Webcomics: o casamento entre os quadrinhos e a Internet

May 23, 2017 | Autor: Bea Godoy | Categoria: Comics Studies
Share Embed


Descrição do Produto

Webcomics: o casamento entre os quadrinhos e a Internet Beatriz Cristina Godoy (UEM) RESUMO: As histórias em quadrinhos, ou HQs, são uma forma de expressão artística que conquista cada dia mais espaço na sociedade e, assim como outras artes, se estendeu para as mídias digitais e, posteriormente, para a Internet. Atualmente, as HQs estão presentes na rede de diferentes maneiras, seja como tiras diárias ou sites elaborados em torno de uma ou mais obras que unem a tradição de texto-imagem dos quadrinhos e as inúmeras possibilidades de integração com outras mídias que a Internet oferece. Entretanto, as obras denominadas como webcomics ainda carecem de uma definição específica no que diz respeito aos elementos essenciais que a caracterizam como uma outra forma de se criar quadrinhos. O objetivo desse artigo é analisar os primeiros capítulos de duas webcomics: Ava’s Demon, escrita e produzida por Michelle Czaskowski e It will all hurt, escrita e produzida por Farel Dalrymple. O objetivo da análise é identificar quais, se quaisquer, são os elementos que qualificam essas obras como webcomics a partir da problematização do termo e da aplicação das possíveis teorias levantadas a respeito do tema. A metodologia de investigação baseia-se principalmente nos textos teóricos sobre quadrinhos de Scott McCloud e na tese acadêmica sobre quadrinhos eletrônicos de Edgar Franco, além de outros artigos publicados por artistas e acadêmicos. PALAVRAS-CHAVE: webcomics; Internet; quadrinhos; hipertexto; multimídia ABSTRACT: Comics are a form of artistic expression which has become increasingly popular and, as any other art form, has reached the digital media and lately, the Internet. Currently, comics can be found on the web in different formats, be it daily comic strips or elaborate sites which cater for one or more works and bring together the tradition of text/image belonging to comics and the countless possibilities of multimedia interaction the Internet allows. However, the works known as webcomics are still in need of an accurate definition concerning its essential elements, those which characterize such works as a new form of creating comics. The objective of this paper is to analyze the first chapters of two webcomics: Ava’s Demon, written and produced by Michelle Czaskowski and It will all hurt, written and produced by Farel Dalrymple. The purpose of the analysis is to identify which, if any, are the elements that qualify these works as webcomics by problematizing the term itself and the possible application of the possible existing theories on the theme. The methodology of investigation is based on theoretical texts regarding comics by Scott McCloud and the academic thesis on electronic comics by Edgar Franco. Other articles published by both artists and scholars were also consulted. KEY WORDS: webcomics; Internet; comics; hipertexto; multimedia

INTRODUÇÃO As histórias em quadrinhos, ou HQs, são uma forma de expressão artística que conquista cada dia mais espaço na sociedade. Por muitos anos associadas apenas às tirinhas de jornal ou como forma de entretenimento infanto-juvenil, há décadas deixaram quaisquer restrições de mídia ou faixa etária e se firmaram como uma forma independente de narrativa sequencial. A tentativa de traçar a origem das HQs é um trabalho infrutífero se considerarmos

que diferentes autores oferecem variadas possibilidades, desde analogias com pinturas rupestres (MCCLOUD, 1995) até à inclusão de enunciados de pessoas retratadas em pinturas medievais em meados do séc. XVII (EISNER, 2010). Entretanto, autores como Eisner, McCloud e o brasileiro Moacy Cirne (1972) concordam que a popularização dos quadrinhos se deu à partir das aparições diárias na imprensa na virada do séc. XX. Aceitas também como objeto digno de estudo pode-se afirmar que atualmente já existe uma teoria quadrinística que permite a análise das diferentes características que compõem essa forma de arte tão específica. Mais de um século depois de sua aparição no cotidiano do público, as histórias em quadrinhos alcançam cada vez mais sucesso comercial ao aliar seus personagens mais famosos à produções cinematográficas, produtos comerciais inúmeros e lanches de fast food. E como todas as demais formas de expressão artísticas ela naõ passou inerte pela revolução digital alimentada pelos computadores pessoais e a Internet. O advento da Internet criou um novo espaço virtual que gradualmente abraçou todos os aspectos da vida humana, incluindo as produções artísticas. Além disso, o ciberespaço tem características particulares que criam inúmeras possibilidades de realização de antigas formas de arte e comunicação nesse novo ambiente. Ao contrário dos quadrinhos em papel, é possível reescrever a trajetória das webcomics desde os primeiros artistas a se aventurarem com a criação por computador até as primeiras histórias divulgadas via web. Entretanto, não existe ainda uma teoria específica que permita a análise dessas obras, ou que defina com precisão quais seriam as caraterísticas específicas que diferenciariam qualquer história em quadrinho presente na rede - independente do meio de produção – de uma webcomic. Ou ainda se seriam todas elas classificáveis como apenas um novo gênero. No presente artigo pretende explorar as diferentes definições possíveis de webcomics de acordo com variados autores e, em um segundo momento, analisar duas obras que se propõem representativas dessa nova forma: Ava’s Demon e It will all hurt. Porém, antes de procedermos à entrada analítica das HQs é necessário explorar mais a fundo as possíveis definições de webcomics enquanto uma nova forma de se criar narrativas sequenciais e quais elementos seriam constituintes dessa forma. Em virtude de alguns artigos referenciais serem originalmente em língua inglesa, as traduções de trechos citados desses trabalhos são de responsabilidade da autora desse ensaio.

