Wigvan Pereira - Sob o signo da juventude: pensar a educação e o ensino de filosofia a partir da figura do bárbaro

June 14, 2017 | Autor: Revista Inquietude | Categoria: Filosofia da Educação, Juventude, Ensino de Filosofia, Indiferença
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Sob o signo da juventude:

pensar a educação e o ensino de filosofia a partir da figura do bárbaro

Wigvan Pereira1 Cada geração tem uma característica. A da nossa é o desapego. Dans Paris, Christophe Honoré

Resumo: a pergunta “o que se pode esperar da educação?”, se não é tão fácil respondê-la, é porque a própria noção de educação não é clara para todos e ainda nos é apresentada atrelada às noções de autonomia, cidadania e moral, o que faz parecer que educados são os “bons moços”, aqueles que não questionam e que aprenderam a língua falada nas sociedades civilizadas: a mudez, a cegueira e a surdez voluntárias – a indiferença! Neste trabalho pretendemos, a partir de um diálogo com Nietzsche, Adorno e Hannah Arendt, fazer a defesa de uma educação contra a domesticação dos bárbaros, que não pretenda adestrar os alunos e que, em vez disso, dê suporte para que eles falem seu próprio dialeto: o dialeto da novidade. Seguindo, então, o rastro dos autores que aqui elegemos como nossos interlocutores, faremos um deslocamento para defender uma educação na qual a questão da barbárie seja retomada, mas de uma perspectiva que permita reabilitar a figura esquecida do bárbaro, tomada no sentido de estrangeiro e pária. Com isso, o que pretendemos, ao final, é pensar as condições de possibilidade de superação da indiferença que caracteriza a nossa época, a partir daquilo que a Filosofia pode trazer de inédito aos discursos pedagógicos e, com isso, tratar, como questões filosóficas, o ensino da filosofia, as figuras do professor-aluno e suas relações. Palavras-chave: filosofia da educação; ensino de filosofia; juventude; indiferença. Licenciando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Pesquisador de Iniciação Científica (PIVIC) sob a orientação da Profª. Drª. Martina Korelc. Bolsista de Iniciação a Docência (PIBID) sob a orientação da Profª. Ms. Carmelita Brito de Freitas Felício. 1

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Primeiros delineamentos da questão Oisive jeunesse À tout asservie Par délicatesse, J’ai perdu ma vie2 La chanson de la plus haute tour, Rimbaud

A noção de escola como um ambiente onde as pessoas devem aprender a se comportar não é nada recente e nem é um resquício da ditadura. Embora ainda esteja configurada deste modo, com sua finalidade associada à obtenção de um produto ideal, a educação já havia sido pensada nestes termos por Comenius, no século XVII: para ele, a escola corresponderia aos seus fins quando fosse uma oficina, na qual os mais diferentes tipos de engenhos seriam trabalhados para que os alunos se tornassem verdadeiros homens3. Seu método está ancorado na figura da criança modelável e neutra – sua mente seria como uma folha em branco na qual poderiam ser inscritos quaisquer conhecimentos. A noção de neutralidade sustentava a esperança de restaurar a humanidade por meio da educação infantil e tornou a criança, a partir de Rousseau, o sujeito “Ociosa juventude/De tudo pervertida/ Por minha virtude/Eu perdi a vida” (RIMBAUD. Obras Completas. 2º volume. Editora Topbooks. 3ª edição. 2007. Trad. Ivo Barroso). 3   É importante considerar que, embora para Comenius, a educação tenha a finalidade de tornar os homens humanos, não se pode falar em formação ética, porque por meio dela (da educação) se resgata a moralidade que já está inscrita na natureza humana. O método de Comenius entrelaça educação, moral e religião e é ancorado em uma noção bem particular de homem: um ser que nasceu com um corpo e por isso destinado ao trabalho, mas que precisaria antes aprender a ficar ereto e a usar as mãos para realizar uma tarefa; um ser que nasceu com uma mente, mas com uma mente nua, ou seja, um ser que nasce com aptidão física e intelectual, mas que precisaria ser amansado por uma educação sustentada na base tríplice “moral, religião e ciência”, pela qual aprendesse a ser humano (2006, p. 72-97). A pedagogia de Comenius também aporta um sentido revolucionário: a escola, para ele, é um lugar onde tudo deve ser ensinado a todos e se isso não acontece, se a mente não consegue progredir no conhecimento é porque o método não é eficaz, é excessivamente rigoroso, duro e cansativo. Ou seja, não há “coisas inacessíveis para o engenho humano, mas degraus mal dispostos, curtos, gastos, desastrosos, ou seja, um método intrincado” (2006, p. 83;114-115). 2

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educativo por excelência. Tal projeto deveria ser empreendido tanto pela família, que passou na modernidade a cercá-la de cuidados e controles, quanto pela escola que passou a lhe ensinar também comportamentos adequados. Mais que um empreendimento, a educação se consolida como uma ciência e isso permite a racionalização de suas práticas de repressão e controle, permite também justificar seu trabalho de docilização pelo melhor aproveitamento da aprendizagem e do tempo, baseada no modelo da disciplina eclesiástica. À disciplina, Kant atribui um papel fundamental em Sobre a pedagogia: a urgência da educação para o ser humano é justificada pela sua inclinação à liberdade, que deve ser controlada desde a infância, antes que se tornem irremediáveis a selvageria e a rudeza, antes que ele se torne resistente às mudanças. Assim, as crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas tranquilamente e obedecer, pontualmente àquilo que lhes é mandado, a fim de que no futuro elas não sigam de fato e imediatamente cada um de seus caprichos (2006: 13 [442]).

