Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho

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LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166.

Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho Eliane Gouvêa Lousada1 Simone Maria Dantas-Longhi2 Resumo: Neste capítulo, discutiremos alguns dos resultados de pesquisas realizadas a partir de textos de entrevistas com jovens professores de francês, que tiveram por base os pressupostos teóricos do Interacionismo Social (VYGOTSKI, [1934]1997), do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 2004; 1999/2009) e da Clínica e Ergonomia da Atividade (CLOT, 2008; FAÏTA, 2004). Em nossos dados, compostos por entrevistas em autoconfrontação e de instrução ao sósia, identificamos a presença de: i) uma voz fazendo referência ao pensamento dos professores durante suas aulas, o que chamamos de voz da fala egocêntrica reconstituída (DANTAS-LONGHI, 2013); ii) uma voz da fala egocêntrica, com características bastante semelhantes ao que havia sido encontrado por Vygotski ([1934]1997). Mais especificamente, este capítulo tem o objetivo de apontar quais as circunstâncias que favorecem a ocorrência dessa voz na fala dos professores e que função pode ser-lhes atribuída, com o intuito de melhor compreender o papel do gênero textual entrevista de confrontação ou, em outras palavras, das verbalizações sobre o trabalho, no desenvolvimento do professor e de sua atividade. Palavras-chave:

Análise

do

Trabalho

Educacional;

entrevistas

de

confrontação;

desenvolvimento

Introdução Neste capítulo, apresentaremos alguns dos resultados das análises de “entrevistas de confrontação” com professores em formação, procurando apontar quais as contribuições desse gênero textual para o desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. Para tanto, mostraremos, de forma mais específica, o que chamamos de “voz da fala egocêntrica” e “voz da fala egocêntrica reconstituída”, duas vozes que fazem referência ao pensamento do professor sobre seu trabalho verbalizado em textos produzidos em situação de trabalho educacional. Essas vozes foram identificadas em entrevistas em autoconfrontação e de instrução ao sósia, em um contexto de intervenção sobre o trabalho de jovens professores e 1 2

DLM-FFLCH-USP, [email protected] Doutoranda bolsista CNPq – DLM-FFLCH-USP, [email protected].

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LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166.

formadores. Apoiando-nos em pressupostos teóricos do Interacionismo Social (VYGOTSKI,

1934/1997),

do

Interacionismo

Sociodiscursivo

(BRONCKART,

1999/2009, 2004, 2006, 2008) e da Clínica da Atividade e Ergonomia da Atividade (CLOT, 2008; FAÏTA e VIEIRA, 2003; FAÏTA, 2004), levantamos a hipótese de que a “voz da fala egocêntrica” e a “voz da fala egocêntrica reconstituída” são indícios de uma tomada de consciência que se dá por meio da verbalização sobre o trabalho propiciada por essas entrevistas de confrontação. No quadro da análise das situações de trabalho, esses tipos de entrevista constituem métodos de intervenção sobre a atividade baseados na noção de confrontação entre o sujeito e sua atividade, seja ela representada pelas imagens de uma tarefa realizada (como no caso da autoconfrontação) ou pela projeção de uma tarefa a ser cumprida (como no caso da instrução ao sósia). Em pesquisas anteriores dos grupos ALTER e ALTERAGE (CNPq), usamos ambos os métodos para a análise do trabalho educacional e, com o auxílio do modelo do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 1999/2009) para a análise de textos, identificamos algumas características inerentes a esses tipos de entrevista e que apontam para uma tomada de consciência propiciada pela verbalização sobre a atividade. Um dos indícios dessa tomada de consciência, a nosso ver, se materializa nas ocorrências de vozes que revelam traços do pensamento e das decisões tomadas no decorrer da atividade. Para sustentarmos nossa tese, tomaremos como ponto de partida alguns dos postulados do Interacionismo Social sobre a relação entre linguagem e pensamento e o desenvolvimento potencial que a verbalização sobre a atividade propicia, para, em seguida, discutirmos os objetivos e as características da instrução ao sósia e da autoconfrontação. Tendo exposto nossos pressupostos teóricos, explicaremos a metodologia adotada nas duas pesquisas às quais faremos referência neste capítulo. Na seção seguinte, abordaremos alguns dos resultados encontrados em ambas as pesquisas. Dentre eles, discutiremos mais profundamente a voz da fala egocêntrica e a voz da fala egocêntrica reconstituída, buscando defini-las quanto a sua forma e quanto a sua função. Finalmente, apresentaremos algumas conclusões a que chegamos, que apontam para a importância do gênero textual “entrevistas de confrontação” para criar diálogos sobre o trabalho que levem à tomada de consciência e ao desenvolvimento dos professores e de sua atividade.

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1 Pressupostos teóricos Nossas pesquisas pertencem ao conjunto de trabalhos desenvolvidos pelo grupo ALTER-AGE/CNPq, um dos subgrupos de pesquisa vinculados ao grupo ALTER-CNPq3 (MACHADO, 2004). Assim como outros trabalhos desenvolvidos pelo grupo ALTER-CNPq (LOUSADA, 2006; BUENO, 2007; MACHADO; LOUSADA, 2011) e por nosso grupo (LOUSADA, 2011; LOUSADA e BARRICELLI, 2011), ancoramos nossas pesquisas nos fundamentos teóricos e metodológicos do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 2004; 1999/2009) e nos estudos vygotskianos (VYGOTSKI, [1934]1997; FRIEDRICH, 2012). Há pouco mais de uma década, as pesquisas do grupo ALTER têm se voltado à análise do trabalho de profissionais da educação, acrescentando ao referencial teórico de base, o ISD, a contribuição de estudos desenvolvidos pela Clínica da Atividade (CLOT, 1999, 2008) e pela Ergonomia da Atividade dos profissionais da educação (FAÏTA, 2004; AMIGUES, 2004), correntes teóricas que também compartilham pressupostos do Interacionismo Social. É na esteira desse debate interdisciplinar que desenvolvemos nossas pesquisas, unindo teorias aparentemente distantes, mas que podem alimentar um diálogo extremamente rico a partir de conceitos-chave da teoria vigotskiana como os de instrumento, pensamento, linguagem e desenvolvimento. Com esse diálogo em mente, veremos, a seguir, alguns dos pressupostos teóricos que embasam nossas pesquisas.

