World Music - o planeta da (di) visibilidade

June 2, 2017 | Autor: Célia Aldegalega | Categoria: World music
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World Music – o planeta da (di)visibilidade O termo world music partilha com cultura a imprecisão e vacuidade que têm vindo a inspirar a produção de quilométricas teorizações, inconclusivas quanto à fixação de significados que não excluam, não categorizem ou generalizem. Se no caso de conceitos de cultura o movimento é dinâmico, já world music afigura-se um beco sem saída. A designação é atribuída a Robert E. Brown (1927-2005), músico e professor de Etnomusicologia, que no início da década de 60 do século XX assim nomeou um programa pioneiro de estudos de música “não ocidental” na Wesleyan University, no Connecticut. Etnomusicologia

institui-se

como

contraponto

à

Musicologia,

associada

canonicamente a música ocidental, sobretudo clássica. Configuram uma perspetiva binária: a música ocidental e “a outra”, ou “as outras”. A etnomusicologia gemina com a etnografia nas origens colonialistas. Wim Van Der Meer refuta a existência da etnomusicologia: The very idea of ethnomusicology is a remnant 1

of colonialism (Meer, 2005), tendo proposto a criação da Endomusicologia: estudos de música de culturas específicas nas perspetivas histórica, crítica e teórica, na qual deveriam ser integrados os estudos de música ocidental; e da Exomusicologia: estudos comparatistas, étnicos e culturais. (Contudo, esta última nomenclatura surge associada concomitantemente a uma bizarra disciplina de estudos de música extraterrestre!...) No site2 do “Robert E. Brown Centre for World Music” da Universidade de Illinois, encontra-se a parentética declaração: (The idea behind the phrase was not that all kinds of music should be blended together to make a sonic stew, but that the study of music should take in the astonishing variety of the world’s traditions.) (University of Illinois School of Music, sd)

A referência é um indisfarçado remoque ao hibridismo que, entretanto, passou a ser traço distintivo do mercado World Music. Ressuma uma perspetiva assente na tradição e autenticidade, que pode indiciar uma visão essencialista.

1

Professor de Musicologia na Universidade de Amesterdão (retirado), Antropólogo, Musicólogo

Cultural. Especialização em músicas da Índia e do Brasil. 2

http://cwm.illinois.edu/

1

Intenções

mais

pragmáticas

animaram

as

onze

editoras3

discográficas

independentes britânicas reunidas no pub “Empress of Russia”, em Islington, a 29 de junho de 1987, com o objetivo de ampliar o impacto comercial dos seus catálogos. Ponto de ordem crucial: “Adoção de um título de campanha/media”. Acordaram no termo “World Music”, que assim adquiriu estatuto de género musical, quando, em rigor, se trata de um branding. Pretendia criar-se um rótulo que agilizasse a comunicação mediática e permitisse aos retalhistas catalogar discos em escaparates, facilitando a identificação junto do consumidor. O argumento foi a dificuldade experimentada pelo consumidor em fixar ou pronunciar o nome dos artistas ouvidos na rádio. Localizados, ordenados e devidamente classificados, os impronunciáveis artistas tornar-se-iam identificáveis. Uma espécie de resgate da invisibilidade cultural segundo Fanon (Fanon, 2008).

'World Music' seemed to include the most and omit the least, and got it on a show of hands. (Anderson, 2000). Considerando que as demais expressões em análise foram: “Tropical”; “Ethnic”; “Worldbeat4”; “International Pop” e “Roots”, o aforismo “do mal o menos”, adequa-se. Mas o que é o máximo incluído e o mínimo omitido? Toda a produção musical tradicional do planeta é mapeável e ficam por resolver manifestações como os famosos “Le Mystère des Voix Bulgares”, música de origem celta (Clannad...), o Fado, o Klezmer... toda a produção tradicional europeia e ocidental, em suma. O segundo press release da campanha para fixação do termo define-o pelo que não é. Trying to reach a definition of 'WORLD MUSIC' provoked much lengthy discussion and finally it was agreed that it means practically any music that isn't, at present, catered for by its own category e.g.: Reggae, jazz, blues, folk. (Anderson, History of World Music, 2000)

Deste modo agruparam-se artistas e produtos artísticos desclassificados, amalgamando-os numa categoria indiferenciada. Observe-se que, intuitivamente, o falante português tende a assumir o termo como intraduzível como Jazz, Blues, Reggae, Rock... Contudo, “Músicas do Mundo”, a tradução proposta pelo festival FMM de Sines, acrescenta-lhe ressonâncias de pluralidade. 3

Cooking Vinyl, Earthworks, GlobeStyle, Hannibal, Oval, Rogue, Sterns, Triple Earth, Topic, WOMAD,

World Circuit. 4

Este, de resto, já em uso por alguns promotores e produtores de origem britânica, que assim

nomeavam as suas propostas inspiradas em sons de culturas não ocidentais.