Embora tenha escrito em letras tão fortes para nós que experimentamos como a disciplina se tornou um instrumento de exercício do poder, o objetivo da educação para Kant é a autonomia de pensamento, é permitir que o educando faça uso de seu próprio entendimento e de sua liberdade4. Esse processo, ao qual no ensaio “Resposta à pergunta: o que é 4  Podemos compreender, à luz do ensaio “Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?” que a pedagogia de Kant vai além do treinamento mecânico e do aspecto negativo – a disciplina – já que pretendia capacitar para o pensamento autônomo, mas depois que a autonomia não precisasse ser limitada por outrem, por estar limitada pela própria moral. A disciplina é o aspecto negativo da educação, pois é por meio dela que se retira a selvageria das crianças, definida pelo autor como sendo a independência de qualquer lei, que permaneceria durante toda a vida se deixá-lo fazer a sua vontade durante a juventude. O aspecto positivo seria a instrução e ambos são aspectos necessários para que o homem, que nasce despreparado para o uso de sua razão, se torne verdadeiramente humano. Nas palavras de Kant: “Disciplinar quer dizer: procurar impedir que a animalidade prejudique o caráter humano, tanto no indivíduo como na sociedade. Portanto, a disciplina consiste em domar a selvageria” (2006, p. 25 [449]).

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esclarecimento?” Kant se refere como maioridade intelectual só é possível, no entanto, depois de um primeiro período, no qual se aprende a se sujeitar e a obedecer passivamente. Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade intelectual – a incapacidade de fazer uso de seu entendimento. Se não vivemos em uma época esclarecida, diz ele, é porque os homens se acomodaram à menoridade. Não se trata aqui, portanto, de refutar a tese de Adorno segundo a qual a meta da educação é impedir que a barbárie de Auschwitz se repita, pois o que defendemos aqui é bem próximo à sua concepção de educação: “não a assim chamada modelagem de pessoas [...] mas também não a mera transmissão de conhecimentos [...] mas a produção de uma consciência verdadeira” (2002, p. 141). Faremos a mesma defesa por meio de um resgate da figura do bárbaro a fim de reabilitá-la, como uma forma de superar a indiferença que se instaurou nos nossos tempos, ao se definir como finalidade da educação, a conversão de todos em “bons meninos”5. Quem são os bárbaros? Eu não gosto do bom gosto Eu não gosto de bom senso Eu não gosto dos bons modos Não gosto! Eu aguento até rigores Eu não tenho pena dos traídos Eu hospedo infratores e banidos. (...) Eu gosto dos que têm fome Dos que morrem de vontade Dos que secam de desejo Dos que ardem! Senhas, Adriana Calcanhoto

E por que é um problema pensar a educação dirigida a transformar   Lembremos também de Nietzsche, que observava no sistema educacional de seu tempo, a preferência por uma formação utilitarista e apressada, em detrimento de uma formação humanista e, também, a invenção da autonomia, que ele entendia como a domesticação do aluno segundo os interesses da burguesia e do Estado.

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todos em bons meninos? Primeiramente, é preciso lembrar que todo o discurso de Adorno sobre a educação parte da necessidade de reorientála, frente a uma meta central: que Auschwitz não se repita. Entretanto, o próprio surgimento do nazismo em uma sociedade intelectualizada nos mostra que a capacidade de obedecer a regras e a inteligência – a assim chamada acumulação de informações – não puderam evitar esse ato de barbárie. Do lado oposto dos bons meninos, que se esforçam para serem incorporados a qualquer custo à sociedade, temos a figura esquecida do bárbaro, que fora exilado na esfera do indesejável, que permanece nas beiradas, mas que vê o exílio como uma experiência libertária6. Mesmo não sendo possível fazer aqui um retrospecto da longa trajetória do conceito de “bárbaro” sem nos desviarmos do nosso objetivo, é preciso fazer algumas distinções, a fim de delimitar o sentido que queremos lhe atribuir. Francis Wolff7 (2004), para tentar responder à pergunta “Quem é bárbaro?”, parte da distinção entre três sentidos de civilização. O primeiro sentido designa um processo pelo qual os povos são libertos de costumes rudimentares e bárbaros são aqueles que ignoram as boas maneiras. O segundo sentido designa a manta de refinamento tecida com as ciências,

  Este aspecto, o exílio como uma experiência libertária, será retomado com a exposição da “filosofia da migração” de Vilém Flusser, assim como nos apresenta Charles Feitosa em “Pensar, migrar” (2004). 7  Wolff, partindo do exemplo dos ataques terroristas de 11 de setembro, mostra que o pensamento atual parece se ater à oposição entre civilização e barbárie que qualifica o outro, aquele que não reconhece seus valores, como bárbaro que deve ser punido e/ou civilizado. Desse modo, tanto os partidários de Bin Laden quanto os Estados Unidos teriam o direito de defender sua civilização – o Islã e o Ocidente – da barbárie de seus adversários – os infiéis ocidentais e os terroristas fanáticos, respectivamente. Esse pensamento abriga o risco de servir ao desejo de estabelecer um modelo universal de humanidade ao qual todos os povos devem se conformar, o que nos levaria a entender que a dialética entre civilização e barbárie deu lugar à dialética entre barbárie do fanatismo e barbárie da civilização. Outro risco, que embora não seja o nosso objeto de discussão é igualmente danoso, é o de defender que não existe barbárie e sim diversidade cultural, o que justificaria quaisquer violências, desde que culturalmente legitimadas, como a caça de albinos na Tanzânia e as mutilações das mulheres em vários países da África e da Ásia. 6

