Xerazade - a última noite

July 27, 2017 | Autor: Manuela Gonzaga | Categoria: Mitologia, Romance
Share Embed


Descrição do Produto

XERAZADE A ÚLTIMA NOITE

MANUELA GONZAGA

XERAZADE

A ÚLTIMA NOITE

Mais la vie sépare ceux qui s’aiment, Tout doucement, sans faire de bruit Et la mer efface sur le sable Les pas des amants désunis «Les feuilles mortes», Jacques Prévert1

1

Poeta e escritor francês (1900-1977).

D O P A L C O E D A C A V E RNA

Como o tempo começou a acelerar, receio bem que já não nos reste muito. Por isso, não me fixarei demasiado em enredos recentes. Parece-me tão pobre ficar pelo detalhe quando podemos contemplar o conjunto. Talvez depois possamos descer ao microcosmo da pequena intriga recente. Mas antes, deixa que te transmita fragmentos ocultos da nossa história de dois que foi sempre de tantos. Para saberes que o que nos une é infinitamente mais poderoso do que a desunião, fruto de distâncias só aparentemente intransponíveis. Revelo-te a sacralidade no profano viver. Terei de começar por contrapor ao mito da caverna o paradigma do palco. É o mesmo olhar, mas na direção inversa. Da caverna, contemplávamos as sombras refletidas nas paredes irregulares e conferíamos-lhes vida autónoma. E porém, aquelas ilusões criadas pela luz que rompia a escuridão matricial do túnel eram o que mais próximo da realidade exterior podíamos alcançar. Cá fora, fora do nosso alcance, derramava-se a intolerável claridade, sob o dossel da infinitude celeste cuja visão nos enlouqueceria. Precisámos de tempo, para enfrentar uma e outra. Quando o conseguimos, rastejando para fora da matriz, ao

10

MANUELA GONZAGA

encontro do que passámos a considerar a realidade em si, perdemos o acesso às origens. E continuámos presos. Já o teatro propõe-nos o caminho inverso — o regresso ao útero da história. A cortina só se abre quando o público mergulha na escuridão. É então que tem início o ofício sagrado, já que o que se passa no palco, iluminado por velas, tochas, refletores, holofotes ou luminárias, é sempre um exercício que busca religar a humana transcendência à sua fugidia existência. Parece-te excessiva esta descrição de um espaço que, para muitos de nós, começou num anfiteatro ao ar livre, fosso de orquestra com altar de sacrifícios, e um pórtico que dava para o espaço cénico? Engano. Em todas as culturas, o teatro é sagrado desde a matriz. Continua a sê-lo, por mais desvirtuado que se nos apresente. Recordo-te que num desses anfiteatros de bancos de pedra, ou seriam ainda de madeira?, nos encontrámos. Sei lá porquê, sei lá como e sei lá quando. Lembras-te, amor? Eu não. Mas sempre que entro num teatro, seja qual for a sua dimensão, sinto um frémito de reverência. Não pelo espaço em si, mas pelo que ele comporta, guarda e permite transpor. Sentia exatamente o mesmo no tempo em que trupes de saltimbancos, palmilhando o mundo de terra em terra, levavam esta magia no bojo das suas miseráveis carroças de mulas, que, num desdobrar de tendas, numa fanfarra de músicas, e num artifício de corpos e adereços, pelo poder sagrado da palavra, devolviam à vida enredos de comédia ou tragédia, que ignorados demiurgos haviam engendrado. Quem eram eles? Nunca sabíamos. Não queríamos realmente saber. Não eram os autores das histórias que nos importavam. Com efeito, em tablados de madeira velha erigidos em pequenas praças de vilas, povoados ou cidadezinhas remotas, criaturas

