VOZES QUE CLAMAM NO DESERTO: o antifascismo nas páginas da imprensa anarquista – Alba Rossa, A Plebe e Spartacus (c.1919-c.1922)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS- CCH ESCOLA DE HISTÓRIA

VOZES QUE CLAMAM NO DESERTO: o antifascismo nas páginas da imprensa anarquista – Alba Rossa, A Plebe e Spartacus (c.1919-c.1922)

Bruno Corrêa de Sá e Benevides

Rio de Janeiro 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS - CCH ESCOLA DE HISTÓRIA

VOZES QUE CLAMAM NO DESERTO: o antifascismo nas páginas da imprensa anarquista – Alba Rossa, A Plebe e Spartacus (c.1919-c.1922)

Bruno Corrêa de Sá e Benevides

Monografia apresentada ao Curso de História como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. Carlo Maurizio Romani

Rio de Janeiro 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS- CCH ESCOLA DE HISTÓRIA

VOZES QUE CLAMAM NO DESERTO: o antifascismo nas páginas da imprensa anarquista – Alba Rossa, A Plebe e Spartacus (c.1919-c.1922)

Bruno Corrêa de Sá e Benevides

Monografia apresentada ao Curso de História como pré-requisito para a obtenção do grau de Bacharela e Licenciada em História.

______________________________________ Orientador: Prof. Dr. Carlo Maurizio Romani

______________________________________ Prof.ª Dr.ª Angela Maria Roberti Martins

______________________________________ Prof. Dr. Giovanni Stiffoni

Rio de Janeiro 2015

Agradecimento

Dedico este singelo trabalho de conclusão de curso ao meu pai Paulo Corrêa de Sá e Benevides Filho e à minha mãe Marcia C. e Benevides.

Agradeço a Yasmin minha grande companheira que gloriosamente me suportou durante os meus dias de confecção desta pesquisa. A índia macapaense prestou vários serviços digitando algumas páginas.

As minhas amigas Helena Trindade e Bárbara Chaves e ao meu grande camarada Thiago Nunes.

Aos professores Angela Maria Roberti Martins e Giovanni Stiffoni que prontamente aceitaram o meu convite em participar como pareceristas deste trabalho de conclusão.

Sempre achei que Professor-referência fosse coisa pertencente ao ensino básico, e que durante o ensino superior não me depararia com esse tipo de docente. Tendo isso em vista, quero agradecer ao professor Carlo Romani, meu orientador (e em breve do mestrado), e de certa forma amigo, por me acompanhar nesses últimos meses em que estive debruçado sobre o tema desta pesquisa. Romani é dos poucos professores em que a gente tem o dever de aguardar e esperar por algum tipo de opinião ou parecer sobre um determinado assunto político do presente ou do passado, antes mesmo de proferir a nossa posição. Após dois anos e meio (cinco semestres, cinco disciplinas) assistindo as suas aulas, tornou-se minha referência acadêmica. De fato foi uma grande oportunidade.

“Resisting against the system, ooh-wee! (…) They made their world so hard Every day (we got to keep on fighting), every day They made their world so hard Every day (the people are dying), eh!” One Drop, Bob Marley

“O anarquismo pode ser filosofia e ciência políticoeconômica,

sem

cair

no

dogmatismo;

simples

especulação idealista ou fundamentalmente prático em suas atitudes fora de qualquer ação impositiva; pode apegar-se ao materialismo histórico ou apelar para as forças morais e considerar o sentimento como fator mais eficaz para libertar o homem da incompreensão em que se debate; pode dizer-se ateu, agnóstico ou divagar em hipóteses espiritualistas; mas conserva a sua idoneidade quanto a necessidade de combater todo e qualquer princípio de idolatria estatal, conformista e de

monopólio

econômico.

É

antiautoritário

e

antitotalitário em todas as circunstâncias”. Gigi Damiani, publicado no periódico anarquista A Plebe (São Paulo) em 15 de Dezembro de 1947, Número 11, Ano 31 (Nova Fase).

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo o estudo do antifascismo internacional no espaço de tempo compreendido entre 1919 e 1922. A pesquisa dedica-se à fase inicial do fascismo e da imediata resistência antifascista que se propagou fora da Itália, particularmente no Brasil, onde residia grande número de italianos. Apesar de já existir trabalhos sobre o fascismo e o antifascismo no Brasil, esse período inicial ainda é muito pouco estudado, principalmente no que se refere à propagação e circulação de textos antifascistas de tendência anarquista nos jornais militantes e operários brasileiros. Para atingir esse objetivo buscou-se nos artigos escritos pelos antifascistas nos jornais A Plebe, Spartacus e o Alba Rossa, indícios de uma resistência ao fascismo. Em um segundo momento pretendeu-se levantar a compreensão acerca do fascismo através da ótica dos militantes anarquistas, buscando analisar como esse movimento político foi caracterizado e percebido. Palavras-chave: Imprensa operária – Anarquismo – Antifascismo

Abstract

This study aims to scan the international anti-fascism in the space-time between the period of 1919-1922. The research is dedicated to the early stage of facism and immediated anti-facist resistance that has spread outside Italy, particulary in Brazil, where there were a lot of Italians. Although there are research projects on fascism and anti-fascism in Brazil this initial period regardind the spread and circulation of antifascism texts of anarchist trend in militants and Brazilian workers newspaper. Then, we sought evidence of resistance to fascism in the newspaper written by anti-fascism such as, A Peble, Spartacus and the Alba Rossa. In a second time it was intended to search for understanding of fascism through from the perspective of anarchist militants to analyzing how this political movement was characterized and understood.

Keywords: Workers press – Anarchism – Anti-fascism

Sumário

Introdução ............................................................................................................................... 9 1 O surgimento do fascismo na Itália e o antifascismo no Brasil ......................................... 13 1.1 A Itália em 1919 e a emergência do fascismo – a criação do fasci di combattimento....... 13 1.2 A criação do Partido Nacional Fascista – PNF e a marcha sobre Roma (1921 e 1922) .... 18 1.3 Breve balanço historiográfico sobre o antifascismo no Brasil e a hipótese ventilada ....... 21 2. Breve histórico do movimento operário anarquista no Brasil (1900-1922) ..................... 27 2.1 O movimento operário anarquista e a primeira República (1900-1922) .......................... 27 2.2 A gênese do movimento operário no Brasil e as diferentes vertentes anarquistas – processo histórico (1900-1922) ........................................................................................... 34 2.3 A Plebe, Spartacus e Alba Rossa – genealogia, criação e vertente ideológica ................. 43 3. O antifascismo na impressa anarquista no Brasil (1919-1922) ........................................ 49 3.1 O Antifascismo em sua fase inicial (1919-1922) ............................................................ 49 3.2. Metodologia da História dos Conceitos ......................................................................... 51 3.3 Por um conceito de fascismo: características e nuanças .................................................. 54 Conclusão .............................................................................................................................. 68 Referências ............................................................................................................................ 70 Arquivos e fundos para consulta dos periódicos ................................................................... 70 Periódicos utilizados ........................................................................................................... 70 Publicações Oficiais ............................................................................................................ 70 Referências bibliográficas ................................................................................................... 70

Introdução No verão de 2015, enquanto desfrutava férias de final de semestre no pequeno município de Guapimirim, todas as redes nacionais de televisão transmitiam, ao vivo, a cerimônia de posse da presidenta recentemente reeleita Dilma Roussef. Era uma tarde típica do verão fluminense. O sol forte e penetrante somado à alta umidade do ar contribuíam ainda mais para que a sensação térmica logo beirasse próximo aos 50º C. Como a região fica no pé da Serra dos Órgãos, a condição de vale aumenta ainda mais o calor, o que torna o ambiente quase insuportável se não fosse pela beleza do relevo. Como os debates pré-eleitorais em outubro de 2014 foram tão intensos, parecia que uma onda de ressaca política havia tomado conta do ambiente. Absolutamente ninguém parou para assistir a solenidade naquela ocasião. Bem, nem todos. A cerimonia seguiu o protocolo. A presidenta, como gosta de ser chamada, ao lado de sua jovem filha que usava um exuberante vestido vermelho, acenava e cumprimentava todos que por ali passavam. Ao lado esquerdo de Rousseff, estava o vice-presidente Michel Temer com seu terno elegante e acompanhado por sua jovem esposa. De repente, em meio às imagens televisadas, uma voz rouca e mal-encarada quebrou o silêncio: “- Quem diria! Essa fascista comunista do PT de braços dados com o PMDB!”. Além da incompatibilidade em relacionar fascismo e comunismo, deve-se destacar como a definição do que seria fascismo, atualmente, passou a ser polissêmica, de caráter aberto, servindo, inclusive, de sinônimo para designar qualquer prática de governabilidade vista como indesejável e, quase sempre, não possuindo relação direta com a origem histórica do termo em sua essência. Essa confusão, pelo visto, não pertence exclusivamente à contemporaneidade. As imbricações que envolvem o termo já podem ser percebidas desde os anos inicias desse movimento na Europa. Mutatis Mutandis, enquanto no Brasil, no início da década de 1920, praticamente não se tinha conhecimento de causa, na Itália, em sua terra natal, o fascismo cada vez mais ganhava corpo e solidez, sobretudo a partir de 1919. Em Terras Brasilis, de certa forma até razoável, os primeiros focos de percepção sobre o fascismo, inclusive realizando os primeiros embates de resistência, ocorrem a partir da comunidade italiana instalada em São Paulo, já no início da década de 1920 (BERTONHA, 1999). Tal fato não pode ser encarado com maiores surpresas, uma vez que, por consequência lógica, no Brasil, seriam os italianos os possuidores de um certo

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esclarecimento quanto ao fascismo por estarem, de todo modo, antenados com o que se passava na Itália. As primeiras experiências antifascistas, portanto, circularam no seio da comunidade italiana no Brasil manifestando as primeiras atuações de resistência, a partir de movimentos de esquerdas pertencentes àquela comunidade, especialmente os socialistas e os anarquistas. Em um segundo momento, contudo, com o florescer do fascismo na Itália, a crítica ao movimento ampliou o seu espaço de atuação não se restringindo apenas aos italianos e à década de 1930, como sedimentou a historiografia nacional sobre o tema. Neste sentido, a fim de perceber como essa crítica ao fascismo na Itália passou a integrar os discursos de alguns segmentos do movimento anarquista emergentes no Brasil já na década de 1920, optei por trabalhar com três periódicos anarquistas editados no país, que receberam forte influência de notáveis militantes anarquistas nacionais e estrangeiros, sobretudo de origem italiana, que ali escreviam e assinavam artigos e colunas. O ano de 1919, ponto inicial do recorte temporal, se explica em razão da emergência, na Itália, do movimento embrionário do fascismo denominado fasci di combatimento. Já o ano de 1922, marco final da baliza temporal desta pesquisa, está relacionado com a marcha de Mussolini sobre Roma, que simbolizou de fato o fortalecimento do fascismo na Itália, semelhantemente aos passos de Caio Júlio César, em 49 a.c., ao também marchar sobre Roma, tomar o poder, pôr fim à República Romana e se autoproclamar o primeiro Imperador romano1. Tendo isso em vista, este trabalho se propõe a realizar, a partir dos periódicos mencionados, um levantamento dos elementos caracterizadores do fascismo que passou a ser noticiado e criticado em algumas edições destes jornais. Em outras palavras, pretendo verificar o que os intérpretes anarquistas que escreviam nestes periódicos entendiam por fascismo e como o caracterizavam. Levando isso em conta, a hipótese que orienta este trabalho é que o antifascismo, já a partir da década de 1920, também passou a circular nas páginas dos periódicos anarquistas pertencentes ao movimento operário brasileiro. Em segundo lugar, no tocante ao conceito de fascismo encontrado nos escritos da imprensa operária, defendo que este não foi um termo fechado, pronto e acabado. Apesar disso, a sua recepção não

1. GRIMAL, Pierre. História de Roma. Editora Unesp: São Paulo, 2011. 10

assumiu sentidos diferentes em cada um dos jornais, mas, de certa forma, possibilitou uma ampliação dos seus elementos caracterizadores em relação à experiência italiana. Por outro lado, se em um primeiro momento a crítica feita se dirigiu ao fascismo na Itália, em um segundo momento, já no decorrer da década de 1920, percebemos que os nossos militantes anarquistas, a partir de suas colunas jornalísticas, denunciaram algumas práticas autoritárias de governabilidade do Estado brasileiro como tendo resquícios aproximativos das práticas fascistas perpetradas na Itália por Mussolini. Portanto, tratarei, da mesma forma, de investigar o que se compreendeu por fascismo, nestes casos específicos. Como método de análise das fontes, optei por trabalhar com a metodologia da História dos Conceitos, que em Kosselleck encontro seus fundamentos teóricos. Da mesma forma, também fiz uso dos rudimentos de Pierre Rosanvallon em a sua História Conceitual do Político, para resgatar e compreender o conceito de fascismo. Para cotejar os possíveis significados de fascismo encontrados nos periódicos mencionados, fiz uso do embasamento teórico de Noberto Bobbio, Hannah Arendt e Robert Paxton, entre outros. Este trabalho foi divido em três capítulos. No primeiro capítulo, realizo um panorama político em que se encontrava a Itália entre os anos de 1919 à 1922. Tal empreitada se mostra obrigatória, ainda que de forma sucinta, na medida em que ajudará na compreensão do florescimento do fascismo naquele país e na consequente formação dos primeiros focos de resistência desse movimento no Brasil. No segundo capítulo dedico atenção especial ao movimento anarquista no Brasil em seu processo histórico, aproveitando a oportunidade para ressaltar o contexto político republicano no qual estava inserido durante a década de 1920 nas duas maiores capitais brasileiras (Rio de Janeiro e São Paulo). Ao final, apresento, de forma panorâmica, as vertentes do movimento anárquico presentes nos discursos daqueles que lutaram por uma mudança radical da sociedade, particularmente ressaltando as experiências brasileiras dos primeiros anos do século XX. Finalmente na terceira e última parte, me debruço no exame das fontes (me refiro aos jornais Alba Rossa, A Plebe e Spartacus), e analiso o conceito de fascismo noticiado pelos referidos jornais operários investigando a sua caracterização, bem como percebendo possíveis nuanças e diferenciações de seus elementos caracterizadores em cada um dos periódicos.

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Por fim, é dentro dessa perspectiva que faço uma paródia com a fala de João Batista, notório personagem bíblico, e aproveito para nomear, ou melhor, dar título ao presente trabalho. Tal qual João Batista, que clamava isoladamente a vinda de um suposto messias em tempos de perseguição romana2, assim comparo os operários aguerridos reunidos em torno dos ideais anarquistas com a figura desse profeta de Cristo, no sentido de serem vozes em um deserto pleiteando por melhores condições de trabalho e de vida. É claro que no lugar das vozes (leia-se aqui as pregações em público durante o cristianismo primitivo), coloco a tinta e o papel que davam contornos aos jornais. No lugar do deserto, faço um paralelo ao contexto em que se encontravam o operariado no início do século XX no Brasil. E, por fim, ao invés de pregarem a chegada de um suposto messias, pretendiam a revolução social, o fim do capitalismo e a supressão do Estado.

2 Evangelho de João, capítulo 1, versículo 23.

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1 O surgimento do fascismo na Itália e o antifascismo no Brasil 1.1 A Itália em 1919 e a emergência do fascismo – a criação do fasci di combattimento De certo modo, remontar o cenário político italiano no início da década de 1920, assim como compreender a origem do fascismo naquela sociedade, demandaria, sem sombra de dúvida, a realização de um trabalho exclusivamente dedicado ao tema. Contudo, levando em conta a proposta deste trabalho, faz-se obrigatória a compreensão de como se originou o movimento fascista na Itália a partir de 1919, o seu fortalecimento e a sua ascensão ao poder (em 1922), que foi responsável pelo desmonte do antigo Estado liberal alicerçado sobre um parlamentarismo constitucional. De acordo com Eric Hobsbawm, considerando os fatos em a ‘Era da Catástrofe’, a qual ele intitulou como o período que atravessa desde a Primeira Guerra Mundial até o final da Segunda Guerra, “os sobreviventes do século XIX ficaram talvez mais chocados com o colapso dos valores e instituições da civilização liberal cujo progresso seu século tivera como certo, pelo menos nas partes ‘avançadas’ e ‘em avanço’ do mundo” (2014, p. 113). Os valores liberais enunciados pelo citado autor traduziam-se nas desconfianças das ditaduras e dos governos despóticos, reforçando, por outro lado, o compromisso com governos constitucionais assentados em assembleias representativas livremente eleitas, que garantissem o domínio e o rigor do cumprimento da lei. Além disso, eram exigidas a garantia de “direitos e liberdades dos cidadãos, incluindo a liberdade de expressão, publicação e reunião” (2014, p. 113). Desta forma, é inconteste o avanço das instituições regidas por uma democracia liberal, desde meados do século XIX até às primeiras décadas do século XX, principalmente se for levado em conta o barbarismo provocado pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918) contribuinte desse avanço. Ainda segundo Hobsbawm, “à exceção da Rússia soviética, todos os regimes que emergiram da Primeira Guerra Mundial, novos e velhos, eram basicamente regimes parlamentares representativos e eleitos (…). A Europa, a oeste da fronteira soviética, consistia inteiramente nesses Estados em 1920” (2014, p. 114). A América, como veremos mais à frente, não foi um caso à parte, inclusive no Brasil, que a após a proclamação da República em 1889, adotou uma constituição em que a organização do Estado seria na forma de uma República 13

federativa liberal, com forte inspiração no modelo norte-americano (FAUSTO, 1995, p. 249). No entanto, principalmente em razão do avanço do fascismo de Mussolini, o Mundo observou a retirada de cena de forma “acelerada e cada vez mais catastrófica das instituições políticas liberais” (HOBSBAWM, 2014, p. 115). De uma maneira geral, entre 1918 e 1920, os órgãos legislativos das Repúblicas liberais europeias foram dissolvidos ou se tornaram ineficazes, tanto na Itália quanto na Alemanha3. Assim, segundo Hannah Arendt, após a Primeira Guerra Mundial, uma “onda antidemocrática e pró-ditatorial de movimentos totalitários e semitotalitários varreu a Europa: da Itália disseminaram-se movimentos fascistas para quase todos os países da Europa central e oriental” (2013, p. 437). Diante disso, a pergunta que deve ser feita é: qual a explicação para o abandono do liberalismo político e o florescimento de regimes totalitários pelos países da Europa, sobretudo o fascismo, que vem sendo, pelo que foi visto até aqui, tratado pela historiografia como movimento pioneiro de caráter antiliberal? Segundo Goffredo Adinolfi “(…) é preciso ter sempre em mente que o fascismo se apresentou como algo à parte das elites políticas da sua época, como o sintoma de um mal, como o caos e, paradoxalmente, também como um possível remédio para esse mal, uma espécie de solução dolorosa à qual seria preciso recorrer para sair de um perigoso impasse. A doença era o caos, bolchevização do país, a instabilidade governamental e, por fim, o superpoder do Parlamento sobre o Executivo” (2010, p. 349).