1.1 Pensamento, linguagem e desenvolvimento humano De uma perspectiva vygotskiana, o desenvolvimento humano consiste em um movimento não linear, repleto de altos e baixos e impulsionado pela interação social. Interagindo com o meio em que vive, o homem é capaz de se apropriar de conhecimentos nunca antes experimentados apenas pelo relato de seus pares, o que nos revela o caráter sócio-histórico do desenvolvimento humano (VYGOTSKI, 2004). Nessa interação, é preponderante o papel da linguagem como instrumento simbólico que medeia a relação entre o sujeito e o meio em que vive e também a

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Análise de Linguagem, Trabalho Educacional e suas Relações.

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relação do sujeito consigo mesmo, pelo pensamento, como aponta Friedrich (2012, p. 94): “A linguagem não expressa, não reflete, não significa o pensamento. Ela funciona como um meio [médium], ela faz com que o processo de pensamento se realize; em suma, o pensamento se faz através dela”.

Do ponto de vista filogenético, Vygotski traça duas raízes distintas para o pensamento e a linguagem, cujas origens não “evoluem nem paralelamente nem igualmente” (VIGOTSKI, 1997, p. 149). Vygotski ([1934]1997) acredita que o pensamento tem uma fase pré-verbal, uma inteligência prática, ligada à “capacidade de resolução de problemas e de alteração do ambiente para a obtenção de determinados fins”. A partir de um determinado estágio da evolução humana, pensamento e linguagem, embora não coincidentes, se tornam processos indissociáveis. A mesma associação entre linguagem, pensamento e interação social também foi constatada por Vygotski ([1934]1997) no plano ontogenético do desenvolvimento humano. Retomando um experimento desenvolvido por Piaget ([1923]1968) sobre a fala egocêntrica em crianças em fase pré-escolar, Vygotski ([1934]1997) inverte o raciocínio piagetiano segundo o qual a criança evoluiria de um estágio autístico em direção a um pensamento socializado. Em seus estudos, Piaget ([1923]1968) havia observado que, até por volta dos cinco anos de idade, a linguagem egocêntrica, espécie de monólogo lacunário em que a criança dialoga consigo mesma é mais comum do que a linguagem socializada, dirigida a um destinatário. Como essa forma de linguagem tende a desaparecer com o passar dos anos, Piaget ([1923]1968) concluiu que a presença da fala egocêntrica seria a evidência do caráter autístico do pensamento infantil, que seria superado e tenderia a desaparecer com a maturação da criança. Ao repetir o experimento de Piaget, Vygotski ([1934]1997) elabora uma interpretação completamente distinta dos resultados encontrados. Em suas experiências, Vygotski ([1934]1997) constatou que a linguagem egocêntrica aumentava em momentos em que as crianças eram confrontadas

a

atividades

que

as

desafiassem.

Nesses

momentos,

elas

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verbalizavam não apenas sobre as ações que desempenhavam naquele instante, mas também sobre suas opções, fazendo uma espécie de plano de ação para a resolução do problema que se apresentava. Com base nos experimentos realizados, Vygotski ([1934]1997) elabora uma teoria sobre o desenvolvimento do pensamento e da linguagem nas crianças. Para ele, quanto a sua função, a linguagem egocêntrica das crianças em fase pré-escolar desempenha o mesmo papel da linguagem interior dos adultos, ou seja, de mediação do sujeito consigo mesmo. No entanto, quanto a sua forma, ela carregaria traços da linguagem socializada, por ser ainda verbalizada. Com isso, Vygotski ([1934]1997) chega à conclusão de que a linguagem egocêntrica é um fenômeno que indica a interiorização da linguagem, originariamente social, para um plano individual e que sua desaparição indica o desenvolvimento da linguagem interior. Ainda que a interpretação de Vygotski ([1934]1997) sobre o surgimento da fala egocêntrica difira substancialmente da proposta por Piaget ([1923]1968), ambos os psicólogos compartilham de duas teses: - a primeira, cuja formulação pertence a Claparède4, diz que “as dificuldades e perturbações que surgem em uma atividade conduzida automaticamente levam à uma tomada de consciência dessa atividade” (VYGOTSKI, [1934]1997, p.96, tradução nossa). - a segunda declara que “a aparição da linguagem sempre atesta esse processo de tomada de consciência” (VYGOTSKI, [1934]1997, p.96, tradução nossa). Essas duas teses nos levam a concluir que, por um lado, as dificuldades e perturbações – ou os conflitos – podem funcionar como motores para a tomada de consciência dos sujeitos quanto a sua atividade e consequentemente para seu desenvolvimento e, por outro lado, que traços desse processo de tomada de consciência podem ser encontrados na análise da linguagem. Clot (1999, 2001), ao discorrer sobre os métodos de coanálise das situações de trabalho, ressalta que, do ponto de vista vygotskiano, o diálogo, evidenciando as controvérsias entre diferentes maneiras de realizar o trabalho e, portanto, gerando dificuldades e conflitos entre pares, pode ser considerado como motor do desenvolvimento. É exatamente a

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CLAPARÈDE, E. (1923). Préface. In : PIAGET, J. Le langage et la pensée chez l’enfant. Neuchâtel: Delachaux & Niestlé, 1968.

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criação desses conflitos que é buscada através dos métodos de autoconfrontação e instrução ao sósia. A concepção de que os conflitos têm um papel importante para o desenvolvimento e de que podemos recuperar esses traços na linguagem influencia nossa pesquisa em duas vertentes: de maneira geral, na compreensão que temos sobre a linguagem e seu papel no desenvolvimento; de maneira mais específica, no reconhecimento da importância de alguns gêneros textuais, sobretudo os que propiciam um diálogo e a criação de perturbações e controvérsias sobre o trabalho, para o desenvolvimento do professor e de sua atividade.

1.2 O desenvolvimento humano no trabalho Conforme Machado (2004), diversas disciplinas têm se interessado em estudar como as transformações recentes no mundo do trabalho afetam os trabalhadores, buscando compreender a origem desses problemas e como superálos. Para Bronckart (2006), o recente interesse da didática das línguas na problemática do trabalho educacional é o resultado da evolução dessa disciplina e de seu encontro com outras, como a ergonomia de tradição francófona. Segundo Machado (2007) e Barricelli (2012), uma das maiores contribuições da ergonomia francófona reside justamente em não resumir o trabalho ao que se espera do trabalhador, ou seja, à tarefa a ser realizada. Assim, opõe-se no campo da ergonomia o trabalho prescrito, que corresponde ao conjunto de normas mais ou menos explícitas a que o trabalhador deve se submeter para a realização de seu trabalho e o trabalho real5, sua efetiva realização. Além disso, de uma perspectiva ergonômica, há sempre uma distância intransponível entre o trabalho prescrito e o trabalho realizado, uma vez que, como afirmam Guérin et al. (2001, p. 15): A atividade de trabalho é uma estratégia de adaptação à situação real de trabalho, objeto da prescrição. A distância entre o prescrito e o real é a manifestação concreta da contradição sempre presente no ato de trabalho, entre “o que é pedido” e “o que a coisa pede”.

