XIV ENCONTRO NACIONAL DA ABET – 2015 – CAMPINAS GT 10 – CONDIÇÕES DE TRABALHO E SAÚDE O TRABALHO COLETIVO E A VITALIDADE LABORAL: REORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E PODER DE AGIR

June 7, 2017 | Autor: Eduardo Kawamura | Categoria: Saúde Mental e Trabalho, Trabalho Docente, Saúde Mental do Trabalhador
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XIV ENCONTRO NACIONAL DA ABET – 2015 – CAMPINAS GT 10 – CONDIÇÕES DE TRABALHO E SAÚDE

O TRABALHO COLETIVO E A VITALIDADE LABORAL: REORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E PODER DE AGIR

Eduardo Alessandro Kawamura

RESUMO

O presente trabalho, derivado de uma pesquisa de mestrado realizada nos anos de 2013 e 2014, visa discutir os efeitos da reorganização do trabalho e do poder de agir na saúde mental de docentes de uma escola municipal de educação infantil na cidade de Campinas - que diferentemente do que ocorre em boa parte das escolas dessa mesma rede, alcança resultados muito positivos não apenas no que se refere à qualidade do ensino, mas na saúde de seus profissionais. Por meio do enfoque da Saúde Mental Relacionada ao Trabalho (SMRT) e utilizando o método etnográfico, além de entrevistas reflexivas, busca-se, no contexto de nosso atual modelo de escola pública, um melhor entendimento sobre o desgaste mental, a dinâmica do processo saúde-doença e a vitalidade laboral numa prática perpassada pela ação intelectual intensa dos docentes no contexto do trabalho coletivo.

Palavras-chave: Saúde do Trabalhador. Saúde Mental Relacionada ao Trabalho. Trabalho Docente na Educação Infantil. Educação Pública. Pode de Agir.

O TRABALHO COLETIVO E A VITALIDADE LABORAL: REORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E PODER DE AGIR Creio no direito à solidariedade e no dever de ser solidário. Creio que não há nenhuma incompatibilidade entre a firmeza dos valores próprios e o respeito pelos valores alheios. Somos todos feitos da mesma carne sofrente. José Saramago in "Cadernos de Lanzarote" (1995)

Quando tratamos da saúde dos trabalhadores na rede pública de ensino do Brasil, o cenário parece pouco propício para encontrarmos experiências que não sejam desanimadoras. Não é de hoje que temos acesso a uma grande quantidade de pesquisas1 que nos alertam para as péssimas condições de trabalho e seus impactos no adoecimento e nas formas de abandono da carreira docente. Além disso, o exercício da docência nas escolas públicas brasileiras acaba por se inserir numa complexa trama de situações, relações, afetos, desígnios e significações que impedem os trabalhadores de se absterem de questões que não excedem apenas as atribuições formais do cargo, mas também suas forças. Não nos referimos apenas à inerente responsabilidade social sobre a educação formal de um determinado número de crianças, mas à capacidade desses profissionais de resistirem a demandas cada vez maiores e urgentes diante de nosso cenário político, social, histórico e econômico. O professor, assim, envolto nas inúmeras funções que a escola pública assume, vê-se obrigado a desempenhar as funções de agente público, assistente social, enfermeiro, psicólogo, entre outras (OLIVEIRA, 2004, p. 1134). Diante de todo esse cenário, podemos ainda somar as recentes e confusas demandas refletidas nos cursos de formação e nas políticas públicas que explicitam de forma muito inconsistente aos docentes, principalmente na educação infantil, que as antigas práticas já não são suficientes ou eficientes. E por mais que ainda haja incertezas nas formas de conceber e aplicar parâmetros de avaliação e ensino nesta área da educação básica, deve-se agora, desde a creche, lidar com o lúdico, desenvolver habilidades motoras, sociais, cognitivas e linguísticas de forma nunca antes realizada e organizada. Se, por um lado, as demandas aumentaram e se complexificaram de forma importante, por outro, pouca coisa mudou na assistência e na qualidade de formação 1

Ver: LEITE, Marcia de Paula e SOUZA, Aparecida Neri. Condições do trabalho e suas repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil - Estado da Arte. Fundacentro – MEC, 2007

