WALTER BENJAMIN E A INFÂNCIA DA LINGUAGEM: UMA TEORIA CRÍTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

May 30, 2017 | Autor: Solange Jobim | Categoria: Walter Benjamin, Ciências Humanas, Conhecimento, Teoría Crítica, Infancia, Linguagem
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WALTER BENJAMIN E A INFÂNCIA DA LINGUAGEM: UMA TEORIA CRÍTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

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Solange Jobim e Souza1

Nos domínios de que tratamos aqui, o conhecimento existe apenas em lampejos. O texto é o trovão que segue ressoando por muito tempo. Walter Benjamin

1. Introdução Dentre os vários caminhos pelos quais as idéias de Walter Benjamin podem nos conduzir a uma reflexão sobre o conhecimento, escolhemos, neste texto, abordar um dos grandes dilemas das ciências humanas neste final de século – a relação entre sujeito, verdade e linguagem e suas implicações para o enfrentamento das contradições sociais, culturais e políticas que marcam as sociedades contemporâneas deste novo milênio. Vamos conduzir nossas reflexões a partir de fragmentos retirados das obras de Walter Benjamin e de Clarice Lispector, construindo com eles um mosaico de idéias que poderá ser apreciado do mesmo modo que uma criança, ao olhar pela fresta de um caleidoscópio, descobre novas e iluminadas configurações. Estas imagens curiosas, coloridas e multiformes devem incitar o pensamento do leitor – sujeito do conhecimento - a re-inventar modos peculiares para desvendar o que é o conhecimento, sem deixar de levar em conta, o rigor e a precisão necessárias ao modo como se conquista a compreensão da experiência do homem no mundo contemporâneo. Benjamin recorre com freqüência a inúmeras metáforas, imagens, analogias, ou citações, que, no seu conjunto, revelam uma forma de pensamento, ou, mais do que isto, uma 1

Doutora. Professora Associada do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Professora Adjunta da Faculdade

de Educação da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Autora de livros e artigos em periódicos, tais como: Infância e Linguagem, Editora Papirus, Campinas, 10ªedição, 2006; Subjetividade em questão: a criança como crítica da cultura, Editora 7 Letras, Rio de Janeiro, 2005; Educação @ Pós-modernidade, Editora 7 Letras, Rio de Janeiro, 2003; Ciências Humanas e Pesquisa: Diálogos com Bakhtin, Editora Cortez, São Paulo, 2003.

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visão de mundo. Certamente não se trata de um pensamento sistemático ou enquadrado em um sistema de opções conclusivas, mas pensamento tecido nas malhas da alusão e que se move nas dobras da linguagem, ampliando o âmbito da razão e instaurando o diálogo entre o conhecimento e a verdade, a sensibilidade e o entendimento, a razão e a paixão. Esta conquista progressiva da verdade, através do diálogo das idéias que se expandem no espaço e no tempo, desafia as ciências humanas a construir uma outra compreensão de si própria. Buscando suas próprias leis internas e novos critérios de exatidão, Benjamin re-define o conceito de verdade e recupera a linguagem como compromisso e responsabilidade para resignificar o sujeito e a história. Mas o que nos diz Benjamin, neste contexto de des-construção e construção de novos paradigmas para as ciências humanas, sobre a representação da verdade e o lugar que a filosofia da linguagem ocupa no contexto de suas reflexões?

2. Sobre a verdade

Sobre o tema da representação da verdade o autor afirma:

Para que a verdade seja representada em sua unidade e em sua singularidade, a coerência dedutiva da ciência, exaustiva e sem lacunas, não é de nenhum modo necessária (1984, p.55). No entanto, o que constatamos, em contraste com esta afirmação, é que ao longo de sua história as ciências humanas têm enfrentado o dilema de uma difícil escolha: ou enveredam pelos caminhos da exatidão, do cálculo, da coerência dedutiva da ciência, exaustiva e sem lacunas e, nesta direção, arriscam a construir uma concepção de homem que é pura abstração conceitual, ou admitem que a condição humana exige uma cientificidade que se define de outra maneira. Apostando nesta última opção Benjamin acredita que as ciências humanas podem e devem assumir o compromisso e a responsabilidade com um outro conceito de verdade, resgatando a dignidade da linguagem para transitar e revelar a tensão permanente entre conhecimento e verdade na esfera do saber humano e social.