AS HQS E OS COMPUTADORES Antes mesmo do advento da Internet os criadores de quadrinhos já exploravam as

novas possibilidades que os computadores abriu na produção de suas obras. Em 1985 os artistas Mike Saenz e Peter Gillis foram pioneiros no uso do computador para a criação de uma HQ – Shatter. Mas apesar das arte ter sido gerada no computador, o trabalho final foi colorido manualmente e impresso em papel. Nessa época se pensava no computador mais como uma plataforma de criação do que como meio de propagação, uma vez que, a Internet como se conhece hoje surgiria apenas cinco anos mais tarde. Neste caso, a melhor denominação para essas produções era a de quadrinhos digitais, trabalhos que faziam uso dos recursos digitais na criação de suas obras substituindo pela primeira vez, o papel e o lápis, mas que, posteriormente, ainda seriam distribuídas pelos meios tradicionais. Franco assevera que “o trabalho de Saenz e Gills inaugurou para os quadrinhistas do mundo todo um momento de mudança significativa [...] experimentando a imaterialidade da imagem digital e todas as facilidades de manipulação que o universo regido pelo código binário trazem” (FRANCO, 2001, pg31). Em meados da década de 90, as HQs foram distribuídas pela primeira vez através de um suporte digital, o CR-ROM. Para Franco (2001), essa nova forma de veiculação abriu caminho para o uso de novos recursos de multimídia1, como som e animação, sendo a interatividade a principal delas. Outra vantagem desse suporte foi a liberdade de se usar cores desconsiderando os preços de impressão. O autor estressa ainda que muitas das mudanças ocorridas nessa transição de mídia alteraram a linguagem tradicional que os quadrinhos haviam estabelecido até então e abriram caminho para algumas das mudanças que guiam ainda hoje a produção de webcomics. As obras criadas especificamente para CD-ROM traziam gráficos 3D detalhados, trilha sonora e animações criando, segundo Franco (2001) uma narrativa híbrida. Um exemplo dessas HQs foi Sinkha (1995), do artista italiano Marco Patrito que ao unir todas as características acima mencionadas criou pela primeira vez um verdadeiro quadrinho multimídia. Outra obra semelhante e inovadora foi Reflux 01: The Becoming, da empresa américa Inverse Ink que apresentava, além das inovações acima mencionadas a possibilidade de se explorar três diferentes pontos de vista da história tornando-a definitivamente interativa. Não obstante, as HQs em CD-ROM atingiram seu auge na segunda metade dos anos 1990s e foram sendo deixadas de lado devido ao alto custo de produção e a relutância dos lojistas em disponibilizar um produto que não sabiam classificar (GILLET apud FRANCO, 2001). As primeiras webcomics surgem justamente na contramão desse impasse, com veiculação gratuita e o desaparecimento do intermediário, já que eram enviadas ou publicadas em espaços direcionados ao público alvo. O advento da Internet não só acabou com as restrições artísticas 1

O conceito de multimídia será discutido posteriormente.

