WINAND; RODRIGUES; AGUILAR. Defesa e Segurança no Atlântico Sul.pdf

May 29, 2017 | Autor: Thiago Rodrigues | Categoria: International Security, Strategic Studies, Defence and Strategic Studies
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

reitor

Prof. Dr. Angelo Roberto Antoniolli

vice-reitor

Prof. Dr. André Maurício Conceição de Souza

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

coordenadora do programa editorial Messiluce da Rocha Hansen

coordenador gráfico Vitor Braga

conselho editorial Adriana Andrade Carvalho Antônio Martins de Oliveira Junior Ariovaldo Antônio Tadeu Lucas Aurélia Santos Faroni José Raimundo Galvão Luisa Helena Albertini Pádula Trombeta Mackely Ribeiro Borges Maria Leônia Garcia Costa Carvalho Messiluce da Rocha Hansen Ubirajara Coelho Neto

projeto gráfico, e editoração eletrônica Jeane de Santana

capa

Nestor Alves Junior

REVISOR

Matheus de Oliveira Pereira

Degravação de Palestra Franciele Cerqueira de Oliveira

UFS Cidade Universitária Prof. José Aloísio de Campos CEP 49.100 - 000 – São Cristóvão - SE. Telefone: 2105 - 6922/6923. E-mail: [email protected] Site:www.editora.ufs.br Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita da Editora. Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Organizadores: Érica C. A. Winand Thiago Rodrigues Sérgio Aguilar

SÃO CRISTÓVÃO-SE/ 2016

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE Defesa e segurança do Atlântico Sul : VIII ENABED [recurso eletrônico] / Érica C. A. Winand, Thiago Rodrigues, Sérgio Aguilar (orgs.). – São Cristóvão : Editora UFS, 2016. PD313d

255 p. ISBN: 978-85-7822-541-4(Impresso) ISBN: 978-85-7822-542-1(Internet) 1. Segurança internacional. 2. Atlântico Sul, Oceano – Defesa. 3. América do Sul – Defesa. 4. África – Defesa. I. Winand, Érica C. A. II. Rodrigues, Thiago. III. Aguilar, Sérgio. CDU 355/359(261.6)

SUMÁRIO 7

Apresentação Érica Winand, Thiago Rodrigues e Sérgio Aguilar

PARTE I – O Atlântico Sul: desafios estratégicos – 12

13 Defesa e Segurança no Atlântico Sul Celso Amorim

21 O Atlântico Sul: Segurança, Defesa e desafios

tecnológicos

William de Souza Moreira

32 Desafios para o nível operacional na defesa do Atlântico Sul Carlos Augusto de Fassio Morgero

50 Brasil e Palop no Atlântico Sul: Cooperação para o Desenvolvimento, Política E Defesa (1974-2014)

Kamilla R. Rizzi

63 A Cooperação Brasileira com Países Africanos Gerhard Seibert

PARTE II– Paz e Segurança na América do Sul: aspectos teóricos, conceituais e operacionais – 86

87 As atribuições das Forças Armadas nos países

sul-americanos

Héctor Luis Saint-Pierre e Laura Donadelli

105

Atajar la sudestada

Ernesto López

113 Misiones militares y roles multifuncionales: experiencias suramericanas Pablo Celi

126 Nubes de tormenta en horizonte y nuevas

misiones para las Fuerzas Armadas en América del Sur: Reflexiones desde Uruguay

Julián González Guyer

137 A contemporaneidade dos conceitos de paz e violência em Johan Galtung e sua aplicabilidade para a América do Sul Marcos Alan S. V. Ferreira

149 Ministerios de Defensa: Un Vistazo a la

America Latina Ernesto López

PARTE III– Brasil - capacidades, entorno estratégico e aspectos institucionais da defesa– 160

161 As demandas estratégicas que condicionam o preparo do poder naval brasileiro

Álvaro Augusto Dias Monteiro

186 Mercado Internacional de Aeronaves

Militares:Um Modelo dos Requisitos para a Inserção Brasileira Érico Duarte e Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi

213 O direito à exploração em plataformas conti-

nentais estendidas André Panno Beirão

224 Era uma vez um Complexo Regional de Segurança: Entorno Estratégico brasileiro ou Vazio de Poder Sul-Americano? Augusto Wagner Menezes Teixeira Júnior

243 Os Militares e a Política

João Roberto Martins Filho, Paulo Ribeiro Cunha, Samuel Alves Soares e Sued Castro Lima

APRESENTAÇÃO

O

presente livro é um compilado de textos selecionados pela Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) que, em seguida, foram recomendados ao aprofundamento por seus ilustres autores, expositores de mesas-redondas sucedidas durante o VIII Encontro Nacional (VIII ENABED), ocorrido em Brasília- DF, entre os dias 08 e 10 de setembro de 2014. O evento contemplou como eixo temático principal a Defesa e a Segurança do Atlântico Sul e sua importância ao Brasil e a sua vizinhança continental e extracontinental. Ainda que aquele tenha constituído o eixo precípuo das exposições e discussões, corroborando linha de ação consolidada a cada encontro nacional, o VIII ENABED acolheu do mesmo modo temas que seguem demandando especial atenção dos acadêmicos e tomadores de decisão, influentes na área de Defesa, seja pela persistente polêmica epistêmica dos debates acadêmicos, ou pela fratura que alguns dados empíricos ainda representam à integridade da gestão da Defesa, no contexto democrático: a exemplo das missões das Forças Armadas, da atuação dos Ministérios da Defesa, do papel dos militares na política, da transparência orçamentária e do respeito aos Direitos Humanos. Problemas significativos do ponto de vista epistêmico dos estudos de Defesa também estiveram presentes, uma vez que o conhecimento é exímia variável estratégica da preservação ou da desconstrução do status quo. O livro está dividido em três partes quem em seguida apresentamos, com seus respectivos capítulos.

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8 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

Contemplando o eixo principal do evento, a primeira parte – “O Atlântico Sul: desafios estratégicos” – é aberta pela conferência do então Ministro de Estado da Defesa, Celso Amorim, que elencou uma série de temas e agendas referentes à política de defesa brasileira, além de destacar a centralidade do Atlântico Sul para o Brasil, enfatizando os laços culturais, políticos, econômicos e estratégicos que fazem daquele um espaço estratégico primaz para o Brasil. Em seguida, a partir de uma breve descrição da situação geoestratégica do Brasil, William de Sousa Moreira defende a importância da força naval em três dimensões: como instrumento de preservação da segurança no espaço marítimo, como mecanismo das relações exteriores do país e enquanto vetor do desenvolvimento científico-tecnológico nacional. O autor aponta, ainda, sua compreensão de carências e obstáculos à efetivação das possibilidades abordadas nas políticas públicas correspondentes. O terceiro capítulo, de autoria de Carlos Augusto Morgero, discute a importância do nível Operacional, “no qual ocorre o planejamento e controle das operações de um determinado teatro ou área de operações” dentro da doutrina militar brasileira, no bojo de literatura especializada sobre tática e estratégia, destacando a pertinência do debate ao atual modelo doutrinário brasileiro. O modelo brasileiro foi analisado à luz de análise comparativa com casos de outros países, como os pertencentes à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Kamilla Rizzi dedica-se a examinar a cooperação Brasil-África, frequentemente reconhecida como um dos principais elementos da política externa brasileira recente. A autora direciona sua exposição em três temas – desenvolvimento, política e defesa – concentrando-se em examinar a evolução dessa agenda com os Países Africanos de Língua Portuguesa Oficial (PALOP). Rizzi defende que o Brasil desempenha um papel de liderança na aproximação entre a África e o continente americano, raciocinando sobre como o interesse da promoção da estabilidade e segurança no Atlântico Sul, através da cooperação, baliza a ação brasileira em relação ao PALOP. Tema semelhante é desenvolvido por Gerhard Seibert que destaca um amplo conjunto de iniciativas e agendas envolvendo o Brasil e o continente africano, mormente a África austral e os Países Africanos de Língua Portuguesa Oficial (PALOP). O autor aponta resultados concretos colhidos pelo Brasil a partir de sua política para a África, como a maciça aderência dos países deste continente à candidatura brasileira para a chefia da FAO e da OMC, e evidencia os limites daquela agenda que, segundo Seibert, tem um potencial de alargamento muito superior ao por ora alcançado.

9 APRESENTAÇÃO

A segunda parte do livro, “Paz e Segurança na América do Sul: aspectos teóricos, conceituais e operacionais” é aberta com a contribuição de Héctor Luís Saint-Pierre e Laura Donadelli. Os autores partem de reflexão histórico-filosófica acerca dos conceitos de segurança e defesa, para em seguida realizar análise primária dos marcos normativos que regem a defesa e a segurança nos países sul-americanos. É constatado o crescente emprego de Forças Armadas em missões que, por sua natureza, estão adstritas ao campo da segurança pública, motivo pelo qual, Saint-Pierre e Donadelli chamam atenção para os riscos advindos da “policialização” das Forças Armadas, destacando a ocorrência de dupla disfuncionalidade: a descaracterização do instrumento militar naquilo é que sua função precípua, e a ineficiência para debelar efetivamente a criminalidade. Na sequência, Ernesto López reflete sobre o emprego de Forças Armadas em missões que excedem o escopo da defesa nacional. López aponta as dimensões para as quais o desvio de funções dos militares representa um risco tanto para a corporação, por inseri-la em atividades alheias à formação, doutrina e meios que dispõe, como também para a preservação do Estado do direito. O autor destaca ainda os rotundos fracassos da “guerra às drogas” empreendida no México e na Guatemala e ressalta os antagonismos da busca por segurança pública através dos meios militares. Em congênere linha de raciocínio, Pablo Celi revista as diferentes atribuições às Forças Armadas na América Latina, contextualizando-as tanto histórica quanto normativamente, e problematizando as origens e efeitos dessas decisões. Celi destaca ainda o papel desempenhado por organismos de cooperação regional, como a UNASUL, sobre o tema. Julian González Guyer aprofunda o debate sobre as novas missões das Forças Armadas na América Latina, por meio de análise pormenorizada do caso uruguaio. Guyer aponta como a experiência uruguaia de atribuir novas missões aos militares não gera contornos problemáticos para o Estado de Direito, visto que tais missões estão quase inteiramente vinculadas a atividades de manutenção da paz das Nações Unidas. Sem embargo, o autor coincide com as interpretações anteriores, no sentido de destacar que fora de um escopo muito bem delimitado, a ingerência castrense em esferas alheias ao seu ofício pode ser altamente problemática. Marcos Alan S. V. Ferreira traz à baila uma agenda de pesquisa ainda incipiente no País, voltada aos estudos da paz. Em seu capítulo, Ferreira traz uma síntese da contribuição seminal prestada pelo norueguês Johan Galtung, pioneiro no mundo no campo dos estudos da paz. Além de apresentar conceitos importantes da obra de Galtung, o capítulo traz significativa

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problematização do contexto sul-americano, a partir daquele referencial, adotando tom crítico a algumas interpretações correntes sobre os fenômenos da paz, guerra e violência na região. Na sequência, Ernesto López aborda panoramicamente a problemática envolvendo os Ministérios da Defesa na América Latina. López repassa o histórico de autonomia desfrutada pelas Forças Armadas na região, expresso de forma máxima no autocontrole castrense, bem como a posição tutelar desempenhada pelos militares sobre a política, cuja repercussão é elucidada pela trajetória de golpes de Estado, na segunda metade do século XX. O autor considera a permanência de espaços de autonomia militar, decorrente do insuficiente controle dos Ministérios da Defesa latino-americanos, como lesões à qualidade democrática. Álvaro Dias Monteiro inaugura a terceira parte do livro, intitulada “Brasil - capacidades, entorno estratégico e aspectos institucionais da defesa”. Em seu texto, Monteiro destaca um amplo leque de elementos relacionados ao poder naval, para dar substância à defesa de seu argumento central: o de que a construção de poder marítimo não pode se dar de forma efetiva através de iniciativas conjunturais e descontínuas, mas sim como política perene, resistente às mudanças de ventos políticos. Érico Esteves Duarte e Giordano Ronconi assinam o capítulo “Mercado Internacional de Aeronaves Militares: Um Modelo dos Requisitos para a Inserção Brasileira”. Os autores examinam o mercado internacional de aeronaves militares e sua distinção mercadológica e política, captando as características da inserção das empresas neste mercado e os possíveis desdobramentos a partir de cooperações internacionais na área. A partir de análise histórica e teórica, os autores buscam elaborar um modelo causal para captar as características para que empresas logrem competitividade no setor, sem que se deixe de fortalecer o complexo institucional de defesa nacional; assim como sem que se percam as variáveis que influenciam a inserção e cooperação internacionais. Além das considerações teóricas, o texto traz contextualização do recente processo de aquisição dos caças Gripen NG como estudo de caso sobre debilidades e oportunidades ao Estado brasileiro. André Panno Beirão defende que a atual questão de segurança jurídica na exploração de recursos na Plataforma Continental Estendida ainda se encontra em fase de acomodação de entendimentos, disputa de interesses, e mesmo, de poder. O autor aponta como alguns Estados ainda pressentem descrédito às decisões emanadas da CLPC e outros, sequer membros da CNUDM, também procuram pontuar seus entendimentos discordantes.

Érica C. A.Winand Thiago Rodrigues Sérgio Aguilar

11 APRESENTAÇÃO

Augusto Teixeira Júnior, docente da Universidade Federal da Paraíba, discute os impactos da competição estratégica russo-estadunidense sobre a segurança do entorno estratégico brasileiro. O autor questiona, por exemplo, se é possível considerar a existência de um entorno estratégico ou se este espaço seria melhor caracterizado como um vazio de poder, do qual se valem potências extrarregionais. Teixeira reforça seus argumentos a partir de conceitos como “penetração”, “sobreposição”, “alinhamentos” e “balanceamento”. O livro se encerra com um dos mais sensíveis e caros temas aos estudos de Defesa “os militares e a política no Brasil”. A partir dos debates realizados por grupo de trabalho atuante junto à Comissão Nacional da Verdade (CNV), o capítulo assinado por João Roberto Martins Filho, Samuel Alves Soares, Paulo Ribeiro Cunha e Sued Castro Lima coteja o processo de transição à democracia do Brasil com outros países – como Espanha e Argentina – e destaca um conjunto de recomendações no sentido de fortalecimento do Estado Democrático de Direito. De modo lúcido, os autores reconhecem que a subordinação dos militares à política e à Democracia são fundamentais para a continuidade e o aprofundamento dos trabalhos da CNV e elencam importantes recomendações aos tomadores de decisões, entre elas que seja feito o “Reconhecimento pelos comandos de cada força de que foram cometidos crimes contra os direitos humanos em dependências militares, durante a ditadura, acompanhado pelo pedido formal de desculpas à sociedade brasileira”. Agradecemos à ABED pela honra de representar seu esforço no sentido de fomentar pesquisas de fôlego, qualidade e impacto internacional nesta área que ainda tem tanto a desbravar.

PARTE I O ATLÂNTICO SUL

desafios estratégicos

DEFESA E SEGURANÇA NO ATLÂNTICO SUL C elso A morim 1

Introdução

Q

uero dar boas-vindas a todos os pesquisadores, professores e estudiosos aqui presentes. Aos que vêm de mais longe, em especial aos estrangeiros, faço votos que aproveitem a cordial hospitalidade de nossa terra, que compensa os desconfortos da longa viagem. Fico particularmente satisfeito com a presença de pesquisadores da América do Sul e da África. Suas perspectivas sobre a segurança dos espaços que compartilhamos, bem como sobre os desafios inerentes à promoção de nossos interesses comuns, são cruciais para a proteção de nossos respectivos patrimônios. Alegra-me saber do grande número de estudantes, inclusive de graduação, aqui presentes. Os operadores das políticas de defesa se beneficiam dos subsídios de encontros como este. Além disso, nossas posições se tornam mais claras para a sociedade, nossas ações ganham mais legitimidade, inclusive por meio da crítica. Ao envolver no debate pesquisadores de países amigos e próximos, esse processo contribui para edificar estruturas de apoio à profícua cooperação que envidamos com nossos vizinhos dos dois lados do Atlântico Sul. Afinal, a segurança deste

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Diplomata de carreira, foi Ministro de Estado da Defesa (2011-2015) e duas vezes Ministro de Estado das Relações Exteriores (1993-1995/2003-2010). Foi representante do Brasil junto ao GATT, embaixador junto às Nações Unidas e embaixador no Reino Unido.

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“rio chamado Atlântico”, na feliz expressão cunhada pelo Embaixador Alberto da Costa e Silva, depende de nossas ações concertadas. Muitos pesquisadores, como José Honório Rodrigues, nos ensinaram com detalhe os fluxos e refluxos migratórios que deram à sociedade brasileira sua matriz africana. Uma matriz que ajuda a definir nossa identidade e nos imprime traços civilizatórios, como sugeriram Gilberto Freire ou Darcy Ribeiro.

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*** O Brasil é um país pacífico por opção e por princípio, e logrou resolver pela negociação seus problemas de fronteira. Com sabedoria e prudência, em apoio a cálculos racionais, os fundadores da nossa diplomacia compreenderam os custos da guerra. Há 150 anos não temos conflitos armados com nossos vizinhos. Hoje dispomos da Unasul e do Conselho de Defesa Sul-americano, que reforçam a confiança recíproca. Nossa sociedade evoluiu sem grandes problemas de segurança na arena internacional, mas isso não impediu que as dinâmicas resultantes de conflitos alheios nos envolvessem nas duas guerras mundiais do século XX. Infelizmente, não temos garantias de que a comunidade internacional seja capaz de evitar novos conflitos de grandes proporções. E, caso ocorram, dificilmente o Brasil logrará permanecer insulado dos seus efeitos. Nossas riquezas naturais e nossa relevância política têm um papel no rumo dos acontecimentos no mundo. Isso é assim em tempos de paz. Na hipótese de guerra, mesmo entre terceiros, a capacidade que o Brasil possui de desequilibrar as dinâmicas políticas internacionais se tornaria ainda mais crucial, o que obviamente importaria em riscos. Usamos a nossa capacidade cotidianamente para promover a paz. Ao contribuir com o aprimoramento das estruturas de governança global, ao participar de operações de paz das Nações Unidas, ao manter a estabilidade de nosso entorno estratégico, ao cooperar com países menos desenvolvidos para reduzir a fome e as desigualdades, o Brasil exerce suas responsabilidades pela integridade do sistema internacional. Discretamente, o Brasil, sem descurar dos seus interesses como nação, colabora na redução de tensões e na construção de entendimentos. O Brasil tem a capacidade – e já a exerce na medida de suas possibilidades – de ser um “provedor de paz”. Mas nosso país também deve estar pronto para se defender e para dissuadir as ameaças de possíveis adversários. Vivemos em um mundo marcado pela incerteza, com alguns estudiosos falando no renascimento da geopolítica. Outros, mirando situações

*** É auspicioso que a ABED tenha escolhido como tema de seu Encontro neste ano a defesa e a segurança do Atlântico Sul. No Encontro do ano passado, em Belém, realcei, em minha mensagem, a prioridade que a Estratégia Nacional de Defesa confere à reafirmação incondicional da soberania brasileira sobre a Amazônia. Em relação ao Atlântico Sul, principalmente às águas jurisdicionais brasileiras, faço uma reflexão análoga. Nossa Política Nacional de Defesa dispõe sobre a necessidade de o Brasil consolidar sua capacidade dissuasória no Atlântico Sul, pelo robustecimento de seu poder naval. O submarino de propulsão nuclear brasileiro reforçará a estratégia nacional de consolidar uma Marinha polivalente, capaz de atuar em toda a extensão do Atlântico Sul. O desenvolvimento do Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul e os programas de aquisição de novos meios de superfície vão na mesma direção: não é mera compra, é também produção no Brasil. *** O Brasil possui a maior costa atlântica do mundo. Pelo Atlântico Sul, fluem 95% do comércio exterior brasileiro. Dos fundos desse oceano, o país extrai aproximadamente 88% de seu petróleo e 50% de seu gás natural.

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distintas, apontam para o ressurgimento da barbárie; ou, de forma mais elegante, da prevalência de padrões pré-civilizacionais. A preparação para a defesa requer tempo, paciência e perseverança. Ruy Barbosa, conhecido por sua brilhante defesa do princípio da igualdade soberana durante a Conferência da Haia, não desconhecia esse fato. É sua a máxima: “Esquadras não se improvisam” – e creio que poderia falar o mesmo sobre o equipamento de defesa como um todo. Ruy, assim como o Barão do Rio Branco, se preocupava com o aprestamento de nossas Forças Armadas. Ambos tinham consciência de que uma política externa pacífica exigia o respaldo de uma política de defesa robusta. As décadas de paz de que desfrutamos, em paralelo à necessidade de enfrentar graves problemas internos, levaram a sociedade brasileira a prestar menos atenção aos assuntos da paz e da guerra, e é natural que seja assim. A possibilidade de estar envolvido em um conflito armado não é algo óbvio para os brasileiros, mas isso não significa que essa hipótese não exista, mesmo contra a nossa vontade. Prudência e razão aconselham aprender com a História e preparar-se para eventualidades não antecipadas. Por isso, o foco no aprimoramento de nossas capacidades e na credibilidade de nossa dissuasão constitui um dos pilares de nossa Grande Estratégia.

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Além das já conhecidas riquezas encontradas na camada do pré-sal, novas prospecções indicam vultosas riquezas minerais, tanto em nossa zona econômica exclusiva quanto em nossa plataforma continental estendida. Recentemente, coroando um esforço conjunto da Marinha, do Itamaraty e da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais, nosso país recebeu autorização da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (a ISBA) para realizar pesquisa e exploração de minérios no Atlântico Sul, em área localizada para além de nossa plataforma continental (a Elevação do Rio Grande). A preservação dessas riquezas demanda concertação de ações e permanente cooperação nos níveis bilateral e multilateral, inclusive em matéria de defesa. Temos trabalhado com afinco pela aproximação com nossos parceiros da orla ocidental da África. Em uma leitura estratégica, da qual não se podem excluir elementos culturais e econômicos, devemos pensar a orla ocidental africana como se estendendo até Moçambique. Nossas afinidades nessa região não são apenas linguísticas, como costumamos pensar, mas culturais em um sentido mais amplo. Países como o Benin ou o Senegal – para mencionar apenas dois – têm um significado especial na história do Brasil, pois de lá saíram muitos dos escravos traficados para nosso país, que, no dizer de um estadista do século XIX, “civilizaram o Brasil”. Do ponto de vista da defesa, nossos interesses comuns têm-se traduzido em várias iniciativas. Nos anos 1990, o Brasil ajudou a criar a Marinha da Namíbia, onde até hoje estamos presentes com um grupamento de apoio. Lançamos, no ano passado, iniciativa similar com Cabo Verde, com vistas à formação de uma guarda costeira. Com Angola, adotamos uma ampla agenda de cooperação em defesa, no âmbito das três forças. Na sexta-feira passada, o Ministro da Defesa angolano esteve aqui em Brasília, assinei com ele um Memorando de Entendimento no âmbito da cooperação naval. Nossa parceria com a África do Sul, por sua vez, é variada. Por meio do IBAS, o grupo Índia, Brasil e África do Sul, realizamos um exercício naval bianual, a Manobra IBSA-Mar. Está em fase avançada o desenvolvimento de um míssil ar-ar brasileiro-sul-africano, o A Darter, que equipará as nossas novas aeronaves de combate Gripen. *** A cooperação também tem uma importante vertente multilateral. Ao criar a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, a ZOPACAS, em 1986, a Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu um marco na ins-

*** A experiência de solução pacífica de controvérsias observada na América do Sul e que buscamos para o Atlântico Sul é relativamente rara na esfera internacional. Não queremos perder essa condição. Não nos interessa que conflitos que nos são estranhos envolvam nossos povos em interações divorciadas da busca do entendimento e da cooperação. Não raro, potências extrarregionais concertam-se para encontrar suas próprias soluções para situações de crise ou instabilidade que afetem seus interesses, seja para a obtenção de petróleo, seja para a captura de recursos vivos. O aumento de atividades ilícitas, como ataques piratas e roubos a bordo na região do Golfo da Guiné, na costa africana, mobiliza atenção e recursos de países de fora da região. É de nosso interesse aprimorar nossa capacidade de proteger, por nós mesmos, o Atlântico Sul. *** Por meio de sua política externa voltada para a cooperação com os países banhados pelo Atlântico Sul e de sua participação em regimes internacionais com clara influência sobre essa região, o Brasil exerce seu poder

17 DEFESA E SEGURANÇA NO ATLÂNTICO SUL

titucionalização do Atlântico Sul como região livre de armas de destruição em massa, inclusive nucleares, e voltada para o intercâmbio pacífico. No âmbito da ZOPACAS, os 24 países ribeirinhos do Atlântico Sul – 21 africanos e três sul-americanos – articulam ações voltadas para o desenvolvimento regional e para a proteção coordenada de suas águas e de seus territórios. Em 2013, os países membros da ZOPACAS realizaram em Montevidéu sua VIII Reunião Ministerial, que aprovou um novo Plano de Ação, hoje em vigência. No marco desse Plano de Ação, o Brasil promoveu, em outubro do ano passado, o 1º Seminário da ZOPACAS. O encontro reuniu 23 dos 24 países membros para trocar experiências sobre temas de Segurança e Vigilância do Tráfego Marítimo e Busca e Salvamento. A defesa da soberania nacional na região envolve as chamadas “novas ameaças”, como a pirataria, o crime organizado, o terrorismo e o tráfico internacional de ilícitos. Francamente, de uma perspectiva histórica, tenho alguma dificuldade em considerar esses fenômenos “novos”. Mas, como os senhores bem sabem, esse é o jargão utilizado na literatura. Talvez esse questionamento seja objeto de discussão neste ENABED. O fato é que, por ser um espaço de fluxos intensos, o Atlântico Sul pode ser palco de ameaças de toda ordem, “novas” e “velhas”.

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brando, apoiado, porém, em capacidades crescentemente robustas. Trata-se de uma cooperação informada pela solidariedade e pelo compartilhamento de experiências, em dinâmicas que respeitam a autonomia dos países e as normas internacionais. O Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, em vigor no país desde 1994. É no quadro dessa Convenção que o país pleiteia estender sua plataforma continental, incorporando, conforme as condições geofísicas dos leitos marinhos, espaços entre as 200 milhas náuticas da Zona Econômica Exclusiva e o limite máximo de 350 milhas. Em 2004, o Brasil apresentou a Proposta de Limite Exterior de sua plataforma continental e a vem defendendo desde então. As implicações econômicas de um eventual êxito neste pleito são óbvias. Estamos engajados, ainda, em articulação com outros países sul-atlânticos, em defesa de interesses relacionados aos regimes ambientais. *** Dois aspectos de nossas relações internacionais se associam à promoção da segurança do Atlântico Sul e merecem atenção especial: a governança da Antártida e a questão nuclear. Em 1959, o Tratado da Antártida foi assinado em Washington e inaugurou um regime de cooperação internacional para o continente, em que os signatários se comprometem a suspender suas pretensões territoriais e iniciativas de militarização. Em 1980 e 1991, protocolos adicionais acrescentaram ao regime a preocupação com os recursos marítimos dos mares adjacentes à Antártida e a proibição de sua exploração mineral até 2041. Em 2014, o Brasil sediou a 37ª Reunião Consultiva do Tratado da Antártida e iniciou o processo de reconstrução da Estação Comandante Ferraz. Nossa presença na Antártida contribui para mantê-la desmilitarizada, aberta à pesquisa científica e sustentável, imprimindo uma dinâmica que poderia inspirar práticas de cooperação construtivas em favor do outro polo da Terra, o Ártico. A margem ocidental da região sul-atlântica beneficia-se, há quase meio século, do regime de não-proliferação inaugurado pelo Tratado de Tlatelolco, que proíbe a posse de armas nucleares, a realização de testes, o uso, a produção e a aquisição de armas nucleares pelos países da América Latina e do Caribe. O hemisfério sul como um todo é reconhecido como Zona Livre de Armas Nucleares (ZLAN), no marco da resolução 51/45 da AGNU, que louva o papel dos Tratados da Antártida, de Tlatelolco, de Rarotonga, de Bangkok e de Pelindaba, todos em vigor, na libertação do hemisfério sul de armas nucleares.

***

*** Desde a criação do Ministério da Defesa, há quinze anos, temos assistido a um crescente engajamento da sociedade em discussões sobre temas de defesa. A publicação, em 2013, do Livro Branco e de novas versões da

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Nas relações internacionais, a plena vigência das boas normas se fundamenta não apenas em princípios e sabedoria, mas também em expectativas de uso da força. Desenvolver nossa capacidade de defesa não constitui, pois, uma opção; trata-se de uma responsabilidade. Por isso, robustecer o poder brando do Brasil no Atlântico Sul é, também, parte de nossa grande estratégia. O maior dos nossos projetos com esse fim é o Programa de Desenvolvimento de Submarinos, que culminará com a construção do primeiro submarino brasileiro de propulsão nuclear. Em busca de autonomia tecnológica, foi criado, em julho de 2013, o Laboratório de Tecnologia Sonar. Parte das tecnologias desenvolvidas em prol da defesa da Amazônia Azul provém de empresas estatais, como a Empresa Gerencial de Projetos Navais (EMGEPRON), fundada em 1982, e a Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S.A. (Amazul). Quando falamos em Atlântico Sul, é natural que pensemos logo na estratégia e nas iniciativas da Marinha do Brasil. Mas o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira também têm importantes papéis a desempenhar. A FAB cumpre missões fundamentais de vigilância e defesa de nossa área marítima. Desde 2011, a FAB conta com as aeronaves de patrulha P-3AM Orion, sediadas na Base Aérea de Salvador. É natural que, em suas tarefas, nossa FAB coopere crescentemente com nações da América do Sul e da África. O Exército, em que pese sua “vocação territorial”, também tem um papel na segurança e na cooperação no Atlântico Sul. Isso fica evidente no interesse manifestado por parceiros africanos, como Angola, em colaborar conosco na estruturação de suas forças terrestres. O Exército também tem atualizado sua doutrina, o que se reflete na crescente compreensão do valor estratégico do chamado saliente nordestino em um eventual conflito no Atlântico Sul. A criação de empresas e o progressivo envolvimento da sociedade materializam, no plano nacional, nossos esforços de desenvolvimento e de contínuo aprimoramento da nossa Grande Estratégia. Seus fundamentos, em síntese, combinam cooperação e dissuasão, e seus desdobramentos se manifestam nos planos global, regional e nacional.