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No que diz respeito ao conhecimento que é produzido no interior das ciências exatas, Benjamin afirma que este se concretiza a partir da lógica de um sistema explicativo e, por ter uma preocupação basicamente didática, é algo que pode ser ensinado. Em contrapartida, é possível transmitir a verdade, mas não é possível ensiná-la. O que se transmite no conhecimento é da ordem da informação, mas a verdade se dá pelas vias da linguagem, não por comunicação de conteúdos, mas por expressão, ou seja, pela essência espiritual de uma singularidade. Benjamin reivindica para as ciências humanas uma outra forma de expor a verdade, forma que se distingue profundamente do que chamamos conhecimento empírico do real e que, portanto, questiona os limites rígidos da racionalidade técnica, preconizando um tipo de conhecimento que inclui as paixões e as utopias indispensáveis à vida, sem as quais não há humanidade possível. Certamente, isto não significa abrir mão ou negligenciar o necessário rigor que a procura da verdade exige do pesquisador, mas este deve admitir um conceito de verdade que não se dá apenas por evidência fatual e nem se esgota na explicação. Somente a linguagem, em sua dimensão dialógica, polifônica e alegórica, pode devolver às ciências humanas a dignidade para enfrentar o compromisso de redefinir os seus critérios de exatidão, buscando através de leis que lhe são próprias uma outra possibilidade de interpretar e compreender a complexidade da condição humana. Nesta perspectiva, Benjamin contesta a matemática como único sistema eficaz e didático para legitimar o conhecimento genuíno, dizendo: Quanto mais claramente a matemática demonstra que a eliminação total do problema da representação reivindicada por qualquer sistema didático eficaz é o sinal do conhecimento genuíno, mais decisivamente ela renuncia àquela esfera da verdade visada pela linguagem” (1984, p. 49) Mas de que esfera visada pela linguagem Benjamin está se referindo aqui?

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3. Sobre a linguagem

Não encontramos em Benjamin uma teoria coerente, argumentada e didática sobre a linguagem, mas sim uma reflexão profunda concernente à função e ao uso da linguagem no mundo moderno e uma intuição essencial quanto à sua natureza. Entretanto, se quisermos realmente compreender suas idéias originais e contestatórias sobre as questões do progresso e da civilização, é preciso estar preparado para ir ao encontro de uma construção teórica extremamente ousada. Isso porque Benjamin irá se interrogar sobre a essência da linguagem recorrendo à teologia e à mística judaica. Contudo, são esses aspectos

aparentemente

anacrônicos de seu pensamento que o tornam surpreendentemente atual, além de responsável pela elaboração de uma utopia revolucionária. Dentre as inúmeras questões que as idéias de Benjamin suscitam, destacamos uma discussão que se distingue por ser premonitória, quer dizer, uma reflexão que busca revelar os fundamentos da alienação do homem, pela perversão contida no uso da linguagem, no mundo atual. O homem no mundo contemporâneo vive uma verdadeira esquizofrenia entre o discurso proferido e a realidade vivida. Quando a linguagem é utilizada de modo a inibir a revelação da essência mais íntima do homem, ela se torna apenas instrumento de uma sociedade que encarcera seus indivíduos, sem que estes, muitas vezes, se dêem conta do processo aprisionador do qual são vítimas. Assim, para se escapar ao maquinismo infernal de uma linguagem que submete o homem à servidão generalizada, é necessário reinventar a própria linguagem, ou melhor, recuperar algo que nela existe, mas que hoje, cada vez mais, vem sendo expulso do seu domínio. Para isso Benjamin recorre às raízes messiânicas de uma linguagem original que se perdeu na corrente do progresso, mas que precisa ser resgatada para que o reencontro do homem com sua própria liberdade se torne uma realidade possível. O amor pela tradição e pelo passado revela uma intuição profunda de que nessa paixão está a força subversiva capaz, de fato, de colocar em crise o presente. Para Löwy (1989), utopia, anarquismo, revolução e messianismo estão em Benjamin alquimicamente combinados e articulados com uma crítica neo-romântica do progresso e do conhecimento puramente técnico-científico.