Além disso, segundo o autor, havia um grande contingente de soldados que regressaram do front da Primeira Guerra inválidos e desempregados, o que certamente contribuiu para o desprestígio e o descontentamento com o antigo sistema político e favoreceu o surgimento de partidos fortes e organizados (2010, p. 349). Portanto, foi sobretudo em razão do medo de uma iminente revolução social, principalmente em decorrência da influência comunista propagada pelo sucesso da Revolução de 1917 na Rússia, que os movimentos totalitários emergiram na Europa sob a pretensa proposta de manter a ordem e a eficácia da lei. Mesmo assim, como bem 3 PAYNE, Stanley. Fascism – Comparison and Definition. London: The University of Wiscoonsin Press, 1980, p. 29-31.

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concluiu Eric Hobsbawm, apesar de todo medo da ‘ameaça comunista’, “nos vinte anos de enfraquecimento do liberalismo nem um único regime que pudesse ser chamado de liberal-democrático foi derrubado pela esquerda”. Na verdade, segundo o referido historiador, o “perigo vinha exclusivamente da direita” (2014, p. 116). Aqui cabe, contudo, realizar uma importante consideração. Assim como no fascismo italiano, a onda de regimes totalitários que pipocaram na Europa Ocidental possuía nas classes média e média baixa o seu alicerce. Obviamente, isso não significa dizer que os diversos movimentos fascistas não foram capazes de conquistar um autêntico apoio das massas entre os trabalhadores pobres (PAXTON, 2003, p. 28). Assim, tanto na Itália quanto na Alemanha, o estabelecimento dos governos fascistas com legitimidade pública fez com que muitos trabalhadores ex-socialistas e comunistas se alinhassem com os novos regimes (HOBSBAWM, 2014, p. 125)4. O controle das massas se dava de forma distinta, quer seja entre a direita fascista, quer seja a não fascista. Ainda de acordo com Hobsbawm, em a sua Era dos Extremos, o fascismo “existia mobilizando massas de baixo para cima” e rejubilava-se na mobilização dessas massas, e mantinha-as “simbolicamente na forma do teatro público” (2014, p. 121). O que também se confirma nas apalavras da Hannah Arendt, ao mencionar que o fascismo se fortaleceu justamente “onde os movimentos totalitários objetivam e conseguem organizar as massas – e não as classes, como o faziam os partidos de interesse dos Estados nacionais do continente europeu” (2013, p. 436) Sobre o conceito de fascismo, analisarei a questão em momento oportuno. Por ora, deve-se ter em mente que, tanto na experiência italiana quanto nos demais casos na Europa e no Mundo, os regimes totalitários fascistas tenderam a ser nacionalistas, uma vez que “agitar bandeiras nacionais era um caminho tanto para a legitimidade quanto para a popularidade”. Mesmo assim, apesar da presença do nacionalismo, quase que como uma fórmula geral, havia diferenças de região para região (HOBSBAWM, 2014, p. 117). Por outro lado, os fascistas “eram revolucionários da contrarrevolução: em sua retórica, em seu apelo aos que se consideravam vítimas da sociedade”, convocando todos os indivíduos a uma total transformação da sociedade (p. 121). Cabe agora deixar de lado, um pouco, as análises gerais sobre o fascismo na Europa e dedicar maior atenção ao caso italiano dentro do recorte temporal proposto 4 Digno de nota é o fato de que “Certamente era forte o seu apelo para a juventude da classe média, sobretudo para universitários da Europa continental, os quais, entre guerras, foram conhecidos por seu ultradireitismo. Treze por cento dos membros do movimento fascista italiano em 1921 (ou seja, antes da Marcha sobre Roma) eram estudantes” (HOBSBAWM, 2014, p. 125).

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nesta pesquisa. Dois pontos, portanto, serão aqui atravessados. O primeiro é entender, por meio de um olhar panorâmico, o contexto político da Itália em 1919. O segundo é falar um pouco sobre o fasci di combattimento, movimento embrionário do fascismo que foi encabeçado por Mussolini. A Itália, que surgiu do processo de unificação em 1861 (resultado da agregação da península ao Reino da Sardenha), possuía a sua organização política baseada no Estatuto Albertino, outorgado em 1848 pelo rei Carlos Alberto. Era considerada uma Constituição flexível não fazendo distinção entre leis ordinárias e lei fundamental, como pretendia a pirâmide de Kelsen5. O chefe de governo, o Primeiro Ministro, deveria responder unicamente perante o rei, porém acabava precisando constituir apoio político também no Parlamento (ADINOLFI, 2010, p. 351). O parlamento era divido entre uma Câmara dos Deputados eletiva e um Senado de nomeações exclusiva do rei, e que possuíam a finalidade de confecção e aprovação de leis. Em 1912, a reforma eleitoral desejada pelo presidente do Conselho de Ministros, Giollitti (1912), reforçou o caráter parlamentar do Estatuto, reintroduzindo o sufrágio universal masculino e transformou o antigo sistema eleitoral de majoritário para o proporcional” (2010, p. 351). As reformas causaram efeitos inesperados. Nas eleições de 1919 e 1921, sucessivamente, a Câmara Baixa “acabou sendo completamente subvertida”. O antigo e conhecido Partido Liberal, expressivo, porém pouco estruturado, foi completamente esmagado pela vitória do Partido Popular Italiano (PPI) de inspiração católica e também pelo Partido Socialista Italiano (PSI)6 (PAXTON, 2004, p. 88). Com isso, o sistema institucional e partidário delineado entre 1919 e 1921 entrou em crise política, “dilacerado entre um passado distante e um futuro para o qual o reino ainda não estava pronto” (ADINOLFI, 2010, p. 351). Foi diante desse contexto de crise institucional do legislativo, que o fascismo ganhou contornos na Itália e por meio de um golpe de Estado Mussolini chegou ao poder em 1922.

5 Hans Kelsen é um filósofo muito importante para o estudo do Direito, dentre os vários livros que escreveu estão ‘Teoria Geral do Direito e do Estado’. Nesta obra, Kelsen desenvolveu a ideia de hierarquização e subordinação das leis e usou uma figura geométrica (pirâmide) para explicá-la. Esta ideia implica que todas as leis estão subordinadas a uma ‘lei maior’ e a ela tem de ser adequadas. Se uma lei contrariasse/contrariar essa lei maior, dita lei pode ter sua validade contestada (KELSEN, 2006). 6 Segundo João Fábio Bertonha, “esse partido nasceu no Congresso de Gênova em 1892. Tinha base operária, tendências marxistas e forte inspiração de um dos seus líderes-chave, Filippo Turati. O PSI recebia influência da social democracia alemã e inaugurou na Itália o ‘partido’ como nós o conhecemos, com uma rede de sindicatos e associações orbitando ao seu redor” (1999, p. 24).

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O fascismo, que em 1921 serviu na manutenção do status quo da classe média e da elite italiana após a derrota eleitoral para partidos populares como visto, surgiu a partir de um jornalista socialista, Benito Mussolini, cujo “primeiro nome, tributo ao anticlerical presidente mexicano Benito Juárez, simbolizava o apaixonado antipapismo de sua nativa Romagna” (HOBSBAWM, 2014, p. 119). Em 1918, antes mesmo do final da guerra, alguns representantes do intervencionismo de esquerda começaram a reagrupar-se em torno de objetivos pretensamente revolucionários. Como por exemplo, em março de 1918, Alceste De Ambris publicava o primeiro número de Rinnovamento. Meses mais tarde, em maio de 1918, concorria para a criação da Unione Socialista Nacionale Italiana, primeira organização onde reunia base do socialismo com elementos nacionalista (aceitando, ao mesmo tempo, o conceito de luta de classe e o conceito de pátria-nação (PARIS, 1993, p. 62). Apesar de socialista e profundo seguidor de um nacionalismo, Mussolini não aderiu a nenhuma dessas duas iniciativas. Após a sua expulsão do PSI (Partido Socialista Italiano) e de sua demissão do cargo de editor chefe do jornal Avanti! (jornal do PSI), Mussolini passou a editar, em 1914, o jornal Il Popolo d’Itália pertencente ao movimento Fasci d’azione rivoluzionaria (criado por Mussolini e Alceste de Ambris em 1914) Contudo, a partir de agosto de 1918, modificou o subtítulo do periódico transformando-o no “diário dos combatentes e dos produtores”. Posteriormente, vagamente passou a falar sobre o seu futuro “‘antipartido’: ‘Nós constituiremos o antipartido dos realizadores… uma organização fascista” (PARIS, 1993, p. 62). Já em 2 de março de 1919, o periódico Popolo d’Itália convidou leitores, simpatizantes e amigos para se reunirem em Milão, no dia 23 do mesmo mês, para que aí se constituíssem os conhecidos fasci di combattimento. De acordo com o próprio Mussolini a respeito dessa reunião marcada, “em 23 de março não se fundará um partido, mas, dar-se-á impulso a um novo movimento”. Apesar disso, o encontro, segundo Robert Paris, foi modesto e passou quase que desapercebido. Na ocasião, fundou-se o primeiro fasci (local de encontro dos integrantes filiados ao movimento), localizado em Milão” (1993, p. 65). Os primeiros fasci eram formados, em sua maioria, de antigos membros dos Fasci d’azione rivoluzionaria, de intervencionistas de esquerdas, anarquistas sindicalistas e republicanos, como Roberto Farinacci, e também composto por arditi desmobilizados (tropas de assalto de elite do exército italiano na Primeira Guerra 17

Mundial) alguns pertencentes ao Popolo d’Itália. Alguns futuristas também fizeram parte do movimento (1993, p. 65). A primeira sessão do movimento terminou com a designação de um Comitê central que seria formado, entre outros nomes, por Mussolini, Ferrucio Vecchi, Mario Giampaoli e Cesare Rossi. Uma série de comissões, “designadas em 1º de abril, e um secretariado nacional, em 6 de maio, constituíram a organização do novo movimento” (1993, p. 67). Segundo o referido autor, o movimento embrionário do fascismo sobreviveu até o verão de 1920. Sua composição, inicialmente esquálida, testemunhou um efetivo e rápido crescimento a partir de 1919 na Itália. No final de 1919, havia na Península 31 fasci reagrupando 870 adeptos; o fasci de Gênova, por exemplo, contava apenas com 29 integrantes. Em dezembro de 1920 encontravam-se, ao contrário, 88 fasci reunindo vinte mil adeptos” (1993, p. 67). O passo seguinte dado por Mussolini foi a criação do Partido Nacional Fascista em 1921. Apesar do desaparecimento do fasci di combattimento, as ideias fascistas permaneceram circulando e germinando na Itália, o que resultou na sua consolidação como vertente política estatal nos anos seguintes, a partir da sua ascensão ao poder por meio de seu líder (Mussolini) em 1922. A compreensão do movimento, é, sem dúvida, de extrema importância para este trabalho, visto que utilizamos o seu ano de fecundação como marco inicial do recorte temporal. Veremos, em seu devido momento, que o fascismo na Itália, ainda que durante a sua forma fetal, gerou movimentos de resistência contra a sua propagação, não apenas na Itália, mas também nos países onde a presença de italianos emigrados se fez presente, como por exemplo no Brasil e da mesma forma nos movimentos operários externos à comunidade italiana.

1.2 A criação do Partido Nacional Fascista – PNF e a marcha sobre Roma (1921 e 1922) Como foi ressaltado, a ascensão do fascismo na Itália está diretamente relacionada com (1) a proposta de contenção das notícias sobre a Revolução de 1917 na Rússia, momento em que emerge no seio dos movimentos de esquerda em geral o maximalismo; (2) relacionada também com a Primeira Guerra Mundial; e, finalmente, (3) relacionada com instabilidade política vivenciada na Itália após as eleições 1921. O 18

fascismo assumirá, portanto, a noção de ‘terceira via’ no sentido de ser uma opção entre o liberalismo e o comunismo. Ainda sobre a instabilidade no jogo político na Itália, Goffredo Adinolfi ressalta que “outra fonte de instabilidade advinha do fato de que entre as três formações (socialistas, católicos e liberais) não havia possibilidade de acordo” (p. 352). Desta forma, ainda segundo o autor, Giolitti, protagonista do cenário político italiano do fim do século XIX e início do século XX, entende que mais uma vez astúcia, desfrutando dos conflitos existentes entre as diversas formações presentes no Parlamento. Foi assim que nas eleições de 1921 decide se aliar ao Movimento Fascista de Benito Mussolini, mesmo tendo o fascismo se apresentado como uma força antissistema contra a Monarquia e os ‘tubarões’ que haviam lucrado sobre os auspícios da Primeira Guerra Mundial; e, além do mais, tinha dado bons sinais de arrependimento nas suas lutas contra o Partido Socialista e contra o sindicalismo” (2010, p. 352).

Um último e essencial ponto de instabilidade proveniente da escassa legitimidade que o sistema parlamentar suscitava era a confluência existente de pelo menos quatro correntes, cada qual, a seu modo, propunha reformas em “sentido contrário a uma maior democratização do sistema” (p. 352). Além disso, havia uma resistência em entregar o poder às duas novas formações, seja àquela católica ou mesmo àquela socialista, vitoriosas no pleito eleitoral de 1921. Para se ter uma exata ideia da encruzilhada entres as facções parlamentares, havia os elitistas, dentre os quais Mosca era seguramente o principal representante; os nacionalistas (Alfredo Rocco e Giovanni Gentile); os fascistas, dentre os quais Sergio Panunzio, que foi um dos principais teóricos; e, enfim, os liberais, como Vittorio Emanuele Orlando, membro destacado do constitucionalismo italiano. (…) As quatro visões partiram de quatro diferentes soluções” (p. 352). Além disso, fora do jogo institucional, correndo à margem do sistema, existiam os anarquistas, os socialistas e os republicanos (BERTONHA, 1999, p. 24). Foi nesse ambiente que Mussolini moveu seus passos rumo à tomada do poder. A adesão ao fascismo de grande parte da classe média alta italiana estava diretamente relacionada com o crescimento do movimento de Gabriele D’Annunzio que utilizou constantemente a violência e o radicalismo para derrubar o parlamento liberal e a monarquia de Vittorio Emanuelle III (PAXTON, 2004, p. 59). Segundo, Robert Paris, o Fasci de Combattimento, movimento como visto germinal do fascismo, não teria

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forças para fazer frente à Impresa Fiumana, grupo sindicalista de D’Annunzio, se não fosse em razão do auxílio financeiro recebido da burguesia (1993, p. 64). Na década de 1920, após desaparecimento dos fasci di combattimento, Mussolini fez renascer o fascismo que, até esse momento, sobreviveu em razão do apoio da aristocracia agrária, principalmente do Norte e do Centro da Itália. A ruptura e o abandono dos elementos pertencentes ao socialismo foram fundamentais para que o movimento alavancasse o seu desenvolvimento e a sua aceitação (1993, p. 83). Entre os anos de 1920 a 1922, o fascismo ainda não contava com a adesão de grande parte da massa popular; em contrapartida, assistiu-se a um significativo aumento do apoio agrário ao movimento, a partir do squadrismo que crescia e formava adeptos contrários aos grupos de esquerda na Itália. O squadrismo pregava ataques violentos, sempre organizados por esquadrões fascistas, contrários às organizações e instituições socialistas e anarquistas por toda a porção norte e central da península italiana, em especial nas províncias de Bolonha, Florença e Ferrara. O movimento agrário atraiu cada vez mais simpatizantes que ofereciam apoio ao fascismo, que, em 1922, contava com a participação de um grande contingente de homens (PAXTON, 2004, p. 61). Assim, a pressão pelo restabelecimento da paz, que implicava em acabar com o impasse diplomático entre a Itália e a Iugoslávia, somada à tensão causada no parlamento por D’Annunzio, foram de suma importância para que renomados políticos da época, como o próprio Giovanni Giolitti, apostassem no grupo fascista de Mussolini como intermediário da paz e da estabilidade política (2004, p. 59). Em 9 de novembro de 1921, uma moção proclamou a constituição do PNF (Partito Nazionale Fascista), partido oriundo da reorganização dos Fasci di Combattimento em uma facção política que contava com o apoio não só da opinião pública italiana, mas, também, de grande parte dos católicos, fazendo com que Giolitti e toda a elite política da Itália percebessem que o grupo comandado por Benito Mussolini não era suscetível à domesticação (PARIS, 1993, p. 83). No entanto, a participação do partido no parlamento era inexpressiva em 1921. Já em 1922, quando as eleições parlamentares declararam uma vitória esmagadora do PNF, a emergência da crise de gabinete, e a resignação do Rei frente ao movimento fascista, levaram Luigi Facta (Primeiro Ministro) a renunciar ao cargo de premier italiano, abrindo espaço para que Mussolini assumisse o posto mais alto do Parlamento. A via romana para uma ditadura de extrema direita estava traçada. 20

A Marcha sobre Roma, como ficou conhecida a ascensão de Mussolini e do fascismo ao poder, ocorreu no dia 29 de outubro de 1922. O líder do movimento fascista partiu de Nápoles em direção a Milão, onde tomou posse do cargo de primeiro-ministro; a data ficou conhecida como marcha, porque, apesar de Mussolini ter chegado a Milão em um trem noturno, seus partidários e simpatizantes fascistas de fato marcharam rumo à capital do país para celebrar a conquista do poder pelo PNF. Por fim, segundo Goffredo Adinolfi, “No dia seguinte à marcha sobre Roma das colunas fascistas em 28 de Outubro de 1922, o rei Vittorio Emanuele III encarregou Mussolini de formar um novo governo” (2010, p. 355). Ainda que o fascismo se inicie com um executivo de coalizão recolhendo-se na tradição liberal, o caráter subversivo do fascismo foi rápido e completamente manifestado. Já em dezembro de 1922, Mussolini e alguns de seus subordinados “estabeleceram parte das linhas de ação que acabaram caracterizando a estratégia do Partido Nacional Fascista (PNF) num futuro próximo: a instituição do Grande Conselho Fascista (GC) e a reforma majoritária da lei eleitoral” (p. 355).