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as letras e artes; os bárbaros são os insensíveis ao saber ou à beleza8. No terceiro sentido, civilização corresponde à moralidade e os bárbaros são os dotados de uma brutalidade feroz, cega e selvagem9. A barbárie, neste último sentido, representa a perda do sentimento humanitário e as manifestações de desumanidade descontrolada – os genocídios, sacrifícios, atrocidades. É precisamente isso o que Adorno deseja combater. Para ele, “a barbárie existe em toda a parte em que há uma regressão à violência física primitiva” (2002, p. 158), regressão esta que podemos testemunhar nos momentos em que a violência por menor ou sutil que seja, surge como um impedimento ao diálogo. Essa definição – nos arriscamos a dizer – entrelaça os três sentidos elaborados por Wolff. Adorno retorna aos gregos, para quem bárbaros eram todos aqueles que não falavam a língua grega e, portanto, se refere ao bárbaro no segundo sentido; credita a esses “estrangeiros” as ações desumanas, das quais Auschwitz é o ápice (terceiro sentido) e, postula que as metas educacionais devam ser reorientadas para que não haja mais pessoas que, por não refletirem sobre seus atos, ameacem destruir a humanidade. Para entendermos como essa ideia coincide com o primeiro sentido, é necessário recordar que Adorno corrobora a afirmação de Eugen Kogon, de que os algozes dos campos de concentração eram em sua maioria jovens filhos de camponeses, e ainda afirma que “a   Em outras palavras, bárbaros são aqueles que só reconhecem valor na satisfação das necessidades vitais ou dos prazeres grosseiros, são aqueles que estão em um estágio anterior do desenvolvimento humano. “É o sentido mais antigo do termo. Remonta ao barbarus latino, termo que, adaptado do grego, designava sob o Império romano todos os povos estrangeiros” (2004, p. 22). 9  Wolff chega a essas definições a partir da análise de três fatos: “1- Certos grupos étnicos na Nova Guiné recorrem à antropofagia e devoram seus prisioneiros. Um costume e um povo bárbaros. 2- No ano de 2001, o regime talibã destruiu, no Afeganistão, estátuas gigantescas e admiráveis que datavam da Idade Média, patrimônios da humanidade. Uma prática e uma cultura bárbaras. 3- Em 1975, depois que o Khmer vermelho tomou o poder em Phnom Pehn, houve um gigantesco massacre da população cambojana das cidades, que resultou em 1 milhão de mortos. Uma prática e um regime bárbaros” (2004, p. 21). 8

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diferença cultural persistente entre a cidade e o campo constitui uma das condições de horror” e, por isso, “a desbarbarização do campo constitui um dos objetivos educacionais mais importantes” (2002, p. 125-126). Desbarbarizar o campo é civilizá-lo no primeiro sentido que Wolff nos oferece: “esse paulatino abrandamento dos costumes, de respeito aos modos, ao refinamento, à delicadeza, ao pudor, à elegância” (2004, p. 21). Em seguida, Wolff chama a atenção para a história dos conquistadores: ela comprova, através das sociedades dizimadas e dos nativos escravizados, que os comportamentos mais bárbaros, são muitas vezes atos daqueles que se consideram os mais civilizados no primeiro e segundo sentidos. Ele também lembra que, embora houvesse nazistas ignorantes, não era este o perfil predominante: os nazistas eram “burocratas frios e militares polidos” (2004, p. 26-27). A polidez torna o mau mais odioso porque nele denota uma educação sem a qual sua maldade seria de certo modo desculpável. [...] O crápula polido não é uma fera, nem um selvagem, nem um bruto: pelo contrário, é civilizado, educado e por isso indesculpável. Quem poderá dizer do malcriado agressivo se é mau ou simplesmente mal educado? [...] Assim como o sangue se vê melhor em luvas brancas, o horror mostra-se mais quando policiado. [...] Numa criatura grosseira, podemos acusar o animal, a ignorância, a incultura, atribuir a falta à pilhagem de uma infância ou a fracasso de uma sociedade. Num ser polido, não (Comte-Sponville apud Wolff, 2004, p. 28).

