XAVIER, Valêncio. Aí vem o Febrônio. In: ______. Crimes à moda antiga: contos verdade. São Paulo: Publifolha, 2004. p. 110-137. (Comentários)

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Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Faculdade de Letras Disciplina: Teoria Literária III (LEL200) Professor(a): Ricardo Pinto de Souza Estudante: Jônatas Ferreira de Lima Souza (DRE: 115044769)

AÍ VEM O FEBRÔNIO Comente o conto “Aí vem o Febrônio”, de Valêncio Xavier. Comente especificamente dois aspectos da obra: a relação entre imagem e texto e a questão esquecimento. Tente utilizar os textos de Aumont como base teórica. AUMONT, Jacques. A imagem. trad. Estela Abreu e Cláudio Santoro. Campinas: Papirus, 1993. XAVIER, Valêncio. Aí vem o Febrônio. In: ______. Crimes à moda antiga: contos verdade. São Paulo: Publifolha, 2004. p. 110-137.

O referido conto de Valêncio Xavier contém quatro imagens. A primeira ilustra uma pessoa idosa deitada num colchão, coberta por um lençol e com a cabeça em uma almofada. Aparentemente um homem de feição cansada. Logo de cara não sabemos onde essa pessoa se encontra, qual seu estado de saúde e, por ser uma imagem que destaca apenas traços escuros e claros da foto, também não sabemos a sua cor de pele, pelos ou olhos com exatidão. Essa imagem é a segunda informação do texto, pois, a primeira é o título: AÍ VEM O FEBRÔNIO. O que é um “FEBRÔNIO”? um assunto? uma gíria para o estado de alguém que se encontra com muita febre? A pessoa idosa está “febrônia”? o título do texto totalmente em caixa alta (letras maiúsculas), não nos permite identificar mais informações. Para sabermos o que é um febrônio e porque isso vem aí, devemos continuar lendo o conto do autor. O que, portanto, essa imagem ilustra? Da forma que está aparecendo apenas confunde o leitor mais desavisado. Mas também podemos dizer que, ainda não há o que confundir até aí, pois o título foi a única coisa informada. Essa foto nos traz curiosidade como espectadores: olhamos e não conseguimos entender a que se refere e porque está lá. Falando sobre a questão das imagens, Jacques Aumont elenca em sua obra: A imagem, muitas possibilidades que cercam as imagens e a atuação do observador. É um estudo conceitual, muito amplo, que propõe múltiplas relações. Por exemplo, o autor nos questiona: por que se olha uma imagem? E ele sugere uma resposta:

Uma das primeiras respostas à nossa questão passa pois por outra questão: para que servem as imagens (para que queremos que elas sirvam)? [...] em todas as sociedades, a maioria das imagens foi produzida para certos fins (de propaganda, de informação, religiosos, ideológicos em geral) [...] o que faz com que ela esteja em situação de mediação entre o espectador e a realidade.1

Isso justifica, para nós espectadores, a necessidade de uma imagem ter que possuir um caráter nocional de esclarecimento, muito mais que de obscurecimento. A imagem da pessoa idosa deitada, não está inteiramente exercendo sua função de ilustração. Logo, uma estratégia e um recurso de Valêncio Xavier para seu conto. Ironizar a presença da imagem? Assim, podemos pressupor um deslocamento intencional de sentido ilustrativo para outro que não seja esse? Como mencionou Aumont, precisamos que ela sirva para alguma coisa no texto, que ela represente/ilustre algo no texto e que nos sirva de mediadora entre nós e o que está sendo apresentado no texto. Em suma, esta primeira imagem parece estar ali para provocar o leitor, instigando-o a curiosidade; afinal, o que é esse febrônio? Tem relação com a imagem? Chegamos na segunda imagem e agora sim, devido a leitura do conto até o momento, sabemos do que se trata esse febrônio, ou melhor, Febrônio Índio do Brasil.2 Um homem negro, encontrado, pelas autoridades, na rua e em condições socialmente depravadas, no Rio de Janeiro, em 1926, outubro. As autoridades levaram-no para o Pavilhão de Observações do Hospital de Alienados, aparentemente, por ser “homem de cor”3. Nos é informado que Febrônio escreveu um livro intitulado: Revelações do Príncipe do Povo. Não apenas isso. Ele também tem duas tatuagens: DCVXVI, em volta do abdômen e lombar; Eis o Filho da Luz, no tórax. Tem cerca de 30 anos.4 Essas informações estão no conto. Estão escritas. Sabemos que Febrônio é gente, é humano. Qual a relação desse Febrônio com a imagem da pessoa idosa? A primeira imagem ainda não nos diz sua função (se é que tem uma). Por sua vez, a segunda imagem do texto, ilustra o dragão do sonho de Febrônio enquanto dormia nas ruas. A imagem (um desenho de Febrônio)5 ilustra uma visão que teve enquanto dormia. Contudo para sabermos que seu desenho representa, na verdade, um dragão, temos que virar a página do conto. Sem virar a página, pensamos, ao ver os rabiscos, que se trata de um pássaro com um longo bico e uma pequena crista no topo da cabeça, que aparenta ter quatro patas e uma cauda com plumas. 1