1.3 Breve balanço historiográfico sobre o antifascismo no Brasil e a hipótese ventilada Balanço Historiográfico sobre o antifascismo no Brasil

Se nos subcapítulos anteriores foi apresentado o desabrochar do fascismo na Itália, é chegada a hora, portanto, de concentrar atenção nos movimentos de resistência empenhados contra o fascismo, sobretudo aqueles desempenhados em território brasileiro. Ainda não é o momento de tratar dos diferentes antifascismos italianos no Brasil ressaltando a sua trajetória histórica e seus principais articuladores; isso será feito nos próximos capítulos. Tudo o que se pretende, no momento, é realizar um detalhado balanço da literatura que foi produzida pela historiografia especializada no tema, aproveitando-se o ensejo para apontar possíveis lacunas. No tocante ao estudo sobre o fascismo e a resistência antifascista no Brasil, é possível verificar uma vasta produção historiográfica que se divide em dois blocos: o primeiro bloco pertence aos historiadores que se dedicaram ao estudo do fascismo e do antifascismo no Brasil praticados por italianos residentes no país. Essas análises são 21

centradas basicamente nas relações entre o fascismo e a comunidade italiana existente no país entre a fase inicial de emergência do fascismo e a da tomada de poder por Mussolini (1919/1926) (BERTONHA, 1999, 2008; SANTOS, 2001)7. Em decorrência da perseguição política na Itália (fuoriusciti, fugitivos em italiano), nos últimos anos da década de 1920, surgiu um antifascismo no Brasil, que também foi desenvolvido por italianos, onde o nome de Francesco Frola possui destaque (BERTONHA, 1999, p. 6977; TRENTO, 1989; BIONDI, 2011; BATTIBUGLI, 1996; CARNEIRO, 2001). O trabalho de João Fábio Bertonha (1999), Sob a sombra de Mussolini: Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945, por exemplo, inicia suas análises a partir da luta antifascista dos socialistas italianos em São Paulo na década de 1920. Em um segundo momento, amplia o estudo e passa analisar a atuação dos italianos antifascistas em São Paulo até o fim do Estado Novo. O segundo bloco pertence à historiografia que se dedicou ao estudo de um antifascismo encetado por brasileiros, com ainda certa proximidade ao antifascismo italiano, e que se configurou em razão da conjuntura autoritária no Brasil a partir década de 1930 (CASTRO, 2001, 2002; SANTOS, 2009; CAMPOS, 2007). O trabalho de Ricardo Figueiredo de Castro (1999), Contra a guerra ou contra o fascismo? As esquerdas brasileiras e o antifascismo, 1933-1935, buscou estudar a transição da luta antifascista no Brasil, até então, desempenhada por italianos, para o centro de discussão de diversos setores da esquerda brasileira em luta contra o fascismo. Essa clivagem ocorreu durante a década de 1930, em razão do surgimento da AIB em 1932 e da reação das esquerdas ao integralismo culminando na criação da ANL. De qualquer forma, a atuação dos italianos ao longo de todo o período de luta antifascista foi de suma importância para a construção de uma frente de luta no Brasil. De acordo com Figueiredo de Castro, a escolha do dia 11 de junho de 1934 para a formação de uma frente única antifascista, refere-se ao assassinato do deputado socialista italiano Giacomo Matteotti, ocorrido em 1924, como uma forma de homenagear os antifascistas italianos e de conferir legitimidade histórica e política à nova organização (CASTRO, 2002, p. 359-361. Apesar da contribuição dos estudos sobre o antifascismo no Brasil em momentos distintos (1919-1930 e 1930-1945), especialmente em sua primeira fase, não é possível

7 O tema do fascismo e do antifascismo no Brasil já foi trabalhado de modo bastante específico por alguns historiadores (além dos já citados, GERTZ, 1987; SIRON, 1994; VIANNA, 2007; AZEVEDO, 2002; PARRA, 2003)

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encontrar trabalhos que se dediquem a investigar a recepção do antifascismo italiano a partir dos movimentos sindicalistas e operários nacionais ligados às correntes do anarquismo e do sindicalismo revolucionário nos primeiros anos da década de 1920. Portanto, é a partir desta lacuna historiográfica que este trabalho será desenvolvido.

Hipótese propriamente dita

Em suma, esta pesquisa buscou realizar um levantamento das fontes existentes no âmbito brasileiro sobre o tema do antifascismo italiano no país, utilizando alguns periódicos dos anos 1920, especialmente os brasileiros ligados às diferentes correntes do anarquismo do sindicalismo revolucionário nacional (A Plebe e Spartacus), com a pretensão de investigar as posições de cada uma dessas tendências políticas em relação ao fascismo na Itália. O centro de interesse é justamente compreender a recepção de um antifascismo italiano, nos primeiros anos da década de 1920, a partir de periódicos anarquistas que não estavam exclusivamente associados à comunidade italiana no Brasil, como fez João Fábio Bertonha. À historiografia dedicada ao antifascismo em sua primeira fase, portanto, faltou realizar um estudo sobre o tema a partir do movimento operário nacional, que nesse momento, como mencionado, encontrava-se ligado às diferentes vertentes do anarquismo e do sindicalismo revolucionário (SAMIS, 2009; OLIVEIRA, 2009). Por outro lado, optei, da mesma forma, por analisar um periódico editado no Brasil, porém confeccionado para circular entre a comunidade italiana existente em São Paulo, se diferenciando, por tanto, dos jornais escolhidos para esta pesquisa. Assim, Alba Rossa (1919-1922), periódico anarquista e antifascista dirigido por Angelo Bandoni, foi escolhido em razão de três motivos: em primeiro lugar, (a) por se tratar de um periódico

editado

por

um anarquista antiorganizacional (chamados de

individualistas), o que no Brasil é um caso raro; (b) em segundo lugar, por se tratar de um jornal antifascista, não há no país trabalhos que se dedicaram na realização de um estudo mais aprofundado tanto sobre o Bandoni, quanto sobre o Alba Rossa8; por fim,

8 A respeito dos trabalhos estrangeiros que se dedicaram ao estudo do Bandoni, ver: ANTONIOLI, Maurizio et al. Dizionario biografico degli anarchici italiani. 2 volumes. Pisa: BFS, 2004; BIONDI, Luigi. La stampa anarchica in Brasile: 1904-1915. Tese de Láurea (Historia). Universidade de estudos de Roma La Sapienza. Itália: Roma, 1994 e FELICI, Isabelle. Les italiens dans le mouvement anarchiste au

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(c) em terceiro lugar, percebemos que a análise de um periódico antifascista italiano foi capaz de fornecer maiores subsídios ao estudo do fascismo combatido. De outra forma, também foi possível estabelecer uma comparação sobre a noção de fascismo a partir de diferentes vertentes do movimento anarquista por meio de três periódicos distintos. Já em um segundo momento, a partir da análise desses periódicos, também buscou-se inferir qual a compreensão que esses militantes anarquistas passaram a ter acerca do conceito de fascismo italiano enquanto movimento político em ascensão na Europa. A recepção do antifascismo por alguns periódicos pertencentes ao movimento operário anarquista de origem nacional, já a partir de 1919, tem relação direta com a influência exercida por notáveis personalidades de origem italiana sobre os militantes brasileiros. Além disso, alguns desses militantes italianos, ligados ao movimento operário, vão contribuir, inclusive, na edição de periódicos operários nacionais. Esse, como será analisado com maior rigor, foi o caso do jornal A Plebe, periódico anarquista fundado em São Paulo, em 1917, em que conseguiu reunir articulistas tanto do âmbito nacional quanto internacional. Assim, cabe destacar a influência exercida por alguns proto-antifascistas italianos atuantes no Brasil até essa época como Antonio Piccarolo, Angelo Bandoni, Oreste Ristori, Francesco Cianci, Gigi Damiani, Giulio Soderi, entre outros (ver BERTONHA, 1999; ROMANI, 2002; BIONDI, 1994 e TOLEDO, 2004), que permaneceram longos anos no Brasil. Ao lado desses, acrescentam-se outros que tiveram rápida passagem pelo país, mas que continuaram mantendo relações com os seus conterrâneos que ainda permaneceram no Brasil, como Lélio Zeno, Enrico D’Avino, Silvio Fioravanti, Trento Tagliaferri, Antonio Trotta entre outros tantos. A recepção do antifascismo pela imprensa operária brasileira, nos anos 1920, também se explica em razão da forte influência provocada pela circulação do jornal Umanitá Nova, jornal antifascista editado na Itália, a partir de 1920, pelos italianos Errico Malatesta, Camillo Berneri, Antonio Cieri, entre outros. O próprio Gigi Damiani, após ser expulso do Brasil, em 1919, pelo governo republicano, se tornou um dos principais articulistas do jornal (BIONDI, 2011). Neste sentido, durante as análises das fontes, foi recorrente o encontro de colunas publicadas fazendo expressa menção ao referido periódico, como, por exemplo, Bresil: 1890-1920. Tese (doutorado) - Universitè de la Sorbonne Nouvelle-Paris III. Paris, 1994. Carece, na historiografia brasileira, de um estudo mais aprofundado sobre esse anarquista.

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na edição de Spartacus de 6 de dezembro de 1919, que recebeu o seguinte título: Malatesta. A notícia informava o retorno de Errico Malatesta à Itália, o plano de organização de um novo periódico anarquista e a participação de Gigi Damiani como articulista: “Telegramas desta semana deram-nos a grata notícia de ter Malatesta entrado finalmente na Itália. (…) Malatesta vai para Milão dirigir, em companhia de Galleani, o novo diário anarquista Umanitá Nova, são ansiosamente esperados. (…) A Galleani e Malatesta irá naturalmente juntar-se o nosso Gigi Damiani, outro jornalista consumado. É com estes três homens à frente, cercados de jovens ardorosos e dedicados, não é demasiado prever a influência decisiva que Umanitá Nova está destinada a desempenhar na orientação e no desenvolvimento da revolução italiana em marcha…” (Spartacus, Rio de Janeiro, 6 de dezembro, ano I, n.º 19, p. 1).

Pelo que se pode inferir, esse contato serviu para estabelecer um canal entre militantes anarquistas no Brasil e na Itália, sobretudo com aqueles que tiveram rápida passagem no país. Isso certamente permitiu que um fluxo de informações sobre o fascismo na Itália regasse com informações parcela do movimento operário no Brasil, fazendo com que brotassem notícias sobre o fascismo nas páginas de seus jornais. Diante disso, após lograr êxito em encontrar algumas colunas tratando sobre o fascismo nos primeiros anos da década de 1920, prosseguirei na análise investigativa para auferir qual seria o conceito desse fascismo contido nas notícias veiculas por esses jornalistas militantes anarquistas. Assim, além de tomar conhecimento da presença de um antifascismo encetado por italianos e brasileiros em alguns periódicos anarquistas integrantes do movimento operário nacional já no início da década de 1920 (desprezado pela historiografia, como já foi exposto), as análises também possibilitaram, em um segundo momento, compreender que o conceito de fascismo noticiado nesses periódicos estava diretamente relacionado a um extremo nacionalismo, a uma forte militarização do Estado e uma intensa repressão policial aos movimentos de esquerdas. Mas isso será mais bem aprofundado no capítulo 3. Sem dúvida a questão merece destaque, uma vez que, entre 1919-1922, o fascismo passou a ser criticamente percebido pelos anarquistas numa fase em que ainda não havia se consolidado institucionalmente como política Estatal na Itália. A primazia

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dos anarquistas na luta contra o fascismo no Brasil merece, certamente, que seja dada a devida importância.

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2. Breve histórico do movimento operário anarquista no Brasil (1900-1922) 2.1 O movimento operário anarquista e a primeira República (1900-1922) Em 1919, enquanto que na Itália uma onda conservadora marchava sobre o país, no Brasil a República liberal estava em pleno vigor. Mas esse liberalismo não duraria por muito tempo. Nas próximas páginas, além de pretender remontar o momento político em que o movimento operário anarquista estava inserido entre os anos de 19191922, este capítulo também ressaltará que os anos vinte marcaram o início de uma crise entre as instituições republicanas enunciando os primeiros sinais de declínio, que vão se processando lentamente, até o seu completo desmanche na década de 1930. Segundo a historiadora Silvia Magnani, o Estado republicano foi responsável por concretizar a “hegemonia política da burguesia cafeeira de São Paulo, em aliança com os setores fundiários de Minas Gerias, no seio da classe dominante”. A proclamação da república, entre outras coisas, “significou a ascensão política da burguesia comercial cafeeira (que representava os interesses dos demais setores agroexportadores)” (1982, p. 38). O Estado republicano, a partir da Constituição Federal de 1891, estabeleceu uma democracia representativa burguesa, alicerçada nos ideais do liberalismo clássico, onde todos os brasileiros maiores de 21 anos conquistariam a cidadania adquirindo, portanto, direitos civis e políticos. Por direitos civis, entendia-se o mínimo necessário para o exercício da liberdade individual, que se desdobrariam no direito de locomoção, liberdade de imprensa, pensamento e fé, direito à propriedade, a execução contratos válidos e direito à justiça (MAGNANI, 1982, p. 38). Seguindo essa mesma linha, o historiador Carlos Addor, além de corroborar no sentido de que a consolidação e a institucionalização da República inseriu o Estado brasileiro dentro da essência do liberalismo, sustenta que essa prática política é a que melhor respondeu e atendeu aos interesses do “grupo que, no interior de uma diversificada classe dominante, vai construindo e conquistando posição hegemônica, não só no interior da própria classe dominante”, como diante de toda a sociedade civil (1986, p. 47). Portanto, em razão dos fundamentos basilares do liberalismo (livre comércio e livre mercado), o Estado estaria desobrigado em regulamentar tanto as condições contratuais de compra e venda de qualquer mercadoria, como, da mesma forma, não 27

interviria na regulamentação da relação de trabalho (patrão X empregado). Seriam os indivíduos, todos livres e proprietários, os articuladores das relações civis. Assim, tanto o mercado de trabalho, como o mercado em geral, deve auto regular-se (ADDOR, 1986, p. 50). Ao Estado apenas caberia o dever de garantir a execução dos contratos, sobretudo aqueles que versassem sobre relação de trabalho. Não à toa, foi durante a República liberal que o primeiro Código Civil foi publicado, em 1916, no Brasil, o qual seria a base normativa para toda e qualquer celebração contratual. Até Getúlio Vargas, toda relação trabalhista deveria ter como referência normativa o Código Civil 9. Muito bem sistematizando o assunto, são as palavras de Silvia Magnani: “(…) Os direitos civis fundamentais – liberdade de locomoção, de contratos e direito à propriedade – garantiam constitucionalmente a livre circulação da força de trabalho e a sua exploração (formalmente o trabalhador poderia alocar a sua força de trabalho onde e a quem lhe conviesse, como também o proprietário poderia utilizar-se livremente de seus bens e empregar a força de trabalho melhor que conviesse. Os direitos civis encobrem a desigualdade fundamental entre trabalho e capital)” (1982, p. 38).

Como já ressaltado, a preocupação maior do Estado alicerçado sobre as bases do liberalismo clássico é a tutela dos direitos de locomoção, propriedade, ordem econômica e a paz pública. Diante disso, a vida, de acordo com esse sistema, passa a ter relevância secundária na ótica do legislador, sobretudo nas matérias criminais. De acordo com Claus Roxin, os princípios sobre os quais se fundamentam o direito penal clássico – a legalidade estrita, a materialidade e a lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal – são, em grande parte, como se sabe, fruto da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo. Por sua vez, adverte o jurista alemão, nos Estados sociais a finalidade da ordem jurídica cumpre a “função de proteção, não dela própria, senão da pessoa humana, que é o objeto final de proteção da ordem jurídica” (2007, p. 447). Ao analisar o Código Criminal de 1890, especificamente a partir de seu Livro II – Dos Crimes em espécie, é possível verificar quais são justamente os bens jurídicos 9 Cabe ressaltar, sobretudo aos mais curiosos, que o Código Civil de 1916 sobreviveu longos anos vindo somente a ser revogado em razão da promulgação do Novo (já antigo) Código Civil de 2002. O CC de 1916, na mesma esteira do Código Napoleônico, serviu para garantir e assegurar as relações contratuais celebradas pela burguesia, seja nas celebrações que envolvam compra e venda ou locação, seja na regulamentação das prestações de serviço trabalhistas. Após a vinda da CLT, Consolidação da Legislação Trabalhistas, o vínculo trabalhista deixou de ser regulamento pelo CC/1916. Para um detalhamento no assunto ver livro do ex-Ministro de Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau: GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 4ª edição, São Paulo: Malheiros, 2005.

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mais importantes para o Estado. Os crimes que atentam contra a ordem pública do País (artigo 87 em diante), por exemplo, são previsto no código antes dos crimes contra a vida (tratados somente a partir do artigo 294), indicando quais seriam os verdadeiros princípios norteadores do novo Estado liberal. Outro caso notório, é o crime de furto:

Art. 330. Subtrahir para si, ou para outrem, cousa alheia movel, contra a vontade do seu dono: § 4º Si de valor igual ou excedente a 200$000: Penas de prisão cellular por seis mezes a tres annos e a mesma multa.

Enquanto que o crime de homicídio culposo: Art. 297. Aquelle que, por imprudencia, negligencia ou impericia na sua arte ou profissão, ou por inobservancia de alguma disposição regularmentar commetter, ou for causa involuntaria, directa ou indirectamente de um homicidio, será punido com prisão cellular por dous mezes a dous annos.

Ao reparar as penas cominadas nos dois artigos anteriores, resta patente que o legislador concedeu maior ênfase à propriedade do que em relação à vida. Isso apenas para demonstrar a lógica dos artífices da República. Os direitos políticos ativos e passivos (votar e ser votado) na primeira República simbolizavam o caráter representativo do Estado, onde os cargos públicos políticos eram eletivos. Entretanto, apenas possuíam o direito ao voto os eleitores homens, maiores de 21 anos, e alfabetizados; percebe-se, assim, que o sistema político arquitetado pela oligarquia nacional excluía parcelas significativas da população do processo eleitoral; ainda segundo Silvia Magnani, “se comparado ao voto censitário imperial, formalmente ampliou o contingente de eleitores, sobretudo nas cidades” (1982, p. 39). Como bem ressaltou Carlos Addor, cerca apenas de 3% da população brasileira participava do processo eleitoral. Além disso, o pleito, via de regra, era “um jogo de cartas marcadas” (1986, p. 46). Cartas marcadas porque a classe dominante agroexportadora (burguesia comercial) consolidou normas de dominação política por meio do pacto denominado política dos governadores. Às classes mais poderosas econômica e eleitoralmente (SP e MG), ou parte dela, foi garantido o controle das instituições políticas federais, “que efetivamente foram colocadas e seu serviço, como atestam as políticas de defesa do café” (MAGNANI, 1982, p. 40), que, eventualmente, não poderiam coincidir com os 29

interesses dos demais Estados. Diante disso, atesta-se que os demais setores da sociedade sociais (os não proprietários) tiveram obstada toda e qualquer participação política autônoma. No que diz respeito aos direitos sociais esses sempre foram repudiados em nome do individualismo. Desta forma, durante todo o período da primeira República, os detentores do poder político, amparados pela burguesia industrial, “resistiram a todas as tentativas de introdução de direitos sociais, tais como direito à aposentadoria, às férias, à indenização e à regulamentação das relações entre capital e trabalho” (MAGNANI, 1982, p. 39). Portanto, o liberalismo clássico, que foi tomado como referência pelos construtores da República, na prática, “sofreu um processo de reelaboração, resultando no

liberalismo

oligárquico”.

O

Estado

constitucionalmente

democrático

e

representativo “definiu-se como uma democracia elitista e limitada, reservada ao uso dos proprietários rurais e de uma fração das populações urbanas” (1982, p. 40 – sem grifo no original). No entender das oligarquias, os direitos civis seriam próprios e exclusivos dos homens cultos; em outras palavras, os que tinham acesso à educação, que nesse momento era a classe dominante e as camadas médias. Citando mais uma vez a historiador Silva Magnani: “(…) os direitos civis não poderiam ser utilizados para contestar o padrão de dominação política vigente e tampouco para contestar a organização socioeconômica do país. Assim, quando exercido pelas classes dominadas (‘incultas’) o direito à palavra, ao livre-pensamento e à associação, foram objeto de repressão policial (que coibia o exercício dos direitos constitucionais), como provam os empastelamentos de jornais operários, a prisão de líderes sindicais e anarquistas, e a lei de expulsão de estrangeiros (Lei Adolfo Gordo)” (1982, p. 41).

