Winter Sleep e a Turquia universal

June 14, 2017 | Autor: Ivonete Pinto | Categoria: Turkish Cinema, Cinema Studies, World Cinema, Cinematografías Periféricas
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Winter Sleep e a Turquia universal Em seu sétimo longa, Nuri Bilge Ceylan faz estudo do arcaico e do moderno a partir de conflitos de classe Ivonete Pinto* “(...)chá, nem sempre tomava, e agora passei a economizar tanto para o chá como para o açúcar. Sabe de uma coisa, minha querida?, é meio embaraçoso não tomar chá; aqui só tem gente de recursos, de modo que é embaraçoso.” Fiódor Dostoiévski (Gente Pobre)

O cinema de Nuri Bilge Ceylan toma corpo dentro de uma herança humanista, contrapondo os defeitos e as virtudes dos homens. Winter Sleep (Kis Uykusu, 2014), mesmo para quem desconhece que o roteiro foi inspirado em alguns contos de Tchékhov, vê ali a saga dos pobres pela sobrevivência; vê a honra e a humilhação como elementos das relações de classe. Gente Pobre, de Dostoiévski, talvez seja a obra mais direta, no romance social, a abordar o assunto e a representar uma certa tradição da literatura russa

com o tema. Mas nem seria preciso buscar essa origem eslava, pois o próprio cinema turco tem exemplos que dramatizam a pobreza de forma pungente, como nos filmes de Yilmaz Güney (1937-1984). Assim como Ceylan conquistou a Palma de Outro em Cannes ano passado com Winter Sleep, o turco de etnia curda Güney ganhou o mesmo prêmio em 1982 com Yol. Güney realizou também Zavallilar (1975), de raiz neorrealista. Os dois filmes devem ser referências obrigatórias para os cineastas turcos, pois a despeito de uma imagem comum que essa cinematografia carrega, a de produzir obras popularescas, musicais de gosto duvidoso e épicos rocambolescos, por décadas grupos de cineastas dedicam-se a um outro cinema. Há, por exemplo, toda uma filmografia que não chega aqui sobre o conflito curdo, que já dura 40 anos, como o impressionante Jîn (Reha Erdem, 2013), sobre uma terrorista de 17 anos. Às vezes não chega nem aos turcos, considerando o recente escândalo da censura ao documentário Bakur dD\DQ'HPLUHOH(UWXùUXO 0DYLRùOX LPSHGLGRSHOR*RYHUQRGHVHUH[LELGR no Festival Internacional de Cinema de Istambul por questões políticas, por tratar dos guerrilheiros do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão). Os filmes de Ceylan, desde Distante (Uzak, 2002), passando por Climas (Iklimler, 2006), até Era uma Vez Aydin (Haluk Bilginer) em momento de crise em Winter Sleep

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na Anatólia (Bir Zamanlar Anadolu’da , 2011), integram um escopo humanista, trafegando por diferentes temas, sendo que Era uma Vez... também foi baseado em Tchékhov. Winter Sleep, com roteiro de Ceylan e da esposa Ebru Ceylan, é onde ele deixa tudo mais explícito. Desenha as diferenças de classe de modo mais direto ao explorar o comportamento dos personagens centrais a partir da classe, de uma classe. Trata-se de um filme pleno de qualidades, sem que contudo possamos afirmar que seja extraordinário ou perfeito, superlativos que devemos guardar para poucas obras. Nas 3h16min de duração de Winter Sleep há arestas. Na Capadócia, região da Anatólia Central, parte turística da Turquia conhecida pelas casas escavadas em rochas e pelos passeios em balão, temos a ação concentrada no pequeno hotel de Aydin (Haluk Bilginer). Ator fracassado, vive ali com a irmã recém divorciada e a jovem esposa. Ele e a irmã herdaram propriedades na região que lhes rendem aluguéis. Para passar o tempo, ou fazer-se meritório de atenção, o ator pesquisa para um livro sobre teatro turco. Deu ao hotel o nome de Othello e se orgulha de nunca ter feito novela (quem já viu as novelas turcas exibidas na TV Bandeirantes sabe que elas não primam pela sofisticação). Não é capaz de servir-se de um copo d’água sequer, pois os empregados estão ali para isto.

