Wittgenstein e problemas da tradução

June 1, 2017 | Autor: Paulo Oliveira | Categoria: Wittgenstein, FILOSOFIA DA LINGUAGEM, Teoria Da Tradução
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Wittgenstein e problemas da tradução Paulo Oliveira1

Universidade Estadual de Campinas

Ao amigo e colega Paulo Ottoni, interlocutor constante na diferença, im memoriam

Resumo:

Nas últimas décadas, os estudos da tradução têm sido palco de intensa crítica ao essencialismo de abordagens tradicionais na área. Nesse debate, tenho argumentado que uma concepção tradutória de extração wittgensteiniana seria capaz de apontar os problemas do essencialismo tradicional sem cair no relativismo epistemológico do qual se investe em parte a crítica pós-moderna de extração derridiana. O presente trabalho investiga se uma tal concepção já não estaria articulada dentro da obra de Wittgenstein, em termos explícitos, e propõe que o uso do conceito de tradução reflete e ilustra os diferentes estágios, do atomismo lógico do Tractatus às formas de vida das Investigações, não havendo tratamento sistemático do conceito em si. Ponto de partida é um aforismo das Fichas (698) que permite traçar uma linha divisória entre a preocupação tradicional com o método e a crítica antiessencialista à possibilidade de sua sistematização. Com base nas compilações eletrônicas hoje disponíveis, realizou-se recorte adicional com trechos representativos dos diferentes momentos, do Tractatus aos Últimos escritos. Na seqüência, exploram-se algumas das diferenças mais significativas entre a visada desconstrutivista e a terapia conceitual. Por fim, aponta-se para a importância de distinguirmos entre o aspecto normativo e o descritivo na tradução, e de atentarmos para o modo como o conceito varia em suas aplicações nos diferentes jogos de linguagem – dentre eles o da própria filosofia.

Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada em colóquio interno do Instituto de Filosofia da Universidade de Graz (Áustria), durante estágio pós-doutoral com financiamento pela FAPESP (Processo 05/00029-2). Aspectos importantes de seu desenvolvimento posterior foram discutidos no âmbito do GT do CNPq Filosofia da Linguagem e do Conhecimento, nas reuniões semanais realizadas no CLE/Unicamp. Agradeço sobretudo a Arley Ramos Moreno e Cristiane Gottschalk pela rica interlocução, e a Rafael Lopes Azize por valiosas sugestões de aprimoramento do texto. 1

Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 00-00, 2007.

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1. Preâmbulo As considerações apresentadas a seguir fazem parte de um projeto maior, de aproximação entre a Filosofia da Linguagem, com destaque para a obra de Wittgenstein, e os Estudos da Tradução – hoje um campo de investigação ao mesmo tempo autônomo, com lugar próprio na academia, e interdisciplinar, por seu vínculo necessário com várias áreas de conhecimento. Nesse campo, o principal interlocutor é a reflexão pós-estruturalista ou, mais especificamente, a desconstrução de matiz derridiano. Visando contextualizar as questões em jogo nos Estudos da Tradução para o público da Filosofia, traçarei antes de mais nada os contornos gerais desse projeto maior, para que não percamos de vista a motivação e os objetivos últimos da discussão em si. Tomarei como ponto de partida o próprio título do trabalho. A idéia que fazemos de um problema de tradução depende necessariamente da resposta que daríamos à questão mais geral sobre o que é tradução. Qual é o escopo do conceito, qual é a gramática de seu uso, quando falamos de problemas de tradução? Grande parte daquilo que se lê hoje no Brasil são obras traduzidas, ou que dialogam com textos escritos em outras línguas. Na década de 90, as traduções correspondiam a uma parcela de 70 a 75% do que se publicava no país (cf. Alfarano, 1995: 35), situação que provavelmente manteve-se inalterada desde então. No caso específico da Filosofia, há bons motivos para se inferir que mesmo os textos escritos originalmente em português, como artigos em revistas especializadas, envolvam de algum modo trechos traduzidos, no diálogo com filósofos e comentadores de outros países. Nesse contexto, é freqüente lermos sobre os problemas de determinada tradução, seja no curso de uma argumentação, seja na resenha de obras traduzidas. Nesse último caso, a discussão dos méritos de uma tradução passa freqüentemente por uma listagem dos problemas que ela apresenta, quase sempre acompanhada de soluções alternativas, consideradas pelo resenhista mais fiéis ao original. Ao se fazer isso, mobiliza-se não raro aquilo que Susan BasMoreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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snett e André Lefevere (1990: 4) chamaram de “teoria invisível” do tertium comparationis. Segundo os autores, o tertium comparationis nada mais é que a interpretação do próprio crítico ou resenhista face ao texto original, colocada como parâmetro tradutório ao mesmo tempo autorizado e invisível: não-explicitado em sua condição de tradução concorrente, ele opera como se fosse o próprio original, praticamente tomando seu lugar e colocando a exigência de que o texto traduzido seja-lhe equivalente. De modo geral, as concepções de linguagem e significado mobilizadas por tais comparações tendem a ser de natureza essencialista e comportam um certo dogmatismo no tocante aos critérios de pertinência, tanto na leitura do texto de partida (o original) quanto na elaboração do texto de chegada (a tradução).2 De modo semelhante às resenhas de obras traduzidas, parte significativa da reflexão mais tradicional sobre a tradução envolve o uso do tertium comparationis para sugerir que determinada solução (a do autor da resenha ou reflexão teórica) é melhor do que outras (aquelas que são objeto de sua crítica). Dois exemplos de livros que lançam mão dessa perspectiva são A tradução vivida, de Paulo Rónai (1981) e Tradução: ofício e arte, de Erwin Theodor (1983). Assim entendido, um problema de tradução remete a algo que foi mal feito, que comporta defeitos. Não é nesse sentido que abordarei o tema, ainda que o cotejo entre diferentes traduções também faça parte do argumento, com o intuito de explorar os pressupostos e as implicações de cada escolha.

O pressuposto básico é de que a interpretação do próprio crítico ou resenhista seria, por sua vez, equivalente ao original, no sentido de alcançar sua essência, usualmente assimilada à intenção do autor. Ainda que o conceito de equivalência comporte nuances em diversas abordagens teóricas, costuma haver uma base comum, constituída por concepções essencialistas de linguagem. Para uma discussão aprofundada do assunto, de um ponto de vista pós-estruturalista, vide Carneiro (1999). Para um questionamento do tertium comparationis sob a perspectiva do argumento da linguagem privada de Wittgenstein, vide Oliveira (2007). 2

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Uma outra maneira de abordar a questão é entender problema de tradução como uma dificuldade a ser enfrentada, tanto no nível prático como no teórico. Tomemos como exemplo o clássico estudo Os problemas teóricos da tradução, de Georges Mounin, segundo o qual a atividade de tradução suscita um problema teórico para a lingüística contemporânea: se aceitarmos as teses correntes a respeito da estrutura dos léxicos, das morfologias e das sintaxes, seremos levados a afirmar que a tradução deveria ser impossível. Entretanto, os tradutores existem, eles produzem, recorremos com proveito às suas produções. Seria quase possível dizer que a existência da tradução constitui o escândalo da lingüística contemporânea. (Mounin, 1975: 19)

As soluções propostas por Mounin para esse impasse oscilam entre a condenação da atividade tradutória em nome da lingüística ou, inversamente, o questionamento da validade das teorias lingüísticas em nome da atividade de tradução. Uma terceira possibilidade, aparentemente conciliatória, seria investigar a contradição entre a alegada “impenetrabilidade” dos diferentes sistemas gramaticais e a existência da tradução enquanto prática social (ibid: 20). Sob esse prisma, problema de tradução é tudo aquilo que não se deixa reduzir ao aparato conceitual disponível, aos pressupostos de base da disciplina em questão – a própria lingüística, a teoria literária ou a didática da tradução, dentre outras. É aqui que incide parte da crítica mais contundente da reflexão pós-moderna à tradição ocidental, caracterizada como logocêntrica, ou fono-logocêntrica, pela desconstrução inaugurada por Jacques Derrida. Vai nesse sentido o argumento de Rosemary Arrojo (1992b: 75), para quem a conciliação sugerida por Mounin em sua terceira alternativa não seria real, na medida em que este não admite ser “a „ciência‟, no caso a lingüística, que deve rever seus pressupostos”, mas sim “a prática que precisa ser reavaliada”. Tal postura cientificista seria questionável, até mesmo em função da incapacidade da própria lingüística em lidar adequadamente com a questão do

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significado, como teria admitido, de resto, o próprio Mounin (Arrojo, ibid.; Mounin, 1975: 27).3 Indo além dessa discussão mais pontual com a lingüística, o próprio conceito de tradução como “problema teórico” é questionado por Arrojo (1994) em texto programático cuja perspectiva é resumida da seguinte forma: O objetivo principal deste ensaio é examinar o contraste entre a concepção tradicional de tradução, referendada pelas principais disciplinas que se dedicam ao estudo da linguagem a partir de uma perspectiva logocêntrica, para as quais a tarefa do tradutor é necessariamente um “problema” e, muitas vezes, uma impossibilidade ou até mesmo um constrangimento, e as reflexões que começaram a proliferar particularmente no final da década passada [anos 80], de inspiração pósestruturalista ou pós-moderna, e que liberam a tradução de seu estigma milenar de “problema teórico”. Essa mudança de paradigma abre perspectivas animadoras para a tradução não apenas como objeto de estudos da linguagem, mas também para sua prática. (Arrojo, 1994: 39)

Aqui, problema de tradução passa a ser antes de tudo um estigma a ser superado, sob duas perspectivas. A primeira, mais importante para nossa discussão, é de natureza epistemológica, na medida em que o “estigma milenar” estaria calcado no essencialismo da concepção “logocêntrica” de linguagem e significado. Note-se que a tradição caracterizada por Arrojo (via Derrida) como logocêntrica não é outra senão aquela que Wittgenstein associa à concepção referencialista ou agostiniana de linguagem:

Ver também Arrojo (1992c). Para evitar mal-entendidos, note-se de passagem que, no argumento de Arrojo (1992b: 75), o termo significado tem amplitude maior do que a que lhe cabe em outras discussões, como, por exemplo, na oposição sentido vs. significado (Sinn vs. Bedeutung) de Frege (mantida por Wittgenstein no Tractatus); ou o significado (Bedeutung) como uso (Gebrauch) ou aplicação (Anwendung) na obra tardia de Wittgenstein; ou ainda na oposição significado vs. significante (signifié vs. signifiant) de Saussure. 3

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In diesen Worten [von Augustinus] erhalten wir, so scheint es mir, ein bestimmtes Bild von dem Wesen der menschlichen Sprache. Nämlich dieses: Die Wörter der Sprache benennen Gegenstände – Sätze sind Verbindungen von solchen Benennungen. – In diesem Bild von der Sprache finden wir die Wurzeln der Idee: Jedes Wort hat eine Bedeutung. Diese Bedeutung ist dem Wort zugeordnet. Sie ist der Gegenstand, für welchen das Wort steht. (Philosophische Untersuchungen [ab jetzt PU] § 1)

Nessas palavras [de Santo Agostinho] temos, assim me parece, uma determinada imagem da essência da linguagem humana. A saber, esta: as palavras da linguagem denominam objetos – frases são ligações de tais denominações. – Nessa imagem da linguagem encontramos as raízes da idéia: cada palavra tem um significado. Esse significado é agregado à palavra. É o objeto que a palavra substitui. (Investigações Filosóficas [doravante IF] § 1)4

No entanto, ainda que a tradição referida seja a mesma em Wittgenstein e Derrida, o modo de caracterizá-la e as soluções propostas para superá-la são distintos. A desconstrução de inspiração derridiana enfatiza o jogo como deslocamento contínuo dos sentidos, descartando qualquer possibilidade de fechamento, ainda que virtual, pois a esse poderá – e deverá, necessariamente – seguir-se nova abertura, novo deslocamento de sentido. Associando a idéia de fechamento ou de estabelecimento de limites à aceitação de um fundamento último (cuja possibilidade nega veementemente), a desconstrução tem dificuldades em responder às críticas de relativismo epistemológico que lhe são freqüentemente endereçadas. Wittgenstein, por sua vez, desenvolve em sua obra tardia a noção de uma terapia conceitual dos fundamentos metafísicos como razão última, mas não descarta a idéia de fundamento, do estabelecimento de limites para o sentido – ou seja, para ele, a possibilidade, e mesmo a necessidade de fechamento continua a ser crucial. Tais fundamentos, no entanto, seriam sem fundamento (último), pois têm por base as convicções de nossas formas de vida – a “rocha dura” em que nossa pá entorta quando não mais podemos fornecer razões, ou “justificações”, e por isso dizemos simplesmente “é assim que eu ajo” (IF § 217). Retenhamos, por ora, a hipótese da existência de uma certa afinidade de projetos entre a desconstrução e a terapia filosófica, aliada a profundas diferenças nos

Ao citar trechos publicados em outras línguas, dei prioridade à minha própria tradução. Citações mais longas da obra de Wittgenstein são apresentadas em alemão e português, face a face. Vide referências bibliográficas para traduções já publicadas em português. 4

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seus procedimentos e resultados.5 Voltarei a esse tema mais adiante, para indagar sobre suas implicações para nosso entendimento do que sejam tradução e/ou problemas de tradução. Uma outra dimensão a ser considerada na superação do “estigma” caracterizado por Arrojo é a institucional, aquela ligada ao surgimento e à consolidação dos Estudos da Tradução como campo de pesquisa autônomo, com lugar próprio na academia, i.e. não mais como apêndice de disciplinas como a Lingüística ou a Literatura Comparada. As “reflexões (...) de inspiração pós-estruturalistas ou pós-modernas” que, como nos lembra Arrojo (1994: 39), começaram a proliferar nos anos 80, levaram nesse meio tempo à consolidação de diversas vertentes de pesquisa na área, voltadas para temas como tradução e pós-colonialismo, tradução e estudos do gênero, tradução e psicanálise, tradução audiovisual e – last but not least – tradução e desconstrução. É nessa última vertente que recai nosso interesse, exatamente pelo fato de fazer uma crítica à tradição filosófica ocidental, ao questionar as bases epistemológicas comuns a diferentes discursos teóricos sobre a tradução.6 Embora certamente tal discussão não seja senão uma das questões em destaque no debate contemporâneo na área, hoje sua relevância já não é mais ignorada mesmo por aqueles que sustentam posições diametralmente opostas às pósestruturalistas, ou pós-modernas. Atestam tal relevância algumas polêmicas registradas na literatura especializada, da qual destacarei dois exemplos. O primeiro deles é uma controvérsia de meados dos anos 90 na revista TradTerm, publicada pela USP, sobre os alcances de diferentes “teorias da tradução”.7 O segundo caso é o fórum “bases comuns nos estudos da tradução”, que teve lugar de 2000 a 2002 em cinco volumes da revista israelense Target (12:

Um desenvolvimento inicial dessa hipótese, já sob a ótica da tradução, pode ser lido em “A gramática wittgensteiniana como alternativa à polarização fidelidade vs. différance nos estudos da tradução” (Oliveira, 2005). 6 Ferreira & Ottoni (2006) e Nascimento (2005: 271-309) fornecem dois painéis bastante representativos da pesquisa mais recente feita sob essa égide no Brasil. 7 Cf. Pym (1995) e Arrojo (1996). 5

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1, 12: 2; 13: 1, 13: 2; 14), com a participação de nada menos que 17 autores, vinculados a centros de excelência em tradução em diversos países.8 Um dos resultados desse debate, tomado num sentido mais amplo, não restrito aos exemplos que acabo de citar, foi que alguns conceitos tradicionais como fidelidade e transparência da tradução perderam seu estatuto central, ou regulador, nos Estudos da Tradução. Ainda que defendidos por muitos pesquisadores, tais princípios deixaram de pertencer à “base comum” da área como um todo, i.e. deixaram de ser hegemônicos, passando a ser critério de identificação de uma postura que poderíamos qualificar como mais conservadora, mais identificada com a concepção de linguagem chamada de logocêntrica pela desconstrução, ou de referencialista pelo segundo Wittgenstein. Como desenvolvimento paralelo, cresceu a aceitação Cf. Chesterman, A. (Universidade de Helsinki), Arrojo, Rosemary (Unicamp). Shared Ground in Translation Studies. Target 12: 1, 2000, pp.151-160. PYM, Anthony (Universidade Rovira i Virgiili, Tarragona). Why Common Ground is Not Automatically Space for Cooperation. Target 12: 2, 2000, pp. 334-362. Siemoni, D. (Universidade de York, Toronto). When in Doubt, Contextualize ... Target 12: 2, 2000, pp. 337-341. Malmkajær, K. (Universidade Middlelesex, Londres). Relative Stability and Stable Relativity. Target 12: 2, 2000, pp. 341-345. Sela-Sheffy, R. (Universidade de Tel Aviv). The Suspended Potential of Cultural Research. Target 12: 2, 2000, pp. 345-355. Halverson, S. (Universidade de Bergen). The Fault Line in Our Common Ground. Target 12: 2, 2000, pp. 356-362. Gilles, D. (Universidade Lumière Lyon 2). Being constructive about shared ground. Target 13: 1, 2001, pp. 149-158. Mossop, B. (Escritório de Tradução do Governo Canadense e Escola de Tradução da Universidade de York). Why should we seek common ground? Target 13: 1, 2001, pp. 158-168. Neubert, A. (Universidade de Leipzig). Shared ground in Translation Studies dependent on shared views of looking at translation. Target 13: 2, 2001, pp. 333-338. Tirkkonen-Condit, S., Mäkisalo, J., Jääskeläienen, R., Kalasniemi, M., Kujmäki, P. (Escola de Estudos da Tradução de Savonlinna, Finlândia). Do we need a shared ground? Target 13:2, 2001, pp.339-343. Steiner, E. (Universidade de Saarland, Saarbrücken). How (translated and otherwise interlingual) texts work is our way into what, why and to what effects. Target 13: 2, 2001, pp. 343-348. Rose, M.G. (Universidade de Nova York, Binghamton). A senior surveys the common grounds. Target 13: 2, 2001, pp. 348-350. Arrojo, R. (Unicamp). Lessons learned from Babel. Target 14: 1, 2002, pp. 137-143. Chesterman, A. (Universidade de Helsinki). Shared ground revisited. Target 14: 1, 2002, pp. 143-148. 8