2

No ensaio I buried ethomusicology (Meer, 2015), Van Der Meer lamenta a recente regressão à disciplina de Etnomusicologia, que tinha renomeado como Musicologia Cultural, levada a efeito pelo seu sucessor, que terá justificado a retoma por questões de marketing, já que o termo é reconhecido universalmente. Temos, portanto, que quer no setor académico, quer no comercial, o marketing se revela decisório para a fixação e cristalização de termos que transportam marcas colonialistas. Whether in its capacity to enact a “new sensibility,” or in its ability to reproduce “new hybrid life forms,” world music is understood by many of its producers, brokers, and consumers as productive. (Roshanak, 2015, p. 84)

O mercado World Music afirma-se como um setor lucrativo, com quota de mercado equiparada às de géneros mainstream, importando os seus processos e replicando os seus modelos. Articulando a mitificação com recurso a chavões como primitivo, folk, étnico, raça, exótico, numa primeira fase, e mais recentemente, multicultural, diversidade, intercultural, dirige a produção para o ocidente, tipificando uma oferta que reifica uma tipologia de artistas e produtos artísticos com traços identitários específicos miscigenados com modelos de espetacularidade ocidentais, estimulando hibridismos e blending, e edificando um

ranking de lideranças artísticas através de endossamentos diretos e indiretos de artistas ocidentais (anexos p.7). Os materiais incluídos em anexo -uma newsletter e um convite para workshopenfatizam a referenciação por associações com artistas ocidentais icónicos. Estas menções creditam os artistas world junto do potencial público, que é assumido como incapaz de estabelecer um juízo de valor sobre Alim Qasimov sem apelo ao reconhecimento expresso de Björk e Jeff Buckley. Esta relação sugere patrocínio (no sentido de patronage), que implica o efeito secundário da regulação. Neste contexto, os artistas-patrocinadores regulam o que é promovido e funcionam -presumivelmente de modo involuntário- como gatekeepers. A Billboard viria a constituir lista (chart) World Music a partir de 1990, os galardões Grammy contemplam a categoria a partir de 1991, na sua 34.ª edição. (anexo p.6). A observação dos artistas galardoados é reveladora e constituiria por si um levantamento para estudo pormenorizado de indícios de critérios e da influência de contextos sociopolíticos, económicos, culturais, e até emocionais – Ravi Shankar é galardoado postumamente escassas semanas após o falecimento. Algumas referências: o primeiro galardão é atribuído a um norte-americano; o protagonismo do Brasil; a recorrência da África do Sul, país africano

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tecnologicamente mais avançado. Acresce que a maioria dos fonogramas galardoados têm produtores musicais ocidentais, e/ou foram gravados no ocidente. A alguém que acusava Salif Keita de ocidentalização por ter incluído sintetizadores no seu primeiro álbum “Soro” (1987), Youssou N’Dour terá respondido que os músicos têm nacionalidade, os instrumentos não, e que um sintetizador tocado por um senegalês, passa a ser um instrumento senegalês. Não será exatamente o borrowing and lending de Rosaldo (Rosaldo, 1933), antes se aproximando a apropriação. A tónica, no entanto, é posta na nacionalidade, não na cultura. One question has yet to be asked regarding the relatively recent phenomenon of world music: What can music teach us about other cultures? If we take Youssou N’dour’s singsong text at face value, the answer would be “not very much,” since we have known for some time that “everybody has a culture”. (White, 2012)

