinas escolares reforçarão, em maior ou menor medida, valores e saberes dominantes, mas é nas disciplinas de ciências humanas, de modo geral, e Geografia, em particular, que a questão se mostra latente, como discutiremos a seguir.

1.2 Colonialidade, Currículo e Ensino de Geografia

Com a expansão colonial europeia sobre a América, além de um domínio físico, econômico e político, houve a colonização do pensamento. Estas marcas, como já debatido, perduram até hoje, mesmo após a retirada de dispositivos oficiais de dominação, denunciando que a colonialidade é mais duradoura que o colonialismo. Neste jogo, a escola em sua complexidade e como um dos ambientes de socialização não escapa às regras do sistema mundo moderno-colonial, e funciona como difusora e legitimadora de saberes europeus e eurocêntricos. Associado à negação da equidade cultural e cognitiva dos diferentes grupos sociais, a produção de conhecimento pelo mundo ocidental se constitui como elemento central para a pulsão de domínio ocidental (Azevedo, 2007). O contato europeu moderno com outras culturas não se desenvolveu de modo horizontal, mas sim hierárquico e arrogante, visando a sua própria elevação como cultura e conhecimento superiores a partir do apagamento dos saberes colonizados.

Estes

processos de negação e violência epistêmica operaram no imaginário coletivo das populações não-europeias de modo a introjetar e naturalizar sua subalternização. Deixa

26 de ser necessário, na maioria dos casos, a coerção física, operando o poder a partir de mecanismos mais sutis e simbólicos, porém não menos violentos. O aparente silêncio dos povos e suas culturas é, na verdade, resultado de um silenciamento. A diferença hierárquica produzida pela colonialidade transformou a voz dos subalternizados, aqueles que fogem ao padrão europeu, branco e masculino, em algo indigno de atenção e legitimidade. Como resultado dos séculos de colonialidade do saber, os povos subalternizados estão impossibilitados ao diálogo porque simplesmente não sabem dizer: suas palavras, verdades e aspirações foram consideradas improferíveis (Santos, 2007). Não detêm a linguagem e métodos socialmente aceitos por não pertencerem à sociedade científica moderna, não se inserem no lócus privilegiado de produção de conhecimento e verdade. O poder sobre outros povos resultou e se retroalimentou por um saber sobre os “Outros”. Assim, as práticas educativas não estão isentas destas concepções e dos métodos de ocultação do “Outro”. A escola se conformou a partir da perspectiva pedagógica moderna na qual o “Nós” sintetiza os valores e padrões humanos de civilização, racionalidade e cultura e deles partem os julgamentos de legitimação da inferioridade das classes populares. Historicamente, em um processo persistente até a atualidade, a escola operou segundo as linhas abissais da modernidade. A partir da invisibilização, provocando o desperdício da experiência, o “Outro” não fora reconhecido como detentor de conhecimentos válidos, mas sim produzido como inexistente, ocultado sob o signo deficitário da incultura perante o “Nós”. Ele não é alguém capaz de trocar, apenas aceitar conhecimentos transmitidos a partir do centro. Ao negar a copresença dos dois lados da linha, entre o “Nós” e os “Outros”, a educação passa a operar segundo a lógica do resgate (Arroyo, 2014). Forçados a abandonar suas experiências e vivências, todas inválidas e inúteis para o conhecimento formal, os educandos se transformam em recipientes vazios a receber todo o caldo cultural constituinte da humanidade moderna. É a educação que lhes dará os subsídios para se redimirem de suas ignorâncias e lhes conduzirá ao resgate. A monocultura do saber nunca fora abandonada. O “Outro” continua como o polo negativo que precisa seguir sua evolução, desenvolvendo habilidades e competências esperadas.

27 Constituída sempre a partir do “Nós” para os “Outros”, a Educação Moderna será reflexo e reforçará um pensamento hierarquizante e abissal. As teorias pedagógicas modernas não foram pensadas para o “Nós” – considerados humanos civilizados –, mas para os “Outros” – considerados incivilizados, incultos, sub-humanos. A educação conduziria os povos subalternizados à real existência, finalmente conquistada individualmente pelo mérito ao atingir o status da humanidade. Esta humanidade, no entanto, não é ampla, mas gerada a partir de critérios e discursos específicos. A ostentada formação de humanos, educação como humanização, oculta seu processo de definição de conceitos. Para se constituir um padrão de humanidade, primeiramente precisou-se definir o que não seria humanidade, uma identidade partindo de sua negação. Segundo Santos (2010:39): “a negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto universal”. Tendo em vista seu processo histórico de constituição, a partir da expansão colonial europeia, o sub-humano será aquele ausente do centro de poder hegemônico e, portanto, não presente no mundo. Pelo menos não enquanto sujeito portador de verdade, apenas como força de trabalho. Será o sujeito da zona colonial, não-branco, classificado como inculto, incivilizado e baseado em falsas verdades típicas do seu “estado de natureza”, sempre a partir de um padrão de classificação racial eurocêntrico. Definido o sub-humano, ganha status de humanidade o homem branco europeu, conformado em um saber científico racional moderno. A quem se destina, aos “Outros”, a Educação Moderna oferece a redenção. Na escola, o “Nós”, os cultos, civilizados, racionais e produtores de verdades universais conduzirão os “Outros”, incultos, incivilizados, irracionais e primitivos, que se baseiam em crendices e falsas ideologias, ao conhecimento, à verdade, à ciência e à moralidade. Os conduzirão à existência. Ao realizarem esse percurso de sacrifício e abandono de toda a sua carga de experiência vivida, os “Outros”, que conseguirem, finalmente existirão aos olhos do pensamento hegemônico. Finalmente estarão aptos a ter voz, pois agora detêm os códigos da verdade, da moral e da ciência. Agora são humanos. Neste movimento pedagógico de resgate e redenção, aprofundam-se as linhas abissais. Intensifica-se a ocultação do “Outro” como um sujeito detentor de voz e legitimidade mesmo que fora dos padrões hegemônicos eurocêntricos. Não se reconhece

28 sua diversidade. O que se produz a partir da pedagogia moderna não é uma educação emancipatória, mas sim uma educação arrogante que reproduz valores coloniais. Neste ponto, estamos de acordo com Arroyo (2014):

Os ideais de justiça social pela educação somente serão realidade se se avançar na justiça cognitiva ou se forem superadas as concepções inferiorizantes dos Outros que ainda prevalecem no pensamento educacional. (p.18)

O processo de reconhecimento do “Outro” como presente, contemporâneo e detentor de um saber válido, tal qual exigem os movimentos sociais para construção de uma educação mais justa, passa necessariamente pela reflexão de toda a carga histórica e contradições implicadas na colonialidade. A história hegemônica, única e linear, não se sustenta sem a invisibilização destes sujeitos. Ao contrário, é a partir da naturalização destas diferenças transformadas em hierarquias que se conforma. As relações políticas de subordinação, inclusive pedagógicas, estão assentadas nestes mecanismos de invisibilização. Reconhecer o “Outro” como um sujeito presente implica em abandonar todo o cânone pedagógico moderno da educação como resgate. Se presente, o Outro não carece de inclusão, tampouco a inclusão proposta. Se possuem culturas, não precisam ser trazidos para a Cultura. Fragiliza-se então a própria autoidentidade da pedagogia hegemônica. No que tange à justiça cognitiva global, a pedagogia moderna é intencionalmente falha. Operando segundo linhas abissais de inclusão/exclusão, ela não é capaz de responder às demandas dos movimentos sociais e grupos que exigem reconhecimento. Se a sub-humanidade do “Outro” se gera a partir da visão do “Nós” enquanto síntese dos valores humanos, a equidade entre ambos deve necessariamente passar pelo processo inverso. Não basta um movimento que reconheça o “Outro” como humano, é necessário que se rompa com a visão evolucionista a partir da educação. Para promover justiça social e cognitiva, o “Nós” precisa deixar de ser encarado como a síntese, o objetivo final a ser alcançado no percurso educacional. Os grupos classificados com o déficit do “Outro” não aceitam e resistem à sua inferiorização. Ao exigirem reconhecimento como produtores de verdade, deslocam as

29 linhas abissais que lhes tenta conter. Esses sujeitos não lutam pela sua inclusão, não querem ser capacitados para fazer parte do grupo aceito. Lutam para que seus grupos sejam reconhecidos, seus outros projetos, pedagogias e saberes. Apesar das múltiplas resistências, a escola moderna formal ainda detém a legitimidade da produção de conhecimento. Seus dispositivos ainda operam e têm livre trânsito na sociedade. Um dos instrumentos de organização educacional com maior influência é o currículo, sobretudo no processo de ocultação do outro. Se o “Nós” representa a síntese do conhecimento verdadeiro, racional e humano, o currículo formal é o sistematizador destes saberes considerados adequados à redenção. Para melhor compreendê-lo, tomamos o conceito de Moreira (2007), encarando-o como:

Experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio a relações sociais, e que contribuem para a construção das identidades de nossos/as estudantes. Currículo associa-se, assim, ao conjunto de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções educativas. (p.18)

Obviamente o currículo formal não será capaz de reger a totalidade do ensino escolar e nortear todas as práticas. Deste modo, considerar as práticas, o que está para além do planejado, também é fundamental para uma noção mais ampla do processo educacional. Reconhecer a relevância das práticas, no entanto, não incorre em negar ao currículo formal toda sua carga de organizador das atividades escolares. O objetivo é negar o conformismo e inexorabilidade diante das normas impostas, reconhecendo a relevância das opções realizadas por educadores e educandos no cotidiano, dentro e fora de sala de aula. O resultado do processo educacional será fruto dos saberes esperados a partir do currículo formal e com o que é feito a partir dele/com ele. Para uma análise crítica do currículo, é necessário compreendê-lo como artefato social e cultural (Silva, 1996). Ele não é mera lista de conteúdos estática e esvaziada de interesses, simples reprodutor. O currículo está ativo, e não apenas reflete visões de grupos que se pretendem hegemônicos, como é contingente de tais relações de poder. Sendo assim, é um produto social formado por e a partir de tensas relações de poder, e

30 legitimador de tais relações, sendo objeto de desejo de diversos grupos a fim de afirmarem ou formarem sua posição na sociedade, conquistando o poder de representação. À maneira de qualquer discurso, o currículo não é produzido a partir de um saber atópico por sujeitos desinteressados e neutros. Ao contrário, é construído por sujeitos geohistoricamente localizados que trazem em seus corpos e mentes marcas de raça, gênero e classe. Portanto, analisar o currículo implica não apenas observar suas presenças e vozes, mas também suas ausências e silenciamentos. Considerar quais grupos figuram em seus discursos, como figuram e, sobretudo, identificar aqueles que nem sequer estão representados. Neste movimento o currículo torna-se um território contestado (Silva, 1996) no qual, e pelo qual, se luta tendo como fim o poder de representação. Ele, com seus discursos, enquanto produto conformado por saberes abissais, definirá o que é legítimo e o que será produzido como déficit ou, ainda, ocultado. Representa a definição oficial do que é validado como conhecimento enquanto é expressão das relações de poder da sociedade. Constituído, o currículo passa de produto a produtor. Ao expressar padrões e normas de humanidade, produz identidades individuais e coletivas, reforçando as relações de poder. O objetivo deste processo é manter o status quo da sociedade, fazendo com que grupos subalternizados permaneçam no seu estado de inferioridade para permitir aos grupos dominantes sua condição. Apesar de potente, o currículo formal é contestado diariamente nas por educadores comprometidos com práticas mais democráticas e participativas no cotidiano escolar. No entanto, denúncia e desconstrução ainda são necessárias. Identificar que o currículo é atravessado, produzido e produtor de relações de poder não basta para a sua desconstrução. É preciso identificar quais grupos operam estas relações e em que posições sociais se encontram. Uma análise mais atenta dos conteúdos presentes nos demonstra a massiva predominância de culturas hegemônicas. As culturas minoritárias e/ou marginalizadas costumam ser silenciadas quando não estereotipadas a fim de minar sua reprodução social (Santomé, 1995). O “Outro”, desta forma, será produzido de modo a reforçar sua subalternização. Se o currículo é um artefato social potente para a produção de identidades coletivas e em seu conteúdo verifica-se a massiva presença da cultura dominante em

31 detrimento de culturas subalternizadas, seu discurso está claramente a serviço das classes hegemônicas. O currículo, assim, será mais um instrumento para reforçar o pensamento abissal e a ocultação do “Outro”. Aqueles que não dispõem das estruturas de poder privilegiadas para produção de conhecimentos encarados como válidos, serão ocultados ou estereotipados no processo educacional, corroborando o argumento de Arroyo (2014) de que uma educação socialmente justa deve necessariamente passar por uma visão equânime dos saberes e suas representações. Para que seja possível repensar o currículo de maneira qualificada, ativa e democrática deve-se reforçar a formação docente. Segundo Santomé (1995), o professor atual é fruto de modelos de socialização profissional que lhe exigiam unicamente a formulação de objetivos e metodologias, não sendo de sua competência definir explicitamente os conteúdos. Esta incumbência passa às mãos de outros, sobretudo editoras de livros didáticos, com respaldo dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que se tornam responsáveis por organizar a integridade do currículo. Torna-se necessária a crítica à formação docente, em nosso caso particular a de Geografia, normalmente tão permeada por abordagens descoloniais. Mesmo superada em alguns setores do meio acadêmico, a tradição descritiva ainda é forte no ensino escolar, especialmente na Geografia. Reconhecendo o potencial escolar na formação social dos indivíduos, grandes desafios ao ensino da Geografia escolar se colocam. Já na década de 70, o geógrafo francês Yves Lacoste lhe direciona duras críticas, a qual classifica como uma “disciplina simplória e enfadonha”. Para o autor, esta se constituía como um saber enciclopédico que não apresentava qualquer utilidade prática ao educando, muitas vezes nem ao educador. A Geografia descritiva atuou, e atua, não apenas sobre porções do espaço, mas também sobre os sujeitos. Ao narrá-los, muitas vezes são produzidas visões estigmatizadas sobre seus modos de vida e a homogeneização de seus espaços. O outro e seu lugar são sempre os objetos da narrativa, nunca seus narradores. O resultado geralmente são sujeitos vistos a partir de estereótipos, transformando suas diferenças em hierarquias. A copresença lhes é negada e são encaixados na linha de desenvolvimento moderno-colonial europeia, juntamente com seus espaços vividos. O objetivo de tal caráter altamente descritivo consistia em escamotear o real papel da Geografia: seu potencial geopolítico estratégico, centrado nas mãos dos chefes de

32 Estado, respectivos administradores e militares. Talvez não seja forçoso afirmar que a Geografia escolar se tratava de uma “anti-Geografia”. Seu interesse depositado declinava ainda mais ao passo em que as mídias de massa cresciam, tomando para si o papel, já escasso, da Geografia escolar vista como maçante. Ao ocultar todo o potencial estratégico, a função real da ciência geográfica, tentase esconder também os processos nos quais esse saber fora conformado, a partir de

Uma amnésia histórica que suprime visões alternativas do mundo, encontra-se manifesta ‘nas Geografias especulativas dos exploradores, na construção de mapas, nas teorias científicas de clima e raça, e nas espacialidades pragmáticas de governo e assentamento colonial’. (Jacobs, 2004 apud Azevedo, 2007: 50-51 – grifos da autora)

Em diálogo com conceitos de Santos (2007), vemos a forte presença das monoculturas do saber e do tempo linear também na produção geográfica, assim como manifestado em todas as ciências nascidas no seio da modernidade. Espaços são homogeneizados e classificados a partir de regras objetivas de desenvolvimento, nas quais os sub, os deficitários, aqueles em estágios anteriores não por coincidência se encontram fora do centro de poder hegemônico. Além de não reconhecer especificidades e relações assimétricas internamente, tal processo naturaliza o subdesenvolvimento, encarando-o como um estado de quem chegou atrasado ao processo histórico. A partir desta classificação se delineiam estigmas dos povos baseados em sua produção econômica e social. África e América Latina, no cenário mundial, e Nordeste, no brasileiro, são inscritos sob a marca do déficit, como espaços naturalmente da miséria e da fome, sem o necessário questionamento e complexidade. Para questionar a atual condição de áreas específicas internas a estes espaços, é imprescindível refletir acerca do processo capitalista moderno-colonial de dominação a partir de uma lógica transescalar. Significa reconhecer a interferência externa no jogo com dominações internas. Estes estereótipos criados a partir de pontos do espaço operam no imaginário coletivo global a fim de naturalizar as hierarquias e manter adormecidas as relações que as engendram. A colonialidade do saber opera de tal modo que noções de Oriente, África, Trópicos e qualquer designação e regionalização geográfica são raramente objeto de problematização. Normalmente, o ensino de Geografia opera com estes termos,

33 legitimando estas interpretações e recortes sem reflexão crítica, funcionando como braço da colonialidade. Não podemos, porém, nos limitar simplesmente ao movimento de denúncia sobre o que deixou de ser a Geografia escolar, o que ela escamoteou. Tendo conhecimento de que “a sutileza foi a de ter passado um saber estratégico militar e político como se fosse um discurso pedagógico ou científico perfeitamente inofensivo” (Lacoste, 2009:25), é preciso que realizemos o anúncio do que é ou pode se tornar o ensino da Geografia. Em vez de voltar-se apenas à memorização de rios, seus afluentes, climas, feições rochosas ou números populacionais, a Geografia deve se tornar uma disciplina que estimule o pensamento crítico sobre o espaço e nosso posicionamento no mundo. Posicionar-se no mundo revela, assim, uma dupla acepção: (1) conhecer sua posição no mundo, o que implica conhecer seu espaço vivido; (2) tomar posição no mundo, se colocar politicamente frente às decisões concernentes à organização do espaço (Santos, 2007). A razão de saber Geografia é, então, a de compreender melhor o espaço geográfico para nele atuar de forma mais eficaz. É, antes de tudo, um saber estratégico. Ainda é relegado à Geografia o papel de construir no educando um sentimento de identidade nacional com base no território. Porém, como toda construção identitária, alguns elementos são eleitos em detrimento de outros. À mesma maneira que conteúdos são privilegiados, esses elementos tampouco são escolhidos de modo neutro. Ao contrário, refletem e reforçam padrões esperados das classes dominantes, por elas próprias constituídos. Assim, deter a organização do currículo escolar significa obter grande poder neste processo. Nestas narrativas, muitas vezes são suprimidos os papéis dos povos originários, o genocídio/epistemicídio sofrido por eles e o papel também dos negros escravizados trazidos para o território brasileiro. Mais uma vez, a classificação de raças vigente num mundo com fortes traços de colonialidade oculta de maneira intencional o papel daqueles considerados inferiores. É possível perceber que a escolha destes elementos de identidade e a forma como são abordados por livros didáticos, sobretudo, denotam o ranço de um pensamento colonial eurocêntrico, que eleva a raça branca e seus feitos em prejuízo de negros e indígenas na formação territorial brasileira, nosso recorte de análise, como abordado a seguir.

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2.A formação moderno-colonial do território brasileiro

Ao longo de nossa educação, tanto na escola quanto em espaços não-formais, temos contato com diversos discursos sobre a formação territorial brasileira. A partir desta relação, nosso imaginário é povoado por diversos mitos fundadores a respeito de como formou-se o Brasil e, consequentemente, a nós mesmos, seu povo. Embora pareçam sólidas e transcendentes, as bases destes mitos fundadores sofrem câmbios ao longo da história, alterando profundamente o próprio sentido de ser brasileiro, assim como a visão sobre a própria nação. A miscigenação é um elemento presente em grande parte destes discursos. Ora encarada como prejudicial, por manchar a pureza da raça branca europeia superior por negros escravizados e indígenas, em outros momentos é considerada como o grande trunfo de nossa história. Segundo o que depois convencionou-se chamar de Mito das Três Raças, seríamos um povo rico em nossa miscigenação, agregando o melhor que negros, indígenas e portugueses podem oferecer para enfim constituir o povo brasileiro. Este povo nascido pacífico, mas que não teme a luta caso a clava forte da justiça seja erguida. Estes elementos que povoam o imaginário nacional, a partir de teorias de grandes pensadores, se mostram frágeis quando são confrontados com a realidade. Na reflexão sobre práticas cotidianas, surge um traço até então desconsiderado: a violência, manifestada em suas mais diversas formas. Encontramos o histórico extermínio de indígenas, presente até os dias atuais, e o majoritário número de negros entre as vítimas de homicídios no país. Além da violência física, estes grupos sofreram – e sofrem – outra, mais imperceptível em nosso cotidiano: a violência epistêmica e o epistemicídio, não apenas fruto da morte destes sujeitos, como também de deslegitimação de seus conhecimentos na sociedade e nos círculos acadêmicos legitimadores do Saber. Embora se propague a democracia racial, somos uma nação construída sob a clivagem das raças, do mesmo modo como outras sociedades coloniais americanas. As marcas do escravismo colonial se mantêm a despeito do fim do colonialismo. Somos exemplo que a colonialidade perdura, mesmo com o fim dos aparatos técnicoadministrativos e institucionais que sustentavam a relação entre metrópole e colônia. Os aparatos formais foram dissolvidos, suas relações não.

35 À mesma maneira da população, o território nacional e suas fronteiras tampouco estavam dados. Ambos são uma invenção construída a partir de diversas representações geo-históricas e cada traço riscado no mapa brasileiro foi conquistado, muitas vezes sem poupar o sangue de povos originários. Assim, voltar-se à análise da formação territorial brasileira torna-se imprescindível para melhor compreender estes processos que nos constituíram enquanto nação. A partir da indissociabilidade entre sociedade e espaço, buscaremos neste capítulo interpretar quais heranças carregamos e como se formou o território brasileiro. Como bem assinala Antonio Carlos Robert de Moraes, “a formação territorial é, do ponto de vista espacial, um processo cumulativo que articula os resultados de formas de sociabilidade não necessariamente contínuas e sincrônicas” (Moraes, 2005a:54). Ao longo da geo-história brasileira, a identidade nacional sofreu distensões, assim como o território. Embora ambos sejam fruto de construções no imaginário coletivo, estes, assim como a nação, não são imaginados no vazio, mas a partir da escolha de símbolos erguidos como nacionais (Anderson, 2008). Uma vez constituídos, passam à condição de naturalidade, até serem postos abaixo ou engolfados por novos elementos definidores da nacionalidade. Robert de Moraes defende ainda que

a formação territorial articula uma dialética entre a construção material e a construção simbólica do espaço, que unifica num mesmo movimento processos econômicos, políticos e culturais. O território material é referência para formas de consciência e representação, cujos discursos retroagem no processo de produção material do espaço, com o imaginário territorial comandando a apropriação e exploração dos lugares. (Moraes, 2005a:59)

Neste sentido, torna-se necessário analisar, além da materialidade dos fatos na formação territorial brasileira, seu aspecto simbólico e o que resulta dele. Encaramos o território nacional brasileiro, assim como a nação, construídos a partir do que Marilena Chauí (2000) chama de mito fundador. Segunda a autora,

36 esse mito impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente enquanto tal. Nesse sentido, falamos em mito também na acepção psicanalítica, ou seja, como impulso à repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela. (Chauí, 2000:9)

Para adequar-se aos novos momentos históricos, sob influência das ideologias em voga, o mito fundador pode assumir novas roupagens e repetir-se indefinidamente. Neste movimento, reorganiza os elementos de representação da realidade, tanto em função de sua hierarquia interna (qual elemento será considerado o ponto de convergência dos demais) quanto da maximização de seu sentido (novos elementos acrescentados ao originário). Assim, embora o mito fundador seja constantemente reciclado, mantém seu caráter perene, como algo originário e, como tal, que sempre existiu para dar coesão à nação.

