VULNERABILIDADE DE MULHERES NEGRAS NAS OCUPAÇÕES

May 25, 2017 | Autor: Adélia Mathias | Categoria: Genero, Universidade, Raça E Etnia, População Negra
Share Embed


Descrição do Produto





VULNERABILIDADE DE MULHERES NEGRAS NAS OCUPAÇÕES DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Introdução

Segundo dados do Estado, Mapa da Violência 2012 – Homicídio de Mulheres, a cada 5min uma mulher sofre violência apenas por viver a condição de ser mulher, no Brasil. Entretanto os mesmos estudos também nos alertam para o fato de que tal dado pode ser muito maior, pois a violência contra a mulher está no grupo de crimes mais subnotificados, então se estima que o número possa ser maior em 10 vezes.
Nós, mulheres negras, sabemos por experiência, que fazemos parte do grupo social mais vulnerável do Brasil, isso porque somos parte de um grupo interseccional que une sujeitos pertencentes a dois outros grandes grupos que mais morrem no país por causa da violência: mulheres e negras/os. Estar nesse ponto de intersecção entre raça e gênero nos propicia experienciar situações específicas, infelizmente reconheço que a maioria delas traumáticas, pois estamos em um país colonizado no qual o racismo escravocrata consegue se repaginar por meio de diversos mecanismos perversos.
A despeito do discurso contemporâneo de que o racismo é uma prática superada e que as ações afirmativas são desnecessárias porque não há mais diferença racial, cito exemplos de como o racismo se ressiginificou ao longo da história brasileira e nos afeta até hoje:
Em um momento do passado, e com isso digo há séculos, não podíamos votar, ainda que oficialmente libertos, isso porque não éramos gente; hoje, somos vistos como as/os pobres que votamos em um partido de esquerda porque somos assistencialistas, mas também somos as pessoas meio gente meio besta ou bicho, segundo o jornal Le Monde Diplomatique Brasil, que sonham com grandeza e elegem partidos de direita com políticas locais austeras nas quais seremos quem mais sofrerão com as consequências.
Somos também a população que, após o ato político estanque de abolição da escravatura, dizem, não se qualificou para tentar achar emprego liberal, a despeito da existência de trabalhadoras como as negras de tabuleiro – vendedoras, quituteiras – tipógrafos, marceneiros, lavradoras/es, etc. e que ainda hoje, em entrevista de emprego com grau de exigência altamente qualificado, recebem o elogio de terem o melhor currículo, mas ainda assim precisam ouvir do possível empregador que ao invés de estarmos por aí denunciando um racismo que está apenas em nossas cabeças, deveríamos estudar e procurar emprego, como se o próprio ato compartilhado da entrevista de emprego não significasse nada. O que chamamos de invisibilidade.
Mesmo cientes dessas e de muitas outras experiências além do que citei, hoje estamos aqui em um ambiente acadêmico, eu sou a personificação deste nós, e para seguir a práxis deste ambiente apresento dados oficiais do Estado que comprovam nossa sabedoria aprendida e muitas vezes paga com a própria vida, por meio de pesquisas que talvez muitas de nós nem tenhamos ainda acesso.
O Mapa da violência 2015 – homicídio de mulheres no Brasil, de Julio Jacobo apresenta dois pontos importantes:
"a população negra é vítima prioritária da violência homicida do país" e
"as taxas de homicídio da população branca tendem a cair, historicamente, enquanto a taxa de mortalidade da população negra aumenta" (p. 29).