Detenhamo-nos um pouco na forte e bela imagem do sangue sobre as luvas. Ela nos diz que os atos brutais podem ser discretos, higiênicos e até aprovados pela ciência ou impregnados com a doçura da justiça: a violência prescinde de machados. Não nos parece mais assustador e injustificável quando a barbárie se manifesta entre os eruditos? Ora, se a essência da educação fosse a pacificação dos costumes, não conheceríamos exemplares de professores pouco menos agressivos que os bodes, a quem falta muito pouco para baterem suas cabeças umas nas outras. Também não teríamos conhecimento de universitários que, anualmente, de forma sádica, submetem os calouros a situações deploráveis, ofendendo-os em sua humanidade em ritos de iniciação que, talvez dentro de pouco tempo

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– e nossa suspeita parte do exame de suas estratégias de humilhação cada vez mais bem elaboradas – culminem em cerimônias antropofágicas. Deparamo-nos assim com os limites da educação, quando por meio dela se pretende domesticar os bárbaros, pois o “civilizado” não é mais uma fonte confiável de exemplaridade. Mas, talvez a Glória Kalil possa nos dar alguma resposta: tudo é só uma questão de combinar bem as peças, de cruzar bem as pernas, de se equilibrar sobre os saltos. Adorno, diante desse impasse, desloca a questão da barbárie da esfera da racionalidade para a da sensibilidade – e não se trata aqui da nobre sensibilidade que atribuímos àqueles ou que são artistas ou que sabem de cor toda a história da arte. Auschwitz só foi possível porque as pessoas civilizadas e esclarecidas se tornaram profundamente indiferentes, ao ponto de a frieza sedimentar-se, constituir-se como um traço de caráter e perpetuar-se através de uma ordem social que a produz e a reproduz ad infinitum. Algo só poderia ser feito a partir da infância, isso se houvesse mestres que não carregassem as marcas da sociedade na estrutura do caráter, que não premiassem a dor e a capacidade de suportá-la10. Se não há como ensinar o amor, única solução contra a barbárie, que a educação seja dirigida a uma autorreflexão crítica para evitar que as pessoas se   “Agrada pensar que a chance é tanto maior quanto menos se erra na infância, quanto melhor são tratadas as crianças. [...] Mas, sobretudo não é possível mobilizar para o calor humano pais que são eles próprios, produtos desta sociedade, cujas marcas ostentam” (ADORNO, 2002, p. 135). Convém confrontar a noção de caráter de Adorno, de influência freudiana, com a caracterologia de Erich Fromm, elaborada em toda a sua obra e concentrada em Análise do homem (1986). Diferente da caracterologia de Freud que é baseada na teoria da libido, a de Fromm tem a sua base fundamental na relação pessoa-mundo, nos processos de assimilação e socialização. Para Fromm, embora o caráter seja essencialmente formado pelas experiências da infância, é modificável, até certo ponto, pelos insights e novas experiências. A criança é modelada pelo caráter de seus pais, e eles mesmos e seus métodos de educação são determinados pela estrutura social da cultura. Fromm forja sua noção de caráter social, que permite um salto em relação à teoria freudiana: se o homem fosse de fato tão maleável, poderia se adaptar a quaisquer padrões a ele impostos, totalmente passivo diante das combinações sociais, o que a História demonstra não ser verdade. O caráter social é, portanto, como um denominador comum entre as características intrínsecas ao indivíduo e sua cultura, é uma reação da pessoa às oportunidades e imposições externas que a sociedade oferece para a satisfação das necessidades existenciais.

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integrem, irrefletidamente, a qualquer coletivo. Adorno, contudo, não pretende elaborar um projeto educacional. Antes, o que ele deseja mostrar é que aquele caminho no qual caminhávamos cheios de esperança é, na verdade, um beco sem saída. A indiferença é este muro intransponível, que interrompe o curso que estávamos seguindo. Mas, não vamos ficar parados aqui, fazendo companhia para o nosso caro Adorno, contemplando, em posição de Lótus, esse muro de impossibilidades enquanto cantamos o mantra “esta é a nossa realidade”. Para avançarmos, porém, teremos que cavar uma saída e, para tanto, só poderemos nos servir de nossas próprias mãos e, sem um mapa desenhado, teremos que nos orientar por pistas. Em primeiro lugar, e de algum modo, isso já foi esboçado, não podemos mais fazer coro a essa ideia de educação contra a barbárie, porque isso recairá certamente, malgrado os nossos esforços, na noção de criança-modelável. Se não é a meta da educação modelar os bárbaros, precisamos também definir qual é a sua meta, qual é seu sentido, o que podemos esperar dela, afinal. A nossa hipótese é de que a “modelagem” feita em nossos estabelecimentos de ensino, não só apaga a singularidade como também se atém a ensinar a única língua conhecida das sociedades civilizadas: a indiferença. Portanto, não podemos compreender a indiferença como uma forma de barbárie, pois a indiferença, apesar de pressupor a decisão de se omitir da responsabilidade da palavra, é o idioma vigente no qual instruímos os nossos bárbaros, para fazer deles, acima de tudo, bons operários. Além do mais, o bárbaro, apesar de gaguejar no próprio idioma ou desconhecer o idioma de seus conquistadores ou de sua nova pátria, não se calava11. Neste ponto torna-se claro quem é o bárbaro que pretendemos reabilitar e já se pode entrever qual é a sua importância para repensar nossa realidade educacional, que se apropriou do ideal megalomaníaco de Comenius, que pretendia ensinar tudo a todos e uniformizar todas as 11 Camille Dumoulié, no artigo “Devir bárbaro ou a potência do caos” escreve: “o termo barbárie designa, antes um fenômeno linguístico: aquele que não fala a língua dos civilizados e parece gaguejar. Desse ponto de vista o devir-bárbaro [...] consiste em falar uma língua ‘bárbara ou berbera’ na própria língua” (2004, p. 34).