2.1 O Brasil-colônia e a escravidão Todo processo de colonização se caracteriza pela expansão territorial de um grupo sobre outros espaços, considerados novas fronteiras de expansão e extração de recursos. Como nos demonstra Alfredo Bosi (1992), a palavra colonização deriva do verbo latino colo, significando eu moro, eu ocupo a terra. Para que ela se concretize, então, é necessária a efetiva ocupação do território, ou seja, uma relativa fixidez e assentamento dos grupos em expansão. A colônia seria, assim, o fenômeno resultante da efetiva instalação do agente externo, daquele que chegou ao espaço a ser colonizado (Moraes, 2005a). Ela se caracteriza como a introjeção dos fatores externos como elementos organizadores das estruturas internas daquela sociedade. A partir desta premissa, é desconstruído o ideário da colonização atrelada a uma dicotomia externo/interno. Recuperando a análise etimológica da palavra apresentada por Bosi, além do tomar conta de, no cerne básico do verbo colo importa cuidar, mas também

37 mandar. Deste modo, a colonização se impõe não apenas como organizadora das estruturas internas do território conquistado como também de corpos e mentes da população nativa. A colonização do espaço geográfico não pode prescindir da colonização dos sujeitos que o compõe. Refletindo sobre a condição dos sujeitos colonizados e seus impactos, percebemos que a conquista da América pelos europeus, na qual se insere o processo de colonização do território hoje chamado de Brasil, inaugurou o sentido moderno de raça (Quijano, 2005). Foram produzidas identidades sociais historicamente novas, como índios, negros e mestiços, além da redefinição de outras. Ao passo que esta configuração se refletia em relações de dominação, as novas identidades raciais passavam a ser encaradas como constituidoras de hierarquias. A partir da expansão colonial sobre a América, raça e identidade racial passavam a constituir as pedras angulares da classificação social da população. A ideia construída de raça serviu para sustentar uma suposta diferenciação biológica entre conquistadores e conquistados a fim de justificar a expansão territorial e espoliação, tendo como base relações de dominação. A colonização estaria legitimada e naturalizada aos olhos eurocêntricos. Seria dever dos europeus avançarem sobre o Novo Mundo, afinal seguindo a perspectiva linear e evolutiva da história, eles, membros do Velho Mundo, nada além faziam do que cumprir seu destino enquanto cidadãos mais evoluídos e racionais. Aos viventes de terras americanas – o Novo Mundo – cabia a resignação frente à exploração, mesmo que forçada, ou o encontro com a espada em caso de resistência. Soma-se à subalternização dos povos originários o sequestro e comércio de negros africanos para sua escravização, também baseada na condição racial. Para além da necessidade de mão de obra na colônia, o tráfico negreiro em si já se mostrava altamente lucrativo. Assim, a empresa da escravidão trazia vantagens em todas as suas etapas. A colonização precisava ser um empreendimento rentável, acima de tudo. A dominação territorial baseada nos aparatos bélicos demandava um alto volume de investimento que precisava ser retornado à metrópole. Desta forma, eram incorporadas estruturas préexistentes para geração e extração de riqueza, ou ainda realizada a criação de novas formas produtivas, nas quais o sistema de plantation se mostra exemplar. Como argumenta Bosi,

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se o aumento da circulação de mercadorias se traduz em progresso, não resta dúvida de que a colonização do Novo Mundo atuou como um agente modernizador da rede comercial europeia durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Nesse contexto, a economia colonial foi efeito e estímulo dos mercados metropolitanos na longa fase que medeia entre a agonia do feudalismo e o surto da Revolução Industrial. (Bosi, 1992:20 – grifos do autor)

A partir da referência de Bosi, é possível reconhecermos a colonização como o sustentáculo e a contraface da modernidade europeia. Ambos não são etapas diferenciadas da evolução humana, mas sim práticas sociais que se retroalimentam. Alia-se à colonização, à institucionalização das ciências sociais, à organização capitalista da economia e, acima de tudo, à configuração jurídico-territorial dos Estados nacionais (Castro-Gómez, 2005). Neste jogo, a modernidade se revelou como um projeto ao racionalizar o controle da vida humana. Voltando o olhar para o caso brasileiro, segundo o geógrafo Ruy Moreira (2011), a estrutura do espaço na qual se ergueu a nossa sociedade foi formada por um tripé mantido por: terra, território e senhorio político. Originada no seccionamento do território indígena em grandes domínios de propriedade, a colonização portuguesa foi instituída sob o poder do colono conjuntamente fundiário, territorial e político. Ao aportar em terras hoje chamadas brasileiras, os portugueses encontraram uma população local de aproximadamente cinco milhões de indígenas. Ao passo que dispôs de território e força de trabalho, o colono precisou disponibilizá-los para o seu projeto. Os três primeiros séculos de exploração foram dedicados a esta tarefa, a partir da expropriação e realocação territorial da população local, empreendidas por bandeirantes e jesuítas, respectivamente (Moreira, 2011). Uma vez dispersados, o espaço pôde ser ocupado pelos colonos e a população indígena utilizada como mão de obra. A ação bandeirante incorreu no que Moreira chama de desmonte, liberando o território para a ocupação pelos colonos. Neste movimento, bandeirantes praticaram a preação e escravização de indígenas, muitas vezes gerando o extermínio de suas tribos. São Vicente, Bahia e Pernambuco foram as capitanias que serviriam como ponto de partida para a ação.

39 Em direção contrária, embora simultânea, os jesuítas realizaram o remonte. Via descimento e aldeamento – políticas indigenistas instituídas pela Coroa –, os agrupamentos indígenas foram realocados no território. Ao contrário dos bandeirantes, a prática jesuíta não resultou no extermínio indígena. Sua liberação do território foi empreendida pela transferência a uma área com maior facilidade de controle. O teor da violência empreendida neste caso se mostrou predominante simbólico, antes de físico. As ações jesuítas tiveram início na colônia em 1549, com a chegada de padres da Companhia de Jesus juntamente à comitiva de Tomé de Sousa. A partir de então, empreendeu-se a política de realdeamento, uma espécie de catequização visando à adoção da cosmovisão europeia e cristã pelos indígenas, mantendo sua política de organização em aldeias (Moreira, 2011). A prática visava facilitar o controle das populações locais a partir do convencimento e aceitação dos valores da Coroa e sua subalternização. Posteriormente, foi acrescentada a política de descimento, uma prática de realocação dos agrupamentos indígenas, retirando-os de seu ambiente e transferindo-os para áreas litorâneas, próximas ao povoado dos colonos. Acreditava-se com a prática facilitar a aculturação indígena e a transposição de valores cristãos europeus. No litoral, os indígenas ainda se distanciavam da influência dos xamãs, considerados guardiões das práticas e valores vividos nas aldeias. Independentemente de uma aceitação de valores, o descimento proporcionava a disponibilidade de mão de obra para uso dos colonos. A discrepância, por um lado, entre as políticas bandeirantes de escravização e extermínio indígenas e, por outro, a defesa jesuítica de sua manutenção e catequização, gerou uma grave tensão entre colonos e jesuítas. Aos poucos, o papel cristianizador da expansão portuguesa foi esvaziado, atuando apenas nas franjas do sistema. Em longo prazo, o projeto sucumbiu frente às pressões bandeirantes e à força do Exército Colonial (Bosi, 1992). Dado este panorama histórico, percebemos que escravidão está na base da formação territorial brasileira, desde a invasão portuguesa. Marilena Chauí (2000) relembra a descrição feita dos indígenas por Pero Vaz de Caminha, na qual, após descrever a inocência dos habitantes, afirmou que não possuíam nenhuma crença. Assim como qualquer ato de descrição traz embutido um juízo de valor e intenções, este lançou os indígenas na escala humana abaixo dos cristãos europeus, legitimando sua subalternização.

40 Segundo Jacob Gorender (1978), a característica mais essencial do ser escravo reside na sua condição de propriedade de outro ser humano. Embutida na posição de coisa possuída, está a sujeição do indivíduo escravizado ao senhor a quem pertence. Já em meados do século XVI, colonos demandavam a introdução de mão de obra escravizada africana no território brasileiro. Baseavam-se em discursos que rapidamente se cristalizaram entre colonos sobre a afeição dos negros ao trato na lavoura e sua submissão em habitat estranho, ao contrário do índio, visto como trabalhador débil e indolente (Gorender, 1978). Obviamente, a caracterização está carregada de interesses ocultos, dentre os quais emerge o tráfico negreiro enquanto um importante setor do comércio colonial. Uma vez escravizado e encarado como bem objetivo, o autor argumenta derivarem dois atributos: a perpetuidade e a hereditariedade. “O escravo o é por toda a vida e sua condição social se transmite aos filhos” (Gorender, 1978:61). No Brasil, ambas derivações foram verdadeiras até fins do século XIX, quando foram criadas as leis do Ventre Livre6 e dos Sexagenários7, assinadas em 1871 e 1885, respectivamente. Respostas modestas ao movimento abolicionista e às pressões externas das potências capitalistas, ambas se mostravam com pouco resultado prático, tendo em vista a incapacidade de idosos e crianças se sustentarem fora das grandes fazendas. Na prática, a sujeição se mantinha. A manutenção das relações escravistas marca a estrutura da sociedade colonial brasileira, indo além da relação entre senhor e escravizado. Todas as relações entre a população não-escravizada são cingidas pela presença da escravidão, a partir do que Moraes (2005a) chama de geração de laços de identidade por diferenciação. Ou seja, a condição de liberdade dá aos sujeitos um laço identitário, reconhecendo-se como iguais. Surge desta relação o compadrio, reunindo proprietários e trabalhadores livres em uma sociedade de interesse baseada nesta identidade negativa. Baseadas nas relações de compadrio, estruturam-se redes de clientela cuja marca maior se assentará na figura do coronel, ou do caudilho, o líder local ou regional.

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Também conhecida como Lei Rio Branco, a Lei do Ventre Livre foi assinada pela Princesa Isabel e concedia a liberdade para qualquer criança filha de mulheres escravizadas a partir da data de sua promulgação. 7 Também conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe, a Lei dos Sexagenários visava à liberdade para todos os indivíduos escravizados a partir da idade de 60 anos. Os cativos, no entanto, ainda precisariam trabalhar mais três anos a título de indenização.

41 Alimentada por uma rede de favores na qual o público e o privado se confundiam, o coronelismo está no cerne da estrutura da sociedade brasileira. Sua importância ganha projeção, como nos lembra Bosi (1992), ao passo que predominou no período colonial uma camada de latifundiários vinculados por interesses a grupos mercantis europeus, ligados sobretudo ao tráfico negreiro para o sistema de plantation.

2.2 A construção do nacionalismo, os discursos nacionais e um colonial que insiste em se manter

Podemos dizer que a construção do Estado brasileiro se deu a partir do rompimento de vínculos formais de subordinação à Coroa portuguesa. Embora independente, vale lembrar que este processo foi liderado pelo herdeiro da Corte, o que implicou na permanência de importantes traços que definiram a colonização do país, como o escravismo. A manutenção da monarquia como forma de governo também serviu para apaziguar o perigo aos demais Estados europeus, que viam nesse rompimento um risco para seus impérios coloniais. Com a consolidação da emancipação política – reconhecida inclusive pela Coroa portuguesa já em 1825 –, as elites brasileiras iniciaram a construção do Estado Nacional. O contexto se caracterizava por um vasto território não ocupado pela economia então nacional, além de uma população relativamente escassa e profundamente marcada pela escravidão. Dessa forma, há um território a ocupar e um Estado em construção, mas a população local não se ajusta à identificação de uma nação conforme os modelos identitários vigentes nos centros hegemônicos (Moraes, 2005a). A partir da identificação desta carência – aos olhos da elite –, busca-se a construção de uma identidade nacional atrelada ao território, e não à população. Desde o período da invasão do Brasil por Portugal, a partir da carta de Pero Vaz de Caminha, originou-se o que Marilena Chauí (2000) designa como mito fundador da nação brasileira. Segundo a autora, este se baseia na invenção da tese de “terra abençoada por Deus”, reproduzida até os dias atuais e que está no centro da nossa construção sóciohistórica. Como prova da perpetuação deste mito fundador, encontramos o Hino Nacional

42 Brasileiro, sobretudo em seu trecho de exaltação da natureza: “Do que a terra mais garrida/Teus risonhos, lindos campos, têm mais flores/Nossos bosques têm mais vida”. Para Chauí, a intenção da fundação é situar-se além do tempo e fora da história, de modo a possibilitar sua perpetuação indiscriminada, em um presente que não cessa. Segundo a autora:

A marca peculiar da fundação é a maneira como ela põe a transcendência e a imanência do momento fundador: a fundação aparece como emanando da sociedade (no nosso caso, da nação) e, simultaneamente, como engendrando essa própria sociedade (ou a nação) da qual ela emana. É por isso que estamos nos referindo à nação como mito. (Chauí, 2000:10)

Este mito fundador pode ser revisto a partir das ideologias vigentes e adotar novas roupagens a fim de cumprir seu objetivo de perpetuação permanente. É comum encontrarmos nas aulas de Geografia e História, desde os anos escolares iniciais, a explicação para a nossa bandeira nacional. Todos sabemos, desde jovens, da cor verde simbolizando nossas ricas matas, o amarelo o ouro e as riquezas minerais, o azul representando nosso céu com o Cruzeiro do Sul guiando a nação e, ainda, o branco a simbolizar nosso povo pacífico e ordeiro, em progresso. Pouco se lembra, no entanto, da manutenção do verde e amarelo a representar as cores Casas de Bragança e da Áustria, originárias das famílias reais do primeiro casal de imperadores do novo Estado: D. Pedro I e D. Leopoldina. Ao contrário de diversas outras bandeiras nacionais, que a partir da Revolução Francesa se mostravam predominantemente tricolores, representando lutas por liberdade, igualdade e fraternidade, a bandeira nacional é quadricolor. Não temos a expressão política em nossa bandeira nacional, mas um símbolo da natureza. O lábaro estrelado que ostentamos visa tão somente a representação do Brasil-paraíso e, neste movimento, ao nos lançar no seio da Natureza, nos coloca fora do mundo da História (Chauí, 2000). Embora país abençoado por Deus, aparentemente não haveria contradição para adoção da escravidão no suposto Paraíso. Sendo Ele o legislador supremo, segundo a teoria do direito natural objetivo, haveria uma ordem jurídica natural criada na qual se hierarquizavam humanos a partir de sua raça. A hierarquização legitimava a

43 subalternização de alguns (indígenas e negros, no nosso caso) a outros (brancos portugueses). Assim, não somente deixava de haver contradição, como se reafirmava a vontade de Deus em seu país-paraíso. Embora fosse discurso corrente, obviamente não era simples o convencimento de que uma raça deveria ser subordinada à outra – pelo menos não para a que seria escravizada. Provas são as diversas insurreições de povos escravizados das quais a Revolta dos Malês, e a construção dos Quilombos emergem como exemplares. Rejeitar a narrativa única da história passa necessariamente por reconhecer as resistências que também constituíram o território nacional. Como bem assinala Carlos Walter PortoGonçalves:

Se havia uma Geografia da dominação, da opressão e da exploração com suas plantations latifundiárias, monocultoras e escravizadoras havia também uma Geografia da liberdade em que camponeses ocupavam espaços para além dos latifúndios como posseiros e os negros construíram espaços da liberdade nos quilombos, pallenques e cumbes. (Porto-Gonçalves, 2007:08 – grifos do autor)

Com a crescente onda de insatisfação, a ideia de nação surgirá como solução, unificando uma sociedade dividida social, econômica e politicamente – em forma de dominação, não em igualdade. Deixava de ser suficiente que uma restrita elite intelectual fornecesse os padrões linguísticos para coesão da nação em construção. Não havia mais espaço para a passividade de seus cidadãos e o Estado precisava atuar para competir em prol da lealdade, então disputada por ideologias políticas e religião. Surge então o patriotismo, uma “religião cívica” posteriormente transformada em nacionalismo, ou seja, o patriotismo foi estatizado, reforçando os símbolos construídos de uma sociedade imaginária em processo de invenção (Chauí, 2000). No Brasil, a partir dos anos 20, os movimentos nacionalistas contaram com a comunicação de massas (rádio e cinema) para transformarem símbolos nacionais em elementos do cotidiano, rompendo a divisão entre a esfera da vida privada e local e a esfera pública e nacional (Chauí, 2000). O esporte empreendeu um papel de protagonista, sobretudo o futebol, sendo encarado nos campeonatos mundiais como combate entre

44 nações, não apenas disputas entre times. Dessa forma, os conflitos nacionais, especialmente os de classe, foram abafados sob o poder do sentimento nacional. Assentado neste processo histórico de invenção da nação encontra-se o fenômeno da passagem da ideia de “caráter nacional” para a “identidade nacional”. Estes dois movimentos foram de vital importância para construção do imaginário nacional. Para compreensão desta transição, nos manteremos apoiados em Chauí (2000). Como elementos basilares da noção de caráter nacional, encontramos: terra, densidade demográfica, língua, raça, expansão de fronteiras, crenças religiosas, folclore, belas artes, usos e costumes. O conceito abarcaria todos os traços constituintes de um indivíduo ou grupo, não necessitando de referências externas. Era encarado como a disposição natural de um povo, assim como sua expressão cultural. Dante Moreira Leite, em crítica à elaboração ideológica do caráter nacional, afirma que este obstaculizou a compreensão da sociedade brasileira. Segundo o autor, as formulações brasileiras dependiam de uma tríade básica: o momento sociopolítico, a inserção de classe e as ideias europeias mais em voga na ocasião. Percebe-se que o caráter nacional visa representar uma natureza do brasileiro determinada, sendo assim uma totalidade de traços monolítica sem abrigar em si contradição alguma. Esta plenitude pode ser positiva, como nos casos de Gilberto Freyre e Afonso Celso, ou negativa, como em Silvio Romero ou Manuel Bonfim. Segundo a ideologia do “caráter nacional”, a sociedade seria formada por três raças: indígenas, negros e brancos e, uma vez mestiça, inaugura a democracia racial. O negro é visto sob o olhar de proteção do branco, a partir da afeição natural entre as raças, o carinho dispensado e a complementariedade que proporcionam uma a outra. CasaGrande e Senzala operariam uma relação amigável que desconhece preconceitos raciais. Esta perspectiva oculta a desigualdade e tensão existente entre negros e indígenas com seus históricos opressores europeus, abrindo margem para uma falsa noção de democracia racial. Estas marcas coloniais se mantêm até a atualidade, conforme afirma Bosi:

Nos porões bafientos dessa casa que se queria moderna e escancarava as janelas para o sol do porvir, escondia-se um morto, ou melhor, um agonizante, que incomodava a uns e movia a indignação de outros: o cativeiro do negro. Alencar ainda pudera fundir índio e português a

45 golpes de folhetim ou no embalo de sua prosa lírica. Mas negro e branco riscavam-se em um xadrez de oposições sem matizes. (Alfredo Bosi, 1992:246)

A partir da premissa acima, percebemos a relação entre o projeto de modernidade e a colonialidade, ambos interdependentes. A simples igualdade formal de direitos não suplanta a histórica desigualdade já introjetada de modo a reafirmar um pulsar colonial, tampouco garante a democracia racial. Nas palavras de Florestan Fernandes: “infelizmente, como no passado a igualdade perante Deus não proscrevia a escravidão, no presente a igualdade perante a Lei só iria fortalecer a hegemonia do ‘homem branco’” (Fernandes, 1978:254). Em outras palavras, igualdade legal não se reflete necessariamente em igualdade objetiva, mas muitas vezes contribui para a manutenção das desigualdades vigentes. A ideologia da “identidade nacional”, por sua vez, se constitui segundo outros condicionantes. A primeira grande distinção diz respeito à consideração da diferença, ou seja, a identidade nacional é definida não apenas com que é peculiar ao interno, de forma monolítica, como é percebida em sua diferença com o outro exterior. Há ainda o jogo entre o individual e o social. O plano individual se refere à consciência do sujeito, enquanto o social teria seu lugar ocupado na divisão do trabalho, sua condição de classe. A construção da “identidade nacional” se dá no déficit, no desvio entre o que falta ao povo brasileiro, tendo como símbolo de completude as sociedades capitalistas europeias, o outro a ser diferenciado. É em contraposição a estes países de desenvolvimento completo, em uma concepção de tempo linear, que o Brasil aparece caracterizado em seu subdesenvolvimento, nas lacunas e faltas. Não se caracteriza pelo que é, mas por aquilo que deixa de ser. A condição do negro, segundo a ideologia da “identidade nacional”, por sua vez, estaria identificada à condição de classe. Sua caracterização se dá a partir da instituição da escravidão, tida como violência orquestrada por brancos, funcionando como objetificação e alienação da população escravizada. Embora reconheça a violência, esta também se mostra problemática, ao passo que encara o negro apenas segundo a instituição da escravidão, despojando-os de suas condições individuais, de homens e mulheres constituídos e constituidores de histórias.