que as impressões criavam como eliminou – ao mesmo naquela época - os custos de impressão e distribuição. Ainda assim, existiam obstáculos como a velocidade da rede e o pequeno número de usuários que possuem computadores pessoais. Na verdade, a primeira webcomic foi lançada em uma rede de transmissão de dados anterior a World Wide Web, conhecida como Compuserver. Em 1985, Eric Monster Millikin criou e distribuiu eletronicamente Witches in Stitches, criando assim a primeira webcomic. Nos próximos 7 anos, que Garrity chama de A Idade da Pedra dos quadrinhos, eles existiram esparsamente pelas redes e “os leitores tinham que assinar listas de email ou grupos Usenet para receberem os quadrinhos por email” (GARRITY, 2011). Os anos seguintes viram o estabelecimento de alguns gêneros de webcomics explorados até os dias de hoje, principalmente aqueles relacionados à próprio cultura do computador, como games, inteligência artificial, TI etc. Surgiram também artistas dispostos, pela primeira vez, a experimentar com a forma sendo um dos pioneiros o americano Charley Parker que dava ênfase na criação de histórias visualmente mais ousadas em Argon Zark! (1995) enquanto a maioria dos artistas ainda se apoiava nas gags2. Outro traço da rede que passa a ser explorado é a interatividade artista-leitor. A possibilidade de comunicação em tempo real torna possível para o artista Jesse Reklaw receber e-mails de seus leitores e criar histórias a partir deles. Sua obra Slow Wave (1995) são tiras de quatro requadros criados com base nos sonhos descritos pelos leitores em seus e-mails e foi primordial ao estabelecer a estreita ligação existente entre os artistas de webcomics e seus leitores. Para Garrity, o período de 1996 a 2000 foi quando as webcomics cresceram exponencialmente, em quantidade de produção, qualidade e experimentação, e as histórias em quadrinho eletrônicas se firmaram na cultura dos internautas. Surgem novos estilos, as primeiras estrelas despontam e muitos artistas descobrem que não é preciso saber desenhar para se produzir essas histórias. Um dos frutos dessa revolução é a publicação de Reinventando os quadrinhos (2000), de Scott McCloud que prevê que a união quadrinhos e computador não somente abrirá novas possibilidades de criação e divulgação, mas é aonde se encontra o futuro dos quadrinhos3. O lançamento da obra de McCloud é seguida de diversas tentativas de explorar sua ideia de “tela infinita” ao mesmo tempo que vários artista vão além das tirinhas e criam graphic novels online, postadas integralmente de uma só vez. Ainda assim, as tirinhas continuam

2 3

Requadros simples, geralmente únicos com o texto em forma de legenda cuja intenção é fazer rir. A teoria de McCloud será discutida em maiores detalhes mais adiante nesse ensaio.

imperando no mundo digital, em especial aquelas relacionadas aos games. Essas tirinhas se mostraram precursoras de uma nova onda: as niche strips, ou tirinhas de nicho, cujas piadas eram elaboradas especificamente para fazer rir os entendidos no assunto. Mas talvez a situação mais interessante a surgir de todas essas experiências é a relação da rede com o mercado editorial. Se por um lado o acesso à rede permitia que qualquer artista com domínio básico de computação divulgasse seus trabalhos online, por outro lado a publicação de um trabalho não garantia seu sucesso e consequente sobrevivência. Assim a Internet vira um campo de testes para artistas e editoras que podem explorar a custo zero a possibilidade de sucesso de uma obra, como foi o caso de American Born Chinese (2006), de Gene Yang. Mais recentemente as webcomics tem se adaptado às redes sociais e “muitos ‘cartunistas da rede’ estão usando ou criando aplicativos para distribuir seus quadrinhos por iPhone e outros aparelhos” (GARRITY, 2011).

WEBCOMICS: UMA TENTATIVA DE DEFINIR O TERMO Até agora falamos de como a popularização dos computadores e consequentemente da Internet influenciou os artistas e a produção de novas obras quadrinísticas. Entretanto, acompanhar a evolução dos quadrinhos na era digital não deixa claro o que exatamente é uma webcomic. Se analisarmos o termo linguisticamente, ele se refere a junção do termo web – ou ‘rede’ em inglês referencial à Internet – e comic, os quadrinhos em si. Diante dessa analise qualquer quadrinho disponível na rede se classifica como uma webcomic, o que implicaria, em alguns casos, na simples mudança de suporte de publicação. Digamos que um artista criasse uma HQ no papel, utilizando lápis, papel, caneta e tinta e escaneasse o produto final e fizesse o upload disponibilizando assim o produto online. Essa obra seria considerada uma webcomic ou uma HQ tradicional disponível em outro suporte? Nesse caso, o simples fato de se fazer disponível via rede já faz de um quadrinho uma webcomic. McCloud (2006) postula que “qualquer história em quadrinhos na Web está no reduto do hipertexto” (MCCLOUD, 2006, p215). Entretanto, a definição de hipertexto não é tão simples assim. Na obra Roteiro para as novas mídias (2003), de Vicente Gosciola, o autor recorre à três diferentes teóricos para definir hipertexto e todas essas definições vão além da simples conversão de linhas e palavras no papel em números binários. Para Laufer e Scavetta “o hipertexto é um agrupamento de textos em meio digital, ligados pelos elos semânticos ancorados em uma palavra ou uma frase promovendo uma leitura não linear” (LAUFER & SCAVETTA apud GOSCIOLA, 2003, pg30). Para esses autores a simples existência de um texto no meio