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4. A dimensão metafísica da linguagem A abordagem místico-teológica da linguagem surge nos escritos de Benjamin desde 1916, quando no ensaio “Sur le langage en general et sur la langage humain” ele propõe um alargamento da dimensão da linguagem a partir de um enfoque metafísico em que ela – a linguagem – não aparece referida a qualquer subjetividade. Para explicar a dimensão metafísica da linguagem, Benjamin (1987c) recorre à sua origem bíblica. No início, a palavra não se destinava à comunicação entre os homens, ela se constituía na revelação da essência de um saber que dispensava todas as mediações. No nome, a linguagem comunicava a si própria e de maneira absoluta. Com o pecado original o homem é condenado a usar a palavra como instrumento de comunicação. A conseqüência imediata disso é a extinção da linguagem adamítica, ao mesmo tempo em que surge o verbo propriamente humano. O verbo divino é substituído pela proposição, graças à qual os homens falam sobre as coisas, atribuindo-lhes, abstratamente, propriedades por meio de atos de julgamento. A queda do homem do paraíso é concomitante ao exílio das coisas submetidas, assim, à linguagem abstrata dos homens. A profunda tristeza da natureza se revela no divórcio instituído a partir desse momento entre as palavras e as coisas. Para Benjamin (1987c), o saber mediatizado por abstrações proposicionais inaugura uma espécie de conhecimento do mundo por meio da conversa vazia ou, como ele propriamente denominou, da tagarelice. O castigo a que o homem é submetido por meio do pecado original pode ser compreendido como a própria maldição semântica, ou seja, o homem se vê condenado a dar sempre um sentido às coisas. A perda da linguagem pura simboliza a perda do saber perfeito. O abandono do nome é concomitante ao surgimento da necessidade de comunicar algo exterior ao próprio nome. Com isso a palavra não expressa mais, não é mais o lugar da emergência da essência espiritual, mas meio de comunicar conteúdos e transmitir informações, quer dizer, comunicar algo exterior à própria linguagem, articulando símbolos e conceitos.

Nesse

momento deparamo-nos com os primórdios da constituição da cultura. Para que a teoria onto-teológica de Benjamin seja plenamente compreendida, é fundamental termos em mente que ela é uma crítica às teorias formalistas e positivistas, que privilegiam a dimensão utilitarista e instrumental da linguagem, ou seja, seu papel de transmissão de conteúdos. Na visão de Benjamin, existe algo na linguagem que é comunicável, 5

mas não é a própria linguagem, não se identifica com os conteúdos da linguagem, mas nela se manifesta. Benjamin (1987c) afirma que tudo o que existe, seja de natureza animada ou inanimada, acontecimento ou coisa, comunica e expressa sua essência espiritual. Assim, com base numa abordagem metafísica da linguagem, Benjamin propõe sua extensão para além dos limites do propriamente humano, para então fundamentar a existência de uma essência espiritual que se manifesta na linguagem. Desse modo, a grande questão metafísica que a teoria da linguagem de Benjamin nos coloca é que, se no homem a essência espiritual é igual à essência lingüística, toda essência espiritual é lingüística. Essa é uma questão primeira para uma filosofia da linguagem cujo conceito-chave está na revelação. Para a noção de revelação, a plena expressão de uma verdade é igual à plena espiritualidade. A metafísica da linguagem de Benjamin é a tentativa da compreensão do mundo físico, do mundo como matéria, na sua dimensão semântica, vista aqui neste contexto como revelação, na linguagem, de uma verdade que não se contenta, exclusivamente, em se expressar pela abstração conceitual, mas que coloca a experiência sensível em contato direto com o mundo, dando voz imediata a este mundo. Essa dimensão semântica do mundo dos objetos pode estar encarnada nas palavras da poesia e podemos experimentar este tipo de conhecimento, de que nos fala Benjamin, ao ler o seguinte fragmento de Clarice Lispector.