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Política Nacional de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa é também fruto e instrumento desse diálogo. A recente criação do Instituto Pandiá Calógeras objetivou prover nossa sociedade de meios mais adequados para aprofundar essa interlocução. Sua parceria com a principal Associação nacional de pesquisadores nesta área e com a Universidade que inaugurou os estudos das relações internacionais no Brasil – a UnB – sinalizam que o Pandiá está no bom caminho. Para a academia, é importante fazer chegar aos governantes, por canais de diálogo como este Encontro, suas conclusões, suas reflexões e mesmo suas inquietações e suas críticas. Para nós, no Governo, há o sentimento de que o processo decisório poderia se beneficiar mais da produção acadêmica. Gostaria de anunciar, a propósito, que dentro das próximas três ou quatro semanas, o Ministério da Defesa e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico tornarão pública uma Chamada de projetos de pesquisa na área da defesa nacional. Essa Chamada, voltada exclusivamente para o campo das Ciências Humanas, constituirá a primeira etapa do Programa Álvaro Alberto de Indução à Pesquisa em Segurança Internacional e Defesa Nacional. Um de seus objetivos será a produção de análises que possam ser úteis ao processo decisório sobre defesa nacional, especialmente no que concerne à implementação da Grande Estratégia brasileira. O programa inspira-se no compromisso com o investimento no potencial humano de nosso povo, que marcou a trajetória desse grande patriota, o Almirante Álvaro Alberto. Desejo a todos os integrantes do Encontro Nacional dias de muito aprendizado e de cooperação profícua. Muito obrigado.

O ATLÂNTICO SUL: SEGURANÇA, DEFESA E DESAFIOS TECNOLÓGICOS W illiam

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S ousa M oreira 1 21

Introdução Plus ultra!

A

o vencerem as lendárias Colunas de Hércules, os grandes navegadores do século XV se lançaram contra o que demarcava o limite do mundo conhecido. A inscrição “non plus ultra” (“não mais além”), segundo a tradição, dava o tom do alerta a eventuais aventureiros. Na passagem para o século XVI, contudo, as condições históricas estavam dadas para o surgimento de novas formas de pensar, que romperiam com a herança clássica e medieval. Foi assim que, na Revolução Científica, Francis Bacon optou pela epígrafe “plus ultra”, a partir da crença de que a “nave da ciência” nos ajudaria a vencer os limites do conhecimento sobre a natureza (HELFERICH, 2006). A modernidade foi o palco do extraordinário desenvolvimento tecnológico que transformou profundamente as relações do homem com o mar, abrindo novas oportunidades de aproximação entre os povos, para o bem e para o mal. Assim como o mar alavancou o comércio e as explorações de novas

1

Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos, da Escola de Guerra Naval.

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regiões do planeta, também foi fonte de disputas e via para projeção de poder, conquistas, dominação e escravidão. Na atualidade, as “autoestradas marítimas” seguem impulsionando o processo de globalização, mas ameaças – antigas e novas – também seguem fazendo uso dessas vias, como nos casos da pirataria, do narcotráfico, do contrabando e de outros ilícitos. Não obstante, o processo histórico permitiu avanços na governança das grandes extensões oceânicas em nível global. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), por exemplo, é um marco histórico que se legitima pela adesão de 166 países (2014). Essa convenção estabelece limites para águas jurisdicionais dos Estados e aponta caminhos para a gestão compartilhada dos espaços comuns, em benefício da humanidade, além de outros dispositivos. É notório que a preocupação da comunidade internacional sobre essa temática tenha crescido em função, por exemplo, das relações dos oceanos com o clima e com a vida no planeta, da importância como fonte de energia, de alimentos e de recursos naturais, e do fato de ser via para transporte de bens, serviços, pessoas e poder. Convém lembrar que estimativas do crescimento demográfico mundial apontam para uma população da ordem de nove bilhões até meados deste século, o que, associado ao processo de globalização dos mercados e de demanda por crescimento econômico, permite antever a tendência de aumento de pressão sobre os recursos dos oceanos. Não à toa, países vêm investindo pesadamente na explotação de fontes de energia fósseis em águas cada vez mais profundas, ao mesmo tempo em que se lançam à exploração das profundezas oceânicas da área, desenvolvendo complexos processos de mineração submarina. Assim, os oceanos se mostram, no século XXI, como as últimas fronteiras a serem exploradas no planeta e, no caso brasileiro, o Atlântico Sul se impõe como um espaço estratégico e vital. A presente exposição aborda aspectos constantes da proposta para reflexões da mesa redonda “Defesa da Amazônia Azul: cenários prospectivos, o papel das Forças Armadas e articulações internacionais”, por ocasião do VIII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ENABED – 2014). A partir do contexto geoestratégico da região, são apontados interesses, possíveis ameaças no espaço atlântico e as possibilidades de atuação da Marinha para o incremento da segurança marítima. São também feitas considerações sobre o processo de planejamento estratégico, a consequente configuração de meios e os desafios tecnológicos que derivam das grandes aquisições de defesa.

Contexto geoestratégico

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Na América do Sul se observa um ambiente de relativa paz e estabilidade entre Estados, se comparadas a outras regiões do mundo. Crises externas são eventuais e limitadas, e os conflitos internos são predominantemente político-sociais. O contexto geoestratégico favorece a defesa da região, notadamente pela distância dos principais polos de conflito no mundo. Nos planos regional e sub-regional, o Brasil desfruta de fronteiras terrestres há muito estabelecidas, não havendo contestações significativas. Igualmente, pelas características geográficas, os limites das águas jurisdicionais baseados na CNUDM não geraram contenciosos com os países vizinhos. As grandes extensões oceânicas representam uma primeira linha de defesa para os países da região e, por si só, já limitam o número de atores capazes de nela projetar poder militar. Ademais, no Atlântico Sul, as Marinhas dos países aí situados possuem capacidades operacionais limitadas, sendo que a maioria tem atuação apenas nas regiões costeiras, principalmente na costa ocidental africana. Não obstante, o processo histórico não permite dizer, absolutamente, que seja uma região imune aos conflitos ou aos efeitos deles. Pelo mar se deram as tentativas de invasão no período colonial e, na Segunda Guerra Mundial, navios brasileiros foram afundados por submarinos alemães. Em 1963, uma disputa por direitos de pesca da lagosta gerou uma improvável crise com a França, que envolveu movimentações de forças navais, ao final resolvida por meios diplomáticos. Em 1982, a região testemunhou a Guerra das Malvinas, ilhas cuja disputa vem prosseguindo por via diplomática. Amplamente projetado em direção ao Atlântico, a posição geográfica do Brasil lhe impõe responsabilidades consideráveis. Isso porque, naturalmente, esse espaço oceânico provê, além dos recursos naturais necessários à subsistência, os meios de comunicação fundamentais para a inserção econômica e política nos processos globais. No Atlântico Sul, o litoral brasileiro abre caminhos, ao Sul, em direção à passagem de Drake, que dá acesso ao Oceano Pacífico e ao continente antártico; e, na direção Sudeste, também ao Cabo da Boa Esperança (África), que abre as portas do Índico. A Leste, as águas levam à África Ocidental e, a Norte e Nordeste, à América do Norte, América Central (incluindo o canal do Panamá), Caribe, Europa e ainda à África. Esse extenso litoral não apenas

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conecta o Brasil ao mundo, mas permite que, como citava Mario C. Flôres,2 a “influência atlântica se interiorize” nas massas continentais sul-americanas, por intermédio das grandes bacias hidrográficas, como a Amazônica e a do Prata. Como dito, as responsabilidades do Brasil na região sul-atlântica são grandes, por exemplo, pela área de socorro e salvamento marítimo atribuída por meio de compromissos internacionais. Para a salvaguarda da vida humana no mar, o país deve ter meios de atuar numa área que equivale quase ao dobro de sua área terrestre.3 A importância do Atlântico Sul para o Brasil se expressa objetivamente nos números da produção de recursos naturais, notadamente na área energética, e também na intensidade do tráfego marítimo que leva e traz as riquezas fundamentais para a vida nacional. Estima-se que 87,1% da produção de petróleo e 75% da de gás4 venham dos campos marítimos,5 e a perspectiva do chamado “pré-sal” alavanca ainda mais essa importância. No plano do comércio internacional, cerca de 1.217 navios trafegam por dia (2014), em média, nas principais linhas de comunicação marítima da região, tendo havido um crescimento significativo ao longo da última década.6 Mesmo além das águas jurisdicionais brasileiras, as primeiras iniciativas para a exploração de recursos naturais na Área, no Elevado do Rio Grande, estão sendo gestadas junto à Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos. A área pretendida está a cerca de 1.500 km da costa brasileira, na altura do Rio Grande do Sul, sendo considerada de elevado potencial para exploração mineral. Digno de menção também é o nem sempre lembrado patrimônio cultural subaquático, formado por incontáveis sítios arqueológicos resultantes de naufrágios e outros sinistros. O avanço das tecnologias de exploração submarina, com sofisticados veículos submersíveis operados remotamente, capazes de alcançar grandes profundidades, vem permitindo o desen2

Ministro da Marinha no período 1991-1992.

3

O Brasil é signatário de importantes atos internacionais, como a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (SOLAS), a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM, Jamaica 1982) e a Convenção Internacional de Busca e Salvamento Marítimo (Hamburgo, 1979). O Brasil é responsável por uma área marítima de 15.328.502 km², quase duas vezes a de seu território.

4

Dados do Boletim da Produção de Petróleo e Gás Natural – Agência Nacional do Petróleo (ANP), mar. 2013.

5

Campos marítimos de explotação situados no mar territorial (MT), até 12 milhas náuticas (MN) da costa, e na zona econômica exclusiva (do limite do MT até 200 MN da costa).

6

Estatísticas sobre tráfego marítimo elaborada a partir de dados do Comando do Controle Naval do Tráfego Marítimo (COMCONTRAM), da Marinha.

volvimento da arqueologia subaquática, o que permite antever novas e significativas descobertas. As riquezas e a biodiversidade no ambiente marinho são tamanhas que a Marinha tem usado a expressão Amazônia Azul®, em analogia com a Amazônia (verde), de modo a chamar a atenção para o potencial das águas jurisdicionais,7 cuja exploração e explotação são asseguradas pela CNUDM. Setores da sociedade brasileira parecem ter despertado para a importância do entorno oceânico, o que tem se refletido nos círculos acadêmicos, haja vista, por exemplo, o tema escolhido para o VIII ENABED: “Defesa e Segurança do Atlântico Sul”.

A defesa dos interesses brasileiros no Atlântico Sul

7

Atenção especial é dada à zona econômica exclusiva e à plataforma continental, tal como definidos na CNUDM.

8

Pode-se citar como exemplo as cerca de trezentas mil toneladas de armas químicas que jazem alijadas nos fundos marinhos (NAÇÕES UNIDAS, 2012, p. 38.)

O ATLÂNTICO SUL...

No plano da defesa, as políticas de Estado priorizam o Atlântico Sul, refletindo o pensamento estratégico nacional. Assim é que a Estratégia Nacional de Defesa destaca as regiões marítimas entre Vitória e Santos e o cone Amazônico como de importância especial em termos de controle de acesso marítimo. Evidentemente, os interesses marítimos brasileiros são variados e significativos. Como dito, o mar é fonte de recursos, via para o comércio e porta de acesso aos processos de geração de riquezas e de governança em escala global. Os oceanos têm grande influência no clima, e o meio ambiente marinho é fundamental para as futuras gerações. É, pois, um meio de influência política, econômica e estratégica. O uso ilegal ou impróprio desses espaços e recursos pode levar a situações conflituosas, algumas já presentes, tais como: a poluição marinha, causada não somente pelo lixo geral e subprodutos do petróleo, mas também pelo alijamento de materiais perigosos e substâncias tóxicas;8 a sobrepesca e a pesca predatória, que causam a redução dos estoques de captura de espécies importantes, como no caso do atum atlântico; a migração de espécimes exógenos por meio de águas de lastro de navios que, movidos para outro ambiente, podem proliferar e causar prejuízos ambientais severos. No plano dos conflitos, vários associados à pobreza, podem ser citados a pirataria e o roubo armado; o terrorismo; o contrabando e o descaminho;

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o tráfico internacional de drogas e de seres humanos, com seus efeitos devastadores sobre sociedades e comunidades. Saber onde, como e quando ocorrem ou poderão ocorrer esses usos ilegais ou impróprios é, por si só, um grande desafio para os países da região. A capacitação para identificar ameaças com a brevidade e antecedência requeridas para seu efetivo combate requer a integração de recursos de observação, monitoramento, vigilância e inteligência, entre outros. O objetivo é manter um contínuo quadro operacional dos espaços oceânicos, tão abrangente quanto possível, particularmente nas áreas marítimas de maior interesse. Nesse sentido, o conceito de consciência situacional marítima vem sendo desenvolvido, como o agregado de “informações sobre atividades de todas as naturezas relacionadas ao ambiente marinho, que sejam relevantes para a segurança e a defesa em nível local, nacional, regional e mesmo global”. Tal quadro deve abranger não somente os espaços oceânicos, mas também mares, baías, bacias hidrográficas, estuários, regiões costeiras etc. O desenvolvimento da consciência situacional marítima requer cooperação entre países, principalmente entre Marinhas, haja vista o desafio de conhecer e identificar ameaças nas extensões marítimas, em que recursos de monitoramento e controle são escassos, mas onde a atuação coordenada pode, pela soma e integração de capacitações, gerar efeito sinérgico benéfico. Em países com imenso litoral como o Brasil,9 fazem-se necessários consideráveis recursos, humanos, financeiros e materiais, cuja magnitude deve ser compatível com a extensão e a importância atribuída a esses espaços. Convém lembrar que a segurança pode ser entendida como um bem público e, seu instrumento fundamental, a capacidade de defesa, ganha concretude na base humana e material das forças do Estado, notadamente as Forças Armadas, construídas e mantidas ao longo dos tempos. Num sistema democrático, essa construção passa por estágios e passos complexos, que requerem, além de pensamento estratégico consistente, concertação que viabilize políticas públicas em longo prazo. Entre esses passos, a primeira grande dificuldade pode ser representada pela formação do pensamento estratégico e sua transformação em uma “configuração de meios”10 de defesa (projeto de forças) sociopoliticamente viável, em outras palavras,

9

O litoral brasileiro se estende por cerca de 7500 km.

10

Configuração de meios refere-se à lista de plataformas e sistemas de combate considerados necessários pelo processo de planejamento estratégico de defesa.

11

Alguns exemplos: o(a) Presidente(a) da República e suas instâncias de assessoramento; os parlamentares que compõem as comissões temáticas especializadas do Congresso Nacional. Entre as instituições, destaque para: Ministério da Defesa e as Forças Armadas e também o Ministério das Relações Exteriores. A Academia tem papel importante nesse processo, na medida em que forma capacitações e promove o debate de temas relevantes à defesa.

12

Nesse sentido, meios são, por exemplo, porta-aviões, submarinos, escoltas, navios-patrulha, aeronaves etc.

27 O ATLÂNTICO SUL...

a constituição de plano de equipamentos com uma lista de plataformas e sistemas de combate necessários à estratégia concebida. Isso porque, num país pacífico e distanciado da guerra, com o processo histórico e o já citado contexto geoestratégico do Brasil, a sociedade tende a priorizar outras demandas urgentes e legítimas, como as que derivam da desigualdade social. Consequentemente, discussões sobre defesa tendem a ficar mais circunscritas às instituições de representação democrática, notadamente as autoridades eleitas e as instituições da organização político-institucional do Estado que têm responsabilidades sobre a defesa.11 Um segundo passo fundamental é a transformação da configuração de meios em meios,12 ou seja, a passagem do plano das ideias e vontades à realidade concreta. Esse processo dá origem aos projetos estratégicos, geradores das encomendas tecnológicas que constituirão a base material da defesa. Nessa fase, é fundamental haver uma estrutura especializada para lidar com as peculiaridades e particularidades da base industrial de defesa, do mercado de defesa e das encomendas de produtos de defesa. Os projetos estratégicos relacionados ao Atlântico Sul são grandes desafios à sociedade brasileira, sendo o maior deles o projeto do submarino de propulsão nuclear. Um segundo projeto desafiador é o que se volta a instrumentar mais diretamente a consciência situacional marítima, que é o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz), inspirado nas orientações da END que estimulam o tripé “monitoramento e controle”, “mobilidade” e “presença”. Outros projetos estratégicos importantes se voltam à recuperação da capacidade operativa dos meios navais, com o reparo ou a substituição de meios existentes, como os escoltas, o porta-aviões e os meios anfíbios. A base material tem estreita relação com a doutrina e com as concepções de emprego operacional e, portanto, com a formação e aperfeiçoamento dos combatentes. Entre outros aspectos relevantes desse ponto está a capacidade de operar conjuntamente, somando e integrando capacitações e esforços. Nesse sentido, a importância dada às operações conjuntas e à interoperabilidade vem se refletindo nos exercícios conduzidos no âmbito do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, que vem buscando

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desenvolvê-las não somente no âmbito das Forças Armadas, como no caso das operações Amazônia e Atlântico, mas também com outras agências governamentais com diferentes atribuições no que tange à segurança e à defesa. Assim se observam as chamadas operações interagências13, como a Operação Ágata, que foca a faixa de fronteiras terrestres que se estende por aproximadamente 17.000 km. Desenvolver a capacidade de operar com outras forças e agências não é tarefa trivial. Cada instituição possui cultura e linguagem próprias, níveis de autoridade e jurisdição específicos, procedimentos táticos e doutrina que contêm particularidades e peculiaridades. No caso de operações navais internacionais, deve-se acrescentar a barreira dos idiomas,14 as codificações de protocolos táticos, os armamentos e plataformas com características às vezes muito diferentes (navios, submarinos e aeronaves, com seus sensores e comunicações). Enfim, são óbices que necessitam ser continuamente considerados e tratados, por meio de um cuidadoso e continuado planejamento altamente especializado, que seja capaz de prevenir acidentes, incidentes e interferências mútuas que as operações em ambiente marinho podem gerar. Importa ressaltar que o desenvolvimento da consciência situacional marítima no Atlântico Sul requer cooperação entre os principais atores, notadamente os Estados costeiros da região. Nesse sentido, o Setor de Defesa tem na Marinha um importante instrumento de política externa, haja vista a característica intrínseca das forças navais de poderem realizar visitas programadas a países sem que isso constitua uma violação de soberania, mas que, ao contrário, podem ser vistas como ações de estreitamento de laços diplomáticos. Nesse sentido, diversas operações com marinhas de países amigos vêm sendo realizadas, como é o caso, por exemplo, dos exercícios: FELINO, IBSAMAR, ATLASUR, FRATERNO, VENBRAS e ATLANTIC TIDINGS15.

13

Informações adicionais sobre as operações citadas estão disponíveis em . Acesso em: 15 jun. 2014.

14

Embora o inglês seja muitas vezes a solução, as variações desse idioma em países como a África do Sul e a Índia representam desafios adicionais.

15

FELINO é um exercício multinacional realizado entre os membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) para “testar os procedimentos de comando e controle de operações de paz em situação de crise”. ATLANTIC TIDINGS é realizada com a África do Sul, Angola, Namíbia e República Democrática do Congo, voltada à interoperabilidade e ao controle de área marítima e operação ribeirinha. ATLASUR envolve a África do Sul, Argentina e Uruguai. A operação IBSAMAR é desenvolvida pelas Marinhas da África do Sul e Índia, no âmbito do fórum IBAS.

Projetos estratégicos e desafios tecnológicos

16

Merecem destaque a Política Nacional para a Indústria de Defesa, a Lei 12598/2012, que estabelece normas especiais para as compras, as contratações e o desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa e regras de incentivo à área estratégica de defesa

29 O ATLÂNTICO SUL...

Na segunda década do século XXI, observa-se um acelerado processo de desenvolvimento científico-tecnológico, capaz de gerar capacitações militares sem precedentes. Plataformas remotamente pilotadas (drones, navios, submersíveis), sistemas com inteligência artificial, nano-armas, armas de energia direta, armas de efeito massivo ou de destruição em massa, eis alguns dos pontos de contato entre ficção e realidade. Isso representa um fator complicador para os processos decisórios associados às encomendas tecnológicas derivadas do planejamento de forças. Em geral, as plataformas de combate navais são intensivas em tecnologia, uma vez que o ambiente marinho é agressivo a materiais e sistemas e proporciona ambientes operacionais instáveis e complexos. A construção de um submarino com propulsão nuclear ou de um porta-aviões, por exemplo, constitui desafio que poucas potências lograram vencer. Requerem tecnologias variadas, muitas delas protegidas com barreiras de acesso, que devem ser desenvolvidas (em alguns casos desde o início) por eventuais interessados. Igual condição pode ser dita sobre o SisGAAz, à medida que se trata de um “sistema de sistemas”, a unir e integrar tecnologias diversas, incluindo as relacionadas ao programa espacial brasileiro (satélites). Não obstante, um esforço político, normativo e orçamentário está em curso no âmbito do Estado no sentido de viabilizar esses e outros projetos ligados à defesa.16 A tarefa não é fácil, haja vista o montante do esforço nacional que deve ser direcionado a esses empreendimentos pela via do orçamento anual. Ademais, tratando-se de tecnologias avançadas, às quais nem sempre o país tem acesso, há riscos a serem compartilhados, inerentes ao desenvolvimento de novas tecnologias. O SisGAAz será de grande valor para o incremento da consciência situacional marítima e poderá dotar o país de uma série de tecnologias de emprego dual, de interesse de outras agências governamentais. Isso representará a geração de empregos diretos e indiretos no âmbito da base industrial de defesa, pois, como orienta a END, o país deve buscar a redução de dependência tecnológica externa. Em outras palavras, não mais se pretende que o Brasil seja um comprador de armas, mas parceiro no desenvolvimento de tecnologias. Isso representará mais um passo no

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sentido de consolidar o binômio desenvolvimento – defesa como alavanca de um projeto de defesa viável e socialmente inclusivo. Do ponto de vista científico-tecnológico, são significativas as conquistas alcançadas por instituições e profissionais brasileiros ligados aos projetos de defesa, merecendo destaque o domínio do ciclo do combustível nuclear e as conquistas no âmbito aeroespacial, pela produção de aviões e de satélites e veículos de lançamento, áreas em que cerceamento tecnológico externo é mais intenso. Claro está que os desafios são enormes e há muito a ser feito, no sentido de vencer as barreiras tecnológicas e consolidar o interesse do setor privado nos grandes projetos de defesa. Entre eles, assegurar demanda mínima, garantir previsibilidade e estabilidade orçamentária, pois os investimentos são elevados e os resultados de longo prazo. Em todos os casos, o futuro da indústria de defesa requer apoio, firme e continuado, das lideranças políticas, o que passa, necessariamente, por debates e construção de consensos no Congresso Nacional. Isso aumenta a responsabilidade das comissões temáticas que lidam com a questão da defesa, como as Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional, da Câmara dos Deputados (CREDN) e do Senado Federal (CRE).

Considerações finais O Atlântico Sul representa um espaço vital para o Brasil e a sociedade vem despertando para sua crescente importância como fonte de recursos, de geração de riquezas e como meio de inserção no sistema internacional. No que tange à segurança e à defesa dos espaços oceânicos, o conceito de consciência situacional marítima tem sintetizado o agregado de informações relevantes sobre o que ocorre de interesse – incluindo possíveis ameaças –, que permitam aos estados a atuação tempestiva no sentido de prevenir a utilização do meio marinho para ilícitos, atividades criminosas ou agressões à soberania. Tal consciência requer cooperação sinérgica, no plano interno, entre agências do estado e, no âmbito internacional, entre países. Nesse ponto, as Marinhas podem desempenhar um papel especial, a serviço das políticas externa e de defesa, como instrumento de aproximação e cooperação, como tem sido observado nos exercícios operativos multinacionais voltados ao fomento da interoperabilidade e da segurança cooperativa.

Referências BRASIL. Agência nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Boletim da Produção de Petróleo e Gás Natural. Brasília, 2013. Disponível em: < http://www. anp.gov.br/?dw=65746>. Acesso em: 10 jul. 2014. BRASIL. Mensagem Presidencial nº 323, 17 jul. 2012. Livro Branco da Defesa Nacional. Política Nacional de Defesa. Estratégia Nacional de Defesa. Brasília, DF, jul. 2012. DURANT, Will. A História da Filosofia. Rio de Janeiro: Record, 1991. HELFERICH, Christoph. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes. 2006.

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Em países de extensos litorais e áreas jurisdicionais, como o Brasil, fazem-se necessários sistemas que viabilizem o “monitoramento e controle”, por meio da coleta, processamento a análise de dados, o que deu origem ao projeto do Sistema de Vigilância da Amazônia Azul - SisGAAz. Juntamente com outros, como o do submarino de propulsão nuclear e a recuperação do núcleo do poder naval, esses projetos estratégicos poderão prover os meios necessários para a melhor defesa dos interesses brasileiros no mar. O fator tecnológico tem um componente central nesses projetos, que estão a requerer esforço concertado entre o Estado, a iniciativa privada e, particularmente, a base industrial de defesa, para que o país possa dominar as tecnologias de ponta, muitas das quais de acesso restrito. Nesse mister, é notável o esforço normativo recente voltado ao estímulo do setor privado. Cabe destacar, por fim, que os grandes projetos de defesa citados são desafios que extrapolam o Setor de Defesa e as Forças Armadas, e se colocam à sociedade como um todo, em função das demandas de recursos humanos, materiais e financeiros. Por sua importância em longo prazo, poderão representar a redução do grau de dependência tecnológica externa e, sobretudo, legar às futuras gerações melhores condições de fazer frente às contingências de segurança e defesa que porventura lhes sobrevenham. A “nave da ciência”, com suas aplicações tecnológicas, prosseguirá, como no passado, em seu papel fundamental de instrumentar e romper limites nas relações do homem com o mar. No que tange ao Atlântico Sul, algo que parece evidente é a capacidade brasileira de superar óbices e vencer desafios, que se revela nas conquistas que vêm sendo obtidas e nas perspectivas que se abrem na exploração de riquezas e nos projetos estratégicos de defesa. “Plus ultra”!

DESAFIOS PARA O NÍVEL OPERACIONAL NA DEFESA DO ATLÂNTICO SUL1 C arlos A ugusto

de

F assio M orgero 2

32

Introdução

O

Atlântico Sul é uma área estratégica do entorno brasileiro, com cerca de 7.971 km de fronteira. Por essa região, circulam 95% do comércio externo do país. Dentre as principais riquezas existentes na área, destacam-se as reservas de petróleo, a pesca e a mineração submarina (PENNA FILHO, 2013). Para que o Estado tenha plenas condições de salvaguardar os interesses nacionais e proteger as riquezas brasileiras nas águas e na plataforma submarina do Atlântico Sul, as Forças Armadas devem estar muito bem estruturadas e preparadas. Nesse contexto, a evolução do setor de Defesa, a partir da criação do Ministério da Defesa (MD) e em 1999, foi marcada, dentre outros aspectos, pela busca do fortalecimento da interoperabilidade entre as Forças singulares e pela adoção das Operações Conjuntas como principal alternativa de emprego (BRASIL, 2012).

1

O autor agradece à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército que permitiu e viabilizou a participação no VIII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, bem como aos militares nacionais e estrangeiros que responderam às entrevistas.

2

Major do Exército Brasileiro, aluno do Curso de Altos Estudos Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Doutorando do Programa de Pós-graduação em Ciências Militares do Instituto Meira Mattos / Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (IMM/ECEME). Endereço eletrônico: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4581505590935537 Tel: (21) 72171837

3

O V Comando Aéreo está localizado em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre.

4

Uma exceção é o Comando de Defesa Aeroespacial brasileiro, o único comando conjunto ativado permamentemente.

33 DESAFIOS PARA O NÍVEL OPERACIONAL...

O litoral brasileiro, banhado em toda sua extensão pelo Atlântico Sul, possui uma concentração de unidades militares das três Forças Armadas. Ao longo da costa atlântica, a Marinha possui sede de Distritos Navais nas cidades de Belém, Natal, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande. O Exército e a Força Aérea possuem, respectivamente, sedes de Comandos Militares de Área e dos Comandos Aéreos Regionais, nas cidades de Belém, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre3. Esses Grandes Comandos e suas organizações militares subordinadas estão vocacionadas, entre outras atribuições, para realizar a Defesa do litoral brasileiro e do Atlântico Sul. No atual modelo brasileiro, em uma situação de crise ou conflito armado, um Comando Operacional será ativado, e um Comandante Operacional e seu Estado-Maior serão designados para conduzirem as atividades no nível Operacional. Tendo em vista que, em tempo de paz4, os Comandos permanentes brasileiros são todos singulares, observa-se que a estrutura ativada será formada exclusivamente para atender à questão que gerou o seu acionamento. Será esse realmente o melhor modelo para a realidade brasileira? Que aperfeiçoamentos poderiam ser realizados na estrutura dos Comandos Operacionais e na sua forma de ativação? Esse trabalho buscará ampliar o debate sobre essas questões. A pesquisa apresentada neste texto buscou estudar o nível Operacional, no qual ocorre o planejamento e controle das Operações Militares no interior de um determinado Teatro ou Área de Operações. Nesse contexto, com a finalidade de colher subsídios que apoiassem a pesquisa do modelo brasileiro, foi realizada uma análise dos processos de ativação, seleção e treinamento dos Comandos Operacionais de outros países e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Os dados foram obtidos por meio de documentos e de entrevistas semiestrutura das com sete militares das Forças Armadas do Brasil, dos Estados Unidos da América (EUA), da Espanha, do Chile e da Argentina, com experiência de trabalho conjunto no nível Operacional. Para o tratamento dos dados, adotou-se a abordagem qualitativa, com emprego da técnica da análise de conteúdo, proposta por Bardin (2011), sendo que as categorias estabelecidas foram: a ativação; a seleção; e o treinamento dos integrantes do Comando Operacional, representado pelo seu comandante e Estado-Maior conjunto.