Os músicos são por definição border crossers. Entre transnacionalidades e experimentação inerente à criatividade, a formação de novas propostas artísticas e culturais é inevitável, e muitas vezes com excelentes desenlaces. Seria despropositado, por outro lado, perspetivar culturas estáticas, fixando a expetativa em propostas culturais milenares e imutáveis. Contudo, muitas propostas artísticas são promovidas como representativas de autenticidade cultural, quando não passam de representações de autenticidade. Acresce a contaminação de um modelo ocidental de vedetismo. A parte saliente do gigantesco repositório que a marca World Music acolhe acomoda-se a um espartilho que lhe garante visibilidade, reconhecimento à escala global e estatuto socioeconómico. No anedotário do setor musical português conta-se um episódio em que Ravi Shankar foi fortemente aplaudido por uma multidão em delírio logo aos primeiros acordes. Na verdade, o músico estaria apenas a afinar o instrumento. O exotismo sonoro (e visual) da cítara, o estranhamento por esta suscitado e a iliteracia musical (adubados provavelmente com alguns consumos ilícitos) induziram o público a reagir ao mero procedimento técnico, tomado por execução artística. Toda a receção cultural é contaminada por contextos e pela cultura do recetor. Ravi Shankar e músicas da Índia representarão os primórdios do interesse de certos nichos das sociedades ocidentais, nomeadamente movimentos hippie e misticismos associados à cultura hindu no particular e ao oriente, no geral. O impulso primordial e subjacente é positivo, mas quem se move no circuito World Music já testemunhou o tratamento desigual prodigalizado a artistas que não ocupam a

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primeira linha. Remunerações que tomam como referencial o nível de vida dos países dos artistas, ou seja, muito abaixo das convenções do setor; condições logísticas que chegam a traduzir-se em dormitórios coletivos e serviço de refeições em recipientes partilháveis (uma tigela e várias colheres) serão cada vez mais episódicas, na medida em que a globalização facilita a difusão de informação por via tecnológica e contacto direto, e a experiência acumulada permite a reivindicação de melhorias e condições equiparáveis às de artistas com maior cotação. E neste ponto emerge a dimensão ética, que afinal de contas paira sobre todas as vertentes deste mercado, muitas vezes só estimulada pela vigilância de observadores, criativos e teóricos que interpelam as marcas pós-colonialistas do World Music. Modos de gestão de alteridades perpetuam diferenciações. Vide propostas artísticas nacionais, como o Festival Todos, decorrente do slogan “Todos diferentes, todos iguais”; o agendamento sistemático de espetáculos/festivais como Lisboa Mistura, confinados ao Intendente, plasmada zona de contacto em que a negociação é neutralizada pela celebração. O Lisboa Mistura tem-se afirmado, desde 2006, como um espaço intercultural destinado ao conhecimento e à inscrição de novas linguagens e tendências. Em 2015, a cultura musical urbana é, como não podia deixar de ser, uma ponte para as dimensões sociais e políticas que integram o cosmopolitismo de uma Lisboa eterna. (Festas de Lisboa, 2015)

A marca World Music é edificada como resposta à invisibilidade cultural no ocidente de artistas não ocidentais. Invisibilidade essa que radica num passado colonial, num contexto cultural hegemónico que até hoje se traduz reminiscentemente em paternalização e patrocínio (patronage) de artistas e produtos artísticos. A maior visibilidade é conferida aos que mais se aproximam dos paradigmas da cultura ocidental. Espaço de representação de um imensurável conjunto de manifestações culturais performativas, na atualidade, a narrativa do World Music integra capitalismo transnacional, expansão económica à escala global, ubiquidade tecnológica, pluralismos estéticos contraditórios, transculturalidade e homogeneização. Célia Aldegalega | janeiro 2016 (trabalho realizado no âmbito da disciplina de Comunicação Intercultural do curso de LLC, FLUL 20152016, professoras Manuela Ribeiro Sanches e Elsa Peralta)

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ANEXOS Grammy Melhor Álbum de World Music Ano

Álbum-artista

Nacionalidade

1991

Planet Drum, Mickey Hart and guests*

EUA e outros

1992

Brasileiro, Sérgio Mendes

Brasil

1993

A Meeting by the River, V.M. Bhatt and Ry Cooder

Índia-EUA

1994

Talking Timbuktu, Ali Farka Toure and Ry Cooder

Mali-EUA

1995

Boheme, Deep Forest

França

1996

Santiago, The Chieftains

Irlanda

1997

Nascimento, Milton Nascimento

Brasil

1998

Quanta Livre, Gilberto Gil

Brasil

1999

Livro, Caetano Veloso

Brasil

2000

João Voz e Violão, João Gilberto

Brasil

2001

Full Circle- Carnegie Hall 2000, Ravi Shankar

Índia

2002

Mundo, Rubén Blades

Panamá

2003**

(T) Sacred Tibetean Chant, Monks of Sherab Ling Monastery

Tibete

(C)Voz d’Amor, Cesária Évora

Cabo Verde

(T) Raise Your Spirit Higher, Lady Smith Black Mambazo

África do Sul

(C) Egypt, Youssou N’Dour

Senegal

(T) In The Heart Of The Moon, Ali Farka Toure & Toumani

Mali

(C) Eletroacústico, Gilberto Gil

Brasil

(T) Blessed, Soweto Gospel Choir

África do Sul

(C) Wonder Wheels, Lyrics By Woodie Guthrie, Klezmatics

EUA (judaica)

