WANIAM, PURUBORÁ e KUJUBIM/KUTRUYE -povo, cultura e tradição - (um relato experiencial

May 19, 2017 | Autor: Valdir Vegini | Categoria: Línguas Indígenas
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WANIAM, PURUBORÁ e KUJUBIM/KUTRUYE - povo, cultura e tradição (um relato experiencial) Valdir Vegini1 CONTEXTUALIZAÇÃO Em julho de 2013, recebi da Coordenação Regional da Fundação Nacional do Índio - Funai - de JI-PARANÁ - RO, o convite para participar de uma viagem de trabalho a se realizar entre os dias 10 a 23 de dezembro do mesmo ano, cabendo a mim a missão específica de realizar um levantamento linguístico - para fins de identificação e resgate - das línguas maternas dos povos Migueleno (falante da língua waniam), Puruborá (falantes da língua de mesmo nome) e Kujubim (outrora falantes da língua kujubim ou kutruye). Fizeram parte daquela viagem de trabalho, entre outros funcionários da Funai

de Ji-Paraná,

o Sr. Tennesson Gonçalves de Oliveira

(Coordenador Técnico) e Cleide Braz Bezerra Rocha de Albuquerque (Setor de Promoção e Cidadania). ITINERÁRIO e TRABALHO I. O povo Migueleno e a língua waniam De acordo com o Conselho Indigenista Missionário/CIMI (2015, p. 34-5), o povo indígena Migueleno, que se autodenomina "Waniam" (nome que também empregam para se referir a sua língua nativa) recebeu esse nome dos não-indígenas por terem sido encontrados às margens do rio São Miguel no início do século XX. Entre 1983-1985, foram expulsos pelo IBAMA de seu território tradicional, cuja aldeia principal era chamada de Limoeiro, sob o pretexto de demarcação da Reserva Biológica do Guaporé. Algumas famílias remanescente dessa diáspora vivem atualmente nos municípios de São Francisco do Guaporé, Distrito de Porto Murtinho, Guajará Mirim, Costa Marques e Ariquemes. 1. As primeiras observações No dia 11 de dezembro, a partir de Ji-Paraná, o motorista da FUNAI nos conduziu ao município de Seringueiras e de lá para Porto Murtinho, distrito de São Francisco do Guaporé, onde reside a maioria do povo Migueleno. Permanecemos nesse 1

Docente do Departamento de Línguas Vernáculas da Universidade Federal de Rondônia - Pós-Doutor em Narratologia/USP/SP; Dr. em Letras/Linguística/UFSC/SC.

local até o dia 15 do mesmo mês. No dia seguinte, durante a reunião realizada nas dependências da "Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental Iria dos Reis Freitas", informei aos presentes que, de acordo com estudos científicos realizados por linguistas de renome nacional e mesmo internacional, como por exemplo Aryon Rodrigues, professor da UnB, a língua do povo Migueleno se chama "waniam", pertence à família linguística txapakura e é aparentada a diversas línguas faladas no território rondoniense tais como tora, urupá, pakaa nova (oronao, oroeo, oroat, oromon, orowaran, orowaramxijein, orojowin, orokao', orowaji), kujubim/kutruye e o moré, esta última falada no lado boliviano.