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de conceitos mais recentes, como a idéia de autoria (ou co-autoria) do tradutor, hoje defendida até por pesquisadores que não abandonaram de todo o conceito de fidelidade e concentram boa parte de sua pesquisa na chamada tradução técnica – como é o caso de Francis Aubert.9 Uma vez ressaltada a importância da questão epistemológica no debate contemporâneo sobre a tradução, cumpre agora registrar, ainda que de modo extremamente breve, os canais privilegiados na interlocução com a filosofia. Tendo em vista a crítica pós-moderna à tradição, não surpreende que os autores privilegiados sejam aqueles que se propuseram, de algum modo, a combater a metafísica filosófica. Ao lado de Derrida, encontramos sobretudo nomes como Nietzsche, Heidegger, Foucault, Rorty, Quine e Davidson, mas também há referências recorrentes a autores de outras extrações, como Benjamin e Schleiermacher. Surpreende talvez o modo escasso como Wittgenstein freqüenta essa lista. É bem verdade que pesquisadores de destaque na área, como Gideon Toury (1980) e Lawrence Venutti (1995) lançam mão de alguns conceitos wittgensteinianos, como jogo de linguagem e semelhança de família, no desenvolvimento de sua reflexão sobre o processo tradutório e a dimensão cultural da tradução. Mas não há, ainda, nenhum projeto de exploração mais sistemática do legado wittgensteiniano para os Estudos da Tradução. É aqui que se localiza o projeto maior ao qual me referi no início do texto: explorar a linha divisória entre a tradição essencialista, i.e. entre a concepção de linguagem de extração logocêntrica (nos termos de Derrida) ou referencialista (nos termos de Wittgenstein), e as propostas de sua superação, nessas duas perspectivas, no tocante às implicações daí decorrentes para o nosso entendimento do que venha a ser tradução, ou problemas de tradução. Tal projeto pressupõe, por um lado, uma certa afinidade entre a perspectiva pós-moderna e a terapia Refiro-me aqui a debate realizado em 2000, no âmbito da Bienal do Livro de São Paulo, com a participação de Donaldo Schüler, Francis Aubert, Márcio Seligmann Silva e Rosemary Arrojo, pensadores com visões assaz díspares em outras questões (Saber, 2000: 24-27). Sobre o tema da fidelidade, confronte-se a posição defendida por Aubert (1994) em As (in)fidelidades da Tradução com aquela de Arrojo no capítulo dedicado a esse tema em Oficina de Tradução (1986: 38-46), republicado em coletânea austríaca sob o título de “Uma nova concepção de „fidelidade‟” (1997a). 9

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conceitual, opondo-as claramente à tradição. Por outro lado, busca-se também uma outra discussão, mais fina, sobre as diferenças profundas que distinguem essas duas propostas de superar a tradição. É sobre esse pano de fundo que indagarei acerca da existência de um conceito de tradução claramente delineado dentro da obra do próprio filósofo austríaco, e sobre a possibilidade de tomá-lo como base para uma reflexão conceitual relevante para os Estudos da Tradução, enquanto área de pesquisa hoje já claramente consolidada. Recapitulemos, pois, as diferentes perspectivas sob as quais é possível indagar sobre os problemas de tradução: como defeito, na operacionalização da “teoria invisível do tertium comparationis”, tal como caracterizada por Bassnett & Lefevere (1990); como impasse ou dificuldade aparentemente insuperável, na ótica de uma teoria da tradução de base científica (Mounin, 1975); como estigma a ser superado, por razões epistemológicas e institucionais, segundo a discussão pós-moderna (Arrojo, 1992b, 1992c, 1994). Podemos agora agregar uma outra: problema de tradução como questão que merece ser investigada, a despeito da inexistência de uma qualquer teoria geral da tradução que desse conta, de uma vez por todas, e de modo sistemático, das questões colocadas. Tal perspectiva seguiria um caminho apontado nas Observações sobre as cores: “É bem verdade que não há uma fenomenologia, mas sim problemas fenomenológicos” (Wittgenstein, 1977: I, § 53; III, § 248).10 Seguindo por essa trilha, correremos talvez menos riscos de jogar fora a criança junto com a água do banho, como aparenta fazer a desconstrução em algumas de suas vertentes mais radicais, ou mais radicalmente relativistas. No horizonte do caminho de inspiração wittgensteiniana, estaria a exploração de uma gramática dos conceitos de tradução, ou uma gramática dos usos desses conceitos.11 Num certo sentido, é isso o que me proponho a fazer a seguir, ao investigar como o próprio Wittgenstein mobiliza o termo tradução em diversos momentos de sua obra.

No original: “Es gibt zwar nicht Phänomenologie, wohl aber phänomenologische Probleme”. Devo a Arley Moreno tanto o paralelo com a discussão fenomenológica quanto a proposta de uma gramática dos conceitos de tradução. 10 11

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2. Síntese: tradução como tarefa matemática Há, nas Fichas de Wittgenstein, um aforismo que permite caracterizar de modo sintético alguns dos pontos cardinais da linha demarcatória entre a tradição e a reflexão pósestruturalista, no tocante à tradução. Esse mesmo aforismo nos permitirá também apontar para uma diferença crucial entre a desconstrução e a terapia conceitual. Por esse motivo, ele será nosso ponto de partida e de chegada na discussão dos usos do termo na obra do filósofo austríaco: Übersetzen von einer Sprache in die andere, ist eine mathematische Aufgabe, und das Übersetzen eines lyrischen Gedichts z.B. in eine fremde Sprache ist ganz analog einem mathematischen Problem. Denn man kann wohl das Problem stellen “Wie ist dieser Witz (z.B.) durch einen Witz in der andern Sprache zu übersetzen?”, d.h. zu ersetzen; und das Problem kann auch gelöst sein; aber eine Methode, ein System zu seiner Lösung gab es nicht. (Zettel § 698)

Traduzir de uma língua para outra é uma tarefa matemática, e traduzir p. ex. um poema lírico para uma língua estrangeira é muito análogo a um problema matemático. Pois pode-se certamente colocar o problema “Como deve ser (p. ex.) traduzida” – i.e. substituída – “essa piada por uma piada na outra língua?”; e o problema pode também estar resolvido; mas um método, um sistema para sua resolução, não houve. (Fichas § 698)

Temos aqui, desde já, a idéia de tradução como problema a ser resolvido, como questão que merece nossa atenção. Note-se que tal problema não recebe o estatuto de um impasse, no sentido de Mounin (1975), nem de um defeito, nos termos da tradição que mobiliza o tertium comparationis. A resolução do problema é uma tarefa, é algo a ser feito. Esse caráter operatório da tarefa fica evidente inclusive na escolha do termo traduzir (das Übersetzen), verbo substantivado que coloca a ênfase no processo, em oposição ao substantivo tradução (die Übersetzung), que em português pode designar tanto processo como produto, mas em alemão tende a enfatizar o produto, ou a atividade (de modo geral). Não se questiona tampouco a exeqüibilidade da tarefa, posto que o problema pode também já estar resolvido. Por outro lado, nega-se que a resolução do problema fosse, ou tivesse sido, dependente de um sistema, de um método rigoroso e previsível que levasse, inexoravelmente, a essa solução (e não outra). Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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Por esse motivo, não surpreende que o aforismo seja usado como epígrafe de um texto que se propõe a combater a concepção logocêntrica das “teorias de tradução, em especial [d]aquelas que alimentam a ilusão de chegar, um dia, a uma sistematização do processo de traduzir” (Arrojo, 1992a: 68). Como início de nossa discussão, registremos, por ora, que a crítica ao logocentrismo das teorias de tradução nos termos de Arrojo é certamente compatível com a perspectiva do aforismo das Fichas. Deixarei a discussão mais fina, sobre as diferenças entre essas duas perspectivas (a questão dos limites), para o final do texto, após termos visitado alguns pontos de relevo no desenvolvimento da obra de Wittgenstein. Retenhamos também que o aforismo lança mão de uma analogia entre domínios muito diversos, como a matemática e a literatura. Qual seria o sentido dessa analogia, qual sua função argumentativa? Dentro da própria analogia, parece haver uma gradação, entre tarefa e problema, contrapostas a poema lírico e piada. Poder-se-ia concluir que, no caso da matemática (e sobretudo da tarefa matemática), Wittgenstein admitiria a possibilidade de um método, de uma solução sistemática e dotada de previsibilidade, ao passo que o termo problema seria reservado exatamente para os casos em que há evidente dificuldade, comparável então às dificuldades do lírico ou do humor? Ou seria outra a função da analogia? Essas questões nortearão a escolha e a interpretação dos outros trechos a serem discutidos, na procura de uma resposta à questão maior sobre a existência – ou não – de um conceito de tradução claramente delineado na obra de Wittgenstein. Em havendo tal conceito, e sendo ele compatível com a perspectiva da obra tardia, certamente teríamos de levá-lo em conta e conferir-lhe um lugar central num projeto que se propõe a fazer distinções finas entre a desconstrução e a terapia conceitual. Na inexistência ou não-centralidade desse conceito, caberia utilizá-lo para uma compreensão mais refinada da obra do filósofo, porém sem atribuir-lhe o mesmo estatuto que o reservado a conceitos seminais como jogo de linguagem, gramática, seguir regras e semelhança de família – para ficarmos apenas com alguns dos mais comumente referidos.

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3. O que é tradução – nos termos de Wittgenstein? Para responder a essa questão numa perspectiva histórica, recorri inicialmente à versão eletrônica da obra publicada do filósofo, disponível na coleção Past Masters. Foi utilizado sobretudo o termo tradução (Übersetzung, translation) como critério de busca, complementado por variantes como traduzir (Übersetzen, translate) e traduzido (übersetzt, translated). Na seqüência, selecionei as ocorrências mais representativas, obtidas em sua maior parte com base no termo principal de busca. Em alguns casos, o contexto imediato dos aforismos parecia ser o suficiente para uma interpretação adequada do uso do termo tradução naquele momento. Em outros, foi necessária uma leitura mais abrangente, que situasse tal utilização no fluxo do argumento desenvolvido pelo filósofo. Na discussão dos casos escolhidos, ficou evidente que, mesmo quando o contexto imediato parecera suficiente, o recurso à ampliação desse contexto e a consulta a outras fontes faziam-se necessários para uma interpretação mais rigorosa. De um ponto de vista wittgensteiniano, tal conclusão não é trivial, e aplica-se aos próprios conteúdos em discussão nos trechos selecionados. Em sua análise do chamado “período intermediário” de Wittgenstein, David Stern (1991) ressalta a importância de se levarem em conta os “problemas de fundo” dos quais o filósofo se ocupava (ibid: 204). Foi esse o principal critério adotado em minhas escolhas: o trecho deveria permitir situar o uso do termo, ou do conceito de tradução aplicado nessa discussão dos problemas de fundo. Além disso, utilizei ainda o critério da concisão, ou economia: por se tratar da descrição de um itinerário, cada trecho deveria possibilitar uma caracterização do momento em que se insere sem implicar uma discussão demasiadamente ampla desse momento, a qual pudesse acarretar uma perda do foco em jogo no meu próprio argumento. Nesse sentido, é importante frisar que a supracitada ampliação do contexto de certos trechos visa possibilitar uma caracterização adequada, porém sem a pretensão de discutir a fundo cada um dos conceitos implicados nesse contexto. Por fim, como já mencionado anteriormente, mantive como horizonte o aforismo das Fichas que sintetiza a interlocução mais geral com a área de Estudos da Tradução. Na medida do possível, os trechos selecionados

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deveriam fornecer subsídios para responder às questões levantadas pela analogia entre matemática e tradução no aforismo das Fichas. Esse é, em síntese, o recorte feito.12

3.1. O Tractatus No Tractatus (TLP), há apenas três momentos em que se fala de tradução. O primeiro deles está na seção 3: Definitionen sind Regeln der Übersetzung von einer Sprache in eine andere. Jede richtige Zeichensprache muß sich in jede andere nach solchen Regeln übersetzen lassen: Dies ist, was sie alle gemeinsam haben. (3.343)

Definições são regras de tradução de uma língua para uma outra. Toda verdadeira língua de signos deve deixar-se traduzir em todas as outras por meio de tais regras: é isso o que todas elas têm em comum. (3.343)

Quiséssemos nós lançar mão do tertium comparationis, há toda uma gama de aspectos passíveis de discussão no cotejo entre as várias traduções desse aforismo a que tive acesso, em inglês e português. O que nos interessa, no entanto, é apenas situar o uso do termo no argumento desenvolvido por Wittgenstein nesse momento. O mesmo raciocínio aplica-se aos demais trechos escolhidos, exceção feita a alguns detalhes pontuais mais relevantes, sobretudo na discussão final do aforismo das Fichas, que merecerá uma análise mais detalhada. Aqui, no aforismo 3.343 do Tractatus, tradução designa uma correspondência exata, de acordo com as regras de projeção da teoria pictórica. Isso porque a “regra de tradução” visa o que é comum a ambas, ou a “todas” as línguas de signos (Zeichensprachen). Nesse sentido, a

Embora certamente não exaustivo, julgo tal recorte representativo o suficiente para não incorrermos em erros ou distorções mais graves. Essa hipótese foi reforçada pelo cotejo com alguns textos até então inéditos, como os Ditados de Wittgenstein a Waismann e para Schlick (Soulez, 1997), onde não encontrei nenhum exemplo que fugisse dos parâmetros estabelecidos com base na obra publicada, tal como disponível na coleção Past Masters. O acesso ao Nachlass de Wittgenstein só foi possível mais tarde, quando a hipótese de trabalho já estava consolidada, e serviu para confirmar questões de datação. 12

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“regra de tradução” remete à forma lógica subjacente à própria linguagem, com validade para todas suas variantes – das línguas naturais às notações simbólicas, como na lógica e na matemática. Note-se que, nos aforismos imediatamente anteriores, Wittgenstein distingue entre o uso essencial e o não-essencial de um signo (3.327 e segs.). É isso o que difere o símbolo (das Symbol), o qual concentra aquelas características essenciais que permitem sua aplicação (Anwendung), face a um signo (Zeichen) qualquer, em que podem também estar presentes características não-essenciais. A essência do que pertence ao símbolo seria uma espécie de núcleo comum, exatamente aquele que garante a tradutibilidade mútua entre todas as possíveis notações, ou linguagens (cf. Black, 1964: 150). Isso fica evidente logo a seguir, quando lemos que o que designa no símbolo é o que há de comum a todos os símbolos passíveis de substituição na sintaxe lógica (TLP, 3.344; ênfases minhas). A idéia de um núcleo semântico duro, comum a todos os casos de utilização de um conceito, é precisamente aquilo que Wittgenstein irá questionar mais tarde, quando introduz a noção de semelhança de família nas Investigações Filosóficas (§§ 65 e segs.). A título de cotejo direto, retenhamos um trecho em que tal núcleo duro é questionado explicitamente: (...) Statt etwas anzugeben, was allem, was wir Sprache nennen, gemeinsam ist, sage ich, es ist diesen Erscheinungen gar nicht Eines gemeinsam, weswegen wir für alle das gleiche Wort verwenden, – sondern sind sie miteinander in vielen Weisen verwandt. Und dieser Verwandtschaft, oder diesen Verwandtschaften wegen nennen wir sie alle “Sprachen”. (PU § 65)

(...) Em lugar de indicar algo que é comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem, digo que não há uma coisa nenhuma comum a todos esses fenômenos, em virtude da qual empregamos a mesma palavra – mas sim que são aparentados uns aos outros de muitos modos. E é em função desse parentesco, ou desses parentescos, que chamamos a todos de “linguagens”. (IF § 65)

Note-se que a noção de semelhança de família coloca em questão a idéia de correspondência exata não apenas entre diferentes signos (ou palavras), mas também entre diferentes usos do mesmo signo. Isso não significa, porém, que a correspondência exata pudesse continuar a ser um parâmetro, do ponto de vista das Investigações, pois se ela é questionável no caso daquilo que é aparentemente o mesmo, também o será quando houver diferença na forma externa do signo. Resta a possibilidade de uma correspondência de uso, caso a caso. De todo modo, o Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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mais importante é reter que, no aforismo 3.343 do Tractatus, o termo tradução mobiliza a noção de forma lógica subjacente à utilização dos signos. Nos dois trechos seguintes, situados bem próximos um do outro no início da seção 4, é a teoria pictórica que organiza toda a discussão. O primeiro contém uma célebre analogia entre as diferentes formas de expressão musical: sinfonia, partitura e disco. Retomo três aforismos quase na íntegra, pois sua seqüência já permite perceber claramente o papel atribuído à idéia de tradução no edifício tractariano, sem a necessidade de uma discussão mais alongada:

Die Grammofonplatte, der musikalische Gedanke, die Notenschrift, die Schallwellen, stehen alle in jener abbildenden internen Beziehung zu einander, die zwischen Sprache und Welt besteht. Ihnen allen ist der logische Bau gemeinsam (...). (4.014)

O disco gramofônico, a idéia musical, a escrita musical, as ondas sonoras, estão todos um para o outro na mesma relação de figuração interna que existe entre a linguagem e o mundo. A todos é comum a estrutura lógica (...). (4.014)

Dass es eine allgemeine Regel gibt, durch die der Musiker aus der Partitur die Symphonie entnehmen kann, durch welche man aus der Linie auf der Grammofonplatte die Symphonie und nach der ersten Regel wieder die Partitur ableiten kann, darin besteht eben die innere Ähnlichkeit dieser scheinbar so ganz verschiedenen Gebilde. Und jene Regel ist das Gesetz der Projektion, welches die Symphonie in die Notensprache projiziert. Sie ist die Regel der Übersetzung der Notensprache in die Sprache der Grammofonplatte. (4.0141)

