Web: uma narrativa social

May 26, 2017 | Autor: Carolina Vigna | Categoria: Web 2.0, Narrative, Identity (Culture), Belonging
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WEB: UMA NARRATIVA SOCIAL

Carolina Vigna (Mackenzie) – [email protected][1]

Resumo: Este trabalho propõe-se a relacionar narrativa, comunidade,
internet, pertencimento e identidade. A metodologia utilizada foi de
especulação teórica com base bibliográfica. Os referenciais teóricos mais
importantes foram Freud e Flusser, através da intermediação e análise de
Gustavo Bernardo. Pierre Levy também influenciou a pesquisa de maneira
significativa.

Palavras-chave: Congresso; Novas Narrativas; Internet.



Abstract: This work is aimed at establishing a relationship between
narrative, community, Internet, belonging and identity. The employed
methodology was theoretical speculation based on bibliography. The major
theoretical references were Freud and Flusser, with intermediation and
analysis of Gustavo Bernardo. Pierre Levy also influenced the study in a
significant manner.

Keywords: Congress; New Narratives; Internet.




1. Introdução

Muito se fala sobre a internet como um meio onde a velocidade e
volatilidade dos relacionamentos prejudicam a construção da identidade e da
narrativa. Entretanto, o que vemos é precisamente o oposto: construções de
narrativas complexas e heterogêneas.

Estas narrativas online, por sua vez, dependem da comunidade para serem
aceitas, compreendidas e percebidas. Toda a noção de identidade depende
desta narrativa, construída necessariamente a partir da relação com o outro
e seu entorno.

A questão é que, na internet, este entorno é volátil, mas não por isso
menos importante.

A interdependência entre narrativa, comunidade, pertencimento e
identidade é potencializada em ambientes ágeis. Ainda não inventamos nada
mais ágil que a internet.




2. A narrativa como pertencimento

2.1. Invenções

As invenções do homem, grandes ou pequenas, sempre nascem de um desejo
ou de uma necessidade. Não é diferente com a informática e tudo que gira em
torno dela. Inventamos por necessidade, desejo ou comodismo. Inventamos à
nossa imagem e semelhança. A web é antropocêntrica por natureza. A web é
rica e heterogênea, portanto. Nada é feito por humanos sem ser um reflexo
de nós mesmos.

A tese não é muito nova. Sempre se supôs que os
instrumentos são modelos de pensamento. O homem os
inventa, tendo por modelo seu próprio corpo. Esquece-se
depois do modelo, "aliena-se", e vai tomar o instrumento
como modelo do mundo, de si próprio e da sociedade.
Exemplo clássico dessa alienação é o século XVIII. O homem
inventou as máquinas, tendo por modelo seu próprio corpo,
depois tomou as máquinas como modelo do mundo, de si
próprio e da sociedade. Mecanicismo. No século XVIII,
portanto, uma filosofia da máquina teria sido a crítica de
toda ciência, toda política, toda psicologia, toda arte.
Atualmente, uma filosofia da fotografia deve ser outro
tanto. Crítica do funcionalismo. (FLUSSER, 2002, p. 73)

A necessidade da web não é técnica, mas sim humana, e humanizadora. A
web retira automaticamente o pré judice, onde a cor da pele, a marca da
roupa, a localização geográfica e às vezes até mesmo o idioma não importam
mais. Isso faz da web o ambiente mais humano que nós já conseguimos criar.
Talvez, ao final, não seja tecnologia que seduz e sim este aspecto humano
que tanto fascina a todos. Independente se foi ou não este aspecto humano a
necessidade motriz de sua criação, é ele que molda da internet.

É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia
quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um
criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador
só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa
necessidade — que é uma coisa bastante complexa, caso ela
exista — faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei
do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar
conceitos, e não a ocupar-se em refletir, mesmo sobre o
cinema. Eu digo que faço filosofia, ou seja, que tento
inventar conceitos. (DELEUZE, 199, p. 4)




2.2. Relacionamentos

Qualquer ferramenta online tem relacionamento como pedra fundamental.
Não há possibilidade de compreensão da web e seus ambientes sem colocar o
ser humano no centro. O que muda, essencialmente, é a quebra absoluta da
relação de poder: você e o outro estão no mesmo nível hierárquico e ele
espera ser tratado como igual. O leitor não é mais apenas um receptor e o
discurso pode ser complementado a qualquer momento, por qualquer um.

