“Wanda e o Espelho” de David Mourão-Ferreira - Leitura

June 2, 2017 | Autor: Conceição Pereira | Categoria: Literatura Portuguesa
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Conceição Pereira, 2012, “’Wanda e o Espelho’ de David Mourão Ferreira: Leitura”, O Conto na Lusofonia, Antologia Crítica, Maria Isabel Rocheta e Margarida Braga Neves (coordenação), Lisboa: CLEPUL, pp. 77-83.

LEITURA

Conceição Pereira

É num contínuo jogo de espelhos,/entre as mulheres e si próprio,/ que melhor tem aprendido a conhecer-se. David Mourão-Ferreira

“Wanda e o Espelho” é o segundo dos quatro contos1 de As Quatro Estações de David Mourão Ferreira, editado, pela primeira vez, em 1980, pela Galeria de S. Mamede, com a reprodução de quatro guaches de Jorge Barradas. Depois de uma segunda edição da D. Quixote, em 1980, o volume tem sido editado pela Presença, em cuja capa da sexta edição figuram quatro desenhos de Francisco Simões2. Estes retratos a cores de rostos de mulheres remetem para as quatro estações do ano, assim como para os contos, no que diz respeito à sua localização temporal: depois do “aguaceiro de Primavera” em Nova Iorque, no primeiro conto, sucedem-se o calor insuportável de Lisboa, “os lentos progressos do Outono” e o “mês de Fevereiro”, nos outros contos. Também as personagens femininas centrais de cada uma das narrativas seguem a sequência das estações, se entendidas metaforicamente como fases da vida: Vera, a Primavera, Wanda, o Verão, Beatriz, o Outono e Erika, o Inverno. Se considerado singularmente, “Wanda e o Espelho”, que apenas indiretamente sabemos passar-se no Verão, através da referência ao calor, assim como

à

contraofensiva

falangista no Ebro, apresenta igualmente personagens

representativas das quatro estações, sendo Jonas, com dezassete anos, a Primavera, Wanda, o Verão exuberante, o pai de Jonas, o Outono e Rosário, a costureira que já foi corista, o Inverno da vida. “A Tesoura e o Espelho” foi o primeiro título atribuído ao conto (Somai 1997: 68)3 e corresponde a um capítulo solto, redigido em 1959, de um romance que David Mourão-

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Ferreira não chegou a escrever4. Na verdade, em termos estruturais, a abertura da história assemelha-se a um fragmento, na medida em que a ação se inicia de um modo abrupto que supõe acontecimentos anteriores: Jonas, ainda sem nome atribuído, e o pai, estão nos bastidores de um teatro de revista, ficando para depois a revelação das razões subjacentes à deslocação àquele local. Na verdade, a construção fragmentária é, de algum modo, resolvida, através de analepses que retomam os acontecimentos ocorridos imediatamente antes da chegada ao teatro, a saber, a viagem de comboio até Lisboa de um pai e de um filho adolescente, recém-saído do seminário, a chegada ao hotel, a ida ao alfaiate, o jantar num restaurante perto do Coliseu e a decisão do pai, aparentemente súbita, de ir ver uma revista ao Parque Mayer. A alteração de título para “Wanda e o espelho” dever-se-á a uma adaptação aos outros títulos dos contos constantes da coletânea, construídos sempre a partir do nome de uma personagem feminina ligado através de uma conjunção coordenativa copulativa, no presente caso, a um objeto, “o espelho” e, nos outros, a um acontecimento, “o acidente”, a uma outra personagem referida metaforicamente, “o cãozinho de trela”, e a uma parte do dia, “a madrugada”. Embora o título da história crie expectativas quanto ao protagonismo de Wanda, Jonas revelar-se-á a personagem central, assim como a que perspetiva a história. Por outras palavras, esta narrativa na terceira pessoa é focalizada no adolescente que acabou de sair do seminário, colocado numa situação algo embaraçosa pelo pai, no momento em que este decide comprovar a virilidade do filho. No decurso da narrativa, temos acesso apenas aos pensamentos de Jonas (a recordação da infância, a congeminação sobre o que os padres teriam dito ao pai), assim como às informações que este detém sobre o que o rodeia e sobre as outras personagens (a luz da gambiarra no início da história, o facto de não distinguir as coristas pelo nome, mas sim através de factos que observa, designando-as por “a do piparote” e “a do narizito”). Além disso, no discurso do narrador, o pai é apenas “o pai”, sem nome atribuído, visto, assim, em relação ao parentesco que o liga ao protagonista.5 O ponto de vista do narrador da história tem implicações no modo como algumas informações são transmitidas, pois apenas podemos ter acesso aos factos que estão ao alcance de Jonas, sendo algumas informações veiculadas indiretamente. Assim, podemos apenas supor que “a jovem mulher vestida de escuro” é a mãe de Jonas, que sabemos ter morrido através da referência a uma das namoradas do pai “aquela médica, viúva como