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desses profissionais. Assim, muitas vezes o professor pode vivenciar uma espécie de “precariedade subjetiva” (LINHART, 2009), um sentimento de não dominar seu trabalho, que o faz sentir-se obrigado a desenvolver esforços constantes e fastidiosos no intuito de se adaptar, promovendo uma dinâmica intensa de sofrimento e desgaste que afeta sobremaneira a saúde dos docentes e suas respectivas carreiras. O professor, impossibilitado de exercer sua profissão com confiança e desenvoltura e confrontado por uma falta de controle racional e emocional sobre seus atos e pelo senso de responsabilidade social inerente ao cargo, vê-se muitas vezes diante de uma penosa aventura quixotesca na qual as circunstâncias são menores que a vontade. Será o “impedimento” emocional e intelectual, na restrição a um “poder de agir” (CLOT, 2006) dos sujeitos - a falta da liberdade de (inter)agir, experimentar e (re)significar, a impotência de dizer, de fazer, de narrar e se estimar – que irá compor uma das bases nas quais o sofrimento psíquico e o adoecimento relacionados ao trabalho se alicerçam. Com o tempo, diante do incessante desgaste cotidiano e do contínuo esvaziamento das pretensões, no alheamento cada vez maior, resultado da exaustão psíquica, a busca por um local de trabalho menos “complicado” (em uma escola distante da complexidade do exercício da docência na extrema periferia das grandes cidades, por exemplo) passa a se tornar um intento, representando uma forma racional de proteção à saúde mental e física antes de uma definitiva desistência da carreira docente. Não obstante às raríssimas exceções, e por mais que seja compreensível, essa lógica de autopreservação dos trabalhadores no funcionalismo público tende a se tornar extremamente nefasta quando nos indica que as escolas mais “difíceis”, geralmente nos bairros mais pobres, tendem a possuir não apenas um quadro de profissionais menos estável, mas os profissionais menos experientes. Quando iniciamos a pesquisa de mestrado que originou este trabalho2, encontramos um reflexo desse cenário. A escola tema, localizada num bairro tipicamente de classe média da cidade de Campinas, contava apenas com docentes “antigas” na rede: 11 (onze) professoras, das quais 10 (dez) possuíam mais de quinze anos de experiência no magistério. Porém, ao contrário do que se possa imaginar a respeito da saúde de profissionais da educação pública com tanto tempo de trabalho - de que elas, por exemplo, poderiam estar mais desgastadas diante da complexidade da ação educativa -, o 2

Ver: KAWAMURA, Eduardo Alessandro. A saúde mental e a (re)organização do trabalho docente: trabalho coletivo e poder de agir. 2015. 119f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Pontifícia

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quadro que encontramos foi completamente oposto. Constatamos, já nos primeiros dias do trabalho em campo, não apenas que não existiam queixas importantes sobre as condições de trabalho e de que não havia relatos sobre afastamentos relacionados a algum tipo de adoecimento há pelo menos cinco anos, mas relatos da existência de uma forma de trabalho vitalizante. Diante do caráter utilitarista em que as discussões sobre a relação entre saúde e trabalho historicamente estão inseridas, tendendo a culpabilizar exclusivamente os indivíduos pelos rumos de sua própria saúde - cabendo geralmente às ciências encontrar formas de “adaptar” os trabalhadores ao trabalho -, o objetivo deste artigo será o de discutir a possibilidade real de existência de uma forma de exercício da docência que não se caracterize como uma ação nefasta à saúde dos trabalhadores. Para isso, a partir da perspectiva da Saúde Mental Relacionada ao Trabalho, analisaremos a experiência de um grupo de professoras em uma escola de educação infantil na cidade de Campinas cuja história destoa do quadro que geralmente encontramos nas escolas públicas brasileiras.

Uma nova perspectiva sobre a relação entre o trabalho e a saúde na contemporaneidade A perspectiva que engloba os estudos da Saúde Mental Relacionada ao Trabalho (SMRT) possui como principal característica o fato de ser multidisciplinar. Apesar de ainda representar uma tentativa de agrupamento de óticas e domínios distintos nas ciências, assume-se, diferentemente das concepções adotadas pela antiga Psiquiatria Ocupacional, uma “perspectiva em que as finalidades das investigações assumem diretrizes éticas” (SELIGMANN-SILVA, 2011, p.40). Desta forma, os velhos preceitos que visavam quase que exclusivamente a busca pela produtividade, passam a dar lugar a uma tentativa de se identificar o maior número de aspectos que possam promover a saúde ou os agentes potencialmente adoecedores inseridos num contexto de interesses políticos, econômicos e sociais. “A SMRT representa, na atualidade, um desafio latente numa realidade ainda mal iluminada das situações de trabalho ou de desinserção laboral em que se produz a escalada da transformação de normalidades discutíveis em adoecimentos dos assalariados (...)” (p. 41). Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências da Vida, Programa de Pós-Graduação em