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Na ergonomia clássica, difere-se trabalho prescrito de real. No entanto, como Clot (1999) propõe o termo real da atividade, que compreende as atividades que foram ou não realizadas, quando adotamos esse conceito, utilizamos o termo trabalho realizado, para referirmo-nos ao trabalho real de que nos fala a ergonomia.

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Pode-se dizer que a ergonomia de tradição francófona nada contra a corrente de abordagens produtivistas do trabalho, que se preocupam apenas com o rendimento do trabalhador e com tentar reduzir a distância entre o que um trabalhador consegue fazer e o que se espera dele. Ao contrário, para a Ergonomia, a distância entre trabalho prescrito e trabalho real é vista como parte constitutiva da dinâmica homem/trabalho e seu estudo pode ajudar a trazer luz aos conflitos que ocorrem nas situações de trabalho e aos problemas nela gerados (LOUSADA, 2006). Conjugando os estudos vygotskianos à tradição da ergonomia francófona, Clot (1999, 2001, 2009), dá um passo adiante na compreensão da dualidade trabalho prescrito e trabalho real, ao assumir o postulado vygotskiano de que o comportamento humano observável é apenas uma ínfima parte das inúmeras possiblidades que se apresentam ao homem em seu agir. Para Vygotski, “essas possibilidades não realizadas de nosso comportamento [...] são uma realidade incontestável, assim como as reações que triunfaram” (VYGOTSKI, 2003 [1925]1932], p. 76, tradução nossa). Sendo assim, Clot (1999) elabora o conceito de real da atividade, que se distingue do de trabalho realizado. O real da atividade, na formulação de Clot (1999, 2001), corresponde não apenas ao que o trabalhador foi capaz de realizar, mas também ao que poderia ter feito e não fez, ao que quis fazer e não conseguiu ou até mesmo ao que fez para não realizar o que deveria ter feito. Trata-se de uma dimensão psicológica da atividade que considera as potencialidades, mas também os impedimentos ou as amputações dos gestos dos indivíduos. Para Clot (1999, 2001), são justamente esses impedimentos que se encontram na origem do sofrimento no trabalho e, para superar essas dificuldades, os sujeitos recorrem ao grupo a que fazem parte. Assim como não se resume a uma simples realização de tarefas, o trabalho, segundo Clot (1999, 2001), também não se restringe a uma dimensão puramente pessoal, como se os indivíduos vivessem isolados. Pelo contrário, em uma perspectiva ergonômica, considera-se que o trabalho se desenvolve justamente no seio dos coletivos de trabalho, que se constituem como locais de reorganização da atividade e de transmissão dos saberes fixados na história do métier. Esses saberes se organizam como tipos relativamente estáveis de condutas consideradas aceitas

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em um meio de trabalho, modos eficazes de conduzir a atividade a seu objetivo, o que Clot et al. (2000) chamam, em analogia aos estudos bakhtinianos, de “gêneros profissionais”. Sendo assim, para Clot (1999), o métier é, ao mesmo tempo, pessoal, pois contém uma dimensão estilística; interpessoal, uma vez que é alimentado pelo diálogo no seio dos coletivos; impessoal, pois responde a tarefas e prescrições; e transpessoal, pois se apoia em um gênero, que guarda sua memória. Machado e Lousada (2011) retomam essa ideia e a desenvolvem, para caracterizar especificamente o trabalho do professor, salientando o caráter multidimensional de sua atividade, orientada por prescrições e por modelos para o agir, construídos historicamente, e que se desenvolve em interação permanente com outros actantes, por meio de instrumentos, materiais ou simbólicos, recriados de maneira criativa, de acordo com as diferentes situações, necessidades e capacidades. Tendo em vista que o trabalho realizado corresponde apenas a uma parte visível do trabalho, as correntes das Ciências do Trabalho de inspiração vygotskiana usam o recurso de instrumentos mediadores que possibilitem a intervenção e a análise do trabalho, como a instrução ao sósia e a autoconfrontação. Como ressalta Clot (2011), baseados na premissa de que é preciso “transformar para compreender”,

esses

métodos

de

intervenção

buscam

proporcionar

o

desenvolvimento não apenas dos sujeitos, mas de todo o coletivo de que fazem parte e, em última instância, da própria atividade de trabalho. Estamos, aqui, diante da noção de instrumento psicológico, proposta por Vygotski ([1982]2004). Os instrumentos psicológicos, dentre os quais a linguagem, permitem a ação do sujeito sobre os outros e sobre si-mesmo, fazendo com que a atividade entre em uma zona de desenvolvimento. Para Faïta e Vieira (2003), a autoconfrontação consiste em um método de intervenção subordinado a uma demanda formal ou informal de resolução de problemas encontrados na situação de trabalho. Nesse método, após uma primeira etapa de constituição de um coletivo de trabalhadores que participarão do processo, o conjunto dos participantes elege algumas situações de trabalho a serem filmadas para posterior co-análise. Em um primeiro momento, filma-se uma sequência de trabalho de dois trabalhadores voluntários. Na segunda etapa, a entrevista em autoconfrontação simples, cada um dos trabalhadores será confrontado ao filme

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correspondente a sua atividade junto com o pesquisador, que buscará fomentar o diálogo fazendo perguntas, pedindo esclarecimentos ou reorientando o rumo das discussões. Na terceira etapa, a entrevista em autoconfrontação cruzada, pesquisador e trabalhadores se reúnem novamente para assistir aos filmes de ambos, que servirão de base para a discussão entre os pares. As autoconfrontações simples e cruzadas são também gravadas em vídeo e, em uma etapa final, o retorno ao coletivo, poderão servir de suporte para sessões de discussão junto ao conjunto dos trabalhadores. Para Clot (1999, 2001), a autoconfrontação permite ao trabalhador assumir a posição de sujeito observador de sua própria atividade. Somente assim, “a experiência vivida pode se tornar um meio de viver outras experiências” e pode haver um desenvolvimento real da consciência (CLOT, 2001, p. 10). Por outro lado, a instrução ao sósia é uma técnica proposta por Oddone, nos anos 1970, no contexto de formação de trabalhadores da empresa Fiat em um seminário da Universidade de Turim. Essa técnica foi retomada e desenvolvida por Clot (1999), como um método indireto para fazer com que o trabalhador reflita sobre sua atividade de trabalho ao projetá-la a um futuro hipotético. Trata-se também de um método de co-análise das situações de trabalho, já que o trabalhador também analisa sua atividade nas etapas que seguem à instrução propriamente dita. Realizada com um pequeno coletivo de trabalhadores, a entrevista se inicia com a seguinte orientação do pesquisador/interventor: “Suponhamos que amanhã eu te substitua em seu posto de trabalho. Diga-me em detalhes o que eu devo fazer para que ninguém perceba que houve a substituição”. A instrução dada pelo trabalhador deverá