Compreendendo o nível operacional

34 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

Até o início do século XIX, o vencedor da maioria das guerras foi definido a partir da vitória em uma única batalha. O aumento dos efetivos militares e o desenvolvimento do transporte ferroviário tiveram como consequência um significativo aumento do tamanho do Teatro de Operações. Nesse passo, o surgimento de novos inventos como a aviação e os carros de combate, bem como a influência exercida pela mídia e a opinião pública, incrementaram a complexidade da guerra, na qual uma batalha tornou-se apenas parte da Campanha Militar (OLSEN; CREVELD, 2011). Em sua obra, Clausewitz5 (1832) detalhou a relevância das ações antes e durante uma “grande Batalha”, reconhecendo Estratégia e Tática. Para o autor, a Estratégia lidava com o emprego das Forças Armadas na fase imediatamente anterior ao início das ações, incluindo o planejamento das batalhas. O que hoje ficou conhecido como “Operacional”, no início do século XIX era algo dentro da Estratégia em seu ramo mais inferior (VEGO, 2009), que mais tarde evoluiu para o que Moltke6chamou de “operacões”. Esse nível intermediário entre a Estratégia e a Tática já foi definido por diversos termos. Jomini7 (1779-1869) e Fuller8 (1878-1966) empregaram a expressão “Grande Tática”. Um dos mais relevantes teóricos da Guerra soviético, Aleksander A. Svechin (1878-1938), no livro “Strategy” (“Strategiya”), empregou o termo “Arte Operacional” para caracterizar o que hoje se convencionou chamar de nível Operacional. No início do século XX, os alemães, da mesma forma que os soviéticos9 já consideravam o “nível Operacional”. No entanto, foi somente a partir da década de 1980, que autores ocidentais incluíram esse nível como um dos níveis da Guerra e forças armadas ocidentais passaram a adotá-lo em suas doutrinas. Luttwack (1980) identificou a falta de um nível Operacional como uma deficiência conceitual no pensamento militar ocidental e vinculou esta ausência com a derrota estadunidense na Guerra do Vietnam. O autor definiu 5

A obra “Vom Kriege”, ou “Da Guerra” é um dos maiores clássicos da literatura militar.

6

Helmuth von Moltke (1800-1891) foi o Chefe do Estado-Maior Alemão entre 1857-1888. Publicou vários livros sobre estratégia militar.

7

O Barão Antoine-Henri Jomini foi um dos principais teóricos militares da primeira metade do século XIX.

8

O General britânico John Frederick Charles Fuller foi um grande escritor, estrategista militar e historiador.

9

Para um maior aprofundamento sobre a visão soviética dos níveis da guerra consultar a obra “The Soviet Art of War: Doctrine, Strategy, and Tactics” (scott; scott,

a component of military art concerned with the theory and practice of planning, preparing, conducting, and sustaining campaigns and major operations aimed at accomplishing strategic or operational objectives in a given theater (VEGO, 2009, p. I-4).

Por tudo isso, a chave para vencer decisivamente, no tempo mais curto e com a menor quantidade de perdas humanas e materiais é a correta apli-

10

Edward Luttwack é analista de alto nível do Center of Strategic and International Studies, Washington, D.C. Escreveu o artigo “The Operational Level of War” publicado na International Securities (Winter 1980-1981). Contribuiu como consultor para o Manual de Campanha básico do Exército dos EUA FM 100-5 (Operations), lançado em 1982, que incorporou o nível operacional na doutrina norte-americana.

35 DESAFIOS PARA O NÍVEL OPERACIONAL...

o nível Operacional como aquele que realiza a coordenação das forças militares no tempo e no espaço (LUTTWACK, 1987).10 Por sua vez, Millet e Murray (1988) referem-se ao nível Operacional como aquele em que ocorre a análise, o planejamento, a preparação e a condução das campanhas militares. Para esses autores, o emprego direto das forças militares no engajamento em combate, com a definição das técnicas e manobras militares a serem empregadas, são atribuições do nível Tático. Assim, fica claro que as fronteiras entre o que é Operacional e o que é Tático são de difícil definição, tanto no abstrato quanto na prática do combate. Os Comandantes Operacionais não devem ter uma visão limitada à perspectiva tática ao realizar seus planejamentos e tomar suas decisões durante a condução de uma campanha militar. Para serem bem sucedidos, tais comandantes devem possuir uma visão abrangente de aspectos políticos, econômicos, diplomáticos, militares, dentre outros, o que se pode chamar de “perspectiva operacional” (VEGO, 2009). Desse modo, os integrantes do nível Operacional precisam compreender a campanha ou a operação como um todo, controlando o desdobramento das diversas Forças Componentes, e direcionando as ações táticas para o cumprimento dos objetivos operacionais. Olsen e Creveld (2011) ressaltam que vitórias táticas não possuem significado se desencadeadas sem alinhamento político ou estratégico. Essa ponte será executada pelo nível Operacional, que planejará e exercerá o controle das ações para que cada sucesso no campo tático contribua para os objetivos operacionais e estratégicos. A expressão prática da atividade militar no nível operacional encontrou representação na Arte Operacional, que, dentre outras, possui a seguinte definição:

cação da Arte Operacional. Se analisarmos as guerras do passado, muitas foram vencidas no nível Operacional e Estratégico e não no nível Tático. Essa afirmação fica mais evidente no estudo de conflitos como a II Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã e a Guerra das Malvinas/Falklands.

O modelo brasileiro

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De acordo com a Doutrina de Operações Conjuntas, atualmente em vigor no país (BRASIL, 2011), no caso de emprego real das Forças Armadas, numa situação de crise ou conflito, o Comandante Supremo (Presidente da República) emitirá uma Diretriz Presidencial de Emprego da Defesa (DPED) ao Ministro da Defesa. Nesse documento convirá constar, dentre outras considerações, a determinação do emprego do poder militar, o estado final desejado político e a ativação de um Comando Operacional, com a respectiva designação de seu comandante. A partir da emissão da DPED, o Ministro da Defesa emitirá uma Diretriz Ministerial de Emprego da Defesa (DMED), com a finalidade de orientar o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA) e as Forças Armadas nas atividades de emprego conjunto das Forças Armadas e balizar o planejamento estratégico. A seguir, o Chefe do EMCFA emitirá uma Diretriz de Planejamento Estratégico Militar (DPEM), objetivando orientar o EMCFA na elaboração ou atualização de um Plano Estratégico de Emprego Conjunto das Forças Armadas (PEECFA). A responsabilidade pela condução do nível Operacional é do Comandante Operacional, assessorado por um Estado-Maior conjunto. A doutrina brasileira prevê que o Comandante Operacional será o Comandante do Teatro de Operações ou da Área de Operações (BRASIL, 2011). Esse militar será a maior autoridade presente na Campanha Militar, responsável pelo planejamento operacional, e que deverá propor ainda na fase de planejamento estratégico, a constituição de seu Estado-Maior Conjunto. Em princípio, o Estado-Maior conjunto deverá possuir atribuições relacionadas aos seguintes assuntos: Pessoal; Inteligência; Operações; Logística; Planejamento; Comando e Controle; Comunicação Social; Apoio às Informações; Assuntos Civis; e Administração Financeira. Nessa moldura, é desejável que as seções do Estado-Maior conjunto possuam oficiais representantes de cada uma das forças singulares, com finalidade de fazer fluir com maior facilidade as Operações Conjuntas e assessorar o Comandante Operacional sobre as peculiaridades e as capacidades de sua força. Desse modo, o Comandante Operacional e o Estado-

Modelos internacionais Os dados relatados a seguir foram obtidos por meio de entrevistas realizadas com oficiais superiores brasileiros e estrangeiros com experiência em trabalho de planejamento e controle de Operações conjuntas. Os militares selecionados realizaram cursos de Comando e Estado-Maior conjunto, ou tiveram alguma participação em operações conjuntas ou multinacionais. O estudo foi complementado com informações colhidas dos sites oficiais do órgão responsável pela pasta da Defesa de cada um dos países estudados.

O Modelo espanhol A Espanha adota divisão dos níveis de decisão semelhante à brasileira, separando os níveis em Político, Estratégico, Operacional e Tático. O nível

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-Maior conjunto possuem responsabilidades inerentes aos planejamentos e ao controle e coordenação das operações no nível Operacional, enquanto as Forças Componentes planejam e executam as ações no nível Tático (BRASIL, 2011). O MD vem buscando realizar o adestramento conjunto por meio de exercícios e Operações, envolvendo as três forças. A Operação Atlântico Sul é uma das principais operações conjuntas que vem sendo realizadas nos últimos anos, na qual é estabelecido um Teatro de Operações em parte do Atlântico Sul. Para essa atividade, um Almirante é nomeado Comandante do Teatro de Operações e um Estado-Maior conjunto, com integrantes da Marinha, Exército e da Força Aérea é estabelecido. Com relação ao emprego da Simulação militar, apenas o exercício AZUVER realiza, ainda que com finalidade didática, a simulação construtiva de nível Operacional. O AZUVER é um exercício de planejamento e simulação de combate que faz parte do currículo das Escolas de Comando e Estado-Maior das três Forças. O cenário fictício no qual o exercício se desenvolve possui um país Azul e um país Vermelho que entram em Guerra. Nesse contexto, os alunos das três escolas são divididos em grupos para planejar e executar as ações, em um ambiente de simulação construtiva. Aproximadamente trezentos oficiais alunos participam da atividade que ocorre uma vez por ano. Embora ocorra o planejamento operacional e o controle das operações, o software que vem sendo empregado no exercício nos últimos anos simula apenas os engajamentos de nível tático, sendo bastante limitado para o nível Operacional.

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Político, exercido pelo Rei e pelo Congresso Nacional, possui a responsabilidade de decidir pelo emprego da expressão militar, bem como de emitir diretrizes políticas para o uso da força. Abaixo desse, o nível Estratégico é exercido pelo Ministro da Defesa, assessorado pelo Chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, militar que efetivamente exercerá o comando das Forças Armadas em operações reais. No nível Operacional, a estrutura da Defesa espanhola possui três grandes Comandos Operacionais Conjuntos ativados de forma permanente. Um desses Comandos está subordinado à OTAN, enquanto os outros dois atendem às necessidades da Espanha como país. O Comando de Operações é um comando conjunto localizado em Madrid e possui cerca de seiscentos militares. Esse Comando conjunto é nacional, embora possua oficiais de ligação de outros países, como França e EUA. Esse grande comando tem por objetivo atender aos interesses espanhóis numa situação de crise ou conflito real. A estrutura desse comando é similar à da OTAN, com o Estado-Maior Conjunto exercendo as mesmas funções que no modelo da aliança. O comandante desse Comando conjunto deve ser exercido por um Oficial-General de três estrelas, de qualquer uma das forças singulares. O Comando de Operações divide-se em duas grandes estruturas: uma estrutura de apoio e uma estrutura de operações, cada uma das quais comandada por um Oficial-General de duas estrelas. Atualmente esse Comando exerce o controle das Operações reais que estão ocorrendo no Líbano e no Afeganistão. O Comando Operacional Marítimo é um comando conjunto espanhol, localizado em Cádiz, que possui como atribuição a condução das atividades militares em um Teatro de Operações Marítimo. A estrutura desse comando é permanente, sendo comandada por um Almirante da Armada espanhola. O Nato Rapid Deployable Corp (NRDC) localiza-se em Valencia e é o Quartel-General do Comando Operacional Conjunto e multinacional da OTAN. A estrutura atual do NRDC possui cerca de 450 militares de nove países membros. Existem outros quatro Comandos Operacionais de pronto-emprego da OTAN11na Europa, com sedes em Milão, Istambul, Munique e Lille. A cada seis meses, em um sistema de rodízio, um desses Comandos permanece em condições de se deslocar para qualquer lugar em que alguma ameaça se apresente12, a fim de conduzir uma Grande Operação ou um Cam11

Estrutura organizacional da OTAN em vigor até janeiro de 2014.

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Conferência de Riga em novembro de 2006

panha Militar, se necessário. Uma diferença desse Comando Operacional da OTAN para os genuinamente espanhóis é a existência de unidades militares espanholas e de outros países permanentemente enquadradas no NDRC, o que aumenta a capacidade de pronta resposta numa situação de crise. Os oficiais que trabalham nos Comandos Operacionais são selecionados entre os militares que possuem o curso de Estado-Maior espanhol, que pelo modelo atual, é realizado de forma conjunta, com participação de pessoal de todas as forças singulares. Em virtude de os Comandos Operacionais estarem muito voltados para os planejamentos e controle de operações reais atualmente existentes, como as missões no Líbano e Afeganistão, não acontecem treinamentos ou exercícios de forma sistematizada. A reciclagem dos membros do Estado-Maior conjunto é feito mediante a realização de cursos em outros países da OTAN.

Como no Brasil, os níveis de decisão contemplados pela doutrina militar de Defesa da França são: Político, Estratégico, Operacional e Tático. O presidente francês é o responsável pelas decisões políticas, enquanto as decisões estratégicas ficam a cargo do Ministro de Defesa, assessoradas pelo Centro de Condução e Planejamento de Operações (CCPO), uma estrutura de Comando conjunto e combinado13. O CCPO possui como principal atribuição controlar e coordenar todas as operações reais em que a França está envolvida na atualidade. As operações são planejadas e conduzidas, no nível Operacional, pelos Comandos Operacionais, estruturas conjuntas permanentes que são localizadas no exterior e possuem uma área de responsabilidade em determinada região do mundo. Dessa forma, o planeta é dividido em áreas de responsabilidade, cada uma com um Comando Operacional ativado desde o tempo de paz. O Brasil, por exemplo, fica localizado na área de responsabilidade do Comando Operacional do Caribe, com sede na ilha de Martinica. A seleção dos militares que trabalham nos Comandos Operacionais conjuntos é realizado entre militares que realizaram o Curso da Escola Superior de Guerra. Nesse curso, que é realizado por militares das três Forças Armadas e da Gendarmerie, os alunos são submetidos a diversas atividades de simulação militar, com todas as atividades de planejamento e

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O comando também é combinado por possuir militares de ligação da OTAN em seus quadros.

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O Modelo francês

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controle da campanha militar, que serão conduzidas no nível Operacional, treinadas e avaliadas. A França não prioriza planejamento e ações de Defesa contra ameaças a sua integridade territorial. Segundo os dados colhidos, a visão francesa é expedicionária, o que justifica a existência de Comandos Operacionais conjuntos espalhados pelo mundo. Manter um estado-maior conjunto, mesmo que reduzido, trabalhando desde o tempo de paz, permite uma série de vantagens elencadas pelo militar entrevistado na pesquisa: a atualização constante e oportuna dos diversos planos para as principais hipóteses de emprego; uma maior eficiência no levantamento e controle de informações de inteligência que poderão subsidiar futuras decisões e formas de emprego da expressão militar; maior integração entre os membros do estado-maior conjunto; e agilidade no início da Campanha militar em caso de necessidade por já possuir uma estrutura do nível Operacional desdobrada e melhor ambientada no Teatro de Operações definido.

O modelo chileno No Chile, a doutrina militar prevê a divisão dos níveis de planejamento em quatro, assim como na doutrina militar de Defesa do Brasil, quais sejam: Político, Estratégico, Operacional e Tático. O nível Político é exercido pelo Presidente do país, assessorado pelo Ministro da Defesa e pelos Comandantes das forças singulares. O nível Estratégico é de responsabilidade do Ministro da Defesa com assessoramento direto do Chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e dos militares integrantes desse Estado-Maior Conjunto. A estrutura chilena contempla dois comandos ativados desde o tempo de paz, com estrutura permanente, que exercem as atividades de nível Operacional. O Comando Conjunto Norte e o Comando Conjunto Sul são comandados por Oficiais-Generais de três estrelas, de qualquer uma das forças singulares. O Estado-Maior Conjunto é composto por diversas seções, com cerca de 04 ou 05 oficiais superiores cada, buscando a participação de todos as forças singulares para que a integração seja efetiva. No total cerca de 300 militares trabalham de forma permamente em cada um dos comandos conjuntos, realizando todo o planejamento e treinamento para as diversas possibilidades de atuação das Forças Armadas chilenas.

O modelo estadunidense Assim como no Brasil, os quatro níveis de decisão considerados pela doutrina dos EUA são os que se seguem: Político, Estratégico, Operacional e Tático. Enquanto o nível Político é exercido pelo Presidente da República assessorado pelo Secretário de Defesa, o nível Estratégico é exercido pelo Chefe do Estado Maior Conjunto, maior autoridade militar do país. Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA vêm destacando-se por uma grande atuação no cenário mundial. Nessa moldura, possuem bases militares sediadas em diferentes pontos do planeta. Para atender essa demanda,

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Embora os Comandos conjuntos não possuam nenhuma unidade em suas composição de meios, em caso de ativação de um Teatro de Operações, o Chefe do Estado-Maior Conjunto deve determinar que as forças singulares adjudiquem os meios necessários para o Comando Conjunto ativado. Dessa forma, o Comandante do Comando Conjunto é o responsável pala condução da Campanha Militar e se reporta ao Chefe do Estado-Maior Conjunto, que por sua vez conduz o nível Operacional. A seleção para as funções de chefia das seções dos Comandos Conjuntos é realizada entre os oficiais com curso de Comando e Estado-Maior. No Chile, tal curso é realizado numa escola conjunta com duração de três anos. Os alunos estudam o nível Tático, Operacional e Estratégico, respectivamente, no primeiro, segundo e terceiro ano. Com relação ao treinamento dos militares que trabalham nos Comandos Conjuntos, ocorre o emprego de Simuladores Militares. Um Jogo de Guerra Operacional Conjunto é utilizado como ferramenta de aprendizado no segundo ano da Escola de Comando e Estado-Maior, quando os alunos se aprofundam no nível Operacional. Posteriormente, os mesmo jogo é empregado, com fins analíticos, para o treinamento dos militares dos Comandos Conjuntos. Na opinião do militar chileno entrevistado, as principais vantagens da existência de Comandos Conjuntos desde o tempo de paz são: o treinamento constante do Estado-Maior em tempo de paz, o que melhora o produto para as situações de conflito; a especialização dos militares do Estado-Maior Conjunto no emprego dos meios navais, terrestres e aéreos, permitindo maior integração entre as forças componentes e maior eficácia nos resultados; o intercâmbio de ideias entre os militares com formações específicas em cada um das forças singulares; e o maior conhecimento das capacidades de cada força singular, evitando o emprego ineficiente da expressão militar.

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existem estruturas permanentemente ativadas, de nível Operacional, tais como: o Southern Command; o Middle East Command; o Africa Command; dentre outros. Esses Comandos Operacionais possuem um oficial-general comandante e um Estado-Maior conjunto, além de unidades das diferentes forças singulares diretamente subordinadas e permamentemente ativadas. Os Comandos Operacionais possuem efetivos de cerca de trezentos militares, sendo que os oficiais superiores são selecionados dentre militares com muito bom desempenho profissional. Militares com experiência de trabalho em Comandos conjuntos são bastante valorizados profissionalmente, em virtude da necessidade de que líderes de Grandes Comandos saibam conduzir operações conjuntas de forma competente. Com relação ao treinamento, os Comandos Operacionais realizam diversas simulações a fim de desenvolver a capacidade de planejamento e controle do Comandante Operacional e dos membros do Estado-Maior Conjunto. Um dos jogos de Guerra de nível Operacional empregado é Joint Theather Level Simulation, desenvolvido pelos EUA e também empregado pela OTAN. As principais vantagens levantadas pelo militar entrevistado foram: a especialização de militares em uma determinada área de responsabilidade, familiarizando-os com as culturas e peculiaridades de uma determinada região; e a integração entre os membros do Estado-Maior conjunto, especializando cada um dos integrantes do Estado-Maior conjunto no emprego com eficiência e eficácia das forças singulares, explorando ao máximo suas capacidades.

O modelo argentino Os níveis Político, Estratégico, Operacional e Tático são os quatro níveis de decisão reconhecidos pela Doutrina de Defesa argentina. O nível Político é exercido pelo Presidente da República, assessorado pelos Ministros de Estado. O nível estratégico é exercido pelo Ministro da Defesa, assessorado pelo Chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas e pelos Comandantes das forças singulares. O nível Operacional é exercido pelo Comandante Operacional assessorado por um Estado-Maior Conjunto, enquanto o nível Tático é exercido pelas organizações militares adjudicadas ao Comando Operacional em caso de conflito ou crise militar. O Comando Operacional de las Fuerzas Armadas está ativado de forma permanente, sendo que sua estrutura funciona em Buenos Aires. A principal missão desse Comando é realizar todo planejamento operacional e conduzir as operações militares em caso de acionamento das Forças Armadas. Além disso, o Comando Operacional coordena o Comando Conjunto Antártico e

todas as tropas argentinas em missões de paz. O Comandante Operacional está subordinado diretamente ao Chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas argentinas. A seleção dos militares para o trabalho nas funções de maior responsabilidade no Comando Operacional é realizada entre todos os oficiais superiores argentinos. Essa política é possível em virtude da Escola de Comando e Estado Maior das Forças Armadas ser realizada de forma conjunta, por militares pertencentes a todas as forças singulares, habilitando todos para o planejamento e a condução de Operações Conjuntas. Com relação ao emprego de simulação militar, o militar entrevistado desconhece qualquer Jogo de Guerra utilizado pelas Forças Armadas argentinas no nível Operacional. Dessa forma, o treinamento dos militares ocorre por meio de exercícios e realização de cursos de Comando e Estado-Maior em outros países.

A discussão realizada é fruto da análise dos dados obtidos sobre os modelos adotados nos países estudados, em particular com relação à ativação da estrutura de um Comando Operacional conjunto, bem como da seleção e do treinamento do Comandante Operacional e dos oficiais superiores que fazem parte do Estado-Maior conjunto. Na pesquisa, verificou-se que a divisão dos níveis de decisão é semelhante em todos os modelos pesquisados. Os níveis Político, Estratégico, Operacional e Tático constam da doutrina e possuem definições bastante similares nos países que foram selecionados no trabalho, o que converge com o proposto por Vego (2009) em sua definição dos diversos níveis de decisão. No nível Político, em todos os modelos analisados, a responsabilidade pela decisão do emprego da expressão militar é da maior autoridade política do país (rei ou presidente da república), assessorado de seus Ministros de Estado. Na Espanha, o Congresso Nacional também pode determinar o emprego das Forças Armadas numa situação de crise ou conflito. O ministro ou secretário da Defesa, assessorado pelo Chefe do Estado-Maior conjunto das Forças Armadas, possui a responsabilidade pelas decisões no nível estratégico. De acordo com o modelo estudado, verificou-se uma participação maior ou menor dos comandantes das Forças Singulares nesse nível. No modelo brasileiro e chileno, ocorre participação mais influente dos comandantes do Exército, da Marinha e da Força Aérea, nas decisões de nível Estratégico. No modelo argentino, identifica-se menor

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Discussão

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participação dos comandantes das forças singulares nos planejamentos e decisões de nível estratégico. Nos demais modelos, essa participação não ficou muito bem definida. Com relação ao nível Operacional, todos os países analisados priorizam as operações conjuntas com a definição de um Comandante Operacional e um Estado-Maior conjunto para planejar e controlar as operações dentro de um Teatro de Operações. EUA e França dividem o mundo em setores, para cada qual possuem um Comando Operacional ativado permanentemente. A França possui tropas em diversos locais do planeta, como nas Antilhas francesas, na Guiana Francesa, em Djbuti, nos Emirados Arábes, no Gabão, no Senegal, na Polinésia Francesa, entre outros. Os Comandos Operacionais conjuntos franceses estão ativados de forma permanente e localizam-se no exterior dentro de seus possíveis Teatro de Operações. Como exemplo, o Brasil está enquadrado no Comando Operacional do Caribe, cuja sede está na ilha de Martinica. Os EUA possuem nove Comandos Operacionais conjuntos que englobam todo o mundo. O Southern Command, no qual o Brasil está enquadrado, possui sede na Flórida. Algumas das sedes dos Comandos Operacionais estão localizadas no exterior, como no caso do Africa Command e do European (Sttutgart, Alemanha). O Central Command possui sede na Flórida, mas lançou uma base avançada em Doha, no Qatar, em virtude do grande número de operações que vem send conduzidas no Oriente Médio nos últimos anos por tropas dos Eua. A Espanha também possui característica expedicionária e mantém em Madrid um Comando de Operações permanentemente ativado, em condições de planejar e controlar operações em qualquer local do planeta. Além disso, o Comando Operacional Marítimo de Cádiz possui a responsabilidade de planejar e conduzir operações que ocorram em um Teatro de Operações predominantemente marítimo. A OTAN possui Comandos conjuntos multinacionais na Espanha, Itália, Turquia, Alemanha e França. Os NDRC são comandos de nível Operacional e, embora estejam ativados permanentemente com cerca de 400 militares, atuam em sistema de rodízio. Assim, a cada seis meses, um desses Grandes Comandos fica de prontidão para ser enviado com rapidez para qualquer parte do globo, a fim de participar de situações de crise ou conflito de interesse da OTAN. Na América do Sul, o paradigma é outro. Os países estudados não possuem essa visão de atuação em qualquer parte do globo, a não ser na colaboração com esforços em missões de paz.

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A exceção é o Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro, mas que possui uma finalidade distinta do planejamento e da condução de campanhas ou operações militares em um Teatro/ Área de operações.

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O Chile mantém dois Comandos Operacionais ativados, cada um dos quais com foco em parte do território chileno. Esses comandos não possuem unidades militares, mas no caso de conflito, os meios serão adjudicados pelo Chefe do Estado-Maior conjunto, que será o Comandante militar das operações no nível estratégico. A Argentina possui estrutura similar à chilena, embora com apenas um Comando Operacional que está ativado de forma permanente na capital. Esse Comando possui a atribuição de manter os planejamentos militares e realizar o controle das operações em caso de conflito ou crise militar. De forma peculiar, o Comando Operacional conjunto argentino realiza atividades desde o tempo de paz, como o controle das operações de paz que envolvam tropas argentinas e do Comando conjunto Antártico. Assim, verifica-se que o Brasil, de todos os países pesquisados, é o único que não possui uma estrutura de nível operacional ativada de forma permanente14. Para atenuar as dificuldades dessa opção, o MD vem realizando operações reais e exercícios conjuntos, nos quais um Comando Operacional conjunto é ativado de forma temporária. Essas oportunidades são fundamentais para fortalecer a interoperabilidade das Forças Armadas, com reflexos no aumento da integração das ações militares. A Operação Ágata, operação real que ocorre na faixa de fronteira terrestre, com a participação de diversas agências governamentais e órgãos de segurança pública; a Operação Atlântico que ocorre no Atlântico Sul; e a operação Amazônia são alguns exemplos de operações conjuntas, onde ocorre a designação de um Comandante Operacional e seu Estado-Maior conjunto para o planejamento e controle das ações de nível operacional. Com relação à seleção para o exercício de funções do nível operacional, em particular para o trabalho de planejamento e controle das operações conjuntas, nos países com Comandos Operacionais ativados, todos oficiais superiores possuem condições para execução do trabalho. Essa capacidade é adquirida em virtude da existência de Cursos de Comando e EstadoMaior conjunto. O exercício de funções no Comando Operacional é muito valorizado no prosseguimento da carreira, corroborando para o currículo dos oficiais-superiores com essa experiência. No Chile, um ano inteiro do Curso de Comando e Estado-Maior é dedicado ao nível Operacional, enquanto na Espanha e na Argentina não existem mais cursos de EstadoMaior não conjuntos.

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No Brasil, a Marinha, o Exército e a Força Aérea possuem seus Cursos de Comando e Estado-Maior. A Escola Superior de Guerra (ESG) possui o curso de Estado-Maior de Defesa, que prepara oficiais para a função em um Estado-Maior conjunto. Esse curso, ministrado na ESG, ainda é realizado por um número reduzido de oficiais, em um período de aproximadamente três meses e possui foco nos planejamentos dos níveis operacional e estratégico. Recentemente, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), foi criada uma seção de Operações Conjuntas, que vem ganhando maior relevância a cada ano. No entanto, ainda não há oficiais superiores da Marinha e da Força Aérea para aperfeiçoar as instruções sobre as operações conjuntas realizadas no nível Operacional. Com relação ao treinamento dos militares que integram o Estado-Maior conjunto de nível Operacional, os EUA, a França e o Chile empregam de forma sistemática simulação para treinar o planejamento e a execução de situações de crise ou conflito. No Brasil, apenas o exercício AZUVER, realizado pelas três escolas Comando e Estado-Maior, realiza a simulação de nível Operacional, ainda assim com objetivos didáticos e para um grupo reduzido de militares. Simular o combate no nível operacional é tarefa muito mais complicada do que no nível Tático. Os resultados dos engajamentos táticos podem ser definidos por aspectos como terreno, número de tropas, posicionamento das tropas, valor do armamento, condições meteorológicas e até mesmo por fatores mais abstratos como a liderança, o moral e o grau de treinamento. Por outro lado, os resultados dos engajamentos são apenas mais um fator no complexo cenário operacional. No nível Operacional, o sucesso dependerá de um número muito maior de variáveis. Aspectos como as operações de apoio às informações, a opinião pública nacional e internacional, a intervenção e a influência da mídia, a ação de organizações não governamentais, as alianças entre países, a sinergia das operações conjuntas, a interoperabilidade e a integração entre as Forças Armadas, dentre outros, influenciam de forma significativa as operações, e, portanto, devem ser modelados.