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inteligências, para equalizar a todos no nível mais baixo de intelectualidade e no nível mais grave de apatia. O nosso bárbaro não é só o estrangeiro, que fala um dialeto que ameaça destruir o mundo no qual está de passagem, mas também é a interjeição de espanto, que tem sido suprimida pela frieza, e que, ao invés de representar uma ameaça para o mundo, poderia ser o modo de renová-lo. O bárbaro como metáfora para a juventude When I was young It seemed that life was so wonderful A miracle, oh it was beautiful, magical And all the birds in the trees Well they’d be singing so happily Oh joyfully, oh playfully watching me But then they sent me away To teach me how to be sensible Logical, oh responsible, practical And they showed me a world Where I could be so dependable Oh clinical, oh intellectual, cynical. (…) Now watch what you say Or they’ll be calling you a radical A liberal, oh fanatical, criminal Oh won’t you sign up your name We’d like to feel you’re Acceptable, respectable, oh presentable, a vegetable!12 The logical song, Supertramp

Renovar o mundo não significa colocar na educação das crianças a esperança de um lugar melhor no futuro, pois tal concepção, como lembra Hannah Arendt, seria eficaz somente nas tiranias, roubando as 12 “Quando eu era jovem/Parecia que a vida era tão maravilhosa/Um milagre, ela era tão bonita, mágica/E todos os pássaros nas árvores/Estavam cantando tão felizes/Alegres, brincalhões, me observando/Mas aí eles me mandaram embora/Para me ensinar a ser sensato/Lógico, responsável, prático/E me mostraram um mundo/Onde eu poderia ser muito dependente/Doentio, intelectual, cínico/(...) Agora cuidado com o que você diz/ Ou eles vão te chamar de radical/Um liberal, fanático, criminoso/Você não vai assinar seu nome?/Gostaríamos de sentir que você é/Aceitável, respeitável, apresentável, um vegetal!” (A tradução é nossa).

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crianças dos pais e antagonizando-os13. Arendt, para além da esperança na construção de um futuro melhor pela educação infantil, factível somente se as crianças fossem separadas dos pais e criadas em instituições do Estado (2004, p. 265) ou pelo “banimento de todas as pessoas mais velhas do Estado a ser fundado” (1988, p. 225), se acerca do tema por outra perspectiva: “refletindo sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização, ou seja, sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana” (1988, p. 234). Apesar da importância dada àqueles que são – por nascimento e por natureza – novos, em todas as utopias políticas desde os tempos antigos e reapropriada nos discursos pedagógicos, tem-se acostumado a submetê-los ao mundo dos adultos, e nisto está o grande equívoco: o que quer que o mundo adulto possa propor de novo é necessariamente mais velho do que eles mesmos. Pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recémchegados sua própria oportunidade face ao novo (1988, p. 226).

Para Arendt, “a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo”14 (1988, p. 223). O que coloca a educação 13 Hannah Arendt dedica à educação um único ensaio A crise na educação, onde pretendia esclarecer algumas polêmicas suscitadas pela publicação de Reflexões sobre Little Rock, no qual ela analisou a inclusão forçada de alunos negros em uma escola de brancos, no sul dos Estados Unidos. 14 Vanessa Sievers de Almeida, em Educação e liberdade em Hannah Arendt faz o importante esclarecimento a respeito da noção de mundo para Arendt: “O mundo, para Arendt, não é simplesmente o que nos rodeia, mas um espaço construído pelo trabalho e constituído pela ação. Construções e artefatos garantem aos seres humanos um lugar duradouro no meio da vida e da natureza, onde tudo aparece e desaparece, isto é, vida e morte se alternam constantemente. Nesse espaço construído, os seres humanos podem criar formas de convivência e interação que vão além da preocupação com a mera sobrevivência ou continuidade da espécie, embora as necessidades básicas não deixem de existir e precisem ser supridas antes de termos a possibilidade de participar no mundo. No entanto, Arendt (1983) enfatiza que nossa existência abrange esferas onde essas necessidades não são os fatores determinantes por excelência e que isso é específico do ser humano, em contraposição ao resto da natureza. Sendo assim, Arendt (1983) distingue entre a ativi-

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entre as atividades mais elementares e necessárias, não é o vínculo com o exercício da cidadania: é a existência de seres humanos em formação, não concluídos, que são também novos em um mundo humano, que existia antes deles e do qual desconhecem tudo. A existência da criança representa um duplo desafio: ao mesmo tempo em que ela precisa ser protegida do mundo, o mundo também precisa ser protegido do novo que o assedia, pois a criança pode não percebê-lo como um bem comum, que deve ser mantido para as gerações futuras15 e por isso, a entrada no mundo deveria ser feita aos poucos, por meio da escola, que seria uma espécie de útero exterior à família, onde a criança seria protegida até estar preparada para transitar da esfera privada do lar para a esfera pública. Se a criança está neste lugar de transição, a escola16, o jovem, que já está na esfera pública, é sempre um forasteiro. Não só um forasteiro, ele é uma novidade. Esse ser singularmente novo aparece entre nós de modo incompleto, mas com a capacidade de realizar o infinitamente improvável e, por isso, ele representa, também, uma ameaça: o jovem, da perspectiva dos velhos, é um bárbaro. E, diante dele, podemos reconhecer sua importância para que o mundo, que já está fora dos eixos, não pereça com os seus habitantes e prepará-lo para a ação livre. Ou então, e é o que tem sido feito, podemos arrancar de suas mãos a possibilidade de fazer algo novo, ao ditar sua aparência futura. A nossa responsabilidade em relação à educação dos jovens, não é ainda pensar como um adulto se devemos ou não docilizá-los. A questão nos toca mais diretamente, pois, somos nós próprios ainda jovens, dade humana que se preocupa com as necessidades vitais - o labor - e as atividades que dizem respeito ao mundo humano - o trabalho, a ação e o pensamento” (2008). 15   A necessidade de proteção faz da família o lugar mais seguro para a criança, um escudo contra o mundo em seu aspecto público, que não se interessa pela vida qua vida, mas pelo trabalho com que cada pessoa contribui para a construção do mundo em comum. 16  É importante ressaltar que, para Arendt, só as crianças são educadas. “Quem quer que queira educar adultos, na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade política. Como não se pode educar adultos, a palavra educação soa mal em política” (1988, p. 225).