Que haja uma regra geral por meio da qual o músico pode extrair a música da partitura, pela qual se pode derivar a sinfonia dos sulcos do disco e, segundo a primeira regra, derivar novamente a partitura, é precisamente nisso que consiste a semelhança interna dessas configurações aparentemente tão díspares. E essa regra é a lei da projeção, que projeta a sinfonia na linguagem das notas musicais. Ela é a regra da tradução da linguagem das notas para a linguagem do disco gramofônico. (4.0141)

Die Möglichkeit aller Gleichnisse, der ganzen Bildhaftigkeit unserer Ausdrucksweise, ruht in der Logik der Abbildung. (4.015)

A possibilidade de todos os símiles, toda a figuratividade de nosso modo de expressão, repousa na lógica da afiguração. (4.015)

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Este é o ponto em que mais próximo chegamos de uma definição de tradução no Tractatus: ela é uma lei de projeção, uma regra geral que permite transitar entre diferentes linguagens, aparentemente díspares, mas que comungam uma mesma estruturação interna, a qual não reflete outra coisa senão a forma lógica da proposição. Note-se, no entanto, um detalhe: é o termo tradução que é usado para definir a regra de projeção, e não o contrário.13 Nesse sentido, Wittgenstein mobiliza o termo de modo semelhante ao que fez no aforismo 3.343, i.e. como possibilidade de correspondência exata, ainda que com algumas distinções. Em 3.343, fala-se da possibilidade de tradução entre diferentes linguagens, sem intervenção do mundo. Aqui, entra em jogo também a relação entre linguagem e mundo, pois o que caracteriza o símbolo é exatamente sua capacidade de afigurar os fatos (possíveis – independentemente de serem verdadeiros ou não).14 Poderíamos ilustrar tal relação através do seguinte esquema: A partitura

 FL 

B sinfonia

 FL 

C disco

É possível traduzir entre partitura, sinfonia e disco porque os três fatos possuem a mesma estruturação interna. Nesse sentido, é a forma lógica comum que permite a passagem É sintomático que, no índice remissivo da tradução para o inglês de C.K. Ogden (Londres: Routledge, 2000), o conceito de tradução seja listado como critério para “o que é comum a todos os símbolos” (p. 206). Se a tradução é o critério, não é ela o que é definido, mas sim o que define. Mobilizase o conceito, também não definido explicitamente algures, embora possa-se claramente dizer que ele significa uma correspondência exata, nos termos de 3.343 – onde, de resto, ocorre o mesmo: definição é uma regra de tradução, mas não se diz o que é propriamente a tradução. Também não é dito se haveria outras regras de tradução, muito menos quais seriam essas outras regras. 14 Vide também os aforismos 2.15 e segs., onde se discute em detalhe essa relação entre mundo e linguagem. Retenhamos ao menos três deles: “A relação afiguradora consiste nas coordenações entre os elementos da figuração e as coisas” (2.1514). “Essas coordenações são, por assim dizer, as antenas dos elementos da figuração, com as quais ela toca a realidade” (2.1515). “O fato, para ser uma figuração, tem de ter algo em comum com o figurado” (2.1516). 13

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de uma coisa à outra. De modo semelhante, é a forma lógica comum a diferentes linguagens (línguas naturais ou notações simbólicas) o que permite a tradução, ou passagem de uma à outra. Não é difícil identificar essa relação de afiguração entre linguagem e mundo como sendo precisamente aquele modelo que Wittgenstein associa a uma concepção referencialista (ou agostiniana) de linguagem, no supracitado início das Investigações Filosóficas (§ 1): “ (...) as palavras da linguagem denominam objetos – frases são ligações de tais denominações. (...) cada palavra tem um significado. Esse significado é agregado à palavra. É o objeto que a palavra substitui.” Para um projeto que procura mobilizar a obra tardia de Wittgenstein, i.e. sua terapia conceitual, como alternativa à crítica feita pela desconstrução à tradição que denomina logocêntrica, as implicações da assimilação entre o modelo agostiniano e a teoria pictórica são diretas e profundas. Se é sobre esse modelo, ou seja, sobre a concepção agostiniana de linguagem que incide de modo mais explícito a terapia conceitual, tal modelo não pode servir de base para uma reflexão sobre os fenômenos tradutórios enquanto problemas ou questões que merecem nossa atenção, tal como definido mais acima. Pelo contrário: se o conceito de tradução é mobilizado dentro do modelo referencialista, ele servirá preferencialmente como imagem da qual se deve fazer a terapia, e não como ponto de orientação no bom caminho a ser seguido.15 Sabemos que, apesar da enorme repercussão da obra do primeiro Wittgenstein na filosofia contemporânea, ou mesmo em função dessa mesma repercussão, a concepção de linguagem do Tractatus já foi alvo de inúmeros tipos de crítica. Nenhuma delas, no entanto, foi tão rigorosa quanto a do próprio Wittgenstein em sua obra tardia, como lembra, por exemplo, Garth Hallet (1967: 4) em seu longo e profundo estudo sobre a noção de significado coIsso não significa descartar por completo as relações de projeção ou correspondência exata, em jogos de linguagem bem circunscritos. No entanto, cabe definir bem o escopo desses jogos de linguagem e o papel que as relações de equivalência exercem dentro deles, levando em conta também o modo como isso é feito, i.e. a inserção desses jogos de linguagem (como a matemática, a geometria, mas também a literatura, o humor etc.) nas diferentes formas de vida contempladas na operação tradutória. 15

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mo uso na linguagem (cf. IF § 43). Nesse estudo, Hallet (ibid: 174, n. 28) menciona um comentário feito por Wittgenstein a Malcolm (1958: 69), segundo o qual “no Tractatus, ele [Wittgenstein] teria apresentado um cômputo perfeito de uma visão que é a única alternativa ao ponto de vista de sua obra tardia”. Até que ponto a desconstrução alinharia a concepção do Tractatus à tradição logocêntrica, é algo que pode ser inferido com uma boa dose de certeza, porém sem uma confrontação mais direta. Merece registro o fato de que Derrida, cuja obra desdobra-se num diálogo direto e explícito com a tradição filosófica, em termos bastante amplos, nunca desenvolveu uma interlocução específica com Wittgenstein. Isso não nos desautoriza, no entanto, a alinhar a concepção do Tractatus à tradição essencialista combatida pela desconstrução, ainda que Wittgenstein considere o modelo tractariano superior às propostas concorrentes. Pelo contrário, tal perspectiva reafirma a força da terapia conceitual como postura adequada para dar conta do essencialismo, seja ele na acepção tractariana ou nos modelos concorrentes da tradição filosófica. Mas é preciso ter o cuidado de não mobilizar os conceitos pertencentes à fase inicial como se eles tivessem sido pensados na perspectiva da obra tardia. O último trecho do Tractatus a ser levado em consideração fornece, por sua vez, um bom exemplo de um outro tipo de risco a ser evitado: Die Übersetzung einer Sprache in eine andere geht nicht so vor sich, dass man jeden Satz der einen in einen Satz der anderen übersetzt, sondern nur die Satzbestandteile werden übersetzt. (Und das Wörterbuch übersetzt nicht nur Substantiva, sondern auch Zeit-, Eigenschafts- und Bindewörter etc.; und es behandelt sie alle gleich.) (4.025)

A tradução de uma linguagem para outra não se dá como se cada proposição de uma linguagem se traduza para uma proposição da outra, se traduzem apenas as partes constituintes da proposição. (E o dicionário não traduz apenas substantivos, mas também palavras de tempo, qualidade e ligação etc.; e ele as trata todas de modo igual.) (4.025)

A tradução do aforismo em si coloca algumas dificuldades em relação à escolha dos termos adequados, no tocante a Sprache e Satz, por exemplo. No contexto da discussão lógica

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feita no Tractatus, os dois termos vêm como linguagem e proposição nas duas traduções brasileiras.16 Essas escolhas, adequadas, limitam o risco de entendermos os dois termos como referindo-se respectivamente a língua (natural) e frase (com as variantes sentença e oração). No contexto da lógica, fica evidente que a exigência de que se traduzam apenas as partes da proposição está ligada à concepção tractariana de independência das proposições elementares. Em seu companion ao Tractatus, Max Black (1964: 171) nos lembra que, como a essência da proposição é “ser articulada”, fica “fácil entender por que apenas os constituintes precisam ser traduzidos quando se passa de uma linguagem a outra”. Isso explica também a analogia ao modo como o dicionário trata as diferentes classes de palavras, posto que “as diferenças gramaticais entre verbos, adjetivos e outras partes da fala não correspondem a nada fundamental na lógica de nossa linguagem” (ibid: 172). O aforismo seguinte ajuda a entender esse raciocínio: Die Bedeutungen der einfachen Zeichen (der Wörter) müssen uns erklärt werden, dass wir sie verstehen. Mit den Sätzen aber verständigen wir uns. (4.026)

Os significados dos signos simples (as palavras) precisam nos ser explicados, para que possamos entendê-los. Com as proposições, porém, nós nos entendemos. (4.026)

Se entendêssemos Sprache como língua e Satz como frase (ou oração), poderíamos talvez ser levados a pensar que Satzbestandteile englobaria não apenas as partes (articuladas) da oração, mas também as palavras isoladamente (até mesmo em função da referência às diferentes classes de palavra contidas no dicionário). Nesse caso, poderíamos ser levados a mobilizar uma concepção ingênua de tradução, atribuindo-a a Wittgenstein nesse trecho. Pior ainda: induzidos por essa percepção inadequada, poderíamos pensar que a relação entre as palavras numa oração e seu registro no dicionário fossem da mesma natureza que a regra de projeção entre a forma lógica e os diferentes fatos, nos termos do aforismo 4.0141. Levando adiante o

A primeira, de José Arthur Giannotti, é de 1968. A segunda, de Luiz Henrique L. dos Santos, é de 1993. Cf. referências bibliográficas. 16

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raciocínio, tal correspondência exata possibilitaria, sobretudo no trato de textos de áreas tidas como duras, tais como a matemática e a geometria, criar um algoritmo de substituição desses termos de uma língua para a outra. As limitações desse tipo de imagem são evidentes, e vêm à tona na tradução do próprio aforismo 4.025, cujo sentido proposicional, e mesmo o sentido proposicional de suas partes constituintes, só pode ser auferido levando-se em conta um contexto mais amplo, a saber, o fluxo argumentativo, os problemas de fundo diante dos quais tais proposições se colocam.17

Não quero com isso afirmar a impossibilidade da criação de algoritmos, inclusive como suporte a processos tradutórios, até porque é exatamente isso o que fazem os diferentes mecanismos de tradução automatizada, que hoje mobilizam inclusive preceitos da inteligência artificial. Trata-se apenas de salientar as limitações desses mecanismos, evidentes não só em termos de sua fundamentação teórica, mas também nos resultados concretos que permitem obter – apesar dos imensos ganhos na capacidade de processamento computacional e dos avanços da inteligência artificial nas últimas décadas. Por melhor que seja, o software de tradução tem hoje o simples estatuto de uma ferramenta de trabalho, a ser necessariamente complementada pela revisão humana – que é capaz, por sua vez, de estabelecer as relações contextuais não previstas no algoritmo utilizado. Nesse ponto, concordo com a crítica de Arrojo (1992b: 74), que atribui ao cientificismo a crença na possibilidade de um “algoritmo definitivo, supra-histórico e independente de qualquer sujeito”, uma atitude que seria cara ao logocentrismo, “à sua obsessão pelo lógico, pelo racional e à sua necessidade de rejeitar tudo o que seja subjetivo, contingente e dependente do contexto”. As dificuldades de fundamentação teórica da tradução automática, ou mecânica, são bem sintetizadas na crítica à Ciência da tradução de Wolfram Wilss feita por Bohunovski (2003): “É o próprio Wilss quem indica alguns motivos dessas dificuldades [de tradução mecânica] quando afirma, por exemplo, que „é difícil compreender os conceitos lingüísticos exclusivamente de forma algorítmica‟, pois a „linguagem se encontra sempre numa condição apenas relativamente estável‟” (Bohunovski, 2003: 100 – grifo da autora; Wilss, 1988: 237). A autora conclui então que “ao se considerar a possibilidade de a „estabilidade‟ da linguagem ser „sempre‟ relativa – isto é, também em textos „técnicocientíficos‟ – põe-se em cheque a possibilidade de uma tradução mecânica, visto que todas as pesquisas nessa área partem do princípio de que a tradução seria uma „série de programas algorítmicos‟” (Bohunovski, 2003: 100; Wilss, 1988: 170). 17

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No mais, a escolha adequada de proposição para traduzir Satz e de linguagem para Sprache mascara um problema, talvez explicitando algo que no texto de Wittgenstein não fica muito claro. Quando menciona as palavras (Wörter) como elucidação de signos simples (einfachen Zeichen), o filósofo abre espaço para que pensemos Satz não apenas como proposição, dentro do domínio da lógica, mas também como sentença, frase ou mesmo oração – termos que pertencem ao mesmo domínio de palavra, na gramática das línguas naturais.18 Ora, frase, sentença ou oração, no seu uso lingüístico, aplicado à realidade, tem outras implicações além de seu conteúdo proposicional. Tais implicações remetem ao domínio da pragmática, de modo complementar às questões semânticas. Acontece que, no Tractatus, o mundo é contemplado sub specie aeterni, de modo atemporal (cf. 6.45). Mas a aplicação da lógica, apenas mencionada mas não estudada no Tractatus (5.557), ocorre também no tempo, e – não só, mas também por isso – é do domínio da pragmática. Esse tema é retomado por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas, de modo muito explícito, quando introduz a noção de jogo de linguagem: Wie viele Arten der Sätze gibt es aber? Etwa Behauptung, Frage und Befehl? – Es gibt unzählige solcher Arten: unzählige verschiedene Arten der Verwendung alles dessen, was wir “Zeichen”, “Worte”, “Sätze”, nennen. Und diese Mannigfaltigkeit ist nichts Festes, ein für allemal Gegebenes; sondern neue Typen der Sprache, neue Sprachspiele, wie wir sagen können, entstehen und andre veralten und werden vergessen. (Ein ungefähres Bild davon können uns die Wandlungen der Mathematik geben.) Das Wort “Sprachspiel” soll hier hervorheben, dass das Sprechen der Sprache ein Teil ist einer Tätigkeit, oder einer Lebensform. (...)

Quantos tipos de frase existem? Afirmação, pergunta e ordem, talvez? – Há inúmeros desses tipos: inúmeros diferentes tipos de emprego daquilo que chamamos “signo”, “palavras”, “frases”. E essa pluralidade não é nada fixo, algo dado para sempre; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como poderíamos dizer, nascem, e outros envelhecem e são esquecidos. (Uma idéia aproximada disso pode nos ser dada pelas modificações da matemática). O termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é parte de uma atividade, ou de uma forma de vida. (...)

O próprio Wittgenstein discutiu esse tópico nos Ditados a Waismann, reafirmando que as palavras não devem ser tomadas como proposições, por elementares que fossem (cf. Soulez, 1997: 127-128). 18

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Wittgenstein e problemas da tradução – Es ist interessant, die Mannigfaltigkeit der Werkzeuge der Sprache und ihrer Verwendungsweisen, die Mannigfaltigkeit der Wort- und Satzarten, mit dem zu vergleichen, was Logiker über den Bau der Sprache gesagt haben. (Und auch der Verfasser der Logisch-Philosophischen Abhandlung.) (PU § 23)

197 – É interessante comparar a multiplicidade das ferramentas da linguagem e de seus modos de utilização, a multiplicidade de tipos de palavras e frases, com aquilo que os lógicos disseram sobre a estrutura da linguagem. (E também o autor do Tractatus Logico-Philosophicus.) (IF § 23)

Vimos, com base em alguns exemplos do Tractatus cotejados com a crítica que Wittgenstein lhes dirige nas Investigações, que os conceitos de tradução mobilizados na fase logicista devem ser tomados cum grano salis, se quisermos aplicá-los adequadamente numa discussão voltada para uma interface da Filosofia da Linguagem com a área de Estudos da Tradução. Nesse ponto, já podemos formular de modo bem claro a hipótese de que tradução não é um conceito central para o filósofo, que mobiliza o termo de diferentes maneiras, a depender do momento em que se encontra no desenvolvimento da obra. Nesse sentido, a utilização do termo é tributária dos conceitos centrais e dos matizes que eles adquirem na discussão dos diferentes “problemas de fundo” a que se referia David Stern (1991). Daí decorre minha hipótese maior, de que são a concepção de linguagem da obra tardia e os conceitos centrais dela decorrentes que fornecerão o instrumental adequado para uma discussão veramente wittgensteiniana nos Estudos da Tradução. Retenhamos essa perspectiva na análise dos próximos exemplos.

3.2. A fase intermediária Elemento fundamental da arquitetura tractariana, a tese da independência das proposições elementares também será abandonada no desenvolvimento posterior da obra de Wittgenstein. Como lembra Arley Moreno (1995), há duas dimensões na tese da independência do sentido proposicional. A primeira delas diz respeito a seu valor de verdade (ibid: 201); a segunda [que é a mobilizada no aforismo 4.025] trata da independência do sentido das proposições elementares face às outras proposições elementares (ibid: 203). Concentrando sua atenção nessa última dimensão, Moreno mostra que, por um curto período, tal idéia deu Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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lugar à procura de Wittgenstein por uma linguagem fenomenológica que desse conta dos casos onde há gradação dos predicados, como nas cores e nos sons. Esse projeto, no entanto, logo foi abandonado e deu lugar a uma preocupação cada vez maior pela aplicação dos conceitos nos diferentes jogos de linguagem e nas formas de vida em que esses estão inseridos. Não cabe aqui refazer todo o percurso descrito por Moreno, mas vale a pena reter a idéia de que Wittgenstein não abandonou a idéia do que seja o objeto, descartando apenas o projeto de descrever entidades autônomas e independentes do próprio uso que fazemos dos conceitos – mas não o projeto de descrever os elementos que estão na base do uso, i.e. na base das aplicações dos conceitos. (ibid.: 219).