46 O conceito de nação realizou câmbios significativos desde sua invenção até hoje. Se no início, de 1830 até 1980, a construção da ideia de nação era objeto de desejo da direita à esquerda, hoje ela não ocupa espaço menos importante, apenas mudou seu caráter. Segundo Marilena Chauí (2000), hoje ela foi deslocada para o campo das representações já consolidadas e continua a cumprir importante papel no cenário político, entre eles legitimar nossa sociedade autoritária, oferecer subsídios para tolerância de diversas formas de violência e servir de parâmetro para classificar políticas denominadas de modernização do país. Os discursos que conformaram o sentimento coletivo nacional e o imaginário do ser brasileiro não teriam sua potência, nem eficácia, se não houvessem encontrado meios de se propagarem na sociedade. Neste sentido, além de propagandas oficiais e do esporte, conforme descrito anteriormente, a escola assume papel fundamental. É através do currículo escolar, um dos braços do Estado, que estes discursos ganham a massa populacional, especialmente no ensino de Geografia, História e Língua Portuguesa. Obviamente não repetimos aqui a tese de Althusser sobre a determinação dos valores transmitidos pela escola enquanto um aparelho ideológico de Estado, ocultando os sujeitos e suas práticas, contudo um certo grau de influência é inegável. No ensino escolar de Geografia, se espera que os estudantes aprendam sobre os limites territoriais do Estado Brasileiro, sua população e o modo de viver cada uma de suas regiões. Neste movimento, é possível que se defenda que somos todos fruto da miscigenação entre brancos, indígenas e negros e nossa riqueza populacional resida nesta grande diversidade que se expressa espacialmente de maneira regional. Embora se diga diversamente rico, de modo paradoxal, pode cristalizar estigmas de um Nordeste árido em vida e cultura frente à pujança de um Sudeste que se abre à indústria e desbrava novas escalas. Ainda, pode estigmatizar cada uma das raças que compõem nossa população, atribuindo-lhes funções diferentes e hierarquizadas nesta sociedade racializada que oculta sua forma piramidal. Uma análise da Educação não se mostra eficiente se prescinde de sua face política e social. Sendo o Estado brasileiro nascido do seio do período colonial e dele tributário percebemos que sua trajetória não buscou romper com padrões de poder e de saber que retomavam este período, ao contrário, o Estado brasileiro reafirmou padrões da

47 colonialidade do poder e do saber. Ainda que realizasse mudanças de figuras e regimes políticos, em maior ou menor grau, havia a reprodução deste modelo. Do mesmo modo, a Educação como braço do Estado, a partir de currículos nacionais, o auxiliava neste movimento. É neste sentido que a escola empreenderá seu papel de conformadora de uma identidade nacional, sobretudo nas disciplinas de Geografia, História e Língua Portuguesa. Espaço, tempo e língua estavam em comunhão para buscar um sentido comum para o nacionalismo presente que não cessava em nascer. O currículo escolar de Geografia, nosso principal objeto de análise, atuava para conformar nos estudantes uma identidade nacional baseada no território. Tradicionalmente de caráter altamente descritivo, discursava não apenas sobre a base física do espaço, mas também sobre os sujeitos. Neste ato em que um descreve o outro, o descrito se encontrará sempre em posição deficitária em relação ao primeiro. O ato de descrever carrega consigo as marcas do parco conhecimento e dos estereótipos. Como argumenta Homi Bhabha (2005:105): “um aspecto importante do discurso colonial e sua dependência do conceito de ‘fixidez’ na construção ideológica da alteridade”. Ainda segundo o autor, o estereótipo é a principal estratégia discursiva do regime de verdade colonial, “e uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre "no lugar", já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido” (idem). Não nos cabe julgar o estereótipo como verdadeiro ou não, mas, uma vez reconhecendo seu caráter monolítico e que nega a diferença, encará-lo em seu papel funcional na estrutura colonial de poder em nossa escala de análise: o território brasileiro à luz do ensino de Geografia. Nos capítulos seguintes, reconhecendo a potência do ensino de Geografia na conformação da identidade nacional, buscamos verificar como os professores e como os livros didáticos de Geografia, respectivamente, se organizam a partir desses discursos, se lançam mão de estereótipos sobre populações e suas espacialidades e em que medida contribuem para a manutenção da colonialidade do poder e do saber. Desvelando os discursos presentes no ensino de Geografia, podemos compreender quais forças da sociedade detêm a hegemonia do poder de organizar seu currículo; quem detém o poder de descrever o outro, aqueles que estão sendo descritos,

48 bem como a forma que isto se apresenta. Compreender estas narrativas significa compreender a forma como lemos o Brasil, seu território e os sujeitos que o constituíram.

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3. Colonialidade, Prática Docente e Livro Didático: a formação territorial do Brasil no cotidiano escolar

Os livros didáticos são parte importante do ensino escolar. Neles estão os conteúdos que orientam o trabalho de boa parte dos professores e são o principal referencial de formação de milhões de estudantes. Temos claro que o livro didático não irá determinar o processo de ensino-aprendizagem, uma vez que a formação do estudante passa necessariamente por diversos condicionantes, explícitos, ou implícitos, no currículo formal. Dada a sua abrangência e capacidade de influenciar no processo de ensinoaprendizagem, é necessário voltar nossa atenção a como este material vem sendo trabalhado em sala de aula e que discursos ele veicula. Verificaremos neste capítulo como os educadores lidam com os livros didáticos em suas práticas docentes, buscando analisar se são promovidas ações que tensionem noções de colonialidades do saber e do poder.

3.1 Caminhos da Pesquisa

O ensino escolar de Geografia ainda tem como uma de suas atribuições esperadas produzir no educando uma identidade nacional, conferida a partir da formação do território. Este processo não é neutro, mas sim constituído a partir da escolha de determinados elementos, grupos e discursos em detrimento de outros. Deste modo, analisar o currículo escolar de Geografia se mostra fundamental para desvendarmos quais são as bases nas quais se constrói tal sentimento de pertencimento. Compreendemos o livro didático como uma das representações mais diretas do currículo formal. Nele se concentram os saberes propostos por meio de textos ou imagens que (re)produzem visões do real e que são apresentadas em sala de aula. Na maioria dos casos, ele não é a única ferramenta utilizada pelo educador, mas, ainda tem potencial de influenciar o processo de ensino-aprendizagem. A partir desta perspectiva, promover uma análise que dialogue entre as práticas docentes e os discursos presentes nos livros

50 didáticos se mostra fundamental para encontrarmos pistas que nos possibilitem a compreensão sobre o ensino de Geografia. Buscamos verificar como os educadores lidam com estes materiais didáticos e se esses livros contribuem para tensionar, ou não, visões cristalizadas que denotam um ranço colonial, marcas das colonialidades do saber e do poder. Para pensar esta questão, organizamos a pesquisa em dois momentos. No primeiro momento da pesquisa, realizamos entrevistas com professores de Geografia a fim de iniciar nossa análise em busca da compreensão do ensino escolar desta disciplina. Embora o currículo formal, materializado pelos livros didáticos, tenha um forte papel no processo de ensino-aprendizagem, ele não é determinante para as práticas pedagógicas. Assim, a dimensão dos docentes adquire importante peso, uma vez que eles são os organizadores e os principais responsáveis pelo desenvolvimento de tais práticas. Foram realizadas entrevistas individuais com cinco professores de Geografia graduados em diferentes instituições públicas de ensino superior do estado do Rio de Janeiro. Os entrevistados foram escolhidos a partir de uma rede de relações construída ao longo de minha trajetória docente e ainda como estudante universitário. Sendo a confiança um fator vital para uma pesquisa qualitativa, este critério de escolha nos foi proveitoso. Dentre os professores entrevistados, dois são graduados pela Universidade Federal Fluminense, dois pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e uma graduada na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além da diversidade de formações, os professores apresentam uma diversidade etária, variando de vinte e cinco a cinquenta anos de idade. Todos são professores atuantes na rede pública escolar estadual e/ou municipal do Rio de Janeiro. A partir das suas entrevistas, é possível refletir sobre o papel destes docentes no ensino básico, como os livros didáticos influenciam em seu cotidiano e como suas práticas docentes contribuem, ou não, para a desconstrução de noções que denotam colonialidade do poder/saber. As entrevistas foram guiadas a partir de onze perguntas (Anexo I) que indagavam acerca de suas concepções dos livros didáticos, a relação dos docentes com estas obras em suas aulas, as abordagens sobre os povos que participaram da formação territorial do Brasil, como lidam com eventuais estereótipos e como sua formação acadêmica contribuiu para um tensionamento dos estigmas construídos em torno destes povos.

51 Buscamos verificar como eles lidam com os livros didáticos em suas aulas, de modo geral, e com a formação territorial do Brasil, de modo específico. Ao longo da análise das entrevistas, abordamos, necessariamente, a formação docente e a Geografia acadêmica, refletindo sobre como o currículo do ensino superior de Geografia abriga ou tensiona visões de colonialidade. Uma reflexão acerca do educador e sua formação se mostra importante devido aos necessários esforços empreendidos para a abertura de brechas que promovam um ensino que desaloje conceitos de colonialidade. O rompimento com o atual padrão de poder-saber só pode se dar a partir de uma prévia reflexão e revisão crítica de aportes teóricos e práticas pedagógicas. Sem uma formação em nível superior, ou continuada, que lhes proporcione o encontro com o debate descolonial, dificilmente estes conceitos serão desalojados. No entanto, não temos como foco principal uma análise profunda sobre os discursos universitários e a formação acadêmica ampla, pois priorizamos a análise de aspectos dos livros didáticos e na relação dos professores com estes. No segundo momento da pesquisa, analisamos os discursos presentes nos livros didáticos de Geografia. Para tanto foram selecionados dois livros didáticos: Projeto Araribá (Editora Saraiva) e Jornadas.Geo (Editora Moderna), ambos do 7º ano do Ensino Fundamental, período em que é abordada, com maior ênfase, a formação territorial do Brasil. Esses livros selecionados foram aprovados pelo PNLD8 2014, assim como pela Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro, portanto, passíveis de serem escolhidos pelos educadores e comporem suas práticas docentes. Juntos, eles foram distribuídos a quase 4 milhões de estudantes do Ensino Fundamental no Brasil9, obtendo, desta forma, grande potencial de influência no processo de ensino-aprendizagem. A análise dos livros está baseada a partir de quatro aspectos: 1.o que os livros compreendem sobre formação territorial do Brasil; 2. povos que participaram da formação territorial do Brasil; 3.regiões do Brasil e suas abordagens; 4. noções de desenvolvimento presentes nos livros didáticos. No primeiro aspecto, verificamos, de modo amplo, quais as concepções que permeiam as interpretações sobre a formação territorial do Brasil. Buscamos responder questões referentes à marcação da origem da

8 9

Programa Nacional do Livro Didático PNLD 2014

52 construção do território brasileiro, que grupo(s) teria(m) participado da sua formação e se há consideração das tensões de poder ao longo deste processo. Em seguida, visamos verificar como os povos que participaram deste processo são abordados nos livros didáticos e como é construída a representação de seus saberes e histórias. Procuramos desvendar quais povos são representados, de que forma o são, se valorizados em sua diversidade ou encarados a partir de estereótipos, e quais deles nem sequer figuram nas páginas dos livros didáticos analisados. No terceiro aspecto, pretendemos analisar os discursos presentes sobre as cinco regiões do Brasil de acordo com o IBGE: Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Analisamos eventuais distorções de discursos nos livros didáticos, se há criação de estigmas, manutenção e/ou tensionamento de estereótipos. Por fim, examinamos como os livros lidam com o conceito de desenvolvimento a partir dos diversos espaços e regiões do território brasileiro, assim como em sua relação com outras nações. A partir desta dupla análise –prática docente e livro didático - que se complementa, acreditamos ser possível vislumbrar um panorama acerca do ensino escolar de Geografia atual no que tange à formação territorial do Brasil e a construção dos discursos sobre esse processo. Refletiremos em que medida as colonialidades do saber e do poder ainda pautam estes discursos a partir de um saber eurocêntrico. Ao fim da presente pesquisa, serão respondidas questões sobre quais discursos acerca da formação do Brasil são elaborados, reproduzidos ou tensionados em sala de aula por professores a partir dos livros didáticos, com o intuito de analisar o ensino escolar de Geografia.

3.2 O que pensam os professores sobre os livros didáticos?

Como mencionado anteriormente, foram realizadas entrevistas com cinco professores de Geografia da rede pública do Rio de Janeiro acerca de suas visões sobre os livros didáticos desta disciplina e como lidam com eles em suas práticas cotidianas. O perfil dos professores é diverso, tanto em idade quanto em formação, tendo se graduado nas três principais instituições públicas do estado: Universidade Federal do Rio de

53 Janeiro, Universidade Federal Fluminense e Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O objetivo é agregar visões a partir de perspectivas distintas. Os entrevistados são: Thaiana, graduada em Geografia pela Universidade Federal Fluminense, em 2010. Teve uma breve passagem pelo mestrado em Educação, sem concluí-lo, e no momento cursa pós-graduação em Neuropsicopedagogia. Leciona na rede pública do estado do Rio de Janeiro e na rede privada no município de Niterói. Marcos, graduado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense, este no ano de 1991. É diretor-ajunto da rede pública estadual do Rio de Janeiro, tendo experiência anterior na mesma em ensino de Geografia. Também atua como professor na rede pública do município de São Gonçalo. Após a conclusão da graduação, não realizou nenhum outro curso. Rosane, graduada em Geografia no ano de 2002 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Geografia, pela mesma instituição, com ênfase em gestão territorial. Atua como professora de Geografia nas redes públicas municipais do Rio de Janeiro e de Niterói. Realizou diversos cursos de formação continuada promovidos pela Fundação Municipal de Niterói, dentre os quais destaca: competências básicas da educação, com ênfase em legislação brasileira, e discussões sobre a lei 10.639, sobre a inclusão do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Rita, graduada em Geografia no ano de 1992, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Faculdade Formação de Professores – FFP). É professora da rede pública estadual do Rio de Janeiro e da rede particular no município de São Gonçalo. Pósgraduada em Turismo, com ênfase em Museologia. Cursou parcialmente duas pósgraduações, não concluídas, em História do Brasil, e Educação Inclusiva. Atualmente cursa pós-graduação em Gestão, com foco em Orientação Educacional. Simone, graduada em Geografia no ano de 2010, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Faculdade Formação de Professores). É professora da rede pública estadual do Rio de Janeiro. Cursou pós-graduação em Educação Básica (UERJ-FFP) e atualmente cursa pós-graduação em ensino de história e culturas africanas e afrobrasileiras, pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro. Não se configura como nosso objetivo traçar um perfil estatístico sobre o ensino de Geografia do estado do Rio de Janeiro, mas trazer ao debate elementos levantados por educadores e suas relações com este material pedagógico que, em nossa opinião, é o de

54 maior peso no ensino escolar. Nesta seção, traremos as observações gerais de educadores sobre os livros didáticos, suas opiniões em relação à visão de Geografia expressada neles, quais foram os critérios escolhidos para que estes tenham sido adotados pela escola e como lidam com estes materiais didáticos no seu cotidiano docente, reservando o capítulo seguinte à análise da abordagem dos livros didáticos sobre a formação a formação territorial do Brasil. A primeira pergunta que foi lançada aos professores durante a entrevista dizia respeito à visão geral destes sobre os livros didáticos de Geografia. Todos os cinco entrevistados, nesse momento, apontaram somente muitas falhas, ausências e inadequações no que se refere a apresentação dos conteúdos. A partir da nuvem de palavras obtida através das respostas, apresentada na Figura 1, é possível notarmos um panorama sobre estas primeiras impressões. Percebemos a predominância de palavras negativas, como “truncado”, “maçante”, “raso”, “vácuo” e “limitador”. Em destaque, a palavra “mapa” aparece devido aos docentes reconhecerem este recurso como uma necessidade dos livros didáticos, como algo que buscam, não necessariamente uma ferramenta que os livros disponibilizam. Os professores entrevistados apontaram a necessidade de correlacionar os livros didáticos com outros materiais, como mapas e textos jornalísticos. Nas palavras da professora Thaiana: “no geral, eles (os livros didáticos de Geografia) são mais limitadores, mostram o básico do básico e a questão é que quando você se pauta só neles você fica no assunto raso”. Desse modo, tidos os professores entrevistados afirmam não se limitarem ao livro didático, o qual consideram insatisfatório, sempre que podem enriquecem suas práticas cotidianas com materiais diversificados.

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Figura 1 – Nuvem de palavras apresentando a visão geral dos professores sobre os livros didáticos

Essa falta de profundidade dos livros didáticos eventualmente é relacionada à desatualização dos conteúdos, como diz a professora Rita: “eu acho o livro de Geografia um pouco ingrato, porque eles nunca estão atualizados, por conta da área mesmo”. Os professores destacam o papel da Geografia como uma ciência em constante transformação. Segundo eles, esta desatualização dos textos dos autores pode ser sanada por textos jornalísticos complementares, apresentados ao fim de cada unidade. É possível notar o tom em alusão a uma ciência jornalística, ou uma ciência do presente. Partindo das entrevistas percebemos a necessidade de ampliar as fontes de investigação nas aulas de Geografia. Neste sentido, consideramos que é fundamental enriquecer a abordagem com fontes diversas, constituindo-se necessário para uma ecologia de saberes (Santos, 2007), ou seja, retirar da ciência seu posto de saber hegemônico, tornando-a um dos saberes disponíveis postos em diálogo, juntamente com os saberes populares, indígenas, camponeses e, entre outros, também o jornalístico. Entretanto, a fonte jornalística não pode ser a única a dialogar com a realidade atual nos

56 livros didáticos. Temos claro que a Geografia não é uma ciência (apenas) do presente, portanto é fundamental que debata questões contemporâneas, mas não com foco único em uma visão imediatista da realidade, sem buscar análises geo-históricas mais profundas.

Relegar aos textos jornalísticos o debate que tange às questões

contemporâneas significa abdicar da abordagem espacial que cabe aos geógrafos. Segundo os professores entrevistados, o livro jamais pode substituir o professor, sendo apenas uma diretriz, para alguns, ou um apoio, para outros. Deste modo, embora todos tenham feito duras críticas aos materiais disponíveis, alguns ainda os mantêm como guias de suas práticas. A explicação mais dialógica sobre o porquê da maioria dos professores pesquisados basearem suas aulas pelo livro didático é algo que não poderemos desenvolver nesse momento. No entanto, podemos levantar alguns indícios, como a polivalência, tendo em vista que os professores entrevistados trabalham ao menos em duas escolas, resultando em escasso tempo para planejamento e busca de fontes alternativas, além da formação acadêmica, muitas vezes insatisfatória para este fim, apontada por eles em seus depoimentos. A linguagem utilizada foi outro ponto levantado quando indagados ainda sobre a visão geral dos livros didáticos. Todos destacaram que o vocabulário expresso nos textos não condiz com a realidade vivenciada pelo aluno, dificultando-lhes a inteligibilidade do conteúdo. Estes textos com vocabulário distanciado da realidade do aluno, geralmente longos, tornariam os livros maçantes, reduzindo o interesse dos estudantes. Segundo o professor Marcos:

[...] Os livros são muito truncados. Eles são difíceis para o aluno, uma vez que você encontra hoje, cada vez mais, alunos desinteressados e sem hábito de leitura [...] Então, livro muito maçante, mais expulsa o aluno de ler do que o atrai.

Quatro dos cinco entrevistados discordam da maneira como os livros apresentam seus textos, sobretudo quanto à extensão. Nesse sentido argumentam que textos longos não despertam interesse da leitura. Tal qual no depoimento acima, outros utilizam como forte argumento a ausência do hábito de leitura, porém não há consenso para tal questão.

57 Enquanto parte dos entrevistados advoga em favor de textos resumidos, a professora Rita discorda. Segundo ela, um texto resumido estancaria o crescimento do aluno e limitaria as possibilidades do professor. Em suas palavras:

Eu não concordo com um texto resumido para um livro. É o aluno que resume. Eu não quero um livro resumido. Para quê? Ele vai aprender tudo fragmentado? Não. Eu acho que você tem que ter um livro com conteúdo bom, que possa, de repente, utilizar como pesquisa ou utilizar como forma de trabalho. Aí você pode usar o livro de várias formas, você não precisa usar o livro só de uma forma. Você pode diversificar a sua forma de trabalho. Um livro resumido te permite trabalhar aquilo ali só daquela forma. Agora, um livro que tem uma leitura mais ampla, com um texto menos condensado, faz com que você possa trabalhar o livro de diversas maneiras. E acho que isso faz com que o aluno cresça. (Rita)

Descrevendo o processo de escolha dos livros didáticos em uma das escolas em que leciona, a professora prossegue:

Os professores falavam: “os alunos de Ensino Médio aqui da escola têm um nível muito baixo, tem que escolher um livro bem fácil.”[...] Se você pegar um livro de baixa qualidade, é ruim, porque aquele aluno que não gosta muito de estudar vai ficar naquilo ali. (Rita)

A partir deste depoimento, notamos como ainda é recorrente a visão de alguns professores de deslegitimar o conhecimento dos estudantes em detrimento de um saber escolar formal. Neste movimento não apenas o que ele sabe é subjugado, mas também o próprio sujeito, considerado alguém com “nível muito baixo” por não dialogar da maneira esperada com conhecimentos instituídos. Esta avaliação denota um forte traço da colonialidade do saber, chamado por Boaventura de Sousa Santos (2007) de monocultura do saber, a noção de que o único conhecimento legítimo e rigoroso é o científico ocidental. Tal monocultura reduz a experiência, ao passo que deslegitima conhecimentos construídos fora dos muros acadêmicos. Para além deste fato, é negado ao aluno o acesso a outros meios de informação, enclausurando-o em sua realidade imediata. Nesta visão,

58 caberia aos estudantes um livro mais raso e fácil, já que estes não são considerados capazes de compreenderem textos mais extensos e rebuscados. A situação vivenciada em sala de aula e comentada pelos professores, de fato, é real. Verifica-se constantemente estudantes sem o hábito de leitura formal, embora pratiquem outras leituras em outros meios, como redes sociais. Os livros didáticos, muitas vezes, são o único material de leitura formal disponível a estes estudantes. Desse modo, se limitarmos este instrumento pedagógico a mero catálogo de imagens com textos reduzidos a poucos parágrafos, seu papel potencial de despertar o interesse e hábito da leitura fica minimizado. Ressalta-se, ainda, a incapacidade de promover debates e estudos satisfatórios a partir de textos tão condensados. Quando comparados pontos positivos e negativos destacados pelos professores sobre os livros didáticos de Geografia, percebemos a supremacia dos negativos. Todos os entrevistados demonstraram grande dificuldade para ressaltarem o que o livro traz de positivo para o cotidiano escolar, com pedidos, inclusive, para que a pergunta fosse retomada posteriormente, já que não encontravam resposta imediata. Em um balanço numérico, percebemos que os docentes levantaram vinte e sete pontos negativos contra apenas sete pontos positivos. Em análise a estes últimos, notamos ainda que muito do abordado encontra-se como uma necessidade que os livros deveriam reconhecer, mas não o fazem ou, na visão de uma das professoras, “ainda estão engatinhando”. Percebemos os principais pontos negativos e positivos levantados pelos professores a partir das Figuras 2 e 3, respectivamente.