Considerações finais e trabalhos futuros Não existe dúvida que a doutrina brasileira vem passando por um momento de grande transformação nos últimos quinze anos. A criação do MD trouxe como um importante reflexo a maior integração entre o Exército, a Marinha e a Força Aérea. Há poucos anos, não se falava em níveis de plane-

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jamento ou de decisão e o nível Operacional era totalmente desconsiderado de qualquer planejamento militar. Desde o início dessa década, uma série de publicações do MD atualizam a Doutrina Militar de Defesa do Brasil. Nesse sentido, os conhecimentos e ideias obtidas com o presente trabalho servem para enriquecer o debate sobre o atual modelo de ativação e seleção dos integrantes do Comando Operacional brasileiro, além de constituir subsídios para o MD e para as Forças Armadas, que tragam benefícios para a Defesa do país e dos interesses nacionais. Comparando o modelo brasileiro com o de outros países pesquisados, verificou-se que o Brasil é o único país que não possui uma estrutura direcionada para o nível Operacional ativada desde o tempo de paz. Dessa forma, será que o modelo do país está adequado? Que aperfeiçoamentos poderiam ser adotados no modelo brasileiro? Ressalta-se que a pesquisa possui limitações, pois não considera fatores relevantes, tais como: o impacto financeiro com a criação de Comandos Operacionais ativados de forma permanente e a existência de pessoal disponível nas forças singulares para ocupar os claros que fossem disponibilizados em um Comando Operacional conjunto, entre outros. Portanto as alternativas descritas servem apenas para enriquecer o debate sobre o tema. Um aperfeiçoamento organizacional aparentemente mais simples de ser executado seria a criação de um Comando Operacional conjunto subordinado diretamente ao Chefe do Estado-Maior conjunto das Forças Armadas. Esse Comando possuíria militares das três forças e exerceria o comando, no escopo do nível Operacional, de todos os exercícios e operações conjuntas que ocorram no país (modelo argentino). No entanto, em virtude das peculiaridades e da imensidão do território brasileiro, seria desejável possui também um Comando Operacional Marítimo (assim como no modelo espanhol), comandado por um Almirante para atuar em Teatros de Operações predominantemente marítimos. Outra alternativa para o aperfeiçoamento do modelo brasileiro seria o aproveitamento das estruturas de Grandes Comandos já existentes, já que grande parte das sedes dos comandos das forças singulares localizam-se nos mesmos locais ou em localidades próximas. Assim, Manaus que abrange um Comando Militar de área do Exército, um Distrito Naval da Marinha e um Comando Aéreo da Aeronáutica poderia tornar-se a sede de um Comando Operacional conjunto vocacionado para operar em um Teatro de Operações na Amazônia. Da mesma forma, Rio de Janeiro que abrange grandes comandos das três forças singulares também poderia tornar-se sede de um Comando Operacional conjunto vocacionado para operar no Atlântico Sul.

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Desse modo, o país poderia ser dividido em alguns poucos Comandos Operacionais, cada um deles vocacionado para determinada região do território ou ambiente operacional. Nesse contexto, o Atlântico Sul poderia possuir de Comandos Operacionais Marítimos permanentemente ativados em uma ou mais das atuais sedes dos Distritos Navais (Belém, Natal, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande). Por fim, outra alternativa de aperfeiçoamento do modelo atual seria a criação de estruturas logísticas conjuntas em algumas regiões do país, a fim de servirem para otimizar a integração no momento da ativação de um Comando Operacional. Assim, parte das estruturas de saúde, de suprimento e de manutenção poderiam ser conjuntas desde o tempo de paz. Essa mudança resultaria em economia de gastos e redução do número de recursos humanos atualmente empregados nessas atividades, além de a realização do apoio conjunto desde o tempo de paz, não havendo necessidade de adaptação da estrutura e da doutrina nas situações de conflito. Com relação ao treinamento necessário para os militares que integram o nível Operacional, observa-se que o aumento do número de operações conjutas que o MD vem realizando nos últimos anos vem sendo um fator fundamental para o aperfeiçoamento dos participantes do Estado-Maior conjunto, bem como para a criação de uma base de lições aprendidas. Uma forma de realizar esse adestramento, com custos reduzidos e eficiência ampliada, seria o emprego da simulação militar construtiva por meio de um Jogo de Guerra conjunto. No Brasil, é notável o aumento do emprego de uma variedade de ferramentas de Modelagem e Simulação em apoio às atividades militares. Existe um grande investimento em simuladores que facilitam o treinamento técnico e tático dos militares. No entanto, a mesma evolução da Modelagem e Simulação não vem sendo observada no nível Operacional, embora haja estudos sendo conduzidos pelo MD no sentido de uma maior integração da simulação entre as forças singulares. De qualquer forma, independente da adoção de qualquer das alternativas debatidas nessa pesquisa, pela atual concepção da doutrina brasileira, na qual o Comando Operacional somente é ativado numa situação de crise ou para executar alguma operação ou exercício militar, é indispensável a existência de um Jogo de Guerra para o nível Operacional. Essa medida permitiria a realização de treinarmentos com militares das três forças, de modo que possam aperfeiçoar seu emprego conjunto, além de produzir melhorias nos planejamentos e na capacidade de controle das ações no nível Operacional.

Finalmente, o estudo do nível Operacional precisa ser incrementado, a começar pelas Escolas Militares. O aumento de oficiais de outras forças como instrutores nos cursos de Comando e Estado-Maior, em particular nos temas relacionados às Operações Conjuntas, pode ser um primeiro passo na direção de uma maior integração entre as Forças Armadas brasileiras, com reflexos significativos na eficiência e eficácia do emprego conjunto.

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49 DESAFIOS PARA O NÍVEL OPERACIONAL...

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BRASIL E PALOP NO ATLÂNTICO SUL: COOPERAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO, POLÍTICA E DEFESA (1974-2014) K amilla R. R izzi 1

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Introdução

M

ais que uma questão geográfica, o Oceano Atlântico Sul, historicamente, deve ser interpretado como um elo entre África e Brasil. A relevância da África para o Brasil e do Brasil para a África se justifica pelas ligações histórico-culturais entre as duas margens, cujo estopim foi a presença portuguesa na costa africana, a partir do século XV. Como afirma Costa e Silva, não se pode “[...] escrever História do Brasil sem ter uma perspectiva de fora, uma perspectiva portuguesa e uma perspectiva africana” (COSTA e SILVA, 2005, pág. 54). O império português, dessa forma, interligou por meio do sistema mundial mercantil – séculos XIV a XVIII – a Europa ocidental, a África ocidental (mas também oriental) e a América do Sul (além da Ásia), a partir de relações inerentes ao pacto colonial. Já nos séculos XIX e XX, os Estados que emergiram independentes do imperialismo português (Brasil, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Angola) mantiveram os laços e interesses comuns, baseados no Atlântico Sul.

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Professora Adjunta II de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa, campus Santana do Livramento. Doutora em Ciência Política e Mestre em Relações Internacionais/UFRGS. Pesquisadora do CebrAFRICA.

Assim, deve-se entender como as forças profundas (fatores geográficos, condições demográficas, forças econômicas e nacionalismo, conforme RENOUVIN e DUROSELLE, 1967) se manifestam nesses países, a partir das transformações históricas, políticas, econômicas e sociais, para analisarem-se os interesses em jogo nas respectivas relações bilaterais e por consequência, na inserção desses Estados no sistema mundial. Nas duas margens do Oceano Atlântico se estabeleceram (e se mesclaram) padrões históricos e culturais comuns que originaram sociedades convergentes em ideias e interesses, que refletem, necessariamente, nas relações estabelecidas entre esses pares.

51 BRASIL E PALOP NO ATLÂNTICO SUL:

Os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) surgem como área de atenção, interesse e influência natural do Brasil, pela ligação histórica e cultural. No entanto, não apenas os PALOP são pauta brasileira desde 1960, mas a África num todo. No presente paper, serão abordadas as três principais características que regem as relações entre Brasil e PALOP no Atlântico Sul: a) a via bilateral, b) a via multilateral e c) a revalorização da região do Atlântico Sul, no atual sistema mundial, com tons de multipolaridade. Devido à disparidade entre suas características econômicas, políticas, demográficas e territoriais, optou-se por denominar Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe como Pequenos PALOP, em contraponto aos Grandes PALOP (Angola e Moçambique). Apesar do passado em comum e das características que os tornam Estados periféricos do sistema mundial, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe possuem diferenças relevantes, que se tornam significativas ao analisar seu grau de desenvolvimento e forma de inserção naquele sistema. O exame conjunto desses cinco países é artificial, pois o fato de terem compartilhado uma mesma história colonial e, também, terem se direcionado ao período pós-independência aderindo a alguma forma de socialismo constitui-se enquanto uma base demasiadamente débil para fazer análises generalistas. As similitudes entre os Grandes PALOP em relação aos Pequenos PALOP referem-se às suas condições histórico-culturais condicionadas pela presença portuguesa em seus territórios, tendo o comércio como eixo, aliado à escravização de africanos, cujo principal destino era o Brasil. A produção agroexportadora, baseada em monoculturas (açúcar, cacau e café, especialmente) atrelada à cristalização de uma classe burocrata (que se tornou elite no pós-independência), além da configuração de uma massa de desempregados e subempregados em condições sociais preocupantes demarcaram as estruturas econômicas, políticas e sociais desses Estados pós-coloniais.

Em relação às diferenças entre esses dois grupos de países, pode-se refletir sobre as dimensões geográficas, mais favoráveis ao primeiro grupo, possibilitando um desenvolvimento econômico mais sustentado a médio e longo prazo, com fartura de recursos minerais e uma agricultura não tão dependente do clima e relevo como ocorre nos três Pequenos PALOP. Esses Estados (Brasil e PALOP) são compreendidos aqui como Estados periféricos (GUIMARÃES, 1999) no sistema mundial, porém com marcantes diferenças de inserção, resultantes da forma pontual como cada colônia e posterior Estado se tornaram independentes, configuraram seus governos e buscaram suas relações exteriores.

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A política externa brasileira e sua ação cooperativa: a via bilateral

DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

Há uma intrínseca relação entre os fatores domésticos e a elaboração e condução da política externa de um Estado. As esferas interna e externa, embora gozem de independência, não podem ser investigadas de maneira totalmente independente, já que suas estruturas, ações e atores estão ligados e geram efeitos comuns. No Estado brasileiro, sua ação externa tem historicamente se relacionado aos avanços e recuos de sua política doméstica –viabilidade nacional, de acordo com o sistema mundial do período – permissibilidade internacional, conforme JAGUARIBE, (1980). Para os PALOP, fica evidente que a política externa brasileira encaixa essas relações no interesse em conceber um espaço de influência direta naquele espaço lusófono africano, cuja ação externa – em face das dificuldades de a política externa brasileira consolidar laços econômicos – se baseou no desenvolvimento como vetor, concretizado por meio da ação cooperativa. Desde 1974 até 2014, identifica-se que a ação cooperativa foi a base da política externa brasileira para os PALOP. Essa ação esteve presente na Política Externa Independente (anos 1960) e passou por redefinições de seu conceito-chave, podendo se identificar três nuances no período: 1) de 1974 a 1990, a cooperação do Brasil com os PALOP se baseou na identificação das demandas bilaterais e conjugava horizontalidade (relações Sul-Sul) com o teor político, ao buscar evitar a esquerdização desses países, no contexto da Guerra Fria; 2) no período entre 1990 e 2002, em razão das mudanças do sistema mundial que tiveram consequências negativas para a política

externa brasileira para os PALOP, foi a cooperação que se manteve como ponto de contato mínimo entre os dois lados do Oceano Atlântico Sul, naquele momento restringida ao seu teor técnico; e 3) de 2003 a 2010, a cooperação voltou a agregar um teor político, de defesa de instituições e valores democráticos, a partir da cooperação Sul-Sul.

Cooperação horizontal (1974-1990) Esse período foi marcado pelo estabelecimento das relações diplomáticas entre o Brasil e os PALOP recém-independentes. Os anos 1974 e 1975, dessa forma, são fundamentais para entender-se como o Brasil se reaproxima da margem oriental do Atlântico Sul, identificando o fator histórico como principal condicionante. O ano de 1974 deve ser compreendido como ponto-chave na política brasileira para a África e, por consequência, do fim da ambiguidade sobre a questão da descolonização portuguesa. A queda de Marcello Caetano, em Portugal, em abril, favoreceu a volta definitiva do tom anticolonialista e antirracista na política externa brasileira2. Em 08 de junho seguinte, o Itamaraty, por meio de nota oficial, definiu, finalmente, a posição brasileira incontestavelmente favorável às independências das antigas colônias portuguesas na África, bem como previu o reconhecimento da República da Guiné-Bissau, já declarada independente de Portugal. Ao se basear nos “laços especiais de amizade” entre Brasil e Portugal e entre o Brasil e todas as nações africanas, a posição brasileira ainda definia

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O momento emblemático na defesa aberta da descolonização, por parte do Brasil – já iniciado na XXVI Assembleia Geral das Nações Unidas de 1972 – ocorreu em junho de 1974, quando o Itamaraty recebeu da Organização da Unidade Africana uma comunicação oficial (em 04 de junho), solicitando que o país “como amigo de Portugal, exerça sua influência junto ao novo Governo português em favor da concessão da independência de Moçambique e de Angola e do reconhecimento da República da Guiné-Bissau” (OUA, 1974, p. 67).

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Defender o interesse nacional é ter o desenvolvimento como vetor da ação externa, passo relevante para a diminuição da vulnerabilidade do país, por meio da busca de uma autonomia periférica (JAGUARIBE, 1980), identificada nas capacidades e ações que determinados Estados Periféricos detêm em sua inserção internacional. Logo, em termos estruturais, essa autonomia depende de duas condições básicas: a viabilidade nacional e a permissibilidade internacional. Uma das características que complementam a ação cooperativa é a criação das Comissões Mistas bilaterais, onde passaram a ser identificadas demandas africanas e as possibilidades de cooperação.

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a necessidade da solução pacífica para essas independências em questão, “que assegure o respeito às legítimas aspirações dos povos interessados”, reiterando a condenação de “toda política de caráter colonialista ou racista” e ainda não assumia nenhum tipo de mediação na resolução daquela situação, mas prestaria a colaboração que fosse solicitada “pelos pares interessados às quais o Brasil se sente ligado pela história, pela raça e pela cultura” (PROBLEMA PORTUGUÊS, 1974, p. 67). Houve uma convergência da política externa brasileira para esses países (e desses países para o Brasil), embora com duas subfases distintas: a) de 1974 a 1985 (nos governos Geisel e Figueiredo), houve uma crescente intensidade nas relações políticas e a identificação da demanda nas relações econômicas e de cooperação e b) de 1985 ao primeiro trimestre de 1990 (relativa ao governo Sarney: retraimento de contatos, especialmente em razão dos condicionantes internos e externos, nos países envolvidos). Até 1985, a noção própria de que o país havia alcançado um considerável peso, em termos políticos e econômicos, no sistema internacional, aliado à sua posição geográfica estratégica no Atlântico Sul justificava sua proximidade com os PALOP. O alinhamento com o Terceiro Mundo, comprovado com o posicionamento favorável nas Nações Unidas, frente ao anticolonialismo também era emblemático, aliadas às denúncias de neoprotecionismo e o endividamento externo. Um ponto marcante desse momento foi o ativismo político nas alianças e coalizões que buscavam reforçar a presença brasileira em organismos multilaterais, tais como o G-77, o Pacto Amazônico e o Grupo de Cartagena. Na documentação diplomática do Ministério de Relações Exteriores do Brasil, constam fartamente os sinônimos “cooperação mútua”, “interesses conjugados”, “coordenação política”, “vantagens mutuamente satisfatórias” e mesmo “trabalho de terraplenagem diplomática”. De 1985 a 1990, a partir da estagnação das ações anteriores pelos condicionantes internos e internacionais, houve atenção especial à cooperação, por meio da criação da ABC como incentivadora institucional. Um ponto importante referiu-se ao encontro de 1989, em São Luís, capital do Maranhão, quando o Presidente brasileiro José Sarney reuniu os Chefes de Estado e de Governo de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe, além do Representante Especial do Presidente de Angola. Nessa ocasião, foi criado o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), cujos objetivos seriam o de defender e promover o idioma; enriquecer a língua como veículo de cultura, educação, informação e de acesso ao conhecimento científico e tecnológico; desenvolver as relações

culturais entre os lusófonos; incentivar a cooperação, pesquisa e intercâmbio nos domínios da língua e da cultura; e difundir o Acordo Ortográfico.

Cooperação técnica (1990-2002)

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Nesse momento, houve diminuição de contatos como consequência das mudanças que o sistema mundial do pós-Guerra Fria imputou aos Estados, com transformações complexas tanto no Brasil e principalmente nos PALOP (os Pequenos PALOP passaram por reformas políticas e econômicas internas e os Grandes PALOP encontravam-se em ou processo de estabilização – Moçambique, ou em guerra civil – Angola). Os governos brasileiros, de 1990 a 2002, inseriram o país na lógica do sistema mundial pós-Guerra Fria, baseada na globalização neoliberal, dando ao mercado e às questões econômicas maior relevância na política externa. O relativo esvaziamento do Ministério das Relações Exteriores na tomada de decisão em política externa completou esse redimensionamento da postura externa do país, que se voltou para os países do Norte e para a integração regional, baseado no MERCOSUL. O continente africano ficou em segundo plano na formulação e implantação da política externa brasileira, fato que se comprova pelos poucos contatos políticos e baixo nível de comércio bilateral. A linha que manteve o Brasil nos Pequenos PALOP foi a cooperação técnica, que, por meio de poucos projetos, permitiu ao país uma mínima continuidade em relação às ações empreendidas no período anterior. Essa cooperação, que entre 1975 e 1990 era entendida mais como um relacionamento horizontal, entre iguais, passou, entre 1990 e 2002, a ter um teor mais tecnicista e burocrático, com diminuição de orçamentos e projetos. Mantiveram-se apenas as concepções de “relativa vizinhança”, “presença africana no Brasil, na condição de verdadeira matriz, étnica e social de nosso país [...]” ou ainda “condição de país em desenvolvimento que, com matizes e graus diferenciados compartilhamos com a totalidade do continente africano [...]”, conforme a documentação diplomática. A falta de complementaridade econômica mostrou-se como empecilho nas relações, que apenas não cessaram pela noção da “grande semelhança de condições físicas, climáticas e sociais entre o Brasil e muitos países africanos” (LAMPREIA, 1995, p. 202). Os contatos selecionados, que se mantiveram no período, entre as margens do Atlântico Sul, foram com base na CPLP, ZOPACAS e com a nova África do Sul.

Cooperação sul-sul (2003-2014)

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No período contemporâneo, dos Governos Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014), houve uma retomada da política externa brasileira para África e especialmente para os PALOP. O Atlântico Sul ressurgiu como elo nessas relações cunhado como “cinturão da boa vontade” (AMORIM, 2011). Notou-se uma clara concepção de política externa articulada à política de defesa, pois a cooperação Sul-Sul pautou-se em uma estratégia diplomática originada de um “autêntico desejo de exercer a solidariedade com os países pobres”, mas também “ajuda a expandir a participação brasileira” no sistema mundial, onde se conjuga a cooperação “[...] entre iguais em matéria de comércio, investimento, ciência e tecnologia e outros campos, reforça a nossa estatura e fortalece a nossa posição nas negociações de comércio, finanças e clima” (AMORIM, idem). Assim, a cooperação Sul-Sul se consolidou como instrumento de projeção de influência política (como exemplo, a construção de coalizões com países em desenvolvimento é também uma forma de atrair a reforma da governança global, a fim de tornar as instituições internacionais mais justas e democráticas, AMORIM, 2010a, p. 230, tradução nossa). De 2003 aos dias atuais, ocorreu uma evolução das pautas bilaterais: de desenvolvimento, para política e defesa articuladas, porém mantendo a ação cooperativa como elemento vitalizador.

Principais aspectos da ação cooperativa Desde 1974, a ação cooperativa se identifica como área prioritária de ação, pelas demandas historicamente apresentadas pelos PALOP ao Brasil, passando pelas variáveis apresentadas anteriormente (cooperação essa em áreas que se complementam, com base no desenvolvimento, na política e na defesa). Como agentes articuladores do Estado brasileiro, se identificam o Ministério de Relações Exteriores (MRE) e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), com uma atuação competente e realista. A principal área da ação cooperativa do Brasil se consolidou na formação e capacitação de recursos humanos africanos. Na educação, a formação de professores para o nível primário e secundário, além da criação de bibliotecas e filmotecas e introdução do ensino pelas redes de rádio foram as iniciativas principais na década de 1970 e1980. A partir da década de 2000, a introdução dos projetos “Bolsa Escola” e

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“Alfabetização Solidária” em todos os PALOP aprofundou os avanços na área. Desde 1978, o Programa Estudantes Convênio-Graduação (PEC-G) e desde a década de 1990, o Programa Estudantes Convênio-Pós-Graduação (PEC-PG) têm trazido em média 20 estudantes dos PALOP por ano, para formação superior em instituições de ensino brasileiras. Na área da defesa, avançou-se com o treinamento de quadros das Forças Armadas dos PALOP no Brasil e na África, treinamentos e exercícios conjuntos, além da permanente venda e doações de material bélico. No entanto, cabe ressaltar que há diferenças precisas na cooperação militar entre o Brasil e os Pequenos e os Grandes PALOP: Com os primeiros, as ações são iniciais, ainda com demandas pontuais, abertura de representações e adidâncias militares, apoio e treinamento nas guardas costeiras (como em Cabo Verde) e formação de fuzileiro navais (São Tomé e Príncipe). Com o segundo grupo, as ações de cooperação militar, que iniciaram com as mesma ações acoima citadas, avançaram e tornaram-se mais complexas. Como exemplo, em Angola, houve a implementação do Programa de Desenvolvimento do Poder Naval de Angola (EMGEPRON), por meio da Empresa Gerencial de Projetos Navais (EMGEPRON) da Marinha do Brasil. O Programa Naval angolano inclui, além da construção de estaleiros em Angola, a aquisição de seis navios-patrulha de 500 toneladas, a capacitação de recursos humanos para a construção, manutenção e operação dos navios, estaleiros e sistema de vigilância marítima (a criação do Comitê Interino Conjunto de Defesa marca esse avanço). No caso de Moçambique, a venda de materiais tem sido a tônica. Em relação à cooperação na área de diplomacia, houve a formação de quadros diplomáticos desde a década de 1980, no Instituto Rio Branco. Em relação à Administração pública, tem sido ofertados semestralmente cursos nas áreas de controladoria, contabilidade, direcionados para servidores públicos dos PALOP, com a participação da Fundação do Desenvolvimento Administrativo de São Paulo (FUNDAP), do Instituto de Administração Pública (IBAM) e da Escola de Administração Fazendária (ESAF). No âmbito do setor judiciário, houve apoio da Justiça Eleitoral brasileira ao recenseamento eleitoral, observadores eleitorais, Tribunal Superior Eleitoral e Tribunais Regionais Eleitorais, censo e registro civil, especialmente nos Pequenos PALOP. A cooperação na área agropecuária se fortaleceu com a participação da EMBRAPA, na capacitação de quadros, troca de experiências e tecnologias, intercâmbio de pesquisa científica, suporte para produção frutícola (especialmente bananas e ananás), e de cereais (como arroz, milho, feijão e soja), na pecuária (de gado e leite e no desenvolvimento de pastagens), além da demanda por um laboratório de patologia animal, e na extensão rural.

Na saúde, houve o progressivo aperfeiçoamento profissional, com programas ou estágios de especialização e através da concessão de bolsas de estudo para especialização técnica. Projetos conjuntos de pesquisa em áreas científicas que sejam de interesse comum, doação de medicamentos e vacinas, intercâmbio de peritos e cientistas, organização de seminários e conferências, remessa e intercâmbio de equipamentos e de material necessário à realização de projetos específicos e implantação de banco de leite humano, fortalecimento da atenção primária à saúde. A Fundação Oswaldo Cruz tem sido responsável pela troca de experiências, pesquisa cientifica. Em relação à formação de mão de obra comercial e empreendedora, SENAI, SENAC e SESI tem sido os corresponsáveis pela instalação de Centros Profissionais do SENAI nas capitais dos PALOP. 58 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

A ação cooperativa pela via multilateral O Brasil reconhece o continente africano como área de ação externa privilegiada, e o Atlântico Sul passa a ser o grande caminho para esse estreitamento de relações. Os PALOP, pelas questões histórico-sociais, tornaram-se parceiros fundamentais da política externa brasileira. Esse “cinturão da boa vontade” é prioridade brasileira por dois pontos: 1) a ação cooperativa na agenda externa brasileira, pela via bilateral apontada anteriormente e pela via multilateral que se consolida, pela CPLP e ZoPACAS e 2) o reposicionamento do Atlântico Sul como região geoestratégica no sistema mundial contemporâneo. Nesse sentido, a CPLP tem sido a ferramenta legitimadora e a ZOPACAS desponta, desde 1994, como possibilidade promissora: ambas possuem em suas agendas de trabalho a cooperação. Um ponto convergente refere-se às relações Brasil-Portugal e suas consequências para a CPLP. O teor das relações Brasil-Portugal, historicamente constituídas entre a aproximação e a distância, caracterizaram também a forma e as fases de implantação da própria CPLP. Os dois países, por motivos iguais, mas em seus respectivos contextos e interesses locais-regionais-internacionais (influência política e contatos econômicos baseados na história e cultura em comum) uniram esforços para a concretização da Comunidade, pois “ficou acertado que o Brasil e Portugal buscariam ações de cooperação conjunta nos PALOP, como forma de testar a viabilidade de um trabalho comum em todo o continente” (BRASEMB PRAIA, OF C nº 0031-00112, 1992, pág. 1).

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O ponto de divergência entre Brasil e Portugal, relativo à CPLP, dizia respeito à forma com que essa cooperação resultante tomaria: Portugal identificava a relação Portugal-Brasil nos PALOP, na “equação 2 + 5=7”, como a “ideal”. A documentação diplomática brasileira é rica nesse sentido, pois clarifica o entendimento que o Brasil tinha da parceria multilateral (com a criação do IILP e depois a CPLP), como “equação 7=7”, mais “dinâmica e positiva”. O que prevaleceu, no meu entendimento, foi o posicionamento brasileiro, que efetivou a Comunidade lusófona a partir de um teor cultural, mas com claros tons políticos e econômicos. A CPLP nasceu da convergência das relações histórico-sociais em torno da manutenção de uma língua comum, tendo o Atlântico Sul como eixo facilitador. Em julho de 1996, a criação da CPLP converteu esses aspectos em torno de uma concertação política e cultural entre seus membros, cuja base passou a ser a cooperação. Ao longo desses dezoito anos, a ação da CPLP tem se ampliado também para uma concertação em outras áreas, especialmente na defesa (depois de 2006). A promoção da segurança e estabilidade no Atlântico Sul, com base na afirmação e proteção de valores e interesses comuns tem sido a tônica dessa cooperação. Como exemplo, a reunião de ministros de Defesa a partir de 1998, em Portugal (Brasil como observador) e a assistência das Marinhas brasileira e portuguesa à Marinhas de Angola, Cabo Verde de Guiné-Bissau. Em 2010, na XII Reunião de Ministros de Defesa da CPLP, realizada em Brasília, o ex-ministro Nelson Jobim demonstrou preocupação por ações políticas conjuntas concretas entre os dois lados do Atlântico Sul, no sentido de concertação política e de defesa, elencando a ZOPACAS como alternativa geopolítica viável. Em 2011, na XIII Reunião, no Brasil, se pactuou entre os membros o “Protocolo de cooperação no domínio de Defesa”. Como frutos dessa cooperação específica, surgiram o Centro de Análise Estratégica da CPLP (2006) e a contínua realização dos Exercícios Felino. As Forças Armadas dos países da CPLP tem participado de exercícios militares desde 2000: nos dois primeiros anos os Exercícios Felinos ocorreram em Portugal; em 2002 realizou-se no Brasil, em 2003, em Moçambique , em 2004, em Angola, em 2005, em Cabo Verde, novamente no Brasil em 2006 (Petrolina/PE), em 2007, em São Tomé e Príncipe, em 2008, ocorreram em Portugal, em 2009, em Moçambique e em 2010, em Angola. Em 2013 e 2014, os Exercícios ocorreram no Brasil. Outro ponto importante em relação à via multilateral, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) deve ser compreendida a partir do contexto em que foi sugerida e criada. Em julho de 1988, o Brasil reuniu, no Rio de Janeiro, pela primeira vez, os representantes dos países da ZOPACAS

para coordenarem ações, pois tal proposta brasileira era entendida como “um esforço de entendimento intrarregional, de natureza igualitária, orientado para o objetivo da cooperação para a paz e a segurança em nossa região e o desenvolvimento de nossos povos” (ABREU SODRÉ, 1988, p. 21), em um momento histórico se encaminhava para as mudanças do fim da Guerra Fria. A ZOPACAS constituiu-se como esforço concreto de coordenação política regional, de cunho multilateral, liderada pelo Brasil, que como instrumento da “materialização da herança atlântico-africana”, conforme Penha (2011). O 2º encontro da Zona, de 25 a 29 de junho de 1990, ocorreu em Abuja e representou novas linhas de ação entre os estados membros. No entanto, o contexto internacional tirou da Zona seu argumento essencial: 60 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

do ponto de vista geopolítico, a posição estratégica relativamente relevante desempenhada pelo Atlântico Sul durante a Guerra Fria foi gradativamente perdendo importância e, com ela, a própria ideia da ZoPaCAS, originada justamente deste contexto de confronto potencial (PENHA, 2011, p. 188).

A iniciativa diplomática brasileira, em 1992, de relançá-la sob novos moldes, levando-se em consideração ao cenário pós-Guerra Fria, objetivava fomentar novas prioridades regionais, por meio de ações coletivas. A versão final da ZOPACAS foi um arranjo informal entre os países da bacia do Atlântico Sul e as resoluções que institucionalizaram a Zona incorporaram itens como defesa dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, igualdade racial e cooperação em níveis nacional e regional, além de buscar o fomento para melhorias na logística de cargas regionais e na aplicação da lei marítima internacional. O processo de independência da Namíbia, a democratização da África do Sul, a normalização das relações Argentina-Grã-Bretanha e as tentativas de pacificação em Angola contribuíram para tal retomada. O terceiro encontro da Zona ocorreu em setembro de 1994, em Brasília, onde os Estados membros adotaram a Declaração de Desnuclearização do Atlântico Sul, a Declaração do Meio Ambiente Marítimo e a Declaração de Cooperação Comercial, além do estabelecimento de um Comitê Permanente da Zona, responsável pelo funcionamento permanente das ações da Zona. O quarto encontro ocorreu na Cidade do Cabo, em 1996. Em 1998, em Buenos Aires, ocorreu o V Encontro, no sentido de enfatizar “a necessidade de fortalecer os laços entre as duas margens do Atlântico Sul e consolidar a região subatlântica como uma importante bacia econômica capaz de fomentar o desenvolvimento econômico da região” (PENHA, id., p. 190).