Como se poderia, no entanto, “responder à legítima questão fenomenológica, sem construir uma Fenomenologia?” (ibid.). Segundo Moreno, a resposta estaria no desenvolvimento de uma “gramática dos usos” (ibid.: 221), cujos contornos foram se delineando através da remodelagem dos diferentes conceitos, comportando diversas transições. Como já mencionado na descrição de minha perspectiva geral de trabalho, uma tal gramática dos usos que fosse aplicada ao conceito de tradução poderia estar na base de uma proposta anti-essencialista alternativa àquela da desconstrução na área de Estudos da Tradução. Nesse sentido, discuto a seguir dois exemplos do chamado período intermediário, já tendo por horizonte seu caráter de transição, a ser entendido como uma tensão entre os dois pólos mais conhecidos da obra. Aqui, mais ainda do que na discussão anterior, a possibilidade de responder às perguntas levantadas por nosso aforismo inicial das Fichas serviu como critério de corte na seleção dos trechos mais relevantes. Nesse período, o conceito de tradução também é usado com uma função que poderíamos caracterizar como sendo de passagem (de uma etapa a outra), como evidencia um breve trecho da Gramática Filosófica: Wenn Du wissen willst, was der Ausdruck “Stetigkeit einer Funktion” bedeutet, schau‟ den Beweis der Stetigkeit an; der wird ja zeigen, was er beweist. Aber

Se você quer saber o que significa a expressão “constância de uma função”, observe a demonstração da constância; ela mostrará aquilo que demonstra. Mas

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Wittgenstein e problemas da tradução sieh nicht das Resultat an, wie es in Prosa ausgedrückt ist und auch nicht, wie es in der Russell‟schen Notation lautet, die ja bloß eine Übersetzung des Prosaausdrucks ist; sondern richte Deinen Blick dorthin, wo im Beweis noch gerechnet wird. Denn der Wortausdruck des angeblich bewiesenen Satzes ist meist irreführend, denn er verschleiert das eigentliche Ziel des Beweises, das in diesem mit voller Klarheit zu sehen ist. (PG § 369)

199 não observe o resultado tal qual expresso em prosa, nem tampouco como ele é dito na notação de Russell, que é apenas uma tradução da expressão em prosa; pelo contrário, direcione sua atenção para o lugar onde ainda se calcula na demonstração. Pois a expressão em palavras do teorema alegadamente demonstrado é, no mais das vezes, enganosa, pois mascara o verdadeiro objetivo da demonstração, que nela pode ser visto com toda clareza. (GF § 369)

Temos aqui alguns aspectos a serem destacados. Por um lado, tradução continua a implicar igualdade, ou equivalência: isso porque o resultado “expresso em prosa” é a mesma coisa do que na “notação de Russell”. Ambos, por sua vez, não são o cálculo, ou a própria demonstração. Ou seja, há uma equivalência exata (= uma tradução) entre duas coisas que não mostram aquilo que devia ser mostrado, a saber, “o objetivo da demonstração”. Pelo contrário, em ambos os casos, o resultado assim expresso “mascara” tal objetivo. Aqui, persiste a idéia de que a linguagem natural – e a notação de Russell – seria(m) imprecisas(s), ou melhor, ambíguas, e que por isso mascaram o ver correto. Tal idéia fica muito evidente quando se cotejam outros aforismos do mesmo texto. Em 266, por exemplo, Wittgenstein apresenta vários casos onde “se utiliza „($ ...)‟ na notação de Russell, e cada vez com uma gramática diferente”, e conclui: “Com isso quero dizer, portanto, que não houve grande ganho com a tradução da linguagem verbal [Wortsprache] para a notação de Russell”. Mais adiante, ao discutir a notação de Russell aplicada aos números cardinais, Wittgenstein questiona se o uso da notação „$‟ é sempre o mesmo, e se ele remete sempre a um determinado conceito (ou função). Como resposta, assinala (...) dass unsere Sprache die Zahlzeichen immer als Attribute von Begriffswörtern gebraucht - dass aber diese Begriffswörter unter sich gänzlich verschiedenen grammatischen Systemen angehören (was man daraus sieht, dass das eine in Verbindungen Bedeutung hat, in

(...) que nossa linguagem utiliza os símbolos de número sempre como atributos de palavras-conceito – mas que essas palavras-conceito pertencem a sistemas gramaticais completamente diferentes (o que pode ser visto pelo fato de que uma coisa pode

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200 denen das andre sinnlos ist), so dass die Norm, die sie zu Begriffswörtern macht, für uns uninteressant wird. Eine ebensolche Norm aber ist die Schreibweise “($x, y, ...) etc.”; sie ist die direkte Übersetzung einer Norm unserer Wortsprachen, nämlich des Ausdrucks “es gibt ...”, eines Ausdrucksschemas, in das unzählige grammatische Formen gepresst sind. (PG § 344)

Paulo Oliveira ter sentido em determinadas ligações, nas quais a outra coisa é completamente sem sentido), de modo que a norma que faz delas palavras-conceito torna-se para nós desinteressante. Mas uma dessas normas é a grafia “($x, y, ...) etc.”; ela é a tradução direta de uma norma de nossa linguagem verbal, a saber, da expressão “há ...”, um esquema expressivo no qual são espremidas inúmeras formas gramaticais. (GF § 344)

Entendo que estamos aqui diante da mesma característica básica atribuída no Tractatus à linguagem ordinária (cf. TLP, 3.323-3.33; Black, 1964: 132-144). Por outro lado, no aforismo 369 da Gramática Filosófica já se opera com a noção de cálculo, que nesse momento ainda implica um sistema de regras exatas. Também já se mobiliza uma concepção modificada de significado como uso (Gebrauch), pois o que importa é observar “onde ainda se calcula na demonstração”. Detenhamos-nos um pouco nesses dois conceitos, de cálculo e uso, pois eles, diferentemente de tradução, são certamente centrais na obra de Wittgenstein. Segundo Steve Gerrard (1991: 125), o chamado período intermediário foi caracterizado pela dominância da filosofia da matemática e marca a transição do mundo tractariano da forma lógica, com sua definibilidade do sentido, para os jogos de linguagem e as formas de vida das Investigações. Não por acaso, essa fase da obra é também conhecida por período do cálculo (ibid.: 131). Gerrard adverte para o risco da “teoria do buraco negro”, que consiste em reconhecer um primeiro e um segundo Wittgenstein, com propostas filosóficas distintas, porém dotadas de coerência interna, mas não perceber as nuanças e sutis alterações nos usos dos conceitos na fase intermediária, tratando de modo igual o que foi escrito no início dos anos 30 ou no início dos anos 40 (ibid.: 126-127). Para dar conta da função e abrangência da noção de cálculo no período intermediário, Gerrard introduz a noção de uma imagem hardyana, que corresponderia, na reflexão sobre a matemática, à imagem agostiniana de linguagem discutida nas Investigações. Por trás dessa imagem hardyana, cunhada com referência ao matemático G. H. Hardy, contemporâneo de Wittgenstein em Cambridge, está a idéia da existência de uma realidade Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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matemática independente da prática matemática em si, i.e. de seus conceitos e operações. Nos termos do próprio Hardy, a prova matemática não seria uma operação exclusivamente interna, consistindo-se, pelo contrário, em apontar para uma realidade que, em última instância, seria externa às convenções e aos conceitos da própria matemática (cf. Gerrard, 1991: 129). Wittgenstein teria introduzido a noção de cálculo como forma de superar tal concepção de matemática como realidade externa. Segundo Gerrard, no período de transição (cálculo), Wittgenstein viu a matemática como um sistema fechado, contido em si próprio. As regras (construídas de modo extremamente estreito) determinariam sozinhas o sentido, tornando-se assim tribunal de apelação último e final. No período mais maduro (jogo de linguagem), o sentido e a verdade só podem ser esclarecidos no contexto de uma prática [social], e a matemática é examinada olhando-se o para o papel específico que ela exerce nas nossas vidas e sua relação específica com outros jogos de linguagem. (ibid.: 126)

Retenhamos da caracterização de Gerrard o caráter fechado do sistema e o entendimento das regras como algo estrito, rigoroso, no período intermediário. Retenhamos também que ambas características serão abandonadas mais tarde, porém sem descartar por completo a idéia de autonomia das regras face a uma realidade externa, mas inserindo-as no contexto de uma prática social.19 De todo modo, ainda segundo Gerrard, a oposição de Wittgenstein à imagem hardyana seria um passo preliminar na “rejeição da idéia de que, em algum sentido transcendental, a linguagem precisa refletir o mundo” (ibid.: 133), sendo a concepção posterior, do jogo de linguagem, “uma extensão e revisão da proposta anterior [do cálculo], mas não sua completa rejeição” (ibid.: 126). David Stern (1991: 216) registra que, após ter usado com freqüência a analogia entre o cálculo e a linguagem ordinária (ou natural) nos anos 30, Wittgenstein posteriormente voltou a ela sobretudo para discutir as dis-analogias entre os dois domínios, e remete a um trecho

Note-se, de passagem, que apontar para a dimensão social das regras não implica necessariamente propor uma fundamentação sociológica ou comunitária para o sentido (cf. delineamento da noção de objeto neste trabalho: seção 2 acima; seção 4, abaixo). 19

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das Investigações onde se comenta uma observação de Ramsey, para quem a lógica seria uma “ciência normativa” (cf. também IF §§ 558-61). Wittgenstein compara tal idéia ao fato de que (...) wir nämlich in der Philosophie den Gebrauch der Wörter oft mit Spielen, Kalkülen nach festen Regeln, vergleichen, aber nicht sagen können, wer die Sprache gebraucht, müsse ein solches Spiel spielen. - Sagt man nun aber, dass unser sprachlicher Ausdruck sich solchen Kalkülen nur nähert, so steht man damit unmittelbar am Rande eines Missverständnisses. Denn so kann es scheinen, als redeten wir in der Logik von einer idealen Sprache. Als wäre unsre Logik eine Logik, gleichsam, für den luftleeren Raum. – Während die Logik doch nicht von der Sprache – bzw. vom Denken – handelt in dem Sinne, wie eine Naturwissenschaft von einer Naturerscheinung, und man höchstens sagen kann, wir konstruierten ideale Sprachen. Aber hier wäre das Wort “ideal” irreführend, denn das klingt, als wären diese Sprachen besser, vollkommener, als unsere Umgangssprache; und als brauchte es den Logiker, damit er den Menschen endlich zeigt, wie ein richtiger Satz ausschaut. All das kann aber erst dann im rechten Licht erscheinen, wenn man über die Begriffe des Verstehens, Meinens und Denkens größere Klarheit gewonnen hat. Denn dann wird es auch klar werden, was uns dazu verleiten kann (und mich verleitet hat) zu denken, dass, wer einen Satz ausspricht und ihn meint, oder versteht, damit einen Kalkül betreibt nach bestimmten Regeln. (PU § 81)

(...) nós, notadamente em filosofia, freqüentemente comparamos o uso das palavras com jogos, com cálculos segundo regras fixas, mas não podemos dizer que quem usa a linguagem deva necessariamente jogar tal jogo. – Se dissermos, porém, que nossa expressão lingüística apenas se aproxima de tais cálculos, estaremos à beira de um mal-entendido. Pois pode parecer que na lógica falássemos de uma linguagem ideal. Como se a lógica fosse uma lógica, por assim dizer, para o vazio. Ao passo que a lógica não trata da linguagem – ou do pensamento – no sentido em que uma ciência natural trata de um fenômeno natural e no máximo pode-se dizer que construímos linguagens ideais. Mas aqui a palavra “ideal” poderia induzir a um erro, pois soa como se essas linguagens fossem melhores, mais completas que nossa linguagem cotidiana; e como se fosse necessário um lógico para mostrar finalmente aos homens que aparência deve ter uma frase correta. Tudo isso, porém, só pode vir à verdadeira luz quando já se tiver obtido maior clareza sobre conceitos como compreender, querer dizer e pensar. Pois então também ficará claro o que pode nos levar (e que me levou) a pensar que quem pronuncia uma frase e lhe confere sentido, ou a compreende, estaria com isso fazendo um cálculo segundo determinadas regras. (IF § 81)

Nesse trecho, o questionamento de uma notação ideal refere-se certamente à arquitetura tractariana, mas poderia também ser aplicada à noção de linguagem fenomenológica do período imediatamente subseqüente. Percebe-se ainda que o abandono da idéia de um sistema fechado de regras exatas implica uma valorização da linguagem cotidiana em seus usos com Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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sentido. No mais, note-se a distinção feita entre a lógica e as ciências naturais, ponto importante para um entendimento adequado da obra tardia. Por fim, registre-se que a autocrítica de Wittgenstein, ao reconhecer que ele mesmo fora levado a pensar no uso da linguagem com cálculo independente de sua aplicação, vem acompanhada de referência à elucidação dos conceitos psicológicos, o que remete diretamente à já citada terapia conceitual como marca maior da obra tardia. Isso posto, registremos que a noção de significado como uso, que destaquei como importante no aforismo 369 da Gramática Filosófica, apesar de estar presente na obra de Wittgenstein desde o Tractatus, também passa por uma série de alterações extremamente significativas no decorrer das diferentes fases. No seu já citado estudo sobre o tema, Garth Hallet (1967: 31-32) lista uma série de características que se mantiveram inalteradas, como a procura pelo significado, sua inserção no uso e a distinção entre o dizer e o mostrar, além do princípio da economia (a navalha de Occam). Contrapondo-se a eles, teriam sido abandonados a teoria pictórica do significado, a distinção sentido (Sinn) vs. significado (Bedeutung), os sentidos do Tractatus e o ato de querer dizer. Não sendo aqui o lugar de retomar todas essas distinções em detalhe,20 retenhamos apenas que a noção de uso à qual associo a expressão “o lugar onde ainda se calcula na demonstração” no aforismo 369 da Gramática Filosófica está intimamente ligada ao caráter operacional, interno das regras do cálculo. Trata-se de ver a linguagem trabalhando, não ainda no sentido de sua inserção na prática social, mas em termos de sua sintaxe interna, que faz algo dentro de um jogo de linguagem tido por completamente autônomo. E esse uso é algo que pode ser visto, quando opera, i.e. se não for mascarado por uma tradução, seja na linguagem ordinária ou na notação de Russell. Há também um outro aspecto digno de atenção, quando observamos o valor atribuído ao conceito de tradução nesse trecho. No Tractatus, a tradução, enquanto critério para a O catálogo de aspectos pertinentes fornecido por Hallet (1967) no trecho citado condensa as questões a serem desenvolvidas ao longo de todo o livro. Para efeito de nossa discussão, o que interessa é marcar que determinadas questões se mantiveram, mas sob foco diferente, ao passo que certas imagens foram posteriormente abandonadas ou mesmo combatidas de modo direto. 20

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exibição da forma lógica, era vista como algo eminentemente positivo – é ela que permite toda analogia, “toda a figuratividade de nosso modo de expressão” (TLP, 4.015). Já na Gramática Filosófica (§ 369), o que interessa é a operação (calcada no modelo do cálculo), é um fazer, ainda que interno ao sistema. No momento em que se observa o resultado desse fazer, seja ele “em prosa” ou traduzido para a notação de Russell, surge o problema da imprecisão dessas linguagens, cuja estrutura superficial mascara, segundo Wittgenstein, diferenças mais profundas. Aqui, entra em jogo uma vez mais a distinção entre o dizer (a linguagem natural e a notação de Russell) e o mostrar (onde ainda se calcula). Num certo sentido, pode-se concluir que, ao se passar o resultado do cálculo para a linguagem natural ou a notação de Russell, a linguagem sai de férias, deixando de operar, ou trabalhar (mesmo sendo essa operação ainda entendida como algo estritamente interno ao domínio da matemática).21 Se quisermos agora voltar à nossa citação inicial das Fichas, um bom caminho nos levará por passagens onde se mobilizam ao mesmo tempo o conceito de cálculo e analogias com considerações de cunho estético. Refiro-me a uma discussão das Observações sobre os fundamentos da matemática (OFM §§ 212-221) que começa com um daqueles experimentos de pensamento tão apreciados por Wittgenstein. O tópico em pauta diz respeito aos diversos métodos de cálculo e envolve questões como: as vantagens e desvantagens de cada um; se haveria um único cálculo correto; qual seria o estatuto da demonstração do princípio de não-

21 Nas Investigações, o contexto é o da inserção dos jogos de linguagem nas diferentes formas de vida:

(...) So eine Reform für bestimmte praktische Zwecke, die Verbesserung unserer Terminologie zur Vermeidung von Missverständnissen im praktischen Gebrauch, ist wohl möglich. Aber das sind nicht die Fälle, mit denen wir es zu tun haben. Die Verwirrungen, die uns beschäftigen, entstehen gleichsam, wenn die Sprache leerläuft, nicht wenn sie arbeitet. (PU § 132)

(...) Uma tal reforma para determinadas finalidades práticas, o aperfeiçoamento de nossa terminologia para evitar malentendidos no uso prático, é bem possível. Mas não são esses os casos com os quais temos algo a ver. As confusões com as quais nos ocupamos nascem quando a linguagem, por assim dizer, fica em ponto morto, não quando ela trabalha. (IF § 132)

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contradição, dentre outras. A tentação de discutir mais detalhadamente tais questões é grande, posto que algumas delas apresentam grande semelhança com os chamados problemas básicos da Tradução.22 Mas fiquemos apenas com um dos pontos em destaque na nossa discussão inicial, tomado aqui como critério adicional de seleção dos trechos relevantes, a saber: como interpretar adequadamente a analogia entre domínios aparentemente tão díspares como a matemática e a literatura, ou o humor? Lembremos que nossa questão de fundo reside na possibilidade mesma de um método (para a tradução), sistemático e dotado de previsibilidade, e não no tema específico da relação entre a lógica e a aritmética. Para esse fim, dois trechos da discussão mais ampla são de especial relevância:

(...) Die Formalisierung der Logik war nicht zur Zufriedenheit gelungen. Aber wozu hatte man sie überhaupt versucht? (Wozu war sie nütze?) Entsprang dies Bedürfnis und die Idee, es müsse sich befriedigen lassen, nicht einer Unklarheit an anderer Stelle? Die Frage “wozu war sie nütze?” war eine durchaus wesentliche Frage. Denn der Kalkül war nicht für einen praktischen Zweck erfunden worden, sondern dazu, ‚die Arithmetik zu begründen‟. Aber wer sagt, dass die Arithmetik Logik ist; oder was man mit der Logik tun muss, um sie in irgend einem Sinne zum Unterbau der Arithmetik zu machen? Wenn wir etwa von ästhetischen Überlegungen dazu geführt worden wären, dies zu versuchen, wer sagt, dass es uns gelingen kann? (Wer sagt, dass sich dieses englische Gedicht zu unsrer Zufriedenheit ins Deutsche übersetzen lässt?!) (BGM § 217)

(...) A formalização da lógica não foi feita de modo plenamente satisfatório. Mas por que se tentou fazêla, afinal (qual era sua utilidade)? Esse desejo, e a idéia de que deveria ser possível chegar a resultado satisfatório, não vieram de uma falta de clareza em outro lugar? A pergunta “qual era a sua utilidade” foi uma pergunta absolutamente essencial. Pois o cálculo não foi inventado para uma finalidade prática, mas sim para „fundamentar a aritmética‟. Mas quem diz que a aritmética é lógica; ou o que é preciso ser feito com a lógica para transformá-la, num sentido qualquer, em fundamento da aritmética? Se tivéssemos sido levados a tentar fazer isso talvez por considerações estéticas, quem diz que podemos ter sucesso na empreitada? (Quem diz que este poema inglês deixase traduzir para o alemão de modo que nos satisfaça?!) (OFM §217)

Discute-se, por exemplo, a construção de um sistema de regras segundo o modelo de um outro, o que cada um deles pode desempenhar etc. (cf. 217). 22

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(Wenn es auch klar ist, dass es zu jedem englischen Satz, in einem Sinne, eine Übersetzung ins Deutsche gibt.) Die philosophische Unbefriedigung verschwindet dadurch, das wir mehr sehen. (BGM § 218)

(Ainda que esteja claro que, para qualquer frase em inglês, em um sentido, haja uma tradução para o alemão). A insatisfação filosófica desaparece quando passamos a ver mais. (OFM § 218)

Assim como no exemplo anterior, da Gramática Filosófica, o interlocutor de Wittgenstein é claramente Russell, com sua proposta de fundamentar a aritmética na lógica (na esteira de Frege). Esse diálogo já vinha de longa data e reflete discordâncias de fundo, que não se deixam resumir a detalhes técnicos.23 Por ser um problema de fundo, sua resolução não pode ser procurada no detalhe, aceitando-se as premissas do sistema como um todo, mas são as próprias premissas de base que devem ser questionadas. Uma vez feita a terapia dessas premissas, i.e. da confusão conceitual que nelas habita, teríamos como ver com mais clareza, desfazendo-se a “insatisfação filosófica” (218). Note-se, uma vez mais, a distinção entre o dizer (“quem diz que a aritmética é lógica [?]” – 217) e o mostrar (aqui [218], em sua variante como ver). Nesse contexto, a comparação com o domínio da estética (a tradução de um poema) serve para mostrar uma semelhança inusitada entre os dois projetos, que podem ser tentados, porém sem a garantia de que ficaremos satisfeitos com os resultados. Não se trata, portanto, de comparar os dois domínios para reforçar a previsibilidade no domínio da lógica, ou da aritmética, pelo contrário: trata-se de mostrar que, também nesses domínios, ou na tentativa de reduzir uma coisa à outra, há algo de imponderável, que dependerá de algum outro tipo de fundamentação. Tivesse a “operação” (de formalizar a lógica para fundamentar a aritmética) sido feita de modo plenamente satisfatório, ter-se-ia talvez chegado a um fundamento último, dentro da própria lógica. Não se encontrando esse fundamento lógico como razão últi-

Black (1964: 317) lembra que “o ataque de Wittgenstein à concepção de identidade de Russell é direcionado contra um componente indispensável da construção „logicista‟ da matemática e é, conseqüentemente, de importância capital. A rejeição do sistema dos Principia por Wittgenstein não era baseada em desacordo a respeito de detalhes técnicos, mas sim na convicção bem fundamentada de que o empreendimento estava radicalmente mal conduzido”. 23

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ma, tal razão deverá ser procurada algures. Nesse sentido, pode-se concluir que o argumento já está imbuído do espírito terapêutico que marcará a obra tardia, e que indicará a “rocha dura” de nossas convicções (cf. IF § 217, já mencionado acima), via observação de como aplicamos a lógica, a matemática etc. com convicção, como lugar privilegiado da fundamentação gramatical mais ampla (e não estritamente lógica) do uso dos conceitos. Feitas essas observações sobre o desenvolvimento da obra de Wittgenstein, podemos retomar o mesmo aforismo para discuti-lo sob o prisma de suas implicações para uma reflexão tradutória. Lembremos do que foi dito inicialmente, sobre uma certa bipartição nas disciplinas que se dedicam aos Estudos da Tradução: por um lado, a tradição, preocupada com métodos tradutórios confiáveis, sistemáticos; por outro, a discussão pós-moderna, que questiona radicalmente a possibilidade de qualquer método e, no limite, de normas tradutórias, dando às vezes a impressão de se esquecer que, para serem consideradas satisfatórias, as traduções têm de se adequar a certas normas ou critérios, ainda que não tenha havido um método, um caminho sistemático para se chegar a elas. O final do aforismo 217 dos Fundamentos da matemática aponta para o fato de que, nas traduções literárias, não está garantido a priori que será encontrada uma solução satisfatória. Até aqui, não estaríamos muito longe da tradição que associa tais dificuldades à muito citada polissemia do texto literário. Mas a comparação com a lógica e a aritmética sugere a necessidade de maior reflexão. Pois nesses domínios do conhecimento, a tradição não falaria de modo algum em polissemia, partindo antes do pressuposto de exatidão e objetividade imanentes – no sentido, talvez, dos trechos do Tractatus citados acima (3.34, 4.025, 4.0141). Wittgenstein pergunta, no entanto, “quem diz que a aritmética é lógica; ou o que é preciso ser feito com a lógica para transformá-la, num sentido qualquer, em fundamento da aritmética?”. Na dupla pergunta, leio uma indicação para o fato de que tanto a matemática (aritmética) como a lógica também são jogos de linguagem, que talvez possam ser harmonizados, em função de certas considerações (como as que, de fato, motivaram Frege e Russel em seus projetos). Mas o caminho para tanto precisaria antes ser encontrado, e a posteriori deverse-ia então perguntar se o resultado pode ser considerado satisfatório (de acordo com deMoreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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terminados critérios) – de modo análogo à atitude que se toma, com a maior naturalidade, face a textos literários. Este seria, portanto, o primeiro ponto a reter: não se sabe de antemão se “podemos ter sucesso na empreitada” (217). Mas o segundo ponto vem logo a seguir: está claro que, num certo sentido, há uma correspondência possível (cf. 218). A pergunta que se coloca é sobre o aspecto segundo o qual deverá ser procurada uma correspondência. Reside aqui talvez o curto-circuito na disputa sobre a chamada tradutibilidade: uns acreditam dela poder deduzir um método ou sistema tradutório; os outros subestimam seu alcance e chegam a questionar a possibilidade de normas tradutórias, em virtude do princípio da não-generalização. De todo modo, a forma como é feita a analogia entre jogos de linguagem aparentemente díspares afasta-se claramente da concepção logicista do primeiro Wittgenstein e aponta para a perspectiva terapêutica da obra tardia. Por esse motivo, entendo que, na interpretação dos aforismos que mobilizam esse tipo de analogia, deve ser descartada a leitura que pressupõe diferentes categorias, conferindo a um extremo (a matemática) a possibilidade de um método rigoroso e restringindo ao outro (a poesia, o humor) a impossibilidade de sistematização.

3.3. Fase tardia Antes de finalizar nossa discussão interna à obra de Wittgenstein, retomemos brevemente o itinerário percorrido. Na proximidade que propus entre a desconstrução e a terapia conceitual, interpretei o aforismo das Fichas (698) com base no pressuposto de sua provável inserção num ponto mais tardio na obra do filósofo austríaco. Tal localização temporal permitiria, inclusive, responder com mais segurança à perguntas colocadas, no início da seção 2, sobre o sentido da analogia entre domínios tão diversos como a matemática e a literatura. O segundo exemplo recolhido do período intermediário (OFM §§ 217-218) retoma esse tipo de analogia. Ao discutir esse exemplo, argumentei que o objetivo de Wittgenstein, quando compara a tentativa de fundamentar a aritmética na lógica com a tradução de um poema, não é caracterizar a lógica e a matemática (aritmética) como domínios exatos, contrapondo-os à polissemia da literatura, mas sim mostrar que a própria tentativa de uma tal fundamentação tem por origem Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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a “falta de clareza” sobre sua possibilidade, i.e. sobre a natureza desses dois domínios (OFM § 217). Vimos também que, mais tarde, Wittgenstein argumenta que a lógica não se destina, “por assim dizer, para o vazio” (IF § 81), criticando com isso sua própria concepção anterior de cálculo como uma operação segundo “regras fixas” (ibid.). Nesse sentido, já teríamos, no período intermediário e no cotejo com as Investigações, uma indicação clara de que o objetivo da analogia não é salientar a possibilidade de um método, de uma solução sistemática e dotada de previsibilidade no caso da tarefa matemática, reservando o termo problema para os casos em que há evidente dificuldade, comparável então às dificuldades do lírico ou do humor. A função da analogia parece ser realmente outra, a saber, mostrar a necessidade de uma terapia conceitual da própria idéia de “resolução sistemática e dotada de previsibilidade” – porém sem descartar algum tipo de fundamento, a ser encontrado nas nossas formas de vida. Tendo-se em vista que nenhum fragmento coletado nas Fichas foi escrito antes de 1929 e que o último registro é de 1948,24 a provável inserção do § 698 na obra tardia do filósofo consolida a perspectiva terapêutica como a mais adequada para sua leitura. De fato, uma consulta à edição eletrônica do Nachlass revela que o trecho data de 01/01/1946, inserindo-se claramente na fase tardia.25 De resto, os Últimos escritos de Wittgenstein contêm breve trecho que ecoa parte da discussão feita nos Fundamentos da matemática (217-218), conferindo sustentação adicional à interpretação apresentada no ponto anterior: Was ist die korrekte Übersetzung eines englischen Wortspiels in‟s Deutsche? Vielleicht ein ganz anderes Wortspiel. (LS § 278)

Qual é a tradução correta para o alemão de um jogo de palavras inglês? Talvez um jogo de palavras completamente diferente. (UE § 278)

Cf. prefácio à edição bilíngüe inglês/alemão, onde também se lê que a imensa maioria dos trechos coletados corresponde a “cópias datilografadas que foram ditadas de 1945 a 1948” (Zettel: Londres: Basil Blackwell, 1981, 2ª edição, p. iii.) 25 Cf. Nachlass: Item 233b Zettel II Page 62 233b\075.jpg. 24

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Aqui, já não se trata apenas de apontar para o fato de que traduzir não implica necessariamente uma relação um para um; de que freqüentemente se traduz sob certos aspectos (“em um sentido”), deixando fora de consideração outros aspectos, tidos por menos relevantes – como no aforismo 218 dos Fundamentos da matemática. Indo mais além, aqui é dito claramente que correto pode também significar diferente. É verdade que correto continua a significar equivalente, em um certo sentido, sob determinado aspecto, que pode ser funcional, estético etc. – se partirmos do princípio de que um jogo de palavras deve ser espirituoso, ou que uma piada deve provocar riso e diz muito sobre os pressupostos culturais desse riso, por exemplo. Mas essa correspondência parcial e operatória está muito longe da correspondência definitória da primeira fase da obra, notadamente no Tractatus. Entendo que a analogia contida nos três trechos, a saber Fundamentos da matemática (217-218), Fichas (698) e Últimos escritos (278) têm função semelhante, ainda que dentro de argumentos distintos. Trata-se de combater o eventual dogmatismo de uma posição fundamentalista ou, em outros termos, trata-se de apontar para a necessidade de uma terapia conceitual que ajudasse a esclarecer como usamos os conceitos em nossos jogos de linguagem, imbricados em diferentes formas de vida. Isso posto, retomemos nosso aforismo inicial para uma discussão mais detalhada.

3.4. O aforismo das Fichas e a questão dos limites Traduzir de uma língua para outra é uma tarefa matemática, e traduzir p. ex. um poema lírico para uma língua estrangeira é muito análogo a um problema matemático. Pois pode-se certamente colocar o problema “Como deve ser (p. ex.) traduzida” – i.e. substituída – “essa piada por uma piada na outra língua?”; e o problema pode também estar resolvido; mas um método, um sistema para sua resolução, não houve. (Fichas, § 698)26

Nas linhas finais de nossa citação das Fichas (698), lê-se que “o problema pode também estar resolvido; mas um método, um sistema para sua resolução, não houve” (grifos 26

Para cotejo direto com o original em alemão, vide início da seção 2 neste trabalho.

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meus). Nas seções anteriores, argumentei que esse questionamento da possibilidade de um método sistemático (algorítmico, dotado de previsibilidade e passível de aplicação generalizada) aproxima a terapia conceitual da perspectiva da desconstrução. Cabe agora salientar os aspectos que diferenciam as duas abordagens, com destaque para a questão da normas ou, mais precisamente, dos limites. Diferentemente do trecho discutido dos Fundamentos da matemática (217-18), a perspectiva nas Fichas é post-festum: o problema está resolvido, mas não houve um método. E se o problema está resolvido, pressupõe-se que a resolução satisfez e ainda satisfaz a determinados critérios reguladores face ao(s) aspecto(s) tido(s) como relevante(s). Nesse sentido, tais critérios podem ser considerados verdadeiras normas de tradução, em conformidade com as formas de vida vigentes. É certo que as formas de vida também são dinâmicas, que elas podem mudar e, com elas, seus critérios, suas normas. Mas continuará a existir algo que servirá para balizar nossa decisão, ao avaliarmos se determinada operação foi feita de modo satisfatório, seja ela a tradução de um poema ou “a formalização da aritmética” – nos termos dos aforismos 217-218 dos Fundamentos da matemática. Tal conclusão é menos evidente na leitura do mesmo aforismo das Fichas (698) colocada como epígrafe de texto em que Arrojo discute a distinção entre compreender e interpretar, e suas implicações para a tradução. Nessa epígrafe, Arrojo (1992a: 67) traduz o mesmo trecho usando o presente: “e esse problema pode ser resolvido, mas não há nenhum método para fazêlo” (grifos meus). Vejamos as implicações dos diferentes tempos verbais para a postura básica em jogo. 1. Usando-se um tempo do presente, a solução permanece virtual e a negação do método torna-se mais forte (ele não existe agora, tampouco existirá no futuro). Lido dessa forma, o texto de Wittgenstein aproxima-se muito da desconstrução – o que justificaria, portanto, seu uso como epígrafe num texto com essa perspectiva. 2. Usando-se um tempo do passado, a solução já está disponível, apenas não pode ser generalizada (de modo indevido). A própria resolução da tarefa implica que houve utilização de uma norma, de um critério de adequação que tem certa estabilidade, Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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mesmo não sendo definitivo nem aplicável a todos os casos futuros. Essa parada no tempo, essa cristalização da norma, por sua vez, é incompatível com o princípio da différance derridiana como fluir contínuo.27 Por esse motivo, não interessa à desconstrução enfatizá-la. Como justificar, no entanto, a maior adequação da segunda alternativa face à primeira? Creio que a breve discussão dos exemplos anteriores, sobretudo no tocante aos aforismos 217 e 218 dos Fundamentos da matemática, já deve ter deixado claro que a postura de Wittgenstein não é de um relativismo radical como o da desconstrução. Por esse motivo, caberia desde já uma certa cautela face à primeira alternativa. Mas há outros elementos, lingüísticos, que tornam essa interpretação problemática. Em alemão, distingue-se entre uma voz passiva de processo, ou ação, e uma outra de estado. Para a voz passiva de processo, onde em português cabe o verbo auxiliar ser, utiliza-se em alemão o verbo auxiliar werden. Quando se trata de salientar o resultado de uma ação, o verbo auxiliar utilizado em alemão é sein; em português, usa-se estar com função semelhante – ainda que a terminologia gramatical seja outra. Ora, no texto das Fichas em alemão lê-se sein, e não werden. O que está em jogo, portanto, é o resultado, trata-se de uma passiva de estado, não de processo. Isso é reforçado pela utilização de um tempo verbal no passado, na 2ª oração: gab, e não gibt. Tendo isso em vista, a perspectiva é claramente post festum, como já salientado anteriormente.28 Na tradução de Ascombe e von Wright para o inglês, lê-se: “... and the problem can be solved; but there was no systematic method for solving it” (grifos meus). Levando-se em conta as questões arroladas acima, faltou aqui acrescentar algo como already antes de solved (o

Cf. Oliveira (2005), já referido na nota 5, acima. A virtualidade está expressa apenas no momento anterior, quando se pergunta “como deve ser traduzido...?” (wie ist ... zu übersetzen?). No passo seguinte, porém, a pergunta já está respondida, há um resultado concreto. 27 28