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Figura 2 – Nuvem de palavras apresentando os pontos negativos dos livros didáticos, segundo os professores

Figura 3 – Nuvem de palavras apresentando os pontos positivos dos livros didáticos, segundo os professores

60 O texto, conforme abordado anteriormente, classificado pelos professores como “distante”, “maçante”, “truncado” e “cansativo”, é o ponto mais criticado dos livros, embora outras deficiências sejam levantadas. É recorrente o uso da palavra “distante”, para se referir ao quão descolado estão os conteúdos apresentados no livro e a realidade dos estudantes. Como diz a professora Rosane: “sempre acho que está distante, mas alguns são absurdos. Tem alguns autores que não têm noção do que está acontecendo na sala de aula”. Segundo a professora Thaiana: “é uma Geografia que está sempre distante. Ela está trabalhando o espaço, ela está falando do espaço, mas como se o espaço não fosse o espaço do meu aluno. Eu sinto um pouco superficial e distante da realidade do aluno”. Pelas suas experiências com os livros, os professores ressaltaram a predominância de temas globais em detrimento de abordagens que aproximem à realidade do aluno e à prática. Nenhum deles advoga por um empirismo, mas em favor da construção de pontes para maior inteligibilidade do conteúdo. Segundo eles, da forma como o livro está posto, não proporciona a inserção do aluno ao conteúdo. Os textos apresentados não demonstram uma interconexão de conteúdo, apenas uma visão estanque, impossibilitando que o estudante construa uma visão crítica e relacional. Segundo o professor Marcos: “querendo ou não ainda é uma visão muito compartimentada. Você não tem hoje uma Geografia que realmente leve o aluno a discutir papéis importantes”. Com a ausência de textos críticos, apresentando uma visão superficial do mundo, chega-se a dizer que “o livro do (Ensino) Fundamental não faz o aluno pensar” (Rita). Percebemos, a partir da análise destas falas, que os livros didáticos, instrumento pedagógico mais acessível ao aluno, mais o repele do que o convida ao estudo. E, quando o faz, é de maneira insatisfatória, maçante e descritiva. A ilustração é outro ponto denunciado como deficiente. Algumas coleções, de acordo com os entrevistados, só apresentam textos, sem associação a mapas ou figuras, o que, na visão dos professores, também contribuiria para afastar os alunos. Deste modo, valorizam quando as coleções conseguem apresentar um bom aporte iconográfico, além de gráficos e tabelas. Como mencionado anteriormente, sempre que os entrevistados tratam do que há de positivo no material, nota-se um tom de recomendação, ou seja, o que os livros didáticos deveriam trazer, contudo geralmente deixam a desejar.

61 Evidentemente, as imagens atraem a atenção dos estudantes, que automaticamente fazem a associação entre elas e o conteúdo apresentado. No entanto, quando os professores abordam o tema da ilustração, em sua maioria o fazem sempre de modo. Ao contrário dos textos, geralmente não há um qualificativo crítico para as imagens, demonstrando como elas precisam ser. As imagens, como é possível inferir a partir das entrevistas, precisam apenas estar. Contrária a esta perspectiva está a professora Simone, ao comentar sua prática:

Eu uso (as imagens) principalmente para a gente conseguir problematizar. Por exemplo, se eu for falar de formação do território brasileiro e o livro colocar a caravela, e depois colocar o índio. E colocar o índio com aquele negócio na boca atravessado, com um cocar, todo pintado de vermelho. E colocar um escravizado na senzala, triste. É um recurso imagético perfeito para você desconstruir a ideia de Brasil. O livro quer que você acredite de fato que eram aquelas pessoas que auxiliaram, contribuíram na formação do território brasileiro. Elas não contribuíram, elas formaram. (Simone)

Percebemos nesta fala o uso do conteúdo do livro didático servindo na prática docente como contraponto ao que se quer trabalhar. A professora utiliza o material para denunciar a colonialidade impregnada nos livros didáticos e tensioná-la, não reproduzíla. Assim, percebemos claramente que o conteúdo impresso nos livros didáticos não determina as práticas, mas pode também servir para sua desconstrução, mesmo que o objetivo na sua confecção não tenha sido esse. Apesar desta ressalva feita pela professora Simone, é possível notar o poderoso papel que as imagens desempenham não apenas no imaginário dos estudantes, como esperado, mas também dos educadores. De acordo com o tom da maioria das entrevistas, elas têm o caráter de ilustrar o conteúdo, como se não fossem, as próprias, parte integrante do conteúdo. Apenas uma professora entrevistada mencionou a análise à qualidade das imagens e o que elas trazem. Os outros quatro abordam simplesmente a existência ou não do material. Não há ao longo destes depoimentos o reconhecimento da imagem como um discurso em si mesma. Ela não é encarada como algo que carrega valores, intenções e

62 necessita de uma análise tão minuciosa quanto o texto, ou talvez ainda maior, tendo em vista as declarações afirmando que os alunos não se interessam pelo texto escrito. A partir do reconhecimento da deficiência dos textos dos livros didáticos, os professores declaram valorizar coleções que trazem textos de fontes alternativas, em especial jornalísticas. De acordo com a professora Rosane:

Eu escolho muito a coleção pelos textos que vêm acrescentando, que vêm comentando o assunto, um texto jornalístico. [...] Agora, o texto do livro em si, do autor, fica muito distante do vocabulário do meu aluno. A parte textual da explicação do próprio autor eu não uso. (Rosane)

Neste caso, os livros são utilizados de maneira mais frequente como bancos de imagens e de textos jornalísticos, ao menos em sala de aula. A mesma realidade é percebida entre os demais professores. Quando indagados sobre como trabalham com os livros em suas aulas, todos negaram a utilização dos seus textos, baseando-se nas críticas já expostas, lançando mão dos seus recursos imagéticos, gráficos e textos jornalísticos. Assim é a relação no interior da sala de aula, ao menos. Fora dela, contudo, os livros didáticos se mantêm como instrumento de estudo, muitas vezes o único, para diversos alunos. Os textos jornalísticos, ao mesmo modo das imagens, não foram criticados em seu conteúdo. A visão dos professores se refere quanto à sua existência, ou não, nos livros didáticos, reconhecendo a presença destes instrumentos como enriquecedores do processo de ensino-aprendizagem. De acordo com o depoimento da professora Rita: “Eu gosto quando os livros trazem alguma reportagem que tenha relação com o conteúdo, algum artigo. São poucos os livros. [...] Eu acho que ajuda bastante para que o aluno possa fazer uma reflexão”. É nestes textos complementares que figura, na opinião dos professores, a reflexão mais crítica contida nos livros didáticos. Também são estes os que construiriam a ponte entre o saber geográfico e o cotidiano do estudante. Deste modo, notamos quão distante dos estudantes se encontram os autores e a própria Geografia. Não tem sido demonstrada

63 nos livros didáticos a capacidade em dialogar com a realidade, fazendo análises a partir do saber geográfico. Este papel tem sido relegado a textos sem a capacidade de apresentar ferramentas necessárias para uma compreensão do espaço geográfico, apenas a apresentação de fatos do cotidiano. Realizar a crítica apenas ao fim de cada unidade, e em textos sem cunho geográfico, se revela problemático. A crítica não deve ser algo que venha como complemento, acessório, mas deve estar impregnada no conteúdo. Organizar os livros didáticos dessa forma, complementando conteúdos descritivos com textos jornalísticos nos quais são representados elementos até então ocultados, é um traço que Santomé (1995) chama de “currículo turístico”. Esta organização não permite abordar com a profundidade necessária questões geográficas e a diversidade dos povos, apenas passa por elas, como turistas em suas viagens. Serve para que os estudantes atuem como espectadores de uma realidade distante e depois retornem ao conteúdo descritivo da unidade seguinte. Deste modo de apresentação fragmentada, os estereótipos dos povos e dos seus espaços são mantidos e as contradições ocultadas. Um material que vise descolonizar povos e saberes instituídos ou que deseje ser crítico, não pode prescindir de uma reflexão integralmente crítica. Todos os professores entrevistados, em maior ou menor medida, indicaram que os livros didáticos de Geografia ainda apresentam uma visão predominantemente descritiva. Contudo, revelam que já existe um movimento inicial para além da mera descrição, introduzindo elementos antes inexistentes e indicando, talvez, o engatinhar a uma Geografia Crítica. De acordo com a professora Rosane:

Não acho que seja uma Geografia Crítica. Acho que existem apontamentos para começar a pensar. Crise disso, crise daquilo, já aparece no livro. A palavra crise já é importante, porque provoca uma discussão. [...] Eu acho que é um início, mas não é Geografia Crítica. Acho que isso depende ainda mais do professor, provocar isso, levar o aluno para isso. [...] Acho que o livro é mais isso: o mundo está posto, o mundo é assim. Mas por que é assim? É assim mesmo? Não há um outro jeito? Não tem pessoas fazendo diferente? Essas discussões não aparecem nos livros, não.

64 De acordo com a Professora Simone, os livros expressam os conteúdos do ponto de vista crítico, no entanto a partir de parâmetros marxistas clássicos, os quais considera inadequados para o momento atual. Em sua fala: “Eu acredito que a Geografia crítica tinha que saber se criticar. Porque a Geografia Crítica foi crítica durante um tempo, então ela precisa rever essas bases de criticidade onde se formou”. A professora classifica este como um momento de reflexão necessária para todos e conclui que “a gente (os professores) tem um papel importante nisso, porque a gente está ressignificando essa Geografia dentro da escola”. Neste sentido, os professores entrevistados divergem sobre as visões de Geografia que são expressadas nos livros didáticos. Percebemos interpretações do livro didático como um reprodutor desde a Geografia Clássica e Descritiva até a Geografia Crítica. Apesar das divergências, todos apontam para um momento de insatisfação à forma como a Geografia vem sendo abordada nos seus livros didáticos. Nas entrevistas, procuramos descobrir também como os professores interpretavam os discursos presentes nos livros didáticos acerca dos povos que participaram da formação territorial do Brasil. Nas palavras da professora Rita:

Eu vejo a visão igual à do meu tempo, quando eu estudei, no tempo da carochinha, dos colonizadores. É muito ridículo você ainda ver isso. Ainda tentam colocar a forma imperialista, a ideia de que a cultura europeia é a mais certa.

Além da denúncia de uma Geografia Escolar que pouco se renovou, as falas dos professores convergem na denúncia de estereótipos e preconceitos sobre os indígenas e africanos que formaram o território brasileiro. De acordo com a professora Simone:

Há uma completa ausência. Uma ausência enquanto personagens ativos. Parece que há sempre uma passividade muito grande. Como se dissesse: “eles sempre existiram, mas eles só existiram porque tinha o europeu para ele existir”. Claro que tinha que ter o europeu, ele que

65 causou tudo isso. Mas aí se invertem alguns papéis e, de novo, estes personagens são distorcidos, os acontecimentos são mais distorcidos que os personagens e o lugar é só, realmente, uma base física.

Esta fala revela elementos muito importantes ao denunciar a reprodução do

pensamento eurocêntrico nos livros didáticos e a ausência de críticas a uma lógica que submeteu não só corpos, como mentes. Ao apagarem ou distorcerem povos, os livros didáticos seguem a lógica do pensamento único, reproduzindo uma história que se diz homogênea, linear e sem conflitos. Nesta narrativa, os europeus seriam os detentores da história, enquanto povos originários apenas espectadores. Para este mesmo sentido, aponta a professora Rosane:

A visão eurocêntrica ainda é dominante. Os indígenas aparecem em terceiro plano. Não é nem em segundo. No segundo, acho que vão aparecer os escravos. Não os negros, o povo negro que veio. Não, os escravos, que são um grupo tratado como igual. [...] Fica mesmo naqueles saberes do primeiro segmento: como era a vida do índio, índio que gostava de tomar banho, do arco e flecha. Não sai disso, não rompe para uma coisa mais profunda, mais interessante. Ou mesmo o conflito em si, como foi o conflito.

De acordo com o depoimento da professora, é possível afirmar que há nos livros didáticos de Geografia a manutenção de um imaginário herdado desde a criação do Mito das Três Raças. De acordo com este pensamento, cada raça possui um atributo que será transmitido às gerações seguintes. No processo de composição miscigenada do povo brasileiro, seríamos a junção das raças europeia (português), negra, e indígena, adquirindo os atributos intrínsecos de cada uma. Ao essencializar cada cultura, esta perspectiva lhes nega a complexidade, além de ocultar os conflitos coloniais do decorrer desta miscigenação. Podemos afirmar que as falas de todos os professores convergem na denúncia de um material didático que supervaloriza os portugueses e sua cultura em detrimento dos

66 demais povos que formaram o território brasileiro, sobretudo indígenas e negros. Este predomínio se dá não apenas de acordo com a dimensão militar, mas também do ponto de vista econômico e subjetivo. Neste sentido, os livros didáticos não contribuem com um tensionamento do atual padrão colonial de poder-saber que está posto. Uma vez que os professores de maneira unânime afirmaram identificar estereótipos e preconceitos na abordagem dos povos, lhes foi indagado a maneira como lidam com o problema em sala de aula. As estratégias utilizadas são as mais diversas. Nas palavras da professora Rosane:

Eu lido desconstruindo. Eu faço muitas perguntas que às vezes eles ficam pensando. Mas é assim mesmo? Você acha que todo mundo é igual? [...] Quando eles são cruéis uns com os outros, quando um chama o outro de paraíba, eu paro a aula. “-Ah, você é da paraíba?” –“Não, professora, eu sou do Pará.” “Ah, do Pará! Mas vocês sabem onde fica o Pará?” Aí muda tudo.

Em sentido semelhante, afirma a professora Rita:

Tento desmistificar. Até a questão do índio e indígena. Não falar índio, é indígena. Até essas mudanças nas falas. Preto, negro. [...] Até essa situação você tem que colocar, para começar a tirar essas falas, do jeito que eles [os alunos] colocam. Também por muitos anos foi dessa forma. Até os pais deles estudaram dessa forma, aí reproduzem isso para os filhos.

A partir destas duas falas, percebemos o necessário tensionamento realizado em sala de aula em prol da desconstrução dos estereótipos vigentes. Na fala da professora Rita, há ainda a importante referência à dimensão da linguagem. Refundar conceitos, formas de classificação e nomenclaturas é condição sine qua non para um movimento educacional que visa descolonizar o poder e o saber. De acordo com Roland Barthes (1980:169): “A linguagem do oprimido tem como objetivo a transformação, a linguagem

67 do opressor, a eternização”. Neste sentido, verificamos que termos estão impregnados de intencionalidade e à serviço de sua manutenção. De acordo com esta mesma abordagem, buscando analisar como os professores lidam com os estereótipos e preconceitos dos povos na formação territorial do Brasil, a professora Thaiana afirma a partir de um exemplo:

Outro dia até um aluno falou, enquanto eu estava falando da vinda dos negros: “poxa, o negro na história é sempre o maltratado, o escravizado”. Aí eu aproveitei o gancho para falar de cultura africana, as coisas boas que eles trouxeram para a gente.

Neste sentido, verificamos que a professora opta por uma dimensão da valorização dos povos originários e afrodescendentes. Este processo pode funcionar como incentivador do autorreconhecimento dos estudantes enquanto negros, indígenas ou outros grupos historicamente subalternizados. Contudo, a dimensão da positividade não pode ocultar a violência sofrida, transmitindo-lhes a ideia da pacificidade durante o processo colonial. No mesmo sentido da desconstrução destes estereótipos, a professora Simone diz:

O que eu tenho tentado fazer muito é justamente a mudança do eixo narrativo. Por exemplo: quando eu comecei a trabalhar cartografia, a gente começou pela África. [...] E quando a gente começa a problematizar, a gente consegue identificar os conflitos.

Verificamos que o caminho encontrado pela professora, ao contrário dos demais depoimentos, visa romper não apenas com estereótipos no momento em que eles surgem durante as aulas, mas reformula a metodologia de ensino e organização curricular de modo que eles não baseiem a prática. Nesta perspectiva, trata os temas esperados do ensino escolar de Geografia a partir dos povos subalternizados. Não fala sobre eles, de

68 modo turístico, apenas passando, como apontam fazer os livros didáticos, mas proporciona um ensino impregnado destes povos, a partir deles e de seus saberes. Assim, a professora subverte o padrão atual e gera uma nova lógica mais efetiva em direção a uma Geografia descolonial, ao negar a perspectiva eurocêntrica. Curiosamente, ao relatar os resultados desta prática, a professora Simone diz:

Duas meninas na avaliação final do ano passado falaram que as professoras de Geografia e História tinham fixação por africano e por índio. E quando nós demos o feedback para eles, nós dissemos: vocês estão acostumadas a uma história tão branca, que quando a gente começa a colorir essa história, parece que sempre foi colorido. Mas não foi. Nunca te deram lápis de cor.

Neste depoimento, é possível perceber o estranhamento dos estudantes com uma prática que inverte a perspectiva e centra a narrativa em povos subalternizados. Aqueles que sempre foram marginalizados no currículo, quando assumem papel central, geram a impressão de terem uma abordagem mais ampla do que a necessária. Em direção contrária aos demais professores entrevistados, temos o depoimento do professor Marcos. Ao indagado como lida com os estereótipos que disse reconhecer nos livros didáticos, afirma:

Para ser sincero eu nunca parei para lidar. Você está falando, eu estou tentando buscar eu ter trabalhado de uma forma diferenciada. Não, nunca busquei. Nunca segui dessa forma. Até porque eu trabalho, por exemplo, em uma comunidade que é bem complicada. Ali é muito difícil. Eu não procuro estabelecer isso como objeto de estudo. Não sei se é erro meu, não sei se é porque você já está com vinte e poucos anos (de profissão) e você vai na dinâmica do negócio.

69 Este posicionamento, embora busque justificativas, não cumpre o papel de um ensino voltado à antimarginalização de grupos, povos ou culturas, à medida em que simplesmente reproduz o saber expressado nos livros didáticos, sem tensionamento. Desta forma, não apenas os povos que participaram da formação territorial do Brasil são marginalizados do ensino, como os próprios estudantes o são. Ao não terem os saberes dos seus povos, historicamente subalternizados, reconhecidos em sala de aula a partir da negação dos estigmas expressados nos livros didáticos, se promove a marginalização dele mesmo. Além de uma educação que negue a geo-historicidade a negros e indígenas, seus efetivos desempenhos na construção do território brasileiro, se nega a própria valorização destas identidades, por conseguinte a valorização destes estudantes em sala de aula. Quando indagados sobre a abordagem destes povos em suas formações acadêmicas, apenas a professora Simone relatou ter tido disciplinas nas quais estes debates vieram à tona. Entre eles, destaca o trabalho do professor Renato Emerson dos Santos, na UERJ-FFP, em sua disciplina sobre formação territorial do Brasil. Todos os demais afirmaram não terem participado de nenhum processo formativo que lhes proporcionasse um olhar diferenciado sobre estes povos. Este é um dado preocupante, afinal demonstra que a Geografia Acadêmica não tem tido abertura para o pensamento descolonial ou ao menos uma educação que vise romper com alguns padrões de subalternização de povos indígenas ou afrodescendentes. Dessa forma, embora negando uma visão determinista, os professores recém-formados não terão um acúmulo teórico que lhes auxilie a romper com as colonialidades do poder e do saber. Muitas vezes, estas sequer serão reconhecidas. A partir do material pesquisado, observou-se que todos os professores entrevistados utilizam os livros didáticos em suas aulas de alguma maneira. Para além do cotidiano escolar, todos afirmaram utilizá-los como instrumento de planejamento, em maior ou menor grau, revelando o papel que os livros didáticos desempenham no processo de ensino-aprendizagem, não apenas em relação aos alunos e seus estudos, mas também aos professores e suas práticas docentes, tendo seus textos e imagens um papel norteador. Apesar do uso por todos os entrevistados, este processo não é feito de modo automático e sem críticas.

70 De acordo com os professores, a Geografia é apresentada nos livros didáticos como a ciência que possibilitará a compreensão do mundo. Cabe indagar que tipo de compreensão será possível a partir dos elementos indicados pelos entrevistados. De fato, é possível que o aluno desenvolva uma compreensão do mundo de maneira autônoma, crítica e que desaloje conceitos coloniais a partir do que os livros didáticos oferecem? Esta será uma das questões trabalhadas no capítulo a seguir.