Em seguida, tomei conhecimento da realidade

sociolinguística do povo Migueleno e resolvi,

em consonância com a equipe da

FUNAI, concentrar minhas atenções em atividades voltadas para o idioma dos Migueleno no intuito de contribuir decisivamente para a melhoria da situação por que passa a língua materna dessa etnia. De fato, da sondagem inicial, pude depreender que o professor da Escola da comunidade miguelena, Sr. Joilson Aranha Cardoso, tem por função, além do ensino da língua portuguesa, também o da língua waniam. Constatei, logo de início, que o professor trabalha apenas com dados lexicais e frasais muito limitados e raramente aborda aspectos gramaticais e textuais específicos do sistema linguístico-materno dos miguelenos. 1.2 A proposta de trabalho Em seguida, apresentei a minha proposta de trabalho assim constituída: a) organização de um dicionário "português/waniam" e "waniam/português" apresentado em acordo com o sistema alfabético da língua portuguesa; b) classificação de um acervo lexical da língua waniam em classes de palavras; c) organização de uma gramática da língua waniam nos moldes das gramáticas atuais; d) levantamento do acervo narrativo da memória coletiva ou individual, ancestral remanescente ou contemporâneo; e) elaboração ou reelaboração do histórico do povo Migueleno (tradições, costumes, saga), antes e depois do contato com a sociedade não-indígenas, onde e em que condições vivem no presente e quais os planos para um futuro próximo. Posteriormente, propus eu, todos esses dados serão reorganizados e apresentados, preferencialmente, em três idiomas (na língua waniam, na língua portuguesa e também na língua inglesa, já que esta última tem alcance internacional) a serem postados num site ou blog conforme decidirem as lideranças do povo Migueleno e/ou a Funai.

1. 3 Um sistema alfabético para o waniam? Na primeira reunião realizada para tratar da execução do meu projeto sociolinguístico estavam presentes, além do professor Joilson Aranha Cardoso, também a funcionária do Setor de Promoção e Cidadania da FUANI, Srª Cleide Braz Bezerra Rocha de Albuquerque, o lídes do povo Migueleno, Sr. Lucinaldo Cardoso (Tanadi) e a Srª Ambrozina, indígena miguelena, testemunha ocular do desalojamento de seu território tradicional (aldeia Limoeiro) ocorrido 1983 quando foi criada a Reserva Biológica do Guaporé (CIMI - Panewa especial, 2015, p. 34-5). Da conversa mantida com essas pessoas, soube que o povo migueleno não fala mais a sua língua materna e as aulas que tratam dessa língua baseiam-se apenas numa lista de mais de mil palavras (e alguns enunciados) transcrita foneticamente e apresentada sob forma de dicionário denominado "Léxico Português/Migueleno" organizado por Ribeiro (1998).2

Com

base nessa lista e nesses poucos enunciados, iniciei um trabalho preliminar para interpretar e/ou transformar os sinais fonético-fonológicos do dicionário em grafemas, adotando para isso os utilizados pelo sistema alfabético da língua portuguesa. Como essa é uma atividade que demanda um trabalho de longo prazo e que deve ser realizado, preferencialmente, pelo próprio professor da língua materna com monitoramento permanente de um linguista (foneticista e fonólogo), durante os poucos dias que permaneci na comunidade miguelena do distrito Porto Murtinho, no interior do município de São Francisco do Guaporé, mostrei ao professor Joilson e aos interessados ali presentes algumas correspondências dos sinais fonético-fonológicos empregados no dicionário com alguns grafemas do alfabeto da língua portuguesa. Assim, por exemplo, consta

no

dicionário

"Português/Migueleno"

palavras

contento

o

símbolo

fonético/fonológico /ʃ/, que no sistema alfabético do português correspondem aos grafemas "ch" ou "x"; o /j/ do dicionário migueleno, numa observação preliminar, parece corresponder ao grafema "i" (ou talvez o "y") do sistema alfabético do português. Decidir por um ou por outro grafema é uma questão que vai exigir extensos e intensos cotejamentos para que uma decisão equivocada não comprometa a futura escrita do idioma Waniam. Antes disso, é preciso, porém, decidir se determinados sinais empregados pela bolsista em seu trabalho de campo são de fato fonemas, ou seja, se são representações de sons distintivos/opositivos ou apenas alofones de um fonema, isto é, 2

Michela Araújo Ribeiro era, em 1998, bolsista e orientanda da professora Drª Maria Cristina Victorino de França, docente da Unir, na ocasião lotada no Departamento de Letras do campus de Guajarámirim/RO.