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problema já está resolvido), para evitar ambigüidades.29 Na segunda oração, o tempo usado é, corretamente, do passado: was. Na tradução de Arrojo para o português, usou-se o auxiliar ser, que dá idéia de processo, ou virtualidade, de modo semelhante à tradução para o inglês; mudouse também o tempo do passado da segunda oração para o presente, reforçando a idéia de processo e virtualidade. Esse deslocamento de foco, por usa vez, dificulta o reconhecimento de que houve a aplicação de uma norma que não deixa de ter certo grau de generalidade e estabilidade, apesar de não conduzir a um método aplicável indiscriminadamente a “todos os casos”. Seria talvez preciosismo insistir em tais sutilezas, não tivessem elas implicações efetivas para as concepções de linguagem e tradução em jogo. Por outro lado, uma vez mais, é preciso registrar uma proximidade, apesar de toda diferença. Se minha tradução difere daquela proposta por Arrojo, isso não significa que haveria discordância completa sobre as implicações dessas diferenças. Pelo contrário, é a própria Arrojo (1992b: 78) quem afirma que Qualquer tradução, por mais simples e despretensiosa que seja, traz consigo as marcas de sua realização: o tempo, a história, as circunstâncias, os objetivos e a perspectiva de seu realizador. Qualquer tradução denuncia sua origem numa interpretação, ainda que seu realizador não a assuma como tal. Nesse sentido, meu argumento também seria válido do ponto de vista da própria desconstrução. Insisto nessa proximidade para que não incorramos no risco de descartar desde logo os argumentos da desconstrução, como se fossem irrelevantes, sem ter entendido a força desses argumentos, naquilo em que constituem-se como crítica pertinente à tradição.30 É tal

O verbo to be abarca os sentidos de ser e estar – daí a ambigüidade. Nos Estudos da Tradução, a propensão a banalizar os argumentos da desconstrução e, portanto, a não reconhecer o alcance (e os limites) de sua pertinência, é característica de adversários mais ferrenhos, como Anthony Pym (1993, 1995, 2000). No campo da crítica literária, é emblemática a postura de Rescher (2005), cujos argumentos (plausíveis) contra o relativismo epistemológico, como a inserção dos textos numa prática social, são prejudicados por uma gritante falta de familiaridade com os conceitos e os argumentos reais da desconstrução. Isso fica evidente sobretudo (mas não só) na noção de texto utilizada por Rescher, reduzida à dimensão empírica da escrita, ao passo que o conceito derridiano 29 30

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proximidade que faz da desconstrução um interlocutor privilegiado para a terapia conceitual: uma vez reconhecida essa semelhança no geral, cumpre porém apontar para as diferenças no detalhe. Explorá-las de modo rigoroso significa estabelecer a linha, às vezes tênue, outras vezes muito clara, entre o relativismo epistemológico da desconstrução e o relativismo cultural das formas de vida wittgensteinianas. Uma das principais diferenças reside exatamente na questão dos limites, ou da possibilidade de fechamento, ainda que virtual – como mostra o cotejo das alternativas de tradução que apresentei. Na versão de Arrojo, revela-se claramente um aspecto característico da perspectiva da desconstrução, a saber, sua falta de disposição para lidar com quaisquer possibilidades de limites ou fechamento, por provisórios que sejam. É provavelmente por esse motivo que Erich Prunc (2003: 269), em sua Introdução à ciência da tradução, descreve a desconstrução como um método de pensamento que questiona radicalmente todos os esquemas de pensamento e sua fixação lingüística. Por isso, a desconstrução também não é passível de definição, porque uma definição iria contra os princípios da desconstrução e, a cada repetição, precisaria ela própria ser desconstruída.

Tal postura básica é corroborada por um trecho altamente significativo da Carta a um amigo japonês: “O que a desconstrução não é? É tudo! / O que é a desconstrução? É nada!” (Derrida, 1998: 25). Tudo ou nada, tudo e nada: ou seja, ausência de limites, negação da necessidade ou mesmo da possibilidade de fechamento. Tanto mais porque o termo “desconstru-

abarca amplas formações discursivas, como o “texto da filosofia”, “da psicanálise” ou “da lingüística” etc., não se restringindo, em hipótese alguma, ao texto escrito em papel ou outro suporte material (cf. Derrida, 1972, 1973, 1991a, 1991b, dentre vários outros). O resultado é uma postura dogmática por parte de Rescher, que acaba por reafirmar o fundamentalismo da tradição. Entendo que, para discutir seriamente com a desconstrução, é preciso antes de mais nada reconhecer sua força e só então marcar as diferenças face a um projeto alternativo, como o da terapia conceitual. Tal postura tem um caráter preventivo face a qualquer dogmatismo, seja ele o da tradição ou o do relativismo radical. Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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ção”, ainda segundo Derrida, poderia ser substituído por vários outros, como “„escritura‟, „traço‟, „différance‟, „suplemento‟, „hímen‟, „pharmakon‟, „margem‟, „encetamento‟, „parergeon‟ etc. Por definição, a lista não pode ser fechada” (ibid.). Note-se, de passagem, que, no trecho em questão, Derrida fala em “contexto”, reafirmando sua importância, ao mesmo tempo em que nega a possibilidade de fechamento.31 Wittgenstein, por sua vez, reafirma o contexto da aplicação como solo pragmático do sentido, quando lembra que a alavanca só é freio se ligada ao restante do mecanismo – sem o qual “pode ser qualquer coisa, ou nada” (IF, § 6).32 Entendo que, para a desconstrução, poder ser “qualquer coisa, ou nada” seria algo positivo, ou inerente ao jogo dos sentidos. Já para Wittgenstein, aquilo que “pode ser qualquer coisa, ou nada” está fora de consideração, ou carece de sentido. Por outro lado, é exatamente aí que incide a terapia conceitual, pois é nesse ponto que a linguagem não trabalha, entra de férias (IF § 132; cf. nota 21, acima). Voltando para o aforismo das Fichas (698), podemos concluir que a ênfase na impossibilidade de sistematização (primeira alternativa de tradução), aceitando, mas deixando num plano virtual a possibilidade de uma solução, coloca essa solução numa cadeia de outras soluções possíveis, esquivando-se da idéia de fechamento. Tal é a perspectiva da desconstrução. Não cabe aqui procurar definir todos os termos arrolados por Derrida como intercambiáveis (em determinados contextos), até porque isso bateria de frente com os princípios da própria desconstrução. Uma proposta de sistematização, para fins didáticos, é feita no Glossário de Derrida (1976). Para um comentário mais detalhado da questão da indefinibilidade da desconstrução, sob a ótica de suas implicações para a tradução, e assumindo de modo enfático e irrestrito a perspectiva derridiana, vide Ottoni (2005, 2006). 31

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„Indem ich die Stange mit dem Hebel verbinde, setze ich die Bremse imstand“. – Ja, gegeben den ganzen Mechanismus. Nur mit diesem ist er der Bremshebel; und losgelöst von seiner Unterstützung ist er nicht einmal ein Hebel, sondern kann alles Mögliche sein, oder nichts. (PU § 6)

“Ligando a barra com a alavanca, faço funcionar o freio”. – Sim, dado todo o mecanismo restante. Apenas com este, a alavanca é o freio; e, separado de seu apoio, nem chega a ser uma alavanca, mas pode ser qualquer coisa, ou nada. (IF § 6)

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A segunda alternativa, por sua vez, já parte do fechamento, embora sem associá-lo à utilização de um método sistemático (como quereria a tradição). Enquanto o problema estiver resolvido, não há necessidade de outras soluções, a solução existente tem caráter normativo: é assim que deve ser traduzido esse texto, essa é uma boa solução – nós concordamos com isso, com base nos critérios partilhados em nossos jogos de linguagem e formas de vida. No momento em que não mais concordarmos com a solução encontrada, isso não significará que ela não tivesse sido uma norma, pelo contrário: significará um questionamento da norma antiga e eventualmente a introdução de uma outra norma, que passará a exercer papel semelhante. Quem traduz não apenas descreve, mas sim define o original – mesmo que não haja um método previsível e sistemático para tanto. Antes de darmos continuidade à nossa discussão, tendo a desconstrução como interlocutor privilegiado, cabe talvez perguntar se a ênfase nessa interlocução específica não traria em seu bojo o risco de perdermos de vista as claras diferenças do filósofo de Viena com a tradição. Tal risco, no entanto, será menor na medida exata em que não nos esquecermos de que as diferenças com a tradição já foram salientadas pelo próprio Wittgenstein no desenvolvimento de sua obra – com nítidos reflexos para seu uso do próprio conceito de tradução, como vimos através dos exemplos aqui apresentados. Nesse sentido, o cotejo mais fino com a desconstrução já implica, por si mesmo, uma oposição comum à perspectiva tradicional. Seu objetivo é precisamente impedir que uma coisa seja assimilada à outra – o que nem sempre é evitado em trabalhos que buscam aproximar Wittgenstein de Derrida, nos quais pode-se perceber uma certa tendência a assimilar a gramática wittgensteiniana à perspectiva desconstrutivista contemporânea (cf. Carraz, 2000; Staden, 1985).

4. Explorando algumas diferenças: desconstrução vs. terapia conceitual Na seção 1 deste trabalho, foram arroladas diversas percepções e posturas diante do que venha a ser um problema de tradução, algumas delas com pressupostos epistêmicos bastante distintos. Para os defensores de uma postura cientificista, problema de tradução remete a um impasse, prático ou sobretudo teórico, algo a ser equacionado para restabelecer o funcionaMoreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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mento adequado dos sistemas de referência (teorias lingüísticas, por exemplo; cf. Mounin, 1975, citado acima). Para a reflexão pós-moderna, e mais notadamente a desconstrução, problema de tradução é antes de mais nada um estigma a ser superado, através do abandono da concepção logocêntrica de significado, e do reconhecimento de que os sistemas teóricos são permeados de aporias internas e sujeitos a fatores contingentes em sua aplicação (cf. Arrojo, 1992a-c, 1994). Essa postura, apesar do mérito de apontar para as limitações (e o dogmatismo) da tradição, traz em seu bojo o risco de jogar fora a criança com a água do banho, i.e. de superar o problema apenas colocando-o fora de pauta, deixando com isso de esclarecer uma série de questões que mereceriam talvez maior atenção – como, por exemplo, a possibilidade de fechamento, ainda que virtual, e os fatores que o condicionam na prática lingüística efetiva. A terapia conceitual, por sua vez, não descarta como irrelevantes os diferentes impasses enfrentados pela tradição, pelo contrário – é exatamente nesses pontos que incide o trabalho terapêutico voltado para o esclarecimento das confusões conceituais, levando à dissolução dos problemas delas decorrentes: “O filósofo trata uma questão; como uma doença” (IF, § 255). A linha que separa os dois projetos de superação das aporias da tradição pode ser ilustrada através de suas diferentes estratégias argumentativas e, em última instância, da própria abrangência dos conceitos que mobilizam. Um desses conceitos diz respeito à noção mesma de objeto, e da noção derivada de objetividade, como pode ser aferido na crítica à atitude cientificista de Aubert (1984) desenvolvida por Arrojo (1992a) – para ficarmos com um texto já citado no presente trabalho. Após assinalar que o próprio Aubert reconhece as limitações da ciência em sua tentativa de “„fazer ouvidos moucos‟ ao subjetivo ou, em outras palavras, à perspectiva, à visão e ao contexto de um sujeito interpretante”, Arrojo (1992a: 69), conclui afirmando que a compreensão, num plano humano e „não-divino‟, será, sempre, também uma „interpretação‟, uma produção – e não um resgate – de significados que impomos aos objetos, à realidade e aos textos. A interpretação, ou a compreensão, escapa, portanto, a qualquer tentativa de sistematicidade pois a possibilidade de sistematizá-las implicaria, inescapavelmente, a própria possibilidade

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Note-se a ênfase dada aos aspectos subjetivos e contingentes em jogo, assimilando a sistematização a uma noção de objeto como algo constituído a partir de uma perspectiva ontológica – o que certamente é válido como descrição dos pressupostos da tradição, e de teóricos da tradução de extração cientificista, como Mounin e Aubert (dentre outros). A questão que se coloca é se esse gesto não incorre no risco de cair no extremo oposto, i.e. de supervalorizar a dimensão subjetiva – ou individual – da produção simbólica, como sugere a expressão “significados que impomos aos objetos, à realidade e aos textos” (grifo meu). Ao fazer isso, fica mantida de forma latente a dicotomia objetivo vs. subjetivo, apenas invertendo a hierarquia de valores.33 Se levada ao extremo, a valorização do pólo subjetivo feita por Arrojo (1992a), em seu questionamento do logocentrismo da tradição, pode acabar por implicar num abandono da própria idéia de objeto – partindo-se do princípio de que ele não se deixaria pensar senão nos termos transcendentais / ontológicos da tradição. Diferente é a perspectiva terapêutica, como já assinalei mais acima, via Moreno (1995: 129) – porque Wittgenstein não descarta a noção de objeto, apenas o retira do domínio ontológico, trazendo-o de volta para o solo áspero da gramática imbricada em nossas formas de vida.34 Essa questão é retomada por Moreno (2005) em sua proposta de uma Pragmática filosófica, onde fica evidente que certos conceitos adquirem abrangência e implicações muito diversas daquelas admitidas pela desconstrução, quando pensados numa ótica tributária da terapia conceitual. Para nossa discussão, interessam a própria noção de contexto e suas implicações para a possibilidade de fechamento:

É certo que a autora tem consciência desse tipo de risco, contra o qual adverte quando discute a propalada “morte do autor” e critica uma certa tendência contemporânea a se atribuir, agora ao leitor, a mesma “onipotência” antes conferida ao autor (Arrojo, 1997b: 23). Mas permanece a questão no tocante à noção de objeto, na crítica feita a Aubert (Arrojo, 1992a). 34 Cf. IF § 371: “A essência está expressa na gramática”. 33

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A idéia de contexto, da maneira como procuro introduzi-la, é recoberta pelo conceito de sistema estrutural [grifo do autor], a saber, a situação em que um conjunto de elementos quaisquer permite que sejam estabelecidos critérios de fechamento para o conjunto [grifo meu]. (...) Tais critérios podem ir dos mais rígidos – como os que se aplicam aos conjuntos formalmente organizados – até os que se aplicam a conjuntos cujo fechamento é apenas virtual, permitindo a identificação de elementos não previstos inicialmente – a exemplo das línguas naturais, com seus neologismos, e dos sistemas simbólicos não-lingüísticos. (ibid.: 358)

Moreno destaca ainda dois aspectos importantes do contexto, sendo o primeiro seu caráter aberto, com limites não exaustivamente determináveis, sempre provisórios, porque “relativos às circunstâncias regionais de aplicação” (ibid.). O segundo é a inserção dos contextos particulares em outros sempre mais amplos, “sem que se possa determinar a priori um limite superior para esse processo de complexificação contextual” (ibid.: 359). É tal situação o que “permite decidir qual é o contexto geral suficiente para que a aplicação do conceito possa ser julgada correta ou adequada”. A desambiguação pela integração em contextos maiores permite inclusive descartar a observação do cético kripkiano,35 segundo a qual nunca será possível decidir se uma regra está sendo seguida, se um conceito está sendo corretamente aplicado – ao situá-la na posição do olhar divino, isto é, ao caracterizá-la, contraditoriamente às próprias pretensões do ceticismo, como essencialista. (ibid.)

Isso ocorre porque, no caso das “situações-limite, em que não é mais possível fornecer razões para a ação, deve-se apenas reconhecer, como diz Wittgenstein, que é assim que agimos – e procurar, se for o caso, fornecer causas paras as ações, mas não mais fundamentos” (ibid.). No primeiro aspecto destacado por Moreno, temos uma afinidade com a desconstrução: os limites podem ser apenas virtuais, e dependem de circunstâncias regionais. No segundo aspecto, há uma afinidade entre o cético kripkiano e a desconstrução, na medida em que ambos associam a possibilidade de fechamento a um “olhar divino”, passando ao largo Cf. Kripke (1982). Para uma contestação ampla, detalhada e enfática dos argumentos de Kripke, vide Backer & Hacker (1984: 1-55). 35

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da constatação wittgensteiniana de que, quando não é mais possível fornecer razões, age-se simplesmente segundo as convicções das formas de vida (cf. IF § 217). Note-se também o destaque dado por Moreno ao princípio do critério suficiente, ao passo que, na crítica desconstrutivista, questiona-se o pendor da tradição ao estabelecimento de critérios tidos por necessários – como se todo fechamento tivesse de ser feito, inexoravelmente, com base nesse tipo de critério.36 Retomando a perspectiva wittgensteiniana de que “a definição do objeto é dada pela gramática”, Moreno (2005: 366-368) ressalta ainda o caráter formal e pragmático do objeto entendido nesses termos, i.e. imerso em situações que instituem “regras mais ou menos restritivas para o uso das formas expressivas”, sendo que a forma será entendida como correspondendo ao resultado de procedimentos operatórios, de ações habituais, à experiência, ou, em outras palavras, de aspectos instituídos como critério normativo. (grifos meus; ibid.: 367)

Na medida em que os aspectos exercem uma “função criterial a priori na constituição da objetividade, independentemente de suas origens empíricas” (ibid.: 368), e na medida em que

Cf. Oliveira (2005: 16): “Nos dois casos, estamos diante de sistemas abertos, cujo fechamento é apenas virtual. Ocorre que, em Derrida, a ênfase recai sobre o não-fechamento, o deslizamento contínuo, a „rede cuja tessitura será impossível interromper‟ (cf. Glossário, ibid. [51]). Já Wittgenstein enfatiza a possibilidade de fechamento, ainda que virtual ou provisório, exercida continuamente na práxis da linguagem. Em ambos os casos, o contexto exerce um papel crucial na determinação ou indeterminação do sentido. Jonathan Culler (1983) lembra-nos que „meaning is context-bound, but context is bondless‟. Lendo-se tal aforismo sob a perspectiva da desconstrução, a ênfase recai sobre o fato de que sempre poderá haver uma mudança de contexto que altere o significado de um signo, de um enunciado, texto, discurso, etc. Abordando-se o mesmo aforismo numa perspectiva wittgensteiniana, a ênfase recai sobre o fato de que, se o contexto for insuficiente para determinar o sentido de um signo, enunciado, etc., poder-se-á sempre ampliá-lo até que se chegue a critérios suficientes para uma determinação – que não será definitiva nem necessária, mas precisamente o suficiente para equacionar as necessidades pragmáticas em questão, naquela situação específica, sem cair em absoluto nalguma espécie de subjetivismo qualquer.” 36