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incompletos, imprevisíveis e estrangeiros em um mundo de possibilidades pré-determinadas, de regras que nos são dadas, de comportamentos que são esperados, de palavras que podem ser “bem ditas” ou “mal ditas”. A obediência às regras da sociedade, condição para sermos aceitos e bemsucedidos, nos anuncia a morte do mundo, pois nós já nascemos velhos ou aspirando à velhice: queremos um lugar seguro, pois tudo para nós é ainda incerto e, para conquistá-lo, aprendemos a ficar sentados e a falar apenas o permitido, abrimos mão, nós próprios de empreender alguma coisa nova, o que garantiria a sobrevivência do mundo, como se tivéssemos alguma coisa a perder além do medo, inculcado e reforçado pelos nossos tutores, como disse Kant, ao mostrarem a possibilidade de exílio como o grande perigo que nos ameaça se tentarmos andar sozinhos. Mas, não há o que temer no exílio, ele é uma experiência libertadora: “no exílio, onde o cobertor do hábito foi retirado, passamos a perceber de forma mais apurada o mundo e, tornamo-nos revolucionários” (Feitosa, 2004: 42). A presença do exilado, que é bárbaro aos olhos dos pertencentes àquela pátria, revela a velhice daqueles que se consideravam novos e os faz descobrir a fragilidade do lar, no qual se sentem como legumes, enraizados e, orgulhosos de suas raízes, denominam todo o movimento de mudança como atos bárbaros. Mas, se pensarmos como Wolff, que uma cultura bárbara é “toda cultura que não disponha, em seu próprio cerne, de estruturas que permitam admitir, assimilar ou reconhecer outra cultura – ou seja, a simples possibilidade de outra forma de humanidade” (2004, p. 41), não seria esse modelo muito mais compatível com os ideais de universalização e padronização do que com a mudança de olhar que exige a presença daquele que nunca esteve aí antes?. À

guisa de conclusão: o que a filosofia tem em comum com os

jovens-bárbaros?

O que é que pode fazer o homem comum neste presente instante senão sangrar? Tentar inaugurar a vida comovida, inteiramente livre e triunfante? www.inquietude.org

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O que é que eu posso fazer com a minha juventude quando a máxima saúde hoje é pretender usar a voz? (...) Era uma vez um homem e seu tempo... (Botas de sangue nas roupas de Lorca). Olho de frente a cara do presente e sei que vou ouvir a mesma história porca. Conheço o meu lugar, Belchior

Se a presença do bárbaro, metáfora para a juventude, promove esse verdadeiro abalo sísmico nas estruturas decrépitas do mundo dos adultos ao provocar que eles reflitam sobre suas certezas frágeis, podemos dizer também que o exílio é um momento propício para que nos tornemos filósofos? Não seriam também os filósofos eles mesmos bárbaros, por falarem uma língua diferente da falada em seu tempo? Também não seriam os filósofos sempre estrangeiros por conseguirem ver as coisas velhas do mundo, com um olhar de espanto, como se fosse pela primeira vez? O jovem e o filósofo, expressos pela figura do bárbaro, se encontram em um mesmo exílio: Um destino de solidão é o presente que lhe dão seus contemporâneos. Onde quer que ele viva, o deserto e a caverna já estão aí. (...) Parece que um artista, e sobretudo um filósofo, existiria por acaso na sua época, como um solitário ou como um viajante extraviado e atrasado (Nietzsche, 2007, p. 160; 202).

Somos tentados a crer que a filosofia apresentaria às instituições de ensino um novo ideal de formação, por ter em comum com os jovens o caráter de estrangeiridade17. Somos tentados a crer que, por meio dela, 17  Nietzsche (2007), por ter em Schopenhauer um exemplo de educador e de filósofo, tenta, através dele, mostrar como podemos nos educar contra o nosso tempo, pois, mesmo se consideramos “todo grande homem como o verdadeiro filho do seu tempo e como aquele que sofre, em todo caso, com todas as mazelas deste tempo, da maneira mais intensa”, a época não passa de uma falsa mãe e seu pretenso filho não passa de um bastardo. Se Schopenhauer conseguiu se tornar um homem magnífico foi porque ele, “desde a mais tenra juventude (...), se levantou contra essa falsa mãe” e porque “ele sabia bem que há nesta terra, para buscar e alcançar, coisas mais elevadas e mais puras do que uma tal vida