variantes de um mesmo fonema e, portanto, necessitam de apenas um sinal que os neutralize. Essa é uma conclusão crucial para a criação de um sistema alfabético, que deve ser regido pelo princípio universal da economia linguística, ou seja, sem duplicidades grafêmicas. Há ainda um outro agravante que precisa ser resolvido antes da proposição alfabética propriamente dita, ou seja, há sinais na transcrição fonética que, a par de sua pertinência fonética, sequer precisam ser grafados na escrita porque não contêm informação distintiva/opositiva na língua. Como se pode observar, esse é um trabalho que, para ser minimamente adequado, requer tempo e intensa observação, atividade que, com certeza, não pode ser realizada apenas durante alguns dias de estudo. Independentemente disso, contudo, os dados do dicionário "Português/Migueleno" disponíveis parecem ser suficientes para a elaboração de um sistema alfabético básico da língua Waniam e para assegurar às futuras gerações a preservação parcial, pelo menos, de um sistema alfabético e um razoável acervo lexical grafado nesse molde de escrita. Todavia, resgatar e vivificar a língua waniam, idioma materno dos Migueleno, com esses dados fornecidos pela bolsista da Unir, é - até onde meu conhecimento alcança - algo extremamente complexo ou mesmo um sonho impossível. 1. 4 Um sistema sintático para o waniam? Concomitantemente ao trabalho fonético-fonológico e grafêmico, iniciei também um trabalho preliminar para tentar abstrair dos poucos enunciados fornecidos pela bolsista da Unir, campus de Guajará-mirim, a sintaxe da língua waniam. Contudo, já de início me conscientizei de que seria um trabalho ainda mais complexo na medida em que sem o feedback de um falante nativo desse idioma, não haveria como saber, sequer, se os enunciados contidos no trabalho da bolsista eram aceitáveis na língua e se deles seria possível deduzir regras gerais que permitissem gerar novos enunciados minimamente plausíveis. De fato, tanto o líder da comunidade quanto a indígena, ambos presentes na reunião, não demonstraram proficiência linguística, seja lexical ou gramatical na língua Waniam. 1.5 Acervo da memória coletiva: cultura e tradição De acordo com o CIMI (2015, p. 35), as mulheres do povo Migueleno ainda conservam a prática tradicional de trabalhar com cestarias [...] e argila [...] e nas festas tradicionais os homens se enfeitam com cocares de penas e pinturas corporais.

Essa informação me estimulou a conversar com pessoas de mais idade para obter delas mais detalhes da cultura e da tradição nativas do povo Migueleno. Foi assim que, no penúltimo dia de minha permanência entre os Migueleno, Dª Ambrosina (hoje com 62 anos), testemunha ocular da diáspora da década de 80, relatou-me (em vídeo) fragmentos de sua memória entre os quais aspectos da tradição cultural de seu povo. A transcrição desse relato ainda está em curso e, oportunamente, será transformada num artigo científico em coautoria com a professora Ms. Rebecca Louize Vegini. Resumidamente, Dª Ambrosina me disse que, ante as ameaças do IBAMA, saiu da aldeia Limoeiro e foi morar em Guajará Mirim sem nada receber de indenização. Como era muito criança, lembra apenas vagamente de algumas tradições culturais de seu povo. Dia de Festa: ocorria em comemoração a uma grande caçada (de uma onça, por exemplo), ocasião em que seus parentes enfeitavam-se com riscos e círculos no corpo e dançavam ao redor de uma fogueira e da caça para enaltecer o caçador chamado então de "homem verdadeiro"; Alimentação: consistia praticamente de todos os pássaros e animais silvestres de suas matas, menos da anta, que para os Migueleno era considerada uma entidade sagrada porque dela se originaram; Moradia: nunca habitada por mais de duas luas consecutivas, mas que, passado esse período, para ela retornavam; Casa dos Homens: local onde os homens faziam a pajelança com chá de cipó; Vestimenta: confeccionada com casca de castanheira batida e lavada; Armas: feitas de pau de pupunha, duro como ferro, afiados pela fricção de uma das extremidades em uma pedra; Líderes da aldeia: o chefe era chamado de cacique e o pajé, de feiticeiro; Personagens das matas: Caipora, um homem pequenininho, que dava peia nos homens, que gritava muito para proteger os porcos do mato, que os escondia em buracos para tratar dos ferimentos provocados pelos caçadores; Curupira e/ou Saci: ente de uma perna só, que raptava mulheres durante o ciclo menstrual; Homem da Mata: monstro amedrontador, de um olho só; Mapinguari (narrativa que ouviu de um índio Kabixi de nome Firmino): monstro com olhos e bocas normais e dois pés, comedor de gente, que as colocava debaixo do braço e saía rasgando suas carnes; Mãe d'água: encantava crianças e as transformava em cobra; Boto: levava as mulheres menstruadas ou depois do parto para dentro do rio; Cobra da lagoa: morava numa lagoa, na localidade de Castanheira, raptou uma índia e a transformou num pé de buriti;