dar

conta

dos

detalhes

de

sua

atividade

de

forma

que

o

pesquisador/interventor deve perguntar tudo, para que a substituição não seja notada. Para tanto, o instrutor deve usar a segunda pessoa (você) e pedir informações sobre aspectos aparentemente pouco importantes, mas que têm um papel preponderante para que o instrutor saia de si mesmo e verbalize sua atividade ao outro. Segundo Clot (2001, p. 9), o método visa “uma transformação indireta do trabalho dos sujeitos graças a um deslocamento de suas atividades em um novo contexto”. Clot (2001) afirma também que tanto AC quanto IS permitem a verbalização das atividades, fazendo com que elas se reorganizem e se modifiquem,

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e isso pode proporcionar ao instrutor a oportunidade de fazer de outra forma a atividade que foi objeto de sua própria análise, adquirindo um poder de agir em relação a ela. Após essa primeira etapa, gravada em áudio, o trabalhador (em nosso caso, o professor) deve escutar a entrevista e transcrever o(s) trecho(s) que lhe interessa discutir com o pesquisador/interventor e o grupo de trabalho, com o objetivo de recriar a atividade em outro contexto, como o que ocorre com a AC. Nessa etapa, chamada de retorno ao coletivo, o trabalhador se torna um “coanalista” de sua atividade, junto com o pesquisador/interventor e o outro trabalhador. No contexto brasileiro, os trabalhos do grupo ALTER-AGE, em continuidade às pesquisas do ALTER-CNPq têm se voltado progressivamente para a apropriação de metodologias para a intervenção nas situações de trabalho, procurando impulsionar o desenvolvimento dos trabalhadores e, apenas depois, estudá-lo. Nesse sentido, nossa vinculação aos Estudos Linguísticos nos conduz a nos interessarmos pelo papel dos diferentes gêneros textuais no desenvolvimento profissional, procurando investigar o papel das entrevistas em autoconfrontação e de instrução ao sósia enquanto instrumentos psicológicos que provocam verbalizações sobre a atividade de trabalho e que podem, portanto, gerar desenvolvimento dos professores.

1.3 Um olhar para o texto na análise das situações de trabalho Segundo Bronckart (2008), a linguagem não nos informa sobre o agir, mas sobre o “processo interpretativo do ato do trabalho por qualquer protagonista, seja ele aquele que concebeu o trabalho ou pesquisadores sobre o trabalho” (BRONCKART, 2008, p. 28). Portanto, em nossas pesquisas, ao analisar um texto sobre o trabalho, o foco da análise da linguagem reside em identificar o posicionamento dos sujeitos e a interpretação que fazem sobre o trabalho em questão. Desde os primeiros estudos que conjugaram os pressupostos do ISD e da Clínica e Ergonomia da atividade, as pesquisas do grupo ALTER (LOUSADA, 2006; BARRICELLI, 2012) têm se valido do modelo de análise do ISD na busca por marcas linguísticas que possam auxiliar a compreensão da interpretação que os sujeitos fazem de seu trabalho e até mesmo apontar conflitos na situação de

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trabalho. Para tanto, essas pesquisas integram aportes da análise do discurso ao modelo de análise do ISD de forma a aprimorá-lo. É o caso, por exemplo, das contribuições trazidas por Lousada (2006, 2011) e Dantas-Longhi (2013), que se basearam em Maingueneau (1989) e em Authier-Revuz (2001) para auxiliar a identificação de traços linguísticos que possam indicar a inserção de vozes em textos orais. Em textos escritos, sinais gráficos como as aspas e travessões podem indicar a presença de um segmento de discurso atribuído a outro locutor. Em textos orais, indícios de inserção de vozes podem ser percebidos pelo uso de verbos discendi, como “dizer”, “falar” ou “relatar” (MAINGUENEAU, 1989, p. 88). Em outros casos, porém, os traços de inserção de vozes podem ser mais sutis, sugeridos apenas por mudanças na entonação ou pelo uso de jargões que remetam a outras situações de fala (AUTHIER-REVUZ, 2001). Como observaremos mais adiante, não utilizamos todas as categorias propostas pelo modelo do ISD (BRONCKART, 1999) em nossas análises, pois é justamente no nível dos mecanismos enunciativos ou seja, das modalizações e das vozes, que costumam se revelar pela linguagem os conflitos presentes na situação de trabalho, conforme apontam os estudos de Lousada (2006), Barricelli (2012) e Dantas-Longhi (2013). São portanto essas categorias que elegemos para identificar e evidenciar o que chamamos de “voz da fala egocêntrica” e “voz da fala egocêntrica reconstituída”, como veremos nas próximas seções. 2 Contexto e procedimentos metodológicos As

pesquisas

das

quais

apresentamos

dois

tipos

de

entrevistas

(autoconfrontação cruzada e instrução ao sósia) foram desenvolvidas no contexto dos Cursos Extracurriculares de Francês da FFLCH-USP, um curso de extensão universitária promovido pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Os cursos atendem hoje um público de cerca de 750 alunos distribuídos em turmas de 14 níveis, composto em sua maioria por estudantes universitários, mas também por funcionários da faculdade, alunos da terceira idade, professores da rede pública etc. As aulas são ministradas por monitores estudantes de licenciatura ou de pós-graduação que desejam aprimorar seus conhecimentos e sua prática de ensino e que sejam aprovados no processo seletivo. Esses estudantes possuem um duplo