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4. Abordagens, representações e visões sobre a formação territorial do Brasil nos livros didáticos de Geografia

Os livros didáticos desempenham importante papel na educação escolar, fornecendo elementos diretos do currículo mínimo e exercendo um contato direto entre os conteúdos propostos e os educadores. Nesse sentido, consideramos importante refletir não apenas sobre quais grupos figuram nos livros didáticos de Geografia, mas de que forma estão sendo representados, a fim de verificar se este material auxilia a romper ou reforçar traços que denotam colonialidades do saber e do poder. Portanto, voltar nossa atenção à análise deste material se revela fundamental para melhor compreensão do ensino de Geografia que está posto. As análises existentes sobre o livro didático agregam várias questões, dentre as quais, a indústria editorial se destaca sendo um negócio que movimentou, apenas no último ano, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), um montante maior do que um bilhão de reais10. Este valor se refere apenas à aquisição de novos livros, repassado às editoras, excluindo os custos de distribuição. Discutir os interesses e discursos das grandes editoras mostra-se uma necessidade urgente, e configura-se como nosso objetivo neste capítulo. O PNLD é um programa do governo federal brasileiro, relacionado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Seu principal objetivo é prover as escolas públicas do país com livros didáticos, obras literárias, obras complementares e dicionários. O programa é realizado em ciclos trienais alternados, ou seja, a cada ano um segmento (primeiro segmento do Ensino Fundamental, segundo segmento do Ensino Fundamental e Ensino Médio) da educação recebe novos livros e os utilizará por três anos, de modo que com o passar desse período todos os segmentos já haverão realizado suas escolhas. A distribuição deste material didático não se dá de modo aleatório. Através do PNLD, as unidades escolares recebem diversas opções e o conjunto dos professores de cada disciplina é responsável por escolher a coleção que será adotada para o triênio 10

http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-dados-estatisticos

72 subsequente. Tendo em vista o grande volume de dinheiro envolvido, não é raro encontrarmos representantes das editoras visitando a escola. Visando convencer os professores no momento da escolha, esses representantes lhes oferecem brindes e coleções digitalizadas em CD-ROM, uma realidade inacessível ao aluno, ao passo em que este recebe apenas a unidade física do livro. Os livros são reutilizáveis pelo período de três anos, cabendo ao aluno devolvê-lo à unidade escolar no fim do ano letivo. Para que as coleções sejam passíveis de serem adotadas nas escolas, é preciso que tenham sido aprovadas por uma comissão organizada pelo próprio PNLD, atendendo a diversos critérios. No entanto, muitos desses critérios tratam apenas da inserção de alguns grupos ou debates nos livros didáticos, não havendo uma atenção maior à forma como esta abordagem se dá. Além disso, ainda que atendam parcialmente aos critérios prédefinidos, os livros estarão disponíveis para a escolha dos professores. Analisar a totalidade dos livros didáticos, toda a sua complexidade, facetas e conceitos seria um trabalho extremamente enriquecedor, mas também muito extenso e inviável tendo em vista os prazos limitados que se impõem. Neste sentido, nossa análise será realizada em dois livros didáticos de Geografia, percorrendo quatro categorias: a interpretação contida nos livros sobre a formação do território brasileiro, a abordagem dos povos participantes da formação territorial do Brasil, as regiões do Brasil e as noções expressadas de desenvolvimento. Temos convicção da importância de outras categorias de análise, como abordagens sobre gênero e relação campo/cidade, contudo, dado o prazo de pesquisa, um recorte se fez necessário. Não pretendemos com esta análise esgotar o debate, devido às razões expostas, mas acreditamos que as dimensões escolhidas nos proporcionem uma boa amostra sobre como a colonialidade do saber ainda se mantém impregnada no ensino escolar de Geografia, sobretudo ao que se refere à formação territorial do Brasil. Realizaremos um mergulho em duas obras de Geografia voltadas para o 7º ano do Ensino Fundamental: Projeto Araribá (2010)11 e Jornadas.Geo (2012)12. Ambas são as edições mais recentes, participantes do PNLD de 2014. Nosso foco englobará textos 11

Projeto Araribá: Geografia 7º ano/organizadora Editora Moderna; obra coletiva concebida, desenvolvida e produzida pela Editora Moderna; editor responsável: Fernando Carlo Vedovate. 3ª Edição, São Paulo: Editora Moderna, 2010 12 Jornadas.geo: Geografia 7º ano/Angela Rama, Marcelo Moraes Paula. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

73 escritos e as imagens, apresentando quais discursos estão presentes nos livros e quais não figuram em suas páginas, o que eles falam e o que silenciam. Buscaremos manter o constante diálogo com os depoimentos dos professores e como lidam com estas representações em sala de aula, a fim de complexificar a análise. A coleção Projeto Araribá se intitula obra coletiva, concebida, desenvolvida e produzida pela Editora Moderna. Fernando Carlo Vedovate é o editor responsável, e além dele outros onze geógrafos, em diversos níveis de formação acadêmica, compuseram os originais do livro. Sete dos onze autores são professores da educação básica. A coleção Jornadas.Geo, da Editora Moderna, por sua vez, foi composta por dois autores: Marcelo Moraes Paulo e Angela Rama, ambos geógrafos e professores nos Ensino Fundamental e Médio. A disposição de unidades dos livros didáticos analisados se dá de maneira diferente. A edição do Projeto Araribá privilegia a abordagem por regiões do Brasil. Além de três unidades de cunho mais geral e introdutório, chamados de “O território brasileiro”, “A população brasileira” e “Industrialização e urbanização do Brasil”, cada uma subsequente trata de uma região do Brasil. Desta forma, a coleção está adequada ao Currículo Mínimo planejado pelo governo do estado do Rio de Janeiro. A edição do Projeto Araribá toma cuidado ao dedicar um número aproximado de páginas a cada região do Brasil, embora a mera divisão numérica igualitária não seja garantia da igualdade na qualidade de abordagem. Para além de tal fato, a organização por regiões do Brasil, se realizada de maneira estanque, pode invisibilizar as diversas relações existentes entre elas. A edição do livro didático Jornadas.Geo, por sua vez, opta por outra organização. Suas unidades dividem-se por temática, a saber: território brasileiro, regiões do Brasil, relevo e hidrografia, vegetação e clima, espaço rural, espaço urbano, indústria e população brasileira. Embora essa forma de organização possa proporcionar uma maior complexidade de análise entre os territórios do espaço nacional, deve haver o cuidado para que as regiões sejam abordadas de maneira igualitária ao longo das unidades. Verificaremos tais abordagens na terceira seção deste capítulo. Como mencionado anteriormente, todos os livros didáticos adotados precisam ser aprovados em avaliação do PNLD. No ano de 2014, processo mais recente, os dois livros

74 analisados não conseguiram contemplar totalmente alguns dos pontos esperados. Infelizmente, ainda que não os contemple em sua plenitude, os livros são aprovados, pelo entendimento de que não há o reforço dos preconceitos e estereótipos, embora também não tenha um “rompimento”, o que já é bem problemático. Dentre as diversas categorias de análise do Programa, ressaltamos as que consideramos dialogar de maneira mais direta com os nossos objetivos, quais sejam: “observância de princípios éticos e democráticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social”, demonstrando de modo geral como os livros didáticos abordam grupos subalternizados, e a análise que o PNLD faz acerca das figuras utilizadas e sua adequação em relação à apresentação da diversidade da população. Além destas, o PNLD analisa de modo geral a abordagem teórico-metodológica, correção e atualização de conceitos e informações, atividades propostas pelo material didático, manual do professor e aspectos gráfico-editoriais dos livros didáticos. No Quadro I – intitulado pelo Guia de Livros Didáticos do PNLD de “Quadro III: Observância de princípios éticos e democráticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social” –, verificamos que tanto o Projeto Araribá quanto o livro Jornadas.Geo deixam de contemplar diversos quesitos no que tange ao rompimento ou mesmo a um tensionamento com os preconceitos ou estereótipos vigentes na sociedade. De acordo com a legenda do Quadro I, as lacunas escuras, preenchidas, se referem aos quesitos contemplados parcialmente pelos livros analisados, enquanto os espaços em branco demonstram a total atendimento às exigências do Programa. Nesta seção da análise do PNLD, o Projeto Araribá não contempla totalmente nenhum critério necessário, dentre os quais destacamos: isenção de preconceitos, promoção positiva de culturas afro-brasileiras e de povos indígenas, participação social e profissional da mulher, além de tampouco contemplar o incentivo a práticas pedagógicas voltadas para o respeito e a valorização da cidadania, diversidade e defesa dos direitos humanos. O livro Jornadas.Geo deixa de contemplar, segundo o PNLD, o critério de isenção de publicidade, doutrinação religiosa e política.

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Quadro I – Análise de representações sociais e suas abordagens nos livros didáticos segundo o PNLD 2014. Livros analisados em destaque. (Retirado de: MEC - Guia de Livros Didáticos PNLD 2014)

Ainda que não contemple totalmente nenhum critério classificado como “necessários à construção da cidadania e ao convívio social”, a Coleção Araribá foi

76 aprovada pelo PNLD. Desta maneira, o PNLD dá aval para que o ensino básico seja pautado em coleções que, embora se intitulem críticas, mantêm visões cristalizadas da sociedade que subalternizam diversos grupos. A mesma é, ainda, a mais adotada nas escolas brasileiras, sendo fornecida a mais de 3 milhões de alunos. Tendo conhecimento que a responsabilidade da seleção dos livros didáticos adotados é dos professores, podemos afirmar que estas questões relacionadas ao rompimento destes estereótipos não se mostram centrais para suas análises. No que tange à análise das imagens, ponto nevrálgico nas entrevistas realizadas com todos os professores (Quadro II), o PNLD avalia dimensões técnicas, como escala de mapas, créditos de imagens, mas também simbólicas, como a reprodução adequada da diversidade étnica da população brasileira. Para nossos objetivos de avaliação, destacamos duas dimensões avaliadas pelo Programa, a saber: se são claras, precisas e de fácil compreensão e exploram as várias funções; e se reproduzem adequadamente a diversidade étnica da população brasileira. Percebemos que o livro Jornadas.Geo deixa de contemplar uma delas, a que se refere à clareza e precisão da compreensão das imagens. Já o Projeto Araribá não contempla nenhuma das duas esperadas.

Quadro II – Parte da análise das figuras presentes nos livros didáticos segundo o PNLD 2014. Livros analisados em destaque. (Retirado de: MEC - Guia de Livros Didáticos PNLD 2014)

77 Debatemos no capítulo anterior como os professores entrevistados encaravam as figuras principalmente sob uma perspectiva benéfica. Para eles, a positividade dos livros didáticos está concentrada na presença de imagens que possibilitem ilustrar o conteúdo. Nesta avaliação do PNLD, percebemos como as imagens podem prestigiar determinados grupos em detrimento de outros. O Projeto Araribá, mais adotado na rede pública brasileira, por exemplo, não reproduz adequadamente a diversidade étnica da população brasileira, ou seja, suas imagens privilegiam alguns grupos em detrimento de outros. Mais adiante debateremos quais grupos são privilegiados nestas abordagens e quais são ocultados, ou representados a partir de estereótipos. Tal deficiência também é encontrada em outros livros, que não são objeto de estudo na presente pesquisa. Neste sentido, milhões de estudantes brasileiros atendidos por essas edições têm acesso a um material didático que debate a formação do Brasil, mas não é democrático na abordagem de sua população. Verificamos, assim, que somente a presença de imagens não garante a qualidade dos livros didáticos. É importante um livro com riqueza iconográfica, tornando-o mais atraente aos estudantes, entretanto é fundamental que se atente para o papel dessas imagens na construção das representações sociais. Consideramos que as imagens não servem somente para ilustrar os conteúdos, mas são elas também conteúdo. As imagens não estão no livro como acessórios, mas imprimindo visões da realidade e discursos geográficos. Portanto, encaramos a interpretação das imagens e seus discursos com a mesma potência dos textos escritos. Após explicitar alguns pontos gerais levantados pelo PNLD, consideramos ser importante realizar uma investigação mais profunda dos livros didáticos. Buscaremos verificar como as publicações analisadas abordam a formação territorial do Brasil, a partir de seus textos escritos e imagens. Verificaremos o discurso geral sobre a formação do território brasileiro, como os diferentes povos que participaram desse processo foram representados, quais nem sequer figuram nas páginas dos livros didáticos, quais são as imagens presentes sobre as regiões do Brasil e que noções de desenvolvimento estão expressas nestes materiais. Encaramos a formação territorial do Brasil como um processo contínuo, que não se encerrou no período colonial, tampouco começou nele. Neste sentido, questões do presente também conformam essa constante formação brasileira.

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4.1 A interpretação da formação territorial do Brasil pelos livros didáticos

Na composição dos livros analisados – Projeto Araribá e Jornadas.Geo –, há apenas um capítulo dedicado à formação do território brasileiro, escrito em quatro páginas. Também nos dois livros, este capítulo se insere na primeira unidade, denominada “O Território Brasileiro”. Inicialmente, desperta a atenção o número de páginas utilizadas para explicar a formação do território brasileiro. Nas duas edições são dedicadas somente quatro páginas, para explicar séculos da geo-história do território. Após uma primeira análise percebemos que os livros não têm como objetivo promover o debate sobre os séculos que conformaram e conformam o nosso território, afinal, ambas as edições compreendem a formação do território brasileiro simplesmente como um estudo do espaço colonial brasileiro. O livro Jornadas.Geo, logo em sua apresentação, coloca a Geografia no hall das disciplinas escolares que “podem ajudá-lo (ao aluno) a compreender o lugar, o país e o mundo em que vivemos”. Embora em um texto um tanto vago, os autores descrevam a Geografia como uma ciência crítica, questionadora e que nos responde “de que formas e com quais objetivos os seres humanos organizam os diversos e diferentes espaços que constroem em sua constante relação com a natureza”. Mas não pretendemos entrar no mérito disto que os autores chamam de “relação com a natureza”, aparentemente igualitária e de troca, sem explicitar o caráter historicamente predatório de algumas ações humanas. Como nosso objetivo é verificar os discursos acerca da formação territorial do Brasil, nesse sentido, nos chama a atenção a imagem utilizada na apresentação do livro didático. Tendo em vista o conteúdo esperado para o 7º ano do Ensino Fundamental – o debate sobre o espaço brasileiro –, os autores lançaram mão de uma ilustração que representa a invasão portuguesa ao que hoje denominamos de Brasil (Figura 4). A imagem nos transmite a noção de um momento inaugural, tal qual é a própria apresentação do livro. Seria, o momento da imagem, a primeira página de nossa geo-

79 história, deixando para trás todo um acúmulo de vivências, histórias e saberes de povos que aqui habitavam antes do período colonial.

Figura 4– Apresentação do Livro Jornadas.Geo

Tal perspectiva posiciona os povos pré-coloniais brasileiros “do outro lado da linha”, como diz Boaventura de Sousa Santos (2010), ou seja, faz com que desapareçam enquanto realidade. O Outro é produzido como inexistente sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Ao mesmo modo do seu povo, o Brasil só passaria a ser construído com a chegada dos invasores coloniais europeus. As histórias só existiriam e poderiam ser contadas a partir do contato com o europeu, como um momento inaugural que lhes desperta para o mundo. O Projeto Araribá, por sua vez, opta por iniciar sua apresentação com uma citação acerca das mazelas sociais brasileiras (Figura 5). Segundo João Carlos Agostini, autor citado pela obra, não podemos culpar nossa herança colonial quando nos referirmos aos

80 males da sociedade, por já haver passado muitos séculos desde o fim do período colonial. Apesar disso, reconhece que ainda mantemos preconceitos e ideologias trazidos pelos colonizadores.

Figura 5– Apresentação do Livro Projeto Araribá

Tal premissa vai frontalmente de encontro à perspectiva descolonial, pois não falamos de heranças que se amontoam para formar a atual sociedade brasileira. Consideramos que tenha sido posto um fim ao colonialismo, à

estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial. (Quijano, 2010:84)

81 Contudo, embora tenha sido esgotado formalmente, este processo fincou estruturas que até hoje sustentam nosso modelo de sociedade. Não se trata simplesmente da manutenção de preconceitos e ideologias, como nos apresenta o Projeto Araribá, mas de todo um aparato colonial eurocêntrico que insiste em se manter. Trata-se da colonialidade impondo uma

classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder (capitalista) e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal. (Quijano, 2010:84)

Tampouco foi herdado, posto que a colonialidade não foi morta. Ela segue viva desde o início do processo colonial, mostrando-se mais duradoura do que o próprio colonialismo. Uma das tantas provas da manutenção da colonialidade é o saber eurocentrado, ignorando o conhecimento desenvolvido em outras partes do mundo, do mesmo modo ao percebido durante o período colonial. A Ciência Moderna se assenta nestas bases coloniais e nela se hegemoniza globalmente. Ignorar esta relação significa negar a história. Outra prova da permanência da colonialidade do poder é a enorme desigualdade, social, de segurança e subjetiva, existente entre negros e brancos no Brasil ainda hoje. Nesse sentido, o material didático exerce um papel crucial, pois dependendo das representações e discursos que são apresentados, este padrão de poder-saber eurocêntrico pode ser reproduzido ou tensionado. Uma vez que estes livros atendem milhões de estudantes, atentar para a maneira como estas abordagens são realizadas se mostra fundamental para compreendermos o atual ensino escolar de Geografia. Temos claro que uma abordagem plenamente descolonial encontrará grande dificuldade de se tornar exequível, uma vez que nos conformamos intelectual e subjetivamente em bases coloniais. Contudo, é possível tensionar esta assimetria de poder que está posta.

82 Após a citação, a apresentação do Projeto Araribá assume um discurso crítico, incentivando o questionamento e a formação de opiniões, a qual diz ser “o primeiro passo para alcançar uma postura crítica e uma atuação consciente sobre a realidade de nosso país”. O livro ressalta a existência das diferenças no Brasil, país que “produz muita riqueza”, mas que “nem todos usufruem dessa riqueza, pois parte da população é privada das condições mínimas de sobrevivência”. A edição, deste modo, transforma a consequência da desigualdade social em causa. Vemos, assim, o que Boaventura de Sousa Santos chama de “monocultura da naturalização das diferenças” (Santos, 2007). Nela, hierarquias raciais, étnicas, sexuais e sociais são ocultadas e naturalizadas. A partir desta monocultura, tais diferenças não surgiriam como fruto de relações de poder historicamente desiguais, mas como consequências de uma inferioridade natural. Neste caso, há uma clara inversão: de acordo com o Projeto Araribá, parte da população não usufrui dessa riqueza por não ter acesso a condições mínimas de sobrevivência, quando, na verdade, ela não tem as condições mínimas de sobrevivência justamente por uma má distribuição de renda que a impede de usufruir desta “muita riqueza” que o Brasil produz. Ao iniciarem o debate no capítulo intitulado “Formação do território brasileiro”, em ambas as edições, tanto o Projeto Araribá, quanto o Jornadas.Geo o fazem a partir da invasão europeia à América. Temos claro que as fronteiras nacionais começaram a ter seu delineamento unificado a partir das invasões portuguesas e domínio do território, no entanto não é possível compreendermos o território de modo apartado dos que o compõem, de seus habitantes. Neste sentido, nos apropriamos do conceito de território

(...) a partir da concepção de espaço como um híbrido – híbrido entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e “idealidade”, numa complexa interação tempo-espaço, como nos induzem a pensar geógrafos como Jean Gottman e Milton Santos, na indissociação entre movimento e (relativa) mobilidade – recebam estes os nomes de fixos e fluxos, circulação e “iconografias”, ou o que melhor nos aprouver. (...) o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural. (Haesbaert, 2009:79)

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Uma vez que o território, em suas múltiplas escalas, se constitui a partir das relações de poder e tais relações não se dão no vácuo, senão entre sujeitos, não podemos marcar a origem do território brasileiro a partir de 22 de abril de 1500, data da primeira invasão portuguesa. O território brasileiro não se constituiu a partir de tábula rasa, ignorando toda a geo-histórica pretérita. Deste modo, como ambos os livros didáticos se organizam ao desperdiçar toda a experiência já constituída neste território e dele constituidora, impõem um obstáculo a uma compreensão mais qualificada sobre a própria formação territorial do Brasil, ignorando a efetiva participação de diversos sujeitos e seus povos. O vocabulário utilizado pelas duas edições muitas vezes também apresenta questões que precisam ser debatidas. O livro Jornadas.Geo trata a formação do território brasileiro a partir de tópico que se intitula “A ocupação da América pelos europeus”. Caso compreendamos que não havia uma área vazia e desabitada pronta para ser tomada, percebemos que denominar o processo de invasão territorial de “ocupação” se revela problemático. Tal classificação invisibiliza povos originários habitantes da América anteriormente às invasões coloniais espanhola e portuguesa. Em texto que se segue, abordando o Tratado de Tordesilhas, o livro Jornadas.Geo trata ainda da “descoberta da América” pelos espanhóis. Outro termo problemático devido às mesmas razões supracitadas. Seguindo o debate, o livro imprime uma visão teleológica da colonização portuguesa, ao afirmar que a expedição de Cabral tinha como objetivo “tomar posse das terras portuguesas na América”. Deste modo, trata a colonização como um destino e, de modo mais profundo, de um direito legitimamente outorgado aos portugueses, não como fruto de um violento processo histórico. O livro Jornadas.Geo, em tópico chamado “América Portuguesa e Brasil”, chega a afirmar que

o território brasileiro, na verdade, começou a ser construído pelos colonizadores [...] (que) ampliaram seus territórios e criaram, na

84 chamada América Portuguesa, as bases culturais e administrativas do território que deu origem ao Brasil. (p.28)

Deste modo, o livro reafirma como posição de destaque o papel desempenhado pelos portugueses no processo de construção do território. O Projeto Araribá aborda o mesmo tema em tópico intitulado “A chegada dos portugueses à América” (p.16). Mais uma vez se oculta o processo de violência ao qual os povos originários foram submetidos na medida em que minimiza o processo de colonização classificando-o como uma simples “chegada dos portugueses”. Vale ressaltar que não tratamos de um momento de turismo de europeus à América, mas de um momento de invasão inaugural à colonização que se seguiu ao extermínio e escravização de milhões de sujeitos subalternizados a partir do padrão racial imposto. No que tange ao termo “descobrimento”, o Projeto Araribá o utiliza entre aspas, embora não haja outro termo para substituí-lo ao longo do texto, tampouco critica quanto ao seu uso como vemos a seguir:

A imensa extensão territorial de nosso país resultou de um longo processo de conquista de terras, iniciado pelos portugueses a partir de 1500, quando os colonizadores aqui chegaram – episódio que ficou conhecido como “descobrimento do Brasil”. (Projeto Araribá, 2010:16 – grifo dos autores)

Além deste termo, também é utilizada, por diversas vezes, a expressão “ocupação” para designar a invasão colonial espanhola ou portuguesa. A tônica do livro é a de posicionar europeus como “conquistadores”, modo como os classifica explicitamente, excluindo de todo processo os diversos povos indígenas. Atentando-nos à dimensão da imagem, o livro Jornadas.Geo opta por utilizar o quadro “O desembarque de Cristóvão Colombo no Novo Mundo”13, de Frederick 13

The Landing of Christopher Columbus in the New World. Tradução livre.

85 Kemmelmeyer (Figura 6). Na imagem, percebemos a representação de europeus e povos originários no momento da invasão de Cristóvão Colombo. Europeus são representados em primeiro plano, em escala bem maior, altivez e sinal de dominação. No mesmo cenário, percebemos povos originários representados fisicamente de maneira a reforçar estereótipos, em segundo plano, escala menor e em posição de súplica e subalternização. Tal imagem reforça o estigma de superioridade europeia, ocultando a violência do momento da invasão e o imaginário do conformismo acerca dos então habitantes do que viria a ser chamado de América. Ao ocultar a violência praticada, também há a ocultação das resistências à colonização que se impunha.

Figura 6 – “O desembarque de Cristóvão Colombo no Novo Mundo” (Jornadas.Geo, p.26)

Neste sentido, boa parte da violência constitutiva do processo colonial e, portanto, fortemente imbricada à formação territorial do Brasil é ocultada ou menosprezada pelos livros analisados. Estes materiais ocultam ou minimizam o extermínio de indígenas,

86 assim como a violência na engenharia da escravidão sofrida por negros africanos ou afrodescendentes. A violência física e simbólica, provocada por bandeirantes e jesuítas, tampouco tem espaço relevante nas escassas páginas destes livros. Exemplo da ocultação desta violência pode ser encontrado neste trecho do Projeto Araribá:

Ao estudar como ocorreu a formação do território brasileiro, devemos lembrar que os colonizadores portugueses foram se apropriando das terras que hoje constituem o Brasil e conquistando a área onde viviam cerca de 4 milhões de pessoas, distribuídas entre mais de mil povos diferentes: os indígenas. Estima-se que atualmente haja no território brasileiro aproximadamente 817 mil indígenas, divididos em 230 diferentes povos. (Projeto Araribá, 2010:16)

O projeto Araribá chega a mencionar que durante a invasão do território por europeus havia aproximadamente quatro milhões de indígenas. Em seguida, afirma que atualmente há cerca de 817 mil indígenas. Embora esteja subentendido este déficit populacional, não há nada além do ponto final para explicar este fato. O tópico é encerrado e, sem qualquer esclarecimento, parte-se para o tópico seguinte para analisar os limites territoriais. O Projeto Araribá oculta o extermínio de indígenas no primeiro contato violento com europeus, a morte de milhares deles em decorrência do trabalho escravo e outros tantos atos violentos que esta população sofreu desde o início da colonização. Ocultar a violência como ingrediente de nossa formação contribui apenas para a equivocada concepção do brasileiro enquanto povo pacífico desde a sua origem, escamoteando todo o processo histórico no qual nos constituímos. Já o livro Jornadas.Geo, embora problemático ao se valer de vocabulários que transmitem a ideia de um processo colonial pacífico, como “descoberta” e “ocupação”, menciona a expulsão, escravização e extermínio ao se referir à apropriação de espaços “ocupados pelos indígenas”. No entanto, de modo contraditório, expressa esta análise no tópico que se intitula “América Portuguesa e Brasil”. Assim, enquanto indígenas apenas

87 “ocupam” o espaço, os portugueses iniciam a construção do território, lhe têm posse e lhe dão nome próprio: “América Portuguesa”.