II. O povo Puruborá e sua língua do mesmo nome No dia 16 de dezembro, o pessoal da FUNAI me levou para a aldeia Aperoy, no município de Seringueiras, onde reside atualmente parte do povo Puruborá, povo sem terra, desaldeado, cuja terra tradicional localiza-se na região do rio Manoel Correia, afluente do rio São Miguel (CIMI - Panewa especial, 2015, p. 117-8). Nessa localidade permaneci até o dia 19 de dezembro. Paralelamente aos trabalhos desenvolvidos pelos funcionários da FUNAI, na primeira reunião que realizei nas dependências da escola Jwara Puruborá, instalada na aldeia Aperoy e sob responsabilidade de Srª Hozana Puruborá, indígena dessa etnia, utilizei da mesma metodologia empregada com o povo Migueleno. Informei, pois, inicialmente que estudos científicos realizados por linguistas de renome nacional e internacional, como por exemplo, Aryon Rodrigues, professor da UnB, a língua puruborá pertence ao tronco linguístico macro-tupi, informação que já era do conhecimento dos que estavam presentes à reunião. 2.1 Proposta de trabalho Em seguida, apresentei a mesma proposta de trabalho

sugerida ao povo

Migueleno (cf. 1.2). 2.2 As primeiras observações A primeira pessoa com quem conversei mais longamente foi o professor Mário de Oliveira Neto (conhecido como Gi), docente de língua materna nessa escola. Essa entrevista foi acompanhada pela funcionária da Funai, Srª Cleide Bezerra, e pelo Sr. Osmar Marçoli, um dos representantes do CIMI que acompanhava os trabalhos da Funai e filmava a reunião. Do professor Mário,

soube que o povo Puruborá, como o

Migueleno, não fala mais a sua língua materna. Todavia, graças ao trabalho que vem realizando a linguista e pesquisadora do Museu Goeldi, professora Ana Vilacy Galúcio (GALÚCIO, 2005), observa-se um grande esforço dos Puruborá em aprender a partir dos registros feitos por essa professora. 2.3 Um sistema alfabético para o puruborá? Dada a complexidade do trabalho e a exiguidade do tempo em que permanecemos na aldeia, só foi possível apresentar um sistema alfabético extremamente parcial a partir do acervo linguístico apresentado pelo professor Mário. Constatei problemas para apresentar uma proposta prática para a grafia das vogais orais e nasais

nesse idioma, por exemplo. Como o teclado dos computadores disponíveis no mercado brasileiro permitem sobrepor o diacrítico til [~] somente no grafema "a" e "o", fica complicado escrever "e", "i", "u" e "y" com esse sinal gráfico, que são constituintes do sistema fonológico da língua puruborá. Manter a ortografia que está sendo utilizada pela escola "~e", "~i", "~u" e "~y", além de ser estranha para um aluno alfabetiza(n)do na língua portuguesa, poderá, futuramente, dificultar e prejudicar o registro digital de produções textuais em livros, revistas e na própria web. Para resolver isso, a solução seria utilizar as fontes fornecidas pelos SIL ou programa similar ou ainda acessar a fonte "texto normal" + subconjunto Extensões IPA" no word do PC. Na prática, isso não funcionaria adequadamente uma vez que os alunos da escola "Jwara Puruborá" precisariam ter acesso permanente ao mundo virtual ou acessar continuamente o "texto normal/subconjunto extensões IPA" no word, tanto na escola como em casa. Talvez a configuração do teclado do PC fosse uma solução mais viável, mas, neste caso, num PC fosse diferente o problema ressurgia. Como solução paliativa, sugeri as vogais "a" e "o" permanecam com seus respectivos diacríticos (a, ã, â, o, õ, ô) enquanto "e" (e, ê), "i" (i, î), "u" (u, û) e o "y" nasais fossem grafadas, respectivamente, em, im, um, ym conforme mostram as colunas 1, 2 e 3 da figura abaixo (grafia das vogais nasais que estão sendo empregadas nas aulas da língua materna puruborá; grafia das vogais com seus devidos diacríticos sobrepostos pelo uso das fontes "SILDoulosIPA2005", mas que se desfiguram quando transferidos para um PC desprovido dessas fontes e são, portanto inadequados para desenhar grafemas; grafia das vogais nasais para "e"  em; para "i"  im; para "u"  um; e "y"  ym). Vogais