Um dia desses vi sobre a mesa uma talhada de melancia. E, assim sobre a mesa nua, parecia o riso de um louco (não sei explicar melhor). Não fosse a resignação a um mundo que me obriga a ser sensata, como eu gritaria de susto às alegres monstruosidades pré-históricas da terra. Só um infante não se espanta: também ele é uma alegre monstruosidade que se repete desde o começo da história do homem. Só depois é que vêm o medo, o apaziguamento do medo, a negação do medo – a civilização enfim. Enquanto isso, sobre a mesa nua, a talhada gritante de melancia vermelha. Sou grata a meus olhos que ainda se espantam tanto. Ainda verei muitas coisas. Para falar verdade, mesmo sem melancia, uma mesa nua também é algo para se ver (Clarice Lispector, 1978, p,74).

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5. A infância como recuperação da pura expressão Giorgio Agamben (1989), inspirado nas idéias benjaminianas, nos permite formular uma série de questões instigantes, relacionando infância, linguagem e experiência. Como recuperar a experiência original pura, não contaminada por uma forma instrumental de ver e se relacionar com o real? Como encontrar algo parecido com uma “infância da experiência”? E como relacionar essa “infância da experiência” com a linguagem? O que pode ser uma experiência que só a linguagem sustenta? Em se tratando de linguagem, como experimentar o puro fato de que falamos, ou melhor, de que existe linguagem? A infância se constitui num experimentum linguae desse gênero, quer dizer, de acordo com Agamben, ela é entendida como possibilidade de recuperação da pura expressão. É na infância que se constitui a necessidade da linguagem e, para penetrar na corrente viva da língua, a criança deve operar uma transformação radical, ou seja, transformar a experiência sensível (semiótica) em discurso humano (semântica). Em outras palavras, a infância é o momento em que a linguagem humana emerge como significação, pois é na fala da criança que acontece a passagem do signo lingüístico para a ordem do sentido – da semiótica para a semântica. Nessa abordagem, a infância não é apenas uma etapa cronológica na evolução do homem que possa ser estudada – quer seja por uma biologia ou por uma psicologia – como fato independente da linguagem. Sendo um momento na história do homem, que se repete eternamente, manifesta, nesse eterno retorno, aquilo que essencialmente permanece como fato humano. É nesse sentido que tal concepção de infância não é algo que possa ser compreendido antes da linguagem ou independente dela, pois é na linguagem e pela linguagem que o homem constitui a cultura e a si próprio. Assim sendo, não é fora da linguagem que devemos procurar os limites da linguagem, mas na linguagem mesma; entretanto fazer uma experiência desse gênero só é possível onde as palavras desaparecem nos lábios. A criança quando começa a falar experimenta esta luta incessante que é transformar afetos em sons compreensíveis para o outro cúmplice de suas demandas. Para o poeta, transformar a palavra esquecida e ao mesmo tempo almejada em palavra escrita, é experimentar o vazio que antecede a criação, ou seja, um passo atrás em direção à pura expressão.

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O pré-pensamento é um preto e branco. O pensamento com palavras tem cores outras. O pré-pensamento é o pré-instante. O pensamento é passado imediato do instante. Pensar é a concretização, materialização do que se pré-pensou. Na verdade o pré-pensar é o que nos guia, pois está intimamaente ligado à minha muda inconsciência. O pré-pensar não é racional. É quase virgem. Às vezes a sensação de pré-pensar é agônica: é a tortuosa criação que se debate nas trevas e que só se liberta depois de pensar – com palavras (Clarice Lispector, 1978, p.17).

Para Agamben (1989), o signo existe quando é reconhecido como significante pelo conjunto dos membros de uma dada comunidade lingüística; portanto ele é o fundamento da realidade da língua, quer dizer uma propriedade da língua apreendida pelo sujeito. A semântica só existe na emergência momentânea do discurso, cujos elementos, logo após proferidos, recaem na pura língua, são recolhidos na dimensão muda dos signos. Agamben, ao reconhecer e ressaltar essa indiscutível cisão da língua, indaga-se pelas conseqüências desse fato: Por que a linguagem humana apresenta essa cisão? O que comporta originalmente essa separação? Por que a linguagem tem uma dupla significação? A resposta que esse autor encontra para essas questões pode ser vista como um tópico primeiro para uma teoria geral da cultura e da linguagem. Agamben retoma a dupla significação da linguagem não como duas realidades substanciais, mas como dois limites transcendentais que definem a infância do homem. A criança se constitui como sujeito na linguagem e pela linguagem, mas para isso é necessário que ela ultrapasse a pura língua transformando-a em discurso. Dito de outro modo, uma vez que existe uma infância e que nela o homem não é um falante desde o início, a semiótica, segundo Agamben, pode ser vista como uma etapa pré-babélica da língua da qual o homem participa para entrar na babelização semântica. Para Agamben (1989), a dualidade da espécie humana que se explicita na herança da língua natural – como código genético – e na herança da tradição cultural, transmitida por veículos não genéticos, é uma dualidade inscrita na língua. Portanto, acrescenta ele, o que 8