E por falar em empastelamento de jornal, observemos um caso curioso intentado contra a redação do jornal A Plebe, por estudante de Direito de São Paulo. A notícia sobre o ocorrido foi publicada em uma edição extra do dia 22 de Novembro de 1919, sob o seguinte título, diga-se de passagem de certo modo um tanto quanto irônico: Respondamos aos acadêmicos. Vale acompanhar de perto o acontecimento: “Os acadêmicos de S. Paulo praticaram no dia 31 [Outubro] um verdadeiro ato de heroísmo. Sabeis qual foi ele? Empastelaram a Plebe! Quer dizer, salvaram a Pátria, pois que “A Plebe tudo queria destruir”. O

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que mais os irritou foi o número do dia 30, chamando-os a se prepararem para substituírem uma nova classe que se ia declarar em greve. (…) Operários! Respondamos aos acadêmicos, não empastelando e destruindo os jornais que diariamente nos atacam e insulta (…). Apertamos mais a nossa barriga, mas não consintamos que a Plebe desapareça, pois que ela é o nosso valoroso defensor” (A Plebe, São Paulo, número Extraordinário, p. 2 – Grifo no Original).

O articulista que subscreveu a coluna, de codinome Guarany, estava se referindo ao episódio em que a categoria de motorneiros e condutores da companhia de fornecimento elétrico (Light) entraria em greve na capital de São de Paulo, muito em decorrência de uma série de paralisações que vinham ocorrendo desde 1917. Na ocasião, o editorial do jornal operário teria criticado alguns alunos da faculdade de Direito que se ofereceram para substituir os grevistas. Em represália, os alunos atacaram a oficina do jornal. A notícia também repercutiu, com uma semana de antecedência, no jornal carioca Spartacus, do dia 8 de Novembro de 1919, com o seguinte título: O empastelamento de ‘A Plebe’. Eis parte da reposta, recheada de ironia e trocadilhos, do jornal operário do Rio de Janeiro: “(…) Pois os moços, ofendidos nos seus melindres, tomaram esta desforra heroica, digna da classe a que pertencem: atacaram as oficinas e os escritórios do jornal operário, destruindo violentamente máquinas, caixas de tipos, mesas, cadeiras, armários, livros, folhetos… Perfeitamente. Tudo isso é naturalíssimo. A máxima preocupação intelectual da mocidade burguesa, que estuda direito e outras coisas não menos tortas, consiste na jogatina do foot-ball, quer dizer, no cultivo mental das patas” (Spartacus, Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1919, Ano I, n. 15, p. 3).

Quer dizer, nesse campo de disputa pela palavra, especificamente em relação à crítica, os ‘incultos’ saem na desvantagem, ou seja, não possuem esse direito. A liberdade de opinião, na República arquitetada pela oligarquia brasileira, tem destinatários certos e proprietários específicos, não pertencendo a todos os setores da sociedade. Portanto, quando o exercício do direito cai em mãos erradas, este deve ser duramente reprimido; aí entra em ação todo o aparato Estatal colocando ‘cada qual em seu lugar’. No peculiar caso em que acabamos de narrar, contudo, o evento foi capaz de mostrar um confronto direto entre parcelas de setores sociais distintos (uma elite culta X imprensa operária), se encarregando de demonstrar aos espectadores quem são de fato os “legítimos detentores” dos diretos constitucionais. 31

Na primeira República, portanto, a preocupação maior deu-se no campo dos direitos civis individuais, já que asseguravam a exploração capitalista. Todavia, o Estado, diante do operariado, limitou-se a implementar a política de exclusão e da repressão. A questão operária deveria ser resolvida basicamente na esfera policial; o lema geralmente atribuído a Washington Luiz, quando secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo: “A questão social é um caso de polícia”. A sociedade brasileira durante a primeira República estava basicamente dividida em quatro setores sociais: (a) a burguesia industrial, que adotou uma posição de submissão à oligarquia, exigindo, em troca de “pequenas concessões individuais, a fidelidade às grandes diretrizes traçadas pela cúpula oligárquica” (MAGNANI, 1982, p. 43); (b) as camadas médias tradicionais compostas pela burocracia civil e militar de funcionários públicos, que exerciam atividades não manuais, “que os protegiam do estigma do trabalho manual (preconceito vigente na sociedade recém-egressa do escravismo)” (Op. Cit., p. 44); (c) os setores médios ascendentes que correspondiam o terciário urbano, o baixo funcionalismo público, serviços de escritório no setor comercial e bancário; por fim, (d) na base desta sociedade, o operariado (Op. Cit., p. 44). No que tange ao operariado, de acordo com Boris Fausto, a constituição de um movimento pertencente à classe trabalhadora está diretamente relacionada com o crescimento das cidades e a diversificação de suas atividades. Foi no meio urbano, portanto, que se concentraram as fábricas e a prestação de serviços, fato que permitiu reunir centenas de trabalhadores que participavam de uma condição comum. As cidades proporcionaram, de certo modo, uma maior circulação das ideias, “por maiores que fossem as diferenças de instrução e a ausência de veículos amplos de divulgação, como viriam a ser o rádio e televisão” (FAUSTO, 1995, p. 297). Sobre o movimento operário, especialmente aqueles ligados aos anarquistas na primeira República, trataremos exclusivamente do assunto no próximo subitem. De qualquer forma, foi sobretudo nesse período, especialmente entre 1917 e 1920, quando uma série de greves de grandes proporções emergiram nas principais capitais do país, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, que o movimento operário agiu de forma contundente e organizado. Segundo Boris Fausto, dois fatores explicam o volume de manifestações operárias neste momento: o agravamento da carestia, em razão de perturbações causadas pela Primeira Guerra Mundial e pela especulação com gêneros alimentícios; outro fator foi a precipitação de expectativa causada pelas influências da 32

Revolução de 1917, seguida da Revolução de Outubro do mesmo ano, na Rússia (FAUSTO, 1995, p. 299). Esse, portanto, foi um quadro geral sobre a República Liberal brasileira. Antes de encerrar, é conveniente nesse momento remontar o cenário político vivenciado no país especificamente no início dos anos 1920, período de grande interesse para este trabalho. A década de 1920 vem sendo considerada pela historiografia nacional como um período de grande efervescência e profundas transformações. Isso em razão de uma crise que assolou o país cujos sintomas se manifestaram nos mais variados planos, experimentando “uma fase de transição cujas rupturas mais drásticas se concretizaram a partir da década de 1930” (FERREIRA; PINTO, 2007, p. 389). De acordo com Boris Fausto, o drama político tem início a partir da eleição de 1919. Rui Barbosa, que já havia sido derrotado em 1910 e 1914, apresentou-se à eleição contra o seu adversário Epitácio Pessoa. Apesar de não possuir o apoio da máquina eleitoral oligárquica, mesmo assim Pessoa “obteve cerca de um terço dos votos e venceu no Distrito Federal”, conseguindo ser eleito Presidente (1995, p. 305). Os desgastes entre oligarquias em razão da sucessão presidencial tomaram novos rumos. A sucessão de Epitácio Pessoa foi um outro bom exemplo disso. Quando o eixo São Paulo-Minas lançou o governador mineiro Artur Bernardes como candidato, nos primeiros meses de 1921, levantou-se o Rio Grande do Sul contra essa candidatura, liderado por Borges de Medeiros, que denunciou o arranjo político São Paulo-Minas como uma forma de garantir recursos para os esquemas de valorização do café, quando o país necessitava de finanças equilibradas. Bernardes saiu vitorioso do pleito. A situação continuou a se complicar em junho de 1922. Na ocasião o I Clube Militar lançou um protesto contra a utilização pelo governo de tropas do Exército para intervir na polícia local de Pernambuco. Como resposta, o governo determinou a repreensão e a seguir a prisão de Hermes da Fonseca e o fechamento do Clube Militar (FAUSTO, 1995, p. 307). Essas acirradas disputas em torno da sucessão presidencial em 1922 ensejaram na formação de uma reação republicana, “que foram interpretadas como indicadores do esgotamento do modelo político” (FERREIRA; PINTO, 2007, p. 393). Além da instabilidade política dos anos 1920, a economia também foi marcada por altos e baixos. Somado a isso, a Semana de Arte Moderna e a criação do Partido Comunista eram indicadores da grande tempestade que estava por vir e que solaparia as 33

bases da República Liberal. Analisar esses aspectos em seus pormenores, foge da pretensão inicial deste trabalho. O que se desejou com essa parte foi tão-somente remontar o cenário político nacional onde os movimentos anarquistas surgiram e germinaram. Sem isso, seria impossível compreender o anarquismo no Brasil em seu processo histórico, sobretudo entre 1919 à 1922.

2.2 A gênese do movimento operário no Brasil e as diferentes vertentes anarquistas – processo histórico (1900-1922) “(…) Um oficial a cavalo percorria a praça, intimando o povo a retirar-se. Obedeci e, antes de entrar na Rua do Ouvidor, a cavalaria, com os grandes sabres reluzindo ao sol, varria o largo com estrépito. Os curiosos encostavam-se às portas das casas fechadas, mas aí mesmo os soldados iam surrá-los com vontade e sem pena. Era o motim. (…) Durante três dias a agitação manteve-se. Iluminação quase não havia. Na Rua do Ouvidor armavam-se barricadas, cobria-se o pavimento de rolhas para impedir as cargas de cavalaria. As forças eram recebidas a bala e respondiam. (…) Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio a polícia, onde uns viam o seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância. O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia acolá. São independentes; não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissão, inteligência, e moralidade. Começa-se a discutir, ataca-se o Governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo. Os outros não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde”. Lima Barreto, 1909, p. 103-104

Do topo a uma “history from below” 10. Nas próximas páginas, o foco central será o movimento operário no Brasil entre os anos 1900-1922. Além de considerar outras tendências pertencentes às esquerdas, este subcapítulo concentrar-se-á principalmente no movimento anarquista; entender o processo histórico do movimento

10 Obviamente faz-se clara referência às abordagens feitas em História Social a partir de E. A. Thompson. Entre tantos trabalhos que poderiam ser recomendados, inclusive os de autoria thompsoneana, fico com o artigo Experiências compartilhadas e autonomia popular na história social: aproximações entre e. P. Thompson e Castoriadis, de autoria de Carlo Romani (2013), que explora bem a temática.

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operário é vital para esta pesquisa; no entanto, essa parte da história dos excluídos será feita panoramicamente. A história do movimento operário na primeira República refletiu a imagem de um período extremamente conturbado. Assim como na citada epígrafe de Lima Barreto, repressão, assassinato e exclusão social compõem os elementos dessa imagem onde o espelho que a reflete foi propositadamente trincado. De qualquer modo, comecemos pelos anarquistas em seus anos iniciais. Pois bem. Mensurar exatamente a recepção do anarquismo no Brasil não é um processo pacífico entre a historiografia. Juntamente com algumas experiências coletivistas no país, é possível observar, a partir da década de 1890, cada vez mais a presença de militantes anarquistas chegados do exterior em “meio às ondas migratórias que vinham sobrecarregar a oferta de braços, principalmente para as lavouras cafeeiras dos latifúndios paulistas” (OLIVEIRA, 2009, p. 50). Juntos com os primeiros ideais anarquistas, chegariam ao Brasil a pecha de que esse movimento estava relacionado diretamente com as práticas de crimes, violência e atentados com explosivos de dinamite. De acordo com Thiago Bernardon, a vertente mais terrorista associada ao anarquismo, que repercutiu em diferentes pontos do mundo, especialmente em parte da Europa, não teve adesão entre os anarquistas no país. (2009, p. 50). Segundo Sheldon Maram, em um primeiro momento, a maior penetração e influência lograda pelos anarquistas entre os trabalhadores foi a partir de 1903 quando vão conseguindo adentrar em sindicatos e em federações, “numa época em que as correntes ideológicas ainda não estavam claramente definidas” (1979, p. 89). De todo modo, a história do anarquismo no Brasil, sobretudo a partir dos sindicatos, não deve ser enxergada distante de uma relação conflituosa. A aceitação do sindicato como meio de luta contra o capitalismo não aconteceu por todas as correntes internas do movimento. Além da questão sindical, deve-se considerar que o anarquismo se desmembra em correntes diferentes. Neste sentido, segundo Alex Côrtes “o mais correto seria referir-se, não ao anarquismo, como único e monolítico, mas aos anarquismos, ideias plurais e práticas baseadas na propaganda pela ação direta, meios de construção de uma sociedade libertária” (2006, p. 56). Destarte, assim como no plano internacional, “no Brasil também desenvolveramse ‘anarquismos’ conflitantes, críticos uns com os outros em debates francos e 35

acalorados” (OLIVEIRA, p. 2009). Veremos, a partir de agora, as principais correntes do anarquismo, sobretudo as que tocaram o solo brasileiro. Segundo Carlo Romani, as correntes anarquistas dividem-se, a grosso modo, em individualistas e associacionistas. Segundo o autor, “os primeiros, genericamente, rejeitavam toda e qualquer forma de organização política como instrumento de ação”. Enquanto que os segundos entendiam ser crucial “a existência de uma estrutura organizativa mínima dentro da sociedade, sem que esta implicasse em relações de autoridade e hierarquia” (2002, p. 40-42). Além disso, entre os individualistas, Romani, citando Pio Marconi, ressalta o entendimento defendido pelo autor italiano da existência de uma certa “aproximação, ainda que inconsciente, com o individualismo de Max Stirner 11”. Na história do anarquismo, tanto na Itália quanto em determinadas ocasiões no Brasil, era comum ao militante anarquista se valer da prática do furto justificado como ação em prol de uma sociedade “na qual será abolido o privilégio da propriedade privada”; isso, na prática, acabava se “assemelhando às hipóteses stirnerianas sobre a transgressão” (muito embora Stirner não fosse lido pelos anarquistas antes de 1902) (2002, p. 40-42). No Brasil, alguns anarquistas, especialmente os estrangeiros que passaram pelo país, adotaram o individualismo como vertente. Esse foi o caso do anarquista Oreste Ristori e de seu companheiro de luta Angelo Bandoni. Na verdade, Ristori pouco a pouco foi se afastando do individualismo passando a se aproximar das correntes mais associativas como o comunismo anárquico (ROMANI, 2007, p. 4). No entanto, Bandoni vem sendo considerado pela historiografia como um anti-organizador clássico em razão da sua constante crítica em relação ao “aspecto negativo da organização operária” (FELICI, 1994, p. 120), e, ao que se sabe, permaneceu nesta corrente até o final de sua vida. Sobre o Bandoni falaremos a seguir quando analisarmos o jornal Alba Rossa. No tocante às tendências associativas do anarquismo, podemos localizar duas correntes que passaram a ser conhecidas como anarcocomunistas e anarcosindicalistas, e foram muito influentes no Brasil. Basicamente, a principal diferença entre esses dois grupos diz respeito às suas concepções acerca da pertinência da função dos sindicatos para o desenvolvimento de um processo revolucionário (OLIVEIRA, 2009, p. 60). Os debates sobre a estratégia sindical passaram a estar presente na ordem do dia entre os

11 Ver: STIRNER, Max. O único e sua propriedade. Lisboa. Antígona, 2004.

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anarquistas espalhados pelo Mundo, e o Brasil não foi um caso à parte. Na mesma época em que se discutia a celeuma internacionalmente, o debate tomou força no país. Porém, antes de analisar as vertentes associativas, é necessário tecer algumas considerações no que diz respeito ao sindicalismo revolucionário desde a Confédération Générale du Travail (C.G.T.), uma confederação de sindicatos autônomos e independentes na França que se tornaria modelo. A ideia fundamental do movimento era reunir todos os trabalhadores em sindicatos organizados por categoria, independentemente de correntes políticas, para fomentar a resistência ao capitalismo. Essa proposta base foi fundamentada a partir da Carta produzida pelo 9º Congresso da CGT, em 1906, na cidade de Amiens. Em síntese, o sindicalismo revolucionário consistia em congregar todos os trabalhadores, independentemente da visão política e religiosa, uma vez que tais elementos: “(...) seriam dispersantes, contrários à união necessária e comprometiam o próprio caráter revolucionário que os trabalhadores sindicalizados poderiam desenvolver. Por esse motivo, o sindicalismo revolucionário não admitia nenhuma corrente política ou religiosa como a corrente oficial do sindicato, incluindo o anarquismo” (OLIVEIRA, 2009, p. 61).

Ainda segundo o autor, no Brasil, o modelo francês de organização sindical teve grande impacto com sua consolidação a partir das resoluções aprovadas no I Congresso Operário Brasileiro, realizado em 1906, no Rio de Janeiro (2009, p. 61), como será analisado mais à frente. Uma outra vertente que causou grande impacto no movimento operário brasileiro foi o comunismo anárquico. Esta vertente, derivada direto do pensamento de Kropotkin, “propõe uma ação do indivíduo social no sentido da libertação das opressões a que está confinado, em busca de uma convivência igualitária e pacífica entre homens” (ROMANI, 2002, p. 51). O italiano Errico Malatesta é outro propagador e influenciador do chamado anarcocomunismo. Malatesta, a partir do ano de 1897, quando havia retornado clandestinamente à Itália estabelecendo-se na cidade de Ancona, onde passou a editar, junto ao jovem Luigi Fabbri, o L’Agitazione, que veio a se tornar o “periódico anarquista mais influente da história italiana” até aquele momento (ROMANI, 2002, p. 51). Fabbri é um outro militante do anarquismo “que exerceria notável influência no