Vogais

Vogais

Orais

Nasais

Fechadas



a

ã

â

e

~e 

← (e) 

em

ê

i

~i 

← (i) 

im

î

õ

ô



o u

~u 

← (u) 

um

û

y

~y 

← (y) 

ym

----------

Além desses detalhes, muitos outros precisam ainda serem definidos para que um sistema alfabético funcional possa estar à disposição do professor e dos alunos dessa etnia e se tornarem uma ferramenta prática para o registro por escrito de suas tarefas e mais adiante possa também garantir que suas produções acadêmicas e literárias sejam preservadas e acessíveis às futuras gerações dessa etnia e à sociedade brasileira de modo geral . 2.4 Acervo da memória coletiva: cultura e tradição Segundo o CIMI - Panewa Especial (2015, p. 118), na cultura Puruborá, o pajé utiliza o pó de sementes de angico misturado com fumo, inalado com a ajuda de um parceiro que assopra numa taboca curta. De acordo com essa mesma fonte, O artesanato é semelhante aos povos que habitam a Bacia do Guaporé: confecção de marico (bolsa de fibras de tucumã), redes de algodão e de tucumã, colares de tucumã e as famílias que residem na terra comprada por dona Emília Puruborá [líder indígena falecida em 2013] cultivam inhame para subsistência e comercializam o excedente, bem como outros produtos: milho, batata-doce, macaxeira, café, jerimum. Realizam caça e pesca, embora com menos frequência devido ao grande desmatamento do seu entorno. (CIMI - Panewa Especial, 2015, p. 118). Os jovens estão recuperando seus mitos [narrativas] e pinturas. A língua materna, através de um professor do povo, está sendo revitalizada a partir do levantamento linguístico, sendo repassada aos jovens e adultos no espaço da Educação Escolar Indígena. A importância dos jovens neste processo de revitalização reafirma a identidade e a história cultural do povo. (CIMI, Panewa Especial, 2015, p. 118), A realidade que presenciei nos dias em que passei na aldeia Aperoy não autorizam tanto otimismo, pelo menos em termos linguísticos. O acervo de 500 palavras carece de regras gramaticais (sintaxe), que permitiria, em tese, transformálo em língua viva. No que tange aos aspectos culturais não linguísticos, de fato, há um grande esforço para recuperá-los e revitalizá-los sob a liderança da atual cacique Hosana Castro de Oliveira Montanha e sua filha. Dado que foram muito poucos os dias que passei na aldeia Aperoy, às margens da BR-429, e sabendo que Paulo Aporeti Puruborá, irmão da falecida Emília Puruborá, ainda vivia, era o mais idoso, continha a memória mais fiel do passado (CIMI, 2015, p. 118) e residia em Costa Marques, para onde eu deveria ir para trabalhar com os Kujubim, achei melhor ouvir dele próprio outros aspectos culturais que certamente ele saberia me contar. E foi o que aconteceu. A transcrição completa desse relato ainda está em curso e, oportunamente, será