Nesta pesquisa o autor constata que entre as mulheres brancas o número de homicídios cai de 1.747 vítimas, em 2003, para 1.576, em 2013. Uma queda de 9,8% no total. Já os homicídios de negras aumentam 54,2% no mesmo período, passando de 1.864 para 2.875 vítimas.
E mesmo com a Lei Maria da Penha essa tendência se mantém, o número de vítimas cai 2,1% entre as mulheres brancas e aumenta 35,0% entre as negras. Espírito Santo, Acre e Goiás são as unidades com maiores taxas de homicídio de negras, com taxas acima de 10 por 100 mil mulheres.
Minha área de formação é a Literatura e em nosso meio é consenso que o processo dinâmico da produção, circulação e leitura do texto literário ultrapassa a ideia de consumo de entretenimento; a literatura não tem uma obrigação a priori, mas pode ser utilizada para diversão, crítica, apreensão estética, preenchimento de lacunas da historiografia oficial, ressignificação do mundo, cristalização e/ou combate de estereótipos, dentre tantas outras possibilidades. Trazê-la para este discurso é mostrar a importância do campo do simbólico na violência contra as mulheres. Na literatura somos as mães pretas que esquecem de si para cuidar dos outros; as mulatas tipo exportação com o exotismo inspirador do desejo incontrolável dos homens; as mulheres raivosas e descontroladas que em nada se parecem com as musas inspiradoras de romances épicos... no imaginário coletivo, não podemos ser a colega pesquisadora do departamento, a professora universitária ou a profissional liberal em cargo de chefia. Estamos nele também subordinadas, simbolicamente, ao lugar que o pensamento alheio acredita que devemos pertencer.
Essa fala introdutória tem o intuito de mostrar o quanto somos cotidianamente violentadas física, simbólica e moralmente, apesar do passar dos séculos e mesmo com a adoção de políticas públicas que visam diminuir nossa vulnerabilidade social. Posto isso, prossigo com o objetivo principal desta fala, a denúncia da situação de mulheres negras, e incluo aqui as mulheres quilombolas, nas recentes ocupações dos espaços da UnB.