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movimento italiano do século seguinte, tornando-se o braço direito, intérprete e continuador das ideias de Malatesta” (ROMANI, 2002, p. 51). Entretanto, cabe ressaltar que a concepção filosófica deste “anarquismo distancia-se do determinismo científico de Kropotkin”, para quem a anarquia seria a ordem para qual inevitavelmente fluiria a humanidade. “Para Malatesta, diferentemente de Kropotkin, o destino não está inexoravelmente traçado, trata-se, portanto, de uma construção que depende dos homens e de sua vontade” (2002, p. 52). Por fim, uma outra vertente do anarquismo, também bastante influente no Brasil e no mundo, é a concepção de sindicalismo fortemente influenciada pelo viés libertário de seus seguidores que passou a ser conhecida como anarcossindicalista. Esse segmento do movimento compreendia a organização do proletariado em sindicatos como base para se alcançar a revolução social. Além disso, “essa organização deveria não somente girar em torno aos sindicatos, como a partir dele e dos grêmios operários” (2002, p. 170). No Brasil, a maior influência anarcossindicalista exercida sobre os anarquistas brasileiros teve origem nos embates sindicais realizados pela FORA na Argentina (Federación Obrera Regional Argentina). Isso em muito contribuiu para que os militantes nacionais engrossassem esse segmento. Ainda segundo Carlo Romani, em São Paulo, em um primeiro momento os adeptos do anarquismo sindicalista teriam se articulado em torno do jornal Amigo do Povo. Após 1906, criariam o seu primeiro canal de expressão no jornal Terra Livre (2002, p. 170); a partir daí o anarcossindicalismo prosseguiu germinando ao longo dos anos, organizando jornais e fundando federações operárias, tornando-se, portanto, um segmento importante na história do movimento operário brasileiro. Tendo apresentado sinteticamente as vertentes do anarquismo presentes no Brasil, vamos, neste momento, lançar voo sobre os principais eventos do movimento operário entre 1900 e 1922. O início da República, com o crescimento da malha urbana e da população nas cidades, marcou as primeiras reivindicações operárias as quais ganhariam expressão sem precedentes. Em 1906, o Rio de Janeiro contava com 811.443 habitantes (SAMIS, 2004, p. 133). Nesse mesmo ano, no incipiente setor industrial estavam concentrados 83.243 trabalhadores. O setor terciário contava com 66.062 postos de trabalhos ocupados, sendo 14.214 especificamente nos transportes. Em 1907, o Rio de Janeiro possuía cerca de “30% das indústrias de todo o país, enquanto São Paulo ficava com a 38

proporção de 16% das empresas tomando-se o mesmo parâmetro” (SAMIS, 2004, p. 133). Entretanto, essa soberania industrial fluminense seria superada pela indústria paulista, entre 1907 e 1919, quando ela deu um salto quantitativo crescendo mais que o dobro da indústria do resto do país. Já no período entre 1919 e 1929, a indústria paulista passou a diversificar alguns segmentos industriais mais dinâmicos de bens de produção, buscando atender o mercado nacional12. Segundo Alexandre Samis, apesar do crescimento industrial das duas maiores capitais brasileiras, em oposição a essa euforia empresarial estavam as condições do operariado marcadas por denúncias de jornadas “extenuantes nas fábricas, associadas à utilização de mão de obra infantil e feminina, subassalariadas e expostas a instalações insalubres” (2004, p. 134). As condições limites em que se encontrava o operariado, acrescidas de uma politização trazida por ventos que sopravam da Europa, como analisado anteriormente, desencadearam uma série de organizações que buscavam melhores condições de trabalho. Já no ano de 1903, no estado do Rio de Janeiro, surgiria a Federação das Associações de Classe, com base no modelo da CGT francesa, que, posteriormente, foi transferida para a Capital Federal, passando a se chamar de Federação Operária Regional Brasileira, em 1906. Em São Paulo, no ano de 1905, as categorias dos sapateiros, padeiros, marceneiros e chapeleiros reuniram-se em torno da Federação Operária de São Paulo (FOSP). Neste mesmo ano, no Rio de Janeiro, era criada a Federação Operária do Rio de Janeiro (FORJ) (SAMIS, 2004, p. 134 e ROMANI, 2002, p. 170). Entre 15 e 22 de abril de 1906, no Centro Galego, no Rio de Janeiro, organizouse o Congresso Operário Regional Brasileiro. O encontro contou com a presença de “43 delegados de várias partes do Brasil, representando 28 associações, a maioria ligadas a ramos industriais, e outras como estivadores, ferroviários, trabalhadores em trapiches e café, integrantes do setor de serviços”. No debate feito pelos trabalhadores organizados, aprovou-se a filiação ao sindicalismo revolucionário francês. Neste sentido, a “neutralidade sindical, o federalismo, a descentralização, o antimilitarismo, o antinacionalismo, a ação direta e a greve geral” passariam a fazer parte dos princípios norteadores dos sindicatos que se comprometeram com as propostas do Primeiro Congresso Operário Brasileiro (SAMIS, 2004, p. 135). 12 Ver: DEAN, Warren. The industrialization of São Paulo 1880-1945. Austin and London: The University of Texas Press, 1969, p. 3-15.

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Durante o Congresso também ficou decidido que uma confederação e um jornal sindical deveriam ser criados no intuito de prestarem auxílio às federações e dar voz às associações. Essa confederação foi batizada de Confederação Operária Brasileira (COB) e o seu órgão de imprensa oficial foi o periódico A Voz do Trabalhador. Diante da organização do operariado, não tardou para que o governo, preocupado com a crescente ação dos revolucionários no movimento social, delineasse uma tímida iniciativa de uma legislação trabalhista. Assim, em 1903 foram editadas normas com o fito de regulamentar os sindicatos do setor econômico rural, o que, posteriormente, em 1907, aconteceu com as classes relacionadas ao trabalho urbano. Da mesma forma, de autoria do deputado Adolfo Gordo, uma lei de deportação foi elaborada, no ano de 1907, que atingiria, em geral, imigrantes e, particularmente, os anarquistas (SAMIS, 2004, p. 137). Em 1913, os anarquistas, através do periódico A Voz do Trabalhador, iniciaram a uma série de convocatórias para o Segundo Congresso Operário Brasileiro, que foi realizado entre os dias 8 e 13 de setembro, também no Rio de Janeiro, porém sem maiores novidades em relação ao primeiro Congresso. Em sequência, e obedecendo às diretrizes do Segundo Congresso, entre os dias 23 e 30 de abril de 1920, aconteceu o Terceiro Congresso Operário Brasileiro no Rio de Janeiro, contando com a presença de 64 entidades de várias partes do país. Ainda segundo Alexandre Samis, o período que separa este Terceiro Congresso do anterior foi de intensa atividade, uma vez que a Revolução Russa de 1917 adicionou “aos debates sindicais uma dose acessória de entusiasmo e, com manifestações públicas de apoio ao processo russo, os sindicalistas revolucionários interferiram ainda mais na cena pública das principais cidades do país”. Somado a isso, a conjuntura de guerra (1914-1918) e um certo aquecimento do setor industrial, “colaboraram para que as manifestações dos operários assumissem caráter, por vezes, insurrecional” (2004, p. 138). Assim, foi nessa conjuntura, que, em 1919, os anarquistas no Rio Janeiro, “carentes de um órgão que respondesse à altura pelas demandas do período, fundaram um Partido Comunista de inspiração libertária”, onde seu presidente de honra seria José Oiticica, nada tendo a ver com o Partido Comunista Brasileiro criado em 1922 (RODRIGUES, 2010, p. 33). Na verdade, os anarquistas entendiam que era “premente a necessidade de se formar um núcleo político que pudesse encaminhar, mais claramente, ações anarquistas em diversos setores da sociedade” (SAMIS, 2004, p. 138). 40

Além dos Congressos e das Federações, as greves foram marcos importantes na história do movimento operário no Brasil. Somente entre os anos de 1917 a 1920, no Rio de Janeiro e em São Paulo, mais de duzentas greves foram deflagradas pelo operariado (sem contar as deflagradas antes de 1917). O ano de 1917, por exemplo, marcou a deflagração de uma grande greve na cidade de São Paulo. A “Greve Geral de 1917”, como ficou conhecida, contou com participação direta dos anarquistas sindicalistas à frente de diversas associações de classe (LOPREATO, 2000). A carestia havia semeado uma profunda revolta entre os operários, inflamando, de certa forma, os espíritos dos trabalhadores contra o governo. A segunda metade de 1917 marcou o fim da crença dos operários nas promessas feitas por políticos e empresários. Assim, o custo de vida, associado aos baixos rendimentos salariais, oportunizou uma mistura de revolta e êxtase revolucionários (SAMIS, 2004, p. 141). A greve terminou com alguns avanços para a classe operária paulistana. Neste sentido, a implantação, em algumas fábricas, das 8 horas de jornada e aumentos salariais, foram, sem dúvidas, as maiores vitórias do movimento. No Rio, a Federação Operária do Rio de Janeiro foi fechada pela polícia em agosto de 1917. Em seu lugar surgiria a União Geral dos Trabalhadores do Rio de Janeiro (UGT). Segundo Alexandre Samis, essa União era “uma tentativa clara de reagrupamento de sindicatos de resistência” e que contou com a adesão imediata de 13 entidades classistas. No dia 18 de novembro, ficou conhecido o movimento chamado de Insurreição anarquista, onde diversas fábricas do Rio de Janeiro, Niterói, Petrópolis e Magé, deflagraram um período de greve. No mesmo dia, à tarde, o Campo de São Cristóvão estava tomado por centenas de trabalhadores. A pretensão dos anarquistas era a tomada de prédios do governo e o estabelecimento de um soviete no Rio de Janeiro, que se faria em articulação com a greve. Entretanto, por força da infiltração de um tenente do exército, em colaboração com a polícia, que denunciou militantes e forneceu os planos ao governo, a tentativa foi fracassada. Novamente, a repressão atingiu os anarquistas numa tentativa de desarticular o movimento (SAMIS, 2004, p. 144 e ADDOR, 1986). Apesar dos avanços da classe operária, os últimos acontecimentos, principalmente a partir do ano de 1919, despertaram no governo republicano a necessidade de controlar as entidades de classe, sobretudo na sistematização da repressão para com os subversivos. Entre outras medidas, destacam-se a implantação do Estado de Sítio, o de período mais extenso durou de 1924 a 1927, uma maior restrição 41

na entrada de estrangeiros “nocivos à ordem pública”, e a sumária expulsão dos estrangeiros residentes no país sob a suspeita de envolvimento em prática “subversiva”. Essas medidas tornaram-se comuns, sobretudo a partir de 1922, com a posse do Presidente Arthur Bernardes. Além dessas medidas, a criação da Quarta Delegacia Auxiliar por Bernardes atingiu o auge da ação repressiva do Estado. Segundo Carlo Romani, a partir da criação desta Delegacia, “iniciou-se com ela a prática política de infiltração de agentes policiais dentro dos sindicatos e associações operárias”. Ainda segundo o autor a “4ª. Delegacia foi seguramente o embrião necessário para a criação, anos mais tarde, de um Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS”. Neste sentido, se “(…) a gestão repressora da polícia política inaugurada na era Vargas é tão estudada pelos pesquisadores, ignora-se, muitas vezes, que esse tipo de polícia teve uma criação anterior ao governo do eminente gaúcho. Ignora-se, também, muitas vezes, que foi no tempo de Arthur Bernardes que se deu a gestação e o nascimento de um plano estratégico de vigilância e controle social, no qual quase todos os métodos, posteriormente aprimorados, já estavam lançados e postos em prática” (2011, p. 171).

Com se não bastasse, outras medidas utilizadas pelo governo foram as deportações de indesejáveis para a colônia agrícola em Clevelândia13, no estado do Amapá. Assim, realizando um balanço, os primeiros anos da década de 1920, para o operariado organizado foram bastante importantes. As conquistas trabalhistas verificadas no final da década anterior e a forte polarização entre o governo e setores mais radicalizados da classe trabalhadora são pontos de destaque deste período. Assim, a repressão cada vez mais intensa contra os militantes gerou transformações dispersantes no interior do próprio núcleo sindical revolucionário. Por fim, outro evento importante que marcou os anos 1920 foi a “cisão” entre os anarquistas. A divisão ocorreu fruto de uma crise do anarquismo, como avaliou o próprio Astrojildo Pereira, “dentro de um processo internacional de mudanças de organização operária, o qual o autor qualificou de crise internacional do proletariado” (OLIVEIRA, 2009, p. 165). 13 “Para a Clevelândia, região fronteiriça à Guiana Francesa, no extremo Norte, junto ao rio Oiapoque, foram enviados operários anarquistas, trabalhadores desempregados, meninos de rua, presos comuns e soldados rebeldes. Tal acontecimento, uma verdadeira tragédia, só conhecida pelo público após o fim do estado de sítio e de censura a imprensa, no início de 1927, envolveu quase mil pessoas. Desse número, mais de 50% não retornou ao lar após o governo de Bernardes, ficaram sepultados, vitimados por doenças e pelo abandono” (SAMIS, 2004, p. 171).

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Desta forma, em março de 1922, Astrogildo Pereira e outros onze companheiros, quase todos ex-anarquistas, fundaram o Partido Comunista Brasileiro – PCB, com o objetivo de levar os companheiros libertários para a III Internacional. Os novos comunistas buscavam se distanciar daquilo que entendiam ser um “espontaneísmo sem base teórica dos anarquistas, fator que teria impedido o sucesso de eventos revolucionários anteriores, agora corrigido pela doutrina marxista-leninista.”. Por sua vez, foi nesse momento que os militantes libertários tornaram-se fervorosos antibolchevistas, “acusando-os de serem burocratas, traidores e oportunistas, pois, para os anarquistas, como previra Malatesta, o comunismo à força seria a tirania mais odiosa que o espírito humano possa conceber” (ROMANI, 2011, p. 167). Nesse brevíssimo panorama sobre o desencadear histórico do operariado no Brasil, pode-se perceber que a influência do movimento anarquista sobre o movimento operário provocou um impacto muito grande, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Um último fôlego organizativo anarquista se daria no início da década de 1930, logo após o golpe de 3 de outubro, com a reorganização da FOSP, em 1931.

2.3 A Plebe, Spartacus e Alba Rossa – genealogia, criação e vertente ideológica Na última parte deste capítulo, farei uma apresentação dos três jornais que foram escolhidos como fonte. A proposta é que nesta seção seja feita uma descrição de cada periódico ressaltando o(s) seu(s) respectivo(s) editor(es), o ano de fundação e, principalmente, a aproximação de cada um deles em relação as diferentes vertentes anarquistas. Ainda não é o momento de falar sobre a percepção que essa tríade tipográfica possuiu em relação ao fascismo na Itália. Esse, contudo, será o grand finale e, portanto, será exclusivamente tratado no próximo capítulo.

A Imprensa Operária Segundo Maria Guzzo Decca, a imprensa operária, enquanto fonte, torna-se uma via possível para se captar a resistência do operariado, isso porque os mais diversos periódicos de tendência anarquistas puras e anarcossindicalista eram partes integrantes do cotidiano da cidade e do ponto de vista de como os trabalhadores viam seus problemas (1987, p. 90). 43

Desta forma, os periódicos operários possibilitam estabelecer “algumas nuanças entre os trabalhadores ou aprender alguns momentos de suas lutas do dia-a-dia, ou ainda, de maneira indireta perceber como se colocavam frente às demais categorias de trabalhadores” (1987 p. 108). De acordo com a tese da historiadora, a imprensa operária era capaz de criar no operariado uma identidade operária, buscando afirmar uma tradição operária ante à desvalorização do trabalhador que se operava sob diversas formas” (p. 108). Neste sentido, segundo Boris Fausto, os operários, por meio dos jornais, acabavam criando uma cultura e um meio de comunicação próprios. A existência do jornal era tão importante quanto a do sindicato, constituía um dos principais centros organizatórios anarquistas e de difusão da propaganda (FAUSTO, 1977, p. 91). Tendo isso em vista, analisarei os jornais anarquistas como sendo uma produção cultural e um veículo destinado à realização da propaganda revolucionária. Essa proposta jornalística, diante das condições precárias do trabalhador, exigia um esforço por parte dos jornalistas que refletia diretamente na estrutura textual dos periódicos. Isso, de certa forma, explica a frequência de palavras grafadas de várias maneiras, neste sentido: “Os jornais anarquistas e operários, muitos deles escritos com as novas regras, à revelia da norma culta, revelavam uma profunda preocupação com a ampliação do acesso do trabalhador aos meios de comunicação de sua classe. Queriam, muitos dos intelectuais que interagiam com os operários-escritores, a participação dos demais produtores não apenas na leitura dos periódicos, mas na confecção de artigos e colunas daqueles veículos. Até mesmo a rígida norma acadêmica deveria curvar-se, na perspectiva destes intelectuais engajados, às necessidades da classe revolucionária. Dessa forma, as centenas de jornais classistas que circularam pelo país não eram apenas veículos unilaterais de informação; eles suscitavam, quer na reforma ortográfica, para benefício do operário, quer nas mensagens instando à organização e à luta, a mobilização e a integração do trabalhador à causa de sua emancipação”. (SAMIS, 2004, p. 168).

Segundo Edgard Rodrigues, o solo fértil do Brasil absorvia muito bem as novas ideias sociais, em particular o anarquismo, que passou a germinar rapidamente “entre os trabalhadores que chegavam ao Brasil com as cabeças cheias de sonhos, de promessas e encontravam pela frente uma burguesia feroz como nos seus países de origem” (2010, p. 22). Somado a isso, deve-se chamar a atenção para a quantidade de militantes experientes e aguerridos que passaram e se formaram no país contribuindo muito para a propagação do anarquismo e a politização do operário. Esses dois fatores juntos, por si

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sós, explicam o boom tipográfico nas primeiras décadas do século XX. O elenco é grande, mas nomes como Neno Vasco, nascido em Portugal, licenciado em direito, sendo um dos maiores intelectuais da época formou, com os italianos, Oreste Ristori, Angelo Bandoni e Gigi Damiani, entre outros, uma equipe anarquista de muito mérito. É por conta disso, que, no dizer de Edgar Rodrigues, as “sementes libertárias começaram logo a produzir frutos, evoluindo rapidamente, irradiando luz, saber, ideias, entusiasmo e alegria de viver entre o proletariado” (2010, p. 22). As ideias circularam e permearam outras cidades contagiando, inclusive, intelectuais brasileiros, como José Oiticica, o jornalista Domingos Ribeiro Filho, o escritor Lima Barreto, Edgar Leuenroth entre tantos outros.

A Plebe Em de março de 1901, em São Paulo, começou a circular o jornal anticlerical e libertário A Lanterna sob a direção de Benjamin Motta. Porém, a veiculação foi interrompida em 1905. No dia 17 de outubro de 1909, agora sobre a direção de Edgard Leuenroth, o periódico recomeçou e durou até 191614. A figura de Edgar Leuenroth, de certa forma, confunde-se com a história do movimento operário da primeira República. Edgar nasceu no interior paulista em 1881, e teve seus estudos interrompidos tendo sido obrigado a trabalhar desde muito cedo. Tornou-se trabalhador gráfico, atuou como jornalista e arquivista do movimento operário, sendo responsável por fundar vários periódicos operários. Nosso ilustre militante atingiu uma significativa expressão dentro da formulação do movimento operário paulista. Assim, Leuenroth inseriu-se neste campo jornalístico onde participou de uma imbricada rede de relações entre jornalistas e militantes do eixo de São PauloRio de Janeiro (KHOURY, 2007, p. 116-120). Em 1917, Leuenroth passou a editar o periódico A Plebe, tornando-se um importante veículo de comunicação do movimento anarcossindicalista de São Paulo, afirmando ser a continuação do periódico A Lanterna em 1916. Durante todo o período de sua existência, posicionava-se como um jornal dedicado à luta dos trabalhadores contra a opressão e a miséria, assumindo o papel de instrumento de luta do movimento grevista. Edgard Leuenroth, no ciclo greves em 1917 foi preso sobre o argumento de

14 Em 13 de julho de 1933, ainda tendo como diretor Leuenroth, o jornal foi editado ainda até 1935.

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incitar os operários. Em 1918 foi solto e A Plebe volta a circular em 1919 (KHOURY, 1997, p. 13). O jornal A Plebe contou, também, com a colaboração de Astrojildo Pereira e José Oiticica que atuavam no Rio de Janeiro. Em outubro de 1919, no episódio que já relatamos, as oficinas da A Plebe foram novamente empasteladas por policiais e estudantes na onda repressiva que se sucedeu às fortes greves daquele ano.