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ele”; quando à localização da ação no tempo, sabemos tratar-se do Verão de 1938, pela referência ao calor e à “contraofensiva nacionalista na frente do Ebro” durante a Guerra de Civil Espanhola. O entusiasmo do pai relativamente aos avanços dos falangistas permite perceber a sua posição política e a sua situação no regime vigente, corroborada pela informação acerca do “confortável gabinete - onde tão-pouco era assíduo - num organismo corporativo”. Aliás, o pai de Jonas é definitivamente um defensor dos três pilares do Estado Novo: a Pátria, como vimos, a que se adicionam Deus, na medida em que a Igreja constitui “um elemento indispensável ao serviço da Ordem. Da Ordem e da Tradição.”, assim como da Família, pois a mãe de Jonas era “uma santa”, sendo a confirmação da masculinidade do filho importante para dar continuidade à família. Manifestamente focalizado em Jonas, o conto divide-se em dez secções: a terceira, quinta, oitava, nona e décima sequências seguem a ordem cronológica iniciada na primeira, e narram, fundamentalmente, a situação de Jonas que, no camarim, vai observando Wanda através do espelho, assim como Wanda observa a sua “imagem refletida”. Todas os cortes na ordem cronológica da narrativa ocorrem pela introdução de analepses/reflexões focalizadas em Jonas, seguindo estas, igualmente, uma sequência temporal cronológica, localizando-se a primeira num passado remoto, enquanto as outras relatam os acontecimentos imediatamente anteriores à “ação central”, ou seja, de algum modo constituem parte integrante desta, estabelecendo, ainda que de um modo indireto, as razões que terão motivado a saída de Jonas do Seminário. Assim, a segunda secção, a primeira das analepses, constitui uma exceção, na medida em que diz respeito a uma recordação longínqua da infância de Jonas, desencadeada pela visão do espelho redondo do camarim das coristas que evoca “outro espelho igualmente redondo”. Esta primeira metamorfose do espelho corresponde a uma vaga memória onde pontua “uma jovem mulher vestida de escuro”, a mãe de Jonas a par da imagem fortemente presente de uma “praça cheia de sol” onde Jonas procura divisar o pai, mas não consegue6. Este tipo de evocação proustiana ocorrerá igualmente num momento mais avançado do conto através de uma segunda, e muito breve, metamorfose do espelho. Enquanto a primeira é explicitamente narrada, a segunda ocorre quando Wanda se penteia, de pé, em frente ao espelho, tal como a mulher vestida de escuro da recordação de infância. A evocação restringe-se, agora, à transformação do espelho que “cintilou como se fosse