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essas normas dizem respeito à gramática imbricada nas diferentes formas de vida, entendo que elas constituem também um limite aos “significados que impomos aos objetos, à realidade e aos textos” (Arrojo, 1992a: 70). Ou seja, essa “imposição de significados” é condicionada, ela mesma, pelos limites dos critérios públicos dos jogos de linguagem em questão. Nesse sentido, ainda que as “manifestações culturais presentes e futuras” não se deixem “sistematizar e pré-determinar”, como assinala corretamente Arrojo (ibid.), essas mesmas manifestações são passíveis de descrições, dais quais é possível extrair critérios com uma dose relativa de estabilidade, permitindo não apenas distinguir entre traduções mais ou menos adequadas, como também ensinar a traduzir.37 Sendo públicos e habituais, os critérios estabelecidos pela seleção dos aspectos pertinentes não refletem uma visão subjetiva individual, pelo contrário: são eles que definem o escopo do objeto – não mais entendidos como “entidades autônomas e independentes do próprio uso que fazemos dos conceitos”, mas sim como os próprios “elementos que estão na base do uso, i.e. na base das aplicações dos conceitos.” (Moreno, 1995: 219). Foi nesse sentido que afirmei mais acima que “quem traduz não apenas descreve, mas sim define o original” – pois seleciona os aspectos considerados pertinentes no estabelecimento de seu escopo enquanto objeto a ser traduzido. Lembremos também que, mesmo no caso dos sistemas com critérios “mais rígidos – como os que se aplicam aos conjuntos formalmente organizados” (Moreno, 2005: 358), também há mudança ao longo do tempo, como já assinalava, aliás, o próprio Wittgenstein, ao registrar que o uso dos signos “não é nada fixo, algo dado para sempre”, sendo que uma “idéia aproximada disso pode nos ser dada pelas modificações da matemática” (cf. IF § 23, já citado, mais extensamente, acima). Cristiane Gottschalk (2007) nos fornece alguns exemplos extremamente ilustrativos de como isso ocorre, e de que maneira uma leitura wittgensteinia-

Rodrigues (2000: 119-122) chega a questionar a própria possibilidade do ensino da tradução, ao radicalizar alguns dos pressupostos da desconstrução. Essa visão é problematizada em Oliveira (2005: 20-24), com base na obra tardia de Wittgenstein. 37

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na dessas mudanças difere tanto da perspectiva sociológica quanto da lógico-formalista.38 Do argumento de Gottschalk, retenhamos a importante distinção entre o estabelecimento (ou a modificação) da norma e sua utilização, ou, em termos mais genéricos, entre a preparação do jogo e o jogo (de linguagem) em si. No primeiro caso, os especialistas (matemáticos, geômetras) estão preocupados em chegar a um acordo sobre o escopo do conceito – aquilo que ele abarca, o que fica fora, o que precisa ser feito para que o conceito (ou objeto) possa ser operacional, para que ele dê conta daquilo que se propõe a fazer. No segundo caso, trata-se de averiguar se o conceito mobilizado corresponde àquilo que foi estabelecido como norma, i.e. se o conceito está sendo utilizado corretamente para que se possa falar em matemática, ou geometria – ou se trata-se de outra coisa, ou nada (se não tiver limites). Uma vez estabelecido algo como norma, ou linguagem, não estamos mais diante de acordos de opiniões (mesmo que de especialistas) como sugerem as leituras sociológicas (ou comunitárias), mas sim de formas de vida, como lembra o próprio Wittgenstein: “So sagst du also, dass die Übereinstimmung der Menschen entscheide, was richtig und was falsch ist?” Richtig und falsch ist, was die Menschen sagen; und in der Sprache stimmen die Menschen überein. Diese ist keine Übereinstimmung der Meinungen, sondern der Lebensform. (PU § 241)

“Assim, pois, você diz que o acordo entre os homens decide o que é correto e o que é falso?” – Correto e falso é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Esse não é um acordo de opiniões, mas da forma de vida. (IF § 241)

O que difere os sistemas formalizados dos não-formalizados não é, portanto, uma diferença de natureza, mas sim de grau. Em casos como o da matemática e da geometria, os conceitos permanecem estáveis por mais tempo, de geração para geração, mesmo após a morte dos especialistas que estabeleceram as normas que definem o escopo de cada conceito. Nas humanidades e, mais especificamente, na tradução, a proximidade do intérprete profissional, i.e. daquele considerado capaz de reconhecer os limites do objeto, torna-se mais importante, como evidenciam as diferentes re-traduções dos clássicos feitas ao longo do

Cf. sobretudo a discussão do paradoxo do infinito e a do teorema de Euler – exemplos que certamente se enquadram no âmbito dos sistemas formalmente organizados a que se refere Moreno (2005). 38

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tempo. Nesse caso, não é que os especialistas tenham mudado de opinião, mas sim que eles foram substituídos por outros especialistas que, por sua vez, mobilizam por vezes outros critérios de pertinência (cf. Bassnett & Lefevere, 1990: 2; Oliveira, 2005: 19-20). Isso não significa que os limites do objeto tenham sido apagados, mas apenas que eles foram deslocados. De todo modo, mesmo deslocados os limites, continua a existir uma diferença entre o que estamos ou não dispostos a aceitar como pertinente, e essa diferença está fundamentada sobretudo na gramática, i.e. no domínio da intersubjetividade normativa – até mesmo no que tange a aceitação do subjetivo como razoável ou puro nonsense.

5. À guisa de conclusão: tradução e jogos de linguagem É constitutivo da tradução mediar entre diferentes culturas, mais ou menos próximas umas das outras. Quando envolve culturas muitos próximas, tal mediação parece reduzir-se a uma mera questão lingüística (ainda que essa imagem seja enganadora); mas há casos em que as culturas são tão distantes que o uso de determinados conceitos ou jogos de linguagem de uma para caracterizar algum conceito ou jogo de linguagem da outra parece sustentar-se apenas numa vaga analogia. O que vem a ser tradução nesses casos? Em seu já citado artigo sobre a filosofia da matemática de Wittgenstein, Steve Gerrard (1991: 139) lembra que a substituição do modelo do cálculo pelo do jogo de linguagem só foi possível no momento em que o filósofo austríaco passou a levar em conta não só as regras internas ao jogo (ou cálculo), mas também sua aplicação no contexto das diferentes formas de vida. Citando um trecho das Observações sobre os fundamentos da matemática em que Wittgenstein discute a função dada a algo semelhante a dinheiro por um povo com hábitos completamente distintos dos nossos, no tocante a esse tipo de transação (IFM I § 153), Gerrard lembra que o dinheiro “tem um papel específico em nossas vidas, e é isso o que justifica traduzir termos estrangeiros por „dinheiro‟” (ibid.; ênfase minha). Ou seja, aqui já é a aplicação análoga dos conceitos em diferentes formas de vida, i.e. jogos de linguagem com função semelhante, o que justifica tratá-los como tradução um do outro – e não mais uma equivalência da forma lógica, como na primeira parte da obra de Wittgenstein (notadamente Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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no Tractatus). Vista dessa perspectiva, a tradução não mais se reduz a uma mera troca de etiquetas apostas ao mesmo, mas comporta alguma diferença, aliada a uma analogia que justifique a própria noção do traduzir – i.e. o uso que fazemos do termo (cf. seção 3.3, acima). Nos Estudos da Tradução, é comum distinguir entre abordagens voltadas para o texto de origem (source oriented) e aquelas voltadas para o texto de chegada e sua função na culturaalvo (target oriented). De modo geral, as abordagens voltadas para o texto de origem demonstram maior preocupação com uma alegada fidelidade ao original e mobilizam concepções mais tradicionais de texto e linguagem. As abordagens voltadas para o texto de chegada, por sua vez, costumam focar dimensões mais amplas, como o sistema literário39 ou o uso específico que será dado a determinado texto, no mais das vezes de cunho pragmático.40 Aqui, a noção de fidelidade perde seu estatuto central, dando lugar a conceitos como a adequação do texto traduzido e o papel exercido pelos diferentes textos nos respectivos sistemas culturais. Não cabe neste trabalho discutir o amplo leque de questões que distinguem essas diferentes abordagens, mas vale a pena retomar brevemente a distinção entre o foco na origem ou na chegada, à luz de algumas das questões aqui levantadas a partir da obra de Wittgenstein. Em sua célebre conferência sobre Os dois métodos de traduzir, o teólogo e filósofo alemão Friedrich Schleiermacher já havia tematizado a tensão entre esses dois pólos do processo tradutório, assimilando a ênfase na cultura de partida ao método da tradução (Übersetzung), reservado a textos de cunho “elevado” – artísticos, científicos etc.; situações de cunho pragmático (do dia-a-dia), por sua vez, seriam do domínio da interpretação (Dolmetschen).41 A distinção proposta comporta uma clara hierarquia, em que a tradução é mais valorizada (por

É esse o caso da Escola de Tel-Aviv e da assim-chamada virada cultural, com destaque para os Países Baixos. 40 Um bom exemplo é a teoria do Skopos, dentro da linha funcionalista alemã – assim como essa tendência como um todo. 41 Nos dias de hoje, essa distinção recobre a diferença entre o trabalho com textos escritos (tradução) ou falados (interpretação), também tematizada por Schleiermacher ao longo de seu argumento. 39

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ser eminentemente “criativa”), ao passo que a interpretação é vista como algo relativamente mecânico:

(...) toda negociação que envolve interpretação é, de modo geral, a estipulação de um caso particular de acordo com condições jurídicas determinadas; a transmissão ocorre apenas para os participantes para quem tais condições são suficientemente conhecidas, e suas expressões em ambas as línguas são determinadas, seja por lei ou por uso e esclarecimentos recíprocos. Diferente é, no entanto, com negociações que, embora muitas vezes semelhantes àquelas na forma, servem para determinar novas relações jurídicas. Quanto menos essas puderem ser consideradas, por sua vez, como um caso particular de um universal suficientemente conhecido, tanto mais conhecimento científico e perspicácia são requeridos já em sua elaboração, e de tanto mais conhecimento científico factual e lingüístico necessitará também o tradutor em seu trabalho. Desse modo, por essa dupla escala, eleva-se o tradutor cada vez mais sobre o intérprete, até o seu domínio mais próprio, a saber, o das produções da arte e da ciência (...). (Schleiermacher, 2001: 30-32; grifos meus)

Para nossa discussão, interessa menos a distinção entre textos mais “elevados”, ou “criativos”, e aqueles de cunho pragmático, tal como proposta por Schleiermacher – e que, num certo sentido, continua a permear muitas visões contemporâneas sobre o processo tradutório. Pelo contrário, a questão que se coloca é se a descrição aqui feita para o processo de interpretação não aponta para uma dimensão que, mutatis mutandis,42 é válida para todo e qualquer processo de tradução, a saber, a diferença entre o uso normativo ou descritivo dos conceitos, i.e. entre a definição dos contornos do objeto e seu uso corrente segundo regras estabelecidas previamente – tal como discutido no supracitado trabalho de Gottschalk (2007). Note-se que a concepção de linguagem de Schleiermacher, característica do romantismo alemão, antecipa, de certo modo, a virada lingüística operada mais tarde por Wittgenstein. Yebra (2000: 123) registra que, “segundo Schleiermacher, „estamos todos sob o poder da língua que falamos; nós e nosso pensamento somos produto dela. Não podemos pensar com total precisão nada que esteja fora de suas fronteiras‟. Não chega, é verdade, pelo menos aqui, tão longe quanto alguns teóricos modernos, que identificam o pensamento com a língua (...).” Ainda que o comentário não mencione o filósofo de Viena, há uma clara afinidade com a idéia tractariana da linguagem como limite do mundo (TFL, 5.6) e a concepção posterior da gramática como fundamento (IF §§ 241, 371). Tais afinidades estão na base de minha releitura do trecho em questão, sob uma ótica wittgensteiniana. 42

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Se o que está em jogo é a “estipulação de um caso particular de acordo com condições jurídicas determinadas”; se as condições são “suficientemente conhecidas” para os participantes e suas expressões “determinadas” em ambas as línguas – isso significa que a norma, que o escopo dos objetos já está bem delimitado, restando apenas ao momento dos “esclarecimentos recíprocos” dirimir eventuais dúvidas restantes sobre esse escopo, i.e. sobre a dimensão normativa envolvida na negociação (é disso e não daquilo que se está falando; sendo que isso e aquilo são bem conhecidos). A contraposição feita a seguir também é esclarecedora, na medida em que um “universal suficientemente conhecido” é apresentado como prérequisito para a negociação do “caso particular”, cabendo estabelecer esse “universal” (Allgemeinen) através do “conhecimento científico” quando o pré-requisito não estiver ainda suficientemente preenchido. Ora, sabemos que, de um ponto de vista wittgensteiniano, não cabe falar de universais, posto que a “essência está expressa na gramática” (IF § 371) e depende dos usos concretos, das aplicações que fazemos dos conceitos. Nessa perspectiva, cabe substituir a idéia de universal pela de objeto, i.e. pelo conceito cujos contornos são definidos pelos especialistas, no caso da ciência, e pela prática cotidiana (legislação, usos etc.) no caso da linguagem ordinária – ou mesmo das artes, com seus cânones, padrões e movimentos estéticos. De todo modo, o que interessa é que a negociação é feita sobre uma base comum, tendo por referência os universais, nos termos de Schleiermacher, ou a gramática, numa perspectiva wittgensteiniana – a qual, rememoremos, não reflete um “acordo de opiniões, mas sim da forma de vida” (IF § 241). Não havendo correspondência entre as diferentes formas de vida, a tradução visará precisamente estabelecer uma correspondência entre aspectos, i.e. entre aplicações análogas. Esse movimento de estabelecer correspondências é eminentemente normativo, pois é ele que define que uma coisa corresponde à outra.43 Note-se a semelhança e a diferença face à idéia de Arrojo (1992a: 70) discutida acima, segundo a qual impomos significados “aos objetos, à realidade e aos textos”. Enquanto norma, esse significado não é dado (empírica- ou ontologicamente), mas sim estabelecido por nós. Por outro lado, para que funcione como norma, precisa ser aceito como tal num nível que fica aquém dos meros acordos de 43

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Relendo a essa luz a distinção entre traduzir e interpretar proposta por Schleiermacher, podemos concluir que o que está em jogo, uma vez mais, não é, portanto, uma diferença de natureza entre os dois processos, mas sim de grau, i.e. da relação entre o momento normativo e o descritivo. O momento descritivo será tão maior, quanto mais definidas estiverem as questões normativas em jogo. No caso das ciências, a determinação e/ou mudança dos conceitos, tal como apresentada por Gottschalk (2007) com base no paradoxo do infinito e no teorema de Euler, há uma clara demarcação entre esses dois momentos. Uma vez estabelecida uma mudança na norma, essa passa a vigorar de modo relativamente inconteste, é introduzida nos manuais escolares e obras de referência etc. – a exemplo do que ocorre atualmente no caso da perda do estatuto de “planeta” antes concedido a Plutão.44 No caso da tradução, que mobiliza os conceitos correntes nas mais variadas áreas do conhecimento e da atuação humana, não há um tribunal de especialistas que julgue caso a caso a pertinência dos usos feitos – salvo na ocorrência de censura, usualmente política ou religiosa. Por esse motivo, a dimensão normativa está mais imbricada ao uso descritivo dos conceitos – a ponto de levar muitas vezes a confusões sobre o que está realmente em jogo, notadamente quando se fala de problemas de tradução. No argumento de Schleiermacher, a distinção entre traduzir e interpretar está recoberta por uma outra, com maior destaque, entre o movimento de levar o leitor para a cultura do autor ou trazer o autor para a cultura do leitor – uma dicotomia que ainda hoje ecoa, de certo modo, nas vertentes teóricas centradas no texto de partida ou de chegada, conforme aludi no início desta seção. A discussão envolve sobretudo aspectos estilísticos, como o uso de “imitação” e

opiniões enfatizados pelas visões sociológicas – ou comunitárias, à maneira do cético de Kripke (1982). 44 É certo que há, muitas vezes, paradigmas concorrentes, como atesta a discussão feita na filosofia da ciência por autores como Thomas Kuhn (1987), dentre outros. Mas a distinção aqui proposta prescinde desse nível de diferenciação – até porque os paradigmas concorrem exatamente pelo estatuto de norma, cujas implicações são detalhadas pela chamada “ciência normal” (i.e. fora dos períodos de “revolução”), nos termos de Kuhn. Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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paráfrase, tentativas de manutenção da sintaxe do original, tradução de poesia em verso ou prosa, estratégias de fluência vs. estranhamento no texto de chegada etc. 45 Aqui, novamente, o que nos interessa de fato não é o tópico mais evidente, mas sim algo que lhe é subjacente, a saber, a inserção do processo tradutório em diferentes jogos de linguagem, nos quais o peso do momento normativo será maior num pólo ou noutro, i.e. na reconstrução do original ou na adequação do texto de chegada. Diferentemente do que tende a pensar o leigo, a chamada tradução técnica não prima pela valorização do original e a busca de fidelidade, exigências face às quais a tradução literária, por exemplo, teria mais liberdade – para ficarmos com algumas das oposições tradicionais mais comummente citadas. Pelo contrário, grande parte dos chamados textos técnicos são traduzidos sob forte pressão de adequação ao uso que lhes será dado, dentro do processo produtivo de uma empresa, por exemplo. Nesse contexto, interessa menos saber quem escreveu o texto, com que estilo e em que condições; interessa mais saber em que medida o texto a ser traduzido pode trazer alguma influência (positiva) nas práticas usuais no contexto de chegada.46 Trata-se, portanto, de um jogo de linguagem em que o texto é levado ao leitor, nos termos de Schleiermacher, e por esse motivo é o pólo de chegada que tem maior força como norma. Esse registro é importante como profilaxia do risco de generalização indevida do estatuto privilegiado conferido ao original na Filosofia e em outras áreas de cunho mais filológico. Se o que é traduzir depende da aplicação que fazemos desse conceito, nos termos pragmáticos aqui apresentados via Wittgenstein (e Moreno, 1995; 2005), é preciso ter sempre em mente como o termo é usado nos nossos diferentes jogos de linguagem. Em Filosofia, por outro lado, a reconstituição do texto de partida como representação fiel do pensamento de seu autor não é uma mera opção estilística, mas sim o próprio objetivo Vide comentário de Yebra (2000) para posições semelhantes defendidas por outros teóricos da tradução ao longo da história. 46 Em seu manual sobre a tradução técnica, Brigitte Horn-Helf (1999) é enfática ao afirmar que “TPs [textos de partida] técnicos não são „originais sagrados‟” (ibid.: 106-109) e apresenta uma vasta tipologia dos defeitos típicos desses originais, a serem corrigidos no processo tradutório (ibid.:162-210). 45