XERAZADE — A ÚLTIMA NOITE

11

insuportavelmente livres, apenas toleradas pois, de tão efémera, a sua passagem nunca constituía ameaça, conseguiam fazer-nos acreditar que estávamos perante reis e rainhas, bandidos e generais, tolos de aldeia, fadas, duendes, enamorados, ladrões e heróis. E nós, mesmo sabendo que tudo era ilusão, alegrávamo-nos, sofríamos, exultávamos e rompíamos em aplausos quando o espetáculo terminava. Sempre? Não. Demasiadas vezes, porém, para não os tomarmos a sério. É que as histórias, no teatro, ganham o que mais próximo conseguimos atingir no caminho, a nós vedado, da imortalidade. E em certas atuações, amor, o palco é percorrido por um invisível adejar de muitas asas. Então, os atores deixam-se possuir pelo seu anjo ou daimon, desculpa não traduzir por «demónio» porque não o é, e todo o teatro acorda, num despertar tão contagiante que até as sombras que durante eternidades viveram na sombra emergem do seu torpor e, esfaimadas de aplausos, avançam à boca de cena para sorver a energia inconcebível que se derrama do palco para o público e retorna do público para o palco, acrescida de um milhão de vóltios de alvoroço, maravilha e êxtase. E é desta maneira que o teatro nos devolve, em consciência, ao espaço da caverna do pequeno universo pessoal, cheio de equívocos e lamentos, de risos e absurdidades, amores e desamores, mortes e reencontros. Mas só poderás perceber a sua dimensão transcendente, amor, se esperares pelo fim e te deixares ficar numa plateia que se esvazia de gente. Ou num camarote de onde podes ver a multidão atropelando-se a caminho da saída. Ou mesmo num dos lugares mais modestos, de galeria ou galinheiro, de onde a visão do palco provoca vertigens aos mais sensíveis. A seguir, o que resta? O silêncio. O cheiro. O cheiro inconfundível de um teatro desabitado.

12

MANUELA GONZAGA

E tu. E o palco oculto pela cortina que oculta os engenhos mecânicos que fazem um palco ser tudo aquilo que queremos que ele seja. Uma casa, uma floresta, um oceano, um dormitório, uma prisão, um descampado, um cenário de guerra, uma escola, uma cidade, um templo, um quarto de hospital. Onde estão os atores, as personas que os habitaram, os adereços, a respiração sobressaltada ou indolente do público, o ponto, o contrarregra, enfim, todas as pessoas dos bastidores, ocultas e essenciais, a música, a história que te prendeu durante uma fração da noite? As palavras mágicas do texto de um demiurgo, que outro demiurgo encenou? Dormem, é isso. Até ao próximo espetáculo.

C R Ó N I CA S D O S P R I M E I R O S D IAS DO M U ND O

Ouve-me. Há um pulsar de serpentes, na respiração do cosmo. E uma história de duas mulheres. Uma avança pelas primeiras páginas do Génesis. A outra emerge no fragor do Apocalipse, o último livro do Livro. Uma, mãe de todos os homens, faz um pacto com a serpente. A outra, coroada de estrelas e vestida de sol, esmaga a cabeça da serpente. É virgem e dá à luz o Filho do Homem. Entre ambas inicia-se e encerra-se a epopeia das criaturas de Deus. De uma das suas epopeias — porque há tantas mais. Deixa-me contar-te histórias. Deixa-me desfiar o meu novelo, agora que este novelo é praticamente o que me resta. Uma fieira ininterrupta de lendas, crónicas, contos populares, anedotas, registos perdidos e memórias em que tu e eu estamos sempre presentes, mesmo quando somos ausentes. Não os subestimes — há uma lucidez instintiva e muita verdade oculta no registo ilusoriamente ligeiro das fábulas. Houve um tempo, muito remoto, em que comprei a minha vida com elas. Dia após dia, noite após noite. Deixa-me acrescentar: por mais fantásticos que se nos apresentem, estes contos de encantar situam-nos perante uma sabedoria demasiado profunda para ser partilhada na

14

MANUELA GONZAGA

linguagem comum. Chamar-lhes histórias para crianças ou narrativas infantis é um eufemismo, fruto da ignorância. De muita ignorância. Fica comigo, amor. Quero falar de tudo o que não te contei ainda, neste meu silêncio entrecortado de sons. Mesmo que julgues que não me ouves, presta-me atenção. Mesmo que não entendas o que digo, escuta-me. E acompanha-me, na medida em que os teus passos podem seguir os meus. Vou continuar a guiar-te pelo percurso sinuoso e semeado de sombras, até onde te puder levar comigo. Depois, os nossos caminhos separam-se. Há um ponto, muito próximo das duas torres que já se avistam, em que temos de nos afastar. Mais uma vez. Gostava tanto que fosse a última. Não tenhas medo. Não é para sempre. Se nunca nos perdemos até agora, não será desta que tal acontecerá. Temos de aprender a aceitar as separações com a serenidade que nos for possível. Sabendo que todas elas escondem a alegria dos reencontros que nunca nos falham. Entende que tens de me deixar ir. É que, se por fatalidade te colares aos meus passos, perdes-me. Não é o teu tempo de avançar para lá dos marcos que as torres delimitam, pois o mapa das nossas estradas, a partir desse ponto, não coincide. E assim, julgando que continuas a seguir-me, vais encontrar-te só, e num território não apenas desconhecido como também hostil. Por quanto tempo, não sei. Só sei que não quero que isso aconteça. Não agora. Não desta vez. É que estamos tão próximo de conseguir...