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uma praça cheia de sol”. Assim, embora de um modo não explícito, a mãe é evocada, neste momento, através do gesto de Wanda que imediatamente remete para o mesmo tipo de visão da infância, onde o pai parece não poder ser enquadrado. Ocorre ainda uma terceira metamorfose do espelho “numa praça cheia de sol”, quando Jonas vê Wanda “reaparecer, envergando um longo vestido até aos pés, de gola subida, e exibindo umas vagas flores dispostas no cabelo”, mas esta remete sobretudo para a própria Wanda que, depois de parecer envelhecida, volta a rejuvenescer, tal como tinha acontecido no momento em que, ao pentear-se, podia ser equivalente em idade à “jovem mulher vestida de escuro”. De salientar que esta terceira “visão” da praça cheia de sol acontece depois de um momento mais íntimo de entendimento entre Jonas e Wanda, de que o pai é excluído, embora o tema da conversa seja precisamente o pai de Jonas. Elemento sempre ausente da sua vida, o pai é uma incógnita. Para Jonas “tudo era misterioso na existência do pai” e, por sua vez, o pai nada sabe sobre o que Jonas pensa ou sente, tendo interpretado mal as informações dos padres sobre o filho. Jonas interroga-se sobre “que raio de coisas teriam os padres contado ao pai”, e supõe tratar-se da sua relação com Ricardino, um seminarista indefeso que “precisava da sua proteção”. Nas subsequentes interrogações de Jonas a si próprio, coloca-se a questão da sua homossexualidade, embora esta nunca seja explicitada. Esta sugestão será depois corroborada pela atitude do pai que, através do subterfúgio da ida ao teatro de revista, e da visita ao camarim de Wanda, torna óbvia a sua pretensão de confirmar a orientação sexual do filho. A apreciação do corpo despido da corista seria uma última prova da sua heterossexualidade, pressentida pelo pai no facto de Jonas fumar e que procura afirmar ao iniciá-lo nos prazeres da mesa, não esquecendo a importância da aparência ao levá-lo ao alfaiate para comprar fatos e gravatas. Estes constituem os símbolos de masculinidade para o pai de Jonas, cujo objetivo é o de garantir que o filho, que já não será padre, é homem. Jonas, por seu lado, deixa-se conduzir pelo pai, sem perceber muito bem o que se passa e, só depois de Wanda o instruir relativamente ao que deve dizer ao pai, segredando-lhe ao ouvido “diz depois ao teu pai que sim: que viste tudo e que gostaste muito.”, o protagonista começa a compreender as regras do “jogo estranho” em que ele e Wanda estão envolvidos. Entre pai e filho verifica-se, assim, uma ausência total de comunicação que implica, necessariamente, falta de intimidade.

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Entre a segunda e a terceira transformação do espelho na “praça cheia de sol”, o espelho reduz-se às “grotescas proporções do monóculo do pai de Jonas” e Wanda, que já lhe tinha parecido “muito mais velha, ou sem idade”, e rejuvenescido depois do gesto de pentear o cabelo, parece-lhe “de novo sem idade”. Se a evocação da mãe tornara Wanda jovem, o estabelecimento de uma ligação entre o pai e Wanda sugere, de algum modo, o seu envelhecimento. O monóculo, que o pai substitui por uns óculos quando lê as notícias, funciona, à semelhança do espelho, como um objeto mediador entre Jonas e as pessoas com quem este se relaciona. Deste modo, nas relações afetivas com outras pessoas ocorre uma mediação através de um espelho (a “mãe” e Wanda) e de uma janela ou do monóculo (o pai). Ou seja, as relações que Jonas consegue estabelecer com os outros são indiretas, por isso carecem de autenticidade. No fim do conto, o pai fala com Jonas sem o monóculo, procurando uma aproximação real ao filho, que lhe dá as respostas que ele quer ouvir, e não diz o que realmente sente, mostrando a não consecução da tentativa de contacto direto e autêntico. Pelo contrário, a aproximação de Wanda cria um momento de grande intimidade, quando esta lhe fala ao ouvido, sem a mediação do espelho, e lhe mostra ter percebido que ele não deseja vê-la nua e lhe revela compreensão por isso, colocando um biombo entre ambos, deixando a Jonas a opção de a ver nua. A proximidade entre Wanda e Jonas é incentivada pelo pai, ao contrário da intimidade com Ricardino, condenada pelos padres e pelo pai, que quer tornar o filho num apreciador da beleza feminina. Também no que diz respeito a este aspeto, as experiências de Jonas são mediadas, não já através de objetos refletores, mas através da arte. Com efeito, a apreciação da beleza feminina é mediada através de representações artísticas, pois o seu conhecimento do feminino limitava-se, até ver o seio nu de Wanda, ao que tinha visto “nas estátuas e nas estampas”. Do mesmo modo, quando Wanda surge depois de mudar de roupa, é estabelecida uma analogia com duas figuras mitológicas, Flora e Pomona, que Jonas tinha visto "na gravura de uma velha seleta de latim". O espelho e o monóculo são dois dos objetos significativos presentes no conto, sendo a tesoura também suficientemente importante para ter figurado no primeiro título atribuído à narrativa. A tesoura surge apenas duas vezes ao longo da história: pela primeira vez nas mãos de Rosário, que deixa “em cima do assento, uma tesoura com os bicos abertos”; depois, quando Wanda, ao precipitar-se para cobrir a sua nudez, “feriu a polpa do