(T) African Spirit, Soweto Gospel Choir

África do Sul

(C) Djin Djin, Angelique Kidjo***

Benim

(T) Ilembe: Honouring Shaka Zulu, Lady Smith Black Mambazo

África do Sul

(C) Global Drum Project, Giovanni Hidalgo, Mickey Hart, Sikiru Adepoju &

Porto Rico, EUA, Nigéria

Zakir Hussain

e Índia

(T) Douga Mansa, Mamadou Diabate

Mali

(C) Throw Down Your Heart: Tales From The Acoustic Planet, Vol. 3 - Africa

EUA

2004 2005 2006 2007 2008

2009

Sessions, Béla Fleck 2010

(T) Ali and Toumani, Ali Farka Toure e Toumani Diabate

Mali

(C) Throw Down Your Heart, Africa Sessions Part 2: Unreleased Tracks, Béla

EUA

Fleck 2011****

Tassili, Tinariwen

Argélia

2012

The Living Room Sessions Part 1, Ravi Shankar

Índia

2013

Savor Flamenco, Gipsy Kings

Espanha

2014

Eve, Angelique Kidjo

Benim

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* Transcrição exata do site dos Grammy Awards. Os convidados eram: Zakir Hussai, e T.H. “Vikku” Vinayakram, Índia; Sikiru Adepoju e Babatunde Olatunji, Nigéria; Airto Moreira e Flora Purim, Brasil; Giovanni Hidalgo e Frank Colón, Porto Rico. ** a partir deste ano surgem as categorias “best traditional world music album” e “best contemporary world music album” *** o álbum contou com as participações de Peter Gabriel, Alicia Keys, Joss Stone, Carlos Santana, Brandford Marsalis e Ziggy Marley. **** a subcategorização em tradicional e contemporâneo é descontinuada.

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HUMANIDADE

Quando o homem de todos os planetas For capaz de se revelar À altura do outro ser humano No ciclo da existência E compreender, Compreender Que todos os seres vivos são iguais No nascimento na morte E nas estruturas físicas Que compõem a humanidade Nesse dia, será uma festa eterna

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E o sol Rodará finalmente À volta de todos os continentes. Compreender será então: Dar vida real A todos os seres dos planetas viventes Planetas chamo eu Às esferas humanas Sem corredores estanques Alda Espírito Santo*, É Nosso o Solo Sagrado da Terra (1978) *Poeta são-tomense. Letra de tema “Humanidade”, música de Oswaldo Santos, interpretação de Marta Dias e Kalaf, incluído no álbum “Quantas Tribos”, com edição a 5 de fevereiro de 2016.

Bibliografia Anderson, I. (sd de Março de 2000). History of World Music. Consultado em 15 de janeiro de 2016, de fRoots: http://www.frootsmag.com/content/features/world_music_history/ Bhabha, H. K. (1994). The Location of Culture. London and New York: Routledge. Fanon, F. (2008). Pele Negra Máscaras Brancas. (R. d. Silveira, Trad.) Salvador: EDUFBA.

Festas de Lisboa. (sd de sd de 2015). Obtido de EGEAC: http://www.festasdelisboa.com/events/category/lisboa-mistura/ Meer, W. V. (26 de janeiro de 2005). The Location of Music: Towards a Hybrid Musicology.

Tijdschrift voor Muziektheorie, 1, 57-71. Obtido em janeiro de internet PDF Meer, W. V. (24 de fevereiro de 2015). I Buried Ethnomusicology. Amesterdão, NL: Cultural Musicology iZine. Rosaldo, R. (1933). Border Crossings. Em R. Rosaldo, Culture and Truth. The Remaking of

Social Analysis (pp. 196-217). Boston: Beacon Press. Roshanak, K. (2015). Racial Noise, Hibridity and Miscegenation in World Music. Em

Modernity's Ear: Listening to Race and Gender in World Music (pp. 82-107). NY: NYU. Taylor, T. D. (1997). Global World Music, World Markets. NY: Routledge. University of Illinois School of Music. (sd de sd de sd). Robert E. Brown Centre for World

Music. Obtido em 14 de janeiro de 2016, de University of Illinois School of Music: http://cwm.illinois.edu/ White, B. W. (2012). The promise of World Music: Strategies for Non-essentialist Listening. Em B. W. White, Music and Globalization: Critical Encounters (pp. 189-218). Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press.

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