caracteriza a linguagem humana não é pertencer a uma ou a outra esfera, mas a sua posição entre as duas. Uma vez que a linguagem está instalada nessa cisão inevitável entre a herança genética e cultural, ela deve, necessariamente, comportar uma estrutura que permita a passagem de uma a outra. Nesse sentido, Agamben, concebe a natureza e a cultura como dois aspectos distintos que, ao entrarem em ressonância na linguagem, comunicam-se entre si e permitem a transformação do mundo fechado do signo em mundo aberto da expressão semântica. A linguagem humana, diz Agamben, é o único sistema de signos composto de elementos (os fonemas), que são ao mesmo tempo, significantes e sem significado, precisamente porque são elementos que servem à passagem da semiótica à semântica. É nessa passagem que vão sendo inscritos os códigos da cultura. Entretanto, o que observamos é que no mundo atual, regido pelas transformações tecnológicas e pela civilização industrial do consumo, predomina uma forte tendência à homogeneização da experiência sensível, que dessa forma vai sendo solapada e aniquilada desde muito cedo. A cultura monolítica de massa, padronizadora das formas cotidianas de relacionamento entre os homens, é responsável pelo vertiginoso empobrecimento da experiência humana, impedindo as pessoas de romper com seus impasses repetitivos e de recompor uma visão ético-estética do cotidiano. A obra de Benjamin é uma espécie de denúncia que vai se expandindo em cada um de seus ensaios e abordando, de forma sempre mais ampla e profunda, uma questão que permanece como fio condutor de sua crítica fundamental ao mundo contemporâneo, ou seja, a percepção aguda e desesperançosa do caráter mecânico, uniforme e vazio da vida na sociedade industrial e os efeitos concomitantes expressos no uso da linguagem, que se transforma, neste contexto, em instrumento apenas de comunicação. Desenvolvendo uma concepção de linguagem em estreita relação com a infância, essa abordagem teórica nos permite encontrar um método capaz de nos levar a uma compreensão crítica da história e da cultura de nossa época. Isso significa admitir a linguagem e a infância como paradigmas que rompem com a reificação das ciências humanas, possibilitando que essa área do saber recupere sua dimensão crítica no enfrentamento das contradições que marcam as sociedades capitalistas deste final de milênio.

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6. Linguagem e alegoria como formas da verdade

Em Benjamin a verdade se expressa nos próprios objetos, coisas, gestos, etc, e tudo isto se constitui em signos de uma situação histórica e cultural mais ampla. A questão consiste em descobrir o contexto semântico que existe nos objetos, fazer falar o mundo das coisas. Dar voz ao particular e às cenas do cotidiano, para que “falando” possam revelar as leis do todo.

A relação entre o trabalho microscópico e a grandeza do todo plástico e intelectual demonstra que o conteúdo da verdade só pode ser capitado pela mais exata das imersões nos pormenores do conteúdo material” (1984, p. 51). Portanto, no contexto das idéias benjaminianas, a verdade está na tensão entre o universal e o particular e a sua busca pauta-se na leitura monadológica do particular. Contudo, a leitura do particular como mônada2 só é possível porque o particular comporta uma dimensão alegórica, quer dizer, não se esgota em si mesmo, pois ao falar de si fala também de outra coisa que não ela mesma. Na alegoria, o elo com o significado é fruto de uma laboriosa construção intelectual e remete sempre a uma pluralidade de possíveis interpretações. A leitura alegórica atinge sua mais alta dimensão e perfeição espiritual quando o leitor desvela o sentido escondido sobre o véu das palavras. Contudo, este momento de revelação da verdade existe como o tempo de um relâmpago, pois a leitura alegórica supõe, paradoxalmente, a inerente deficiência da linguagem alegórica, porque o sentido verdadeiro nunca é de fato alcançado plenamente. Clarice expressa essa compreensão de forma exemplar e poética.