O território brasileiro, na verdade, começou a ser construído pelos colonizadores, que se apropriaram dos espaços ocupados pelos povos indígenas, expulsando-os, escravizando-os ou exterminando-os. Com o tempo, os portugueses ampliaram seus territórios e criaram, na chamada América Portuguesa, as bases culturais e administrativas do território que deu origem ao Brasil. (Jornadas.Geo, 2012:28)

Nesta referência, é transmitida a noção de que os indígenas apenas habitavam um espaço, não havendo com ele qualquer relação de produção, social, simbólica ou de pertencimento. Toda a cultura que, na concepção deste material didático, transformou o espaço habitado por indígenas em território, foi implantada em movimento posterior, apenas após a colonização portuguesa. Ao longo das quatro páginas dedicadas em ambos os livros para abordar especificamente a formação do território brasileiro, notamos uma severa desigualdade entre a abordagem dos povos constituintes deste processo. Não há, em nenhum dos dois livros analisados, uma menção sequer à população negra. Desta maneira, ocultam todo o histórico dos negros e suas influências para o que compreendemos hoje como território brasileiro. Aos indígenas, no livro Jornadas.Geo, há apenas uma menção ao longo de todo o capítulo. Este silenciamento produz nos estudantes que terão acesso a este material um déficit de representação, afinal, os europeus têm maior espaço nos capítulos analisados, sendo considerados mais importantes para o processo de formação territorial brasileira. A ocultação das populações negras e indígenas nestas páginas dos livros lhes coloca em posição passiva na construção do território brasileiro, de meros espectadores, a qual rejeitamos. Neste sentido, reside nossa atenção não apenas ao que o livro expressa, suas vozes, mas também em seus silenciamentos, o que oculta. A abordagem sobre os diversos povos que participaram da formação territorial do Brasil será debatida de modo mais detalhado na próxima seção deste capítulo.

88 Ambos os livros analisados concluem seus capítulos sobre formação territorial do Brasil no século XIX. Percebemos que as perspectivas expressadas nos livros didáticos compreendem a formação do território brasileiro de modo a confundi-lo com o delineamento de sua fronteira. Compreendemos a origem da formação territorial do Brasil de modo mais profundo e anterior, além de contínuo até os dias atuais. Encaramos o território como um resultado das múltiplas relações de poder introjetadas no espaço, deste modo, não se findou com o último recorte de fronteira nacional. Não é possível esgotar toda a análise a respeito dos discursos acerca da formação do território brasileiro expressado através das quatro páginas referentes aos capítulos de mesmo nome em ambos os livros didáticos. A partir desta premissa, tomaremos como análise o conjunto das obras, nos guiando por outras dimensões já explicitadas: povos na formação territorial do Brasil, discursos sobre as regiões do Brasil e noções expressadas de desenvolvimento. Deste modo pretendemos uma análise mais completa sobre a formação do território brasileiro, compreendendo-o como um processo complexo e que se mantém ativo até os dias atuais.

4.2 Os povos e a formação territorial do Brasil

Como abordado anteriormente, nota-se grande desigualdade, qualitativa e quantitativa, em relação à abordagem dos povos que participaram da construção do território brasileiro. Não é raro encontrarmos etnias associadas a atributos que lhes seriam próprios, denotando a presença de um pensamento essencialista, que ignora a história e naturaliza as diferenças. Deste modo, tais grupos ficam enclausurados no tempo e no espaço, tendo seus percursos vistos como cristalizados e impedidos do reconhecimento de sua transformação. Neste sentido, iremos debater nesta seção do trabalho quais os discursos sobre estes povos são veiculados nos livros didáticos. Na seção anterior, havíamos demonstrado e discutido sobre como a dimensão da violência é subestimada ou ainda ocultada quando do debate sobre a formação territorial

89 brasileira. A mesma tônica se verifica em relação às abordagens dedicadas aos povos que participaram, e participam, da formação territorial do Brasil. Nesse sentido, podemos adiantar que ambas as coleções não reconhecem o violento embate entre indígenas e portugueses e o processo de subalternização ao qual a população originária foi impelida. Exemplo de ocultação da violência é a maneira como os livros abordam a escravidão de africanos e afrodescendentes. De acordo com o Projeto Araribá: “Aproximadamente 4 milhões de africanos foram trazidos para trabalhar como escravos no Brasil” (p.43).

De modo bastante semelhante, afirma o livro Jornadas.Geo:

“Aproximadamente 4 milhões de africanos foram trazidos para o Brasil para trabalhar como escravos em várias atividades” (p.212). A opção pela utilização da locução verbal “foram trazidos” ameniza o sequestro sofrido pelos milhões de negros africanos, violência característica do tráfico negreiro e da escravidão. Outro exemplo deste processo de ocultação da violência é o primeiro texto complementar do livro Projeto Araribá, intitulado “Os eternos encontros” (p.34-35). Nele, utilizando-se do termo “descobrimento da América”, a colonização é descrita como um grande encontro harmônico, possibilitando que a cultura dos “primeiros viajantes” europeus se cruzasse com as culturas indígenas, africanas e de demais imigrantes ao longo da história.

Os fatos e a história recentes dos últimos 500 anos têm indicado que o tempo desse encontro entre as nossas culturas é um tempo que acontece e se repete todo dia. [...] Se pensarmos que há 500 anos algumas canoas aportaram aqui na nossa praia, chegando com os primeiros viajantes, com os primeiros colonizadores, esses mesmos viajantes, eles estão chegando hoje às cabeceiras dos altos rios lá na Amazônia. (Projeto Araribá, 2010:34)

O tom utilizado ao longo do texto nos transmite a ideia da formação de uma cultura que sintetiza as demais de modo igualitário, sem reconhecer violência física e simbólica para imposição de padrões culturais europeus e eurocêntricos. O discurso do estrangeiro como aquele que introduziu a modernidade e trouxe a luz é afirmado através de uma imagem que acompanha o mesmo texto (Figura 7). Nessa

90 imagem percebemos a síntese das culturas expressada através da tecnologia. Com um celular em uma das mãos e uma lança em outra, a imagem nos revela um indígena com a tanga que povoa o imaginário de todos que abrigaram o estereótipo do ser-indígena. Nela, o indígena ultraconectado teria acesso aos benefícios da modernidade (modernocolonialidade) desde a chegada da primeira caravela até os satélites contemporâneos. Tais tecnologias possibilitariam sua ligação com o mundo, de maneira positiva, de modo algum o violentando. A modernidade, apartada de sua face colonial, é o que o leva ao mundo, não o que o tira dele.

Figura 7 – (Projeto Araribá, p.34)

A tônica, referindo-se à cultura brasileira como síntese harmônica de três culturas – europeia, indígena e africana –, se desenrola ao longo dos dois livros analisados. Como assinala o Projeto Araribá, a população brasileira “resulta da mescla de povos e culturas diferentes” (Apresentação). Não há em qualquer um dos livros analisados referência às tensões que compuseram a cultura brasileira. Todo processo é sempre visto de modo linear e harmônico. Tal modo de caracterização revela a persistência do Mito das Três Raças (Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, entre outros) na construção destes materiais didáticos.

91 Tanto o Projeto Araribá quanto o Jornadas.Geo realizam suas análises sobre a população brasileira dividindo-as em três grandes grupos: “os povos indígenas”, “os povos africanos” e “os imigrantes” (no caso do Projeto Araribá) ou “Os europeus e outros povos” (no caso do Jornadas.Geo). A partir de tal classificação, os livros didáticos definem atributos de cada etnia e, como mencionado anteriormente, lhes essencializa e enclausura em tais atributos, apagando todo o seu percurso geo-histórico de formação. Os livros didáticos analisados ainda mantêm o discurso, típico da perspectiva do Mito das Três Raças e da ideia de Democracia Racial, acerca da contribuição de cada etnia para a composição sintética da população e, por conseguinte, do território brasileiro. De acordo com o Projeto Araribá, a participação dos indígenas para influenciar nossos hábitos residiria em “banhar-se todos os dias, usar redes e consumir mandioca e seus derivados” (p.42). Segundo esta interpretação, os indígenas não contribuíram em nada que fosse fruto de seu trabalho ou saber. Não lhes é atribuído nada além de comer, dormir e tomar banho, necessidades básicas do ser humano. Reafirma-se, assim, a crença do índio indolente e improdutivo. O Projeto Araribá chega a mencionar a contemporaneidade dos indígenas, afirmando que o fato de falarem português ou vestirem roupas não lhes faz perder a identidade. No entanto, tal afirmativa de contemporaneidade cai por terra quando confrontada com os atributos que lhes são dados. Tal perspectiva é descontruída à medida em que se acredita em uma essência própria de cada etnia e que dela advêm a contribuição para uma cultura maior. Deste modo, percebemos que tal cultura pode ser simultânea no tempo, mas não contemporânea (Santos, 2007). Os indígenas apresentariam, de acordo com esta perspectiva, uma temporalidade residual em relação aos europeus, neste caso mais avançados. A única relação que se faz entre povos indígenas e o período atual, a fim de tentar afirmá-los como contemporâneos é a partir de sua associação com a tecnologia. O uso da tecnologia, de acordo com o discurso presente nos livros didáticos, forneceria ao indígena a contemporaneidade que sua cultura lhe tolheu. Assim, lhe seriam abertas as portas da modernidade, sem o devido reconhecimento de sua face colonial, como de costume. Não há contemporaneidade de sua cultura ou seu saber, apenas a partir do contato com tecnologias (Figuras 8 e 9).

92

Figura 8– Crianças acessando

Figura 9– Índio filmando a festa dos 50

computadores na escola da Aldeia Guarani Tenonde Porã, Parelheiros (SP), em 2011. (Imagem e legenda de Jornadas.Geo, p.210)

anos do Parque Indígena do Xingu, em Querência. (Imagem e legenda de Projeto Araribá, p.42)

Além da ausência de uma justa representação dos povos indígenas, que não os cristalizasse a partir da invenção de uma essência, notamos que ambos os livros apresentam um grave silêncio no que tange a esta abordagem. Ambas as edições não dedicam mais do que meia página para abordar os povos indígenas na população brasileira. Reafirmamos nossa posição em analisar não apenas os discursos presentes nos livros, mas também o que deixam de dizer. Neste sentido, estamos de acordo com Santomé (1995), ao defender que

A preponderância de visões e/ou silenciamentos da realidade que recorrem a estratégias como as mencionadas contribuem para configurar mentalidades etnocêntricas, mentalidades que tendem a tudo explicar recorrendo a comparações hierarquizadoras ou a dicotomias exclusivas entre bom e mau. Esta é uma das maneiras de construir e

93 reforçar estereótipos sobre grupos e povos marginalizados. (Santomé, 1995:170 – grifos do autor)

Tanto os povos indígenas quanto os africanos, além de minimizados em ambos os materiais didáticos analisados, no livro Jornadas.Geo, figuram apenas no último capítulo da última unidade, bem distante da que trata da formação do território brasileiro, na primeira unidade. Tal afastamento cria nos estudantes a desconexão entre esses povos e a construção do Brasil, transmitindo-lhes a noção de que tais grupos não participaram e participam do processo de formação territorial brasileiro. O que ocorre com os povos indígenas, também acontece com os africanos na descrição de seu papel na composição da cultura brasileira. O Projeto Araribá lhes atribui a música, religiosidade, dança e comida como importantes neste processo. No mesmo sentido, o livro Jornadas.Geo também cita estas influências e acrescenta os traços físicos e algumas palavras do dia a dia. Verificamos a partir das imagens a ratificação do que seria esta contribuição africana para a cultura brasileira (Figuras 10, 11 e 12).

Figura 10– Representação da Congada (Projeto Araribá, p.43)

94

Figura 11– Festa de Iemanjá para abordar sincretismo religioso (Jornadas.Geo, p.212)

Figura 12– Grupo Samba Lenço (Jornadas.Geo, p.212) Obviamente não é nosso objetivo classificar as danças ou hábitos alimentares como inferiores no processo de construção da cultura brasileira. Na realidade, somos críticos à própria forma como esta análise se dá, encarando a cultura como um acúmulo. Tampouco coadunamos com a ideia de cultura equivalente à alta cultura, à cultura das elites. Ao contrário, encaramos de modo mais amplo, construída no jogo de tensas relações entre as mais diversas instâncias e setores que estruturam a sociedade. Nossa crítica mais específica se refere ao fato de limitar as culturas indígenas e africanas a tais hábitos. Na seção do livro Jornadas.Geo que trata especificamente dos povos africanos, não há uma menção sequer à palavra colonização. Há referência ao escravismo, mas não

95 à estrutura de poder que o constitui. O texto chega a abordar, ainda que de maneira rasa, a desigualdade racial, mas não o faz relacionando ao processo de colonização, tãosomente ao fenômeno da escravidão. Não é raro que as edições também façam referência aos africanos a partir do termo “escravos”. Deste modo, isentam a engenharia colonial erguida para a escravidão e naturalizam as relações de poder e hierarquia da época. Consideramos o termo “escravizado” mais adequado neste sentido, já que demonstra o processo a partir do qual o sujeito foi impelido à escravidão. Nos livros, a utilização deste termo é feita em menor número em relação ao anterior. A escravidão é um estado imposto ao sujeito, não sua condição de existência, como o termo “escravo” induz. Para a concretização das premissas do Mito das Três Raças, resta a contribuição dos europeus, e assim os livros cumprem. No que tange a este grupo, as referências são majoritariamente relacionadas à arquitetura. As formas da paisagem retratadas em imagens, contudo, dizem respeito a áreas específicas do Brasil, onde houve colonização alemã (Figuras 13 e 14). Desse modo, os europeus seriam os únicos, dos três grupos descritos, a promover mudanças nos fixos do espaço, a alterar a paisagem. De acordo com esta perspectiva dos livros didáticos, indígenas e africanos não atuariam nesta transformação do espaço, pelo menos não de modo tão evidente.

Figura 13– Construção enxaimel, técnica trazida ao Brasil pelos alemães (Jornadas.Geo, p.214)

96

Figura 14– Rua de Gramado (RS), com casas de colonização alemã (Projeto Araribá, p.44)

Seguindo as referências à participação dos europeus, ambos os livros citam a língua portuguesa como a grande contribuição dada à cultura brasileira. O livro Jornadas.Geo menciona, ainda, a religião católica. Os europeus, sejam colonizadores portugueses, ou mesmo de nações diversas chegadas a partir do século XIX, sempre são denominados como “imigrantes”. Curiosamente, o mesmo fato não é verificado para os africanos. Uma vez que são oriundos de áreas diferentes das quais foram trazidos de maneira forçada, são igualmente estrangeiros. Contudo, os livros didáticos preferem classificá-los apenas sob o signo de “escravos”, ocultando a diversidade de suas origens. Há ainda a ausência de especificação sobre quem seria este africano. Quando abordados os europeus, estes são acompanhados sempre de complemento que indica sua nacionalidade, ou local de origem. No que tange aos povos africanos, isto não ocorre. Percebemos a homogeneização da África, em uma interpretação que pode dar margem ao equívoco de confundi-la com um país, infelizmente tão comum no ensino básico. Para além da questão conceitual, homogeneizar todos os africanos que foram sequestrados, traficados e escravizados no Brasil se mostra um obstáculo para a compreensão da complexidade de nossas raízes históricas.

97 O entendimento sobre as contribuições dos europeus não se encerra ainda. O livro Jornadas.Geo destaca a importância destes imigrantes para o aprimoramento da agricultura e pecuária, além do desenvolvimento da indústria. Deste modo, os principais setores produtivos do país haveriam sido desenvolvidos apenas por imigrantes europeus, ignorando todo o trabalho pretérito de sujeitos escravizados. O objetivo de embranquecimento da população, aclamado entre diversos intelectuais da época a fim de purificar a raça brasileira, é ocultado. Tal anseio pode ser percebido a partir da fala de Joaquim Nabuco, em 1883, data da publicação de “O Abolicionismo”. Nessa direção, ao advogar pela abertura à imigração europeia e não outra, Nabuco defende

[...] um país onde todos sejam livres; onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberdade do nosso regime, a imigração europeia traga, sem cessar, para os trópicos, uma corrente de sangue caucásio vivaz, energético e sadio, que possamos absorver sem perigo, em vez dessa onda chinesa, com que a grande propriedade aspira viciar e corromper ainda mais a nossa raça; um país que de alguma forma trabalhe originalmente para a obra da humanidade e para o adiantamento da América do Sul. (Nabuco, 2010:128)

Todo o discurso dos livros didáticos acerca da imigração europeia diz respeito à mera ocupação para trabalho na terra e implantação de indústrias. Nos materiais didáticos analisados não há qualquer menção a um projeto de Estado mais amplo, de cunho racial, para embranquecimento da população. Desta forma, a colonialidade presente em discursos como o de Joaquim Nabuco e tantos outros é ignorada. Europeus são tratados simplesmente como indivíduos desempregados que migraram ao Brasil em busca de emprego e melhores condições de vida, sem referência ao projeto de embranquecimento do Estado brasileiro. Outro grupo surge como um novo participante do processo migratório para o Brasil: os latino-americanos. É crescente a onda migratória, sobretudo da América do Sul para o Brasil, devido a conflitos políticos e sociais. Chama a atenção o título escolhido pelo livro didático Jornadas.Geo para classificar estes povos: “Trabalho ilegal” (p.215).

98 É sob este estigma que será construída a imagem do latino-americano que migra para o Brasil.

Trabalho ilegal: nas últimas décadas, destaca-se no nosso país a entrada de latino-americanos, especialmente bolivianos. A maioria chega ao Brasil de forma ilegal para trabalhar em oficinas de costura em São Paulo, e buscando uma possibilidade de sair da miséria em que vive em seu país. (Jornadas.Geo, 2012:2015)

Enquanto imigrantes europeus foram, exaltados pelos serviços exemplares prestados à pátria, desenvolvendo agricultura, pecuária e indústria, os latino-americanos são descritos como meros trabalhadores ilegais que vêm “buscando uma possibilidade de sair da miséria em que vive seu país” (p.215). Não há qualquer valorização do seu papel, como ocorre com grupos europeus. Obviamente, é real a condição análoga à escravidão sofrida por alguns latino-americanos que migram para o Brasil, todavia não há nada além da homogeneização para representação de tal povo. A abordagem utilizada nos transmite a noção generalizada de que todo latino-americano migrante ocupa um posto de trabalho ilegal, sendo o seu próprio movimento migratório, condição e cultura, ilegais. A dimensão da resistência é outro dos pontos subestimados nos livros didáticos analisados. Boa parte da abordagem sobre o período colonial é narrada de maneira linear, a nos transmitir sensação de harmonia, com ausência de conflitos. Sobre o período, apenas o Projeto Araribá relata os quilombos como espaços de resistência. O livro Jornadas.Geo os caracteriza simplesmente como espaços de fuga. Ao

analisarmos

especificamente

os

discursos

sobre

os

povos

que

participaram/participam da formação territorial brasileira, percebemos uma enorme desigualdade. Infelizmente as colonialidades do saber e do poder ainda são vigentes nos materiais pesquisados, havendo a hierarquização de povos e de seus atributos a partir de condições raciais. O Projeto Araribá chega a veicular um slogan sobre a campanha de intensificação do povoamento do território amazônico em que diz: “Ocupar a terra sem homens” (p.90). Deste modo, tendo o conhecimento que não se tratava a Amazônia de

99 uma terra sem homens, mas sim secularmente ocupada por diversos povos indígenas, percebemos o movimento que desconsidera a humanidade destes grupos, sendo, inclusive, reproduzido pelo livro didático. Neste sentido, se faz necessário também nos atentarmos aos discursos referentes às regiões do Brasil. De que regiões vêm esses “homens” – ou aqueles que assim podem ser considerados – e que regiões são espaços “desumanizados”? Como as diversas regiões do Brasil são narradas nos livros didáticos? Estas serão algumas das questões respondidas na próxima seção deste capítulo.

4.3 Regiões do Brasil e suas abordagens

A compreensão da formação territorial brasileira no ensino escolar de Geografia não pode prescindir de uma análise que investigue quais discursos estão impressos para apresentar as regiões do país, tendo em vista as históricas desigualdades entre elas, tanto na dimensão discursiva, quanto em políticas públicas. Não visamos nesta seção, contudo, uma análise do rigor teórico contido nos livros didáticos acerca dos processos de regionalização. Nosso objetivo é verificar quais são os discursos utilizados na descrição do espaço de cada região do Brasil. Ambos os livros didáticos trabalham a partir da regionalização do IBGE, organizando o Brasil entre Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste. O livro Jornadas.Geo dedica apenas quatro páginas para a apresentação específica das regiões do Brasil, com exceção de Centro-Oeste e Sul que dividem juntos um capítulo, cabendo-lhes duas páginas. Deste modo, há uma dificuldade no tocante à análise dos discursos sobre o tema nestas regiões. Para cumprirmos nossos objetivos, verificaremos quais são os discursos sobre as regiões em toda a obra. O Projeto Araribá, por sua vez, dedica uma unidade para cada região do Brasil, tendo sua distribuição de páginas variando entre vinte e duas (22), referente à Região Sul, e trinta (30), ao se referir à Região Nordeste.

100 Ambos os livros iniciam seus debates regionais a partir da Região Norte. O livro Jornadas.Geo organiza a apresentação a partir de dois subcapítulos: “A ocupação do território” e “Segurança”, este último abordando os projetos militares de proteção da Floresta Amazônica. Cada subcapítulo apresenta tópicos referentes à temática exposta. Já o Projeto Araribá organiza a Região Norte a partir de quatro temas: “Aspectos físicos da Região Norte”, “Ocupação e exploração da Região Norte”, “Devastação da Amazônia Legal” e “Desenvolvimento sustentável”. Retomando a referência realizada na seção anterior sobre o slogan da ditadura para a Região Norte – “Ocupar a terra sem homens” –, reproduzido pelo Projeto Araribá, podemos adiantar que tanto nesta obra, quanto no livro Jornadas.Geo não há rompimento com tal visão. Nas entrelinhas, é conferido a alguns (europeus colonizadores brancos) o status de humanidade, enquanto outros (indígenas) ainda careceriam de tê-lo. Em contradição à frase supracitada, na mesma página, ao introduzir o capítulo, o Projeto Araribá diz que: “grande parte da ocupação da Região Norte se deu de forma predatória, com a devastação da floresta e o desrespeito às comunidades tradicionais da região” (p. 90). Apesar do reconhecimento deste desrespeito, o livro ratifica-o, à medida que não apresenta crítica à expressão “terra sem homens”. Nesta mesma perspectiva, o livro Jornadas.Geo faz a sua abordagem. A obra estrutura toda a narrativa sobre a Região Norte ocultando seus povos originários, argumentando que sua ocupação foi iniciada apenas com a exploração das chamadas “drogas do sertão” e a instalação de missões religiosas e fortes militares (p.40). Não há sequer uma menção aos povos indígenas ao longo de todo o capítulo dedicado à Região Norte. Deste modo, desperdiça séculos de história e toda o efetivo papel indígena na formação do território brasileiro, datando eventos coloniais de exploração e catequização como marcos fundantes da ocupação desta região. O Projeto Araribá menciona as tensões existentes na Região Norte, como a de indígenas com grupos relacionados ao agronegócio, ao comentar que:

A maioria dos grupos indígenas do Brasil que vive na Região Norte vem mantendo contato há muitos anos com povos não indígenas.