QUILOMBO – um espaço de resistência estudantil na Universidade de Brasília

A partir da incorporação das cotas raciais na universidade, os programas de auxílio à permanência de estudantes negras e negros, assim como os espaços destinados à convivência e acolhimento desses estudantes, no caso o Centro de Convivência Negra e Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, não conseguem abarcar algumas das demandas deste grupo. Isso não significar dizer que não deram conta de suas atribuições, significa apenas que eram insuficientes para suprir as necessidades desses novos sujeitos no ambiente acadêmico.
O pensamento de criar um outro espaço para a convivência e trocas entre estudantes cotistas encontrou, no ano de 2016, o contexto propício para a articulação e busca de um espaço que realmente lhes agradasse. Pensaram nas questões institucionais, aprenderam a distinção entre as diferentes representações estudantis e descobriram que a melhor representação do que desejavam era a criação de um Diretório, não para separar suas representações do Diretório Central dos Estudantes, mas porque institucionalmente era a única alternativa já existente para abarcar estudantes de diferentes cursos e com um interesse em comum, no caso a raça.
Contando sempre com mulheres no grupo de liderança, a assembleia que deliberaria a utilização de um espaço físico para o então Diretório de estudantes negras/os contou com uma surpresa, a assembleia geral de estudantes para definir a ocupação da universidade contra a então PEC 241, hoje 55, contra a reforma no Ensino Médio e também a favor da legitimação de um espaço para estudantes das cotas raciais.
Diante da decisão de ocupação, estes estudantes aproveitaram para ocuparem um espaço que denominaram de Quilombo, baseados no quote de que "O oposto de Casa Grande não é senzala, mas sim quilombo" e que este, sim, seria o espaço de resistência ao qual queriam pertencer.
Essa ocupação tem, obviamente, interesses comuns e também distintos em relação à ocupação central e demais ocupações da universidade e o ponto mais importante de diferença é que ela se quer uma ocupação permanente. Outra diferença está nos membros da ocupação, enquanto em todas os outros alojamentos há estudantes negros colaborando com estudantes brancos, neste espaço as/os estudantes negras/os são maioria e embora interajam com estudantes de outras raças e etnias, são negras/os quem decidem como se dá a dinâmica do espaço. Isso faz com que ora se aproximem, ora se distanciem dos interesses gerais, o que não os impede de verem o quão vulneráveis estão em relação a qualquer atitude institucional da universidade, e por isso negociam com todos os outros espaços ocupados, inclusive outros campi, para captarem apoio às suas lutas, num evidente exemplo de complexidade da interação social.
Essas pessoas já erraram e pediram desculpas, se esqueceram de negociações importantes, criaram eventos culturais, acertaram e se orgulharam, enfim, quem acompanha esta ocupação consegue notar uma grande influência da entrada desses sujeitos na universidade. O saber por meio da experiência. Enquanto tradicionalmente a experiência enquanto sujeito é rechaçada na universidade, estes estudantes e a própria atitude de ocupar os espaços que lhes pertencem trazem de volta a aprendizagem por meio da experiência, na qual sujeito e objeto se confundem e não mais cabem em algumas categorias analíticas que pretendem alijar o objeto da possibilidade de ser também agente. Imagino que este é um ponto importante que a universidade terá que repensar a partir das ocupações. A dimensão material do saber e o racismo epistêmico.
Voltando para a questão central, todo esse processo de ocupação dos espaços da universidade traz à tona o debate sobre a segurança de quem está nesses espaços, e como é de domínio de diferentes áreas do saber, as mulheres estão as pessoas mais vulneráveis.
Relatos de provocações e ameaças verbais contra as mulheres, como já era de se esperar, ocorrem rotineiramente nos diferentes campi ocupados e o caso que utilizarei como exemplo é do campus de Planaltina. Naquele espaço o número de mulheres quilombolas e assentadas é maior do que nos outros campi e a despeito de qualquer possibilidade do imaginário coletivo, não as vemos como mais ou menos guerreiras e/ou mais ou menos vulneráveis, apenas como sujeitos com suas especificidades.
Em Planaltina algumas das estudantes levaram seus filhos para se manifestarem a favor da ocupação proposta pelos estudantes e se juntaram a eles nos alojamentos. Entretanto, estudantes de gestão de agronegócios, contrários à ocupação, ameaçaram a integridade física dos ocupantes, o que afetou diretamente às mulheres em virtude de sua dupla condição de mulheres e negras, aqui cito parte do áudio compartilhado por mensagem para o grupo de estudantes negras/os.
"Pessoal a FUP vai precisar de reforços do Quilombo [...] a gente recebeu ameaças de membros do grupo fascista (contrário às ocupações), a gente descobriu que eles estão com 3 caixas de molotov e uma caixa de bomba e eles estão dando ordem para por fogo na senzala, o fogo na senzala deles significa por fogo aqui no alojamento onde ficam os quilombolas e os assentados e no texto que a gente viu diz o seguinte: 'vamos reduzir o número de negros dentro dessa universidade' [...] essa noite foi muito tensa, a gente teve que pegar as mulheres com filhos e levar para cima, tirar do alojamento, as mães estão com medo mesmo de ter ataque, as quilombolas estão apavoradas [...] a gente sabe que eles não têm pudor e estão com ódio dos negros, eles falam que os negros estão acabando com a estrutura da universidade".