Eu escrevo por intermédio de palavras que ocultam outras – as verdadeiras. É que as verdadeiras não podem ser denominadas. Mesmo 2

Termo utilizado por Leibniz para designar os elementos simples de que o universo é composto. A mônada é a

realidade miniaturizada. A mônada é um ponto de vista sobre o mundo, ao mesmo tempo em que revela o mundo sob um ponto de vista. Em Benjamin, este termo se refere ao modo como a verdade é apreendida no reino das idéias, permitindo que um fragmento da realidade seja a expressão do particular no âmbito do universal.

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que eu não saiba quais são as “verdadeiras palavras”, eu estou sempre aludindo a elas. Meu espetacular e contínuo fracasso prova que existe o seu contrário: o sucesso. Mesmo que a mim não seja dado o sucesso, satisfaço-me em saber sua existência. (Clarice Lispector, 1978, p.72).

Para Gagnebin (1994), a linguagem alegórica extrai sua profusão de sentidos de duas fontes que se juntam em uma mesma imagem: a tristeza e o luto pela ausência de um sentido último para as coisas e a liberdade lúdica que tal ausência acarreta. Luto e jogos de linguagem se articulam para reabilitar a história, o tempo e o desejo. A alegoria ressalta a impossibilidade de um sentido eterno e a necessidade de perseverar na grande temporalidade para construir significações transitórias. Benjamin (1984) esclarece que é o choque entre o desejo da eternidade e a consciência aguda da precariedade do mundo que constituem a fonte principal da inspiração alegórica. A alegoria se instala na intimidade entre o efêmero e o eterno. As descrições benjaminianas ressaltam o sentimento de melancolia que o desmoronamento da tradição provoca. Os textos que compõem a obra intitulada “Infância em Berlim” são um belo exemplo de uma escrita que suscita uma leitura alegórica, ou seja, leitura que fala de um outro texto, cujo conteúdo o próprio texto original e o autor não conhecem plenamente. Das páginas deste livro - Infância em Berlim - surge um mundo feito de palavras onde os objetos perdem sua densidade costumeira e se dispersam numa multiplicidade semântica infinita. “ARMÁRIOS. O primeiro armário que se abriu por minha vontade foi a cômoda. Bastava-me puxar o puxador, e a porta, impelida pela mola, se soltava do fecho. Lá dentro ficava guardada minha roupa. Mas entre todas as minhas camisas, calças, coletes, que deviam estar ali e dos quais não tive mais notícia, havia algo que não se perdeu e que fazia minha ida a esse armário parecer sempre uma aventura atraente. Era preciso abrir caminho até os cantos mais recônditos; então deparava minhas meias que ali jaziam amontoadas, enroladas e dobradas na

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maneira tradicional, de sorte que cada par tinha o aspecto de uma bolsa. Nada superava o prazer de mergulhar a mão em seu interior tão profundamente quanto possível. E não apenas pelo calor da lã. Era “tradição” enrolada naquele interior que eu sentia em minha mão e que, desse modo, me atraía para aquela profundeza. Quando encerrava no punho e confirmava, tanto quanto possível, a posse daquela massa suave e lanosa, começava então a segunda etapa da brincadeira que trazia a empolgante revelação. Pois agora me punha a desembrulhar a “tradição” de sua bolsa de lã. Eu a trazia cada vez mais próxima de mim até que se consumasse a consternação: ao ser totalmente extraída de sua bolsa, a “tradição” deixava de existir. Não me cansava de provar aquela verdade enigmática: que a forma e o conteúdo, que o invólucro e o interior, que a “tradição” e a bolsa, eram uma única coisa. Uma única coisa - e, sem dúvida, uma terceira: aquela meia em que ambos haviam se convertido” (1987b, p. 122) Nesta cena Benjamin alude a uma dimensão da linguagem que devolve às coisas o poder de expressar para além da sua presença física no mundo, transferindo para a materialidade da escrita a possibilidade de conciliar o sentido e a forma. O episódio das meias revela que a experiência cotidiana mais fundamental é a experiência que se vive na e com a linguagem, experiência capaz de transformar a própria realidade concreta e objetiva do mundo material em elemento espiritual. O conhecimento, portanto, não pode prescindir de uma compreensão da linguagem na sua dupla dimensão - sensível e racional. Das reflexões que foram sendo elaboradas, ao longo deste ensaio, podemos apreender o legado maior do pensamento de Benjamin, qual seja: toda vez que conseguimos recuperar dispositivos de expressão que escapam ao despotismo do sistema de significações dominantes, estamos justamente lidando com formas altamente elaboradas de relacionar conhecimento e verdade.