No ano de 2007, o sexto encontro da ZOPACAS ocorreu em Luanda e resultou no Plano de Luanda. A sétima Reunião Ministerial da Zona se efetivou em Montevidéu em 15 de janeiro de 2013 e resultou no Plano de Montevidéu.

Considerações finais: revalorização do Atlântico Sul e possibilidades para o Brasil

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A partir desses apontamentos, compreende-se que historicamente, o Atlântico Sul tem aproximado as suas margens, tendo o Brasil como liderança. Um aspecto complementar é a revalorização da região no sistema mundial, com o papel renovado de Angola no Golfo da Guiné desde 2003. O crescimento econômico e a articulação política e militar da região da África austral nos últimos 10 anos, tornaram a região uma das mais atrativas na segunda década do século XXI. O Brasil aumentou sua influência e investimentos nos PALOP. Um exemplo interessante refere-se à Guiné-Bissau, passível de compreender a interelação de forças e interesses na região: depois da guerra civil de 1998-1999, a instabilidade política se acentuou no país, notoriamente no seio das Forças Armadas, que tem buscado se manter no poder com regalias e poderes especiais (relação entre militares e poder executivo cada vez mais tensa e complexa). Depois dos assassinatos de 2009 (Presidente Nino Vieira e do chefe do Estado-Maior do Exército, general Batista Tagme Na Wai), a instabilidade se potencializou com a crise de 2010. Nesse caso, evidencia-se especialmente três forças externas atuantes: a relação Angola-Portugal, a presença da França e Brasil na região. A resolução para a situação bissau-guineense encaminhou-se pela via bilateral: um acordo entre Bissau e Luanda para a reforma das Forças Armadas bissau-guineenses, com a instalação de uma missão militar angolana na Guiné-Bissau: a MISSANG era composta por aproximadamente 200 militares angolanos, além da doação de material bélico e treinamentos. As controvérsias internas sobre o real interesse das tropas angolanas em solo bissau-guineense foram um dos fatores que desencadearam nova crise no ano de 2012, aprofundada pela morte do Presidente Sanhá acentuou a situação (janeiro de 2012, de causas naturais). Complementarmente, o papel da CEDEAO aumentou desde 2010, pela liderança e influência histórica da Nigéria na entidade e na região, o que acarretou paulatinamente a diminuição do papel da CPLP e ONU. O pacto de transição foi liderado pela CEDEAO durante o segundo mandato

62 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

dos nigerianos, entre 2011 e 2012. A CEDEAO tornou-se a protagonista nas conduções pós-golpe na Guiné-Bissau, superando, assim, as pretensões de outro organismo supranacional, a CPLP. Naquele momento, dizia-se que a Nigéria passava a ocupar o lugar de outra liderança regional, Angola, de aliado predileto para a elite militar bissau-guineense3. O aumento da presença externa na costa ocidental da África (EUA, União Europeia, China e também Portugal retoma o interesse na região) tem tornado as complexas relações regionais mais instáveis e débeis. Além disso, os problemas de segurança em aumentado no Golfo da Guiné, com narcotráfico, contrabando (venda ilegal de armas e pirataria) como os principais ilícitos praticados (muitos dos atos tendo a Guiné-Bissau como ponto entre a América Latina e a Europa) e combatidos, especialmente pelas forças parceiras externas e organizações regionais e internacionais. Não resta dúvida que o Atlântico Sul é área de influência e atenção brasileira, por questões geográficas, histórico-culturais e de segurança. A promoção da segurança e estabilidade no Atlântico Sul, com base na afirmação e proteção de valores e interesses comuns mantém-se como balizadores da política externa brasileira para os PALOP, calcada na ação cooperativa como ponto de continuidade. O aumento da área de defesa na pauta externa do Brasil a partir de 2003 justifica essa ação mais concreta e a perspectiva é que se acentuem esses arranjos, tendo como base a ação cooperativa, tanto pela via bilateral e multilateral nos próximos anos.

Referências AMORIM, Celso. Brazilian foreign policy under Presidente Lula (2003-2010): an overview. Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília, vol.1, n. 53, p.214240, 2010. AMORIM, Celso. Conversas com jovens diplomatas. São Paulo: Benvirá, 2011. ABREU SODRÉ, Roberto de. Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Roberto de Abreu Sodré, por ocasião da Reunião de Países da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, no Rio de Janeiro, em 25 de julho de 1988. Resenha de Política Exterior do Brasil, nº.58, jul/ago/set 1988, p. 21-23. BRASEMB PRAIA. [OF C nº 00122], 09/04/1990, Praia [para] EXTERIORES/DAF-II, Brasília. 01 pág. Relações Cabo Verde-Portugal.

3

Em outubro de 2013, a embaixada nigeriana em Bissau foi atacada por populares, sob desculpa de perseguição a estuprador nigeriano.

A COOPERAÇÃO BRASILEIRA COM PAÍSES AFRICANOS G erhard S eibert 1

Introdução

D

esde o início da presidência de Lula da Silva (2003-2010) o fortalecimento e a expansão das relações com África a todos os níveis tornaram-se parte integral da política externa brasileira que visa à afirmação do país como potência global num novo contexto político internacional. A presidente Dilma Roussef (2011 - ) prometeu continuar a política africana de Lula, porém, não deu a política africana a visibilidade e importância como o seu predecessor. Durante os primeiros anos da presidência Lula, as trocas comerciais com África cresceram significativamente, investimentos de empresas brasileiras multiplicaram-se e o número das representações diplomáticas no continente aumentou de 17 para 37. Um dos instrumentos importantes da política externa brasileira é a cooperação técnica que é coordenada pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC), criada em 1987 e parte integrante da estrutura organizacional do Itamaraty. O orçamento da ABC aumentou significativamente de R$15.6 milhões em 2006 para R$52.6 milhões em 2010, contudo, este valor é modesto em comparação com os orçamentos de cooperação de outros países doadores. Além disso, um valor de R$13.5 milhões foi contingenciado, reduzindo o orçamento em 2010 para um valor

1

Professor da UNILAB, Campus dos Malês, São Francisco do Conde, Bahia.

63

64 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

final de cerca de R$39 milhões. Desde então o orçamento foi gradualmente diminuído para R$34.2 milhões em 2013. As principais áreas da cooperação técnica executada pela ABC são a agricultura, saúde, educação, formação profissional e desenvolvimento social. Mais de a metade dos projetos da cooperação técnica em África encontram-se nos cinco Países Africanos da Língua Oficial Portuguesa (PALOP)2. Muitos dos projetos da ABC, que geralmente são de pequena dimensão e de pouca duração, são realizados em parceria com outras organizações públicas e privadas brasileiras e baseiam-se em programas e conceitos que foram realizados com sucesso no Brasil. Além disso, o Brasil define a sua cooperação para o desenvolvimento como cooperação Sul-Sul que é caracterizada por uma relação horizontal, realizada em pé de igualdade com os beneficiários e isenta de interferência e de condicionalismos políticos ou econômicos. Com esta afirmação, a cooperação brasileira pretende diferenciar-se das formas de cooperação assimétrica associadas aos países doadores tradicionais do Norte. Além da cooperação técnica, o Brasil reconhece mais três formas de cooperação para o desenvolvimento, todas concedidas a fundo perdido: a assistência humanitária, bolsas de estudos para estrangeiros em instituições de ensino superior brasileiras e as contribuições para organizações internacionais e bancos de desenvolvimento regionais. Modalidades diferentes da cooperação bilateral integram a cooperação económica e financeira, nomeadamente o perdão de dívida e o crédito à exportação em termos concessionais que visa promover as exportações brasileiras. Em expansão são também linhas de crédito às exportações não concessionais concedidas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O objetivo deste artigo é apresentar e analisar, no contexto da ambiciosa política externa global do país, o conjunto da cooperação brasileira com a África, sobretudo as principais instituições, os conceitos, objetivos e beneficiários.

O Brasil redescobre a relevância de África O início do governo do Presidente Lula da Silva em 2003 marcou o retorno do Brasil à África, depois de um período de quase vinte anos em que as relações com os países africanos não eram prioritárias na política externa

2

Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe.

65 A COOPERAÇÃO BRASILEIRA COM PAÍSES AFRICANOS

do país. O início das relações entre Brasil e África remonta ao século XVI quando começou o tráfico de escravos que, até ao seu fim em 1850, levou à emigração forcada de cerca de 3.6 milhões de africanos para o Brasil. Como consequência deste tráfico de escravos, atualmente cerca de 50% da população brasileira reclama descendência africana (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011, p. 42). Além disso, até à independência do país em 1822 luso-brasileiros mantiveram relações a vários níveis com os territórios africanos de Portugal, a potência colonial comum. Estas relações eram tão estreitas que, em 1822, em Cabo Verde, Angola e Moçambique havia manifestações políticas a favor da adesão destes territórios ao Brasil. Depois do fim do tráfico de escravos, o Brasil praticamente interrompeu as relações com o continente africano, que depois da Conferência de Berlim (1884-1885) foi dominado pelas potências coloniais europeias. Na primeira metade do século XX o Brasil mantinha apenas relações com a África do Sul, que representou 90% do comércio externo com África, que na altura era insignificante (VISENTINI, 2009). Na segunda metade do século XX, as relações do Brasil com a África foram caracterizadas por altos e baixos conforme as diferentes conjunturas políticas e econômicas. Foi durante o breve período da chamada Política Externa Independente durante os governos dos presidentes Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964) que o Brasil começou a estreitar as relações com os países africanos recém-independentes. Contudo, o golpe militar em 1964 interrompeu esta aproximação com a África, visto que os governos militares privilegiaram relações estreitas com o regime salazarista em Portugal (1933-1974) que categoricamente recusou a descolonização dos seus territórios em África e Ásia que, desde 1951, considerou oficialmente províncias ultramarinas. Naquela altura o Brasil foi o único país em desenvolvimento que nas Nações Unidas votou contra as várias resoluções submetidas por governos africanos, que condenaram a política colonial portuguesa. Ainda em novembro de 1973, o Brasil foi um dos apenas sete países que votaram contra uma resolução das Nações Unidas que reconheceu a declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau de setembro daquele ano. Finalmente, foi o choque petrolífero de 1973 que ameaçou a segurança energética e o então crescimento econômico do Brasil que levaram o regime militar a mudar a sua política africana. Nos fins dos anos de 1960 e no início dos anos de 1970 a economia brasileira cresceu em média 10% durante sete anos consecutivos (WHITE, 2010, p. 227). Foi a ameaça do crescimento econômico e a procura de matérias-primas e de novos mercados

66 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

que motivaram o regime militar de Ernesto Geisel (1974-1979) desenvolver novas iniciativas em África no âmbito de uma política externa denominada Pragmatismo Ecumênico e Responsável. A queda da ditadura portuguesa em abril de 1974 e a descolonização subsequente facilitaram esta mudança da política externa brasileira. Para manifestar a sua nova política africana, em julho de 1974, o Brasil reconheceu demonstrativamente a independência da Guiné-Bissau, pouco antes do reconhecimento por Portugal, em agosto desse ano. Em novembro de 1974, o Brasil até foi o primeiro país que reconheceu diplomaticamente o regime socialista do MPLA em Angola. Nos anos seguintes o Brasil intensificou as relações com África, o que também resultou num crescimento considerável das trocas comerciais com países africanos e no início de atividades de grandes empresas brasileiras como a Petrobrás e a Odebrecht no continente. Nesse período, o Brasil apareceu em África como país em desenvolvimento e membro do G77, um grupo de países em desenvolvimento, estabelecido em 1964. O general João Figueiredo (1979-1985), o último militar no poder, foi o primeiro presidente brasileiro que efetuou uma viagem oficial a África, em 1983, quando visitou a Nigéria, Senegal, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Argélia. Contudo, em meados dos anos de 1980, tanto a crise financeira brasileira provocada pela dívida externa acumulada pelos regimes militares, como os problemas econômicos em África levaram a um retrocesso considerável das relações políticas e econômicas entre o continente e o Brasil. Nas décadas de 1980 e de 1990, o crescimento econômico anual médio do Brasil era apenas 2.2% e 1.8% respetivamente (RIBEIRO, 2010, p.65). No período de 1985 a 1990 a quota de África nas exportações e importações do Brasil desceu de 7.9% para 3.2% e de 13.2% para 2.8% respetivamente (RIBEIRO, 2008, p. 52). As relações com África estavam reduzidas aos PALOP e a Nigéria, um importante fornecedor de petróleo. Desde 1985 a política externa do Brasil privilegiou as relações com os vizinhos na América do Sul, os Estados Unidos, a Comunidade Europeia e subsequentemente com potências emergentes como a Rússia, China e Índia. Dos 34 diplomatas brasileiros em África em 1983, apenas 24 permaneceram nos seus postos em 1993, enquanto no mesmo período o número dos diplomatas na Europa, América do Sul e do Norte aumentou (RIBEIRO, 2007). Durante os anos de 1990, o Brasil gradualmente mudou a sua imagem de um país em desenvolvimento para a de um país potencialmente desenvolvido (BARBOSA et al., 2009, p. 63). A integração do Brasil no Grupo das

Intensificação das relações diplomáticas e econômicas O Presidente Lula da Silva enfatizou a importância das relações com África no contexto da política externa global do Brasil realizando doze viagens oficiais a 21 países diferentes do continente durante os oito anos do seu governo, mais do que todos os seus antecessores em conjunto ou qualquer outro chefe de Estado estrangeiro (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011, p. 9). Ele visitou vários países mais do que uma vez e sempre levou delegações empresariais nestas missões e assinou inúmeros acordos de coopera-

67 A COOPERAÇÃO BRASILEIRA COM PAÍSES AFRICANOS

20 maiores economias do mundo (G20), em 1999, reconheceu a importância crescente do país como potência emergente. Foi o Presidente Lula da Silva que, logo no início do seu governo relançou as relações entre o Brasil e África, no âmbito de uma política externa global que visa obter um lugar adequado para o Brasil numa nova ordem política internacional que o país mereceria conforme a sua dimensão geográfica, demográfica e econômica. O contexto político da política africana do Brasil era diferente, tanto no plano nacional como internacional. Nos anos 1970, o Brasil era uma ditadura militar, com uma política de industrialização por substituição de importações e o mundo era marcado pela bipolaridade da guerra fria. Quando Lula da Silva chegou à presidência o país era uma democracia consolidada com uma economia de mercado livre em crescimento num mundo multipolar. O governo Lula coincidiu com a primeira década do século XXI que foi marcada por três características: a) em termos globais pela emergência de um espaço propício para a afirmação de novo policentrismo em reação ao unilateralismo da estratégia do presidente norte-americano George Bush (2001-2009), o enfraquecimento relativa do poder e prestígio dos Estados Unidos e o impacto da crise econômico-financeira internacional; b) no contexto econômico pela expansão da economia mundial seguida por uma crise financeira aguda que debilitou particularmente os países desenvolvidos ocidentais, resultando na substituição do G7 pelo G20 na gestão política da economia mundial e c) na América Latina por um vácuo de liderança causado pelo desvio da atenção dos Estados Unidos e pela ausência temporária do México e da Argentina e a heterogeneidade crescente de regimes políticos devido aos regimes populistas em Venezuela, Bolívia e Equador (RICUPERO, 2010, p. 28).

68 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

ção bilateral. Em reconhecimento pelo seu empenho em reforçar as relações entre América Latina e África, o presidente Lula da Silva foi convidado de honra da União Africana (UA) na sua 13ª cimeira em Líbia, em julho de 2009. Um ano depois, na cimeira da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) no Sal, Cabo Verde, Lula da Silva foi oficialmente homenageado pelos seus esforços em aproximar o Brasil da África durante os seus oito anos no governo. Neste período, o chanceler, Celso Amorim, efetuou 67 visitas oficiais a 34 países africanos. No mesmo período, reforçando a sua presença em África, o Brasil aumentou o número das suas representações diplomáticas em capitais africanas de 17 para 37, sendo 35 embaixadas e dois consulados. Ao mesmo tempo, o número das embaixadas de países africanos em Brasília cresceu de 16 para 33, mais uma prova do fortalecimento das relações bilaterais entre o Brasil e os países africanos (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011). Em 2013, o Brasil abriu em Lilongwe (Malauí) a sua 38ª embaixada em África, tantas quantas como a Rússia. Apenas os Estados Unidos, China e França têm mais embaixadas no continente africano. A eleição de dois brasileiros, José Graziano da Silva e Roberto Azevêdo, como diretores da FAO, em 2011, e da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2013, deve-se muito à ofensiva diplomática do Brasil nos países africanos. Contudo, durante o primeiro mandato da presidente Dilma a atividade diplomática em relação à África diminui consideravelmente, devido a uma maior atenção a questões domésticas. Em 2011 fez uma viagem à África Austral visitando Angola, Moçambique é África do Sul. Em 2013 participou na 3ª cúpula América do Sul – África (ASA) em Malabo (Guiné Equatorial) e no regresso esteve em Abuja (Nigéria). No mesmo ano, ainda participou na 5ª cúpula dos BRICS em Durban (África do Sul) e nas comemorações do 50º aniversário da UA em Addis Abeba (Etiópia). Na capital etíope, a presidente Dilma agradeceu explicitamente o apoio dos países africanos na eleição de Roberto Azevêdo como diretor da OMC (LEITE et al., 2014, p. 88). Uma semana antes da viagem presidencial para Etiópia, um grupo interministerial, criado em 2012 para fazer uma radiografia das relações com África e elaborar propostas para reforçar as relações comerciais com o continente, apresentou à presidente Dilma uma Agenda África. Além do perdão da dívida de $900 milhões, a agenda propôs uma revisão dos procedimentos da concessão de créditos de exportação concedidos pelo BNDES, novos modelos de acordos de investimento e um aumento do orçamento da cooperação técnica.

69 A COOPERAÇÃO BRASILEIRA COM PAÍSES AFRICANOS

No plano multilateral a diplomacia brasileira desenvolveu várias iniciativas para reforçar a cooperação Sul-Sul com países africanos. A Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), criada por iniciativa brasileira em 1986, que integra Argentina, Brasil, Uruguai e 21 países da costa atlântica de África, foi reativada depois de um período de paralisação para estreitar as relações sul-atlânticas. Em 2007, depois de dez anos de interrupção a ZOPACAS foi reativada durante uma reunião ministerial em Luanda, onde foi aprovado um Plano de Ação a fim de incentivar a cooperação económica, política, ambiental e de segurança no Atlântico do Sul, onde passa 95% do comércio externo do Brasil e que, desde a descoberta das reservas de petróleo pré-sal, ganhou maior importância estratégica para o país. Além de reforçar a cooperação militar, o Brasil também está interessado em aumentar exportações de armas para a África (ABDENUR; NETO, 2014, p. 7). O 7º encontro ministerial da ZOPACAS realizou-se em Montevideo, em janeiro de 2013. Durante o encontro, o ministro de defesa brasileiro, Celso Amorim, propôs uma intensificação de cooperação em matéria de segurança e defesa dos países membros. Contudo, por enquanto a ZOPACAS ainda não mostrou muita dinâmica. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), concebida em São Luís de Maranhão em 1989 e finalmente fundada em 1996 em Lisboa, ganhou mais importância para aprofundar as relações bilaterais com os cinco PALOP, que o Brasil considera próximos em termos históricos e linguísticos. Em 2003, o Brasil, junto com cinco países africanos e outros países do Sul, criou o Grupo dos 20 (G20, países em desenvolvimento) para defender os interesses dos países em desenvolvimento nas negociações agrícolas no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC). No mesmo ano, foi criado o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (IBSA) para estreitar as relações políticas, estratégicas e econômicas entre as três potências emergentes que representam grandes democracias multiétnicas, em três continentes, partilhando a reivindicação de um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Desde 2008 o IBSA realizou anualmente cimeiras dos três chefes do Estado. Além disso, os três países realizaram manobras navais (IBSAMAR) em 2008, 2010 e 2012. O último exercício naval IBSAMAR realizou-se em outubro de 2014, nas águas territoriais da África do Sul. Contudo, nos últimos anos IBSA tem perdido importância política relativamente ao maior grupo dos BRICS (ABDENUR, 2014, p.15).

70 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

O Brasil também apoiou a integração de África do Sul como representante do continente africano no grupo de potências emergentes BRIC, acrónimo referente ao Brasil, Rússia, Índia e China, grandes economias com elevadas taxas de crescimento econômico. Na base destas características o acrônimo foi cunhado num estudo sobre economias emergentes por um economista da Goldman Sachs, em 2001. Por outro lado, estes países são marcados por grandes desigualdades sociais resultando em rendimentos por capita baixos. No Brasil, 8.5% da população ainda se encontram em situação de extrema pobreza. Contudo, graças a políticas sociais bem-sucedidas de 2003 a 2010, conforme dados oficiais, 20.4 milhões de brasileiros conseguiram sair da pobreza. De 2000 a 2009, o comércio dos quatro BRIC originais com a África aumentou quase dez vezes de $16 biliões para $157 biliões, enquanto o comércio mundial apenas triplicou no mesmo período (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011). A primeira reunião dos chefes de Estado dos BRIC realizou-se apenas em 2009, em Ecaterimburgo, Rússia. A África do Sul foi oficialmente admitida ao grupo em 2010, alterando a sigla do grupo das potências emergentes para BRICS. Em 2013 os BRICS decidiram estabelecer como alternativa ao Branco Mundial um próprio banco de desenvolvimento com capital de $100 bilhões para financiar investimentos em infraestruturas em países emergentes e pobres. Outro mecanismo multilateral que o Brasil promoveu é a cúpula América do Sul – África (ASA) que reúne os 12 países sul-americanos e os 54 africanos. A primeira cimeira ASA realizou-se em 2006, em Abuja (Nigéria) por iniciativa dos então presidentes Lula da Silva e Obasanjo. O segundo encontro da ASA realizou-se em Isla de Margarita (Venezuela), em 2009, enquanto a última cúpula ocorreu depois de adiamentos consecutivos em Malabo, em 2013. A iniciativa tem mais caráter simbólico no contexto da cooperação Sul-Sul, pois ainda não produziu resultados concretos. Também o crescimento das trocas comerciais confirma uma intensificação das relações entre Brasil e África desde o início do século XXI. De 2000 a 2010 o comércio do Brasil com toda a África quintuplicou de $4 biliões (3.8% do comércio externo do Brasil) para $20 biliões (5.4%). No mesmo período, as trocas comerciais brasileiras com os países da África subsaariana aumentaram de $2 biliões (1.9%) e $12 biliões (3.2%) respetivamente. Contudo, em termos proporcionais, o comércio com África está muito aquém dos valores de 1985. O ano de 2007 foi o melhor em termos proporcionais, representando 7.1% do comércio externo do Brasil. Em comparação, de 2000

Quadro 1- Comércio externo do Brasil com África em $ milhões F.O.B Ano

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2013

Export.

1347

1989

2363

2862

4247

5981

7456

8578

10170

8692

9262

12225

11087

Import.

2907

3331

2676

3291

6183

6657

8111

11347

15761

8465

11302

15436

17466

Balança -1560

-1342

-312

-429

-1936

-675

-656

-2769

-5592

+228

-2041

-3211

-6359

Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Externo.

Quadro 2 - Quota de África no comércio externo do Brasil em % Ano

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2013

Expor- 2.4 tações

3.4

3.9

3.9

4.4

5.0

5.4

5.3

5.1

5.7

4.6

4.8

4.6

Impor- 5.2 tações

6.0

5.7

6.8

9.8

9.0

8.9

9.4

9.1

6.6

6.2

6.8

7.3

Elaborado pelo autor, na base de dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Externo

71 A COOPERAÇÃO BRASILEIRA COM PAÍSES AFRICANOS

a 2010, a quota da China no comércio externo do Brasil aumentou de 2.1% para 14.7% (BANCO MUNDIAL & IPEA, 2011). De fato, em 2010, o Brasil foi apenas o 16º país fornecedor de África representando não mais de 2.1% das importações do continente, depois da China (1º fornecedor com 13.8%; Índia (6º, 4.1%) e África do Sul (11º. 2.8%) (IGLESIAS, 2012). Nos últimos anos a proporção de África no comércio externo brasileiro tem diminuído (5.7% em 2012; 6% em 2013). Os principais parceiros comerciais do Brasil em África são Argélia, Nigéria, Angola, África do Sul é Egito, os mesmos como nos anos de 1980. Em conjunto, atualmente estes cinco países representam dois terços das exportações e 85% das importações africanas do Brasil. Da Argélia, Angola e Nigéria o Brasil compra quase exclusivamente petróleo, enquanto África do Sul é em primeiro lugar um fornecedor de carvão e minérios. O Egito é o principal destino de exportações brasileiras no continente africano. As principais exportações do Brasil para África são açúcar, óleos e gorduras vegetais e animais e veículos automóveis (COSTA; VEIGA, 2011, p. 13). Devido ao declínio das exportações para a África, a presidente Dilma decidiu reforçar o pessoal de doze embaixadas em África para melhorar a sua capacidade de promoção comercial (ADENUR; NETO, 2014, p.3).

72 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

Os investimentos brasileiros em África concentram-se particularmente nos setores de energia, mineração, construção e biocombustíveis. África é apenas quinta região para a localização das grandes empresas brasileiras, atrás da América do Sul, Europa, Ásia e América do Norte (IGLESIAS; COSTA, 2011, p. 15). Em 2009, os investimentos no continente africano ultrapassaram $10 biliões, quase 6.4% do total dos investimentos diretos externos do Brasil de $157 biliões (WHITE, 2010, p. 224). Contudo, enquanto de 2007 a 2011 os investimentos brasileiros em África aumentaram anualmente 10.7%, os 33 projetos do Brasil representaram somente 0.6% dos investimentos estrangeiros diretos no continente.3 As principais empresas brasileiras, que têm investido e operado em vários países africanos, são as construtoras Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez (sobretudo através da subsidiária portuguesa Zagope), a Petrobrás, a mineira Vale e a Marcopolo, fabricante de ónibus, que possui unidades de produção na África do Sul e Egito. Também o número das pequenas e médias empresas brasileiras em África está a crescer, sobretudo em Angola, o principal destino de investimentos brasileiros, seguido por Moçambique, Líbia e África do Sul (CABRAL, 2011, p. 20). Atualmente empresas brasileiras estão presentes em 19 países africanos.

A cooperação para o desenvolvimento O discurso político brasileiro em torno da cooperação com África refere-se ao legado do tráfico de escravos, à proximidade geográfica, analogias geofísicas e ao caráter horizontal destas relações. Frequentemente afirma-se que o tráfico de escravos e a escravatura no Brasil levaram a uma dívida histórica e moral com África, mas também a um compromisso com os afrodescendentes no próprio país. Por outro lado, refere-se que o passado da escravatura teria criado afinidades histórico-culturais entre o Brasil e África (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011). Sobretudo no caso dos cinco PALOP sugere-se que o passado colonial comum teria deixado conformidades linguísticas e culturais. A existência da população afrodescendente e as supostas afinidades histórico-culturais com África são consideradas diferenças marcantes entre o Brasil e as outras potências emergentes. Outro motivo recorrente da intensificação das relações com África é a proximidade geográfica, pois o

3

BBC Brasil, 09/05/12.

73 A COOPERAÇÃO BRASILEIRA COM PAÍSES AFRICANOS

continente fica perto, à outra margem do Atlântico Sul que se assemelha a um rio que se pode atravessar facilmente. A constelação geográfica também resulta em semelhanças geofísicas de solo e de clima entre certas regiões do Brasil e África que podem beneficiar a cooperação na agricultura e medicina tropicais. Além disso, desde a descoberta das reservas do petróleo pré-sal na chamada Amazônia Azul para o Brasil questões da segurança e defesa no Atlântico do Sul se tornaram mais importantes. Em termos políticos, uma postulada nova África com mais estabilidade política e crescimento econômico coincidiria com um Brasil global que procura reforçar as relações políticas e econômicas no âmbito da cooperação Sul-Sul (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011). Oficialmente esta cooperação é guiada pela solidariedade, pois o Brasil reivindica a ser mais parceiro do que doador. Nesta perspectiva, Brasil é África são vistos como parceiros naturais cuja cooperação trazia automaticamente benefícios mútuos. Mais uma vantagem do país na sua relação com África são os custos reduzidos dos projetos de cooperação técnica brasileira. Na prática, a cooperação técnica é em primeiro lugar um instrumento da nova política externa global do governo brasileiro para promover os interesses políticos e econômicos do país nos países do Sul. Os projetos da cooperação técnica brasileira concentram-se em áreas onde o país possui vantagens comparativas, nomeadamente agricultura tropical, saúde, educação, formação profissional, energia e proteção social. Muitos projetos baseiam-se em experiências com programas que já foram realizados com sucesso no Brasil. A cooperação brasileira é definida como cooperação Sul-Sul, uma relação horizontal, guiada pelo princípio de não interferência nos assuntos internos dos países parceiros, não envolvendo condicionalismos políticos, não é reembolsável, não oferece recursos financeiros, baseia-se em demandas dos países parceiros e é descentralizada (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011, p. 39). Contudo, normalmente a cooperação brasileira está condicionada ao fornecimento de recursos humanos, tecnologia e equipamento do Brasil (CABRAL, 2011, p.8). A cooperação técnica é coordenada pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC) que é um departamento do Ministério das Relações Exteriores. A ABC foi fundada em 1987 para gerir as ajudas internacionais recebidas pelo Brasil, contudo, nos últimos anos a ABC se tem transformado num organismo que organiza e coordena projetos da cooperação técnica brasileira na América Latina e em África.