AUMONT, 1993, p. 78. XAVIER, p. 112. 3 XAVIER, p. 112. 4 XAVIER, p. 111-114. 5 XAVIER, p. 115. 2

Acreditamos que ainda houve, de sua parte, a tentativa de rabiscar uma asa caída, mas, muito confusa. Para Febrônio, era um dragão de enorme cabeça e bico comprido, pelos vermelhos, semelhante a chamas. Era um dragão animado, que interagia com Febrônio e o esmagava.6 Com muito esforço de abstração, diríamos que se trata de uma imagem de valor de símbolo, quando Aumont menciona que “a imagem simbólica é a que representa coisas abstratas (‘de um nível de abstração superior ao das próprias imagens’)”.7 Qualquer dragão, por si, já é uma representação de abstração. As mais famosas, para nós, são as ditas “medievais” de quadrinhos e filmes. Para Febrônio, pensamos, no Rio de Janeiro da década de 1920, era mais um tipo de fênix enorme de quatro patas, claro, também, fruto de uma representação de abstração. A terceira imagem8 é um tradicional quadro cristão que retrata um anjo (tão abstrato quanto um dragão ou uma fênix). Não é qualquer anjo, mas o Anjo da Guarda, que protege crianças do mal caminho e do mal em si. Xavier insere essa imagem no seu conto, na página seguinte após nos falar um pouco mais do livro de Febrônio: As Revelações do Príncipe do Fogo, de 67 folhas.9 Segundo ele, a imagem é a primeira página do livro. O porquê dessa imagem está no texto, já está explicado. Mas a ironia do livro do Febrônio ao ter justamente essa imagem na primeira página, agora, até este ponto do conto, nos é clara. Nos foi revelado que, Febrônio, em um de seus sonhos, recebeu de uma moça loira a missão de tatuar dez meninos também com as letras DCVXVI. Fazendo isso, ele conseguiria matar o dragão, e, dessa forma, dominar o mundo.10 Primeiramente, fez as tatuagens em si próprio, fez o livro e pagou por sua impressão. Encontra alguns meninos (até o momento, Jacob Edelman e Álvaro) e os tatuam com uma ponta de espada que havia sido roubada por ele de uma loja. Os pensamentos de Febrônio são descritos no conto:

O Dragão se transformou num boi de longos chifres que, logo que me vê, procura me alcançar e me matar. Quando o avisto, trato de subir numa árvore. Sinto que a árvore sobe quando ele se aproxima e desce quando ele se afasta, robe e desce, sobe e desce, sobe e desce...11

Eis aí a ironia da imagem do Anjo da Guarda. Segundo Aumont, 6

XAVIER, p. 116. AUMONT, p. 79. 8 XAVIER, p. 126. 9 XAVIER, p. 125. No início do conto, a palavra “Povo” está no lugar de “Fogo”. 10 XAVIER, p. 117. 11 XAVIER, p. 123. Pensamos ser a descrição de um delírio de Febrônio ao violentar sexualmente o jovem Jacob Edelman. 7

A imagem traz informações (visuais) sobre o mundo, que pode assim ser conhecido, inclusive em alguns de seus aspectos não-visuais. [...] essa função geral de conhecimento foi também muito cedo atribuída às imagens.12