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7. As citações, a verdade e o método A citação para Benjamin é uma forma de recuperar, sempre, em um novo texto, a verdade contida na palavra alheia. Portanto, citação é também diálogo, diálogo entre textos, compromisso em fazer convergir e divergir idéias próximas e distantes no espaço e no tempo. Benjamin encontra no uso da citação uma forma de expressar um pensamento aberto e combativo, com seus adversários e consigo mesmo. Que forma dar a um pensamento que busca desfazer enganos e ilusões, sem abandonar estes mesmos enganos e ilusões como método de aproximação com a verdade? Como Benjamin explicita a sua concepção de método no campo das ciências humanas, ou melhor, o compromisso da filosofia com uma escrita que faça justiça ao seu objeto de estudo – as questões humanas?

Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os ( 2006 ,p. 502).

Como este trabalho foi escrito: degrau por degrau, à medida que o acaso oferecia um estreito ponto de apoio, e sempre como alguém que escala alturas perigosas e que em momento algum deve olhar em volta a fim de não sentir vertigem (mas também para reservar para o fim toda a majestade do panorama que se lhe oferecerá) (2006, p. 502503).

Este trabalho deve desenvolver ao máximo a arte de citar sem usar aspas. Sua teoria está intimamente ligada a da montagem (2006, p. 500)

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Citações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passante a convicção (1987b, p. 61).

Buscando uma aproximação com a escrita benjaminiana, também utilizamos neste texto as citações como fragmentos coloridos de um caleidoscópio de idéias que foram se impondo, isoladas e heterogêneas, mas que ao se juntarem em novas configurações têm a pretensão de contar com a colaboração do leitor para revelarem, através do impacto da imagem que se forma no pensamento, a presença simultânea da beleza e da verdade. 8. Método é desvio, é caminho indireto A questão epistemológica que aqui foi tratada tanto pela relação entre a beleza e a verdade como pelo método da citação, se define pelo desvio. Isto significa, extrair as palavras e as idéias, do fluxo onde elas são habitualmente aceitas, transformando-as em outras tantas interrogações fundadoras. Método é caminho indireto, é desvio. (Benjamin, 1984). Walter Benjamin propõe o desvio como sendo metodologicamente um caminho privilegiado - se não o mais fértil - no contexto da produção do conhecimento, posto que guarda o segredo da infinidade dos caminhos a seguir. O autor utiliza-se da alegoria do tapete para falar da profundidade e da riqueza do pensamento quando este se coloca disponível ao inusitado: Sinal secreto. Transmite-se oralmente uma frase de Schuler. Todo conhecimento, disse ele, deve conter um mínimo de contra-senso, como os antigos padrões de tapete ou de frisos ornamentais, onde sempre se pode descobrir, nalgum ponto, um desvio insignificante de seu curso normal. Em outras palavras: o decisivo não é o prosseguimento de conhecimento em conhecimento, mas o salto que se dá em cada um deles. É a marca imperceptível da autenticidade que os distingue de todos os objetos em série fabricados segundo um padrão (1987, p. 264).

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No tapete os fios se entrecruzam com perfeição permitindo ao olho acompanhar o correto percurso das configurações. Tudo bem definido até que escapa um fio, rompe-se a precisão do fluxo e, naquele exato momento, o olhar pára atentamente e põe-se a observar com mais afinco. O fio solto provoca o olhar, desafia o observador