Diz a lenda, e é bom não desprezar conhecimentos arcaicos, que existe um monstruoso caranguejo a guardar os umbrais das duas fortalezas, uma diante da outra. Está escondido no fundo

XERAZADE — A ÚLTIMA NOITE

15

do pântano situado em frente de ambas. A sua carapaça é vermelho-escura. Outros garantem que se trata de um escaravelho igualmente descomunal. Em todo o caso, e seja qual for a forma como é apreendido, trata-se de um guardião de memórias e de um devorador de sonhos. Para ultrapassar as torres, é forçoso contornar as margens do pântano, circundadas de canaviais e matas de silvas, mantendo-nos fora do alcance das suas tenazes. Por outro lado, o caminho implica nunca nos afastarmos muito dele. Eu sei fazê-lo. Tenho de saber fazê-lo. Conheço o caminho. Tu não. Ainda não.

MATRIZ

Sabes, amor, porque caminhamos em círculos? Caminhamos em círculos porque somos cópias de um molde inicial, ou de muitos moldes iniciais, à procura do útero que nos deu origem. Vou-te dizer ainda mais. Todo o fascínio da arena enraíza aí. Foi quando percebemos, apesar de toda a nossa cegueira e precisamente por causa da tragédia de sermos cegos, que o jogo sempre foi de vida, para os deuses, de morte, para nós. Foi quando julgámos que, através de um sem-fim de cultos sacrificiais, poderíamos apaziguar cóleras politeístas de raiz matricial comum, enganando a morte, a nossa, com a morte de muitas vítimas num cenário perfeito. O círculo. Deixa-me também contar, amor, por que razão no mar de Sorrento, em oscilante caminhar de vela incerta, não tapei os ouvidos com cera, nem me fiz amarrar aos mastros para escapar ao sortilégio dos cantos e dos gritos, dos silêncios e dos apelos das sereias. Quis ouvi-las. Cruzei as águas para as enfrentar na forma quase perfeita — um corpo de mulher que as sereias não quiseram nem querem para nada. Semelhante destemor despertou-lhes a curiosidade. Ao sentirem-nos, aproximaram-se para me verem bem, esvoaçando em redor do negro

XERAZADE — A ÚLTIMA NOITE

17

barco, até pousarem no mastro grande, na amurada, nos remos que rompiam as águas e até nos cabos das amarras, sob a expressão apavorada dos remadores. Em silêncio, comparámos os nossos corpos. Os duros peitos delas, mamilos a romper por entre a maciez das penas de pássaro nos troncos alados, com os meus pequenos e arrepiados seios que se deixavam ver sob o peplo que mal me cingia o corpo. Os meus cabelos negros, muito curtos e muito encaracolados, com os longos cabelos verdes e dourados delas. As poderosas asas escuras, os meus braços brancos e finos. Os meus pés nus. As garras das suas patas de dilacerar corpos e levantar bois, homens e carneiros e carregá-los pelo ar. Durante um tempo sem medida de tempo, olharam-me sem contemplações enquanto eu as fitava sem receio. Sereias. Rostos de mulheres em corpos de pássaro, e uma aura de violência inaudita a pairar sob o doce adejar das suas asas escuras. Não emitiram um único som. Os gritos que os marinheiros poderiam ter escutado, se por infelicidade a cera da sua salvação não lhes selasse os ouvidos, teriam sido os gritos de gaivotas e mergulhões que, de longe, nos observavam voando em círculos sobre a esteira de espuma que o navio traçava nas águas violeta. Por fim, acenámos em muda despedida. Sob a frieza do nosso mútuo olhar, havia uma sintonia estranha. Como se soubessem que, e de algum modo, eu era uma delas. O que dissemos, num diálogo feito de silêncios, não pode ser partilhado. Tão-pouco o que aprendi — pois foi para aprender com elas que naveguei ao encontro de tais quimeras. Sobre esses conhecimentos, amor, é imperioso conservar o véu do segredo. Agora estremeces. É quase impercetível. Um ligeiro movimento de mãos, como se quisesses sacudir um inseto importuno que só tu vês, enquanto apertas com força os maxilares.