101 Porém, este contato geralmente é conflituoso, pois resulta da invasão das terras indígenas por fazendeiros, garimpeiros e pelas atividades de mineradoras e madeireiras. (Projeto Araribá, 2010:102)

Apesar destes conflitos serem abordados pelo Projeto Araribá, as resistências indígenas autônomas não são mencionadas. Em relação a este movimento, o livro apresenta órgãos relacionados ao Estado e à Igreja, como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), respectivamente, transmitindo a noção de um grupo tutelado pelo Estado, sem capacidade de autonomia para suas ações. A Região Norte está profundamente marcada nos livros pela presença da natureza, e não poderia ser diferente, uma vez que abriga a maior floresta tropical do mundo. Contudo, de acordo com dados do último censo do IBGE, de 2010, aproximadamente 73,5% da população da Região Norte vive em cidades14. A urbanidade é abordada de maneira extremamente rasa por ambos os livros, sendo a ela dedicados apenas meia página em cada um. O livro Jornadas.Geo descreve as cidades da Região Norte apenas a partir da apresentação de críticas, como moradias precárias, falta de infraestrutura, ausência de energia elétrica, água encanada, coleta de lixo e esgoto. Acreditamos ser importante revelar deficiências e desigualdades sociais, no entanto uma abordagem que não apresente outras faces que compõem a realidade aprofunda estereótipos. Exemplo deste reforço é a Figura 15, utilizada para representar a seção intitulada “Vivendo nas cidades”. A única imagem para ilustrar o que seria uma cidade na Região Norte apresenta uma favela ribeirinha, não contemplando outras formas de moradias existentes na região e, portanto, a diversidade.

14

http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=8

102

Figura 15 – Representação da urbanização da Região Norte – Jornadas.Geo (p.41)

Em relação à abordagem sobre a Região Nordeste, após a apresentação de suas características físicas, pelo Projeto Araribá, e alguns dados populacionais quantitativos, pelo Jornadas.Geo, os livros iniciam suas discussões acerca da ocupação do espaço. Ambos introduzem o tema a partir da colonização. De acordo com Jornadas.Geo: “a Região Nordeste foi ocupada e explorada economicamente desde a chegada dos primeiros colonizadores europeus” (p.46). O Projeto Araribá afirma ser esta a “região de ocupação mais antiga desde a chegada dos colonizadores” (p.118). Deste modo, ambos os materiais didáticos analisados convergem em relação à abordagem da ocupação territorial do Brasil e de suas regiões. Este processo é sempre tratado como se iniciado com os colonizadores europeus. Não há qualquer registro anterior à colonização, em nenhum dos livros analisados nas seções que tratam da ocupação das regiões do Brasil. Tal perspectiva ratifica a noção de descobrimento, termo adotado pelo Projeto Araribá entre aspas e que é adotado por Jornadas.Geo sem aspas. A única possibilidade de considerar europeus como “descobridores” é admitindo a existência de uma área vazia quando de sua invasão. Uma vez que são eles os iniciadores do processo de ocupação, na

103 perspectiva dos livros didáticos analisados, povos originários são ignorados e subentendese, então, um território vazio à espera de ocupação estrangeira, neste caso europeia. Outras populações são apresentadas apenas quando os livros tratam dos ciclos econômicos e abordam o ciclo da cana-de-açúcar. A partir deste ponto, há menção aos escravizados africanos, mas sempre como mão de obra, nunca como ativos formadores do território. Na unidade dedicada à Região Nordeste, no Projeto Araribá, estes povos são apenas retratados em condições precárias, como em condição escrava (Figuras 16) ou negros na condição atual habitando palafitas (Figuras 17). No livro Jornadas.Geo, por sua vez, nem sequer há fotografia para representá-los.

Figura 16– Escravizados trabalhando em moinho de açúcar (Projeto Araribá, p.119)

Figura 17– Palafitas em São Luís (Projeto Araribá, p.132)

104 A partir dessa perspectiva, há o desperdício de toda a experiência então formada por indígenas e povos originários do que posteriormente viria a ser chamado de Brasil. Afinal, de acordo com os materiais didáticos analisados, além de iniciado, todo o processo de ocupação do país e formação do seu território foi realizado exclusivamente por colonizadores europeus. A desigualdade social é tema recorrente nestes livros didáticos quando se aborda a Região Nordeste. De acordo com o Projeto Araribá, o Nordeste seria uma “região de repulsão populacional”. A partir desta afirmativa, há margem para a noção de que não são as estruturas de poder e desigualdades sociais as responsáveis por produzir condições de vida insatisfatórias que motivaram a migração para outras regiões. Fica a cargo do espaço, na condição de sujeito autônomo, a exploração e expulsão de pessoas, ocultando os sujeitos responsáveis por tais desigualdades. Há ainda a reafirmação da interpretação do espaço como homogêneo, ignorando suas contradições e desigualdades sociais internas. O espaço é mais uma vez compreendido como sujeito autônomo quando da abordagem das sub-regiões nordestinas. Ao se referir à modernização que alavancou a qualidade de vida em algumas áreas, o Projeto Araribá classifica as outras como “tradicionais” – onde a modernização não foi implantada – enquanto “espaços resistentes a mudanças”:

Áreas de ocupação tradicional: Encontramos nas sub-regiões nordestinas áreas em que a modernização ocorreu de maneira espacialmente seletiva (localizada), mantendo-se no restante as estruturas tradicionais das atividades desenvolvidas inicialmente: não se fez uso de técnicas e tecnologias que poderiam minimizar as limitações impostas pelas condições naturais, como a seca. São espaços resistentes a mudanças, em que a economia se apoia na estrutura fundiária concentradora e no controle da água por poucos. (Projeto Araribá, 2010:123 – grifos nossos)

Ao atribuir ao espaço a culpa pela desigualdade social e concentração de terras, o livro invisibiliza seus reais responsáveis, em detrimento do espaço a quem é relegada a responsabilidade pelas mazelas sociais. Obviamente, o espaço não pode ser

105 compreendido sem os seus sujeitos, do mesmo modo que o inverso é verdadeiro. No entanto, é preciso apontar não apenas que fatores foram erigidos e sustentam as desigualdades, mas também por quais sujeitos eles foram construídos. Esta denúncia é condição sine qua non para a transformação social. No livro Jornadas.Geo, o Nordeste é comumente interpretado como o espaço do porvir, onde a modernidade não cumpriu plenamente o seu papel e, por isso, há desigualdades.

Apesar de ainda apresentar problemas, como a concentração de terras e de renda, elevado desemprego e carência de serviços públicos como água encanada, coleta de esgoto, atendimento médico e educação de qualidade, o crescimento econômico [do Nordeste] tem atraído mão de obra de todos os lugares. (Jornadas.Geo, 2012:47 – grifos nossos)

Após citar diversos fatores negativos, há menção à industrialização crescente e criação de postos de emprego, o que fomenta a migração de retorno. A utilização da expressão “ainda” para se referir à permanência de mazelas sociais, nos transmite a noção de que em breve estes problemas serão sanados, com a completude do processo de modernização. A abordagem da ocupação Região Centro-Oeste, em ambos os livros didáticos analisados, é profundamente marcada pelas “expedições bandeirantes”. A história começa a ser contada a partir do século XVII. Em relação aos projetos de exploração subsequentes, o Projeto Araribá chega a classificar os membros do grupo que realizaram a “Marcha para o oeste”, incentivada pelo então presidente Getúlio Vargas, de “desbravadores” (p.201). Sob o signo da coragem e da bravura, este grupo é descrito como o que fundou cidades, implantou redes telegráficas e possibilitou a integração nacional. Citando o Atlas histórico escolar (1991), afirma o Projeto Araribá:

106 As bandeiras, organizadas pelos proprietários do Planalto de Piratininga, atendiam inicialmente a busca de escravos indígenas, já que os rendimentos locais não suportavam os gastos com a importação de africanos. (Atlas histórico natural (1991:24) apud Projeto Araribá, 2010:200)

Embora haja menção à “caça ao índio”, o material didático não faz nenhuma relação entre os indígenas e sua participação na ocupação do espaço e formação do território. Este grupo é visto apenas sob o signo da escravidão, encarada como sua condição natural, não como uma violência que lhes foi imposta. Afinal, o livro não trata da busca de indígenas para serem escravizados, mas da “busca de escravos indígenas”. O Cerrado é outra importante marca na apresentação da Região Centro-Oeste nos livros didáticos analisados. Sua degradação é tema recorrente, mas sempre abordada de maneira descolada de sua população originária. Os danos são sempre a uma natureza em estado intocado, sem intervenção humana. Estes, ao contrário, são os responsáveis por sua destruição, sem haver distinção sobre seus modos de vida e consequentes impactos ambientais. Para além da feição natural e atividades primárias, percebemos um grave silêncio em relação aos demais setores econômicos na Região Centro-Oeste. A única marca de urbanidade expressada nos livros é a cidade de Brasília. O livro Projeto Araribá chega a mencionar outras cidades, mas não analisa sua dinâmica. Já o livro Jornadas.Geo, nem sequer as menciona. Nele, a única menção à urbanização se dá em uma coluna, ocupando meia página (Figura 18).

107

Figura 18– Única referência à urbanização da Região Centro-Oeste (Jornadas.Geo:2012,52)

Deste modo, o Centro-Oeste é encarado como um espaço quase totalmente agrário, no qual a capital federal é a única cidade existente. A partir deste aspecto, o livro Jornadas.Geo não contribui na apresentação da diversidade. Por outro lado, apresenta uma imagem limitadora da Região, enfocando apenas um de seus aspectos e, fomenta assim, a manutenção de alguns estereótipos. Em relação à abordagem da Região Sul, no livro Jornadas.Geo, a ocupação deste território é apresentada apenas a partir do século XIX, com o estímulo à migração europeia por parte do governo brasileiro. Sendo assim, não apresenta grandes diferenças entre a ocultação dos povos originários, do mesmo modo como retratou as demais regiões. O livro ainda afirma que “as marcas da imigração europeia na Região Sul estão presentes

108 nas paisagens e manifestações culturais da população” (p.54), apresentando o que seria a “moradia típica da Região Sul” (Figura 19).

Figura 19– Moradia típica da Região Sul do país (Jornadas.Geo, p.54)

Ao tratar o tema, o Projeto Araribá aborda os povos indígenas a partir das missões jesuíticas. No entanto, afirma que “nas aldeias, ou missões, onde conviviam jesuítas e guaranis, praticavam-se a agricultura e a criação de gados bovino e equino, além do artesanato” (p.170). Deste modo, oculta a violência simbólica sofrida com a catequização forçada em que indígenas eram obrigados a abandonar suas crenças e culturas em prol da religião católica europeia. O Projeto Araribá afirma que “a imigração consolidou a ocupação da Região Sul com a fundação de cidades” (p.170). Esta imigração é relacionada à qualidade de vida da Região Sul, de acordo com este material didático. Sobre isso, o livro afirma: “a imigração europeia exerceu grande influência cultural sobre a população sulista, que também detém os mais elevados indicadores sociais do país”. Neste sentido, é desenvolvida uma relação

109 de causa-efeito entre a presença de europeus e a elevação dos indicadores sociais e econômicos da região. Apesar dos altos indicadores sociais, há a ressalva sobre seus métodos de aplicação. O Projeto Araribá afirma se tratar de uma média, portanto não sendo possível abarcar a totalidade da população. A mesma crítica está contida no livro Jornadas.Geo, que aponta a presença de “moradias precárias e pobreza, especialmente nas periferias das grandes cidades”. Este apresenta a imagem das moradias localizadas nestas áreas (Figura 20), bem contrastante com o que afirmara ser “a moradia típica da Região Sul”, conforme debatemos acima.

Figura 20– Moradias localizadas na periferia do município de Curitiba (Jornadas.Geo, p.55)

A abordagem da Região Sudeste apresenta sensíveis diferenças em relação às demais regiões supracitadas. Em ambos os livros ela é exaltada como o centro econômico do país. O Projeto Araribá destaca a contradição entre a geração de riqueza e a desigualdade social. Já o livro Jornadas.Geo só menciona a desigualdade social ao fim do

110 último parágrafo do capítulo, em três linhas. Não há problematização, apenas referência, ao afirmar: “apesar de concentrar grande parte da riqueza produzida no Brasil, a Região Sudeste também apresenta pobreza e desigualdade social, assim como acontece em outras regiões do país” (p.59). Após esta única frase e a inclusão da imagem de uma favela no Rio de Janeiro (Figura 21), o capítulo referente à Região é encerrado, sem debater os motivos da desigualdade.

Figura21 – “Nas grandes cidades da região mais rica e desenvolvida do Brasil, convivem lado a lado moradias de alto padrão e moradias em favelas ou cortiços” (Jornadas.Geo, p.59)

Coincidente com a abordagem de todas as demais regiões do Brasil é a seção sobre a ocupação do território da Região Sudeste. No livro Jornadas.Geo, a única imagem utilizada para representar a população da Região Sudeste é de imigrantes italianos em São Paulo (Figura 22). Não há qualquer menção a indígenas, nem a escravizados negros, em nenhum dos livros didáticos na unidade específica da Região Sudeste. Neste silenciamento, há referência apenas a imigrantes europeus.

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Figura22– Imigrantes italianos trabalhando na lavoura de café em São Paulo (Jornadas.Geo, p.57)

Ao retratar a formação da Região Sudeste, além do silenciamento no que tange à abordagem dos povos, há a ocultação da própria escravidão. As abordagens focam exclusivamente nos ciclos de produção, de maneira linear e harmônica, ocultando os sujeitos e modos de produção particulares a cada uma. Neste sentido, se obstaculiza a interpretação das tensões e relações de poder que engendraram a formação socioeconômica da Região, compreendendo-a como um movimento histórico contínuo. Ao longo de toda a unidade, o Projeto Araribá não apresenta uma imagem sequer de negros ou indígenas. As únicas fotografias de pessoas contidas no livro são de brancos em postos de trabalho relacionados ao mercado financeiro ou alta tecnologia (Figuras 23 e 24). Desta forma, não contribui para apresentar a diversidade populacional existente na Região.

112

Figura 23 – Pregão da Bolsa de Valores de São Paulo (Projeto Araribá, p.157)

Figura 24– Pregão da Bolsa de Valores de São Paulo (Projeto Araribá, p.157)

Em relação ao mundo do trabalho, percebemos uma clara distinção entre estes postos apresentados e os referentes à Região Nordeste (Figuras 25 e 26). O Sudeste está sempre relacionado às atividades do setor secundário e terciário, sobretudo de alta

113 tecnologia, enquanto Nordeste se relaciona ao setor primário. Nas perspectivas impressas nos livros, atribuindo positividade à indústria, o Sudeste é descrito como o espaço do moderno, enquanto o Nordeste é o espaço do arcaico, com o predomínio do primeiro sobre o segundo, sem sua problematização.

Figura25– Quebradeira de coco babaçu (Projeto Araribá, p.126)

Figura26– Exportação de mangas em Petrolina (Projeto Araribá, p.131)

114 A Região Sudeste é amenizada também em relação ao trabalho infantil. Em quadro comparativo sobre a questão nas cinco regiões do Brasil (Figura 27), o trabalho infantil é tratado como um fato no Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste. Já na Região Sudeste ele é tratado como uma possibilidade, “denúncia” que apontaria indícios de trabalho infantil, mesmo com a fotografia de um menino engraxate. Apesar disso, o livro promove uma importante relação entre desigualdades raciais e exploração do trabalho infantil, ao afirmar que esta mazela afeta mais crianças negras do que brancas, em todas as regiões do país.

Figura 27– Panorama do trabalho infantil no Brasil (Projeto Araribá, p.54-55)

115 Percebemos, nesta seção uma profunda desigualdade na abordagem das regiões do Brasil a partir de diversos setores. A Região Norte, assim como a Região Nordeste, são as únicas que não contempladas com um capítulo específico para debater suas economias, ao contrário das regiões Sul e Sudeste, no livro Projeto Araribá. A economia da Região Centro-Oeste, por sua vez, é encarada como um devir, em capítulo intitulado “crescimento econômico”. As regiões do Brasil, desta forma, também estariam inseridas na linha da história única, em um trajeto inexorável de desenvolvimento econômico. Tais noções expressadas de desenvolvimento serão nosso tema de análise na próxima seção.

4.4 Noções de desenvolvimento presentes nos livros didáticos

De acordo com Ramón Grosfoguel (2010), “o discurso desenvolvimentista oferece uma fórmula colonial de como se assemelhar ao ‘Ocidente’” (p.478). A partir deste discurso, cria-se a imagem do Ocidente não apenas como modelo de vida ideal, mas como o único modelo possível. Todos os demais espaços estariam em estágios anteriores e, portanto, em déficit com o desenvolvimento. A este movimento, Boaventura de Sousa Santos (2007) chama de “monocultura do tempo linear”: “a ideia de que a história tem um sentido, uma direção, e de que os países desenvolvidos estão na dianteira” (p.29). Verificaremos nesta seção em que medida estes padrões de discurso estão presentes nos livros didáticos analisados. A modernidade não pode ser encarada como um processo que encerra o colonialismo, seu estágio seguinte, mas como uma outra face da mesma moeda, e dela tributária. Não é possível compreender um movimento sem a existência do outro. A negação deste vínculo tem sido, na opinião de Castro-Gómez (2005), um dos mais claros sinais da limitação conceitual das ciências sociais, conforme debatido no segundo capítulo deste trabalho. Ao analisarmos os livros didáticos notamos a persistência desta relação da modernidade como um bem em si mesma, rompendo com o padrão colonial

116 de um período anterior e mais atrasado, além do uso de termos como “desenvolvido” e “subdesenvolvido”. O livro Projeto Araribá exemplifica tal pensamento, ao analisar pirâmides etárias do Brasil, comparando dados de 1980 com 2010. Ao apresentar uma pirâmide de base larga, na década de 80, afirma que “o formato dessa pirâmide é típico de países menos desenvolvidos” (p.41). Em contrapartida, a pirâmide de base mais estreita, em 2010, “aponta para uma tendência a um país mais ‘maduro’” (Figura 28). Não há qualquer reflexão acerca de que desenvolvimento é tratado, além do termo “maduro” indicar que alguns países estão à frente de outros nesta que seria uma linha única da história.

Figura 28 – Pirâmides etárias do Brasil em 1980 e 2010, respectivamente. Projeto Araribá, p.41)

117 Esta perspectiva linear da história se apresenta em outros momentos do Projeto Araribá. Ao abordar a industrialização brasileira, a classifica como “tardia ou retardatária” (p.66), como se houvesse um período para ocorrer a industrialização e o país estivesse em déficit com ele. Todavia, se não havia condições materiais e sociais para a industrialização do Brasil no período da chamada Revolução Industrial do século XVIII, tal classificação como “tardia” se mostra como uma comparação vazia com a história que se desenvolveu a partir da Europa. Mais uma vez, a Europa segue como parâmetro para definir o início da história e, consequentemente, o seu fim. Em um dos textos complementares, o que fecha a unidade sobre a Região Sul do Brasil no Projeto Araribá, há menção ao modo de vida de indígenas e alguns imigrantes na Serra Gaúcha no fim do século XIX. O texto afirma que a chegada dos imigrantes italianos “mudou a face do local”, já que havia “pequenos núcleos de portugueses, poloneses, alemães e indígenas vivendo de forma primitiva e isolada” (p.186). A palavra primitiva nos transmite a ideia de primeiro, algo anterior e arcaico. Deste modo, só é possível considerar um modo de vida primitivo transformado com a chegada de outros sujeitos, porque existe um modo de vida mais avançado e moderno do que ele. Com tal afirmativa, modos de vida diferentes são transformados de modo qualitativo e hierarquizados a partir de um padrão de desenvolvimento exterior. A apresentação da feição física do espaço também não está isenta destas interpretações impregnadas pela colonialidade. Ao abordar os climas do Brasil, o livro Jornadas.Geo lança mão de duas imagens para representar o clima semiárido (Figura 29), típico da Região Nordeste, e o subtropical, característico da Região Sul (Figura 30). Nas imagens, notamos a caracterização do clima do semiárido pelo signo da morte, enquanto o clima subtropical é encarado a partir do signo da diversão do casal que passeia na neve. Tais abordagens reforçam estereótipos sobre os climas típicos dos trópicos segundo a negatividade e reforçam a positividade de climas tipicamente europeus. Não pretendemos negar as mazelas sociais existentes no semiárido nordestino, tampouco a possibilidade de turismo nos climas mais frios. Como todo estereótipo, nenhuma das informações é falsa, porém apresenta apenas um viés da realidade impedindo sua compreensão mais complexa.

118

Figura 29 – Representação do semiárido nordestino a partir de um boi morto pela seca. (Jornadas.Geo, p.108)

Figura 30– Representação do clima subtropical do sul do Brasil a partir do passeio de um casal na neve. Jornadas.Geo, p.109)

119 Ambos os livros analisados – Projeto Araribá e Jornadas.Geo – apresentam fortes marcas das colonialidades do saber e do poder. Traço importante é a presença da representação da diferença apenas figurada em textos complementares. Outros povos, outros saberes, outros modos de vida e outros modelos de desenvolvimento só ganham destaque ao fim de cada unidade, como complemento. Seus conhecimentos não são encarados como dignos de espaço no saber constituído e capazes de interpretar a sociedade de maneira crítica, tal qual os livros dizem promover. O que vemos é a explicação dos conflitos da sociedade moderno-colonial apenas pela sua face moderna, negando a diversidade e o reconhecimento do Outro. Enquanto aos grupos já constituídos nas estruturas de poder é dedicada quase a integralidade das obras, a outros historicamente subalternizados são reservadas uma ou duas páginas ao fim de cada capítulo. Neste sentido, não são criados mecanismos de desconstrução de estereótipos e preconceitos, tão-somente perpetuação do status quo. A democracia da representação passa necessariamente pela igualdade qualitativa e quantitativa. Do contrário, como são organizados os livros analisados, os grupos podem vistos como souvenires, meras peças exóticas de decoração, não como sujeitos ativos, encarados em sua complexidade (Santomé, 1995).