digital não o torna um hipertexto, mas sim a possibilidade de se acessar outros textos através dele em qualquer momento da leitura e retornar, ou não, ao ponto de partida. Killian corrobora essa afirmativa ao atestar que “hipertexto é um texto que faz referência a outros textos e que possibilita ir ao encontro deles” (KILLIAN apud GOSCIOLA, 2003, pg31). Bazin acredita que um hipertexto deve ainda promover o “rápido intercâmbio de comentários em fóruns eletrônicos” (BAZIN apud GOSCIOLA, 2003, pg31). Nesse caso, o hipertexto promoveria não só acesso a outros textos como também acesso do artista ao leitor e vice versa. Uma segunda definição possível seria então que para ser considerada uma webcomic uma HQ não pode simplesmente estar disponível na rede, ela precisa conter características de um hipertexto, seja dando acesso à outros textos ou à outros internautas. Em sua tentativa de definir a forma das webcomics Zanfei (2008) amplia as definições de hipertexto para analisar não somente a obra em si, mas todo o site onde ela está inserida como formando um só produto. Ela parte da premissa que como se faz necessário acessar um site para ter acesso às obras, suas características também devem ser levadas em consideração. Interessante notar que ao sugerir uma analise global a autora acaba por simplesmente expandir a ideia de hipertexto. Ela analisa detalhadamente cada link e os tipos de informações a que dão acesso como arquivo, biografia do artista, perfil dos personagens etc. Além disso, ressalta a possibilidade de se fazer comentários, conectar-se com o autor e com outros fãs do quadrinho. Mais uma vez são as possibilidades de interconexão entre os textos e a interatividade entre usuários, características da web como mídia, que se destacam, aliando-se ao lugar em que elas se encontram no ciberespaço (site), que vem reforçar essa identidade. Uma possível definição de webcomic seria então: qualquer obra de narrativa gráfica que, uma vez presente na rede, permite acesso a outros textos e contato entre artistas e usuários do site aonde se insere. Parece suficiente se pensarmos que para alguns artistas a Internet é somente um suporte do qual se utilizam para divulgar seu trabalho gratuitamente, na esperança de criar uma base de leitores/seguidores, uma vez que, “a revolução que as webcomics representam permite que artistas desconhecidos criem e distribuam seus trabalhos” (FENTY, HOUP e TAYLOR, 2004). Isso faz com que a escolha de criar webcomics esteja mais relacionada ao fator econômico do que o estético em si. Esses artistas não criariam webcomics por nenhuma outra característica particular dessa mídia senão a gratuidade de divulgação. Contudo, os autores acreditam que o custo não é o único atrativo da Internet. Para eles a verdadeira revolução proporcionada pelas webcomics está na liberdade de abordar assuntos tabus que seriam rejeitados pelas editoras, assim como fizeram os artistas do movimento

