Wagner em Bayreuth: uma revolução?

June 2, 2017 | Autor: Henry Burnett | Categoria: Friedrich Nietzsche
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Wagner em Bayreuth: uma revolução? Ensaio inédito de Nietzsche mostra a força e o limite do drama wagneriano Henry Burnett

A

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história da relação – e da tensão – entre Nietzsche e Wagner é das mais conhecidas. Toda a chamada “primeira fase” da obra de Nietzsche foi determinada por essa amizade – o período mais profícuo do ponto de vista estético. Os leitores brasileiros têm agora disponível a última obra desses escritos de juventude, texto que prenuncia a mudança teórica marcada pela publicação de Humano, demasiado humano. Trata-se da IV Consideração extemporânea, Wagner em Bayreuth. Não é fácil situar esse escrito. Em O nascimento da tragédia (1871), o projeto de Richard Wagner era visto por Nietzsche como uma promessa de levar a cabo um ideal ambicionado desde os pré-românticos do movimento Sturm und Drang (entre os quais o jovem Goethe), isto é, a recuperação cultural do espírito grego, tendo a Alemanha como novo berço. No texto sobre Bayreuth, de 1876, encontramos outro tipo de ideal que, se ainda pode ser lido como o acabamento daquele ímpeto inicial, de modo algum é uma continuação acrítica do livro de 1871 (na verdade, nem O nascimento da tragédia é um livro “100%” wagneriano).

Wagner e Nietzsche: capítulo tenso na história da relação entre música e filosofia

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Essa talvez seja a única observação discordante que se possa fazer sobre essa edição, cuja tradução rigorosa é digna de nota: a tradutora, em sua cuidadosa introdução, parece ver na IV Extemporânea apenas uma confirmação da crença juvenil de Nietzsche em Wagner, deixando de lado as pequenas cesuras que se abriam num momento derradeiro de admiração.

“Tu disseste que eras isto” Mazzino Montinari, organizador da edição crítica de Nietzsche, afirma que Wagner, ao ler o ensaio, se referiu a ele como “monstruoso”, e disse: “Me pergunto, como ele faz para saber todas essas coisas sobre mim?”. Ao que parece, Wagner lera o ensaio apenas como um elogio, ao que Montinari acrescenta: “Esta monstruosidade era devido certamente ao fato, negligenciado largamente pela pesquisa acadêmica sobre Nietzsche e sobre Wagner, que aquela Extemporânea era, também, um completo mosaico de citações ocultas das óperas de Wagner, quer dizer, Wagner era descrito a partir do próprio Wagner; mas era também um espelho para o próprio Wagner em Bayreuth, quase como se Nietzsche dissesse ao amigo: ‘Tu és isto, tu disseste que eras isto, e eu sei novamente isto hoje’”. A IV Extemporânea guarda algo que não podia ser revelado naquele momento de consagração do compositor, um entrave que Nietzsche supunha estar no público: a percepção inábil para o empreendimento da Obra de arte total. Nietzsche chega a Bayreuth imaginando encontrar o público grego redivivo. No entanto, tudo aquilo que parecia ser criticado por Wagner desfilava nos dias festivos: vulgaridades aristocráticas, exibicionismos e aquela sensação de que o público queria mesmo era distração ligeira e não distinguia a grande ópera dos dramas de Wagner. Não por acaso, só na autobiografia, anos depois, vamos encontrar a resposta para o que estava insinuado no ensaio: “Os começos deste livro [Humano, demasiado humano] situam-se nas semanas do primeiro festival

livros de Bayreuth; uma profunda estranheza em relação a tudo o que me cercava é um de seus pressupostos” (Ecce Homo, “Humano, demasiado humano” § 2). Entenda-se: Nietzsche começou a escrever Humano em Bayreuth, dado filologicamente imprescindível. Essa “estranheza” é justamente a incompreensão que desembocaria no livro-ruptura ano seguinte. O que hoje parece claro é que o próprio Wagner sentia-se muito bem com o sucesso do empreendimento, algo que o redimia

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das dificuldades financeiras e anunciava o auge de sua glória. Para Nietzsche, Bayreuth já não parecia um novo templo dionisíaco, mas ele depositara suas últimas esperanças metafísico-artísticas ali. No entanto, foi o único em Bayreuth a se imaginar diante de uma reinvenção da consciência trágica. Levando às últimas consequências seu antagonismo contra a filologia clássica, ler o ensaio hoje só mostra que a verdade de Bayreuth estava acima e além de seus dois maiores inspiradores.

Trecho: “Bayreuth significa para nós a manhã de consagração no dia da batalha. Não se poderia fazer pior injustiça do que supor que, para nós, trata-se unicamente da arte: como se a arte fosse um remédio ou narcótico, graças ao qual fosse possível se desfazer de todas as outras misérias. Vemos na imagem da obra de arte trágica de Bayreuth justamente a luta dos indivíduos contra tudo o que se apresenta como uma necesssidade aparentemente inexorável: contra o poder, a lei, a tradição, a convenção e toda ordem estabelecida das coisas. Os indivíduos só podem viver uma vida que vale a pena quando amadurecem para a morte e se sacrificam em sua luta pela justiça e pelo amor” (p. 65)

Wagner em Bayreuth Friedrich Nietzsche Trad.: Anna Hartmann Cavalcanti Zahar 184 págs. R$ 34,90

A partir da vida lesada

Minima Moralia Theodor W. Adorno Azougue Editorial 261 págs. R$ 58

A publicação desta nova tradução, feita por Gabriel Cohn, de uma das maiores obras de filosofia do século passado, coloca de imediato a questão: quais as reais motivações para mais uma versão se, afinal de contas, o próprio tradutor reconhece a qualidade e o mérito do trabalho realizado em 1992 por Luiz Eduardo Bicca, com revisão de Guido de Almeida (responsável também, aliás, pela excelente tradução de Dialética do esclarecimento)? Como Gabriel Cohn explica no posfácio, seu interesse em oferecer uma nova tradução começa, na realidade, já na escolha do subtítulo do livro. Na tradução anterior, Minima Moralia era seguido por “reflexões sobre a vida danificada” e não, como se propõe agora, “reflexões a partir da vida lesada”. Não se trata de uma diferença sutil: tomar a vida danificada como objeto de estudo, em distanciamento crítico sugerido pelo uso do “sobre”, é bem diferente do conjunto de reflexões cuja referência primordial não exclui o campo interno da experiência vivida (reflexões a partir de). A substituição, também indicada no subtítulo, de vida danificada por vida lesada (expressão que percorrerá todo o livro) decorre da mesma necessidade de precisão semântica. Pois “danificado” poderia trazer, argumenta o tradutor, uma conotação “mecânica” à expressão, como se algo antes em perfeito estado de funcionamento tivesse sofrido algum dano – sentido este que não está presente no livro. Cohn esclarece outras motivações, como a deliberada recusa de notas de rodapé e a adaptação dos títulos dos aforismos para o leitor não habituado às ressonâncias culturais sugeridas por Adorno. Na verdade, o simples fato de tornar disponível ao leitor mais uma possibilidade interpretativa dessa obra surpreendente – ilusoriamente curta, redigida em aforismos nos quais nenhum vocábulo é gratuito –, esse fato merece ser comemorado. (ES) n°133

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