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Os projetos são executados por dezenas de entidades diferentes, públicas, privadas e não governamentais (CABRAL, 2011, p. 14). A ABC cobre as despesas da operacionalização dos projetos, enquanto os parceiros brasileiros pagam os salários do seu pessoal envolvido (LEITE et al., 2014, 40). Não todos os técnicos brasileiros têm experiências anteriores de realização de projetos em contextos culturais diferentes. A maior parte da cooperação técnica brasileira envolve pequenos projetos com uma duração de dois anos renováveis. Contudo, desde 2008 o Brasil começou a estabelecer alguns projetos estruturantes com uma maior dimensão e duração, particularmente na agricultura. Até ao ano de 2011 o orçamento anual da ABC tem aumentado consideravelmente, contudo em termos absolutos o valor sempre foi relativamente modesto. No período de 1997 a 2006, a ABC atribuiu um total de $7.3 milhões a países africanos, enquanto em 2010 os projetos em África já representaram $22 milhões correspondentes a 57% do orçamento total. Nesse ano, a ABC executou ou previu projetos de cooperação técnica em 37 países africanos, o que reflete uma grande disseminação de projetos. Em termos financeiros, porém, a ABC concentrou 55% da sua cooperação técnica nos cinco PALOP, que, aliás, são também destinos principais da cooperação bilateral de Portugal. No período de 2006-2010, projetos em África representaram 53.4% das despesas da ABC. Contudo, o orçamento da ABC para o período de 20122015 privilegiou América Latina e as Caraíbas com $40 milhões, enquanto despesas de $36 milhões estavam previstas em África (LEITE et al., 2014, p. 82). Devido a constrangimentos financeiros, desde 2011 o orçamento da ABC diminuiu gradualmente de R$41.5 milhões para R$38.6 milhões em 2012 e para R$34.2 milhões em 2013.4 Consequentemente também o número dos projetos em execução teve uma tendência decrescente. Além da cooperação técnica bilateral com países africanos, o Brasil também aposta na cooperação triangular com países da Organização para a Cooperação é Desenvolvimento Econômico (OCDE). Apesar da retórica em torno da cooperação Sul-Sul, acordos de cooperação triangular foram assinados com o Japão, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Espanha, França, Itália e o Reino Unido. Objetivo da cooperação triangular é partilhar conhecimentos e experiências, mas também custos, visto que os meios do Brasil são limitados.

4

Dados da ABC 2014.

5

Veja, por exemplo, o artigo “Não ao pró-Savana”, de Amós Fernando, em Pambazuka News, nº 74, http://www.pambazuka.net/pt/category/features/92075/print

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O maior parceiro da ABC no setor da agricultura é a Empresa de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que existe desde 1973 e possui 9.248 funcionários, sendo 2.215 pesquisadores. Em 2010, o seu orçamento foi de R$1.8 biliões. A Embrapa que dispõe de grandes conhecimentos na agricultura tropical estabeleceu uma representação africana em Acra (Gana), em 2006. A empresa implantou três grandes projetos estruturantes de longo prazo em África. Em 2008, estabeleceu a estação experimental para o melhoramento genético do algodão Cotton Four (C-4) em Sotuba, Bamako (Mali), que também envolve os países vizinhos Burkina Faso, Chade e Benim, todos estes países produtores de algodão. Em 2014 , Togo também entrou neste projeto, quando iniciou a sua segunda fase. Um projeto trilateral de Apoio Técnico para o Desenvolvimento de Inovação Agrícola em Moçambique, com participação da United States Agency for International Development (USAID) e do Instituto de Investigação Agrária de Moçambique (IIAM), foi inaugurado em 2010 e será concluído nos fins de 2014. Em 2011, em parceria com Japão e o IIAM, a Embrapa iniciou o projeto de desenvolvimento agrícola ProSavana no Corredor de Nacala (Moçambique). Este projeto estruturante, baseado em experiências do programa Prodecer no Cerrado brasileiro, que abrange uma área de 14 milhões de hectares e uma população de 4.5 milhões tem uma duração de seis anos. O objetivo do projeto, o maior da Embrapa em África, é aumentar a produtividade dos camponeses para melhorar a segurança alimentar. Contudo, o ProSavana provocou alguma constatação de pequenos agricultores locais e de ONGs moçambicanas. Em 2013, pequenos agricultores exigiram uma suspensão imediata do projeto receando que perdessem as suas terras a favor de grandes investimentos privados estrangeiros na produção em grande escala de culturas de rendimento, como algodão, milho e soja. O governo moçambicano rejeitou estas alegações como infundadas. Contudo, em junho de 2014, nove organizações da sociedade civil moçambicana lançaram uma campanha para paralisar o projeto, visto que apenas beneficiaria o grande agronegócio internacional, enquanto milhares de famílias camponesas seriam prejudicadas. De novo, os responsáveis do projeto negaram as acusações5. Em 2010, foi iniciado o Projeto de Desenvolvimento de Rizicultura no Senegal, com um orçamento de $2.4 milhões. Este projeto também presta

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assistência técnica no Mali, Mauritânia e Guiné-Bissau (LEITE et al., 2014, p. 32). Uma unidade da Embrapa que proporciona cursos de capacitação técnica para pesquisadores e técnicos africanos é o Centro de Estudos Estratégicos e Capacitação em Agricultura Tropical (CECAT). Outra unidade para a capacitação técnica agrícola é o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) que desde 2010 capacitou 70 participantes de 35 países africanos (BANCO MUNDIAL & IPEA, 2011, p. 64). No mesmo ano, a Embrapa criou a Plataforma África-Brasil para Inovação Agropecuária que visa reforçar a cooperação entre peritos e instituições brasileiras e africanas na área da agricultura tropical. A iniciativa que é apoiada por vários doadores internacionais tem atualmente 39 projetos em fase de implementação em África: em Benim, Burkina Faso, Camarões, Etiópia, Gana, Malauí, Moçambique, Nigéria, Quénia, Tanzânia, Togo e Uganda6. O programa multilateral de segurança alimentar Purchase from Africans for Africa (PAA África), inspirado pela experiência brasileira do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA, criado em 2003 no âmbito do Programa Fome Zero), foi lançado em 2012 em parceria com a FAO, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e o Departamento para o Desenvolvimento Internacional (Reino Unido) e integra cinco projetos pilotos de pequena escala em Etiópia, Malauí, Moçambique, Níger e Senegal7. Um parceiro importante da ABC na área de saúde é a prestigiosa Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) cuja origem remonta ao ano de 1900. Reformada nos anos de 1970, a instituição que está ligada ao Ministério de Saúde tem mais de 7.500 funcionários. Em 2008 a Fiocruz estabeleceu um escritório regional para África em Maputo (Moçambique). Um dos maiores projetos da Fiocruz em África é a fábrica de antirretrovirais em Maputo que envolveu um investimento de $23 milhões. Anunciado em 2003, durante uma visita oficial do presidente Lula da Silva a Moçambique, um país com uma taxa muito elevada de portadores do vírus do HIV, este projeto sofreu consecutivos atrasos. Entretanto, o início da produção local de antirretrovirais nesta fábrica começou somente em agosto de 2013. Outro projeto previsto da Fiocruz foi um Centro de Tratamento de Hemofilia e Anemia Falciforme no Gana, que foi anunciado em 2011 com um financiamento de $7 milhões, mas aparentemente não se realizou ainda.

6

Veja mais informações em http://www.africa-brazil.org/site/

7

Ver em http://paa-africa.org/pt/

Lista 1. Lista dos projetos da ABC em São Tomé e Príncipe, com as entidades executoras. 1- Construção Institucional e Metodologia da Extensão Rural como Estratégica de Desenvolvimento Sustentável da Agricultura Familiar (Universidade Federal Viçosa - UFV; Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais - EMATER/MG) 2-Implantação do Programa Nacional da Extensão Rural (PRONER) (UFV; EMATER/MG) 3- Alfabetização Solidária (Associação Alfabetização Solidária AlfaSol, São Paulo-SP) 8

Informação da ABC.

9

Ver em http://www.instituto-camoes.pt/sao-tome-e-principe/root/c.

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A cooperação técnica na área da formação profissional cabe ao Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) que foi estabelecido em 1942 e é integralmente financiado com contribuições obrigatórias pelo setor privado brasileiro. O SENAI tem 22.595 empregados e oferece cursos de ensino profissional em 27 áreas de especialização. O SENAI tem centros de formação profissional em funcionamento em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e outro em Moçambique encontra-se em fase de preparação. Desde o início dos cursos em 2000 até 2008 passaram pelo Centro de Formação Profissional do Cazenga, em Luanda, quase 19,000 participantes. Em 2005, as autoridades angolanas assumiram a gestão deste centro. No período de 2008 a 2011 o centro em Bissau qualificou 523 formados. O centro em São Tomé foi inaugurado em maio de 2014. Além da criação destes centros, o SENAI está também envolvido na prestação de serviços de formação profissional a empresas brasileiras em África. O SENAI presta serviços de capacitação profissional à Odebrecht em Angola, a Vale em Moçambique e a Petrobrás na Tanzânia (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011, p. 68). Depois de Moçambique, o segundo maior parceiro da ABC em África, tanto em termos financeiros como relativamente ao número de projetos foi São Tomé e Príncipe, o segundo menor país de África com apenas 187.000 habitantes (Censo de 2012). Considerado um espelho da cooperação técnica do Brasil em África, visto que representa todas as áreas principais da cooperação técnica brasileira, em 2012 o arquipélago acolheu 16 projetos que envolveram um financiamento total da ABC de cerca de $10.9 milhões8. Em comparação, entre 2010 e 2013, Portugal concedeu São Tomé e Príncipe em média anualmente Ajuda Pública ao Desenvolvimento no valor de €17.5 milhões9.

4- Apoio ao Controle e à Prevenção da Malária (Ministério da Saúde; triangulação com EUA) 5- Construção do Centro de Formação Profissional (SENAI) 6- Fortalecimento Institucional da Gestão de Águas (Instituto de Gestão das Águas e Clima - INGÁ / Governo do Estado da Bahia) 7- Implementação do Programa Nacional Alimentação Escolar (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, Ministério da Educação - MEC, Universidade Federal da Bahia - UFBA) 8- Auxílio Técnico na Implementação da Política de Salário Mínimo (Ministério do Trabalho e Emprego) 78

9- Apoio ao Desenvolvimento Urbano – Componente Capacitação na Estruturação e Gestão de Fundos de Desenvolvimento Social (Caixa Económica Federal - CEF)

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10- Apoio ao Desenvolvimento Urbano – Componente Ordenamento Territorial (CEF) 11- Apoio ao Desenvolvimento Urbano – Componente Política Habitacional e Metodologias Não-convencionais de Construção (CEF) 12- Apoio ao Programa da Luta contra Tuberculose (Ministério de Saúde) 13- Apoio ao Desenvolvimento da Produção de Artesanato (triangulação com a CPLP), (ONG Instituto Mazal, Brasília) 14 - Capoeira: formação técnico profissional e cidadania (Centro Cultural de Capoeira Raízes do Brasil, Brasília DF) 15- Projeto Capacitação Técnica para a Polícia de Investigação Criminal (Departamento da Polícia Federal) 16- Apoio ao IV Recenseamento Geral da População (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE) Fonte: ABC Todos estes projetos têm uma duração de dois anos que, em alguns casos, já foi renovada várias vezes. Alguns dos projetos não passam de missões de consultoria, enquanto apenas três têm um coordenador brasileiro residente em São Tomé. Todos os outros projetos são geridos desde o Brasil pela ABC e as outras entidades executoras, cujos responsáveis efetuam regularmente visitas de supervisão a São Tomé.

Cooperação financeira, educacional e cultural

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Nos últimos anos, também a cooperação financeira do Brasil com África tem aumentado significativamente. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) desembolsou até 2007 um total de $742 milhões para 29 projetos de investimento em África. Em 2008 e 2009 o BNDES disponibilizou créditos de $265 milhões e $360.5 milhões respetivamente para financiar investimentos em África (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011). O BNDES abriu uma linha de crédito de $3.2 biliões para Angola, dos quais $1.7 biliões já foram desembolsados e em 2010 seguiu uma linha de créditos para empresas brasileiras que operam em Gana e Moçambique, no montante de $3.5 biliões (CABRAL, 2011, p.25). Em 2012, o BNDES disponibilizou créditos no valor de $682 milhões para financiar projetos de empresas brasileiras em África, principalmente em Angola e Moçambique, um aumento de 46% em comparação com o valor de $466 milhões concedido em 2011. Desde 2007, o BNDES financiou investimentos brasileiros em África com créditos de $2.9 biliões, dos quais 96% em Angola e o restante em Gana, Guiné Equatorial, Moçambique e África do Sul. Em dezembro de 2013, o BNDES inaugurou um escritório regional para África em Johanesburgo (África do Sul). O objetivo principal dos empréstimos do BNDES não é a cooperação para o desenvolvimento dos países do Sul, mas a promoção da integração das empresas brasileiras no mercado internacional. Contudo, há casos recentes de operações do BNDES em que o Estado brasileiro assumiu o risco político dos empréstimos a determinados países (CABRAL, 2011, p.18). Outro organismo da cooperação financeira é a Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) que disponibilizou créditos no valor de $640 milhões para o Programa Mais Alimentos África, no período de 2011 ($240 milhões) a 2012 ($400 milhões). No âmbito desta linha de crédito Gana e Zimbabué receberam créditos de $95 milhões e de $98 milhões respetivamente para a compra de equipamentos agrícolas no Brasil (CABRAL, 2011, p.26). Em 2012 a CAMEX aprovou um crédito de $97.6 milhões para Moçambique, com o mesmo propósito. O Programa Mais Alimentos África, baseado no Programa Mais Alimentos brasileiro, que é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, visa apoiar a agricultura familiar para aumentar a produção alimentar e criar emprego nas zonas rurais dos países africanos participantes.

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Mais um instrumento da cooperação financeira do Brasil é o Programa de Financiamento à Exportação (PROEX), gerido pelo Banco do Brasil, que existe desde 1991 e fornece financiamento ao exportador brasileiro ou ao importador estrangeiro. No período de 2005 a 2010, o financiamento à exportação para África diminui de $266 milhões (54% do total) para apenas $20.2 milhões (4%). Em 2012, Angola foi o único país africano onde o PROEX financiou significativamente exportações brasileiras com 7% de uma linha de crédito de $429.1 milhões e de 19% de uma segunda linha de $281.1 milhões respetivamente. Além disso, o Brasil renegociou a dívida bilateral com países africanos no valor total de $1 bilião, quase 75% do total das dívidas renegociadas pelo governo Lula da Silva, uma medida importante para facilitar estes países de contratar novos créditos que podem beneficiar as exportações brasileiras (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011). Em 2013, o Brasil perdoou ou renegociou $900 milhões de dívidas bilaterais de doze países africanos. No âmbito do estreitamento das relações com África o Brasil também tem investido na cooperação educacional e cultural. Quatro universidades brasileiras e quatro moçambicanas participaram na criação da Universidade Aberta de Moçambique que envolve um investimento de $30 milhões, durante nove anos, o projeto mais caro da cooperação brasileira10. O projeto pretendia beneficiar 10.000 alunos durante cinco anos (BANCO MUNDIAL;IPEA, 2011, p. 81). Inaugurado em 2011, o projeto previa formar 7.290 estudantes até 2014. Contudo, em outubro de 2013 apenas 630 estudantes foram formados, menos de 10% do programado. Outro projeto ambicioso do ensino superior é a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) em Redenção, Ceará, que foi inaugurada em 25 de maio de 2011, o Dia de África em comemoração à fundação da Organização da Unidade Africana (OUA, rebatizada União Africana, em 2002), em 1963, em Adis Abeba (Etiópia). Além da data da inauguração, também a escolha de Redenção, uma pequena cidade no interior do Ceará, localizada 63 km da capital estadual Fortaleza, não foi isenta de simbolismo, pois era a primeira cidade brasileira onde foi abolida a escravatura, em 1883, cinco anos antes da abolição em

10

Os parceiros brasileiros são a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UniRio), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Goiás (UFG) e Universidade Federal de Mato Grosso (UFMG).

11

Na altura, 116 escravos receberam a carta de alforria na antiga vila do Acarape, que depois recebeu o nome Redenção .

12

Informação da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Unilab. A distribuição dos estudantes africanos dos cinco países foi muito desproporcional, visto que 340 vieram da Guiné-Bissau, enquanto apenas 46 foram angolanos e 17 moçambicanos. De Cabo Verde e São Tomé e Príncipe vieram 73 e 44 estudantes respetivamente.

13

Ver em http://www.ripes.unilab.edu.br/

14

Ver em http://www.dce.mre.gov.br/PEC/G/historico.php

15

Ver em http://www.dce.mre.gov.br/PEC/PG/historico.html

81 A COOPERAÇÃO BRASILEIRA COM PAÍSES AFRICANOS

todo o país, através da Lei Áurea11. Numa primeira fase a Unilab pretendeu admitir 5.000 estudantes, a metade de brasileiros e a outra metade estudantes dos PALOP e Timor-Leste. Para incentivar os estudantes estrangeiros a matricular-se na Unilab recebem um subsídio durante o curso de graduação, o que não é prática nas outras universidades brasileiras que apenas disponibilizam vagas para os estudantes estrangeiros no âmbito do Programa de Estudantes Convênio-Graduação (PEC-G). Os alunos deste programa para estudantes de países em desenvolvimento recebem apenas em casos específicos uma bolsa do governo brasileiro. Em 2014, em regime presencial, a Unilab tinha 2.005 estudantes, dos quais apenas 30% vieram dos PALOP (540) e Timor-Leste (70)12. Em 2012 a Unilab criou a Rede de Instituições Públicas de Educação Superior (RIPES) para criar e fortalecer a comunicação e intercâmbio entre as instituições públicas de ensino superior dos países da CPLP.13 De 2001 a 2013, o PEC-G disponibilizou 6.001 vagas para alunos de 20 países africanos para cursos de graduação em instituições de ensino superior brasileiras. Contudo, durante esta década apenas dois países receberam mais de dois terços destas vagas: Cabo Verde 44% e Guiné-Bissau 22%14. Além disso, no período de 2001 a 2013, 465 estudantes provenientes de 14 países africanos receberam bolsas do PEC-Pós-Graduação (PG) para fazer o mestrado ou doutorado em universidades brasileiras. Neste programa, a maioria dos bolseiros veio de Moçambique (41%) e Cabo Verde (27%)15. Em junho de 2013, o Ministro de Educação anunciou em investimento de $2.7 milhões em 45 projetos a serem executados por 20 universidades brasileiras para melhorar o ensino superior na África lusófona. Um instrumento da cooperação cultural são os Centros Culturais Brasileiros que são diretamente subordinados às representações diplomáticas do Brasil. Dos 21 Centros Culturais Brasileiros existentes, seis se encontram em África, nas capitais dos cinco PALOP e em Pretoria (África do Sul). As atividades principais destes centros evolvem o ensino da língua portuguesa falada no Brasil e a divulgação e difusão da literatura, artes plásticas, artes

cénicas, cinematografia e música brasileiras, assim como a organização de conferências e palestras e a distribuição de informações sobre o Brasil. Quadro 4. Despesa em cooperação para o desenvolvimento em 2010, por país Reino Unido União Europeia

$13.05 bn.

$12.68 bn.

Holanda

China

$6.36 bn. $3.9 bn.

Brasil

Índia

Portugal

Rússia

$400 m. $923 m. $690 m. $640 m. $500 m.

África do Sul

$143 m.

Fontes: GHIs, CAD da OCDE, IPEA.

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Em 2010, o Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (IPEA) publicou um estudo sobre os investimentos do Brasil na cooperação para o desenvolvimento bilateral e multilateral com países do Sul, no período de 2005 a 2009. Segundo o estudo, durante o quinquênio, o Brasil desembolsou um total de R$2.9 biliões em assistência internacional, dos quais 76.1% em contribuições para organizações internacionais e bancos de desenvolvimento regionais; 5.4% em assistência humanitária; 9.8% em bolsas de estudo e apenas 8.7% em assistência técnica. Segundo um segundo relatório do IPEA referente a 2010, naquele ano a cooperação técnica representou 6.3% das despesas, enquanto a assistência humanitária, contribuições para organizações internacionais e bolsas de estudo e cooperação científica absorveram 17.6%, 69.7%, e 6.4% do total de $923 milhões (33.7% era bilateral e 22.6% para África) (IPEA, 2013). A cooperação financeira não está incluída nestes estudos, visto que o Brasil classifica como cooperação ao desenvolvimento apenas recursos concedidos a fundo perdidos, mas não financiamento à exportação. Em 2010 o Brasil gastou mais em cooperação internacional do que a Índia ou Portugal, mas consideravelmente menos do que a China ou os maiores países doadores reunidos no Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da OCDE. Contudo, o problema com estes valores e comparações é que alguns países não membros do CAD não publicam dados oficiais sobre a sua cooperação para desenvolvimento internacional e não existem critérios consensuais em termos da contabilidade das modalidades da assistência internacional. Ao mesmo tempo, que o Brasil investe em cooperação internacional, continua a receber assistência internacional de outros países. Segundo dados da OCDE, em 2012, o país recebeu assistência ao desenvolvimento oficial (ODA) no valor de $1.288 milhões16. 16

Ver em http://www.oecd.org/dac/stats/documentupload/3.%20America%20-%20Development%20 Aid%20at%20a%20Glance%202014.pdf

Conclusões

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Em 2003, logo no início do seu governo o presidente Lula da Silva declarou as relações com África uma das prioridades da nova política externa global do Brasil que ambiciona para o país um lugar adequado conforme a sua dimensão geográfica, demográfica e económica e importância política numa nova ordem política internacional num mundo multipolar. Na retorica política brasileira o estreitamento das relações com África é frequentemente motivado pela dívida histórica com África devido ao tráfico de escravos, afinidades históricas e culturais, a proximidade geográfica, semelhanças geofísicas e a solidariedade Sul -Sul. Contudo, não há dúvidas que são motivos de ordem política e econômica que estão na base da intensificação das relações Brasil - África. O continente africano representa 54 países membros das Nações Unidas que podem apoiar o objetivo do Brasil de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança. Neste contexto, a eleição de José Graziano, para diretor-geral da FAO, em junho de 2011, e de Roberto Azevêdo, como diretor-geral da OMC, em maio de 2013, foi também um sucesso da diplomacia brasileira em África. Em termos econômicos, os países africanos são fornecedores de matérias-primas para as indústrias brasileiras e potenciais destinos das exportações brasileiras no futuro. A política africana do Brasil teve sucessos visíveis, pois levou ao (re-)estabelecimento das relações diplomáticas com muitos países africanos e a uma multiplicação das trocas comerciais e de investimentos de empresas brasileiras no continente africano. No entanto, o número das embaixadas brasileiras ultrapassa a importância de África no comércio externo e nos investimentos diretos externos do Brasil, embora tenham aumentado consideravelmente até 2007. Desde então a proporção de África no comércio externo do Brasil diminuiu para 6%. Por enquanto, em termos econômicos as relações com África concentram-se em poucos países e um número reduzido de produtos. Com outras palavras, ainda existe um grande potencial para o alargamento do comércio externo e de investimentos brasileiros no futuro. Constrangimentos para aumentar o comércio e os negócios com África são o fraco crescimento da economia brasileira nos últimos anos e problemas de conectividade, visto que existem apenas quatro voos diretos do Brasil para África, todos operados por companhias africanas, e faltam rotas diretas da navegação mercantil para portos africanos.

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A cooperação técnica coordenada pela ABC é um instrumento importante da política externa, pois os seus projetos servem da afirmação política, do prestígio e da visibilidade do Brasil nos países parceiros que, por sua vez, aumentam a receptividade destes países em fazerem negócios com empresas brasileiras. Apesar de ter aumentado até 2011, o orçamento da ABC foi sempre comparavelmente muito modesto. Nos últimos anos o orçamento foi ainda reduzido devido constrangimentos financeiros do governo. Independentemente do grande número dos países parceiros da ABC, por razões linguísticas e supostas afinidades histórico-culturais, mais de a metade dos projetos em África concentra-se em apenas cinco países, os PALOP. Consequentemente, existe um potencial considerável para uma diversificação da cooperação técnica em termos geográficos. Mesmo em relação aos PALOP as afinidades histórico-culturais entre o Brasil e África parecem superestimadas e não passam da retórica política, pois estes países africanos são bem diferentes um ao outro e a sua história e cultura são distintas. Também a postulada horizontalidade da cooperação brasileira é mais retórica política, visto que em termos do nível tecnológico e científico a diferença entre o Brasil e parceiros africanos é, de fato, considerável. O Brasil tem reconhecidas vantagens comparativas em certos setores de cooperação técnica, particularmente na agricultura, medicina tropical, formação profissional e proteção social. Contudo, na realidade, ainda não existem estudos se os respetivos projetos atingiram os seus pretendidos objetivos ao longo prazo.

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85 A COOPERAÇÃO BRASILEIRA COM PAÍSES AFRICANOS

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional 2010. Brasília, 2013.

PARTE II PAZ E SEGURANÇA NA AMÉRICA DO SUL

aspectos teóricos, conceituais e operacionais

AS ATRIBUIÇÕES DAS FORÇAS ARMADAS NOS PAÍSES SULAMERICANOS Héctor Luis Saint-Pierre1 Laura M. Donadelli2 87

Introdução

A

lguns conceitos contemporâneos do domínio da Defesa e da Segurança foram, através dos últimos tempos, sofrendo mutações semânticas na América Latina que, suspeitamos, obedeceram a interesses políticos continentais e nacionais. Se bem no seu início histórico esses interesses talvez estivessem mais associados à necessidade da potência hegemônica de recuperar a tensão estratégica e o controle dos sistemas de defesa hemisféricos, posteriormente parece ter sido percebido pelos governos regionais na sua funcionalidade para satisfazer às demandas de soluções urgentes para os problemas das políticas domésticas por parte da maioria dos países do continente. Se, desde o ponto de vista internacional, a falta de nítida delimitação dos conceitos da área da Segurança Internacional e da Defesa facilitam a ingerência e o controle da Potência sobre a liberdade de decisão e de movimento das estratégicas nacionais, desde o ponto de vista nacional, a operacionalização dessa ambiguidade 1

Professor Titular do Departamento de Relações Internacionais da UNESP – Franca. Coordenador -Executivo do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP (IPRI-UNESP). Coordenador da área “Paz, Defesa e Segurança Internacional” do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Fundador e líder do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

2

Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (UNESP, UNICAMP, PUC-SP. Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e redatora do Informe Brasil do Observatório Sul-Americano de Defesa e Forças Armadas.

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conceitual se traduz em securitização de questões sociais, militarização das polícias, hipertrofia das estruturas do Estado, perda da capacidade combativa do seu sistema de Defesa e na desprofissionalização das suas Forças Armadas. Um simples olhar à história conceitual da área da Segurança Internacional e da Defesa desde o fim da Guerra Fria permite perceber um claro deslizamento conceitual. Em geral, a história dos conceitos aponta a busca de uma maior precisão e univocidade, visto que os conceitos, diferentemente das palavras, são instrumentos epistêmicos de determinadas áreas do saber. Sua utilidade reside na precisão com que permita auferir um setor definido da realidade de maneira coerente e completa, compreendê-lo, explicá-lo e, eventualmente, controlá-lo. Não obstante esta obviedade, na área da Defesa e da Segurança isso parece não se constatar. Muito pelo contrário, por vezes os conceitos vão se tornando mais ambíguos e vagos e os seus limites nebulosos, porosos e até anódinos. Isto tem levado alguns analistas e acadêmicos pouco afeitos a realizar uma crítica mais aprofundada a aplicar os termos conjugados, isto é, utilizar a fórmula “Defesa e Segurança” talvez como uma maneira de não errar no seu emprego. Assim, toda a riqueza semântica que poderiam conter os conceitos específicos da área, aperfeiçoados pela sua própria história epistêmica, se perde num frenesi de neologismos e anglicismos que, longe de apreender o fenômeno inequivocamente, deixa escapar a realidade entre sua trama aberta e laxa. Se em qualquer área do conhecimento a ambiguidade conceitual é condenável e deve ser evitada, particularmente quando esses conceitos vagos são importados de maneira acrítica (o que reforça o já arraigado colonialismo epistêmico), no campo da Segurança Internacional e da Defesa essa prática assume contornos dramáticos. Com efeito, nesta área, os conceitos, além da sua função epistêmica para os cientistas e acadêmicos, são incorporados pelo discurso político onde estabelecem uma função normativa estatal e de comando operacional para os instrumentos estatais específicos. Levando em conta esta segunda particularidade dos conceitos desta área epistêmica, pode-se narrar uma história americana seguindo como guia os acordos internacionais posteriores ao fim da Guerra Fria, na qual os Ministros de Defesa do continente ou mesmo os Primeiros Mandatários assinaram declarações hemisféricas que foram aumentando perigosamente o escopo semântico dos conceitos de “Segurança” e de “Defesa”. A apoteose desta ampliação semântica teve lugar na Declaração sobre Segurança nas Américas, assinada durante a Conferência Especial sobre Segurança, realizada no México em 2003, na qual os mandatários

3

Não obstante o continente conte com uma importante e crescente “comunidade pratico-epistémica” da Defesa, altamente preparada para discutir regional e nacionalmente os temas relativos, dificilmente e em poucos países é realmente consultada pelos tomadores de decisão. Apesar de que poderiam contribuir para resignificar regionalmente os conceitos da área de Defesa e Segurança e auxiliar na formação de uma identidade estratégica em algumas regiões, como por exemplo na região do Conselho Sul-americano de Defesa, parece reinar um divórcio entre os acadêmicos e os formuladores. Ver a respeito: VITELLI, Marina (2010), “Comunidades epistémicas en la concertación sobre seguridad y defensa en Sudamérica: la definición del capital cultural como un recurso de poder regional”. Disponível em: Acesso em 06/06/2015.