Representa a burguesia que construiu seu patrimônio ainda à época do Império Otomano e que “vive de rendas”. Alheios de como essas rendas chegam em suas mãos, os três personagens vêem-se como benfeitores, modernos e justos, quando são apenas egocêntricos. É meio por acaso que Aydin, junto com seu empregado, uma espécie rude de capataz, tem contato com uma família que lhe deve aluguel. O filho do devedor, um menino de 11 anos, atira uma pedra quebrando o vidro da camionete Land Rover de Aydin, e deverá sofrer as consequências. A repercussão deste gesto forma um dos eixos do filme. Ou parece vir a formar. Winter Sleep quer falar também das relações pessoais, do congelamento dos sentimentos. Lá pelas tantas, é como se abandonasse esse eixo social, ocupando-se dos pequenos rancores, das situações mal resolvidas em família, o lado Ingmar Bergman do filme, digamos assim. Mas o núcleo social está lá, aguardando para retornar. Ceylan é hábil no não-dito, no tempo que leva para revelar quem é quem. A própria personagem da esposa não é identificada fácil e rapidamente. Não sabemos quem ela é porque Ceylan não oferece aqueles diálogos típicos da narrativa clássica: ”Vou chamar minha mulher para conversar conosco”. Então entra a mulher. O marido refere-se a ela pelo nome porque a cena envolve um vizinho, que sabe quem é a mulher.

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Era uma Vez na Anatólia: conflito de classe e inspiração em Tchékhov

O público não sabe, e fica buscando, nas entrelinhas da conversa, descobrir quem é ela. Isto é importante? É importante neste caso, porque as relações do casal estão frias, distantes, e aos poucos vamos percebendo a razão. Beija-mão A família pobre, que deve aluguel a Aydin, nos é apresentada logo no início do filme. Como o roteiro privilegia o ponto de vista dos ricos, temos a sensação de estar faltando peças para entender alguns personagens. O irmão do devedor é a quem cabe administrar o conflito originado da quebra do vidro da camionete, convencendo Ismail, o pai do menino, a controlar-se, e tentando fazer com que a criança peça desculpas. Curioso é que sabemos mais sobre este personagem e das relações estabelecidas entre sua família e a de Aydin, por um simples tratamento. Quando Hamdi aparece no hotel para pedir desculpas pelo filho do irmão, a empregada de Aydin o anuncia como ”imam” Hamdi (título honorário usado para líderes religiosos locais, aqueles que conhecem profundamente o Corão). Já Aydin dirige-se a ele apenas como “hodja”, que significa “mestre”, uma maneira respeitosa, mas sem nenhuma deferência, uma convenção mais ou menos como dizer “Seu fulano de tal”. Uma sutileza de vocabulário que poderia levar ao equívoco de pensar que se trata de preconceito religioso. O preconceito está é na diferença de classe. Na estrutura social das pessoas no entorno de Aydin, onde a religião não tem maior peso, Hamdi é

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mais um dos pobres, o mesmo que dizer “gente sem importância”. Aliás, tema de tantos autores russos como Púchkin e Gógol e mais tarde de Tchékhov e Dostoiévski. Reforçando essa situação, Ceylan usa um elemento do figurino para tudo ficar mais claro: hodja Hamdi deixa os sapatos enlameados do lado de fora e Aydin, querendo demonstrar como é bom, manda trazer um chinelo para a visita. Como estaria disponível apenas um par de chinelos femininos, é assim que Hamdi fica diante de Aydin, num plano aberto para não termos dúvida de quanto ele ficou (mais) fragilizado. Na sequência posterior, quando Hamdi leva o sobrinho para pedir perdão e beijar a mão de Aydin, sabemos que a humildade é simulada, já que no início do filme, com o incidente do vidro quebrado, vemos sua raiva pela forma com que sua família é tratada (a geladeira e a televisão foram retiradas da casa, por conta da dívida). Mesmo assim, tenta impedir que a situação piore, como prenúncio de um despejo. Ele sabe que o ato de “beijar a mão”, que representa respeito e veneração à moda antiga, pode funcionar com Aydin, mas é estarrecedor. Tal gesto não deveria ser natural para o ex-ator. A maneira como este estende a mão, a expressão de seu rosto e do seu corpo, acabam por resumir séculos de história sobre capital e trabalho. Na Turquia, na Rússia ou em qualquer outro país. O personagem do imam Hamdi, nesta e em outras cenas, Ceylan não aprofunda a contento, apenas sugere fiapos de sua personalidade; ao irmão dele, o pai do menino, o filme reserva espaço um pouco maior, na tarefa de ilustrar o caráter da pobreza. Sua atitude final