transformada num artigo científico em coautoria com a professora Ms. Rebecca Louize Vegini, que é quem está me assessorando. Resumidamente, a narrativa de Paulo Aperoy contém a origem do povo e da língua dos Puruborá, as personagens pai da mata e o caipora. Origem: o povo Puruborá surgiu da miscigenação entre uma onça, transformada em homem, e uma mulher, ou seja, de uma relação entre "puru" (onça) + "borá" (mulher da tribo) = o povo "puruborá"; Língua: a língua dos Puruborá surgiu quando a onça (puru), transformada em homem, pegou a língua dos morcegos e a levou para os "borá", para os "Puruborá"; Pai da mata: também conhecido como caipora, é uma sombra de grito assombroso e defensor dos bichos do mato; Mapinguari: segundo Paulo Aporeti, esse personagem não existe, é lenda. III. O povo Kujubim e a língua kujubim/kutruye No dia 19 de dezembro, o pessoal da FUNAI me levou da aldeia Aperoy, no município de Seringueiras, onde reside atualmente parte do povo Puruborá, para Costa Marques", no Sudoeste do Estado de Rondônia onde iríamos nos reunir com alguns representantes do povo Kujubim. Autodenominados de Cau'tajo (nome de um líder tradicional), esse grupo étnico mora nas Terras Indígenas (T.I.) Guaporé e Sagarana e algumas famílias residem em Forte Príncipe da Beira, Costa Marques, Seringueiras, Guajará-mirim, Candeias do Jamari e Porto Velho (CIMI - Panewa especial, 2015, p. 32). Nessa localidade permaneci até o dia 19 de dezembro. 3.1 Proposta de trabalho Paralelamente aos trabalhos desenvolvidos pelos funcionários da FUNAI, na primeira reunião que realizei nas dependências do salão paroquial da matriz da Igreja Católica de Costa Marques, utilizei da mesma metodologia empregada com o povo Migueleno e Puruborá (cf. 1.2 e 2.2). 3.2 Primeiras observações Em seguida, concentrei minhas atenções em atividades voltadas para o idioma dos Kujubim no intuito de contribuir decisivamente para a melhoria da situação por que passa a língua materna dessa etnia. Informei, inicialmente que estudos científicos realizados por linguistas de renome nacional e internacional, como por exemplo, Aryon Rodrigues, professor da UnB, a língua dos Kujubim pertence à família linguística txapakura, isolada, informação que já era do conhecimento de muitos dos que estavam

presentes à reunião. Esse seu idioma, segundo alguns pesquisadores, mantém aproximidade linguística com as línguas dos Moré fazendo acreditar que num passado recente os Kujubim e os Moré constituíam um mesmo povo. (CIMI - Panewa especial, 2015, p. 33) Da sondagem inicial, pude depreender que a língua materna desse povo não é mais falada, pelo menos por nenhum daqueles que estavam presentes à reunião. José Amaral, apresentou uma lista de menos de 20 palavras coletadas em novembro de 1998 de dona Francisca, matriarca do povo, falecida em 2012. (CIMI - Panewa especial, 2015, p. 33). Disse-me também que provavelmente sua parente étnica Marli, que trabalha em Guajará-mirim e mora na Baía das Onças, Rosa e Rita, que moram em Costa Marques e Lúcio, que reside em Ouro Preto, tenham ainda algum conhecimento da língua. Meses mais tarde, infelizmente, essa informação não foi confirmada. Diante dessa situação e enquanto não se encontrar alguém que tenha fluência na língua materna desse povo, a recuperação linguística desse idioma permanece inviável. 3.3 Alteração de denominação Durante minha estada em Costa Marques participei como ouvinte das assembleias promovidas pela FUNAI e numa delas presenciei, durante a reunião do dia 20 de dezembro de 2013, o desejo da maioria dos indígenas presentes de alterar a autodenominação de Cau’tajo (nome de um líder tradicional) para Kutruye, nome, segundo Francimar M. da Silva Cujubim, conhecida como Mocinha, de um pássaro que habita(va) as terras ancestrais de seu povo (conforme lhe contou sua avó Francisca, mãe de Vitor, Manduca, Doca, Leno e Inácia). De acordo com Mocinha, presentemente ainda é possível encontrá-los nas terras, que agora desejam recuperar através da Associação criada nessa data e da assessoria da FUNAI.