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polegar no bico de uma tesoura”. A tesoura poderá evocar a deusa Pomona da comparação estabelecida por Jonas com a gravura da seleta de Latim, pois um dos símbolos da deusa das árvores de fruto, dos jardins e dos pomares era a tesoura de podar. Significativamente, embora exiba “umas vagas flores dispostas no cabelo”, modo como a deusa Flora é habitualmente representada, Jonas liga a figura de Wanda mais a Pomona, provavelmente porque o seio nu da corista lhe pareceu “amolgado como um fruto caído no chão” 7. Assim, a exuberância de Wanda, que transforma novamente o espelho “numa praça cheia de sol”, encerra já uma inevitável decadência futura. Esta inevitabilidade é também evidente na ligação que a tesoura estabelece entre Rosário, a costureira que já foi corista, e Wanda, pois é Rosário quem deixa a tesoura onde depois a corista se fere. A tesoura considerada em si, como objeto de corte, que poderá simbolizar o corte do ciclo da vida, indica, não a morte imediata (pois não corta, só fere), mas aponta, sem sombra de dúvida, para a inexorabilidade do tempo e para a inevitabilidade do envelhecimento e da morte. A evidenciação das marcas da passagem do tempo remete para as quatro estações referidas no título do volume de contos e para a sua inelutável sucessão, tanto linearmente, como de um modo circular, já indiciado na epígrafe da coletânea e no facto de tanto o espelho, como o monóculo serem redondos. O ciclo das estações implica uma renovação, observável na sobreposição das imagens da “mãe” e de Wanda, assim como na substituição da corista que envelheceu pela que ainda pode fazer furor, mas a prazo, na medida em que a analogia do seio com um fruto demasiado maduro, indicia já uma morte anunciada, tanto num sentido literal, como metaforicamente no que diz respeito ao trabalho como corista. Esta linearidade das estações como fases da vida que, de algum modo, contraria a circularidade referida antes, é observável na sequência das personagens femininas dos quatro contos da coletânea, nas personagens de “Wanda e o Espelho” e, em especial, na personagem Wanda, não sendo deixada margem para dúvidas de que toda a Primavera conduz, definitivamente, ao Inverno.

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Embora o autor se refira a “Wanda e o espelho” como novela (Somai 1997: 68), dada a sua curta dimensão, parece-me correta a classificação como conto. Além disso, na página de rosto, após o título, está registada a designação “contos”. 2 Ferreira, David Mourão, 2001, As Quatro Estações, Lisboa: Presença (primeira edição 1980, Galeria S. Mamede). 3 Embora no corpo do texto nada seja referido sobre este título, na página 68 da entrevista de Graziana Somai a David Mourão-Ferreira está reproduzida uma capa com o título “A Tesoura e o Espelho”, cuja legenda

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indica tratar-se “do título do manuscrito de uma das versões de “Wanda e o Espelho”, datada de 1959-64” (Somai, Graziana, 1997, “Entrevista a David Mourão-Ferreira”, Colóquio Letras, 145/146, Julho Dezembro, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 9-80). 4 David Mourão Ferreira explica, no posfácio à segunda edição do volume de contos, ter convertido em conto o capítulo solto de um romance incompleto empreendido em 1959 (Mourão-Ferreira 2001: 85). Trata-se do romance não concluído que se teria intitulado Passagem do Purgatório (Martins Marques (Faria e Silva), (Maria) Teresa, 2011, Clave de Sol – Chave de Sombra, Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira, Tese de Doutoramento em Estudos de Literatura e Cultura, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, p. 278). 5 Apresento uma opinião distinta da veiculada por José Martins Garcia em “Mutação, Anamorfose”, que classifica o narrador deste conto como “exemplarmente heterodiegético (uma terceira pessoa omnisciente)” (posfácio a As Quatro Estações, pp. 67-81). 6 Em um Amor Feliz (Mourão-Ferreira, 1986, Lisboa: Presença), o protagonista, já adulto, recorda, não uma praça, mas um terraço cheio de sol e a brancura ofuscante de uma farda, que poderia ser a do pai, estando a imagem do pai igualmente dissolvida na luz intensa. 7 As metamorfoses de Wanda poderão igualmente estar relacionadas com a deusa Pomona, pois esta, que desprezava o amor dos outros deuses, acaba por ser conquistada por Vertumnus, após este ter assumido a forma de uma mulher velha e sábia e a ter aconselhado a casar com o deus.

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