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Partindo-se da compreensão de que a saúde geral e a saúde mental são indissociáveis, busca-se compreender a saúde e a doença não mais como meros estados e em posições dicotômicas, mas inseridas num processo complexo em que ambas coexistem. A saúde, para ser mais exato, “não é um estado de estabilidade, não é um estado, não é estável. A saúde é alguma coisa que muda o tempo todo” (DEJOURS, 1988, p.11), é a harmonização da variabilidade “própria dos processos psico-orgânicos humanos, imersos no percurso existencial e na vida social” (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 36). As questões pelas quais nos debruçamos não dizem respeito apenas às formas de adaptabilidade dos sujeitos, mas à necessidade de uma radical mudança nas formas básicas de compreensão dos sentidos do trabalho. Não se trata, portanto, de um exercício de compreensão do universo intra-individual dos trabalhadores no qual as condições e a organização do trabalho constituem-se como um mero pano de fundo, o movimento é radicalmente distinto: deve-se “tomar as relações de trabalho e sua historicidade como matriz de leitura” (SATO & BERNARDO, 2005, p. 870). O foco das investigações recai sobre as relações mútuas entre o trabalho e o processo saúde-doença que, para além das individualidades, contempla de forma mais crítica os cenários (micro e macro) nos quais o trabalho e os trabalhadores estão inseridos. Assim, podemos destacar cinco patamares, ou “planos de análise” (SELIGMANN-SILVA, 2011, p.116), de fontes de determinações para os fenômenos que abrangem a interdisciplinaridade da SMRT: o patamar internacional, em toda a sua complexidade política, social e econômica; o patamar nacional que corresponde às “políticas industrial, tecnológica, salarial, de saúde e educacional” (p.41); o patamar que corresponde às instituições e seus parâmetros éticos para as relações de trabalho, políticas de recursos humanos, etc.; o patamar correspondente ao espaço microssocial do local de trabalho onde são definidos os aspectos coletivos e as dinâmicas intersubjetivas; e, finalmente, o patamar da individualidade, “aquele onde o complexo psico-orgânico singular, em sua trajetória histórica pessoal, se confronta ativamente com forças emanadas dos demais territórios examinados e penetra nas malhas de suas interações” (p. 118). Resumindo, a saúde mental representa uma dimensão na qual o corpo e as interrelações humanas são indissociáveis; “uma precisão ainda maior exige que seja incluído nesse objeto não apenas o trabalho, mas também a falta de trabalho” (p. 40). Psicologia, Campinas, 2015.

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Diante das análises do processo de desgaste humano, a perspectiva da SMRT inaugura uma posição, diferentemente das concepções até então predominantes, na qual o trabalho torna-se capaz de produzir diretamente o adoecimento. Na análise do processo de trabalho, buscam-se os “elementos que interatuam dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador, gerando aqueles processos de adaptação que se traduzem em desgaste, entendido como perda da capacidade potencial e/ou efetiva corporal e psíquica” (LAUREL & NORIEGA, 1989, p.110). Em outras palavras,

(...) o desgaste é visualizado como um produto de uma correlação desigual de poderes impostos sobre o trabalho e sobre o trabalhador, acionando forças que incidem no processo biopsicossocial saúde-doença. Ou melhor, uma correlação de poderes e forças em que o executante do trabalho se torna perdedor. (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 135)

Podemos, ainda, tomar a critica de Laurel & Noriega (Ibidem) referente à questão dos riscos para evidenciar esta disparidade de visões a respeito dos efeitos do trabalho na saúde dos trabalhadores:

A medicina do trabalho utiliza a categoria ‘risco’ para dar conta dos elementos presentes no centro do trabalho que podem causar danos ao corpo do trabalhador. Define, dessa maneira, os riscos como agentes nocivos isolados que podem causar doença. Dado que quase sempre os conceitua num esquema monocausal, nem sequer chegam a ser os ‘fatores de risco’ do modelo epidemiológico multicausal, que postula a necessidade da presença simultânea de vários deles para que se produza a doença. A noção de risco da medicina do trabalho (...) consigna, pois, elementos isolados entre si e da dinâmica global do processo de trabalho. (pp. 109-110)