18

MANUELA GONZAGA

És tão bonito, amor. Desta vez, és tão bonito. A vida ainda não te deitou a garra. Serás bonito o tempo todo que te couber neste tempo. Mas há muito medo e um imenso desgosto na maneira como desvias de mim o teu olhar. Julgas-me louca. E como quase todas as pessoas, tens medo do contágio da loucura. Por isso não fazes perguntas. Mas eu adivinho-as e respondo-te. Para te tranquilizar. Ora, não sendo o círculo, de que a serpente guarda o registo e que encerra em si a perfeição do indiferenciado, e não sendo a de um corpo de homem, a mais desejada das formas porque a mais rara do universo, e não me perguntes como o posso afirmar com tamanha convicção pois sobre esse conhecimento cai igualmente o véu do segredo, a forma perfeita é a do Andrógino. O molde perdido de uma completude paradisíaca, que tentamos refazer, de vida em vida, de corpo em corpo, de amor em amor, para conseguirmos escapar da condenação ao círculo pela vertigem da espiral. Como tu e eu temos feito sempre, já nem sei desde quando, na nossa história de dois que foi sempre de tantos. Ora também sucede que, nesse caminhar, somos impelidos para a repetição de narrativas primordiais — sempre as mesmas. O jogo das mutações só aparece no momento em que irrompe a desconcertante, a enigmática, a apaixonante variável, que veio abanar até aos alicerces as relações entre o Céu e a Terra. O princípio da incerteza, golpe fatal na monótona repetição das sagas celestes, fomos nós, Criaturas, que o desferimos. Trouxemos a mistura — lembras-te? O terrível, porque sempre imprevisível, jogo da mistura. Todos os tabus do sangue, todos os preconceitos de raça, que se estendem aos preconceitos de casta, entroncam aí, no medo da mescla que começou quando os «filhos de deus» se

XERAZADE — A ÚLTIMA NOITE

19

enamoraram pelas tão formosas «filhas dos homens», nelas gerando a amaldiçoada raça dos gigantes. Outros contam a mesma história com uma ligeira variante: naqueles dias, os filhos de Deus conheceram as filhas dos homens — «as quais lhes deram filhos» — os nefilins. E eram os «varões de renome da antiguidade» que andavam sobre a terra. — Que agitação, querida. Gigantes? — Sim. O fruto da mistura das raças. — A propósito de quê? — Da mistura. Da perigosa mistura. — Minha querida, tenta repousar. — Não posso. Tenho ainda tanta coisa para te dizer. Portanto e da mistura, da perigosa mistura, ora temos os malditos gigantes, ora os benditos heróis. Acontece até que esta aparente contradição está igualmente consagrada nas páginas do Livro que veio a alimentar os Livros de três Nações de crentes que, bebendo embora de uma fonte comum, se tornaram inimigos entre si. Isto não te dá que pensar, amor? A mim dá. E causa-me uma infinita tristeza. Talvez porque carrego o peso insuportável de muitas memórias díspares. Das nossas memórias de dois que são sempre de tantos. Para outros, a narrativa é mais linear, mas mais labiríntica. Lembra-te de heróis e semideuses, concebidos na mistura entre deuses ou deusas com criaturas humanas. Seres quase divinos, dotados de poderes sobrenaturais e de todas as graças — menos a da vida eterna. Alguns, porém, conseguiram, mercê das suas qualidades ou de um capricho celeste, que sabemos nós?, ascender aos céus escapando à lei da morte que a vida comporta. Como Hércules, cujo maior feito não foram os Doze Trabalhos mas libertar aquele que veio libertar a humanidade, Prometeu,