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estatuto, pois ainda que atuem como professores aos olhos de seus alunos, eles mantém um vínculo de monitores-bolsistas com a Universidade em que são ministrados os cursos. Para

a

primeira

pesquisa6,

dois

professores-monitores

voluntários

participaram ativamente: Tereza e Danilo7 se candidataram a terem filmadas sequências de suas aulas em que utilizassem jogos. Ambos ministravam aulas em turmas de nível 1 e, por conseguinte, seus alunos estavam em um estágio inicial de aprendizado da língua francesa. Após a filmagem das aulas, foram propostas entrevistas em autoconfrontação simples e depois cruzada. Já para a segunda pesquisa8, foram escolhidos monitores-professores que tinham o estatuto de “tutores”9, ou seja, por serem um pouco mais experientes 10, eles ajudavam os novos professores-monitores a realizarem suas aulas. O objetivo era justamente o de estudar a atividade dos tutores, menos conhecida que a dos professores. Para tanto, foram organizados encontros com os monitores-tutores e foram gravadas entrevistas em instrução ao sósia. Para a realização da primeira pesquisa, a professora-monitora Tereza optou pela filmagem de duas sequências, sendo a primeira um jogo para a produção escrita de cartões-postais e a segunda um jogo de cartas para o ensino do masculino e do feminino das profissões. Danilo pediu para que fosse filmado um jogo sobre as atividades de lazer e esporte praticadas em cada dia da semana, para que os alunos fixassem o vocabulário correspondente e as estruturas “jouer à” e “faire de”, correspondentes ao português “jogar” e “fazer/praticar”, que em francês são preposicionadas. Após a filmagem das aulas, selecionamos duas sequências a serem assistidas durante as entrevistas em autoconfrontação. Escolhemos a sequência referente ao segundo jogo aplicado por Tereza, sobre as profissões, e a filmagem do jogo aplicado por Danilo. Após a seleção das sequências de aulas, passamos à etapa de co-análise das filmagens, feita em duas entrevistas em autoconfrontação simples e uma 6

Pesquisa de mestrado realizada com o apoio CAPES. Os professores autorizaram que seus nomes constassem em quaisquer trabalhos científicos decorrentes da pesquisa. 8 Esta pesquisa foi realizada no mesmo contexto pelas pesquisadoras Ermelinda Barricelli e Eliane Gouvêa Lousada. 9 O termo tutor está sendo usado aqui no sentido francófono, ou seja, do professor mais experiente que acompanha a atividade e auxilia na realização do trabalho (ou das atividades) do professor menos experiente. 10 Em nosso caso, significa ter um ou dois anos a mais de experiência. 7

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LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166.

entrevista em autoconfrontação cruzada. Em todas as entrevistas os professores foram orientados a usar a língua que preferissem, francês ou português, e a interromper o vídeo sempre que as imagens lhe causassem algum estranhamento ou quando julgassem melhor esclarecer detalhes sobre o que aparecia no vídeo. Nas entrevistas em autoconfrontação simples (ACS), cada professor assistiu a sua sequência de aula interrompendo o vídeo e tecendo comentários sempre que quisesse ou de acordo com as intervenções da pesquisadora. A primeira ACS foi realizada com Danilo, que preferiu ser entrevistado em francês. Sua ACS durou cerca de 40 minutos e os temas principais foram o modo de explicar e conduzir o jogo, a relação professor-alunos e os conteúdos trabalhados com a aula. Já a ACS de Tereza foi feita em português. Sua entrevista totalizou cerca de 1 hora e 20 minutos e os temas principais foram o modo de explicar e conduzir o jogo e a relação entre a professora e seus alunos. A terceira etapa de produção de dados consistiu em uma entrevista em autoconfrontação cruzada (ACC). Durante essa terceira entrevista, cada professor assistiu à aula de seu colega, também interrompendo o vídeo e fazendo perguntas e comentários sobre o que via. A entrevista foi iniciada em francês, mas os professores oscilaram entre o francês e o português ao longo da ACC. Essa última entrevista foi a mais longa, totalizando cerca de 2 horas e 30 minutos, pois os professores assistiram juntos às sequências de aula de ambos. Para a segunda pesquisa, foi proposta uma reunião com dois monitoresprofessores-tutores e as duas pesquisadoras/interventoras, em que seria realizada a entrevista de instrução ao sósia. Para essa reunião, foi pedido aos tutores que pensassem em uma situação de trabalho do tutor que seria objeto de substituição pelo sósia e, portanto, geraria uma explicação das atividades desenvolvidas de maneira a evitar que os alunos percebessem a troca. A entrevista foi realizada em uma sala da FFLCH-USP e durou cerca de 1 hora e vinte minutos, sendo dividida em: instrução do tutor 1; instrução do tutor 2; discussão entre os tutores. No trecho que traremos mais à frente, a tutora 2 escolhe, como situação para a substituição do sósia, o primeiro dia do “tutorado”. Todas as entrevistas foram transcritas e, posteriormente, em função dos objetivos fixados e do tipo de material produzido, escolhemos algumas das

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LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166.

categorias pertencentes ao modelo de análise de textos do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 1999) para efetuarmos as análises dos dados. São elas: - contexto físico e sociossubjetivo de produção das entrevistas; - infraestrutura geral do texto: plano global dos conteúdos temáticos, sequências e tipos de discurso; - mecanismos de responsabilização enunciativa: modalizações e vozes. Em nossas pesquisas, a análise das vozes nas entrevistas em AC e de IS visou a identificar discursos alheios aos quais os professores fizessem alusão em sua fala e, posteriormente, a compreender o posicionamento dos professores em relação a esses discursos. Com isso, poderíamos, por um lado, observar se os professores faziam referência a normas institucionais, lugares comuns relacionados ao ensino, interações com outros professores e com alunos, enfim, se os professores retomavam discursos presentes em alguma das diferentes dimensões do trabalho (impessoal, transpessoal, interpessoal, pessoal). Por outro lado, poderíamos

também

identificar

como

os

sujeitos

construíam

linguístico-

discursivamente seu posicionamento diante desses discursos, mostrando-se favoráveis ou contrários e demonstrando sua apreciação ou sua opinião quanto aos enunciados aos quais fazem referência. No entanto, para atender aos objetivos deste capítulo, exporemos apenas alguns dos resultados encontrados no estudo do que chamamos de “voz da fala egocêntrica reconstituída” e “voz da fala egocêntrica”. Para guiar nossas análises, formulamos duas perguntas de pesquisa: 1. Em que momentos das entrevistas em autoconfrontação e de instrução ao sósia os professores e os tutores se valem da voz da fala egocêntrica? 2. Por quê? Qual é sua função?

É para a resposta a essas perguntas que se volta a próxima seção.