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da tradução, posto que trata-se usualmente, e por definição, de levar o leitor ao texto original, para que possa melhor compreender o pensamento do autor. Isso não significa que, em Filosofia, deva-se necessariamente optar pelo estilo estrangeirizante característico dessa opção, nos termos de Schleiermacher. Significa antes que o que está em jogo não é uma mera descrição de como pensa o autor em questão, mas sim a definição do escopo de seu pensamento. É certo que existem também problemas de tradução decorrentes de lapsos de leitura ou conhecimento insuficiente da língua, cultura ou do estilo do autor, sendo portanto passíveis de caracterização como erro, dentro de uma perspectiva de uso descritivo dos conceitos. Para o leitor que tem acesso apenas à tradução, no entanto, como a tradução constitui o objeto, na medida em que substitui o original, o que era simples erro, do ponto de vista descritivo, assume também o caráter de norma. Mas esses costumam ser os problemas menos interessantes, dado que facilmente passíveis de superação por meio de uma análise textual, lingüística e contextual mais fina – dispensando talvez um conhecimento filosófico mais apurado. Cabe porém advertir contra o risco de tomarmos como uma questão meramente descritiva o que na verdade é de natureza normativa – atribuindo às leituras concorrentes do original, expressas em sua versão traduzida, erros que só poderiam ser considerados como tal uma vez que houvesse um consenso de base na leitura do original.47 Disputas sobre a melhor tradução em Filosofia são, muitas vezes, disputas filosóficas sobre o escopo da obra, e dependem mais dos objetos de comparação utilizados na definição dos aspectos pertinentes do que de conhecimento lingüístico (e factual) propriamente ditos. Na verdade, o que está em jogo nesses casos é o que é conhecimento factual concernente à obra em pauta. Nesses casos, não há como se falar peremptoriamente em erro (termo adequado numa dimensão descritiva), posto que o que está em jogo é uma disputa normativa sobre o objeto em foco. No limite, tais questões configuram verdadeiras situações pato/lebre (Fig. 1, abaixo), como as discutidas na segunda parte das Investigações filosóficas (percepção de aspectos; p. 177 e seg.): posso ver uma coisa ou outra, mas

Essa postura corresponde à mobilização do tertium comparationis como “teoria invisível”, conforme discuti brevemente (via Bassnett & Lefevere, 1990: 4) na seção 1 deste trabalho. 47

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não posso ver as duas coisas ao mesmo tempo. O que eu vejo depende do foco privilegiado, de modo semelhante à relação entre figura e fundo na dupla cruz (Fig. 2).

Figura 1

Figura 2

pato/lebre

dupla cruz

Mas há uma diferença fundamental entre os dois casos. A visão da cruz preta sobre o fundo branco ou, alternativamente, da cruz branca sobre o fundo preto (Fig. 2), constrói-se exatamente a partir da relação entre os dois planos, i.e. eu preciso ver uma coisa para conseguir ver a outra – ainda que possa variar os papéis exercidos nessa relação. A imagem pato/lebre (Fig. 1), por sua vez, coloca uma alternativa, dado que, se percebo os traços à esquerda da imagem como o bico de um pato, não poderei, ao mesmo tempo, percebê-lo como a orelha de uma lebre – o mesmo valendo para a boca da lebre (ou parte de trás da cabeça do pato), do lado direito. O que está em jogo não é uma relação do tipo figura vs. fundo, mas sim de que figura se trata na relação entre os aspectos que a constituem. Em muitas disputas sobre a melhor tradução, é exatamente isso o que ocorre. Essa situação nos coloca diante de um aparente paradoxo: como leitor de Wittgenstein, terei necessariamente de optar por essa ou aquela alternativa como a percepção mais correta da obra, num determinado momento de sua elaboração (sob o risco de cair em con-

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tradição, caso não o faça);48 como teórico da tradução numa perspectiva informada pelo segundo Wittgenstein, terei de admitir a possibilidade de mais de uma leitura (sob o risco de desconsiderar a questão da percepção de aspectos, se não o fizer). Mas o paradoxo é apenas aparente, podendo ser dissolvido com recurso à noção da dimensão normativa na tradução. Aqui, a questão do certo ou errado fica aquém da tradução, e por isso é um contra-senso esperar que a definição do termo mais adequado para traduzir um conceito possa resolver uma disputa – como se essa adequação fosse dada de modo independente dos objetos de comparação. Na verdade, a tradução do conceito é antes de mais nada um sintoma da estratégia de leitura utilizada (a escolha dos objetos de comparação), podendo também vir a ser uma estratégia consciente para melhor fundamentar determinadas escolhas. É apenas quando a dimensão normativa na abordagem do texto de partida estiver estipulada que teremos como falar de erro ou problema de tradução em termos descritivos. Nesse sentido, tem razão Bento Prado Jr. (2004: 30), quando assinala que José Arthur Giannotti (1995: 245) usa uma “tradução estratégica” ao verter a expressão vernünftiger Mensch, em Sobre a Certeza (Wittgenstein, 2004), por “homem racional”. A escolha dos termos não surpreende, se levarmos em conta que Giannotti indaga, já na orelha do livro, sobre a possibilidade de ainda se “manter uma idéia abrangente de racionalidade” na filosofia contemporânea. Nesse contexto, traduzir vernünftiger Mensch por homem racional é uma opção bastante natural. Para julgar se esse uso está errado, ou inadequado, teríamos de investigar qual é o próprio conceito de racionalidade mobilizado na discussão, da qual isolo um pequeno trecho: Depois de batizar uma pessoa, sei o seu nome. Mas a própria pessoa conhece esse nome duma maneira muito especial, pois embora este seu saber provenha da experiência (ÜG, 575), não se pode dizer que a proposição “Sei meu nome” seja uma proposição da experiência, já que, estando além de qualquer dúvida, carece de bipolaridade. É nesse sentido que há um conhecimento na

O mecanismo (argumentativo) ao qual se liga o conceito pode ser mais simples ou mais complexo, mas não pode ser dois ao mesmo tempo; sobretudo, ele não pode ser duas coisas conflitantes, pois isso levaria necessariamente à quebra da máquina. Isso porque o que interessa é a linguagem em uso, trabalhando, e não de férias – ou a máquina quebrada. 48

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Paulo Oliveira base dos juízos, um fundamento deles, fatos que se encaixam num jogo de linguagem. A análise desse processo fornece precisamente o próprio sentido desse fundamento, e com ele o sentido de nossa racionalidade. (Giannotti, 1995: 249; grifos do autor)

A racionalidade enfatizada por Giannotti com base em Sobre a certeza remete, portanto, à distinção entre o momento de estipulação da norma (ou fundamento) e seu uso em proposições da experiência – i.e. na dimensão descritiva em que se coloca a bipolaridade e, por conseqüente, a possibilidade de se falar em erro. Note-se que, ao comparar essa noção de racionalidade com a “razão clássica” ou outras variantes mais recentes, como a “pragmática transcendental” de Apel e o “agir comunicativo” de Habermas, Giannotti enfatiza que a noção wittgensteiniana de gramática “enraíza seus fundamentos numa práxis mutável” (ibid.: 251) e lembra ainda que “essa forma de racionalismo, precisamente por causa da perspectivação de um olhar que se transubjetiva, não cai nem no relativismo nem no culturalismo” (ibid.: 252). Argumentando que o objetivo de Giannotti seria “compatibilizar o universalismo da Razão com o pluralismo dos jogos de linguagem”, Bento Prado Jr. (2004: 30) sugere que a tradução utilizada pelo primeiro, além de “estratégica”, seria “discutível, já que devemos compreender a expressão vernünftige[r] Mensch apenas como aquele que joga bem o seu jogo, que não indaga por suas bases, já que fazê-lo seria, justamente, interromper o jogo” – sendo ele por esse motivo uma pessoa (ou homem) razoável. Mais adiante, Prado Jr. questiona se o que está “na base” é uma “mitologia” ou um “saber positivo”, concluindo que as opções (tradutórias e argumentativas) de Giannotti permitiriam a esse último “avançar não apenas na direção de um universalismo, mas dar alcance ontológico à idéia de jogo de linguagem” (Prado Jr., 2004: 31). O argumento se estende ainda por várias páginas, não cabendo aqui reproduzi-lo na íntegra, pois isso extrapolaria os objetivos de minha própria discussão. De todo modo, creio que os breves trechos destacados já caracterizam as posições dos dois autores de modo suficiente a deixar claro que, nesse caso, estamos diante de uma disputa normativa sobre o escopo do objeto, a saber, a posição de Wittgenstein em Sobre a certeza. Ainda que, como leitor do filósofo de Viena, considere sensata (vernünftig) a tradução pessoa razoável proposta por Prado Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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Jr., alinhando-me à visão de que na base não está senão uma mitologia (que se torna fundamento), como teórico da tradução tenho dificuldade em admitir que possamos aqui falar em erro de tradução – pois falta-nos justamente o consenso de base para que possamos falar em erro. Diferente é o caso da inclusão de um não no texto de Prado Jr., como aponta Giannotti (2004: 178) em sua réplica: Wittgenstein escreve no seu livro Sobre a certeza: “Não cheguei porém à minha imagem do mundo por convencer-me, a mim mesmo, de sua correção, nem por ter sido convencido dessa correção. Mas ela é o pano de fundo herdado sobre o qual distingo o verdadeiro do falso” (Sondern es ist der überkommene Hintergrund, auf welchem ich wahr und falsch unterscheide). Bento está de tal forma obcecado pela tradição que inverte o sentido da frase, tomando uma afirmação pela negação: “Não é o pano de fundo etc.” (p. 156, nota 105).

Certamente, aqui houve um erro – que talvez melhor fosse caracterizado como um lapso, ou até mesmo como problema de revisão, até porque o lapso em si não fundamenta uma linha de argumentação, pelo contrário, pode apenas tornar o argumento menos consistente, ou aparentemente contraditório:49 O que é um Weltbild? Nós já o sabemos: é aquele amálgama de pseudoproposições cristalizado na base de um jogo de linguagem que, ao mesmo tempo, precede a alternativa entre o verdadeiro e o falso e abre espaço para o seu advento ou, numa palavra, o plano onde circulam e se entrechocam os conceitos. (Prado Jr., 2004: 157)

Problema semelhante ocorre quando José Carlos Bruni traduz a expressão bis auf (à exceção de) por até, nas Investigações (§ 31), incluindo a forma da figura do rei como uma determinação conhecida, e não excluindo-a, no sentido de como se isso fosse a única coisa que faltasse para o jogo. A inversão dificulta a compreensão do argumento de Wittgenstein, sobre a qual há amplo consenso entre os comentadores, de que não é a forma do rei o que interessa para o jogo de xadrez. Para uma discussão mais detalhada, cf. Oliveira (2004; inédito, cópia eletrônica pode ser fornecida pelo autor). O ponto a ser retido é que problemas de tradução dessa natureza não levam a uma interpretação concorrente, como no caso da polêmica em torno de vernünftiger Mensch. 49

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Fica claro que o amálgama referido na p.157 por Prado Jr. é o pano de fundo que está “na base do jogo de linguagem” e “precede a alternativa entre o verdadeiro e o falso” e que, nesse ponto específico, parece haver mais confluência do que diferença entre as interpretações dos dois filósofos brasileiros. Em ambos os casos, a questão da tradução mais ou menos adequada não se presta a resolver a polêmica maior, de cunho filosófico, que precede a opção por essa ou aquela alternativa tradutória. Curiosamente, a própria réplica de Giannotti (2004) traz um outro exemplo de tradução estratégica que serve como suporte para toda uma linha argumentativa. Nesse texto, Giannotti evoca a hipótese wittgensteiniana do encontro entre um terráqueo e um marciano que, não partilhando de uma mesma forma de vida, teriam de chegar a um acordo de base que lhes possibilitasse referir-se de modo análogo a, por exemplo, “uma pedra” (ibid.: 176). Na seqüência, Giannotti reforça a necessidade de terráqueo e marciano “se colocar[em] de acordo conforme passam a saber distinguir, por exemplo, „Isto é uma pedra‟ de „Isto é uma árvore‟” (ibid.: 177). Nesse ponto, evoca o já citado § 241 das Investigações, traduzindo-o nos seguintes termos: Assim você diz, pois, que é o entrar em acordo (Übereinstimmung) que decide o que é certo e o que é errado? Certo e errado é o que os homens dizem, e os homens entram em acordo na linguagem. Isso não é uma concordância de opiniões, mas de formas de vida (Lebensform).

O que torna a tradução do aforismo estratégica é a opção por verter übereinstimmen (stimmen die Menschen überein) por “entrar em acordo” (com grifo do autor). Ao salientar o aspecto dinâmico expresso pelo verbo entrar, Giannotti reforça o argumento anterior de que o marciano e o terráqueo terão de chegar a um acordo (de base) para que possam se comunicar, passando a ter aquilo que poderíamos chamar de uma racionalidade comum, nos termos do próprio Giannotti (1995). Ocorre que o que está em discussão no trecho das Investigações em torno do § 241 não é o processo de se chegar a um acordo, mas sim o fato de que os homens, na linguagem, já estão de acordo. A operação tradutória feita por Giannotti transforma um caso extremo, que poderíamos caracterizar como pertinente ao estabelecimento da norma, com aquele do uso descritivo. Do ponto de vista estritamente lingüístico, privilegia-se aqui um Moreno, A.R. (org.). Wittgenstein. Coleção CLE, v. 50, p. 175-244, 2007.

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uso secundário do verbo übereinstimmen (entrar em acordo), quando o padrão mais recorrente é estar de acordo, como pode ser verificado em qualquer bom dicionário de alemão, ou nos corpora eletrônicos hoje disponíveis na Internet,50 como ilustra a figura a seguir, acessível na página http://wortschatz.uni-leipzig.de:

Figura 3 Note-se que apenas um termo no gráfico de uso de Übereinstimmung remete ao aspecto dinâmico (erzielt), no caso, chegar a um acordo. Todas as outras variantes, como as verbais besteht, herrscht, herrsche, gebe e bestand remetem a um consenso já dado, que pode ser de conteúdo (inhaltliche), ou de grau (grundsätzliche, weitgehende). É certo que seria plausível que o uso dado ao termo por Wittgenstein fosse o menos recorrente, de modo que um levantamento quantitativo sobre os diversos usos correntes não serviria de argumento para dirimir a questão. Mas não é esse o caso, como podemos ver na referência do próprio Giannotti à “forma de vida herdada [der überkommene Hintergrund] como uma mitologia que enuncia as regras do jogo”

Diferentemente do problemático conceito de algoritmo de tradução ao qual me referi na nota 17 acima, esse tipo de ferramenta eletrônica certamente tem grande potencial de uso para os Estudos da Tradução, na medida em que documenta os usos concretos dos conceitos, suas colocações (conceitos de uso concomitante) etc. 50

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(ibid.:178; grifo e acréscimo em alemão meus). Ora, se a forma de vida é herdada, se ela é o fundo “sobre o qual distingo o verdadeiro do falso”, ela é a norma, é aquilo sobre o qual já há consenso tácito (na linguagem); por tudo isso, a tradução de stimmen die Menschen überein por “os homens entram em acordo” (grifo meu) é não apenas estratégica, como também inadequada – pois transforma um “acordo” que serve de base para a dimensão descritiva (as proposições da experiência) no devir da norma: uma confusão conceitual da qual cumpre fazer a terapia, e que só se explica pela força do modelo racionalista mobilizado por Giannotti, a quem pode ser atribuída, nesse ponto, “obsessão” semelhante àquela que teria levado Prado Jr. trocar uma afirmação por negação (Giannotti, 2004: 178, citado acima). Esse breve comentário, não de todo imparcial, de uma disputa recente sobre a questão dos problemas de tradução em Filosofia, ilustra bem o caráter normativo desse tipo de discussão, calcada numa tradição que valoriza o texto de partida, dentro de um jogo de linguagem específico. Retomando o cotejo com o pólo oposto, aqui ilustrado com recurso à questão dos textos técnicos (de cunho pragmático), podemos concluir que o que é tradução, e o que é problema de tradução, depende, pois, em grande parte, do jogo de linguagem em que se dá a mediação do processo tradutório. No momento em que tivermos compreendido a natureza normativa (e não apenas descritiva) de grande parte dos alegados problemas de tradução, teremos dado um passo importante para a superação de uma confusão conceitual que habita freqüentemente nosso imaginário, e estaremos mais perto de uma concepção de linguagem e tradução tributária da obra do segundo Wittgenstein. Creio que os elementos arrolados neste trabalho fornecem algumas balizas relevantes nesse sentido.

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