Em 3 Macacos Ceylan discute ética e moral

ao recusar de forma dramática o dinheiro que a esposa de Aydin lhe dá, revela bem mais do que orgulho. O discurso, até ali, seria muito raso se tudo o que Ceylan tem a nos dizer estivesse na ação intempestiva do homem. Há comportamentos sociais encobertos, características culturais e religiosas que ficam no ar. Jacques Rancière escreveu em As Distâncias do Cinema (2012) algo a propósito do cinema de Pedro Costa que vem a calhar: O cinema tem de aceitar ser apenas a superfície na qual a experiência daqueles que foram relegados à margem dos circuitos econômicos e das trajetórias sociais procura cifrar-se em novas figuras. É preciso que essa superfície acolha a cisão que separa retrato e quadro, crônica e tragédia , reciprocidade e fissura. Uma arte a ser feita no lugar de outra. (p. 163)

Nos parece que é na limitação de construção dos personagens pobres – que são apenas delineados – que reside a complexidade de Winter Sleep. O filme assume ser a superfície para a exposição de conflitos e não quer simplesmente entender porque um homem pobre pode lançar ao fogo um maço de dinheiro; no lugar disso, quer entender porque uma mulher cheia de boas intenções não percebe que lhe dar dinheiro não seria a solução. Reygadas & Ceylan Esse cinema que convoca à reflexão, que não entrega teses prontas, é um ideal que Ceylan vem perseguindo numa trajetória de 20 anos, e nela podemos buscar

pistas em outros filmes, onde encontramos personagens ambíguos e contraditórios. 3 Macacos (Üç Maymun, 2008) traz uma tragédia familiar onde um político, num acidente de carro, mata uma pessoa e paga para que seu empregado assuma o crime e cumpra a pena por ele. Para complicar as relações, este político assedia a esposa do empregado enquanto este está preso. Ela cede. Em Nuvens de Maio (Mayis Sikintisi, 1999), Ceylan trabalha no registro documental a história de um cineasta que volta a sua aldeia para fazer um filme (bem pessoal, diga-se, pois os personagens dos pais são vividos pelos próprios pais do diretor). O cineasta (Muzaffer Özdemir) vê o pai trabalhar duro na terra mas não se move da cadeira. E Ceylan, acumulando a direção e fotografia, não deixa de encenar os pais discutindo. Como em Climas, sobre um casal em vias de separação. No making of que está nos extras do DVD de Winter Sleep, temos outros vestígios sobre o que move Ceylan quando vemos Carlos Reygadas visitando o set. A visita deve ter ocorrido quando o diretor mexicano foi homenageado no Festival de Istambul e apresentou Post Tenebras Lux (2012). Sua presença nesse material é sintomática do espaço que os dois ocupam num certo cinema contemporâneo promovido por festivais. São estilos bem diferentes, mas é possível ver no trabalho de ambos a preocupação em expor as relações de poder, os conflitos de classe e a violência relacionada. São cineastas que buscam encontrar seu caminho na linguagem do cinema, que ainda não ostentam uma marca de autor que os distinga de modo cabal, mas já TEOREMA

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conseguiram habitar uma espécie de panteão, volátil e provisório que seja, para através de festivais como Cannes lançarem seus filmes com a certeza de não passarem incólumes. No citado making of, Reygadas e Ceylan conversam sobre seus estilos, qual o melhor monitor para ter no set, quantos planos cada um usa nos filmes (Reygadas diz que em Post Tenebras Lux usou 230, Ceylan informa que usa em média 300). Entretanto, descontando a fotografia que explora ao máximo os recursos do digital e o gosto por planos longos e fixos, a linguagem e a estética de Ceylan e Reygadas não resistem a muita comparação, em especial nos seus mais recentes filmes e particularmente quanto ao uso da palavra. Reygadas emprega os tempos mortos com silêncios, Ceylan investe nos diálogos. Nos mesmos extras temos acesso ao trabalho minucioso com os atores em relação às intenções de cada fala. Em Winter Sleep seus poucos personagens não param de conversar, pois que regurgitam suas filosofias de vida, suas aflições éticas e metafísicas, usando as palavras. Lamenta-se depender de tradução para ver o filme, mas sendo o turco a língua rica que é, supõe-se o valor agregado nas grandes sequências de diálogos. Encontra-se aí possivelmente o tom solene algumas vezes criticado, porém em sua O conflito de classe no olhar de Ylias (Emirhan Doruktutan)