Underground Comix4 nos anos 60 e 70. As webcomics existem em um espaço sem censuras e “ao contrário das coisas sanitizadas e diluídas que você encontrará no seu jornal diário, os quadrinhos online [...] não tem medo de xingar, serem violentos, estranhos, e francamente, absolutamente sem sentido” (LACY, 2007). É também sobre a égide da liberdade existente no ciberespaço, nesse caso a da imaterialidade do espaço físico e não da temática, que Scott McCloud (2006) vai desenvolver sua mais interessante contribuição para a discussão sobre as webcomics: o conceito de ‘tela infinita’. McCloud parte da premissa que para que os quadrinhos se estabeleçam em uma realidade pós-imprensa, é preciso saber como as linguagens semelhantes às narrativas gráficas se comportavam antes do advento dessa. O autor faz uma analogia entre a pintura rupestre, passando pelos egípcios, a coluna de Trajano, a tapeçaria de Bayex etc para concluir que a página do códice não é um elemento inerente as histórias em quadrinhos, mas sim que “a imprensa subverteu o espaço, dobrando-o sobre si mesmo, permitindo que as histórias atingissem qualquer extensão sem depender de puir tecido ou esmigalhar pedra” (MCCLOUD, 2006, p220). Nesse novo espaço o autor sugere que o artista deve se libertar das restrições da página e, ao invés de se adotar o monitor como um substituto, usá-lo como uma janela nas quais as narrativas gráficas não precisam mais reproduzir antigos modelos de organização espacial, mas sim inovar. Obviamente a tela não é infinita “porque o espaço é limitado pela tecnologia do computador, incluindo o tamanho da tela, a profundidade dos pixels, e o tempo de download na rede” (FENTY, HOUP e TAYLOR, 2004), mas o ciberespaço oferece sim um espaço mais maleável e com possibilidades de criação muito maiores que o papel. Outra definição possível então seria que além de incorporar as características próprias do novo suporte, as webcomics abandonassem as restrições impostas pelo antigo. Além de um espaço mais flexível que aquele do papel, o ciberespaço oferece ainda a possibilidade de somar outros modos de engajamento aos quadrinhos, explorando a interação entre linguagens ou mídias distinta. Para Lévy (1999, p66) o termo linguagem se refere à diferentes tipos de representação, como por exemplo: línguas, músicas, fotografias, desenhos, imagens animadas, símbolos e dança. Já o cinema, o rádio, a televisão, a Internet, etc, enquanto suportes de informação e de comunicação são classificados como mídias. Para o teórico uma webcomic que integrasse imagem, texto e som não poderia ser classificada como uma obra multimídia, uma vez que o suporte é um só, o que muda é a inserção de uma nova linguagem – o som, no caso dos quadrinhos. Nesse caso os quadrinhos, que são um meio multimodal por 4

As publicações infringiam os códigos de censura da época explorando temas como sexo, drogas e violência.

excelência, somente acrescentariam em sua composição novas modalidades perceptivas, agregando modos de recepção da informação e não novas mídias per se. Na contramão, Lipton assevera que “multimídia é a integração de gráficos, animações, vídeo, música, fala e texto, baseada em computador, para comunicar conteúdo intelectual aos leitores por um caminho simples ou uma linha de apresentação (como um livro tradicional), ou por um navegador não tradicional” (LINTON apud GOSCIOLA,2003, pg31, grifo nosso). Também para Laufer e Scavetta “multimídia é o conjunto de meios utilizados ao mesmo tempo para a comunicação de conteúdos que pode ser navegado de maneira linear ou não linear” (LAUFER & SCAVETTA apud GOSCIOLA, 2003, pg7). Para esses autores o ciberespaço é mais que uma mídia, ele é um lugar aonde existe a possibilidade de realização de diferentes mídias, cada qual com suas características particulares. E essas diversas possibilidades de realização são um dos elementos que ao serem levadas em consideração na criação de uma webcomic acarretariam mais que uma simples mudança de suporte – do papel pra tela – mas uma mudança estética que possibilitaria aos quadrinhos uma nova roupagem que seria impossível de se reproduzir no papel. Segue-se a análise dos primeiros capítulos de duas webcomics que permitem a identificação de diferentes elementos acima discutidos e exploram, de maneiras diversas, as possibilidades de realização de uma narrativa gráfica na web. AVA’S DEMON: UMA OBRA MULTIMÍDIÁTICA Ava’s Demon (www.avasdemon.com) é uma webcomic escrita e produzida por Michelle Czaskowski. A obra é atualizada todas às segundas e quintas feiras e já está no décimo terceiro capítulo sendo que cada capítulo é composto por uma média de 61 a 109 requadros. A webcomic está inserida em um site dedicado somente a ela e todas as informações extras são pertinentes à artista e à essa obra específica. A história gira em torna de Ava, uma menina que foi possuída por um demônio ao nascer, mas atribui as manifestações dessa a um possível problema mental. O demônio por vezes possui Ava fazendo com que ela aja de maneira violenta e lhe causando problemas. A narrativa começa no dia em que a Terra é destruída e Ava se salva ao embarcar escondida na nave de Odin, começando sua aventura intergaláctica. Ao acessar o site tem-se acesso direto ao início do quadrinho. Interessante notar que o quadrinho se apresenta na forma de um livro antigo cuja capa faz referência ao demônio do título. A cor predominante é o vermelho, segundo McCloud “os padrões de fundo e as cores poderiam refletir estados de espírito cambiantes” (MCCLOUD, 2006, pg228). Nesse caso, o vermelho parece reforçar a presença do demônio que possui Ava que é representada como um