A "sociedade" é cada vez mais vista e tratada como uma
"rede" em vez de uma "estrutura" (para não falar em uma
"totalidade sólida"): ela é percebida e encarada como uma
matriz de conexões e desconexões aleatórias e de um volume
essencialmente infinito de permutações possíveis. (BAUMAN,
2007, p. 9)

Paradoxalmente, quanto mais pulverizadas, distribuídas,
descentralizadas e espalhadas estiverem as suas informações online, mais o
seu público irá perceber o assunto. Esta pulverização que pode enlouquecer
alguém, ainda não habituado com a tecnologia é, na verdade, percebida como
um símbolo de importância. O internauta presta mais atenção àquilo que
chegou a ele de várias fontes diferentes porque entende como sendo de uma
relevância que cresce com as suas muitas vozes. A narrativa da web se
constrói a partir da repetição e de sua valoração e, consequentemente, de
seu agrupamento. O agrupamento da informação é também, como o humano,
social. Este agrupamento é volátil e depende do contexto.

O jogo da comunicação consiste em, através de mensagens,
precisar, ajustar, transformar o contexto compartilhado
pelos parceiros. Ao dizer que o sentido de uma mensagem é
uma "função" do contexto, não se define nada, já que o
contexto, longe de ser um dado estável, é algo que está em
jogo, um objeto perpetuamente reconstruído e negociado.
Palavras, frases, letras, sinais ou caretas interpretam,
cada um à sua maneira, a rede das mensagens anteriores e
tentam influir sobre o significado das mensagens futuras.

O sentido emerge e se constrói no contexto, é sempre
local, datado, transitório. A cada instante, um novo
comentário, uma nova interpretação, um novo
desenvolvimento podem modificar o sentido que havíamos
dado a uma proposição (por exemplo) quando ela foi
emitida...

Se estas idéias são de alguma forma válidas, as
modelizações sistêmicas e cibernéticas da comunicação em
uma organização são no mínimo insuficientes. Elas
consistem quase sempre em designar um certo número de
agentes de emissão e recepção, e depois em traçar o
percurso de fluxos informacionais, com tantos anéis de
retroação quanto se desejar. (LEVY, 1993, p. 22)

2.3. Pertencimento

Na Grécia Antiga, assim como na internet, a nacionalidade era uma
essência, um pertencimento espiritual e cultural e não algo limitado por
fronteiras: se você fala grego, segue a religião grega, pensa como um
grego, você é grego, não importa onde viva ou tenha nascido. As artes eram
consideradas de suma importância porque perpetuavam o registro da cultura.
As conquistas eram não apenas militares mas também culturais. Estes mesmos
conceitos são reproduzidos na internet que, assim como a Grécia Antiga, não
tem a noção do Estado-nação. O modo de vida do internauta o qualifica.
Aqueles que não são internautas ("não falam grego") são considerados pelo
grupo como inferiores culturalmente ("bárbaros"). O conceito de clássico é
aquilo que é reproduzido. E é o domínio da linguagem – da narrativa – que
determina o pertencimento.

O hipertexto retoma e transforma antigas interfaces da
escrita. A noção de interface, na verdade, não deve ser
limitada às técnicas de comunicação contemporâneas. A
impressão, por exemplo, à primeira vista é sem dúvida um
operador quantitativo, pois multiplica as cópias. Mas
representa também a invenção, em algumas décadas, de uma
interface padronizada extremamente original: página de
título, cabeçalhos, numeração regular, sumários, notas,
referências cruzadas. (...) Estamos hoje tão habituados
com esta interface que nem notamos mais que existe. Mas no
momento em que foi inventada, possibilitou uma relação com
o texto e com a escrita totalmente diferente da que fora
estabelecida com o manuscrito: a possibilidade de exame
rápido do conteúdo, de acesso não linear e seletivo ao
texto, de segmentação do saber em módulos, de conexões
múltiplas a uma infinidade de outros livros graças às
notas de pé de página e às bibliografias. É talvez em
pequenos dispositivos "materiais" ou organizacionais, em
determinados modos de dobrar ou enrolar os registros que
estão baseadas a grande maioria das mutações do "saber".
(LEVY, 1993, p. 34)

O agrupamento social determina não apenas o pertencimento ao grupo, mas
também a criação de uma narrativa na web como produto que produz
possibilidades identitárias.

É importante ressaltar a ruptura das fronteiras geopolíticas. Não
apenas em termos de pertencimento mas também de localização física: um
internauta pode se identificar com um grupo que esteja em outro local, e,
mesmo assim, interagir em seu idioma e se comunicar com seus contatos da
mesma maneira que faria se estivesse fisicamente próximo deste grupo.