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defesa podemos invocar a teatralidade que ronda a produção. Como adentrar um universo similar ao de Tio Vânia sem solenidade? Para dizer todo o texto do roteiro, com as pausas e inflexões necessárias, somente um elenco à altura. E no elenco está não só o acerto da escolha técnica, como também da simbólica. As personas dos três atores principais implicam na leitura que fazemos deles em maior dimensão. O intérprete de Aydin , Haluk Bilginer, é um ator clássico, que depois de estudar em Ancara, ainda nos anos 70, foi fazer teatro na Inglaterra, tendo atuado em adaptações de Shakespeare e em sucessos como O Fantasma da Ópera. Hoje é dono de um teatro em Istambul. A personagem da irmã, Necla, é vivida por Demet Akbag, atriz de teatro, TV e, no cinema, fazendo principalmente filmes pelos quais o cinema turco carimbou sua imagem de popular. O rosto espichado com interferência cirúrgica funciona como um comentário sobre a personagem da burguesa que, mesmo sendo letrada, não parece ser acostumada a nenhum tipo de trabalho. Nihal, a esposa, é a atriz Melisa Sözen, que contribui ali com sua beleza e juventude para tornar verossímil o fato de ter um dia se encantado com o velho que hoje é seu marido. Numa leitura marxista, que envolva pensar capital e trabalho, seriam personagens

indefensáveis. E se em dados momentos a nobre esposa é dotada de simpatia, seu rompante final, ao levar o dinheiro ao pobre diabo, sinaliza a visão crítica do diretor. Ou pelo menos sinaliza que Ceylan prefere não pintar seu quadro em preto e branco. Ainda assim, o sentido de suas vidas é esboçado de forma clara: a jovem esposa ocupa-se com voluntariado social; o marido escreve crônicas afetadas e grandiloquentes para um jornal local que ninguém lê; a irmã passa o dia a ler revistas e vituperar “verdades” aos outros dois. O ócio como doença, tão presente no Tchékhov de Tio Vânia. Podemos nos perguntar: mas não seria um anacronismo, personagens em pleno século XXI sofrendo desse mal? O que Ceylan ameaça nos dizer é que a Turquia convive com fortunas desse gênero. Em Istambul, famílias abastadas, sem saber ao certo o que fazer com o patrimônio, transformam em museus e galerias de arte privados seus palacetes antigos e inabitados, exclusivamente por status. A Turquia se moderniza, mas a vertente arcaica da sociedade ainda está arraigada. Mesmo que Aydin tenha origem nesta região, a Anatólia, viveu em Istambul e apresenta indícios de uma vida cosmopolita e multicultural. O que o faz, aos 60 e poucos anos, ignorar o que acontece ao redor e reproduzir

comportamentos ancestrais? Não seria forçado dizer que ele espelha a sociedade turca que, por um lado, está sintonizada nos movimentos da Primavera Árabe, como os acontecimentos na Praça Taksim ilustram; por outro, convive com extratos de casta, pois o capital permanece concentrado em poucas mãos. Nuri Bilge Ceylan, ao compor os traços de comportamento de seus personagens, mesmo que centralizando os pontos de vista em uma das classes apresentadas, tenta entender as transições pelas quais a Turquia passa, e sintetiza no olhar do garoto de 11 anos, nas recusas que ele faz, o futuro do país. Tirando alguns códigos culturais, é fácil entrar em Winter Sleep, porque tanto a luta de classes, quanto os meandros de relações familiares deterioradas, estão ali para qualquer público compreender. O que ficou de fora – o ponto de vista aprofundado da família do menino pobre –, talvez só com mais três horas de filme. T *Doutora em Cinema pela ECA/USP, professora no curso de Cinema da UFPel, editora da revista online Orson

Nihal (Melisa Sözen), a esposa inconformada

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