Externamente, o nome

Kujubim, palavra de origem tupi para designar o pássaro Kutruye, largamente utilizado pelos não-indígenas para designar o povo Kutruye/Kujubim, será mantido já que registros documentais oficiais assim se referem a essa etnia como, por exemplos, o site da socioambiental ( e o programa “bolsa família” do Governo Federal. 3.4 Acervo da memória coletiva: cultura e tradição De acordo com o CIMI (2015, p. 33), o depoimento de dona Francisca realizado em 1998 é a memória da história cultural do povo Kujubim, e de forma fragmentada estão ainda presentes em seus filhos e netos. Durante a reunião que realizei nas

dependências do salão paroquial da igreja matriz de Costa Marques, obtive, de alguns dos remanescentes do povo Kujubim, relatos contendo aspectos da cultura de seus antepassados. A transcrição completa já está em curso e, oportunamente, será transformada num ou mais artigos científicos em coautoria com a professora Ms. Rebecca Louize Vegini. Resumidamente, eram estes os seus costumes tradicionais: Rotina diária (levantar cedo, tomar banho no igarapé e pintar-se de urucum); Pintura no rosto (para festas [um traço vermelho de urucum e outro preto de jenipapo], para guerra [somente um traço vermelho], para representar o maracajá [dois traços no canto da boca]); Pintura nos braços, peito e pernas (conforme este desenho [ > < > < ] ); Caça/Pesca (busca de animais, pássaros ou peixes para obter mistura para comer com beiju); Fogo (proveniente de lasca e galho de urucum transformados em forma de caneta para serem friccionados entre as mãos até obter brasa que caía num feixe de galhos secos e acendia); Roça (plantação de cará, mandioca, batata-doce etc.); Grande festa (resultado de longos dias de pesca e caça onde não faltava frutas como mumuré, açaí, tucumã, patuá, chichada, moqueca de goma, de najá, de patuá, de aripurê etc.); Crenças (acreditam num paraíso post-mortem e subterrâneo, abaixo dos rios; acreditavam que, se uma espécie de cigarro aceso fosse colocado em cima de uma folha na floresta, ele (a fumaça dele?) indicaria o caminho de volta para a maloca; acreditam ainda que existe uma cidade no fundo do rio Guaporé); Personagens que habitavam suas matas (Pai [ou mãe] da mata, espírito protetor da floresta, que surrava ou matava animais ou homens que a maltratassem. Mãe d'água, mulher muito bonita, que habitava o fundo da baía das laranjeiras no rio Guaporé; Curupira e/ou Caapora, personagem baixinha, sempre com um enorme chapéu na cabeça, que tapava todo o seu rosto, todo social, camisa xadrez, cigarro no lado do corpo; Mapinguari, personagem muito provavelmente importado das narrativas dos seringueiros, era bípede e enorme, peludo nos braços, de cabelos compridos, com um só olho na testa, boca dentada e horizontal, como a dos homens, mas localizada num umbigo sem de pelos, bicho faminto, caçador tanto de dia como de noite, mãos e garras enormes, de berros tão amedrontadores e insuportáveis que faziam os indígenas fugirem apavorados, motivo pelo qual ninguém nunca pode vê-lo). Uma das informantes fez questão ainda de lembrar que a diáspora Kujubim foi motivada pelo seringalista Melcliades Santos. A mando dele, os seringueiros invadiram suas terras e os expulsaram em busca do chamado ouro branco, o látex. Segundo o CIMI (2015, p. 32), a invasão ocorreu de forma violenta no ano de 1940, quando os Kujubim ainda habitavam o baixo rio Cautário. Segundo a informante, os seringueiros

ameaçavam matar os indígenas para torná-los seus escravos. Além disso, davam nomes não-indígenas às crianças para tirar-lhes a identidade indígena e, consequentemente, seus direitos e cultura. REFERÊNCIAS RIBEIRO, Michela Araújo. Léxico Português/Migueleno. Guajará-mirim/RO: Unir, 1998. Trabalho de PIBIC. GALÚCIO, Ana Vilacy. Pesquisa e investigação da língua Puruborá. Belém: Museu Goeldi, 2005. CIMI - Conselho Indigenista Missionário - Regional Rondônia - Panewa Especial. Porto Velho/RO, 2015.

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