89 AS ATRIBUIÇÕES DAS FORÇAS...

“reconheceram” (no caso de alguns países de maneira inconstitucional) a característica multidimensional da segurança. Com este reconhecimento, ficavam abertas as porteiras normativas para o emprego das Forças Armadas para tudo aquilo que os governos considerassem oportuno. Assim, em alguns casos, seja por deficiência institucional, por urgências de agenda eleitoral, por fadiga da democracia ou até mesmo por falta de preparo de civis para exercer a condução política nas áreas da segurança pública e da defesa, os governos da região foram, de forma mais contínua e em uma maior variedade de missões, recorrendo à suas Forças Armadas como a única instituição disponível, eficiente e confiável3. Em alguns casos, este emprego generalizado das Forças promove perigosas mudanças constitucionais para a sua legitimação; em outras, é promovido em clara desconformidade com os preceitos constitucionais, deixando aos militares cumprirem com essas funções num limbo jurídico e sem qualquer cobertura legal. Além da ampliação inédita do conceito de Segurança, as pressões populares por maior segurança pública levaram os governos da região, preocupados com a próxima eleição, a procurar instrumentos e expedientes que baixassem os índices de percepção de insegurança: longe de enfrentar o problema, procuram atacar os sintomas de forma imediatista. Com esta tendência generalizada chegou-se à situação de correr o risco de, por um lado, desprofissionalizar as Forças Armadas e, por outro, provocar uma hipertrofia institucional, desviando para aquelas o orçamento que deveria reforçar os ministérios inadequados aos desafios dos tempos. Mas este reforço orçamentário aos ministérios de Defesa não fortalece suas Forças Armadas: pelo contrário, desvia-as de sua função precípua com a possibilidade de perderem sua capacidade de combate. Em um trabalho anterior (SAINT-PIERRE, 2011) propusemos uma análise filosófica da construção do soberano sobre a teoria de Hobbes, tentando mostrar que a concentração de força e de vontade no soberano gerava o monopólio legítimo (porque resultante do pacto) da violência, que garantia

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a univocidade normativa aplicada para toda a comunidade dentro de um território determinado. A mesma violência desdobra-se em duas naturezas completamente diferentes: por um lado, uma força disciplinadora, ordenadora das relações sociais e protetora do cidadão e suas propriedades. Sua função é garantir o cumprimento da ordem normativa (o que confere previsibilidade ao relacionamento social e sentimento de segurança aos indivíduos), e também separar e neutralizar aqueles elementos sociais que colocam em risco a segurança das pessoas ou a ordem normativa. Essa ordem normativa estabelece uma situação agonal4, na qual os conflitos se resolvem dentro de procedimentos regulamentados (como eleições políticas, processos judiciais, etc.) entre adversários, excluindo dessa comunidade ordenada a figura do “inimigo interno”5. Mantêm-se a ordem “polêmica” para defender sua sobrevivência e o seu processo decisório soberano entre outras ordens e unidades decisórias, isto é, no ambiente anárquico e imprevisível das relações internacionais, no qual a previsibilidade que fornece a norma é substituída, como queria Raymond Aron (1964), pelo cálculo estratégico e a capacidade de potência. Neste ambiente, aquele mesmo monopólio da força assume sua outra natureza, agora orientada para a defesa do status quo normativo e soberano, apontando sua letalidade para aqueles que atentem contra estes e que por isso mesmo serão tratados como inimigos. Essas duas naturezas da força são, por um lado, protetora, regida pela doutrina dos Direitos Humanos, não letal e que controla “adversários” dentro dos processos regulados agonalmente, para que possam resolver os conflitos inerentes à sociedade e; por outro, uma força defensiva, letal, orientada pela doutrina do direito de guerra (jus ad bellum) pelos convênios que regulam as guerras e os direitos humanitários (jus in bello), que procura dissuadir eventuais “inimigos” de que sua intenção de ferir sua soberania redundará na sua eliminação física, chegado o caso. Assim, determinam dois âmbitos da preocupação estatal que pode gerar o emprego da força e que definimos assim: “Segurança Pública ou Interior”: É o âmbito no qual a natureza da força, na sua projeção interna, é protetora do cidadão e conservadora da ordem. Ela se emprega em regime de monopólio e é administrada, na complexidade do Estado moderno, pelo Ministério da Justiça, como chamam em alguns países, ou Ministério do Interior. Mais recentemente também foram criados Ministérios da Se-

4

Cf. FREUND (1984).

5

Para C. Schmitt, o conceito de “inimigo” não deriva do latim Inimicus (aquele a quem odeio), mas do grego hostis (aquele que me combate, que me hostiliza)

6

Como apontamos em outra ocasião, para Carl Schmitt “a existência dessa pluralidade de unidades políticas, que podem chegar a guerrear pela sua existência, configura o ambiente externo como um pluriverso mais do que um universo” (SAINT-PIERRE, 2011).

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gurança (como é o caso da Argentina); “Defesa”: Trata-se de quando, com uma natureza de letalidade defensiva, o monopólio da força destina-se, em regime de livre concorrência, a eliminar as fontes de potencial hostilidade à própria unidade decisória e dissuadir as intenções de hostilidade contra a ordem desta unidade política por parte de outras unidades decisórias no ambiente quase anárquico das relações internacionais. Desta distinção resulta a personificação administrativa dos diferentes exercícios da força em dois tipos de burocracia estatal, claramente diferenciadas na maioria das constituições do continente: 1.) as Forças Policiais (em suas mais diversas denominações), que executam o monopólio da violência no âmbito interno para cumprir com a função primordial de manter a ordem normativa que regula agonalmente o relacionamento social da sua comunidade, para proteger ao cidadão e a propriedade; e 2.) as Forças Armadas, responsáveis pela Defesa da liberdade de decisão do Estado, que empregam o monopólio da violência externamente, em regime de livre concorrência, para dissuadir ou eliminar fontes de possíveis agressões perpetradas por seus semelhantes jurídicos internacionais. Como já dissemos noutro lado (SAINT-PIERRE, 2011), fica definido, em relação à diferença do emprego da força (monopólico internamente e de livre concorrência para o exterior), o âmbito interno da unidade decisória e o do pluriverso6, mas também vice-versa – o mesmo fenômeno mostra inequivocamente a diferente natureza da força empregada em cada caso: ordenadora e protetora internamente, defensora e letal externamente. Não obstante estas considerações recorrentes na Filosofia Política e na Ciência Política, alguns países do continente americano, preocupados pela dimensão assumida por alguns desafios (que geram uma percepção de insegurança entre os cidadãos com reflexos diretos no voto e nos processos eleitorais), empregam suas Forças Armadas, de maneira quase permanente, para enfrentar essas novas missões – como o crime organizado internacional; a corrupção dos sistemas políticos, policiais e até jurídicos; o tráfico ilegal de pessoas, armamento e drogas; os desastres naturais e outros. A permanência desse emprego vai exigindo doutrinas, habilidades, instrumentos, manuais de operação e orçamento específicos. Todavia, estas exigências cumprem-se em detrimento da doutrina, habilidades e instrumentos específicos das Forças Armadas, isto é, da sua capacidade

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combativa e sua potencialidade letal. Assim, o Estado deve aumentar o número de efetivos ou desviar alguns (ou toda a tropa) de seu preparo, armamento e treinamento específicos. A letalidade e a capacidade de combate são as caraterísticas definidoras do instrumento específico da Defesa: a qualidade do militar é sua capacidade combativa e sua letalidade. O militar se prepara, treina e se arma para eliminar o inimigo ou dissuadi-lo de atuar ante a iminência da retaliação, e é isso que não pode perder por ser empregado em missões subsidiárias que possam descaracterizar sua especificidade. A extrema especialidade deste instrumento do Estado não significa que não possa ser empregado, dependendo da necessidade, para outras missões que constituam emergências nacionais – tendo em vista sua capacidade logística, de mobilização, sua velocidade de resposta e sua presença no território nacional. Todavia, esse emprego não deve afetar sua caraterística fundamental que é a sua capacidade de combate. As capacidades instaladas para o combate podem ser empregadas em outras missões pontuais e transitórias, sempre e quando elas não exijam uma mudança de doutrina, nem de armamento, treinamento ou carga orçamentária que defina a permanência na missão. O permanente e definidor deste instrumento do Estado é a sua capacidade de combate, que não pode perder nem diminuir. Não obstante esta obviedade, o que pode ser percebido na América Latina desde um bom tempo e também na América do Sul mais recentemente, é um recurso cada vez mais frequente ao emprego do instrumento militar como remédio para todos os males, como se fosse a única instituição em condições de emprego ou como se a diligência política não tivesse vontade ou capacidade para melhorar os instrumentos institucionais específicos para resolver cada problema, enfrentar os desafios e neutralizar as ameaças.

As “novas” atribuições das Forças Armadas Desde a criação do Estado moderno até muito recentemente, mais precisamente até o fim da Guerra Fria, os problemas de Segurança Internacional diziam respeito estritamente ao relacionamento entre os Estados como sujeitos únicos das relações internacionais. O fim do conflito bipolar, que ordenava as relações de força do mundo, tornou visíveis problemas de segurança ignorados ou reprimidos pelo peso daquela ordem mundial. As facilidades analíticas, práticas e operacionais para reconhecer o “inimigo” e explicar os acontecimentos mundiais foram substituídas pela incerteza.

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Até a identificação dos problemas e desafios como internacionais ou domésticos, pela sua relação com as fronteiras nacionais, foi convulsionada para gerar o neologismo “intermêstico” para se referir a essa região de semântica cinzenta e nebulosa na qual a escolha dos instrumentos para o enfrentamento daqueles também ficou dificultada. Concordamos com Ernesto López em que o fim da Guerra Fria trouxe consigo a emergência e o fortalecimento de novos atores nas relações internacionais e de fenômenos decorrentes da compressão do espaço-tempo como consequência do incremento dos fluxos comerciais e financeiros internacionais, a inovação e a difusão tecnológica, a mobilidade internacional dos fatores produtivos, etc. Juntamente com esta nova lógica mundial “é natural que apareçam ameaças de novo tipo, ou que velhos problemas se tornem ameaçadores” (LOPEZ, 2003, p. 65). Na medida em que aumentaram os papéis desenvolvidos por um número maior de diferentes atores, observou-se, também, o crescimento das preocupações relativas à segurança: a certeza durante a Guerra Fria de que a ameaça está “do outro lado do muro” desapareceu e as zonas de influência, que dividiam o mundo em duas partes, começaram a dar lugar a intrincadas redes de globalismos e regionalismos. Neste cenário, a interdependência recíproca foi diluindo o conceito de “soberania” absoluto e as fronteiras nacionais foram ficando mais porosas a operações transfronteiriças, tanto as legais quanto as ilegais. Particularmente estas últimas foram ganhando dimensões épicas com o aumento do desemprego, as migrações forçadas e a falta de expetativa de mobilidade social. O fracasso da estratégia imperialmente imposta da “Guerra contra as drogas” incidiu severamente neste processo, não apenas por estimular o tráfico de drogas ilegais, de armamento ilegal e provocar ondas migratórias fugindo do terror da violência desatada, senão pelo consequente aumento da violência transnacional que superou a capacidade de fogo das polícias. Estes fenômenos fazem referência a um conjunto de problemas que abarca questões de terrorismo, migração, degradação do meio ambiente, crime organizado, tráfico ilegal de armas, drogas e seres humanos e etc. Tais ameaças se diferenciam das “tradicionais” por seu caráter transnacional e intensidade, possuem a capacidade de operar sobre duas ou mais soberanias em alguma etapa de sua atividade. Como consequência do aumento e do fortalecimento de problemas que transitam entre o ambiente interno e o internacional de uma unidade política, a tradicional distinção entre forças militares e policiais se tensiona na escolha do instrumento adequado ao emprego para combater ou conter os eventuais desafios. Os motivos que

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originam o deslizamento administrativo de missões variam: vão de violações da Constituição e abusos de autoridade até o baixo custo e a alta eficiência do emprego militar, passando pelo desconhecimento teórico-conceitual7, pelos interesses políticos e econômicos dos governantes e, sobretudo, pela urgência em melhorar a imagem dos governos prejudicada pela percepção de insegurança das classes médias. Por outro lado, alguns autores apontam que as Forças Armadas de alguns países aproveitaram estas novas missões como uma forma de legitimar sua existência, como por exemplo, Sonia Alda Mejías, que assegura que “as Forças Armadas têm sido muito receptivas a estas missões por seu anseio de encontrar ‘novas ameaças’ que justificassem seu papel, depois do fim da Guerra Fria” (MEJÍAS, 2008). Levando em conta estas considerações e tomando como recorte espacial a América do Sul, debruçar-nos-emos sobre os documentos oficiais dos países da região para analisar em que medida suas Forças Armadas tem conservado sua missão precípua e existencialmente essencial, isto é, sua plena capacidade de combate para enfrentar o “inimigo”. Para levar a cabo este objetivo, analisamos aqueles documentos procurando a legitimação constitucional ou mesmo fissuras na letra que assegurem ou permitam o emprego do instrumento militar para objetivos diferentes da estrita Defesa Nacional. Os elementos que procuramos para basear nossas conclusões foram: 1.) Garantia da Ordem Constitucional / Estabilidade Governo Legal; 2.) Garantia da Ordem Interna / Segurança Interior; 3.) Participação no Desenvolvimento Nacional; 4.) Apoio a processos eleitorais e 5.) Apoio em caso de desastre.

Garantia da Ordem Constitucional / Estabilidade Governo Legal Bolívia, Brasil, Colômbia e Paraguai expressam logo em suas Constituições o dever das Forças Armadas de garantir a Ordem Constitucional e/ou de manter a estabilidade do Governo Legal. Na Constituição da Bolívia, no artigo 244, consagra-se como missão das Forças Armadas “(...) assegurar o império da Constituição, garantir a estabilidade do Governo legalmente constituído” (BOLÍVIA, 2008)8. No artigo 142 da Constituição do Brasil, também se determina o empenho do instrumento militar na “garantia dos poderes constitucionais” (BRASIL, 1988). A Colômbia, no artigo 217, 7

Devido fundamentalmente ao divórcio mencionado mais acima entre os formuladores das políticas públicas e a comunidade prático-epistêmica de esta área específica.

8

Esta e outras com tradução nossa.

afirma que “as Forças Militares terão como finalidade primordial a defesa da soberania, a independência, a integridade do território nacional e da ordem constitucional” (COLÔMBIA, 1991, grifo nosso). O Paraguai, em seu artigo 173 da Constituição, estabelece como missão das Forças Armadas “(...) defender as autoridades legitimamente constituídas, conforme com esta Constituição e as leis” (PARAGUAI, 1992). O Chile, por sua vez, expressa esta função apenas em 1990 na Ley orgánica constitucional de las Fuerzas Armadas, Art. 1: As Forças Armadas, dependentes do Ministério encarregado da Defesa Nacional, estão integradas somente pelo Exército, a Armada e a Força Aérea, constituem os corpos armados que existem para a defesa da pátria, são essenciais para a segurança nacional e garantem a ordem institucional da República (CHILE, 1990, grifo nosso).

As Forças Armadas, como parte da força pública, têm a seguinte missão: a) Conservar a soberania nacional; b) Defender a integridade, a unidade e independência do Estado; e c) Garantir o ordenamento jurídico e democrático do estado social de direito (EQUADOR, 2007, grifo nosso).

Mais recentemente, em 2014, o Equador estabeleceu no Plan Nacional de Seguridad Integral que as Forças Armadas “(…) passam de ser garantidoras da democracia, a ser uma instituição de proteção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e cidadãs” (EQUADOR, 2014, p. 121).

Garantia da Ordem Interna / Segurança Interior Tanto o Brasil, quanto o Peru e a Venezuela designam, em suas respectivas Constituições, a função de Garantia da Ordem Interna às suas Forças Armadas. Na Constituição brasileira, o artigo 142 expressa como função específica das Forças Armadas a garantia “da lei e da ordem” (BRASIL, 1988). Em outro capítulo da mesma constituição, o artigo 144 se refere às polícias federal, rodoviária, civil, militar e ao corpo de bombeiros como os órgãos encarregados de manter a Segurança Pública – e não se encontra ali qualquer referência ao emprego das Forças Armadas para esse fim. Entretanto, em Lei Complementar de número 97, de 1999, o artigo 15 prevê:

AS ATRIBUIÇÕES DAS FORÇAS...

O Equador também afirma na Ley orgánica de defensa nacional, de 2007, no seu Art. 2, que:

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§ 2o A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal (BRASIL, 1999, grifo nosso).

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O deslizamento constitucional em direção à cobertura legal para a ampliação do escopo de missões atribuídas às Forças Armadas brasileiras é formalizado em 2013, no documento chamado Garantia da Lei e da Ordem. Este documento amplia a empregabilidade deste instrumento militar ao permitir o uso das Forças Armadas em assuntos internos com o objetivo da “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem” (BRASIL, 2013). Diferentemente do caso brasileiro, a Constituição do Peru prevê que suas Forças Armadas “(…) assumam o controle da ordem interna em conformidade com o artigo 137º. da Constituição” (PERU, 1993). Este artigo citado versa, por sua vez, sobre o Regime de Exceção: “Em estado de emergência as Forças Armadas assumem o controle da ordem interna se assim o dispõe o Presidente da República” (PERU, 1993). No caso da Venezuela, sua Constituição dispõe no artigo 328 que uma das atribuições da Fuerza Armada Nacional é a “(...) manutenção da ordem interna” (VENEZUELA, 1999). No artigo 329 agrega que a Fuerza “poderá exercer as atividades de polícia administrativa e de investigação penal que lhe atribua a lei” (VENEZUELA, 1999). Posteriormente, o artigo 4 da Ley Orgánica de la Fuerzas Armadas Nacional Bolivarianas de 2011 se refere às funções da Fuerza, a qual indica que lhe compete “contribuir em preservar ou restituir a ordem interna, frente a graves perturbações sociais, prévia decisão do Presidente o Presidenta da República e Comandante em Chefe da Força Armada Nacional Bolivariana” (VENEZUELA, 2011, grifo nosso). O que podemos observar é que os três países acima citados trazem o elemento da “ordem” em suas constituições, mas criam barreiras para o acionamento das Forças Armadas, como a necessidade do regime de exceção e perturbações sociais ou a autorização do presidente da república. Fica claro, portanto, que a ideia de “ordem” é passível de diferentes interpretações, requerendo cuidado analítico quanto ao contexto político e social no qual está sendo empregada.

As Constituições de Bolívia, Colômbia, Equador não se referem ao uso das Forças Armadas na Segurança Interior. Não obstante, quando o aumento da violência e a percepção de insegurança pela sociedade começaram a ter um papel central na demanda política, os governos e os legislativos nacionais perceberam a necessidade de fazerem as alterações na letra da lei que lhes permitisse dispor dos recursos instrumentais da força:

Declarado o estado de exceção e sempre que o Presidente da República tenha disposto o emprego das Forças Armadas e a Polícia Nacional, deverão coordenar ações para que as Forças Armadas apoiem a Polícia Nacional, responsável pela manutenção da ordem pública, até que esta tenha sido restabelecida (EQUADOR, 2009, grifo nosso).

Além do artigo citado e para além da declaração do estado de exceção, em documento mais recente, de 2014, o Plan Nacional de Seguridad Integral do Equador estabelece que As Forças Armadas assumem novos papéis e tarefas relacionadas à segurança com enfoque integral para prevenir e enfrentar as novas ameaças, mediante ações concretas em: apoio à segurança interna e ordem pública, colaboração na gestão de riscos e desastres, operações de paz e ajuda humanitária, defesa e proteção do meio ambiente e patrimônio natural, participação em missões de ajuda social, entre outras (EQUADOR, 2014, grifo nosso).

Destas mudanças observadas na Lei podemos interpretar que o medo e a insegurança que tomaram conta das sociedades sul-americanas têm exigido constantemente dos poderes públicos soluções rápidas e certeiras para o problema da violência urbana. Despreparo, descaso, interesses

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1) Na Bolívia, por meio da Ley orgánica de las Fuerzas Armadas, Art. 6, inc. G, as Forças Armadas tem como atribuição e responsabilidade “contribuir, em caso necessário, à conservação da ordem pública, a requerimento do Poder Executivo e de acordo à Constituição Política do Estado” (BOLÍVIA, 1992); 2) A Colômbia, por meio do Decreto 1.512, Art. 79 sobre Assitência Militar decide que o acionamento do instrumento militar ocorrerá em “atenção ao requerimento do Governador, do Prefeito e/ou do Comandante de Polícia, à autoridade militar mais próxima, quando a Polícia Nacional não esteja por si só em capacidade de conter grave desordem ou enfrentar uma catástrofe ou calamidade pública” (COLÔMBIA, 2000, grifo nosso); 3) O Equador, em sua Ley de seguridad pública y del Estado, Art. 35, sanciona:

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políticos e econômicos fazem com que recursos humanos e financeiros sejam desviados de suas destinações definidas para “auxiliar” outras estruturas institucionais e os seus orçamentos que não estão conseguindo cumprir com sua missão constitucional. Estas debilidades institucionais são comuns a uma boa parte dos Estados latino-americanos, que acabam por recorrer às suas FFAA frente à sua incapacidade em combater problemas de segurança interior. Em outro lugar já defendemos que empregar as Forças Armadas em atividades de polícia pode desmotivar e desprofissionalizar o poder militar enquanto, por outro lado, acaba por militarizar a Segurança Pública: “A presença militar traz consigo o uso de armas letais e a doutrina do combate militar que carrega a ordem técnica de matar/eliminar o inimigo, moeda corrente em uma guerra onde matar não constitui um crime” (SAINT-PIERRE; DONADELLI, 2014, p. 73).

Participação no Desenvolvimento Nacional Talvez seja pela capacidade administrativa e de gestão das Forças Armadas, por contarem com a arma do Corpo de Engenheiros disponível, bem treinada e em condições de emprego imediato em qualquer parte dos territórios nacionais, que em algumas Constituições, como por exemplo, a da Bolívia e do Equador, consta que é dever das Forças Armadas participar no desenvolvimento nacional e/ou de auxiliar no cuidado ao meio ambiente. A Constituição da Bolívia explicita no seu artigo 244 que é missão das Forças “(...) participar no desenvolvimento integral do país” (BOLIVIA, 2008). No Equador, o artigo 162 da Constituição estipula que “as Forças Armadas só poderão participar em atividades econômicas relacionadas com a defesa nacional, e poderão aportar o seu contingente para apoiar o desenvolvimento nacional, de acordo com a lei” (EQUADOR, 2008, grifo nosso). Do mesmo modo, o artigo constitucional 328 da Venezuela institui o dever das Forças na “participação ativa no desenvolvimento nacional” (VENEZUELA, 1999) e, no Peru, o artigo de número 171 da Constituição determina que as Forças Armadas “(...) participam no desenvolvimento econômico e social do país” (PERU, 1993). Para Sonia Alda, a participação dos militares no desenvolvimento de um país pode ser interpretada como “um dos instrumentos para levar a cabo a pretendida revolução democrática” (MEJÍAS, 2008), em países como Venezuela e Bolívia, onde para esta autora observa-se um teor mais “populista” dos governos eleitos como explicação desse emprego. Neste

sentido, tarefas como o envolvimento na educação, assistência social e meio ambiente são exercidas pela população civil e pelas Forças Armadas, a fim de se chegar ao objetivo final da pátria: o desenvolvimento da revolução.

Apoio a processos eleitorais

Cooperar na prevenção e investigação dos delitos previstos na legislação sobre o assunto de substâncias estupefacientes e psicotrópicas, contra o sequestro e a extorsão, a segurança fronteiriça e rural, a segurança das vias, a vigilância a indústrias de caráter estratégico, portos e aeroportos, controle migratório, ordem pública, segurança cidadã, investigação penal, apoio, custodia e vigilância das instalações e do patrimônio do Poder Legislativo, Poder Judicial, Poder Cidadão e Poder Eleitoral, e apoio a órgãos de Proteção Civil e Administração de Desastres (VENEZUELA, 2011).

Apoio em caso de desastres naturais O aparentemente irreversível aquecimento global, a visualização em tempo real, fornecida pelos modernos meios de comunicação, de acontecimentos antes mitológicos, como terremotos, tsunamis, furacões, o

99 AS ATRIBUIÇÕES DAS FORÇAS...

Pela sua grande capacidade logística, de mobilização e de ocupação do território nacional, somado ao prestigio das Forças Armadas e o respeito que os uniformes militares nacionais despertam nas populações locais, as Forças Armadas também são empregadas em períodos eleitorais para manter a ordem e garantir a segurança das urnas. Por exemplo, na América do Sul, Chile e Peru são os únicos países a designarem em suas Constituições o Apoio Eleitoral como tarefa de suas Forças Armadas: 1.) Na carta constitucional chilena pode-se ler: “Artigo 18 (…) A salvaguarda da ordem pública durante os atos eleitorais e plebiscitários corresponderá às Forças Armadas e Carabineiros do modo que indique a lei” (CHILE, 1980) e 2.) Por sua vez, a carta peruana expressa no seu Artigo 186º, que “A Oficina Nacional de Processos Eleitorais dita as instruções e disposições necessárias para a manutenção da ordem e a proteção da liberdade pessoal durante os comícios. Estas disposições são de cumprimento obrigatório para as Forças Armadas e Polícia Nacional” (PERU, 1993). A outra exceção é a República Bolivariana de Venezuela que, por meio da Ley orgánica de la Fuerza Armada Nacional Bolivariana, no seu Art. 42, inc. 6, atribui à Guardia Nacional Bolivariana a função de

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pirotécnico espetáculo de erupções vulcânicas e pavorosos incêndios florestais acenderam a luz de advertência para os perigos que pode deparar a natureza. A necessidade de prever estas catástrofes e a consciência de sua imprevisibilidade tornam estes eventos exemplos fáceis da “semântica do risco” (BECK, 2008) que legitima o discurso securitário. A impossibilidade de prever estes eventos deixa como única alternativa contar com um instrumento de pronta resposta, que consiga se mobilizar rapidamente por terra, mar e ar em quaisquer condições, que garanta sua presença imediata em todo o território nacional, que possa executar com eficácia as primeiras medidas de socorro e atendimento, montar os postos de saúde provisórios, oferecer os serviços básicos para a população, controlar eventuais desordens públicas e auxiliar as autoridades para reordenar o funcionamento, ainda que precário, da sociedade. Em geral, o único instrumento institucional com que contam os Estados com estas características sãos suas Forças Armadas. Por isso, a maioria dos países da região confia tal tarefa aos militares em leis subsequentes. No Uruguai, por exemplo, sua Ley marco de defensa nacional, Art. 20, prevê o serviço ou a colaboração das Forças Armadas “em tempos de paz e sob a autorização expressa do Ministro da Defesa Nacional” em “atividades que por sua especialidade, relevância social ou conveniência pública lhe sejam solicitadas e sem que isso implique detrimento no cumprimento de sua missão fundamental” (URUGUAY, 2010). O Brasil, por sua vez, em seu Livro Branco de Defesa Nacional de 2012, informa que “o Exército é órgão integrante do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC), participando, em todo o território nacional, de ações de socorro e assistência a vítimas de desastres naturais, seja nas fases de pronta resposta ou na de recuperação e reconstrução” (BRASIL, 2012).

Considerações finais A partir da análise das fontes documentais, pode-se observar que a maioria das funções que extrapolam a missão precípua das Forças Armadas lhe foram atribuídas em algum momento posterior à aprovação dos respectivos textos constitucionais. O que constava no espírito da letra das diferentes Constituições analisadas era a preservação claramente definida da missão específica das Forças Armadas abocadas à defesa nacional de ameaças externas. Posteriormente, talvez motivados pelas necessidades emergentes das “novas ameaças” ou da percepção da impotência dos instrumentos institucionais específicos para enfrentá-las, os governos sul-

9

Sobre este tema, ver notícias compiladas pelo Observatório Sul-Americano de Defesa e FFAA, atividade desenvolvida pelo Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES):

101 AS ATRIBUIÇÕES DAS FORÇAS...

-americanos foram sentindo a necessidade de contar com um arcabouço legal que permitisse outros empregos para seus instrumentos militares. Foi através de Leis Complementares, Medidas Provisórias e mesmo com a revisão total das Constituições que os governos da região encontraram maneiras de adequar sua legislação a fim de adaptá-las à necessidade de resolver dentro dos tempos eleitorais problemas complexos resultantes da convergência de ameaças. Além disso, algumas brechas constitucionais possibilitaram diferentes interpretações e aplicações da Lei para o emprego indiscriminado das Forças Armadas. No Brasil, por exemplo, o artigo 142 da Constituição expressa a função das Forças na garantia “da lei e da ordem” (BRASIL, 1988). Sob este pretexto, fica sob a responsabilidade do Presidente da República decidir se a “lei” e a “ordem” estão em perigo para acionar o instrumento militar para intervir nas mais diversas circunstâncias9. O discurso securitário que antecipa o futuro na consideração do risco exige medidas também antecipatórias que, ao mesmo tempo que se destinam a dar segurança, geram a insegurança pela luz de alerta que essas medidas acendem na sociedade. Neste cenário de insegurança e aparente desordem pública (aguçado pelo monopólio da mídia internacional dominante e suas agências nacionais), sob o pretexto de se aumentar a sensação de segurança pública, temas sociais diversos são tratados através da ótica da Segurança, mas também, na prática, ocorre uma militarização no tratamento destes problemas. Estas missões secundárias podem sinalizar ainda a fragilidade de outras instituições dos Estados, que se apresentam insuficientes para cumprir com suas atribuições. O baixo custo e a alta eficiência dos militares fazem com que o Exército brasileiro, por exemplo, seja constantemente chamado para realizar obras de engenharia civil, como construir pontes ou asfaltar estradas. Na Bolívia e na Venezuela, por outro lado, a participação militar no Desenvolvimento Nacional é utilizada como ferramenta da causa revolucionária. Apesar dos diferentes graus de incidência, o uso dos militares em assuntos internos se apresenta como um fenômeno cada vez mais comum nos países sul-americanos. Alguns dos motivos subjacentes podem ser encontrados em elementos semelhantes às realidades da região: o fim dos regimes totalitários; o fim da Guerra Fria; o fortalecimento de problemas transnacionais e as fragilidades políticas, econômicas e estruturais destes países. Observar na prática o emprego do instrumento militar permite

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compreender as diferentes concepções de Estado e de Segurança – tarefa imprescindível na busca pela cooperação regional. Se é verdade que os problemas de segurança são cada vez mais complexos e convergentes, que os instrumentos da segurança pública se mostram impotentes ou insuficientes e o sistema judiciário inadequado, não será o emprego indiscriminado do instrumento militar que resolverá a situação. Algumas propostas para solucionar este problema apontam a uma reformulação do sistema judiciário e das forças policiais. Contra a capacidade de fogo das bandas criminais, resultado de uma estratégia errada de combate ao crime, a força policial, com seu armamento e doutrina específicos, talvez seja insuficiente, como apontam alguns especialistas. Nesse caso alguns propõem a militarização das polícias ou a “policiação” das Forças Armadas, o que implicaria numa disfuncionalidade institucional, pela alteração de funções e doutrinas, como também na eventual hipertrofia do Estado. Uma alternativa seria destacar um corpo de militares que formaria um grupo de combate para operar contra os grupos criminosos armados, mas neste caso deveriam operar sob comando do Ministério da Justiça ou do Interior (dependendo do país) e não mais da Defesa e independentemente do Comando das FA, coisa que não todos os militares aceitariam por profissão e vocação. Se ficassem sob comando militar seriam uma força de elite diferenciada dos demais militares, o que provocaria um estremecimento no “espírito de corpo” e nos valores da corporação. Outra alternativa é criar mais um corpo de policiais altamente treinado, armado e doutrinado para o combate, que opere em combinação com as forças policiais regulares quando estas fossem superadas pela capacidade de fogo do crime. Finalmente, outra opção já em operação em alguns países da região é a criação de uma força de contenção intermediaria, como é o caso da Gendarmeria na Argentina e os Carabineros no Chile. A criação do Ministério de Segurança, como aconteceu na Argentina, pode ajudar a resolver as questões institucionais que demanda o enfrentamento aos problemas de segurança pública. Com relação ao apoio nos processos eleitorais e em casos de catástrofes naturais consideramos que as Forças Armadas podem ser de grande apoio sem constituir um grave problema institucional, visto que são casos pontuais e temporários – sempre que esse emprego não implique em armamento, treinamento, doutrina nem orçamento específicos e, sobretudo, que não implique na perda da capacidade de combate, específico do instrumento militar e essencial à existência do Estado.