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seria possível criar um modelo educacional que não pretendesse arrancar dos estudantes suas falas destoantes, que ela contribuiria para uma educação libertária ao denunciar uma formação apressada e voltada para a profissionalização e que, ainda, nos ajudasse a nos educar contra a educação que nos foi inculcada. Mas, nos deparamos com uma multidão de realistas que nos mostram que esperar tanto da filosofia é um exagero. Se a filosofia não pode hoje apresentar nenhuma novidade é porque ela não existe mais, ou existe aleijada, dentro das universidades. Ou, em outras palavras, porque os filósofos de hoje não são bárbaros, não só no sentido de que perderam a capacidade de espanto, mas também no sentido de que já não são mais estrangeiros, por falarem a mesma (não) língua que falam as massas. Se a Filosofia poderia ser um brado, a história a amordaça18. Que seu ensino seja reduzido ao ensino dos conceitos, com o pretexto de que é justamente o conhecimento deles que nos autoriza a filosofar, parece tão absurdo, para os que acreditam em seu caráter libertário, quanto se ouvir de jovens apoiados em muletas, que são exatamente elas que os fazem andar em alta velocidade. A esse respeito, a tese principal de Nietzsche é a seguinte: o ensino universitário da filosofia não prepara o estudante para pensar, agir e viver filosoficamente; pelo contrário, o “instinto filosófico” é imobilizado pela cultura histórica. (...) As questões históricas introduziram-se de tal modo na filosofia universitária que essa se resume em perguntas como: o que pensa tal ou qual filósofo? Merecerá tal lição ser realmente aprendida? É ela realmente um estudo de filosofia? (...) Em lugar de levar os estudantes a levantarem questões sobre a existência, preocupa-se com as minúcias da história da filosofia; assim, a filosofia se reduz a um ramo da filologia. Como consequência, do mesmo modo que de conformidade à época”(p. 162-163). 18 “Quem deixa que interponham entre si mesmo e as coisas as noções, as opiniões, os acontecimentos do passado, os livros, quem portanto, no sentido mais amplo do termo, nasceu para a história, este não verá jamais as coisas pela primeira vez e não será jamais ele próprio uma dessas coisas que se vê pela primeira vez; mas ambas as coisas combinam reciprocamente no filósofo, porque é preciso que ele tire de si mesmo o maior ensinamento e porque ele faz uso para si mesmo da imagem e do resumo do universo” (NIETZSCHE, 2007, p. 205).

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a filologia está interessada apenas nas etimologias, e não em um trabalho com a palavra viva, a filosofia restringe-se a estudar o pensamento morto, que não mais serve a vida (DIAS, 2007, p. 269).

Que alguém conheça profundamente o “conceito de papelcrepom em X”, isso demonstra apenas que ele é um bom biógrafo. Que ele se dedique anos e anos em sua pesquisa bibliográfica, isso demonstra que ele é muito paciente e um leitor atencioso. Que ele se dedique a vida inteira a comentar as linhas de sua tese de doutorado, isso demonstra que ele está orgulhoso de seus resultados. Que ele se sinta feliz com esse trabalho de compilação tão árduo, não demonstra nada. E, mesmo com essa confusão entre história da filosofia e filosofia que as fundiu em um termo como “história filosófica da filosofia”, reivindicamos a presença da filosofia como disciplina obrigatória no Ensino Médio, com aquele realismo que nos impede de acreditar que ela possa trazer algo de inédito, que possa contribuir para uma restauração do sistema educacional, ou que ao menos possa contribuir para que o ensino, a figura do professor e do aluno sejam tratados como questões filosóficas. Qual é o sentido, então, dessa inclusão forçada? Sobrecarregar os alunos ou dar uma ocupação aos licenciados? Mas, em algo concordam os realistas e os utópicos: não se pretende fazer filosofia nas escolas secundárias. Se os primeiros dizem que não é este o objetivo da presença dessa disciplina nos currículos, nós, os utópicos, dizemos que não é este também o da sua presença nas universidades. Isso porque, o que fazemos sentados durante anos é só aprender a pensar através de opiniões alheias e nunca saímos, por comodismo, de nosso estado autoinculpável de menoridade. Não andamos com os nossos próprios passos e, mesmo se andássemos, isso não nos tornaria menos violentos e mais filósofos, apesar de ter-nos tornado mais refinados. Os alunos não conseguem pensar por si mesmos, menos ainda seus professores. São estes (os professores) que postulam que “o filósofo universitário não precisa ser um pensador, constituindo, no máximo, um ‘repensador e um pós-pensador’, um conhecedor erudito de todos Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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os pensadores, com os quais poderá contar para poder dizer algo aos seus alunos” (DIAS, 2007, p. 271). Não há nenhum desafio ao escrever um texto, por exemplo, pois munidos de seus projetos de pesquisa, se escondem atrás daqueles conceitos que conhecem tão bem e atrás do autor que estudam especificamente; e a escrita, que deveria doer como um parto, sai apressada e líquida por entre as pernas. Afinal de contas, não é preciso mais do que fazer resenhas e citar vários autores para ser pontuado no Lattes, o que, além de ser um pecado grave, demonstra que não se conheceu a nenhum com profundidade. A tendência à especificação torna os filósofos de hoje como funcionários de montadoras de automóveis, que conhecem tão bem o parafuso do qual foram encarregados, ao ponto de poderem descrever cada uma de suas curvas e de explicá-las, mas que pouco sabem a respeito do resto. E nossas instituições de ensino, pela mesma tendência, funcionam como uma pizzaria, na qual a pizza de Filosofia é composta por uma massa velha e endurecida, com um conceito em cima e mais nada. O filósofo, que seria para Nietzsche (2007, p. 201) como uma flecha que a natureza lança no meio dos homens, esperando atingir algum ponto, foi de tal modo coagido pela história, que não consegue atingir nem a si mesmo e, ainda repete de frente para um espelho (ou diante de uma plateia, de alunos ou de colegas): “como você quer pensar sem ter lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger e o livro de fulano e sicrano sobre eles?”19 E assim, quando aprende as normas, ele perde o estilo de sua escrita. Vejamos, ainda que rapidamente, o que diz Deleuze (1998, p. 12-13) em seus Diálogos: Conseguir gaguejar em sua própria língua, é isso um estilo. É difícil porque é preciso que haja necessidade de tal gagueira. 19  Segue a citação completa: “a história da filosofia sempre foi o agente de poder na filosofia, e mesmo no pensamento. Ela desempenhou o papel de repressor: como você quer pensar sem ter lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger e o livro de fulano e sicrano sobre eles? Uma formidável escola de intimidação que fabrica especialistas do pensamento, mas que também faz com que aqueles que ficam de fora se ajustem ainda mais a essa especialidade da qual zombam” (DELEUZE, 1998, p. 21).