3 Resultados das análises Para melhor compreendermos a formação da voz da fala egocêntrica, cabe fazermos referência a uma das características linguísticas da autoconfrontação, a sobreposição de dois planos enunciativos distintos que ocorre no momento da

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LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166.

entrevista, o que tem sido constantemente salientado pelas pesquisas do Grupo ALTER-CNPq (LOUSADA, 2006; DANTAS-LONGHI, 2013). O primeiro plano diz respeito à interação em curso, em que o “eu” representa o enunciador e o “tu” seu destinatário, no caso entrevistador e entrevistado alternadamente. Já no segundo plano enunciativo, sob influência do vídeo analisado durante a autoconfrontação, o enunciador se posiciona como se estivesse em situação de trabalho e reconstroi um diálogo pertencente a esse outro plano enunciativo. No caso de entrevistas em autoconfrontação com professores, é comum que surjam, nesse segundo plano enunciativo, as vozes dos alunos e do próprio professor em sala de aula, conforme apontado por Lousada (2006) e Dantas-Longhi (2013). Os dois trechos abaixo, extraídos da entrevista em autoconfrontação cruzada, exemplificam esse fenômeno: Excerto 1 - ACC referente à aula de Tereza – voz da professora durante a aula Turno 667. Professora Tereza

agora eu falei “discutez faites des hypothèses” eu não tinha dado essa instrução

Turno 668. Professor Danilo

não, era só tipo "regardez et voyez ce que vous ne savez pas"

Turno 669. Professora Tereza

[é "lisez::...voyez pensez à ce qui est comme en portugais::" e agora eu falei "faites des hypothèses"

Excerto 2 - ACC referente à aula de Tereza – voz do aluno durante a aula Turno 709. Professor Danilo

[...] que nem o Matheus que foi explicar...sabe? “vous::” como que é que ele falou? “nous parlez” sabe? “nous parlez avec an autre/another” depois “un autre personne...” conjugou errado, mas ele falou o verbo parler já tamo/já tá saindo ganhando alguma coisa né (pode ser)

Nota-se que, nos dois trechos, algumas características linguísticas permitem atestar que uma voz pertencente à sala de aula é introduzida no diálogo da autoconfrontação. No primeiro trecho, vemos a presença do verbo discendi em “eu falei”, que também ocorre no segundo trecho, em “como é que ele falou?”. Em outros momentos, a presença de marcadores conversacionais ou de marcadores lógicos ou temporais também sugere a inserção de uma voz pertencente a esse segundo plano enunciativo, como nos turnos 668 e 709, com o uso de “tipo” e “sabe” e nos turnos 667, 669 e 709, com o uso de “agora” “e agora” e “depois”.

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LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166.

Quanto aos segmentos referentes ao segundo plano enunciativo, é frequente um destacamento dessas vozes devido à alternância entre o uso do português, língua usada em alguns trechos da entrevista, e do francês, língua usada em sala de aula. Assim, torna-se ainda mais claro que o “eu” e o “tu” que correspondiam alternadamente ao entrevistador e seu entrevistado, passam a corresponder, também alternadamente, ao professor e a seu(s) interlocutor(es) em sala de aula. Embora nem sempre associadas, as características acima elencadas nos ajudaram a identificar a constante inserção de vozes pertencentes à situação de sala de aula. Acreditamos que essas vozes têm o papel de auxiliar o emissor a elucidar para seus destinatários aspectos de sua atividade que não sejam diretamente visíveis pelo filme de sua aula e que precisem, assim, ser recriados ou reconstituídos, o que se constitui em uma forma de evidenciar o real da atividade (CLOT, 1999; LOUSADA, 2006). Em grande medida, essas vozes da sala de aula consistem em discursos diretos correspondentes a pequenos diálogos entre os professores e seus alunos. Em outros momentos, porém, elas ilustram um diálogo do sujeito consigo mesmo, o que chamamos de: na AC, voz da fala egocêntrica reconstituída (DANTAS-LONGHI, 2013), nas IS, voz da fala egocêntrica. A voz da fala egocêntrica reconstituída consiste na recriação, sob a forma de uma voz do segundo plano enunciativo, do diálogo interior que o sujeito estabelece consigo mesmo em situação de conflito. Ela se assemelha à fala egocêntrica tal como interpretada por Vygotski ([1934]1997), porque representa o momento em que o indivíduo se encontra em situação de conflito ou de esforço intelectual, servindo de apoio para que se possa resolver um problema ou tomar uma decisão. Quanto a sua forma, ela possui características semelhantes às demais vozes pertencentes ao segundo plano enunciativo. Vejamos alguns exemplos: Ocorrência 1306P. 5

1316D.

você acha que eu tava incomodando:: o fato de eu estar filmando assim? (...) pode ser que/pode ser que:: esteja incomodando um pouquinho... mas incomoda é óbvio que incomoda no meu caso, assim tipo, as duas/as duas que estavam ali atrás bem na câmera assim eu falei “putz eu preciso ir lá porque aqui/ali vai dar pra ouvir se elas estão falando certo ou errado” ((risos))

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LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166. Ocorrência 6

eu acho o jogo uma atividade bem complexa...eu dou um jeito de contornar:: que nem um grupo acabou... “eu vou dar outra atividade”, eu falei “eu não vou ficar fazendo eles esperar...” eu podia ter pegado e conversar com eles...mas é que eu fiquei “vai me dar mais trabalho tentar fazê-los 1497T. entender” (não sei) mas enfim “tentar fazer com que eles compreendam o que eu estou falando”...porque eles são do nível...um...TUdo eles perguntam tudo eles fazem cara assim né...tudo não né mas você fala um verbo diferente...((risos)) uma palavra eles ficam meio perdidos né não sabem o passado não dá para falar “e aí o que vocês almoçaram?” ((risos)) não dá...né

Na ocorrência 5, Danilo fala sobre a influência da câmera e da presença da pesquisadora em sua aula. Ao perceber que duas alunas com mais dificuldades fazem a atividade próximo à câmera, Danilo pensa que precisa se certificar de que as alunas estejam fazendo a atividade corretamente. Na ocorrência 6, Tereza explica por que redistribuiu as cartas e permitiu que um grupo de alunos passasse à segunda etapa de seu jogo enquanto o outro grupo ainda se encontrava na primeira etapa. Em ambos os exemplos, percebemos a introdução de uma fala outra, destacada do plano da enunciação em curso e que remete à situação de sala de aula. Em relação a sua forma, a voz da fala egocêntrica reconstituída não corresponde exatamente à fala egocêntrica vygotskiana. Ela não é lacunária, pois sua função comunicativa não pode ser abandonada, uma vez que ela é dirigida ao mesmo tempo: i) para si mesmo, pois é uma maneira de relembrar a experiência vivida, procurando compreender como as decisões sobre a aula foram tomadas; ii) para um destinatário exterior (a pesquisadora, o outro professor presente na entrevista), pois o enunciador não perde de vista a situação de AC, em que precisa explicar os motivos de sua ação a quem está compartilhando as imagens do vídeo. A voz da fala egocêntrica reconstituída é, em geral, introduzida por um verbo discendi (“eu falei”), na maioria dos casos o verbo “falar”. No entanto, pelo teor do que é dito, sabe-se que se trata de uma conversa do sujeito consigo mesmo e não de um falar efetivamente verbalizado. Além disso, o verbo discendi se apresenta, em geral, em tempo anterior ao tempo da voz - ou seja, quando o verbo discendi está no passado, o verbo do discurso direto está no presente ou futuro - e se configura como uma instrução ou como uma prefiguração da atitude que precisa ser tomada no calor do momento (“putz eu preciso ir lá porque aqui/ali vai dar pra ouvir se elas estão