120

Considerações finais

O colonialismo visível te mutila sem disfarce: te proíbe de dizer, te proíbe de fazer, te proíbe de ser. O colonialismo invisível, por sua vez, te convence de que a servidão é um destino e a impotência, a tua natureza: te convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser. (Eduardo Galeano15)

Nosso trabalho foi motivado pela busca de compreender as marcas do colonialismo que se mantêm na sociedade brasileira a partir da hipótese de que a escola e o ensino de Geografia estão fortemente impregnados pelas colonialidades do poder e do saber, análogas ao que Eduardo Galeano classifica como “colonialismo invisível”. Nesse percurso conseguimos perceber que a colonialidade, entretanto, não é invisível, mas salta aos olhos mais sensíveis e está impressa em corpos e mentes. Ela está introjetada no território e em suas territorialidades, nos grupos subalternizados, nas universidades, no ensino de Geografia, nos livros didáticos, nas práticas docentes e regula a maioria das nossas relações sociais. A colonialidade do saber, base e desdobramento da colonialidade do poder, desta forma, se mostra mais duradoura do que o colonialismo formal, a sua origem. Reforçando essa orientação, a pedagogia moderna na qual a nossa Educação está baseada tem contribuído fortemente para a manutenção deste pensamento colonial ao subalternizar povos e seus saberes. Estruturada a partir de linhas radicais, sua função consiste em resgatar o Outro (produzido como) inexistente do lado de lá da linha dos incultos, ignorantes e primitivos, onde imperaria o falso e conduzí-lo à ciência, ao conhecimento, à razão e ao reino da verdade. Qualquer desvio neste percurso e insucesso ficam à cargo do sujeito educando, considerado incapaz de ascender às luzes. É também a partir deste pensamento abissal que se configura o ensino de Geografia. Lecionamos sobre saberes eurocentrados, os quais uma raça branca europeia se impõe a condição de superioridade sobre as demais. Deste modo, os processos espaciais e de construção do território ficam impossibilitados de uma compreensão da

15

A Cultura do Terror/7 em: Galeano, Eduardo. O Livro dos Abraços. Porto Alegre: L&PM, 2012.

121 totalidade dos fatos, uma vez que se ocultam forças em sua criação. No ensino, estes processos são encarados de modo monolítico e linear, como se liderados por um grupo de sujeitos, não havendo reconhecimento de resistências e disputas. Por vezes, o que percebemos nos livros didáticos é o espaço enquanto já dado, algo que está posto e apenas precisa ser analisado. Sua construção e movimento não são considerados. Nesta análise, o passado é reduzido, ao não haver o reconhecimento adequado das bases a partir das quais o espaço se conformou, ignorando tensões e grupos importantes para este processo. Do mesmo modo, o presente é contraído, ao desperdiçar as múltiplas práticas sociais e espacialidades vigentes e postas em práticas por grupos subalternizados. O futuro, por sua vez, é distendido, mas de uma forma linear e evolucionista, que não dá margem para rupturas. O espaço dinâmico, composto pelas relações sociais e também componente destas relações é transformado nos livros didáticos analisados em peça de souvenir. Neste caso, cabe ao espaço ser apenas mirado, como algo estático, mas não ser encarado em sua complexidade e capacidade de transformação. O espaço retorna ao estado em que ainda não o era – o substrato –, como simples superfície a ser habitada. Por outras vezes, o espaço é o único agente. Como percebemos, os livros didáticos eventualmente deixam a cargo do espaço a culpa pelas mazelas sociais ou pela repulsão populacional. Este processo que autores marxistas clássicos como Ann Markusen (1987) poderiam denominar de reificação do espaço, subordinando o social ao espacial. Desta forma, ficam ocultados os reais responsáveis pelas desigualdades sociais, má distribuição de renda e de terras, fome e necessidade de migração. Dessa forma, percebemos que os livros de Geografia analisados – Projeto Araribá e Jornadas.Geo – não apresentam uma visão conceitual adequada do espaço, oscilando ora em uma perspectiva estática do espaço como souvenir, sem bases históricas e conflitos internos, ora sob a visão de ator hegemônico que induziria todas as práticas sociais, sendo responsabilizado pelo que delas resultam, principalmente em relação a desigualdades sociais. A partir da análise dos livros didáticos, percebemos que o espaço, assim como o território, não é encarado como resultado de processos que, embora tenham profundas raízes históricas, não estão finalizados, tampouco estarão algum dia. Afinal, enquanto houver o desenvolvimento de relações sociais, o espaço estará em produção.

122 Sob esse aspecto, se reforça a chamada “Geografia dos professores”, conforme descrita por Lacoste (2009). Neste sentido, a construção da Geografia escolar é atravessada por relações de poder que visam ocultar seu real papel de saber estratégico e ocultando as análises espaciais enquanto instrumentos de poder. Esta prática servia, e continua servindo, para mistificar o espaço, escamoteando a importância estratégica de um saber e pensar um espaço para nele se organizar. No que tange aos discursos expressados nos livros didáticos para abordagem da formação territorial do Brasil, percebemos que estes sustentaram a noção do tema a partir de um estudo raso sobre o espaço colonial brasileiro. Sob uma perspectiva eurocêntrica, expressando o total domínio do colonizador neste processo, os materiais analisados silenciam povos originários, ignorando seus saberes, práticas e seu papel na formação territorial do Brasil. Não há reconhecimento de indígenas, africanos ou outros povos subalternizados neste percurso. Em geral, os louros da construção do território brasileiro, encarado sempre como um processo linear, homogêneo e pacífico, fica para os portugueses. Indígenas e negros, quando mencionados, são em alusão estrita ao período da primeira invasão colonial ou à escravidão, nunca como agentes da formação territorial. Em síntese, os livros didáticos expressam a formação territorial do Brasil como um processo iniciado por portugueses em 1500, data da primeira invasão, e por eles protagonizado. Confundida com os limites territoriais, a formação estaria encerrada no momento em que são conquistados territórios no oeste do continente. Não há reconhecimento de tensões, violência, extermínio de povos, apenas a descrição homogênea e linear da conquista portuguesa. Para os livros didáticos, a formação territorial do Brasil, fixada em um tempo passado, nada mais foi do que o cumprimento teleológico do domínio europeu, representado pelo português, sobre povos originários. A superioridade cultural e racial de um povo sobre outros incultos e incivilizados. Quando analisamos as obras por completo, não nos atentando apenas ao que os materiais didáticos chamam de formação territorial do Brasil, a todos os discursos sobre o país, finalmente surgem narrativas sobre outros povos além dos colonizadores europeus. Contudo, percebemos que a mera inserção destes grupos não lhes garante uma abordagem democrática. Frisa-se, neste sentido, a necessidade de atentarmos não apenas ao que o currículo diz, mas a como diz. Voltamos sempre a nossa atenção a quais grupos figuram

123 nas páginas dos livros didáticos de Geografia, e principalmente de que forma eles vêm sendo representados. Povos historicamente subalternizados como indígenas e africanos escravizados são representados nas páginas dos materiais didáticos a partir de atributos que lhes aprisionam. Não há um debate complexo acerca das condições destes povos, tão-somente estereótipos de como eles se comportam e como isso contribuiu para a constituição da população brasileira. Divergindo desta perspectiva, não encaramos a formação cultural de uma população como fruto de contribuições de cada raça, o que reafirmaria o famigerado Mito das Três Raças e ocultaria contradições e tensões entre elas. Não vemos a nossa cultura como somente o acúmulo de uma cultura indígena, que nos ensinou a tomar banhos, a cultura negra, que contribuiu com nossa ginga e culinária, e a cultura europeia, da qual herdamos a razão, a língua e a alta cultura, tal qual apregoam os livros didáticos analisados, embora sejam elementos importantes. Encaramos nossa cultura, formação populacional e territorial como frutos de um tenso processo marcado profundamente pela lógica colonial do poder e do saber. Necessitamos incluir as raças nesta construção, mas nos recusamos a enclausurá-las em atributos. Embora de construção coletiva, este processo não é igualitário, tampouco democrático. Em seu cerne, está a violência, a imposição de um povo sobre outro, promovendo o seu silenciamento e a produção de sua inexistência. Neste movimento, povos e seus conhecimentos são deslegitimados em favor de saberes europeus historicamente legitimados desde a colonização. Ao abordarem as regiões do Brasil, os livros didáticos (re)produzem discursos que as narram como espaços monolíticos. Sem história anterior à colonização, notamos a Região Norte expressada ainda como um sertão a ser explorado, ao mesmo tempo em que exalta uma natureza intocada, sem menção aos povos que lhes tocaram de modo harmônico por séculos. O Nordeste é a região do porvir, considerada área história de repulsão populacional¸ no qual o crescimento econômico e a modernização da região, sempre aliados, promoverão a igualdade social que o espaço, como ente autônomo, não fora capaz de realizar. Semelhante à região Nordeste, o Centro-Oeste é descrito como um espaço totalmente agrário e em crescimento. As abordagens das Regiões Sul e Sudeste vão em direções opostas às supracitadas. Ambas são consideradas regiões que deram certo, nas quais a modernidade cumpriu seu

124 papel. Nestas Regiões, ao contrário das demais, a desigualdade é a exceção, não a regra. Na Região Sul, o apelo está relacionado à intensa migração europeia, enquanto na Região Sudeste o êxito se deve ao avanço do padrão de acumulação capitalista e a industrialização, representante por excelência da modernidade. A modernidade, nestas perspectivas, é sempre um objetivo a ser alcançado, estando os problemas e desigualdades sociais associados à sua incompletude. Neste sentido, a face da modernidade apresentada é frequentemente a da positividade, ocultando a sua contraface colonial. A ideia na qual se baseia a modernidade tem forte apelo evolucionista, em uma monocultura do tempo linear (Santos, 2007), na qual o distanciamento da Europa denotaria sua incapacidade de suprimir suas deficiências intrínsecas. Neste sentido, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste estariam em déficit por ainda não terem se europeizado o suficiente. Enquanto materiais didáticos, os docentes entrevistados classificam os livros como maçantes, desinteressantes, com textos longos que não convidam os estudantes à sua leitura. Apesar de apontarem diversas falhas, fazem uso deles em suas aulas, em maior ou menor medida. É recorrente o apelo ao aporte iconográfico presente nos livros, não reconhecendo as imagens como veiculadoras de discursos particulares e interessados, apenas como ilustrações. Desta forma, muitas vezes deixam de ser identificados estereótipos e preconceitos na representação de povos e espaços. Quando identificam ausências de um discurso que privilegie ou ao menos aborde populações subalternizadas, os professores entrevistados afirmam recorrer aos textos complementares no fim de cada unidade presente nos livros didáticos. Deste modo, há o reforço do ensino de Geografia sob a perspectiva de um currículo turístico (Santomé, 1996). Esta percepção se reforça a partir da recorrência das seguintes atitudes, formalizadas pelo autor:

- A trivialização, ao que Santomé refere o estudo dos grupos sociais subalternizados com superficialidade e banalidade. Nesta perspectiva, são valorizados seus hábitos, danças e elementos exóticos de cada grupo; - Como souvenir, ao estilo de uma viagem turística, com presença quantitativa pouco significativa no decorrer do ensino escolar. Neste sentido, as culturas e grupos subalternizados figurariam em pequena parte das nossas práticas educativas. No nosso

125 caso analisado, como os livros representam os povos subalternizados, ao fim de cada unidade, em textos complementares. Esta atitude pode ser verificada também, quando entre todos os materiais didáticos disponíveis, ou mesmos brinquedos, há um em referência à cultura indígena, ou entre todas as bonecas brancas, há uma negra; - Ao desconectar as situações de diversidade da vida cotidiana nas salas de aula. Não reconhecendo os grupos subalternizados como constituintes do cotidiano, as abordagens são realizadas em “Dias De...”. Neste sentido, um dia é privilegiado para abordar a cultura indígena ou o movimento negro, enquanto nos demais é mantida a narrativa eurocêntrica; - A estereotipagem, recorrendo a imagens estereotipadas das pessoas e situações referentes aos grupos subalternizados. Nesta atitude, são construídos atributos para cada grupo e a apresentação deles é criada a partir, e unicamente, a partir deles. Não há reconhecimento da complexidade ou diversidade interna; - A tergiversação, quando se recorre à estratégia de deformar a realidade, ocultar a história e construir uma narrativa que naturalize as situações de opressão. Deste modo, as diferenças são consideradas as causas das desigualdades.

No movimento de ocultação do ensino de Geografia enquanto saber estratégico, em uma tentativa de docilizar os sujeitos educandos, lançou-se mão desta importante disciplina escolar para construir uma identidade nacional a partir do território. Percebemos que esta construção é formada pelos livros didáticos a partir de graves lacunas. Estes materiais não contribuem com uma identidade baseada na diversidade e abordagem democrática dos diversos grupos que nos compõem. Nesta análise, notamos que o ensino de Geografia mais tem reproduzido do que tensionado discursos de colonialidade do saber e do poder. Vemos o predomínio de uma perspectiva eurocêntrica, a manutenção do evolucionismo encarando a Europa como ponto de chegada e a naturalização das diferenças dos povos subalternizados. Assim, construímos uma identidade nacional que não se identifica com ela mesma, mas a partir de discursos estrangeiros traduzidos e tributários do pensamento europeu único. Sob esta égide, verificamos que o eurocentrismo não é propriedade dos europeus, mas é também constitutivo e organizador de nossa sociedade e, por conseguinte, de nossa Educação.

126 Recorrer a um currículo turístico e uma perspectiva linear da história que homogeneíze grupos e espaço, enclausurando-os em estereótipos e ignorando a violência sofrida, lutas de resistência e o território como produto destas tensões, esvazia não somente o próprio conceito de território, mas o da escola. Desta forma, o currículo deixa de ser encarado como uma arena política, um campo de disputas nos quais grupos desejam afirmar seu poder de representação, elevando suas categorias em detrimento de outras que serão estigmatizadas ou silenciadas. Todo o processo se torna natural e contra a naturalidade não cabe nada além do conformismo e frustração. Reconhecer as tensões constituintes da produção do território nacional é fundamental para o ensino de Geografia, mas também para a compreensão da escola como espaço de poder e disputa. Desnaturalizar estes processos é condição sine qua non para desconstruir a perspectiva eurocêntrica de pensamento único e encarar o futuro como problemático, e não inexorável, como nos ensina Paulo Freire (1996). Entretanto, só pode haver transformação de uma realidade conhecida e o anúncio de uma nova sociedade não se dá sem a denúncia das forças de poder opressoras da anterior. Neste sentido refutamos teóricos marxistas clássicas da Educação, como Louis Althusser16, que encaravam a escola como uma mera reprodutora das forças da sociedade capitalista. Neste pensamento, e Educação seria uma instância dentro da sociedade e, portanto, reproduziria suas forças de poder a fim de mantê-las. Obviamente Althusser não tinha como objetivo definir o que a escola deveria ser, mas o que ela era. Sob esta perspectiva reprodutivista, a escola estaria submetida à ideologia dominante (capitalista), com objetivo de otimizar o sistema de acumulação. Qualquer movimento dos docentes ou busca de práticas alternativas seria em vão, uma vez que sempre haveria a reprodução da ideologia dominante e da sociedade capitalista. Movimento dissonante, mas com o qual discordamos igualmente, diz respeito à Educação como a redentora da sociedade. Ao contrário de Althusser, nesta perspectiva a escola não seria uma instância dentro da sociedade e sua reprodutora, mas acima dela. Bastaria uma reforma exclusivamente educacional para a reconstrução completa da sociedade. Esta perspectiva se mostra ingênua ao ignorar as demais forças e relações políticas e sociais que engendram a educação ampla, descolando-a da própria sociedade. Assumir esta perspectiva implica em encarar a educação, qual seja, enquanto um bem em 16

Refiro-me à obra Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado

127 si mesmo. Desta forma, despolitiza os debates educacionais e ignora a desigualdade de forças condicionantes das práticas educativas, moderno-coloniais, eurocêntricas, capitalistas, racistas, machistas, heteronormativas, etc. Negar as duas perspectivas não significa abandonar a crença na Educação em seu potencial de mudança. Encaramos a Educação como detentora de um importante papel nesta luta em seu potencial transformador. Neste objetivo, devemos reconhecer os condicionantes aos quais estamos sujeitos. Como nos ensina Paulo Freire (1997:671): “Não há possibilidade de pensarmos o amanhã, mais próximo ou mais remoto, sem que nos achemos em processo permanente de ‘emersão’ do hoje, ‘molhados’ do tempo que vivemos”. Uma Educação transformadora precisa reconhecer nosso condicionamento por forças moderno-coloniais da sociedade, mas negar a clausura das determinações. É possível um trabalho nas brechas, mais autônomo e democrático, que tensione e auxilie a desalojar conceitos coloniais. Contudo, as brechas do ensino não se abrem, mas são abertas, com muito esforço por educadores e educandos. Para cumprimento de tal fim, é fundamental repensar o ensino acadêmico de Geografia e em que medida ele nos auxilia a tensionar as colonialidades do poder e do saber vigentes. De acordo com os professores entrevistados na presente pesquisa, há uma grave ausência de abordagens que desconstruam estereótipos e preconceitos acerca dos povos que formaram o território brasileiro. Neste sentido, uma prática docente descolonial na escola se dificulta sensivelmente se construída a partir de uma geografia acadêmica com bases coloniais. Maiores ainda são seus obstáculos quando se apoiam em livros que, da mesma maneira, abordam povos de modo a reforçar estereótipos e preconceitos. Visando romper com uma prática docente e um ensino de Geografia com padrões coloniais, precisamos repensar nossas bases teóricas e práticas. Para atingir este objetivo, alguns percursos precisam sofrer câmbios significativos. Não buscamos realizar uma prescrição de práticas, afinal, o ensino se dá em espaços-tempos diversos, consequentemente com sujeitos diversos, entretanto consideramos necessário debater alguns aspectos que contribuam com o tensionamento da colonialidade:

128 - Deslocar o atual eixo narrativo: promover o que Boaventura de Sousa Santos chama (2007) de ecologia de saberes. Os múltiplos conhecimentos, de múltiplos povos nesta perspectiva não devem ser encarados como acessórios em vias de complementar um saber científico acadêmico moderno, mas saberes com mesmo valor e status de igualdade. Não se trata de admitir a existência de outros conhecimentos, mas de incorporá-los enquanto dimensão e compreensão do real. - Recusar a educação bancária: negar que a Educação seja feita apenas do educador para o sujeito a ser educado, em uma perspectiva que a encara como um resgate. O conhecimento não é algo que o aluno recebe, mas o que constrói coletivamente, com seus semelhantes, mas sobretudo com os diferentes. Desta forma, os saberes dos educandos compõem o aporte de conhecimentos que circulam na escola, em forte diálogo com o primeiro aspecto. Para isto, há que se ter um olhar sensível ao Outro, não apenas olhá-lo como fixado em um atributo, mas enxergá-lo em sua complexidade. - Produzir um cotidiano descolonial: recusando a perspectiva explicitada do currículo turístico, os saberes subalternizados precisam compor o dia a dia da escola. Um currículo antimarginalização precisa ser realizado cotidianamente, em todas as atividades educativas, privilegiando as culturas historicamente silenciadas. O saber é historicamente subalternizado a partir da subalternização de quem os detêm. Um ensino descolonial deve recusar qualquer preconceito, de raça, gênero, classe ou orientação sexual e promover a valorização da diferença cotidianamente. - Reconhecer múltiplas geograficidades: é necessário que seja reconhecida a dimensão da violência e da subalternização, mas sobretudo que se reconheça sua contraface de resistência. A Geografia da dominação não pode ocultar a Geografia da Libertação como a praticada por africanos e afrodescendentes em quilombos, sem-terra e sem-teto em suas ocupações rurais e urbanas. Há que se valorizar a possibilidade de subverter a norma, reconhecendo múltiplas (re)construções. - Reconhecer múltiplas temporalidades: recusar a temporalidade linear que hierarquiza povos e espaços a partir de uma hierarquia eurocêntrica representante do fim desta linha. Nesta perspectiva, há a contemporaneidade, não apenas a simultaneidade. O saber geográfico, assim, necessita deixar de ser uma ciência do presente e buscar compreender seus fenômenos a partir de análises geo-históricas. Não há contração de um tempo ou dilatação de outros. É reconhecendo o passado em toda a sua complexidade,

129 que se compreende o presente e pode ser anunciado um novo futuro. Desta forma, o ensino de Geografia pode cumprir seu papel de saber estratégico, de conhecimento que compreende e também é capaz de proporcionar a transformação do espaço. - Reconhecer a escola como espaço de luta: a escola não apenas abriga forças moderno-coloniais, mas em certa medida as reproduz. Enquanto constructo social, esta escola que está posta precisa ser constantemente questionada desde as suas práticas autoritárias de políticas governamentais até às mais naturalizadas, como avaliações e reprovações. Como importante arena de luta, esta instituição precisa ser conquistada e transformada, sem prescindir de um debate social amplo.

Desenvolvidas nossas considerações, admitimos que o ensino de Geografia e seus materiais didáticos tal qual estão postos mais auxiliam na reprodução de um pensamento eurocêntrico moderno-colonial do que no seu tensionamento. Entretanto, negando a sua inexorabilidade, percebemos que há possibilidades de resistência e diversas alternativas que podem ser vislumbradas a partir de reformulações teórico-práticas. Podemos auxiliar a desalojar este padrão de poder e saber colocados e promover coletivamente, como ensinam os resistentes zapatistas, “um mundo onde caibam muitos mundos”.

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Anexos

Entrevista Base

1.

Qual é a sua visão sobre os livros didáticos de Geografia?

2.

Como você se relaciona com os livros didáticos de Geografia em suas aulas?

3.

Você participou da escolha dos livros didáticos em sua escola?

4.

Quais foram os critérios adotados para esta escolha?

5.

Qual é a sua opinião sobre a visão de Geografia expressada nos livros didáticos?

6.

O que você destaca como pontos positivos dos livros didáticos de Geografia?

7.

Quais são os pontos negativos dos livros didáticos de Geografia?

8.

Como você considera a abordagem sobre os povos que participaram da formação

territorial brasileira nos livros didáticos de Geografia? 9.

Você identifica estereótipos e preconceitos na abordagem desses grupos nos livros

didáticos de Geografia? 9.1.Se sim, como você lida com eles? 10. Como os diversos povos que participaram da formação territorial brasileira foram trabalhados na sua formação acadêmica? 11. Após concluir a universidade, você fez algum curso de atualização ou formação continuada?

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