espírito feminino em tons alaranjados que flutua como uma chama. Também os olhos de Ava e de Odin são vermelhos em contraste direto com os olhas verdes de Maggie, a nêmeses de Ava. Além da presença do livro, outros detalhes na página inicial também remetem à arte da escrita. Abaixo do “livro” há pequenos pedaços de papel picado que servem como links para diferentes ambientes do site. Há ainda, abaixo dos papéis, um lápis - que leva às informações sobre a autora – e uma borracha – o link para os tutoriais. Apesar da aparência de saudosismo, a narrativa se passa em um mundo futurístico e todos esses símbolos parecem estar amarrados á nossa ideia de demônios antigos que perseveram através dos tempos. A análise do primeiro capítulo nos permite explorar em maiores detalhes os elementos que compõe essa webcomic. O elemento mais relevante está no fato da história ser constituídas de requadros únicos que aparecem dentro do ‘livro’ e são repassados com o clicar do mouse. Eisner (2010), ao teorizar as narrativas gráficas em papel aponta que raramente uma HQ nesse suporte é composta de apenas um requadro, já que a própria natureza dessa arte surgiu do contar histórias através de imagens sequenciais. Todavia, o computador permite que o clique do mouse substitua cada requadro instantaneamente e a sensação de movimento se crie nessa superposição. Nesse caso, a obra se comporta mais como uma animação do que uma HQ de papel e a própria autora confirma que seu objetivo é fazer com que “a leitura seja como um script colorido para um filme” (CZASKOWSKI, Michelle. Em:. Acesso em: 02 Setembro 2014). É também através da sobreposição de imagens que a noção de tempo é estabelecida por cada usuário que pode desejar analisar cada requadro como se estuda uma pintura ou, ao passar rapidamente por eles e ver como justapostas essa imagens contribuem para a criação de significados na narrativa (EISNER, 2010). Contudo, não é somente o desejo do leitor que limita a velocidade que ele emprega à narrativa pois, a obra se utiliza de balões para dar voz aos personagens, o que requer um tempo de leitura mais longo e influencia na sensação de animações que a artista pretende criar. Texto e imagem tem igual importância para os quadrinhos, pois juntos formam um layout que não se restringe a organização da informação, mas que contribui para o significado (KRESS, 2003, pg68). O formato de requadro único também desloca outro elemento essencial aos quadrinhos, a sarjeta, que Eisner (2010) chama do ‘não espaço’. Em Ava’s Demon a sarjeta é usada somente para mostrar diferentes pontos de vista de acontecimentos simultâneos. Um exemplo está no quarto requadro que é composto de dois requadros menores; um mostrando os olhos de Ava e o outro aquilo que ela vê. Apesar da sarjeta comumente sugerir uma elipse temporal, aqui ela é

usada para estabelecer o contrário. Essa desconstrução do significado de um elemento comum das HQs corrobora a ideia que, apesar do layout do site fazer menção à escrita tradicional, a obra foi pensada para um novo meio. Outra característica que faz com que a obra só seja realizável no ciberespaço é o fechamento do capítulo. Quando o último requadro aparece chamuscado – como uma TV fora do ar – com o símbolo do play fica claro que o que se segue é um vídeo. Ao apertar play, o requadro/tela aumenta e ocupa todo o espaço do monitor, segue-se então uma animação musicalizada de 43 segundos que marra/mostra o desfecho do capítulo. E enquanto o passo seguinte no meio tradicional dos quadrinhos seria simplesmente o fechar da edição ou prosseguir para o próximo capítulo, a webcomic oferece uma gama de opções: assistir o vídeo novamente, escutar somente a música, compartilhar ou curtir o vídeo, acessar os vídeos que encerram os demais capítulos, voltar para o requadro anterior ou seguir adiante. Nenhum outro espaço poderia oferecer tamanha multiplicidade de realizações que, apesar de não lineares carregam sentido. Algumas questões práticas valem a pena ser mencionadas. Discutiu-se anteriormente que uma das principais atrações da rede era a gratuidade, contudo, Fenty, Houp e Taylor (2004) alertam que quando uma webcomic começa a fazer sucesso os custos da banda larga e do servidor começam a subir e os desenvolvedores da obra são obrigados a encontrar maneiras de se manter online. Esse é o caso de Ava’s Demon. Logo na primeira página a autora explica sua situação atual e pede a colaboração de seus leitores, seja em forma de doações ou simplesmente que os usuários não bloqueiem os anúncios. Tal situação gera um impasse interessante uma vez que os autores criam webcomics porque é uma maneira economicamente viável de divulgação de seus trabalhos e é inegável que todo artista está em busca de reconhecimento. Entretanto, o tão esperado reconhecimento pode ser o fim de seu espaço de divulgação.