Spartacus O jornal Spartacus surgiu para substituir o periódico a Voz do Povo, do Rio de Janeiro, após passar por crises financeiras. O jornal passou a ser editado sob a direção do anarquista José Oiticica, em 2 de agosto de 1919 (ao todo foram publicados 24 números; alguns chegaram a ser apreendido pela polícia), e contou com ajuda de Astrojildo Pereira, antes da sua transição para o comunismo em 1922 (RODRIGUES, 2010, p. 26). O professor José Oiticica – como era conhecido por ter lecionado no colégio Pedro II – foi um dos mais famosos anarquistas brasileiros, atingindo até reconhecimento internacional. Mineiro de nascimento, no de 1882, numa família também ligada à política, obtendo uma boa formação que o conduziu até o curso superior (SAMIS, 2004, p. 130-136). Oiticica participou e foi preso em razão da insurreição anarquista do Rio de Janeiro em 1918. Em liberdade, voltou à capital em 1919, onde participou da composição do jornal Spartacus. (SAMIS, 2004, p. 130-136). Como já foi analisado, a historiografia aponta que, em 1919, os anarquistas ansiavam pela formação de um órgão que respondessem às demandas do período. Foi nesse contexto que os anarquistas fundaram um Partido Comunista de inspiração libertária. José Oiticica e outros anarquistas que fizeram parte deste PCB libertário, entendiam que era necessário um núcleo político que pudesse encaminhar as ações anarquistas nos diversos setores da sociedade (SAMIS, 2004; OLIVEIRA, 2009 e RODRIGUES, 2010). Essa energia surgiu em decorrência da Revolução Russa que teve forte impacto no país, ao criar entre os anarquistas brasileiros uma expectativa de que a luta por direitos e conquistas mais imediatas pudesse ser convertida em uma luta efetivamente revolucionária. É cediço falar que os anarquistas brasileiros, tais quais em muitas outras partes do mundo (na Argentina, por exemplo), vivenciaram entre 1917 e 1920 um

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estado de certa confusão ideológica ao avaliarem a Revolução Russa como uma revolução libertária (OLIVEIRA, 2009, p. 128). De certa maneira, no Brasil especificamente, a posição dos anarquistas até o fim de 1921 saiu em defesa da Revolução Russa, uma vez que a revolução havia tornado uma prova da viabilidade da revolução social. Foi diante dessa premissa que os anarquistas vislumbraram, tal qual supostamente ocorrido na Rússia, a constituição de uma aglutinação (coalizão) de todas as outras correntes políticas que se diziam propugnadoras de uma nova sociedade (ver: ROMANI, 2002, p. 236-237). A confusão ideológica foi tamanha, que passou a ser comum encontrar publicações do Spartacus fazendo referências a Karl Marx, a ditadura do proletariado, além da transcrição de textos de Lenin e Trotsky como se fossem aliados dos anarquistas. Na Rússia nunca “houve de fato uma maximização das forças” (ROMANI, 2002). Desde a I AIT (Associação Internacional do Trabalho) os libertários romperam com Marx e os marxistas. Antecipando um pouco os bois, vale a pena citarmos rapidamente a posição do jornal Alba Rossa, editado por Angelo Bandoni, sobre a ditadura do proletariado. Na edição do dia 8 de março de 1919, em decorrência de uma confusão envolvendo uma carta de um leitor do jornal A Plebe, os editores do jornal de Bandoni fazem publicar uma coluna com o seguinte título: Dittadura Proletaria ou Comune Libertaria?. A posição do jornal em relação aos ventos comunistas que sopravam do leste europeu é taxativa, ao dizer que “(…) ‘A ditadura proletária opõe a propaganda pela constituição das Comunas Libertárias’ - Que discurso é esse? A ditadura proletária é um meio, A Comuna libertária é um fim; (…) A ditadura proletária é a coroação política da guerra de classes; é a afirmação vitoriosa e fecunda da fé na redenção civil (…). A ditadura proletária é a invocação, é pura, é lúcida (…)” (Alba Rossa. São Paulo, ano I, n. 7, 8 mar. 1919, p. 1).

Assim, é possível perceber que até mesmo entre alguns jornais italianos a confusão permanece. Como sabemos, ditadura, ainda como um instrumento da revolução e não um fim em si mesma, conforme defendeu o editorial do jornal, se afasta em muito da proposta libertária do anarquismo.

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Alba Rossa O Alba Rossa, diferentemente dos outros dois jornais analisados, não foi um periódico pertencente ao movimento operário anarquista brasileiro. Sua criação tinha por finalidade circular sobretudo entre a comunidade italiana em São Paulo. A sua posição editorial era claramente libertária e antifascista como veremos em detalhe no próximo capítulo. O jornal passou a circular em 26 de maio de 1919 em São Paulo, sob a organização de um conselho editorial encabeçado pelo anarquista Angelo Bandoni. De maio de 1919 a maio de 1922, o periódico totalizou 26 edições (BIONDI, 1994, p. 367). De acordo com Isabelle Felici, Bandoni nasceu em 2 de Julho de 1868 na cidade de Bastia na ilha da Córsega que pertence à França. Filho de um pretenso professor, o que talvez explique sua proximidade com a prática pedagógica, Bandoni, por volta de 1887 e 1895, foi preso várias vezes por vagabundagem, furto, falsificação de moeda, entre outros ilícitos penais, vindo a cumprir pena restritiva de liberdade por dois anos em Lucca e cinco anos na Argélia, quando foi expulso da Itália. Os crimes praticados por Bandoni, como já tivemos oportunidade de analisar, são característicos dos delitos praticados pelos anarquistas individualistas, que se tornaram muito comum na Itália durante esse mesmo período (1994, p. 120). Angelo Bandoni desembarcou no Brasil, especificamente em Santos, em 9 de Maio de 1900. No Brasil foi responsável por editar os jornais, Germinal, entre 1902 e 1904, Guerra Sociale, em 1915, e finalmente Alba Rossa, em 1919 (FELICI, 1994, p. 120-121). Teve participação também em algumas edições do badalado jornal italiano La Battaglia (jornal fundado por seu companheiro de luta Oreste Ristori) (ROMANI, 2002, p. 177). Quanto à posição de Bandoni dentro das correntes anarquistas, já tivemos oportunidade de analisar a questão. O fim da vida de Bandoni é incerto. Depois de 1929 somem suas pegadas, mas é bem provável que nosso militante tenha falecido no Brasil. Além de articulista intenso, Bandoni foi reconhecido por ser fundador de uma das primeiras experiências, que se tem conhecimento, de uma escola destinada aos filhos dos operários. Sem mais nos estender, em 1903, foi fundada a Escola Libertária Germinal. A experiência teve uma breve existência vindo a encerrar as suas atividades em 1905, tendo uma sobre vida em 1907 (FELICI, 1994; ROMANI, 2002, p. 177).

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3. O antifascismo na impressa anarquista no Brasil (1919-1922) 3.1 O Antifascismo em sua fase inicial (1919-1922) Na primeira parte desta pesquisa, foi analisada a fase de germinação do fascismo na Itália e todo o antecedente político que culminou na ascensão de Mussolini ao poder em 1922 (fato que, como já foi exaustivamente trabalhado, simbolizou da mesma forma a emergência do fascismo como política estatal). Agora, portanto, é o momento de posicionar os holofotes em direção a como esse novo modelo de política foi percebido no seio do movimento operário brasileiro e as primeiras formas de resistência, através da imprensa, encetadas contra esse movimento, principalmente a partir de alguns periódicos anarquistas veiculados nos primeiros anos da década de 1920 no Brasil. Neste sentido, inicialmente tratarei sobre o antifascismo a partir daqueles que possuíam ‘conhecimento de causa’ e que de forma pioneira articularam no Brasil as primeiras resistências contra o movimento de Mussolini; refiro-me aos italianos residentes no país. De acordo com João Fábio Bertonha, por um período de mais de 20 anos, italianos pró e contra Mussolini digladiaram-se pela conquista da vasta colônia de italianos residentes no país (BERTONHA, 1997, p. 43). As análises historiográficas (BERTONHA, 2000 e 2008) têm demonstrado que a coletividade italiana em São Paulo, apesar de não ter aderido em massa aos organismos fascistas como os fasci all'estero e o Dopolavoro, apresentou uma simpatia pelo regime fascista e uma certa tendência a recusar a mensagem do antifascismo. Ainda segundo João Fábio Bertonha, desde a fundação do Partido Fascista (e depois, com o governo fascista) procurou-se transmitir os seus ideais para seus concidadãos espalhados no exterior (1997, p. 44). Assim, foi implementado todo um esforço com o objetivo de manter acesa tanto a italianidade dos emigrados quanto (a de inculcar) a ideologia fascista entre eles. Neste sentido, São Paulo não foi um caso diferente, uma vez que desde o início dos anos 1920: “(…) começam os esforços fascistas para cativar os italianos e seus descendentes residentes no Estado. É principalmente a partir de 1928, porém, com a chegada dos cônsules “fascistas” ao Brasil, que os esforços fascistas serão redobrados, com todos os meios sendo empregados na tarefa de cativar os imigrantes” (BERTONHA, 1997, p. 44).

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O fascismo se valeu de duas principais frentes para a sua propagação em meio à comunidade italiana. A primeira foi realizar uma penetração “direta nesta comunidade através da expansão da rede consular e da implantação, em São Paulo, de órgãos fascistas propriamente ditos: os fasci all'estero, os Dopolavoro, etc”, que seriam incumbidos de implantar seus instrumentos de propaganda e doutrinação no Brasil (BERTONHA, 1997, p. 44). A segunda frente traduziu-se no esforço de “conquistar as mentes e as almas dos italianos residentes em São Paulo” (Op. Cit., p. 44). Nesse sentido, o consulado italiano “foi agindo, no decorrer de todos os anos 20 e 30 e mais especialmente após a chegada em São Paulo do cônsul Serafino Mazzolini (dedicado propagandista do regime) em 1928, com a intenção de controlar os órgãos que davam vida à assim chamada “colônia italiana”. Escolas, jornais, associações (…), esses órgãos foram caindo um após o outro sobre o controle do fascismo, que os transformava em novos instrumentos para a difusão dos valores do regime” (Op. Cit., p. 45).

Em suma, pode-se perceber que uma grande estrutura de propaganda foi organizada com o fim de difundir o fascismo em São Paulo. Não obstante esta realidade, desde o início da infiltração do fascismo em São Paulo, o movimento passou a enfrentar a oposição de homens que não concordavam com os atos do regime de Mussolini e que trouxeram esta luta para a região de São Paulo. Nessa esteira, já em 1919, periódicos de esquerda que circulavam entre a comunidade italiana (como foi o caso do periódico anarquista Alba Rossa) começaram a publicar escritos contra o fascismo. Uma outra manifestação, de certa forma mais direcionada, de um antifascismo italiano em São Paulo foi a partir de fundação do jornal La Difesa (1923), sob a coordenação de um socialista reformista Antonio Piccarolo, que já residia no Brasil desde 1908 (BERTONHA, 1999, p. 56-57). Apesar do campo de interesse desta pesquisa se limitar ao ano de 1922, julga-se válido, contudo, estender um pouco mais a discussão sobre o antifascismo feito por italianos no Brasil até a década de 1930. O jornal de Piccarolo, por sua vez, abrigou várias “correntes antifascistas (como os republicanos, os socialistas e os antifascistas ligados à Lega Italiana dei Diritti dell'Uomo – LIDU) no seu interior, o que levará a conflitos internos” (BERTONHA, 1997, p. 45). Em 1925, os antifascistas italianos em torno do La Difesa criaram, de fato, a primeira instituição antifascista que foi denominada Unione Democratica, sendo La Difesa, seu órgão de imprensa oficial. 50

No início de 1926, por razões pessoais, Piccarolo abandonou a direção do jornal, ficando o periódico na responsabilidade do antifascista italiano Francesco Frola, recémchegado da Europa fugido em razão da perseguição dos fascistas. Entre outras medidas, Frola abriu o jornal para outros antifascistas italianos “como os anarquistas Oreste Ristori, Angelo Bandoni e Alessandro Cerchiai; os comunistas Goffredo Rosini e Ertulio Esposito e muitos outros” (BERTONHA, 1997, p. 45). Essa medida de abertura, além de outros fatores, gerou um clima de disputa entre Frola e Piccarolo pelo status de representante brasileiro da Concentrazione Antifascista (uma união de partidos políticos italianos antifascistas, com sede em Paris) e pelo controle do La Difesa. Esse conflito foi vencido por Piccarolo em 1930, quando transferiu a direção do jornal para “Nicola Cilla e Mario Mariani, antifascistas recém chegados à São Paulo e que conduzirão, junto com Piccarolo, os destinos do La Difesa até seu fim em 1934” (Op. Cit., p. 46). Basicamente esse foi o panorama de um (proto)antifascismo desenvolvido no Brasil entre os anos 1919 e 1926 a partir principalmente da comunidade italiana no país. Por outro lado, seguindo uma das propostas desta pesquisa, ampliei as análises sobre o antifascismo na Itália (entre 1919-1922) em relação a dois periódicos anarquistas editados no bojo do movimento operário nacional (Spartacus e A Plebe). Como mencionado em outra ocasião, os trabalhos que se dedicaram ao estudo do antifascismo a partir do movimento operário brasileiro se concentraram, sobretudo, em análises pós1930. Em vista disso, o esforço aqui foi justamente retroceder até o ano de 1919 procurando a possível presença de um antifascismo nas páginas dos citados periódicos até o ano de 1922. Além disso, incluí nessa análise um periódico também editado no Brasil, mas pertencente à comunidade italiana (Alba Rossa, como já foi devidamente aprofundado). Em um segundo momento desta pesquisa, a investigação se direcionou para a compreensão do conceito de fascismo que passou a circular em seus anos iniciais.

3.2. Metodologia da História dos Conceitos Como ferramenta metodológica para a análise das fontes e, a partir daí, extrair possíveis conceitos de fascismo, esta pesquisa baseou-se no método da história dos conceitos. De acordo com Jörn Rüsen, método histórico, em sentido mais estrito, 51

significa “operações específicas de conhecimento conhecidas como pesquisa histórica e abrange suas regras básicas” (2007, p. 101 – grifo no original). Por sua vez, pesquisa histórica “é um processo, no qual os dados das fontes são apreendidos e elaborados para concretizar ou modificar empiricamente perspectivas (teóricas) referentes ao passado humano. A pesquisa se ocupa primariamente da realidade das experiências, nas quais o passado se manifesta perceptivelmente, ou seja: de ‘fontes’. Essa metáfora exprime a referência fundamental da pesquisa histórica à experiência: do testemunho empírico atual do passado ‘fluem’ para o historiador informações sobre o que foi o caso no passado (…)” (RÜSEN, 2007, p. 104).

Como forma de operar a pesquisa histórica, portanto, a história dos conceitos se propõe a analisar as ideias sociais e políticas a partir de seus contextos de produção, evitando-se a ocorrência de anacronismos recorrentes nas análises históricas de historiadores das ideias políticas, como, por exemplo, Quentin Skinner, John Pocock e seus seguidores, não se referindo, desta forma, a discursos ou à linguagem, uma vez que coloca ênfase nas palavras e em sua historicidade, tal como são utilizadas em diferentes momentos, por diferentes atores (BENTIVOGLIO, 2010). De acordo com Reinhart Koselleck (2006, p. 108), “todo conceito se prende a uma palavra, mas nem toda palavra é um conceito social e político”. Assim, enquanto “uma palavra contém possibilidades de significado, um conceito reúne em si diferentes totalidades de sentido” (2006, p. 109). Ainda segundo o autor os conceitos não devem ser tomados como um sistema textual autônomo, mas sempre levando em conta uma dada realidade social, buscando a compreensão histórica. Já que, “Para poder viver, o homem, orientado pela compreensão não pode senão transformar a experiência da história em algo com sentido, ou, em outras palavras, assimilá-la hermeneuticamente” (1997, p. 69 apud BENTIVOGLIO, 2010, p. 118).

A história conceitual alemã surgiu no final dos anos 1960 com Otto Brunner (1898-1982), Werner Conze (1910-1986) e Reinhart Koselleck, quando este assumiu a condição de discípulo para assumir a liderança do movimento. No aspecto prático, em seu Richtlinien für das Lexikon politisch-sozialer Begriffe der Neuzeit (Orientações para o léxico de conceitos político-sociais da modernidade) de 1967, Koselleck sinalizou alguns pressupostos para a metodologia: 52

1) Até que ponto é comum o uso do conceito? 2) Seu sentido foi objeto de disputa? 3) Qual o espectro social de seu uso? 4) Em que contextos históricos aparece? 5) Com que outros termos aparece relacionado, seja como complemento ou como oposição? 6) Por quem é utilizado, com que propósitos e a quem se dirige? 7) Por quanto tempo esteve em uso? 8) Qual é o valor do conceito na estrutura da linguagem política e social da época? 9) Com que outros termos se sobrepõe? 10) Converge com o tempo com outros termos? (KOSELLECK, 1967, p. 8189 apud BENTIVOGLIO, 2010, p. 119).

A boa-nova de Koselleck foi atentar para a historicidade dos conceitos e do pensamento sócio-político, vinculando-os à realidade social e à compreensão hermenêutica. Neste sentido, valorizou-se a dinâmica e a existência de significados aparentemente diversos dentro de uma mesma época e até em um mesmo grupo social e, de igual modo, explicitou o caráter formativo e pragmático da constituição e do uso das ideias na História (BENTIVOGLIO, 2010). Tendo isso em vista, o conceito de fascismo foi investigado a partir das fontes (os periódicos apontados) tendo como perspectiva a metodologia dos conceitos, no intuito de se extrair possíveis elementos caracterizadores levando-se em conta o contexto social em que as fontes foram produzidas, no caso refiro-me ao movimento anarquista no Brasil no período entre 1919 e 1922. Em outras palavras, a partir da análise de cada periódico, foi possível colher um conceito de fascismo, que passou a ser caracterizado basicamente a partir de termos comuns, ou seja, a mesma caracterização presente em todos os periódicos (um exemplo disso, como será visto a seguir, foi a associação do fascismo ao nacionalismo e a relação entre fascismo e “os capitalistas” e “aos burgueses”, isso foi recorrente praticamente em todos os jornais). Para concluir essa parte, assiste razão a Pierre Rosanvallon ao afirmar que é “preciso um esforço de compreensão do que foi retido do termo em sua origem por aqueles que se dizem ser seus seguidores ou seus críticos” (1995, p. 17), e assim foi feito, tendo em vista que deu-se voz aos primeiros críticos do fascismo que surgiram no bojo do movimento operário.

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3.3 Por um conceito de fascismo: características e nuanças Com o objetivo de subsidiar a análise das fontes, utilizei os seguintes autores no intuito de compor o quadro teórico sobe o fascismo: Edda Saccomani (no Dicionário de Política - Volume 1 e 2, editado por Noberto Bobbio), Hannah Arendt (Origens do Totalitarismo) e Stanley Paine (Fascism – Comparison and Definition). A multiplicidade de definições envolvendo o fenômeno político surgido na Itália não se explica apenas pela real complexidade do objeto estudado, como também pela “pluralidade de enfoques, cada um dos quais acentua, de preferência, um ou outro traço considerado particularmente significativo para a descrição ou explicação do fenômeno” (BOBBIO, 2000, p. 466). De acordo com Edda Saccomani, é possível distinguir três usos ou significados principais do termo. O primeiro faz referência ao núcleo histórico original, constituído pelo Fascismo italiano em sua historicidade específica; o segundo uso do termo está ligado à dimensão internacional que o Fascismo alcançou, quando o nacionalsocialismo se consolidou na Alemanha com tais características ideológicas, “tais critérios organizativos e finalidades políticas, que levou os contemporâneos a estabelecerem uma analogia essencial entre o Fascismo italiano e o que foi chamado de Fascismo alemão”; finalmente, o terceiro estende o termo a todos os movimentos ou regimes que compartilham com aquele que foi definido como Fascismo histórico (2000, p. 466). Edda Saccomani, no dicionário político editado por Noberto Bobbio, assim define fascismo: “Em geral, se entende por Fascismo um sistema autoritário de dominação que é caracterizado: pela monopolização da representação política por parte de um partido único de massa, hierarquicamente organizado; por uma ideologia fundada no culto do chefe, na exaltação da coletividade nacional, no desprezo dos valores do individualismo liberal e no ideal da colaboração de classes, em oposição frontal ao socialismo e ao comunismo, dentro de um sistema de tipo corporativo; por objetivos de expansão imperialista, a alcançar em nome da luta das nações pobres contra as potências plutocráticas; pela mobilização das massas e pelo seu enquadramento em organizações tendentes a uma socialização política planificada, funcional ao regime; pelo aniquilamento das oposições, mediante o uso da violência e do terror; por um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação de massa; por um crescente dirigismo estatal no âmbito de uma economia que continua a ser, fundamentalmente, de tipo privado; pela tentativa de integrar nas estruturas de controle do partido ou do Estado, de acordo com uma lógica totalitária, a totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e culturais” (2000, p. 466).