Ou seja, o sentido geral, universal, conhecido, que carrega a imagem do Anjo da Guarda, está sendo subvertido pelas ações de Febrônio. Isso é irônico. Febrônio, como mostra o conto, violentava sexualmente jovens, chegando a matar dois (Alamiro e Joãozinho). Ao estrangular Joãozinho, Xavier descreve o delírio de Febrônio:

Antes de teus meigos lábios fechar, já está executado, ouve-me, meu mimoso Filho, tu és a flor espontânea do meu formidável encanto [...] tu és a justa obra infantil em gratidão divina, [...] Meu Filho tu és o mystério que beija todos os encantos.13

As autoridades prendem Febrônio, que confessa os assassinatos, em 1927. Mas para ele, as imagens de seus delírios são reais, não são delírios nem fruto de sonhos vãos, são a verdade, são revelações de Deus (certo Deus-Vivo), sendo ele o grande mensageiro e guerreiro dessa ordem contra Lúcifer. Assim argumenta Febrônio no conto: “O que fiz foi sob as ordens das revelações. Não pensem que matei pelo simples prazer de matar.”14 Febrônio foi enviado para o Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, falecendo em 1984, ainda internado pela condenação, no Hospital Central do Complexo Penitenciário do Rio de Janeiro. Foi o prisioneiro de ficha nº 00001, sendo o mais antigo do Brasil.15 Já esquecidos da primeira imagem? O autor insere-a novamente no conto.16 Seria ela uma vítima do Febrônio? Ela reaparece para nos dizer que se trata do próprio Febrônio, em seus últimos dias de vida, após 57 anos de prisão. Acreditamos, portanto, que, o jogo imagens/fotos utilizado aqui por Xavier, pode ser entendido, segundo Aumont, quando o autor fala do papel do espectador para com a imagem. Citando Gombrich, Aumont menciona que

Para ele, a percepção visual é um processo quase experimental, que implica um sistema de expectativas, com base nas quais são emitidas hipóteses, as 12

AUMONT, p. 80. XAVIER, p. 131-132. 14 XAVIER, p. 132. 15 XAVIER, p. 136. 16 XAVIER, p. 135. 13

quais são em seguida verificadas ou anuladas. Esse sistema de perspectivas é amplamente informado por nosso conhecimento prévio do mundo e das imagens [...].17

A primeira imagem e a última imagem são as mesmas na aparência, mas são diferentes em suas implicações. Em certo ponto, não são as mesmas imagens pois causam efeitos bem distintos ao espectador. Na primeira, uma pessoa idosa, aparentemente cansada ou doente, febril (“febrônio”). Não imaginamos mais do que isso. A última, uma foto de Febrônio Índio do Brasil, vagabundo, ladrão, homicida, pedófilo, religioso, viveu em um Rio de Janeiro, ainda capital do Brasil, na década de 1920, conviveu com uma sociedade naturalmente racista, hostil aos mulatos e negros; viveu sob uma forte sociedade de índole cristã, também preconceituosa; estava em seus últimos dias, internado como detento mais antigo do Brasil. Valêncio Xavier criou um abismo entre as mesmas fotos, forjou uma ilusão que torna as mesmas fotos, como fotos distintas ao espectador: “a ilusão não é a finalidade da imagem, mas esta a tem de certo modo como horizonte virtual, senão forçosamente desejável.”18 A última foto traz à memória do espectador, elementos que já não fazem mais parte de seu tempo. Não se trata da mesma sociedade, uma sociedade espontaneamente racista. Os preconceitos raciais continuam, mas, mascarados e considerados inconstitucionais. A última foto, conta sobre um Rio de Janeiro quase esquecido. Não cogitávamos quem ou o que era Febrônio, mas, agora já lembramos o quanto somos esquecidos.

Um dragão? Uma fênix? Fonte: XAVIER, p. 115. 17 18

AUMONT, p. 86. AUMONT, p. 103.

O Anjo da Guarda... Febrônio? Fonte: XAVIER, p. 126.

Primeira e Última imagem do conto: AÍ VEM O FEBRÔNIO Fonte: XAVIER, p. 110; 135.

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