IT WILL ALL HURT: A TELA INFINITA It will all hurt, é uma webcomic escrita e produzida por Farel Dalrymple disponível no site (studygroupcomics.com/main/). Ao contrário de Ava’s Demon o site abriga inúmeras webcomics e conta com 82 colaboradores. A HQ de Dalrymple é atualizada todas as sextasfeiras

e

está

na

quinta

parte.

Na

página

de

entrada

da

webcomic

(http://studygroupcomics.com/main/category/contributor/farel-dalrymple/) tem-se acesso às partes 5 partes do quadrinho e ao site de vendas de algumas obras impressas, incluindo a da presente análise. Dalrymple defini sua obra como “uma tira de aventura e fantasia estranha,

triste, total, esboçada com magia, ficção científica e um pouco de luta” (DALRYMPLE, Farel. Em . Acesso em: 02 Setembro 2014). A primeira parte da história envolve três personagens, Almenda, o astronauta e o garoto que se encontram em lugares diferentes. Sabe-se que o astronauta está em algum lugar acima de Almenda e o garoto em um ‘outro lugar’. Cada parte da obra – a primeira no caso dessa análise – quando acessada é dispostas por completo e lida ao rolar a página para baixo. É possível ainda clicar em cada requadro, que então se abre em outra página criando em pequenos agrupamentos. Na nova página o tamanho dos requadros se mantem inalterado, mas é possível notar que apesar de os requadros parecerem estar soltos sobre o fundo branco (Fig.1) e seguintdo o fluxo da narrativa, eles foram pensados como constituintes de grupos menores (Fig.2). Vários outros elementos composicionais dos quadrinhos tradicionais desaparecem ou são modificados ao longo da narrativa.

Fig. 2

Fig. 1, Uma das possibilidades de leitura se encontra no conceito de ‘tela infinita’ de McCloud (2006), uma vez que, o fundo branco e os requadros nas mais variadas formas e posições causam a sensação de que as imagens estão flutuando e não existem em um espaço específico. Também as sarjetas desempenham funções distintas, algumas delas não tradicionalmente associadas à esse recurso. Ela aparece, tradicional e claramente, como uma elipse temporal (Fig. 3) para logo em seguida deixar de existir por completo (Fig.4) ou ainda tornar-se o próprio requadro (Fig.5). Esse tratamento da sarjeta não só reforça a ideia de que os requadros estão soltos como também colabora para a sensação

Fig.3 Fig.4

Fig.5

de queda em determinados momentos da narrativa. Sem a restrição das páginas o rolar da tela é um movimento constante que atravessa os diferente mundos das personagens, e pode-se parar em determinados momentos para analisar algo em detalhes ou simplesmente seguir em frente ,como quem olha pela janela de um carro em movimento. Note-se ainda que não somente o uso do texto como mensagem, mas a maneira com que ele é disposto visualmente quando aplicado à imagem (o letreiramento), tornando-o parte integrante da composição imagética, é que vai conferir seu potencial total de significado (EISNE, 2010, p4). Também o texto é retirado dos lugares aonde tradicionalmente seria encontrado para potencializar a ideia de espaço infinito. Ele pode se colocar no lugar tradicional da imagem (Fig.6) e se tornar imagem Pode ainda ser usada mais tradicionalmente como uma legenda fotográfica (Fig.7), ser som viajando no espaço (Fig.8) ou um dos elementos que compõe uma imagem mais elaborada (Fig.9).