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103 AS ATRIBUIÇÕES DAS FORÇAS...

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ERA UMA VEZ UM COMPLEXO REGIONAL DE SEGURANÇA

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OS MILITARES E A POLÍTICA1 João Roberto Martins Filho2 Paulo Ribeiro Cunha3 Samuel Alves Soares4 S ued C astro L ima 5 243

Os militares na política brasileira Os conflitos militares até 1964

N

o Brasil republicano, os militares sempre foram parte integrante do processo político. Exemplos dessa presença foram a Proclamação da República, o movimento tenentista, o golpe do Estado Novo, a derrubada de Vargas, a tentativa golpista de 1954, os movimentos insurrecionais da segunda metade dos anos 1950 e a tentativa de impedir a posse de Goulart em 1961. Com o golpe de 1964, as Forças Armadas assumiram o poder. 1

Este texto refere-se a relatório apresentado à Comissão Nacional da Verdade pelo Grupo de Estudos sobre os militares e a política, inserido no Grupo de Trabalho Repressão aos Militares. O Grupo se autodenominou Grupo de Jaguariúna, já que a maior parte das reuniões promovidas ao longo de quase dois anos de trabalho foi realizada na cidade de Jaguariúna, estado de São Paulo, na chácara de um dos membros do Grupo.

2

Professor Titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Coordenador do Arquivo de Política Militar Ana Lagôa, da UFSCAR. Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).

3

Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP). Professor da Pós-Graduação em Ciências Sociais da FFC da UNESP/Marília.

4

Professor Livre-Docente da UNESP/Franca e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).

5

Coronel-Aviador RR e membro do Observatório das Nacionalidades (UFF).

244 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

Ao mesmo tempo, estiveram presentes no campo militar posições políticas diversas e conflitos horizontais e verticais. Não apenas os oficiais se revoltavam e procuravam influenciar a política, pois, desde a revolta da Chibata (1910) até a Revolta dos Sargentos em Brasília (1963), foram frequentes as rebeliões de praças das três forças (Exército, Marinha e Aeronáutica). Diferentes ideologias disputavam a simpatia de oficiais e graduados, sendo, inclusive, formada uma esquerda militar com posições progressistas e mesmo revolucionárias, desafiando as correntes conservadoras. Em 1935, após a tentativa de rebelião nos quartéis, consolidou-se no Exército e na Marinha um agudo anticomunismo, comprovado pelas sucessivas anistias que beneficiavam preferencialmente oficiais, via de regra de direita, excluindo os do campo democrático e ignorando as praças. A doutrina Góes Monteiro igualmente procurou enfrentar nos anos 30 a questão da politização militar de um ponto de vista conservador. Ao afirmar que era necessário fazer a política do Exército e não a política no Exército, sua tese central defendia que a corporação fosse unificada a partir dos comandos militares, reacionários em sua maioria. A política passou a ser exclusividade da elite militar conservadora e como tal o Exército tornou-se parte integrante do regime político do Estado Novo. A possibilidade de um meio militar mais democrático e plural sofreu duro golpe. A Segunda Guerra Mundial não representou para o Brasil a oportunidade de democratização da sociedade, como ocorreu em outros países do mundo, onde o fim do conflito viu surgir o Estado de Bem-Estar Social e vitórias ou avanços eleitorais de partidos de esquerda ou centro-esquerda. Heróis de guerra, recebidos com imensa festa popular na então capital do país, o Rio de Janeiro, os pracinhas da FEB foram vistos não como a vanguarda de uma sociedade mais democrática, mas como um risco para o poder das oligarquias e dos militares conservadores. Na primeira eleição presidencial brasileira do pós-guerra, realizada em dezembro de 1945, os principais concorrentes eram militares conservadores: o general Eurico Gaspar Dutra, apoiado pelo Partido Social Democrático (PSD) e pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), vencedor com 55% dos votos, e o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da União Democrática Nacional (UDN), segundo colocado, com 35% dos sufrágios. Apesar de declarar que sua política seria a favor da união nacional e em defesa da democracia, Dutra, quando empossado na presidência, proibiu o funcionamento do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e cassou os mandatos dos parlamentares dessa agremiação.

245 OS MILITARES E A POLÍTICA

No contexto da guerra fria, surgiram no mundo militar duas posições políticas em permanente confronto: a anticomunista e a nacionalista ou antiamericana. Com a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), no final dos anos 1940, surge a ideologia da segurança nacional e, no final dos anos 1950, a mesma ESG importa a doutrina francesa da guerra revolucionária. Ambos os ideários foram cruciais para cimentar ideologicamente os setores anticomunistas. A volta de Getúlio Vargas à presidência, em janeiro de 1951, fez surgir no meio militar a oposição ao trabalhismo, interpretado como antessala do comunismo. A posição mais sectária era corporificada na UDN, que tinha como característica marcante a proximidade com a direita militar. O político carioca Carlos Lacerda cultivou íntimas relações com os setores mais extremistas das Forças Armadas, como o grupo de oficiais da Força Aérea Brasileira (FAB) que, depois do assassinato do major-aviador Rubens Vaz, que fazia escolta de Lacerda, conduziu as investigações em instalações militares, na chamada República do Galeão, ao arrepio da Constituição. O suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, foi o epílogo daquele processo, adiando por dez anos a possibilidade de um golpe da direita. As eleições no Clube Militar passaram a ser acontecimentos políticos nacionais, com seguidos embates entre as duas correntes acima referidas, refletindo a crescente polarização ideológica vivida pelo país. Em 1950, uma chapa nacionalista composta por expoentes históricos das lutas tenentistas ganharia as eleições. Sua plataforma eleitoral incluía a campanha pela nacionalização do petróleo e a recusa em enviar tropas brasileiras à guerra mantida pelos EUA na Coréia. O comando do Exército determinou uma intervenção branca na entidade e diversos membros da diretoria foram transferidos para guarnições distantes. O debate sobre questões nacionais ampliou-se para os suboficiais, sargentos e marinheiros, que se organizavam em associações de classe. Nesse contexto, houve uma onda de prisões de praças, acompanhadas de violências e torturas. Nos anos seguintes, as tentativas golpistas de setores reacionários foram frequentes, uma delas depois da eleição de Juscelino Kubitschek, quando, a 11 de novembro de 1955, fez-se necessária a ação decidida do general Henrique Teixeira Lott para impedir um golpe. O quadro foi completado com a eclosão de sublevações contra o regime democrático, como as revoltas de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959). Sem apoio civil ou militar, esses movimentos se esgotaram rapidamente e os revoltosos exilaram-se no exterior, sendo posteriormente anistiados e reintegrados às corporações. A quase totalidade desses oficiais se manteria na conspiração

246 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

que levou ao golpe contra João Goulart e em diversos casos seus líderes foram promovidos a oficiais generais no período do regime militar. Nas eleições presidenciais em 1960, o campo popular e democrático apresentou Lott como candidato, que foi derrotado por uma coligação de partidos conservadores. Em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto, o movimento liderado pelos ministros militares no sentido de impedir a posse do vice-presidente foi abortado pela formação da Cadeia da Legalidade, formada pelo governador Leonel Brizola no Rio Grande do Sul, com apoio do general Machado Lopes, comandante do III Exército, demonstrando aos golpistas que o caminho para a tomada do poder passava necessariamente pela preparação de uma ampla frente militar e civil anticomunista. A conspiração que levaria ao golpe de 1964 começou assim que Jango tomou posse. Em 1962, novamente as correntes militares se defrontam nas eleições do Clube Militar. A ala nacionalista incluía desde oficiais conservadores, como o general Peri Bevilaqua, a militares de esquerda e legalistas, como o general Castor da Nóbrega, herói da FEB. A direita apoiou o nome do general Augusto Magessi, que venceu o pleito, sob acusações de fraude e questionamentos na Justiça. O pêndulo começava a pender para os militares anticomunistas. A fragilidade do governo Jango, suas vacilações políticas e seu desconhecimento do meio militar contribuíram para ocorrência de impasses que acabariam resultando em sua deposição. Os civis entendiam pouco o que se passava no meio militar e subestimaram o poder da hierarquia, a articulação da direita castrense com as elites civis, sua penetração nos quartéis e os contatos de um grupo seleto de oficias que serviram na FEB com a embaixada dos EUA. Os conflitos intramilitares não envolveram apenas oficiais. Com o slogan “Sargento também é Povo”, graduados exigiram o direito de concorrer a mandatos eletivos. Diante da decisão contrária do Judiciário, eclodiu em Brasília, em setembro de 1963, uma rebelião armada. Seis meses depois, foi a vez dos marinheiros revoltarem-se no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, inspirados na lendária figura de João Cândido, líder da Revolta da Chibata. Parte da tropa de fuzileiros enviada para repressão aderiu aos rebelados. João Goulart anistiou os marinheiros. A subestimação do setor militar conservador por parte do governo Goulart e dos setores progressistas em geral os impediu de enxergar com maior lucidez o quanto esses episódios estavam sendo usados para trazer para o campo golpista, sob o argumento da defesa da hierarquia e da disciplina, setores que poderiam se manter alheios à ideia de uma ruptura da legalidade.

A polarização político-ideológica das Forças Armadas no pós-guerra alimentou o forte espírito de vingança no meio militar após o golpe. Prisões, inquéritos e torturas, que alcançaram oficiais e praças sem distinção, tornaram o meio militar um dos setores sociais mais duramente atingidos pela repressão. Sucessivos expurgos retiraram das corporações os elementos identificados com o projeto nacionalista do governo deposto. Alguns autores chegam falar em 7500 militares punidos.

Os conflitos militares a partir de 1964 247 OS MILITARES E A POLÍTICA

Poucos militares ligados ao PCB e alguns do campo nacionalista sobreviveram ao golpe, a maioria nas polícias militares, que somente vieram a ser atingidos pela repressão política no governo do General Garrastazu Médici. Vários militares expulsos aderiram aos grupos civis de resistência armada, como a Aliança Libertadora Nacional (ALN), o Movimento de Ação Revolucionária (MAR), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), o Comando de Libertação Nacional (COLINA) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O caso mais famoso foi o do Carlos Lamarca. A primeira ação armada depois de 1964 foi chefiada pelo coronel brizolista Jefferson Cardim, preso em março de 1965, após atacar um posto militar no Rio Grande do Sul, com outros dezessete homens. O primeiro foco guerrilheiro, descoberto em 1967 na serra do Caparaó, também sob influência brizolista, teve a participação de ex-praças do Exército e marinheiros. A partir de 1964, as divisões militares mudaram de teor, deixando de girar em torno de conflitos ideológicos para se concentrar em conflitos entre a oficialidade e os oficiais generais e em disputas na alta hierarquia a cada vez que se abria um período de sucessão presidencial. Ao contrário da visão simplista que entende tais conflitos em termos de uma oposição entre duros e liberais, o campo militar se cindiu, entre 1964 e 1969, em grupos mais complexos e variados. Um fator, porém, impedia que os conflitos na caserna extrapolassem para o campo civil, como ocorreu na Argentina: a oposição geral dos militares à volta dos civis ao poder. Apenas a sucessão de Garrastazu Médici por Ernesto Geisel deu-se sem maiores tensões nos quartéis. A criação do aparelho de repressão e tortura, a partir de 1969, estabeleceu as condições para um novo tipo de conflito intramilitar. Ao assumir a presidência em 1974, o general Ernesto Geisel se defrontou com a autonomia de ação alcançada pelos grupos de oficiais diretamente comprometidos com a tortura, abrigados nos chamados DOI-CODI, organismos militares

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de repressão, cujos núcleos mais ativos estavam sediados em São Paulo (II Exército) e no Rio de Janeiro (I Exército). De 1975 a 1977, esses grupos criaram situações de fato para desafiar o general-presidente. Nesse ponto, há que se registrar duas análises divergentes. Uma considera que a tortura foi uma ‘Política de Regime’, pois operava dentro da cadeia de comando, com conhecimento e apoio de chefes militares do mais alto nível. Outra leitura aponta para a tese de que havia ‘Duplicidade de Comando’, face a autonomia de que gozaram os núcleos promotores de crimes contra os direitos humanos frente à hierarquia e à cadeia de comando, atingiu tal nível de poder que levou seus componentes a promoverem rebeliões durante os governos Geisel e Figueiredo, em processo que culminou no atentado do Riocentro, em 1981. Ambas as avaliações concordam em que o regime tomou cuidado para isolar os setores militares comprometidos diretamente com a tortura. Provavelmente o conflito político de maior expressão nesse período tenha sido o que levou à destituição do ministro do Exército Silvio Frota, líder da corrente mais violenta da direita militar, que erroneamente julgou-se com força para confrontar o poder central. O afastamento do ministro coroou uma série de medidas de contenção do setor militar mais vinculado aos CODIS, iniciada com a demissão do general Ednardo D’Ávila Mello e do brigadeiro João Paulo Moreira Burnier e a desarticulação parcial do CODI do II Exército (São Paulo), responsável, em 1975, pela morte do jornalista Wladimir Herzog, e do operário Manuel Fiel Filho. Conservador e autoritário, Geisel conseguiu, assim, impor a autoridade da hierarquia aos grupos rebeldes. Seu sucessor, o general João Figueiredo não teve a mesma virtú e fracassou ao deixar impunes os responsáveis pelo atentado no Riocentro. Cada vez mais impopular e desmoralizado, enfrentando a oposição de setores militares favoráveis ao final do regime militar, seu governo se arrastou até a eleição de Tancredo Neves. O campo militar democrático e progressista renasceu nas campanhas pela anistia e pela redemocratização do país, em grande medida, através de entidades de cassados. Com a lei de anistia de 1979, emergiram organizações como a Associação Democrática e Nacionalista de Militares (ADNAM), congregando oficiais cassados das três forças, ou a Unidade Mobilização Nacional pela Anistia (UMNA), entre outras dezenas de entidades espalhadas pelo país, que reuniam graduados do Exército, da Marinha e da Aeronáutica não contemplados pela anistia, pois seus movimentos foram enquadrados como expressão de quebra de hierarquia e disciplina, e não como movimentos políticos.

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No governo Figueiredo (1979-1985), o processo de redemocratização foi ameaçado por ações terroristas de setores de direita, resultando em dezenas de explosões de bancas de revistas e um atentado à sede da Ordem do Advogados do Brasil (OAB), no Rio de Janeiro, culminando com o já referido atentado do Riocentro, planejado por militares da ativa. As eleições para o Clube Militar, em 1984 foram disputadas por duas chapas: uma pró-redemocratização, com apoio de militares cassados, e a que defendia a situação, vencendo esta última com apoio oficial. Nos momentos finais do regime, o projeto de continuidade com a indicação para a presidência do chefe da comunidade de informações, General Octávio Aguiar de Medeiros, foi inviabilizado no nascedouro. A demissão do Ministro da Marinha, Almirante Maximiano da Silva Fonseca, por defender eleições diretas para presidência da República, demonstrou que a unidade militar estava profundamente comprometida. Depois de saírem do poder em 1985, os militares mantiveram durante o governo Sarney considerável força de tutela sobre o poder civil. Somente no governo Collor, iniciado em 1990, foram tomadas as primeiras medidas no sentido de extinguir algumas heranças do regime militar – como o Serviço Nacional de Informações (SNI). Os anos seguintes presenciaram um lento e irregular processo de avanço do controle civil, cujo momento mais importante foi a criação do Ministério da Defesa, em 1999, com a transformação dos antigos ministérios militares em comandos das forças. A falta de vontade política dos líderes civis, aliada ao conservadorismo militar, fazem com que temas como o reconhecimento de que ocorreram torturas em instalações militares continuem sem resolução. Há evidências de que a cultura de comprometimento das Forças Armadas com a manutenção da ordem interna, principalmente no caso do Exército, não sofreu abalos. Mais uma vez, a atitude dos políticos, acostumados a invocar a participação militar toda vez que enfrentam problemas de segurança pública, não ajuda a mudar a situação. Continua a ser um desafio fundamental a construção de uma cultura democrática no seio das Forças Armadas. Nesse quadro, têm sido comuns episódios de desobediência ao poder civil e à Constituição. Sucedem-se episódios de indisciplina, como o do general Maynard Santa Rosa, em 2007, ainda na ativa, que atacou em pronunciamento público o decreto presidencial que determinava a demarcação da reserva indígena de Roraima. Foi apenas afastado do cargo de Secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa. Políticos e jornalista elogiaram o general, que poucos anos depois, viria a qualificar a Comissão da Verdade como “Comissão da Calúnia” e afirmar

que o órgão seria composto por “fanáticos” que no passado recente adotaram o terrorismo, o sequestro de inocentes e o assalto a bancos como meio de combate ao regime, para alcançar o poder”. Somente então foi ele exonerado pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, de seu cargo de Diretor de Pessoal do Exército, ato criticado pelo senador José Agripino que defendeu a necessidade de “diálogo e não da demissão, que impõe um comportamento e que tenta sufocar divergências que a gente sabe que existe em toda parte e também nas Forças Armadas”.

A questão da formação de militares 250 DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

O contexto da Guerra Fria exacerbou a perspectiva da manutenção da ordem interna na mentalidade militar brasileira. Em um processo aprofundado de internalização do conflito, as forças armadas sustentavam seus processos de socialização pelo viés do inimigo interno. Do ponto de vista de uma teoria da soberania, a mentalidade militar foi sendo consolidada em dois pilares: a capacitação para distinguir amigos e inimigos no campo político e, mais grave, possuir a autoconferida responsabilidade para decidir sobre a exceção em conjunturas políticas consideradas em crise e que passavam a exigir a dirimição entre campos políticos opostos. Com base nesta concepção é que foi justificado o golpe de 1964. Foi sendo forjado um sentimento de dever ou de missão de intervir nos processos políticos para garantir a manutenção do status quo social e político e que encontraria respaldo legal na definição da função constitucional que reserva às forças armadas a responsabilidade pela manutenção da Lei e da Ordem. O sentimento de intervir no processo político nas circunstâncias consideradas excepcionais passa a constituir o dever supremo e é sacralizado como inerente ao ethos militar. Os resultados foram as afrontas aos parâmetros basilares da democracia representativa, já que a quebra da legalidade foi concebida como parte do processo de contenção do inimigo. E colidia ainda com a garantia dos direitos humanos, no entendimento de que há meios por si justificáveis quando protegiam o próprio regime militar. Há fortes indícios de que esta mentalidade permanece e sustenta a socialização militar. Tome-se o exemplo do site do comando do Exército, que no início do ano de 2011, quase cinquenta anos após o golpe de 64, ainda registrava a “Revolução Democrática de 1964” como efeméride a ser exaltada. A comemoração antevista pelo alto escalão de uma das forças é reveladora de que o golpe de 64 era ou é entendido como um valor a ser

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reverenciado. Com base nesta interpretação o golpe se impôs às forças armadas, que não teriam alternativa a não ser romper com a legalidade para proteger o país do inimigo interno. Uma tentativa de barrar esta mentalidade foi a proposta apresentada ao Congresso Constituinte de modificar a tradição republicana de atribuição às forças armadas a garantia da Lei e da Ordem. Naquela proposta visava-se distinguir mais claramente o campo da Defesa do campo da Segurança Pública, orientando a função militar exclusivamente para o âmbito externo. Derrotada pelo chamado “Centrão”, a proposta não teve seguimento. Buscava-se transformar a mentalidade militar extraindo-lhe a sua justificação jurídica. Entretanto, é no campo da educação militar que se encontra o cerne da produção e reprodução desta mentalidade. Antes do golpe, o controle dos estabelecimentos de ensino revelou-se importante instrumento para disseminar o ideário de direita. O general Otávio Costa avaliou que um dos erros do presidente João Goulart foi justamente o de “asilar nas escolas os oficiais que não gozavam de sua confiança, na presunção de que as escolas pouco representavam. Por sua culpa, as escolas ficaram abarrotadas dos melhores valores militares, como jamais acontecera”. Em 1964, a Academia Militar das Agulhas Negras era comandada pelo General Garrastazu Médici e seu Corpo de Cadetes, pelo Coronel Moacyr Potyguara, que vieram a ter destacado papel no período mais sombrio da ditadura. Depois do golpe, o regime militar tratou de impor uma rigorosa fiscalização sobre o comportamento dos cadetes, de forma a reprimir qualquer discussão sobre as questões culturais e sociais. Em 1968, a simples existência na Escola de Aeronáutica, Rio de Janeiro, de um grêmio de aficionados de cinema e livros levou à exclusão de três cadetes responsáveis por sua direção. O comandante do estabelecimento, Brigadeiro Geraldo Labarth Lebre, era componente da chamada linha dura da FAB. A doutrinação era permanente. Em meados de 1969, no estágio para aspirantes aviadores da Base Aérea de Natal, teve lugar uma palestra do Brigadeiro João Paulo Burnier, que então ocupava as funções de chefe do Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica (CISA). Nessa ocasião, ele informou que o comunismo ainda não fora vencido pela revolução e era dever de cada militar manter-se vigilante e pronto para denunciar aos órgãos de informações qualquer situação suspeita ou comportamento estranho que fosse observado, inclusive entre os próprios colegas. O currículo do curso de formação de oficiais aviadores em vigor nos anos 1960 espelhava claramente o objetivo de alienar os jovens cadetes. Das

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1.710 horas que compunham a grade, excluídas as matérias eminentemente militares, apenas 13% eram dedicados às chamadas Ciências Humanas. A disciplina de História Militar constituía 1,46% do tempo de aulas. O conteúdo era composto de estudos sobre as duas guerras mundiais e nada era ensinado sobre a formação histórica das forças militares brasileiras, os conflitos armados em nosso país, o movimento pela proclamação da república e as revoltas tenentistas. Confrontando a atual grade curricular da Academia da Força Aérea com a de 1968, verifica-se que o já reduzido percentual de horas destinadas ao estudo de Ciências Humanas restou ainda mais encurtado (de 13% para 7%). Na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), a partir de 1967, foi ativado um departamento encarregado de instruir sobre ações de combate à guerra revolucionária, por meio de conferências de oficiais da Escola de Estado Maior do Exército, ECEME, e expoentes da extrema direita civil, como o deputado Clóvis Stenzel e o bispo Geraldo Sigaud. Assim foram formadas gerações de militares, incapazes de avaliar criticamente o período ditatorial e os acontecimentos por que passava o país. Na AMAN de hoje, o golpe de 1964 ainda é tratado como “revolução democrática” e os feitos da ditadura são expostos de forma apologética. Em recente pesquisa que realizou nessa Academia, a Profa. Maria Celina D’Araújo, da Fundação Getúlio Vargas, constatou que a direção do estabelecimento divulgava notícias de sites que enalteciam o golpe de 1964, criticavam a criação da Comissão da Verdade e condenavam as indenizações determinadas pela Comissão de Anistia. Para a professora, tudo leva a crer “que estamos reproduzindo militares com pouca sensibilidade para a mudança política e pouco preparados para entender os valores da democracia e a importância do controle civil e democrático sobre as Forças Armadas”. E complementa: “Procuramos indagar que tipo de ensinamentos os alunos recebem sobre democracia, direitos e cidadania e o que se observou foi até certa dificuldade dos instrutores em entender essa questão”. O tema não passou totalmente ao largo das preocupações do governo. Em julho de 2011, nos últimos dias da gestão de Nelson Jobim no Ministério da Defesa, foi editada a Portaria nº 1.874-A, que constituía um grupo de trabalho interministerial, com o objetivo de analisar os cursos de formação de oficiais da Escola Naval, Academia Militar das Agulhas Negras e Academia da Força Aérea e apresentar propostas de aperfeiçoamento dos currículos dessas instituições militares de ensino superior. Incialmente mal recebida nos comandos, após a demissão de Jobim, a resistência corporativa às mudanças se configurou. O grupo de trabalho, que vinha atuando em baixo

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perfil, produziu um relatório final sem qualquer proposta de mudança, o processo foi arquivado e o assunto encerrado. Em recente entrevista a um canal de TV a cabo, o atual Ministro da Defesa Celso Amorim afirmou que “os militares de hoje não são os militares de ontem”. Trata-se de avaliação surpreendente por sua inconsistência, já que o ministro não indicou as bases em que ela se apoia e são escassas as informações sobre o que pensa hoje o oficialato. Pelo contrário, as evidências disponíveis apontam para o fato de que as gerações formadas nas escolas militares nos últimos anos vêm passando pelos mesmos sistemas de ensino existentes na ditadura, que se mantiveram sem mudanças de essência em seus currículos. Além disso, depois de concluírem seus cursos, os jovens oficiais vão conviver profissionalmente com os mais antigos e deles passam a receber experiência e influência. Não há, assim, como identificar qualquer quebra de modelo ou alteração doutrinária. Em contraste com o processo brasileiro, o Ministério da Defesa da Argentina, determinou há poucos anos uma profunda reforma dos currículos das escolas militares, que incluiu a adoção de novas visões sobre a história do país, teoria do Estado e direitos humanos. Com o objetivo declarado de formar profissionais com mentalidade democrática e pensamento crítico, a equipe eliminou do currículo todo conteúdo que apresentava uma visão favorável ao terrorismo de Estado dos anos 70 e às políticas neoliberais, a partir do entendimento de que a pobreza intelectual dos militares no passado os impediu de fazer qualquer tipo de reflexão crítica sobre o que acontecia no país. Atualmente, busca-se promover o respeito pelos direitos humanos e a tolerância frente a posturas ideológicas divergentes. A Espanha foi submetida ao fascismo franquista por 37 anos. Com o desmonte da ditadura, o governo deliberou fazer com que suas forças armadas assumissem uma postura de lealdade à democracia, mantendo-se preparadas para responder às ameaças externas contra o país. Um dos focos do processo foi o sistema de ensino militar, a partir do entendimento de que é na estrutura educacional que se constrói a mentalidade que influirá na ação do soldado. Importantes e profundas alterações foram implantadas, com drástico enxugamento no elevado número de estabelecimentos de ensino, causadores de dispersão de estudos e experiências e de grande desperdício de recursos humanos e financeiros. Pesquisadores brasileiros vêm estudando esses casos e poderiam contribuir com propostas para mudanças no ensino militar.

Recomendações

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Diante do exposto, este Grupo de Estudos propôs o que se segue: 1)O desenvolvimento pelo Poder Executivo de um projeto objetivo de democratização no campo da defesa, o que deve incluir a disposição de enfrentar com firmeza as eventuais manifestações de desagrado militar 2)A revisão dos regulamentos disciplinares, adequando-os ao estado de direito; 3)Maior participação do Poder Legislativo nos assuntos de defesa, com destaque para elaboração de legislação adequada quanto ao emprego das Forças Armadas, restringindo seu uso em funções de polícia e na repressão de movimentos populares. 4)Revisão dos artigos 142 e 144 da Constituição Federal, no sentido de definir como missão exclusiva das Forças Armadas a defesa nacional, de caráter externo, e eliminar a atual configuração militar das forças de segurança pública; 5)Promoção de pesquisas coordenadas por especialistas no sentido de identificar o tipo de profissional militar que vem sendo formado nos estabelecimentos de ensino das forças armadas, sua visão sobre o país e sobre a corporação a que pertence; bem como o estímulo à criação de um conhecimento mais aprofundado sobre a temática militar, principalmente na universidade; 6)Instituição de uma Secretária Especial de Governo (ou de Estado) com objetivo de dar continuidade aos trabalhos da CNV. 7)Criação de comissão destinada a apurar a qualidade dos currículos adotados nos estabelecimentos militares de ensino brasileiros, a adequabilidade de sua estrutura e sua relação com sistemas educacionais já consagrados em outros países com maior presença militar global, determinando as necessárias reformulações no sentido de democratizar o diálogo com a sociedade civil. Caberia, ainda, a essa comissão avaliar a necessidade de mudança na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de forma a evitar seu uso em estabelecimento militares como base legal para impor abordagens didáticas descoladas da verdade histórica brasileira; 8)Fim do Regime do Anistiado Político, que vem sendo aplicado aos militares cassados, e o reconhecimento deles como integran-

tes do Regime Jurídico dos Militares de que trata a Lei 6.880, de 9 de dezembro de 1980 (Estatuto dos Militares). 9)Reconhecimento pelos comandos de cada força de que foram cometidos crimes contra os direitos humanos em dependências militares, durante a ditadura, acompanhado pelo pedido formal de desculpas à sociedade brasileira.

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ISBN:978-85-7822-542-1

9 788 578 22 542 1

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