Na possibilidade de contemplar a dinâmica dos elementos do processo de trabalho, restrita (ou inexistente) no conceito de “risco”, Laurel & Noriega (p. 110) propõem a utilização da categoria “cargas de trabalho”. Para tal, os autores indicam a necessidade de se decompor as cargas de trabalho em tipos específicos durante o processo de investigação, “um movimento constante entre decompor o processo global em suas partes constitutivas e recompô-lo depurando os elementos secundários; movimento cuja direção requer a volta à concepção teórica da relação entre seus elementos” (p. 120). Essa divisão deverá ocorrer entre aquelas que “possuem uma materialidade externa ao corpo, que ao com ele interatuar torna-se uma nova materialidade interna” e aquelas que “somente

adquirem

materialidade

no

corpo

humano

ao

expressarem-se

em

transformações em seus processos internos” (p.111); as cargas físicas, químicas, biológicas e mecânicas, por um lado, e cargas fisiológicas e psíquicas, de outro. 5

No centro dos fatores que colaboram para o desgaste mental, no âmbito das cargas psíquicas, podemos indicar o sofrimento causado pelo sentimento de precariedade que pode ser vivenciado pelos trabalhadores ao se sentirem destituídos da segurança, do conhecimento e dos sentidos do trabalho. Como nos indica Meyerson (1987), (...) o trabalho é (...) a participação do homem no meio psíquico e social - com tudo o que a participação implica de ações recíprocas - é a construção de um mundo por ele, de mundos humanos, mundos mediados: sua criação. (MEYERSON, 1987, p. 70 como citado por BRASSAC, 2004, p. 4 – nossa tradução)

Linhart (2010) distingue a possibilidade de precariedade em duas formas profundamente ligadas: de um lado temos a precariedade objetiva, a vivência do medo e insegurança diante da instabilidade no emprego e dos baixos salários, por exemplo, e, de outro, a precariedade subjetiva, caracterizada pela sensação de não se dominar a atividade profissional na qual o trabalhador se inscreve. Em outras palavras, a precariedade subjetiva representa

O sentimento de não estar “em casa” no trabalho, de não poder se fiar em suas rotinas profissionais, em suas redes, nos saberes e habilidades acumuladas graças à experiência ou transmitidas pelos mais antigos; é o sentimento de não dominar seu trabalho e de precisar desenvolver esforços para se adaptar, para cumprir objetivos fixados. (LINHART, 2009, p.2)

Será justamente no âmbito das reverberações das interações entre sujeitos nas condições concretas, objetivas e subjetivas de trabalho, considerando que “a dimensão coletiva e a individual dos fenômenos de ordem psicológica conectados ao trabalho não podem ser compreendidos se as isolarmos entre si, uma vez que mantêm estreitas reciprocidades” (Seligmann-Silva, p.121), que buscaremos discutir as possibilidades para o exercício da docência no ensino público.

O Método Compreendendo a escola como um espaço perpassado pelo dinamismo das inúmeras formas de interações e relações - da qual o pesquisador faz parte, afetando e sendo afetado por este espaço, mesmo que temporariamente - e devido à possibilidade de nos centrarmos na descrição dos sistemas de significados culturais dos sujeitos estudados, optamos pela utilização do método etnográfico.

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A etnografia se caracteriza pela disposição à interpretação do fluxo do discurso social com o intuito de resgatar o “dito num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em forma pesquisáveis (GEERTZ, 2008, p. 15). Apesar da necessidade de produção de uma densa descrição do cotidiano, o principal objetivo desse método se centra na tentativa de extrair “grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados” (p.20). Além disso, algo importante para quem trabalha num campo que tende a rejeitar a pretensa neutralidade do pesquisador, a etnografia “não permite qualquer separação significativa das esferas ocupacional e extraocupacional da vida. Ao contrário, ele obriga esta fusão” (GEERTZ, 2001, p. 45). Porém, devemos estar atentos:

O compromisso profissional de encarar os assuntos humanos de forma analítica não se opõe ao compromisso pessoal de encará-lo sob uma perspectiva moral específica. A ética profissional repousa na ética pessoal e dele extrai sua força (...). O distanciamento provém não do desinteresse, mas de um tipo de interesse flexível o bastante para suportar uma enorme tensão entre a reação moral e a observação científica, uma tensão que só faz aumentar à medida que a percepção moral se aprofunda e a compreensão científica avança. (Ibidem, p. 46)

Ao propiciar e requerer uma postura cooperativa entre o pesquisador e os sujeitos no campo, essa metodologia é potencialmente transformadora, pois compreende a possibilidade de mudança das situações encontradas. Não podemos subestimar, porém, a complexidade envolvida no processo de aprendizagem sobre o outro. Além de tentar manter um constante estranhamento a respeito do que é familiar e de tornar familiar o que pode parecer estranho, o pesquisador deve ter clareza quanto à mobilidade do objeto de estudo: às reconfigurações, às transições, aos desvios e compreender que esta aprendizagem “só pode ir até certo ponto, mesmo nas melhores condições, que de qualquer forma nunca prevalecem” (Ibidem, p. 45).