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Já nos apontamentos de Hannah Arendt, a autora não trouxe uma definição direta sobre o fascismo. Na verdade, enquadra o fascismo como uma das pioneiras vertentes do totalitarismo. Em síntese, por totalitarismo, entende ser uma ideologia oficial tendente a cobrir todo o âmbito da existência humana e à qual se supõe aderirem todos, pelo menos passivamente; um partido de massa único, tipicamente conduzido por um só homem (2013, p. 355); um sistema de controle policial baseado no terror (2013, p. 469); o monopólio quase completo dos meios de comunicação de massa; o monopólio quase completo do aparelho bélico; e, enfim, o controle centralizado da economia. O alvo é o de conseguir o controle total de toda a organização social, a serviço de um movimento ideologicamente caracterizado (2013, p. 488 e ss). As condições essenciais para a sua aparição são um regime de democracia de massa e o poder dispor de um aparelho tecnológico como o que só a moderna sociedade industrial pode oferecer (2013, p. 355 e ss). Por fim, Stanley Payne elabora um esquema, ao qual reproduzimos abaixo, com algumas sugestões de definições para fascismo que propõem, na ótica do autor, a estabelecer elementos com “amplo espectros descritivos” possíveis de serem identificados na mais variadas formas de fascismos (PAYNE, 1980, p. 7). Eis a tabela:

DESCRIÇÃO TIPOLÓGICA DO FASCISMO A. As Negações Fascistas:  Antiliberalismo;  Anticomunismo;  Anticonservatismo (embora com o entendimento de que grupos fascistas estavam dispostos em realizar alianças temporárias com grupos de qualquer outro setor, mais comumente com a direita); B. Ideologias e Objetivos:  Criação de um novo Estado nacionalista autoritário baseado não apenas em princípios ou modelos tradicionais;  Organização de um novo tipo de multiclasse, estrutura económica nacional integrada, independentemente de se chamar corporativista nacional, nacional-socialista, sindicalista ou nacional;  O objetivo de criar um império ou uma mudança radical na relação da nação com outros poderes; C. Estilo e Organização:  Ênfase na estrutura estética, símbolos, e coreografia político, salientando aspectos românticos e místicos;  Tentativa de mobilização de massa com a militarização das relações políticas;  Estresse extremo sobre o princípio masculino e dominação masculina, enquanto defendendo a visão orgânica da sociedade;

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 

Exaltação da juventude acima de outras fases da vida, com ênfase no conflito de gerações, pelo menos em efetuar a transformação política inicial; Tendência específica em direção a um carismático estilo autoritário, e pessoal de comando, se o comando é, em certa medida inicialmente eletiva” (PAYNE, 1980, p. 7).

Apesar de reconhecermos a importância dos trabalhos de Emilio Gentile (2002) e de Renzo De Felice (1978), consideramos que os autores acima trabalharam o conceito político de fascismo de modo adequado a esta pesquisa. Portanto, são esses os elementos que serviram de norte durante a análise das fontes quanto à definição do termo fascismo. Após ter compulsado detidamente os três jornais entre os anos de 1919 e 1922, como veremos em detalhe nas próximas páginas, foi possível extrair os seguintes resultados: o jornal Alba Rossa possui claros elementos sobre uma crítica aberta ao fascismo italiano. Por diversas páginas foi possível encontrar menção direta ao termo. Já em relação aos periódicos anarquistas em língua portuguesa, no jornal de São Paulo – A Plebe, apesar da escassez de notícias e de artigos sobre a conjuntura italiana no início dos anos 1920, foi possível encontrar, da mesma forma, menção direta ao fascismo. Já em relação ao jornal carioca Spartacus, não encontrei menção direta ao termo fascismo. Entretanto o jornal, em algumas edições, especialmente na seção Pequenas notas da guerra, da paz e da revolução (dedicada em relatar os acontecimentos no Mundo), abordou com frequência a conjuntura política italiana, concedendo ênfase ao episódio envolvendo as ações de Gabriele D’Annunzio na invasão de Fiume, antiga região austro-húngara da Iugoslávia. A maneira como D’Annunzio administrou as ações em Fiume vão ser consideradas, como veremos adiante, um modelo de organização estatal engendrada posteriormente por Mussolini na Itália. Além disso, deve-se levar em conta a aproximação entre D’Annunzio e o próprio Mussolini quando o fascismo já havia se consolidado (MILZA, 2011, p. 136). De qualquer forma, apesar do periódico Spartacus não fazer uso direto do termo fascismo, as notícias (inclusive em tom de crítica) sobre o imperialismo e o nacionalismo à direita na Itália leva-nos a concluir que, de certa forma, o editorial se manifestava claramente contrário aos ventos protototalitários que sopravam da Península itálica. Essas informações constantes nos dois periódicos abriram caminhos que me possibilitaram vislumbrar a hipótese da existência de um possível protoantifascismo (já nos anos 1920) a partir do movimento operário brasileiro de tendências anarquistas. 56

Uma outra conclusão que pode ser extraída da análise das fontes foi o conceito de fascismo (ou dos movimentos pré-fascistas). Veremos a seguir como esse termo foi caracterizado nos periódicos e qual o juízo de valor atribuído pelo articulista ao movimento. As primeiras notícias que emergem a partir da primeira metade de 1919 sobre a conjuntura política vivenciada na Itália revelam uma tensão, ou melhor, um confronto entre dois setores da sociedade italiana. Astrojildo Pereira, na edição do jornal A Plebe, de 26 de Abril de 1919, relata o antagonismo vivenciado na Europa e especialmente na Itália agravado, sobretudo, em razão do fim da Primeira Guerra Mundial: “(…) Parece já fora de dúvida o fracasso completo da liga dita das Nações. Os estadistas da burguesia estão definitivamente desorientados e vão perdendo até o próprio instinto de conservação, teimosos, cada qual aferrado ao seu imperialismo particular e às suas ambições nacionalistas. (…) Na Itália, já se entrechocam as forças da revolução e as forças da reação, em sangrentos conflitos prenunciadores da borrasca final (…)” (Ano II, n. 10, p. 1).

As forças da revolução, no entender do articulista, seria a soma dos movimentos pertencentes às esquerdas na Itália que possuíam um viés mais revolucionário (à exceção, portanto, do PSI). Por sua vez, este movimento vinha sofrendo forte resistência em razão das “forças de reação”. O que se poderia entender por “forças de reação”? A resposta pode ser encontrada em outra edição do mesmo periódico, do mesmo ano, só que agora publicada no mês de junho, onde são denunciadas novas ações das ditas forças de reação contra as oficinas do Avanti! (Jornal pertencente ao PSI, como já explicado anteriormente): “Ao nos ocuparmos do ataque às oficinas do Avanti!, de Milão, levado a efeito pela horda nacionalista, dissemos que a burguesia italiana havia de pagar bem caro esse crime covarde praticado quando a redação do nosso valente confrade se achava entregue unicamente a duas pessoas. De que não exageremos ao fazer essa asserção, nele demonstram notícias, embora escassas e mutiladas, que o telégrafo tem fornecido nestes últimos dias sobre a situação da península itálica, onde se estão desenrolando acontecimentos prenunciadores de uma grande e próxima convulsão social. Imperialismo da Burguesia” (A Plebe, Ano II, n. 17, p. 4. – sem grifo no original).

A horda (expressão efetiva das ‘forças de reação’), que segundo a notícia será responsável por uma convulsão social na Itália, está diretamente associada aos nacionalistas e à burguesia imperialista. A partir dessas premissas, em tom quase que 57

profético, já é possível verificar quais eram os ideais que ecoavam na Itália já no ano de 1919. A própria formação dos fasci di combattimento por Mussolini, em 23 de março deste ano, estava mergulhado desse nacionalismo que ganhava cada vez mais força na Itália. Ainda tendo o nacionalismo e o imperialismo como pauta, a partir de outubro de 1919, o periódico Spartacus, passou a conceder ênfase à questão diplomática que envolveu a Itália e a região de Fiume (antiga Iugoslávia). Cabe acompanhar a explicação do próprio articulista, Antonio Canellas, a respeito do impasse: “Está na ordem do dia a questão de Fiume. Todas as atenções estão voltadas para esse porto da Istria e para o gesto do poeta Gabrielle d’Annunzio. Que vem a ser a questão de Fiume? Qual é, afinal, a razão deste conflito? Convém que o operariado saiba destas coisas pra ver como se originam as guerras e como se trafica com a vida dos povos em favor de ambições partidárias e de loucuras medievais. Há na Itália em partido denominado ‘ultra imperialista’ que quer para os italianos não só Trento e Trieste, que por direito lhes pertencem como também Fiume, a costa da Dalmácia, as ilhas do Adriático, a Albânia, grande parte da Ásia Menor e vários territórios da África, regiões habitadas, as primeiras, por iugoslavos, albaneses e gregos, povos que querem viver independentes e que não se submeterão sem resistência ao jugo italiano. A maioria dos territórios ambicionados pelos ultra-imperialistas italianos pertenciam antigamente à monarquia austro-húngara que por sua vez os havia arrebatado quer à Itália quer à Turquia. Os imperialistas italianos conduziram a guerra contra a Áustria no fito de, com a derrota dos austríacos, tornarem-se os sucessores destes no domínio daqueles territórios. Mas sucede que a derrota austríaca deu em resultado o desmembramento da Áustria em vários países independentes, sendo que aqueles sobre os quais estavam fixas as ambições italianas, precisamente para resistir a estas ambições, uniram-se à Sérvia, formando o reino dos sérvios, croatas e eslovenos, conhecido pelo nome de Iugoslávia. A Sérvia, que antes destes acontecimentos era um país que nem de longe se poderia medir com a Itália, tornou-se, após a adesão dos croatas e eslovenos à monarquia Karageorwitch, uma potência militar de forças equivalentes às do reino do Victor Manoel. Os territórios ambicionados pelos imperialistas italianos no Adriático formam uma estreita tira de terra que separa a Iugoslávia desse mar (…)” (Spartacus, 4 de Outubro de 1919 – Ano I, n. 10. p. 1).

Notícias sobre Fiume e o imperialismo italiano de D’Annunzio passaram a ser recorrentes no periódico. No entanto, no caso em tela, o que de fato importa é o fortalecimento de um nacionalismo e do chamado ultra-imperialismo na Itália. O nome de Gabriele D’Annunzio também possuiu relevância, já que após a consolidação do fascismo no poder, D’Annuzio manterá íntima relação com fascismo e com o próprio Mussolini (MILZA, 2011, p. 136). Além disso, as ações nacionalistas e ultraimperialistas perpetradas por D’Annunzio na Itália são alvos de críticas no periódico:

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“Que faz, entretanto, o governo italiano nesse momento, de concerto com Gabrielle D’Annunzio? Nada mais nada menos que o provável desencadear de uma guerra entre a Itália e a Iugoslávia. Mais uma vez o sangue proletário a correr em rios, exclusivamente para sustentar caprichos dos governantes, dos poderosos, dos potentados! Aguardemos contudo os acontecimentos e tenhamos esperanças. Incentivados pelo exemplo do proletariado russo, é de esperar que o proletariado da Itália e o proletariado da Iugoslávia, num belo gesto de altivez e solidariedade, se deem fraternalmente as mãos por cima das fronteiras, expulsando dos respectivos territórios a casta de parasitas e sangue-sugas que os exploram e infelicitam. Seria, não há dúvidas nenhuma, uma solução verdadeiramente modelar à questão de Fiume” (Spartacus, Ano I, n. 10. p. 3).

Um outro assunto muito debatido pelo periódico carioca é a expectativa de uma iminente revolução social na Itália. As notícias veiculadas, já a partir do mês de dezembro de 1919, trazem uma série de greves deflagradas em diversas regiões da península itálica e reforçam a esperança da marcha em prol da revolução social15. Entretanto, conhecemos bem o final desta história. Apesar do florescer do movimento operário na Itália, foi o fascismo que ascendeu triunfante ao poder em 1922. Esse declínio do movimento operário frente à cooptação e ao endurecimento das forças insurgentes do fascismo foi debate no jornal A Plebe, na edição do dia 2 de abril de 1921, na coluna intitulada de Prega Reformista, assinada por Agottani. Na ocasião, o articulista explicou que o esvaziamento do operariado estava relacionado com diminuição das ações diretas (greves, boicote, etc.) e pela cooptação dos discursos reformistas via sistema político: “(…) [ação direta] Eis o que faltou ao proletariado italiano que quando já de posse de todos os elementos garantidores da vitória, teve de retroceder, restituindo as fábricas e as oficinais de trabalho aos proprietários. (…) E se, porventura, tal fato se realizasse em algum país, outras nações não tardariam a vir de encontro a semelhante ação revolucionária, (…) como por exemplo na Itália. Admira-nos que haja ainda quem acredite na virtude das organizações disciplinadas a estilo militar, dirigidas por chefes mistificadores que se servem de todas as armas para garantir o seu prestígio e o seu interesse, prometendo mentirosamente aos trabalhadores aquilo que jamais poderá ser realizado senão por obra dos próprios trabalhadores. Basta um pouco de discernimento para que se possa perceber a velhacaria desse traficante de carne humana, que sob o falso pretexto do nacionalismo, tem fomentado as guerras, colaborando com todos os governos reacionários. Eles pregaram o espírito de sacrifício, a resistência extrema, votaram os fundos necessários para a aquisição de instrumentos bélicos e, ainda,

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Alguns exemplos: Spartacus, Rio de Janeiro, 23 de Outubro de 1919, Ano I, n. 13, p. 2 - A Revolução Social na Itália; 15 de Novembro de 1919, Ano I, n.16, p. 4 - A Revolução Italiana em marcha; e 6 de Dezembro de 1919, Ano I, n. 19, p. 4 - A Itália em Marcha para a revolução social.

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serviram de delatores dos elementos que lhe são contrários, entregando-os à justiça burguesa” (Ano V, n. 111.p. 2).

A coluna denuncia, por outro lado, a ascensão de organizações que defendiam um exacerbado nacionalismo com uma certa tendência militarista armada que estava cooptando os trabalhadores por meio de “líderes mistificadores”. Apesar de não mencionar explicitamente, refere-se, o colunista, bem sabemos, ao fascismo que à época desta edição (1921) já havia se constituído no Partido Nacional Fascista (PNF). Neste sentido, basta relembrar os ensinamentos de Edda Saccomani (já citado) sobre o que seria o fascismo: “é caracterizado: (…); por uma ideologia fundada no culto do chefe, na exaltação da coletividade nacional, no desprezo dos valores do individualismo liberal e no ideal da colaboração de classes, em oposição frontal ao socialismo e ao comunismo (…); pela mobilização das massas e pelo seu enquadramento em organizações tendentes a uma socialização política planificada, funcional ao regime; pelo aniquilamento das oposições, mediante o uso da violência e do terror; por um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação de massa; por um crescente dirigismo estatal no âmbito de uma economia que continua a ser, fundamentalmente, de tipo privado; pela tentativa de integrar nas estruturas de controle do partido ou do Estado, de acordo com uma lógica totalitária, a totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e culturais” (2000, p. 466).

Além disso, cumpre ressaltar o tom de crítica e de advertência que a notícia possui ao alertar sobre a necessidade de discernimento por parte do operariado em não deixar se levar pelo discurso dos líderes ligados a esse movimento que se desenvolvia na Itália. Ainda na coluna em análise, a frase “chefes mistificadores que se servem de todas as armas para garantir o seu prestígio”, além de fazer referência ao uso massivo da propaganda política, típica dos Estados totalitários (ARENDT, 2013, p. 390), alude indiretamente ao uso da força e da repressão com a finalidade de exercer o domínio e a soberania. Curiosamente, a edição de A Plebe de 9 de abril de 1921 faz uma crítica à repressão vivida no Brasil (perseguição aos anarquistas e aos estrangeiros) e ainda por cima realiza uma aproximação entre as ações políticas do Estado brasileiro e as práticas autoritárias exercidas sobretudo na Europa. O articulista chega a chamar os legisladores brasileiros de tiranos: “(…) assim é que a lei Adolfo Gordo, que a pouco prendeu a atenção dos Sr. Legisladores desta senzala-republicana, veio oportunamente demonstrar a

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argamassa com que estão constituídos os cérebros portentosos dos respectivos feitores, pois, nada mais oportunista do que fazer passar uma ‘leidique’ que servisse de barreira no transbordar do caudal revolucionário, num momento como este, quando positiva e praticamente se debruça na milenar página conservadora do moldes sociais (…). Porém, não nos admiremos desse proceder dos tiranos das brasílicas terras (…). A sanção de leis opressoras em países da Europa e da América, cujos administradores sempre possuíram em mais alto grau os conhecimentos sociológicos, em comparação aos daqui e em épocas normais sempre produziram o efeito que a prática nos demonstra. Ao invés de reprimirem a onda rebelde, mais a robusteceram, canalizando-a mais homogênea, mais avantajada em proporções ao tônico benefício dos decretos autocráticos (…)” (A Plebe, 9 de Abril de 1921, Ano V, n. 112.p. 2).

Ora, se durante a década de 1920 a Europa viu emergir movimentos totalitários em diversos países, o que o articulista pretendeu foi indiretamente chamar as práticas de governabilidades “opressoras” em curso no Brasil de autoritárias e ditatoriais. De qualquer forma, certamente o discurso inflamado de militante falou mais alto. É necessário guardar as devidas proporções e lembrar que, apesar do crescente autoritarismo vivenciado no país a partir dos anos 1920, neste momento ainda se vivia sobre a tutela de uma República liberal (ao menos na teoria). A edição de 16 de abril de 1921 do periódico A Plebe traz em suas páginas a coluna O que se passa na Itália assinada por J. Camargo. Essa publicação tem papel crucial para esta pesquisa. Após um trabalho de busca em diversas edições do jornal, foi nessa publicação em que pela primeira vez o fascismo apareceu nas páginas desse periódico anarquista. Não apenas uma aparição indireta com os seus elementos caracterizados, mas menção direta ao termo. A coluna inicia tratando sobre a prisão de Errico Malatesta. Em seguida critica o reformismo do PSI (Partido Socialista Italiano). Além disso, aproveita para mencionar o processo de reorganização do proletariado na Itália, apesar dar reação dos fascistas: “(…) Mas, agora, na Itália, já o proletariado está alerta e não será logrado pela segunda vez, como aconteceu no passado movimento. (…) E apesar da formidável reação dos fascistas, que se compõem de elementos burgueses e toda a escória social por eles aliciada, o ideal revolucionário e comunista na Itália continuará firme, inabalável, sustentando formidáveis lutas contra as forças ancestrais que na atualidade representam tudo quanto houve de barbárie e de despotismo no passado. (…) As violências dos fascistas que assaltaram as sedes das associações proletárias, os trabalhadores tem respondido com armas, sem abdicar de seus direitos nem cessar a sua obra fecunda de propaganda comunista e resistência contra os inimigos da luz, da liberdade e justiça.