Fig.6 Fig.7

Fig.9

Fig.8

O layout da obra também altera a noção de tempo, sobrepondo a concepção de que narrativas são lineares, e que é sempre possível extrair a fábula5 de um texto. A maneira na qual as imagens e textos estão dispostos, flutuando no vazio remete a um presente constante e pode sugerir ainda uma ideia de simultaneidade. Independente de uma história seguir a outra, elas todas existem nesse mesmo espaço atemporal. A obra está a venda no site e é negociada diretamente com os colaboradores da página, as cópias da primeira parte já estão esgotadas. Comentou-se anteriormente que uma das possíveis maneiras de se definir uma webcomic é como uma obra que possuí características que só se realizassem em toda a sua potencialidade no ciberespaço. It will all hurt parece ser um desses casos. Apesar de a série ser produzida em aquarela, um fato que justifica a impressão, o elemento mais latente da narrativa certamente é a maneira com que tempo e espaço por horas se anulam e se encontram, um elemento que a restrição das páginas certamente diluirá.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O termo webcomic ainda carece de uma definição específica no que diz respeito aos elementos essenciais que a caracterizem como tal. Talvez a dificuldade em definir uma forma de expressão que se situe no ciberespaço resida na transitoriedade de um lugar que apesar de tão novo transformar-se mais rápida e constantemente que qualquer outro. Ou talvez ainda uma definição não seja necessária e enquanto elaboram-se teorias as webcomics transmutam-se me uma outra coisa. A Internet criou um espaço fugaz onde o passado nunca é apagado e o futuro já está acontecendo. Enquanto os acadêmicos discutiam a morte do autor, os novos autores estavam nas salas de bate papo explicando suas verdadeiras intenções à seus leitores. Independente da validade da tentativa é possível afirmar que as obras analisadas no presente trabalho apresentam pelo menos um elemento que torna possível classifica-las como webcomics, um elemento que só é passível de realização total no ambiente virtual. Seja o casamento entre imagem, texto e som presentes em Ava’s Demon, e mais ainda, a possibilidade de se acessar imagem/texto ou som de forma não linear ou ainda de clicar em um link e não mais retornar ao lugar de partida. No caso de It will all hurt, a realização do conceito de ‘tela infinita’ de McCloud que serve para criar a ilusão do fluxo de consciência pretendido pelo artista6. 5

Fábula como os fatos da narrativa ordenados cronologicamente (TOMACHEVSK apud FRANCO JUNIOR, 2009). 6 Entrevista concedida ao site Broken Frontier. Em: http://www.brokenfrontier.com/farel-dalrymple-interview-thewrenchies-it-will-all-hurt-pop-gun-war-prophet/ Acesso em: 02 Setembro 2014.

Finalmente, como qualquer forma de expressão artística talvez seja menos importante tentar dissecar e explicar as webcomics esteticamente e entendê-las como manifestações de artistas em um espaço que em toda a sua imaterialidade se tornou mais presente na vida das pessoas do que muitos edifícios de concreto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica narrativa quadrinizada. Petrópolis: Vozes, 1972. EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. Trad. Luís Carlos Borges, Alexandre Boide. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. FENTY, S, HOUP, T e TAYLOR, L. “Webcomics: the influence and continuation of the comix revolution”;

ImageText:

Interdisciplinary

Comic

Studies.

Disponível

em:

http://www.english.ufl.edu/imagetext/archives/v1_2/group/. Acesso em: 02 Setembro 2014. FRANCO, Edgar. HQtrônicas: do suporte papel à rede internet. 176 f. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – UNICAMP, Campinas, 2001. GARRET, S. “The History of Webcomics”; The Comics Journal. Disponível em: http://www.tcj.com/the-history-of-webcomics/. Acesso em: 2 Setembro 2014. GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para as novas mídias: do cinema às mídias interativas. São Paulo: Editora Senac, 2003. LACY, S. “Webcomics are profane, explicit, humorous – and influencing trends”; Charleston City Paper. Disponível em: http://www.charlestoncitypaper.com/charleston/ webcomics-are-profane-explicit-humorous-mdash-and-influencingtrends/Content?oid= 1112206 . Acesso em: 02 Setembro 2014. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. MCCLOUD, Scott. Desvendando Quadrinhos. Trad. Helcio de Carvalho, Marisa do Nascimento Paro. São Paulo: Makron Book, 1995. _______________. Reinventando Quadrinhos. Trad. Roger Maioli. São Paulo: M. Books do Brasil, 2006. ZANFEI, A. “Defining webcomics and graphic novels”; International Journal of Comic Art. Disponível em: http://www.dlls.univr.it/documenti/AllegatiOA/allegatooa_28091 .pdf. Acesso em: 02 Setembro 2014

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.