a construir uma nova

configuração. O segredo que esse desvio oculta é a promessa de um conhecimento que se preocupe em equacionar o sensível e a razão para problematizar com maior fecundidade a geometria da vida (Jobim e Souza; Ribes, 1998). No novo itinerário adotado por Benjamin, o ponto de partida é o sujeito, o desvio se dá na linguagem e conduz a uma re-definição dos paradigmas das ciências humanas; o ponto de chegada é a formulação de uma teoria do sujeito articulada a uma teoria crítica da cultura. Este caminho segue uma rota sinuosa e se arrisca pelos labirintos do pensamento, sem a menor garantia de estarmos sendo conduzidos a algum lugar, ou a algum “porto seguro”. Porém, é exatamente nisto que está a preciosidade maior deste método, pois a renúncia à segurança do previsível permite ao pensamento o permanente contato com a liberdade. Um pensamento em permanente contato com a liberdade é o que assume e torna indispensável o diálogo entre a verdade e o erro, a ciência e a ficção, o ser e o não-ser, o mesmo e o outro, o conteúdo e a forma, a paixão e a razão... Uma vez que se penetra em profundidade na visão de mundo que emerge da obra Benjamin não é mais possível retornar à superfície sem se ter operado uma transformação radical na compreensão do papel da linguagem e de suas múltiplas mediações na interpretação e constituição do sujeito, da cultura e da temporalidade.

... O que são desvios para os outros, são para mim os dados que determinam a minha rota. Construo os meus cálculos sobre os diferenciais de tempo – que para outros, perturbam as “grandes linhas da pesquisa (2006, p.499). 9. Epílogo Benjamin (1984) pensou cada idéia como um sol que se relaciona com outras idéias, assim como os sóis se relacionam entre si. A verdade surge como o equilíbrio tonal dessas essências atravessando diferentes épocas. Pensar, inspirada nesta metáfora, a obra de Benjamin, é buscar 15

encontrar o equilíbrio tonal entre as várias idéias geradas no conjunto de sua obra através dos tempos. A partir de cada pequeno fragmento retirado dos diferentes textos que compõem a obra deste autor na sua totalidade, emerge uma constelação de idéias novas, ou seja, um novo texto que, ao mesmo tempo, contém e amplia ainda mais a obra original. Para ser fiel ao pensamento de Benjamin é preciso saber renunciar à previsibilidade, transitar sem medo no interior do movimento incessante das idéias, usufruir da plasticidade do pensamento e acreditar na permanente insuficiência do conhecimento. Existe em Benjamin a crença na necessidade de resistir, sempre, a toda espécie de sistematização ou acabamento conceitual e classificatório, estratégia responsável por transformar a complexa realidade da condição humana em algo simplório e empobrecido. Definitivamente, a amplitude de questionamentos que foram sendo construídos nos diferentes textos, muitas vezes retalhados e díspares que compõem a obra deste autor, nos conduz a um redirecionamento do pensamento no interior das ciências humanas do ponto de vista metodológico. Este redirecionamento se realiza, por um lado, explicitando um rompimento com as abordagens positivistas no interior das ciências humanas, e, por outro, pela urgência de se pensar as questões contemporâneas a partir de formulações teóricas que considerem a linguagem como ponto de partida e desvio para se apreender a complexidade, cada dia maior, da experiência do homem num mundo em permanente transformação.

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__________________ A origem do drama barroco alemão. Brasiliense, São Paulo, 1984.

GAGNEBIN, JEANNE MARIE História e narração em Walter Benjamin. Editora Perspectiva, São Paulo, 1994. JOBIM E SOUZA, SOLANGE Infância e linguagem. Papirus, Campinas, SP, 1994, (10ª edição 2006). _________________________ Mikhail Bakhtin e Walter Benjamin: polifonia, alegoria e o conceito de verdade no discurso da ciência contemporânea. In: Brait, B. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Editora UNICAMP, Campinas, São Paulo, 1997. JOBIM E SOUZA, S.; PEREIRA, R. M. R. Infância, conhecimento e contemporaneidade. In: Kramer, S.; Leite, M. I.. (Org.). Infância e produção cultural. 1 ed. Campinas: Papirus, 1998, p. 25-42. LISPECTOR, CLARICE Um sopro de vida. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1978.

LÖWY, MICHEL Redenção e Utopia. Companhia das Letras, São Paulo, 1989.

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Texto publicado. In: Jobim e Souza. S. & Kramer, S. (orgs.) Política, cidade e educação. Itinerários de Walter

Benjamin, Contraponto / Editora PUC/Rio, Rio de Janeiro, 2009.

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