O áudio tem mais de 2min, é narrado por uma das coordenadoras da ocupação de Planaltina, que diz estar exausta por não conseguir dormir temendo qualquer tentativa real de ataque, já que um drone havia soltado uma bomba não dentro, mas nos arredores da universidade. No áudio podemos notar o quanto a intersecção raça/gênero se confunde a todo o momento, não é possível ser só mulher, ou só negra nesta situação. As ameaças feitas ao grupo de negros afeta imediatamente o direito ao protesto de mulheres, como ouvimos, mais ainda de mulheres negras e mães.
De posse de um relato tão grave, fui diretamente conversar com a autora do áudio que se mostrou assustada e muito desconfiada de quem eu era, ela disse que já tinha recebido ligações e mensagens de mais de 10 pessoas e como não podia limitar o acesso a seu áudio-denúncia, ela só se manifestaria pessoalmente. No desenvolver da conversa eu disse que seu áudio chegou a uma professora da Sociologia que o repassou para um representante do Ministério Público do DF e territórios e que ele tinha atribuições para atuar neste caso que estava configurado como racismo; mas a recepção da estudante foi de maior desconfiança. Ela me sugeriu que o representante aparecesse lá em um dia de audiência pública para "dar um susto" nos estudantes contrários à ocupação, para que eles parassem de importunar o alojamento das/os negras/os e deixassem as mulheres negras em paz. Também foi resistente à sugestão de denúncia anônima, só aceitaria falar qualquer coisa em conjunto porque não gostaria de ser culpabilizada e perseguida por ter tido coragem de pedir ajuda a seus pares.
Dessa conversa eu, também mulher negra, consegui notar duas posturas muito complicadas, resultado da vulnerabilidade de ser sujeito mulher negra no Brasil.
Primeiro, a repetição de padrões de mulheres que sofrem violência doméstica. Muitas dessas mulheres não querem seus companheiros presos, querem apenas cessar a violência que sofrem e por isso levam muito tempo para pedir ajuda, e quando pedem o fazem para as pessoas mais próximas, quando chegam ao limite e procuram o Estado, ainda tentam fazer com que o agressor apenas recue, sem pensarem que a violência contra a mulher é um crime grave e o cerceamento da liberdade do agressor é a consequência de um crime e não de um descontrole momentâneo, sabemos que muitas vezes a vítima de violência doméstica sequer sabe que está sendo violentada.
Segundo, a população negra não vê no Estado um parceiro, mas uma ameaça. Quando citei o MPDFT interpretei algo próximo ao pavor na fala de minha colega. Nem com o direito ao anonimato garantido, essa pessoa aceitou denunciar a situação, mesmo que tivesse print das conversas reacionárias dos estudantes contrários à ocupação, mesmo sabendo como foi passar a noite com medo de ataques de coquetel molotov ou bomba, mesmo achando que quilombolas e assentadas não têm estratégias eficazes contra ataques de reacionários, mas negras/os da periferia sim, essa colega não acredita em um representante do Estado. Para ela a lei que traz eficácia e a lei das ruas da periferia, de juntar grupos com seus pares para combater uma injustiça e/ou um crime.
Se olharmos honestamente para as estatísticas que citei logo no início de minha fala sabemos que a colega está equivocada, e uma das minhas parceiras do grupo de estudos Calundu esteve lá para acompanhar a votação que decidiria pelo fim ou não da ocupação em Planaltina. O relato foi de um ambiente extremamente hostil e com grandes tensões, ela é uma mulher branca e me relatou que se sentiu insegura porque precisava voltar para casa e estava sozinha em um ambiente que não era de sua convivência; foi lá para acompanhar e oferecer o auxílio que sua área de formação pode dar em situações como esta, mas se pouco pôde fazer naquele momento de tanta importância para o campus de Planaltina, nos trouxe a certeza de que há algo perigoso para as mulheres que lá estão alojadas.
Existem ainda casos no Dacy Ribeiro que não podem ser ignorados, como no dia em que fui dar uma aula sobre representação e lugar de fala; a invasão de estudantes homens brancos gritando que nos apoiavam ou eram contra a ocupação do Quilombo nos mostra que independente de sua posição, esses estudantes acham que podem invadir a qualquer momento e usarem seus "corpos socialmente privilegiados" para falarem o que quiserem em um espaço de negros e se revidarmos seremos nós as pessoas inconvenientes e indesejadas no espaço acadêmico.
Minha fala não se quer uma tese fechada, até porque estamos ainda no início das ocupações, mas se quer um alerta para as questões de violência contra as mulheres negras dentro dos campi da Universidade de Brasília, um espaço que se quer progressista, mas que muitas vezes parece não saber como lidar com suas próprias estudantes, obviamente também não é uma fala culpabilizadora, pois como eu mesma constatei anteriormente, as pessoas que sofrem violência de gênero dentro da universidade não veem o sistema institucionalizado como seu parceiro, tanto que para conseguirem um espaço físico para a criação de um Diretório Negro, essas/es estudantes ocuparam uma sala ao invés de tentarem mais uma vez negociar um espaço com os órgãos competentes. Tema também complexo, mas que não cabe nesta fala, pois na tentativa que fizeram anteriormente tiveram como possibilidade a utilização do CCN, que não cabe mais do que 20 pessoas com conforto e que quase foi desativado, ou espaços mais uma vez marginalizados e perigosos para as mulheres negras circularem.
Termino minha fala agradecendo às mulheres do Diretório Negro Quilombo pela confiança em me deixar expor algumas de suas situações e confiarem em minha capacidade de representação, aos meus amigos do grupo de estudos Calundu por confiarem a mim a tarefa de nos representar nessa fala que me é tão cara e ao Nepem na personificação da professora Tânia Mara pelo convite para falar sobre esse problema que parece precisar de olhos mais atentos e acompanhamento mais minucioso de toda comunidade acadêmica.

7


Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.