3. A narrativa como identidade

A narrativa é a identidade, a identidade é a narrativa. O comportamento
do internauta é de grupo e o ambiente virtual o define, inclusive no que
tange à identidade. Múltiplas facetas da sua identidade são mostradas e
formadas de acordo com o ambiente. O mesmo internauta se comporta de uma
determinada maneira em uma comunidade e não em outra. O comportamento é
formulado em uma combinação de ação e reação e é, necessariamente, moldado
por esta comunidade.

O eu não está na origem, ele é resultado de um processo de
construção que se opera na relação com o outro – o
próximo. Para o recém-nascido ainda não há distinção entre
o eu e o mundo externo. O eu só é contrastado pela
primeira vez por um objeto – tomado com "exterioridade" –
em função da ação específica, mediada pela linguagem,[2]
através da qual o próximo veicula satisfação aos estados
de tensão gerados pelas urgências da vida. Mas o maior
incentivo, tanto para que o eu se diferencie quanto para o
reconhecimento de um exterior, é certamente proporcionado
pelas freqüentes e inevitáveis sensações de sofrimento e
desprazer. É pela via da não relação entre o eu e o objeto
da satisfação, pelo viés portanto do desprazer, que o
próximo surge como dessemelhante, estranho.
Conseqüentemente, a introdução da relação de objeto se
faz, primariamente, sob a marca do ódio e do
estranhamento, e se estrutura sobre a falta do objeto de
satisfação que, perdido desde sempre, só existirá como
nostalgia. (FALBO, 2005, pp. 150-151)

Quando a regra daquela comunidade ou contexto, da relação com o outro,
é quebrada, o indivíduo perde a sua identidade de pertencimento, de grupo.
E, consequentemente, deixa de fazer parte daquela comunidade em específico.
Então, sua identidade na comunidade é moldada pela própria comunidade. É,
novamente, o "falar grego é ser grego" de antigamente. Nós somos a nossa
língua, nós somos a nossa narrativa.

A língua espelha o comportamento das coisas entre si, o
qual, por sua vez, espelha a língua, como dois espelhos
pendurados em paredes opostas num quarto vazio. (BERNARDO,
2002, p. 151)

A participação nas comunidades virtuais, por sua vez, acontece através
do discurso, da narrativa. Podemos, então, afirmar que a identidade e a
narrativa são interdependentes e, neste caso, uma só.

A alteridade existe, consequentemente, também por pertencimento. O
outro é reconhecido por ser um espelho.

Para que a compreensão do outro seja possível, é preciso
que eu me reconheça um outro para o outro, como explica
mestre Caeiro: "Ser real é haver outras coisas reais,
porque não se pode ser real sozinho; e como ser real é ser
uma coisa que não é essas outras coisas, é ser diferente
delas".[3] Se não se pode ser real sozinho, a alternativa
da imaginação é o fingimento que supõe o outrar-se, ou
seja, o ser-se outrem.[4] Ora, a única maneira de uma
coisa ser outra é a metáfora – o ser-como ou o quase-ser
–, o que significa ou que o homem tem um destino
metafórico, ou que ele mesmo já é uma metáfora
existencial.[5] (BERNARDO, 2002, p. 83)

O que torna difícil a medida destas relações é o fato de que são
absolutamente circunstanciais, quase voláteis. Estas comunidades não são
necessariamente sistemas conhecidos como tal, como por exemplo o Facebook,
Twitter, etc. Essas comunidades são também microcomunidades formadas em
determinadas – e passageiras – circunstâncias, como por exemplo um protesto
organizado online ou um evento particular qualquer, ou mesmo uma piada, um
meme, etc.

Surge então o conceito de uma informação viral, ou seja, que se
reproduz além de uma intenção ou controle, que se reproduz de forma
autônoma, espontânea. O fenômeno de dissipação destes conteúdos é, às
vezes, batizado de "meme", em uma analogia ao conceito criado pelo zoólogo
Richard Dawkins para explicar a disseminação de pensamentos, ideias e
produtos culturais. Segundo Dawkins, algumas informações são transmitidas
da mesma forma que os genes, replicando-se automaticamente e tornando-se
parte da cultura universal.

A internet é o veículo ideal para a transmissão desses memes. E, com o
advento de sites que permitem a criação e a divulgação de conteúdo
produzido pelos próprios internautas, os memes ganharam um novo aspecto: a
possibilidade de estas unidades de informação não apenas serem
retransmitidas, mas ganharem novas leituras.