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LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166.

falando certo ou errado”; “eu vou dar outra atividade”, “eu não vou ficar fazendo eles esperar...”). Em relação a sua função, a voz da fala egocêntrica reconstituída também não corresponde exatamente à fala egocêntrica vigotskiana, pois é posterior e não simultânea ao conflito vivido. Essa voz não surge no diálogo da autoconfrontação para auxiliar as tomadas de decisão dos trabalhadores, mas para ajudar a reviver o momento vivido, propiciando a recriação do objeto em outra situação, como uma maneira de adquirir novas possibilidades de ação em relação a essa situação. Não se trata, assim, de uma verbalização espontânea motivada pelo conflito, mas de uma representação, no presente da enunciação, do diálogo interior do sujeito nas situações em que arbitragens foram necessárias, por isso a consideramos “reconstituída”. Conforme vemos na tabela abaixo, a voz da fala egocêntrica ilustra os momentos em que os professores têm mais de uma opção de ação e, na maioria dos casos, em que escolhem se devem ou não fazer ajustes na atividade em curso: Quadro 1 – Arbitragens na voz da fala egocêntrica reconstituída Trecho

Opção rejeitada

Opção escolhida

Justificativa

1

Continuar escrevendo

Apagar a lousa

Porque o professor sempre escreve de modo desorganizado.

2

Entregar apenas uma carta para cada aluno

Entregar duas cartas para cada aluno

Se demorasse demais, os alunos teriam problemas, mas houve tempo para terminar a atividade.

3

Continuar o jogo.

Interromper o jogo para dar uma explicação.

A expressão do aluno deu a entender que ele não sabia o que deveria fazer.

4

Fazer com que os alunos repitam as frases lidas.

Continuar a atividade sem repetição.

A professora ganharia tempo e os alunos não ficariam confusos.

5

Continuar a acompanhar Aproximar-se das duas os alunos de longe. alunas com mais dificuldades.

Porque as alunas estavam perto da câmera.

6

Fazer com que os alunos esperem.

Dar uma nova atividade.

A professora teria mais trabalho caso tivesse que conversar com os alunos.

6

Fazer um jogo.

Dar uma discussão.

Jogos são difíceis.

6

Continuar a atividade.

Transformá-la em um jogo de adivinha (devinette).

A atividade estava chata.

Na ocorrência 1, Danilo diz que sempre tem dificuldades ao escrever na lousa e que quando escreve pensa “não, isso não está bom... não está bem organizado, 18

LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166.

não está visual, não está didático o suficiente” e então apaga a lousa para reescrever as informações. Na ocorrência 6, Tereza fala sobre a solução que encontrou para que sua aula ficasse mais dinâmica, transformar uma atividade de descrição em um jogo de adivinhações. Tanto Tereza quanto Danilo avaliam positivamente a decisão tomada por Tereza, mas notamos que, logo na sequência, Tereza traz novamente a voz da fala egocêntrica para mostrar que muitas vezes hesita e prefere trabalhar com uma discussão em sala de aula a dar um jogo a seus alunos, porque considera o jogo uma atividade difícil. Nos dois casos, a voz da fala egocêntrica surge em momentos da discussão em que os professores falam sobre decisões que escolheram em lugar de outras. Nesse sentido, essa voz parece ilustrar as arbitragens interiores, mostrando os conflitos vividos ao tentar escolher a opção “que triunfou”, para citar Vigotski ([1925-1932] 2003), evidencidando, assim, o real da atividade de que nos fala Clot (1999). Para os psicólogos do trabalho, tratase de uma maneira de reviver a experiência, tornando possível viver outras experiências ou, em outras palavras, ao recriar sua ação, verbalizando o real da atividade, os professores ampliam seu poder de agir pois se distanciam dela, possibilitando entrever outras possibilidades de realização de sua ação. Sendo assim, concluímos que a voz da fala egocêntrica reconstituída ocorre em circunstâncias em que se deseja melhor compreender sua ação ou apresentar hesitações quanto ao melhor caminho a seguir, sobretudo em momentos de imprevisto no curso de uma atividade. Por outro lado, nas instruções ao sósia, vemos alguns exemplos de fala egocêntrica nos momentos em que o instrutor deve explicar as ações que deverão ser desenvolvidas pelo professor que irá substituti-lo. Na situação abaixo, o instrutor (tutor) percebe que escolheu um dia atípico para a explicação de sua atividade, já que, justamente, o primeiro dia do tutorado é bastante diferente dos outros. Vejamos o exemplo:

Sósia : Je dis quelque chose ? Instrutor : Bonjour, comment ça va ? Le week-end ? Vous êtes sortis ?

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LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166. Sósia : je fais la bise ou pas de bise ((risos)) Instrutor : oui, on fait la bise… et donc on commence… je 11 commence même s’il y a quelqu’un en retard… Sósia : ce n’est pas seulement une personne ce jour-là ? Instrutor : deux personnes, ce serait le premier jour du tutorat donc c’est très particulier ils ils ne vont pas me raconter ils ne vont pas te raconter ce qu’ils ont fait parce que là ils n’ont pas fait… c’est le premier jour ::… hummm je n’ai pas choisi le bon jour parce que là c’est le premier ::… bon ::…mais normalement dans les autres réunions de tutorat…