Deve-se, portanto, buscar superar a pretensão de reprodução da realidade, o

resultado do trabalho não será o de reproduzir o real, mas uma tentativa de reconstruí-lo (ANDRÉ, 1997). Em outras palavras: (...) meu olhar sobre o outro não coincide nunca com o olhar que ele tem de si mesmo. Enquanto pesquisador, minha tarefa é tentar capturar algo do modo como ele vê [...] minha tarefa é tentar capturar algo do modo como ele se vê, para depois assumir plenamente meu lugar exterior e dali configurar o que vejo do que ele vê. (AMORIM, 2003, p. 14)

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Uma vez que “o trabalho de campo etnográfico é extensivo e não intensivo” (SATO & SOUZA, 2001), o pesquisador acompanhou por um período de 6 (seis) meses o cotidiano da escola escolhida, realizando de uma a duas visitas semanais. Além disso, compreendendo que “a pesquisa qualitativa usa métodos múltiplos que são interativos” (CRESWEEL, 2007, 186) e que o campo não se restringe a um lugar específico, mas “à processualidade de temas situados.” (SPINK, 2008, p. 16), a pesquisa valeu-se também de entrevistas reflexivas, não estruturadas. Essas entrevistas são, na realidade, questões abertas que não requerem do entrevistado uma resposta demasiadamente breve, nem se limitam a solicitar um “sim” ou um “não” (HAMMERSLEY & ATKINSON, 2001, p.129). Assim, esse tipo de procedimento permite que o pesquisador tenha um número de tópicos a serem buscados, mesmo que, ao mesmo tempo, não necessite de questões precisas e de ordem fixa. Desta forma, a pesquisa, na coleta de descrições das situações observadas, nas citações literais de suas falas, depoimentos e documentos, produziu um corpus que sustentou a interpretação dos sistemas de representação. No total, após a aprovação do Conselho de Ética da PUC-Campinas e da assinatura do termo de “Consentimento Livre e Esclarecido” de todos os envolvidos, foram entrevistados sete profissionais: 5 (cinco) professoras, a orientadora pedagógica da escola (entre 2004 e 2013) e a diretora da instituição (entre maio e dezembro de 2013). Os dados registrados no caderno de campo e nas transcrições das entrevistas foram submetidos a uma análise interpretativa hermenêutica, cuja tarefa essencial é buscar o “entendimento do entendimento” (GEERTZ, 1983, p. 15).

Como assim, uma escola que funciona? Ainda tomada pela imagem de uma suposta jurisprudência particular sobre as crianças exercida naturalmente pela mulher, a educação infantil - de forma ainda mais intensa que em outras etapas da educação básica – está muito longe de ver minimamente consolidada uma ação educativa progressista. Na tentativa de ainda superar a dicotomia entre o cuidar e o educar, o exercício da profissão docente nos primeiros anos do ensino básico no Brasil tende ainda a se submeter ao perverso substrato ideológico fomentado pelas formas de exploração do trabalho no sistema capitalista. O cuidado, por exemplo, é visto como uma característica essencialmente feminina – para alguns uma responsabilidade natural, para outros, fruto da

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socialização das mulheres. Muitas atividades profissionais associadas ao cuidado são consideradas femininas, como a enfermagem, o tomar conta de crianças pequenas, a educação infantil, etc. O ato de cuidar, fundamental na relação com a criança, deve ser entendido como uma atividade que envolve compromisso moral. (VIANNA, 2002, p. 93)