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Ser gago não em sua fala, e sim ser gago da própria linguagem. Ser como um estrangeiro na própria língua (...), falar em sua língua própria como um estrangeiro. Proust diz: “Os belos livros são escritos em uma espécie de língua estrangeira” (...) É a definição do estilo.

Ser bárbaro, jovem e filósofo é, portanto, um estilo. Não sê-lo é a morte. O que foi traçado neste texto foi um caminho de fuga, perseguindo as pistas que surgiram, costurando retalhos sobre uma intuição fragilíssima, sabendo do risco de trazer à luz um verdadeiro monstro. Na introdução, mostramos o nosso cenário: um processo educativo que, desde tempos remotos, está voltado para a padronização e docilidade. Na segunda parte, resgatamos três sentidos atribuídos à figura do bárbaro (bruto, inculto e desumano) para reabilitá-la no sentido de estrangeiro que não sabe a língua do lugar onde está de passagem e nos lembrando de que o nazismo foi arquitetado por homens refinados e polidos e aceito pelos membros cultos de uma sociedade civilizada. A hipótese pela qual nos guiamos foi a de que, se o nazismo foi possível pela indiferença com aqueles que foram assassinados, a raiz dessa indiferença estaria no sistema educacional, voltado para a domesticação dos bárbaros. Para superá-la seria preciso repensar a educação e, diante dessa necessidade, reportamo-nos a Hannah Arendt: para ela, a função da escola é “ensinar como o mundo é” e a educação é “o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens” (1988, p. 246-247). Ao invés de silenciar os jovens, de docilizá-los, de torná-los indiferentes a si mesmos, dissemos que deveríamos começar a pensar em um sistema educacional que fornecesse a eles os instrumentos necessários para falarem seu próprio dialeto e para quebrar o mundo em pedacinhos e reconstruí-lo. Visto que o filósofo, assim como o jovem, é um bárbaro, pensamos que talvez a filosofia pudesse ser um desses “instrumentos”. O que Nietzsche nos disse, ao contrário do que esperávamos, foi que a filosofia tem sido reduzida ao ensino de um pensamento morto, Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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pelos filósofos universitários que “devotam à morte as novas ideias que não receberam o selo da consagração” (DIAS, 2007, p. 272). Desse modo, o filósofo não pode mais ser considerado um bárbaro, porque não fala nada de novo e porque seu pensamento não é mais perigoso, por ter fincado suas raízes no Estado. O que podemos concluir é que nossa próxima tarefa deve ser reabilitar a figura do bárbaro na filosofia, assim como na educação. Para isso, é preciso que cada jovem ou filósofo, se esforce para ser sempre um viajante, para desenraizar-se. Enquanto isso não acontecer, a educação, a filosofia e a juventude não serão mais do que belas palavras.

Referências ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. 3.edição. São Paulo: Paz e Terra, 2003. ARENDT, Hannah. “Reflexões sobre Little Rock”. In: Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, pp.261-281. _______. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mário W. Barbosa de Almeida. 2ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988. COMENIUS, João Amós. Didática magna. Tradução de Ivone Castillo Benedetti. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006. DELEUZE, Gilles ; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora Escuta, 1998. FEITOSA, Charles. “Pensar, migrar”. In: LINS, Daniel e PELBART, Peter Pál (orgs.) Nietzsche e Deleuze: Bárbaros, civilizados. São Paulo: Annablume Editora, 2004, pp. 39-44. DIAS, Rosa Maria. “Cultura, filosofia e educação no pensamento de Nietzsche”. In: LINS, Daniel (org.). Nietzsche / Deleuze: imagem, literatura, educação. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza, CE: Fundação www.inquietude.org

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