No excerto acima, percebemos que o destinatário de: hummm je n’ai pas choisi le bon jour parce que là c’est le premier 12… não é exatamente o sósia (pesquisador), mas si-mesmo, o tutor-instrutor. Por essa razão, podemos perceber que essa fala é bem mais lacunária, já que observamos mudanças de tópico, ao contrário da fala egocêntrica reconstituída, pois não há uma preocupação, naquele instante, de “explicar” ao destinatário, pois ela se constitui como um diálogo consigo mesmo. Portanto, podemos ver esse exemplo de fala egocêntrica como um momento de escape, em que o sujeito perde de alguma forma o controle de sua atividade (ou seja, do fato de que, naquele momento, deveria instruir o sósia) e passa a falar para si-mesmo, questionando sua escolha, por não ter escolhido um bom dia para instruir seu sósia durante a realização da IS. É o momento de retorno à situação de comunicação no tempo da entrevista que nos permite vislumbrar esse instante em que o sujeito se desloca da interação em curso e volta rapidamente a ela, lembrando-se de seu destinatário: hummm je n’ai pas choisi le bon jour parce que là c’est le premier… bon…mais normalement dans les autres réunions de tutorat…. O uso do marcador conversacional “bon”, bastante frequente no francês, associado claramente a uma mudança de tópico, mostra que a tutora encontra uma solução ao problema de ter escolhido um dia atípico para a instrução ao sósia. A solução encontrada é justamente não seguir o que ela mesma previu para a instrução: falar do primeiro dia do tutorat, que ela percebe, apenas naquele momento, que é bastante atípico em relação às outras reuniões de tutorado. Assim, ao solucionar o “conflito”, ela parece tomar consciência, ao mesmo tempo, do que é 11

Pode-se tecer um comentário sobre o uso dos pronomes pessoais na instrução ao sósia. Na verdade, o pronome usado pelo instrutor deve ser ‘tu’ ou ‘vous’ (você), pois eles indicam que o instrutor sai de sua atividade para considerá-la como a atividade do outro. Nesse trecho, há o uso de ‘je’ (eu) misturado com o uso de ‘tu”, o que denota uma dificuldade da pesquisadora em realmente criar uma situação de instrução ao sósia. 12 Humm eu não escolhi o bom dia porque é o primeiro.

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típico das reuniões de tutorado (falar da aula anterior) e do que é atípico da primeira reunião de tutorado do semestre: preparar pela primeira vez uma aula, sem levar em conta o que foi feito anteriormente. Nesse trecho, podemos inferir que é justamente a necessidade de verbalização para um outro que cria a situação de dificuldade e de conflito, já que faz com que a tutora reveja a atividade de tutorado de um ponto de vista externo. Da mesma forma, é a necessidade de resolução do conflito que a impulsiona a dirigir a fala a si, em voz alta, procurando solucioná-lo e criando uma possibilidade de interpretar o vivido, ou seja, de criar uma outra relação com o objeto de sua ação. Consideramos esses momentos como verdadeiros instantes de tomada de consciência que, segundo os clínicos do trabalho, podem gerar um maior poder de ação em relação à atividade de trabalho. Podemos dizer, com base em Clot (1999), que nesses momentos em que o tutor-instrutor dirige sua verbalização a si-mesmo a atividade entra em uma ZPD13, o que pode, segundo Vygotski [1934]1997), desencadear o desenvolvimento. Considerações finais Neste capítulo, analisamos as características específicas da voz da fala egocêntrica reconstituída e da voz da fala egocêntria, encontradas em entrevistas de autoconfrontação e de instrução ao sósia. Em nossas análises, pudemos constatar o surgimento dessa voz em situações em que se revive o momento vivido, explicitando o real da atividade, como uma maneira de viver novas experiências, como é o caso da AC e em situações de conflito consigo mesmo, de tomada de consciência, como é o caso da IS. Portanto, as entrevistas de autoconfrontação e de instrução ao sósia parecem permitir o desenvolvimento real da consciência, como aponta Clot (2001, p. 10), pois “a experiência vivida pode se tornar um meio de viver outras experiências”. Vimos, assim, que com as entrevistas em autoconfrontação e de instrução ao sósia, vêm à tona os conflitos, as dúvidas e também as escolhas feitas dentre as “possibilidades não realizadas” que se apresentam ao professor. Dessa forma, o debate entre pares, propiciado por esse tipo de entrevistas, não se restringe a um plano impessoal, posto que se baseia nas condutas observáveis dos professores em seu contexto específico de trabalho, mas parte do diálogo interior de cada um para 13

Zona de desenvolvimento proximal.

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um debate no plano interpessoal que os auxilia na compreensão de sua atividade, pois permite recriá-la em um outro contexto, ampliando seu poder de agir em relação a ela. Para citar Vigotski [1982](2004, p. 105), vemos aí que ocorre uma mudança na relação entre esses objetos recriados, o que é característico do processo de desenvolvimento do comportamento. Nesse sentido, as entrevistas de confrontação parecem possibilitar não apenas o desenvolvimento do professor e de sua atividade, mas, também, indicam que, ao se estabelecerem justamente nos diálogos entre pares, podem fortalecer o coletivo de trabalho e a própria atividade de trabalho. Concluímos, portanto, que a realização de entrevistas de confrontação, em que se propicia tanto o diálogo sobre a atividade profissional, quanto as controvérsias entre pares, longe de causar dificuldades insolúveis no trabalho do professor, provocam conflitos “saudáveis”, se podemos assim dizer, gerando a tomada de consciência e, possivelmente, contribuindo para o desenvolvimento 14 dos envolvidos na situação de trabalho educacional. Referências Bibliográficas AMIGUES, R. Trabalho do professor e trabalho de ensino. In: Machado, A. R. (Org.) O ensino como trabalho: uma abordagem discursiva. Londrina : Eduel, 2004, p. 3554. AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. BARRICELLI, E. Transformações e conflitos no processo de elaboração, de difusão e de utilização de instruções oficiais de Educação Infantil: um estudo genealógico. 2012. Tese (Doutorado em linguística aplicada e estudos da linguagem). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. BRONCKART, J.-P. (1999). Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 2009. ______. Commentaires conclusifs. Pour un développement collectif de l’interactionnisme socio-discursif. Calidoscópio - Revista de Lingüística Aplicada, v. 2, n. 2, p. 133-123, 2004.

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Se, por um lado, nada nos autoriza a afirmar que houve real desenvolvimento dos professores e tutores que participaram da pesquisa, já que não verificamos, em momentos posteriores, se houve mudanças em sua ação, por outro lado, podemos afirmar que nossas pesquisas procuram reproduzir os estudos vygotskianos que propunham , ao invés de verificar diretamente as consequências dos fenômenos observados, o uso de métodos indiretos de reconstituição do curso do desenvolvimento por traços deixados, em nosso caso, na linguagem. Nesse sentido, nossas pesquisas procuram, no dizer de Friedrich (2012), pensar no interior do pensamento vygotskiano, para compreender e tratar a nossa realidade.

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LOUSADA, E.G.; DANTAS-LONGHI, S. M. Vozes em confronto: o papel das entrevistas de confrontação no desenvolvimento do professor e de sua atividade de trabalho. In: NASCIMENTO, E. L. ; ROJO, R. H. R. Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editora, 2014, p. 143-166.

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