Ao precisar do conhecimento (referências, contexto, etc.) prévio,
dependente da comunidade, para o entendimento do meme, este fenômeno é um
ótimo exemplo da volatilidade deste pertencimento. Então, se o Self é o
resultado do processo de construção que se opera na relação com o outro e
através da linguagem e, se o pertencimento acontece no momento em que você
se reconhece no outro, a volatilidade do pertencimento está na linguagem. A
interação com o outro faz a internet de linguagem e a linguagem de
metalinguagem. A própria velocidade da internet é quem dá a volatilidade
das relações e correlações estabelecidas.

A identidade depende, não apenas do grupo/comunidade, mas da
circunstância.

Eu sou eu e minhas circunstâncias, disse Ortega y Gasset.
Formulando de outra maneira: como não escolho as minhas
circunstâncias, preciso escolhê-las cotidianamente. Lembra-
se, assim, o mais antigo imperativo: ser o que se é.
Lembra-se, ainda, a versão nietzschiana desse imperativo:
foi assim?; assim eu o quis! Ao invés de negar, afirmar o
que acontece, para tornar a própria vida afirmativa.
(BERNARDO, 2002, p. 46)

O conceito não é novo. O círculo hermenêutico já relaciona o
discurso/narrativa com a identidade. O conceito não é novo porque somos os
mesmos. A internet não pertence a uma nova espécie animal, continua sendo
feita por humanos, para humanos.

Ambos, Heidegger e Flusser, insistirão que a significação
não pode esgotar a experiência. A significação faz da
experiência o que ela é, mas ao mesmo tempo produz um
excesso de sentido. O que não pode ser dito e ao mesmo
tempo sobra forma o círculo hermenêutico: deve-se conhecer
o homem para compreender o seu discurso, mas só a partir
do discurso é que se pode conhecê-lo. Anthony Kerby
exemplifica: o sentido de uma palavra é determinado pela
sentença da qual ela é parte; no entanto, a sentença só
pode ser compreendida por meio de palavras que incluam
aquela palavra; o entendimento acontece como um contínuo
ajuste entre uma coisa e outra. O investigador não pode
isentar a si mesmo da equação; para entender o humano, é
preciso ser humano.[6] (BERNARDO, 2002, p. 80)

Não podemos dissociar a narrativa da identidade. Nem mesmo na internet.




4. Considerações finais

A "nova narrativa" da internet é a potencialização e aceleração de algo
que ocorre desde que aprendemos a falar: nosso discurso é nossa identidade.


Por causa da facilidade e velocidade com que se formam comunidades
online, a noção de pertencimento nunca foi tão importante na formulação da
identidade. O indivíduo é compreendido e percebido como parte do grupo
através de sua narrativa.

É a narrativa quem determina o pertencimento e a identidade.





REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 120 p., 21cm. ISBN 978-85-7110-993-3.

BERNARDO, Gustavo. A dúvida de Flusser: filosofia e literatura. São Paulo:
Globo, 2002.

DELEUZE, Gilles. O ato de criação: palestra de 1987. IN: Caderno Mais! São
Paulo: Folha de São Paulo, 27 JUN 1999.

FALBO, Giselle. Considerações sobre o mal estar na civilização. IN:
BERNARDES, Angela C. (org.). 10 x Freud. Rio de Janeiro: Azougue Editorial;
Niterói: RJ LAPSO, 2005, pp. 147-164.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia
da fotografia. Trad. do autor. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2002 —
(Conexões; 15). 84 p. ISBN 85-7316-278-3

LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era
da informática. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.









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[1] [email protected] - mestranda em Arte, Educação e História da
Cultura, na Universidade Presbiteriana Mackenzie SP. (nome completo
Carolina Vigna Prado)

[2] Consta da publicação a seguinte nota de rodapé: [Por estar inserida da
linguagem, a ação do próximo desnaturaliza as necessidades e verte o choro
do infans em apelo, grito. A satisfação dos estados de necessidade é
incompleta e deixa, como resto, a inscrição de traços e um resto de tensão
que não se resolve.]

[3] Consta da publicação a seguinte nota: [Em GIL, José, Diferença e
negação na poesia de Fernando Pessoa, p. 24.]

[4] Consta da publicação a seguinte nota: [Ibid., p. 89]

[5] Consta da publicação a seguinte nota: [ORTEGA Y GASSET, José, Ideas
sobre el teatro y la novela, p. 129.]

[6] Consta da publicação a seguinte nota: [Em MAKARYK, Irena (ed.),
Encyclopedia of contemporary literary theory, p. 90.]
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