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Assim é que a 12 do corrente se deu um formidável conflito entre fascistas e comunistas na Toscana, na Emília e na Sicília, de que resultou grande profusão de sangue, havendo numerosas vítimas entre as partes contendoras. A burguesia italiana, sem ter defesa suficiente por parte das forças organizadas pelo governo, que lhe não inspirava grande confiança, precisou ela mesma organizar de per si, o partido ‘fascista’, não visando senão o aproveitamento de todos quantos na política e no exército lhe podiam ser úteis no momento periclitante de sua existência e reunindo a tais elementos de defesa a escória social composta de indivíduos considerados como espias e perigosos traidores nos meios proletários. A velhacaria, a intriga, a calúnia, eis as armas de que os fascistas lançam mão constantemente a fim de ver se conseguem desmoralizar os comunistas e torna-los ridículos aos olhos do povo, mas, afinal, perdem o seu tempo, porque a verdade, como a luz, não poderá jamais ser suplantada pelas trevas. E as lutas se sucedem, agora, sem intermitências, aqui e acolá. Sempre que os tais fascistas as provocam, havendo sempre quem responda aos seus insultos, quer nos comícios eleitorais, quer nas demonstrações de hostilidades, que não raro promovem. Querem os ‘fascistas’ ganhar nas eleições, mas isso, afinal, nada significa de importante porque povo, na atualidade, está decidido a agir diretamente, desprezando a intervenção dos socialistas legalitários que os tem vendidos como estão à burocracia burguesa.” (A Plebe, Ano V, n. 113.p. 2).

O próprio redator se preocupou em definir quem eram os fascistas. Segundo ele, os fascistas eram pertencentes à burguesia e estariam preocupados em conter o avanço dos comunistas ou de qualquer outra forma de organização por parte dos trabalhadores, mesmo que para isso tivessem que adotar medidas mais contundentes, como pegar em armas. Novamente o fascismo aparece nas páginas da Plebe, exatamente na edição de 18 de junho de 1921. A coluna Momento Internacional veio trazendo um artigo traduzido de Jacques Mesnil sobre notícias a respeito da dissolução do parlamento pelo primeiro-ministro Giovanni Giolitti e de ações dos fascistas contra algumas organizações sindicais demonstrando a truculência com que agiam contra qualquer grupo organizado sob inspiração anarquista ou comunista: “Logo após a dissolução do parlamento italiano, em abril último, escreveu Jacques Mesnil, um excelente artigo sobre a crise política e social que agita aquele país. Jacques é um perfeito conhecedor das coisas italianas, e esse seu artigo, que traduzimos e publicamos a seguir, esclarece, resumidamente, mas com segurança e precisão, a verdadeira situação revolucionária da Itália. (…) Esse congresso [da CGT], composto sobretudo de funcionários sindicais, que se não reuniam há sete anos, deixou uma deplorável impressão de falta de visão: reunido em plena reação ‘fascista’, no momento em que os bandos armados incendiavam as câmaras do trabalho e tentavam aterrorizar os proletários organizados, esse congresso tinha uma aparência acadêmica e parecia estranho aos mais urgentes problemas do momento (…)” (A Plebe, Ano V, n. 122, p. 3).

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A última menção direta ao fascismo dentro do recorte temporal desta pesquisa foi encontrada na edição do dia 30 de julho de 1922. Na ocasião falou-se sobre as eleições parlamentares de 1919 e 1921 onde os socialistas tiveram vitória expressiva nas eleições municipais. Em reação a vitória dos socialistas, o então primeiro-ministro italiano, Giovanni Giolitti, teria dissolvido a Câmara e aberto espaço para lançar os fascistas contra os socialistas italianos: “As eleições do após-guerra mostraram um tal progresso de votos socialistas – nas eleições municipais, um terço das municipalidades foi conquistado pelos socialistas – que ao capitalismo italiano apareceu como indispensável o emprego da violência contra a legalidade. A burguesia italiana lançou os fascistas contra os trabalhadores italianos. E para que não houvesse erro possível, para que ficasse bem claro que era contra os resultados do sufrágio universal que ela se insurgia, o primeiro ataque levado a efeito pela burguesia foi contra a municipalidade de Bolonha, no dia mesmo em que os novos edis se instalavam, e a primeira vítima da insurreição burguesa era um ‘eleito do povo’, um conselheiro municipal do então eleitos. Sob o regime do terror e de violências assim instaurado é que Giolitti, após dissolver a Câmara precedente, essa eleita em plena calma e em plena legalidade chama às urnas o povo italiano. (…)” (A Plebe, 1922, Ano V, n. 124, p. 3).

Apesar da escassez de informações sobre o fascismo, foi possível perceber que este movimento passou a ser pauta de discussão em ambos os periódicos anarquistas pertencente ao movimento operário nacional. De forma mais explícita o termo apareceu sobretudo no jornal A Plebe; já no Spartacus foi necessário reunir os elementos, que segundo os teóricos, estariam atrelados às características do fascismo em seus anos iniciais. Além disso, percebi que todas as colunas que trataram do movimento versaram sobre: nacionalismo, imperialismo, militarismo. E o fizeram com a pretensão de noticiar e alertar de forma crítica o avanço desses ideais, fato que ratifica os primeiros ensaios de uma possível resistência ao fascismo já a partir de 1919, especialmente por meio de periódicos operários nacionais. Para concluir, a seguir, será analisado o jornal pertencente à comunidade italiana, Alba Rossa, nos atendo unicamente às críticas direcionadas ao fascismo na Itália. Já tivemos a oportunidade de falar um pouco sobre fundação do jornal em 1919 por Angelo Bandoni. Também foi devidamente ressaltada a menção que João Fábio Bertonha fez no sentido de considerar o periódico um dos primeiros do Brasil a veicular informações sobre o fascismo (BERTONHA, 1999). O Alba Rossa foi um jornal anarquista com diversas propostas, mas sobretudo com a pretensão de informar os 63

trabalhadores italianos no Brasil acerca dos movimentos revolucionários no mundo e especialmente na Itália. A luta de resistência ao fascismo, todavia, assumiu uma pretensão secundária nas páginas desse periódico. De qualquer forma, assim dizia a primeira edição do jornal publicada em janeiro de 1919 “(…) Hoje, inauguramos Alba Rossa, ardendo em fúria guerreira, tateando todas as possíveis táticas, por uma orientação nova e mais segura. Quem somos? Onde pretendemos chegar? (…) “Nós somos anarquistas, acreditamos, por firma convicção, que a instituição econômica e política do regime burguês não respondem mais as necessidades humanas e que, portanto, quer queira quer não toda a ferocidade conservadora do atual ordenamento, o Estado capitalista corre rapidamente para a bancarrota mais desastrosa” (p. 1). (…) nós não pertencemos a nenhum partido organizado, nem aceitaremos em dar a nossa colaboração – por mais modesta que seja – a um propósito de organizar algum” (…) “Enquanto isso, pela REDENÇÃO CIVIL DO PROLETARIADO, afrente e constante!” (Alba Rossa, Ano I, n.1, p. 1).

No todo, além da publicação de artigos sobre o anarquismo e movimento revolucionário em geral, outro assunto muito presente foi uma crítica acirrada contra o nacionalismo, neste sentido: “Para o governo desaparecer, bastará que os homens compreendam que o patriotismo é o único apoio desta máquina perigosa, é um sentimento bruto, injurioso, odioso e ruim, e sobretudo imoral (…) (Alba Rossa, Ano I, n. 3, p. 2). Na mesma esteira dos jornais A Plebe e Spartacus, o jornal de Bandoni concedeu atenção especial ao episódio diplomático envolvendo a Itália e Fiume. Na oportunidade, atacou-se o nacionalismo italiano e o imperialismo de Gabrielle D’Annunzio. O aspecto central, contudo, foi a denúncia no sentido de que o episódio poderia desencadear em um novo embate entre as nações europeias, o que passou a ser tratado com certa repulsa pelos articulistas, tendo em vista que a Primeira Guerra havia recentemente terminado. Assim dizia “Pax Gálica? Pax Britânica? Pax bélica? Paz Romana! Responde, assim, o ressuscitado nacionalismo italiano, (…) que amargou o sul do Adriático com Gabriele D'Annunzio. (…) É inútil fingir, e é matematicamente exato que: ‘o irredentismo está para o imperialismo assim como o militarismo está para o capitalismo’” (Alba Rossa, Ano I, n. 9, p. 2).

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O conflito em Fiume ainda ocupou as edições de 29 de março de 1919 e do dia 1º de maio de 191916. A coluna Guerra na Itália, da edição de 22 de março de 1919, traz uma crítica ao nacionalismo italiano que se fortalecia. Ao que se percebe, esse sentimento nacional estava relacionado com os interesses dos capitalistas italianos, impregnando os discursos de líderes e insuflando as massas: “Pélago iracundo esta epigrafe encerra! Como é desolador o espetáculo que nos apresenta um povo que inconscientemente atira-se a morte com riso nos lábios, enlevados pelo entusiasmo estupido, exaltado pelo som alegre de uma fanfarra, por discursos eloquentes, aparentemente transparecendo o desespero de uma Italianidade, na realidade inexistente, com exclamações maquiavelicamente preparadas de antemão com o intuito único de levar o povo inteiro ao suicídio moral! Este espetáculo é deveras desolador! (…) Que espetáculo revoltante é ver essa massa de infelizes deserdados, condenados ao perpetuo sofrimento, despertar por esse sentimento baixo, grosseiro e sujo, que é o patriotismo, e atirarem-se uns contra os outros, esganando-se como feras cruéis, depois de haverem sofrido desumanamente toda espécie de torturas com que o capitalismo nos paga! O entusiasmo passageiro e estupido chegou ao cumulo” (Alba Rossa, Ano I, n. 9, p. 2)

Nesse momento, o fascismo ainda não havia surgido no cenário político italiano, mas é nesse contexto de efervescência nacionalista que o movimento de Mussolini germinou e se desenvolveu. As primeiras críticas diretas ao fascismo aparecem a partir da segunda fase (2ª época) do jornal Alba Rossa, que tem início no segundo semestre de 1921. Não tivemos acesso à primeira edição dessa segunda época (termo usado pelo jornal). No acervo consultado, a primeira edição não constava armazenada no banco de dados. Nas edições de 1º de maio, em duas pequenas colunas (em verdades pequenas notas) intituladas respectivamente de O Fascismo e A Ditadura Militar e capitalista na Itália, os editores caracterizam o fascismo como um movimento que se pretendia contrário à revolução social na Itália, envolto de um grande nacionalismo militarizado e ligado aos interesses da ‘burguesia capitalista’ daquele país 17. Os fascistas, em 1921, como foi visto no primeiro capítulo, ainda não haviam ascendido ao poder. Entretanto, o movimento passou a ter o apoio do primeiro-ministro Giolliti, que se aproveitou dos discursos fascistas anticomunista e antianarquista para 16

Alba Rossa, 29 de março de 1919, Ano I, n. 10, p.1; e Alba Rossa, 1 de maio de 1919, Ano I, n. 14, p. 1-2. 17 Alba Rossa, Ano I, n.2 (2ª época), 1 de maio de 1921.

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acalmar as tensões vividas em 1921 e deixar que os fascistas perseguissem os movimentos de trabalhadores ligados às esquerdas. Assim, o Alba Rossa, em tom de denúncia, na edição de Outubro de 1921, relatou como eram as ações dos fascistas contra o movimento de trabalhadores na Itália: “(…) Começaram agora as primeiras lutas fraticidas. O governo de Giolitti permitia e ajudava que os fascistas saíssem em pleno dia pelas ruas da Itália com bombas de dinamites, massacrando a juventude revolucionária. Foi naquele momento uma festa de sangue. Os assassinos e mercenários do governo italiano formaram um partido sem nenhuma direção política (…). (…) Os fascistas são coerentes em defender os próprios interesses, mas também os anarquistas e os comunistas são se atacam primeiro. Por qual, sendo que Giolitti o primeiro defensor e protetor das ações dos fascistas ajudando-os a se livrarem das punições, toda a responsabilidade cai sobre o governo, que ora se vê sem jeito para suprimir esse ódio” (Alba Rossa, Ano I, n. 4 (2ª época), 5 de Outubro de 1921, p. 1).

Portanto, da leitura do jornal Alba Rossa é possível verificar que o fascismo entre os anos de 1921-22 é caracterizado por ser um movimento ligado aos capitalistas, com forte cunho nacionalista (a pátria acima de tudo), imperialista e militar, que agiam com truculência necessária para coibir qualquer manifestação dos trabalhadores organizados, especialmente os anarquistas e os comunistas. Se colocar os três periódicos em uma linha comparativa, é possível perceber que os elementos caracterizadores do fascismo em seus anos iniciais são praticamente semelhantes em todos os jornais. É possível que existisse, entre os editores, um compartilhamento das informações vindas da Europa, o que explicaria essa aproximação na compreensão do que seria o fascismo. Nesse sentido, não foi raro, durante a leitura dos periódicos, deparar com propagandas sobre o Alba Rossa no jornal A Plebe e vice-versa18, o que de certa forma demonstra um intercâmbio existente entre os articulistas. Seja como for, apesar do apoio que a elite industrial burguesa concedeu aos fascistas, não se pode olvidar que a classe média desempenhou um papel crucial no fortalecimento do movimento (HOBSBAWM, 2014, p. 119); talvez aqui, seria necessário uma maior experiência e amadurecimento dos militantes anarquistas no Brasil acerca da compreensão sobre o fascismo. Por outro lado, o próprio movimento na Itália ainda estava germinando entre os anos de 1919 e 1922. Somente com o decorrer dos anos é que seria possível ter uma completa noção sobre o fascismo. 18

Por exemplo: A Plebe, São Paulo, 19 de Julho de 1919, Ano III, n. 22. “Será amanhã distribuído mais um número de Alba Rossa (…)” (p. 1).

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Para finalizar, cabe citar interessante trecho da edição do Alba Rossa, de 11 de novembro de 1922, cujo título é La Unurata sociedade fascista pronta a servir política internacional. A coluna traz a denúncia sobre a possível instalação do fascismo em São Paulo a partir da comunidade italiana daquela região, em razão da política dos fasci all’estero, que como vimos, foi um esforço diplomático do governo da Itália em propagar o fascismo a todos os italianos espalhados pelo mundo. Diante dos boatos, assim se manifestou o editorial: “Mas se essa gente desclassificada, sem profissão, tiver a coragem de vir em meio a nós, trabalhadores autênticos, filhos de todas as pátrias, falar do fascismo italiano; (…) então usaremos os meios adequados para os persuadir do contrário e os convencer de que o lugar dos fascistas é entre os mercenários que recebem de todos os tiranos inimigos do povo. Fascistas é sinônimo de asno, criminoso, vagabundo e Judas” (Alba Rossa, Ano II, n. 3 (2ª época), 11 de novembro de 192219).

No Brasil, como já foi ressaltado, desde 1922 é possível perceber a infiltração de alguns ideais fascistas no país, exclusivamente a partir da comunidade de italianos como fruto do empenho diplomático realizado pelo governo da Itália. Mas como forma de governo, no país, o fascismo teve forte influência a partir da década de 30 com a tomada do poder por Getúlio Vargas.

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João Fábio Bertonha também menciona o ocorrido (1999, p. 57).

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Conclusão Os estudos sobre antifascismo no Brasil são marcados basicamente por duas tendências: a primeira considerou a luta de resistência ao fascismo, entre os anos de 1919 a 1930, a partir exclusivamente da comunidade italiana instalada no país; a segunda, contudo, analisou a presença de um antifascismo realizado por italianos e brasileiros, especialmente a partir do movimento operário nacional, entre os anos de 1930-1945. Desta forma, durante os seus anos iniciais (1919-1926), pode-se perceber que não há estudos que se dediquem ao antifascismo a partir dos jornais pertencentes ao movimento operário nacional. Neste sentido, a pesquisa voltou-se, em um primeiro momento, para o estudo sobre antifascismo entre os anos de 1919-1922, considerando três periódicos anarquistas: A Plebe, o Spartacus e o Alba Rossa (esse último, apesar pertencer à comunidade italiana em São Paulo, foi incluído como fonte por ser considerado um dos pioneiros no Brasil na luta contra o fascismo e por não possuir estudos que se dediquem em analisar o periódico com maior profundidade). Em um segundo momento, a pesquisa direcionou o seu interesse na definição e na compreensão desse (proto)fascismo que passou a ser criticado pela imprensa operária no Brasil. Desta forma, pretendeu-se analisar como os intérpretes anarquistas, em seus jornais, perceberam este movimento de origem italiana. Após um apurado exame das fontes, foi possível encontrar diversas colunas que noticiaram sobre a emergência do fascismo na Itália sempre acompanhadas de críticas ao movimento. Além disso, percebeu-se uma constante necessidade, por parte dos articulistas, em alertar o operariado sobre esses novos ventos que sopravam da Europa. Diante disso, restou evidente a existência de um (proto)antifascismo a partir, sobretudo, da imprensa anarquista nacional. Deve-se destacar, por outro lado, o pioneirismo dos anarquistas em perceber que algo de diferente estava para acontecer no velho mundo. Por fim, as informações vindas da Itália contidas nos periódicos revelam que uma onda nacionalista, imperialista e militarizada fluiu com muita intensidade naquele país. A partir de um determinado momento, foram esses os elementos que os articulistas usaram para designar o fascismo ainda em seus anos iniciais. Outrossim, os três periódicos identificam, além dos elementos apresentados, o fascismo como um movimento exclusivamente ligado aos “capitalistas” e à “burguesia italiana”. Mas, 68

apesar do apoio que essa classe conferiu aos fascistas e ao próprio Mussolini, a historiografia vem consolidando posicionamento no sentido de que os setores médios e as massas tiveram papel fundamental na concretização do fascismo. Diante disso, a leitura dos periódicos permitiu perceber que o fascismo, na visão dos articulistas anarquistas, não se tratou de um movimento portador de uma definição fechada, posto que possibilitou uma ampliação dos seus elementos caracterizadores em relação à experiência italiana. Talvez a visão embaçada sobre o fascismo fosse em decorrência da falta de uma exata compreensão acerca do movimento. Necessário seria, portanto, o desenrolar dos anos para que uma leitura mais acurada sobre o fascismo fosse feita pelos anarquistas no Brasil. Finalmente, as análises das fontes também demonstraram que, de certa forma e a grosso modo, os três periódicos caracterizaram o fascismo (ainda que indiretamente) de forma praticamente semelhante. Não foi possível, contudo, compreender o porquê dessa aproximação; sugere-se que havia uma troca de informações entre os militantes acerca do que se passava na Itália; fato que sempre foi comum entre os militantes, mas seria necessário um estudo mais aprofundado sobre a questão.

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Digital

da

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