20

MANUELA GONZAGA

o titã que roubou o fogo do Olimpo para o oferecer aos homens. Prometeu, que por causa desse roubo foi agrilhoado às montanhas do Cáucaso. Todos os dias, uma águia vinha devorar-lhe o fígado. Todas as noites, o fígado de Prometeu se reconstruía. Afinal, também ele era um deus. Mas foi Hércules, um simples mortal, apesar de herói, quem quebrou a maldição divina decretada pelo Pai dos homens e dos deuses, despedaçando-lhe as grilhetas forjadas no Olimpo. Não é esta uma história digna de ser recordada? Lembra-te também de Aquiles e Teseu. E de Jasão e de Perseu. Da própria Helena de Troia, a mulher mais bela do mundo, que era uma e o seu duplo. E tantos mais de quem ainda hoje alguns recordam os feitos gloriosos. Heróis! No mundo mediterrâneo surgiram de repente e desapareceram num átimo. Todos concebidos num parêntesis do humano tempo, durante o qual os deuses recorreram a mil e um subterfúgios para conquistar a adorável criatura por eles moldada no barro de Gaia insuflado de alento divino. — Andas a passear pela Antiguidade Clássica? — Sim. — Porquê? — Estou a juntar imagens, para o meu desenho fazer sentido. Foi o breve hiato do jogo da metamorfose, amor, tão fascinante quanto desleal. As vendas, nos nossos olhos, impediam-nos de perceber que aquela chuva de ouro, aquele cisne, aquele touro, aquele homem, ocultava o deus. Pensa em Dioniso. Pensa em Apolo. Pensa em Zeus. Feridos de amor e não recuando perante nenhuma ignomínia, embriagaram, violaram, raptaram, seduziram e, por fim, consumada a posse, abandonaram o objeto da sua paixão.

XERAZADE — A ÚLTIMA NOITE

21

O que aconteceu a estas mulheres, grávidas do puro sémen divino? Umas curvaram-se perante o destino, e criaram com amor a criança semidivina. Outras mataram-se ou tentaram matar as suas crias; umas quantas enlouqueceram; e outras ainda, abandonadas, substituíram o deus amante por um amante homem e viveram, sem história digna de registo, os dias que lhes cabiam viver. Mas em todas, a semente do deus germinou. Entretanto, nenhuma ou quase nenhuma escapou à lei fatal. Lembra-te, amor, da princesa Sémele, que dos amores com o Pai dos deuses e dos homens gerou Dioniso, o deus da embriaguez. Morreu fulminada ao contemplar Zeus em toda a glória divina. Mais tarde, o filho desceu aos infernos para a resgatar e colocou-a nos céus, a par dos outros deuses. Bonito gesto de amor filial, por parte de um deus tão dissoluto. Uma singularidade, é bom assinalar.

São as variantes da variável, amor — nunca sabemos o que subsiste, depois de muito destrinçar e escavar por entre os frisos entrelaçados das histórias de raiz comum. Que verdades se ocultam no mito? Que mitos se encerram no coração da verdade? Dos arabescos clássicos do mundo mediterrâneo, restam-nos mosaicos que ainda mantém formas e cores. Memórias tão vivas, ao fim deste tempo todo. Alguns papiros ou pergaminhos, que escaparam ao olvido, aos incêndios, aos roubos e à destruição e que, de cópia em cópia, sobreviveram até aos dias de hoje. Além disso, na tradição oral, propagada de geração em geração, a lenda persistiu, revelando-se e revelando que os deuses, e as deusas, já agora, amaram ou aborreceram as suas criaturas, com quem fornicaram, e a quem protegeram, aniquilaram, entronizaram ou abandonaram. Afinal, é tão humano, tudo isto.

22

MANUELA GONZAGA

Tão desoladoramente humano. Toda a história da realeza divinizada assenta neste pressuposto: seja qual for a civilização, não há rei em lado nenhum, em tempo nenhum se não for consagrado e ungido mediante elaborados rituais religiosos de modo que o soberano se coloque sob a proteção divina e seja o corpo e a voz do deus na terra. Foi assim, desde a mais alta Antiguidade. Da gruta à catedral gótica. Do templo hindu ao dossel de árvores sagradas. Do Palácio Imperial do Japão à Abadia de Westminster. Que os deuses tenham mudado de nome, de rosto, de forma e de culto, não mudou nada no pressuposto de qualquer entronização. Por outro lado, esta eleição sacralizada tem resposta para tudo. Se o rei é destronado, assassinado, morto, substituído, que culpas assacar ao seu divino protetor? Nenhuma. Se e quando tal acontece, a culpa cabe, por inteiro, aos erros de fé e às falhas no culto, que o soberano terrestre cometeu, levando o deus a afastar-se da sua presença, entregando-o ao gládio dos inimigos. Isso não te dá que pensar? A mim dá. Já agora, dos amores carnais dos deuses e dos homens o que ficou? Um punhado de contos a que nem as crianças já conseguem prestar atenção e uma espécie de parêntesis na História. Não foi só um cerrar de cortinas como quando a representação termina. Foi o próprio edifício do Teatro cósmico, que juntava no mesmo palco atores mortais e imortais, que implodiu até às fundações. Depois, restámos nós. Em todos os nossos rostos e corpos. Em todo o nosso esquecer e recordar.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.