Temos ainda no senso comum a ideia de que “para professora ou professor de escola qualquer um serve” (ARROYO, 2000, p. 189). Em consequência disso, ainda paira certo ar de amadorismo na profissão, que carrega o estigma de ser muito menos técnica do que, vamos dizer, inata. A educação formal das crianças da creche à pré-escola - apesar das disputas intelectuais (e ideológicas) que envolvem a antecipação do processo de escolarização ou a prioridade ao “brincar” – ainda vivencia na prática um “limbo”, um estado de incertezas, a respeito de uma definitiva forma de ação pedagógica. Se hoje nos parece claro que a prioridade nos primeiros anos do ensino fundamental se centraliza na alfabetização, qual a “meta” da educação infantil? Essa falta de diretrizes básicas minimamente consensuais, apesar de um número cada vez maior de currículos para educação infantil, ainda representa um entrave para o desenvolvimento de práticas educativas desenvolvidas de forma coletiva e específica para determinada localidade. Não é incomum encontrarmos numa mesma escola professoras que privilegiam o “brincar” e professoras que privilegiam a “escolarização”, assim como não é incomum encontrarmos essas práticas (aparentemente dicotômicas) desenvolvidas com pouca “substância”, com pouca reflexão e conteúdo. Afinal, o que se avalia na educação infantil? Como uma professora, uma equipe gestora, pode verificar a efetividade de seu trabalho? Diante da realidade da rede municipal de Campinas (e do Brasil), a escola tema deste trabalho possui um número de crianças relativamente baixo: pouco mais de 220 (duzentas e vinte), distribuídas em duas salas de Agrupamento II3 e oito salas de Agrupamento III, nenhuma delas em período integral. Além disso, por conta do longo tempo de planejamento, a escola possui uma estrutura rara (material didático, instalações, etc.) se comparada com outras escolas da mesma rede. Porém, sabemos que trabalhar numa escola mais central, numa região mais rica da cidade, mesmo com boas condições concretas de trabalho, não representa a certeza de uma prática progressista de ensino e de condições laborais salutares. O que mais nos chamou a atenção no longo período em campo foi de encontrarmos nessa escola um 3

Em Campinas, os agrupamentos I e II recebem crianças até 2 anos e 11 meses de idade, o agrupamento III, por sua vez, recebe crianças de 3 anos a 5 anos e 11 meses de idade e, consequentemente, representa o último estágio antes do ensino fundamental para as crianças com mais de cinco anos de idade.. Fonte: http://www.campinas.sp.gov.br/noticias-integra.php?id=15488

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potente trabalho coletivo que produziu uma forma de ação desenvolvida e legitimada pelas trabalhadoras e gestoras - não por obra do acaso, todas são mulheres - em um diálogo estreito com a comunidade e que reverbera intensamente na saúde mental dessas profissionais, uma forma reorganizada de trabalho na qual o coletivo, incluindo os demais trabalhadores da escola (auxiliares, vigia, cozinheiras e faxineiras) possuem um notório papel ativo e transformador. A ex-diretora da escola (no período entre os anos de 2000 e 2012), a professora Selma4, é apontada pelas professoras como a grande responsável pela construção das bases para o desenvolvimento e execução do atual formato de trabalho na escola. A partir do ano de 2000, com a estabilidade do quadro de professoras - com exceção a uma das professoras, as demais profissionais trabalham na escola há pelo menos dez anos -, Selma coordenou uma forma de trabalho coletivo capaz de mover as professoras de uma letargia diante da baixa complexidade da escola e dos frágeis parâmetros vigentes na educação infantil. A professora Joana, por exemplo, que começou a trabalhar na escola em 2003, conta-nos um pouco de sua experiência, ressaltando a dificuldade inicial em exercer uma inesperada liberdade intelectual sobre suas próprias as práticas: A liberdade assusta! (...) como eu vim de uma escola particular em que tudo o que se falava era a lei, aqui, no começo, ou durante muitos anos,(...) eu sempre dizia para elas: “Não, do jeito que está, está ótimo! O que é que vocês querem que eu faça?” A Selma (ex-diretora) não gostava disso e ela sempre me dizia: “você tem que dar a sua opinião!” Hoje sou capaz disso!

A professora Andréia, sucessora de Selma e diretora da escola no período da pesquisa, faz uma análise sobre sua experiência com aquele grupo de professoras. Acho que houve um rompante: ‘vamos fazer alguma coisa dar certo!’... É um grupo que se autorregula. Eu me lembro de uma fala delas, “aqui quem vem, vem para trabalhar e quem não vem, não fica.” Elas são muito sérias e comprometidas! Eu fico pensando na diferença que elas fazem na vida das crianças. (...) Elas (as professoras) caminham, as coisas fluem, as crianças aprendem. Independente de qualquer coisa, do jeito, as crianças aprendem, as crianças produzem.

Todas as professoras que hoje compõem o quadro de docentes da escola possuem alguma experiência anterior na rede pública de Campinas e vivenciaram em algum momento o adoecimento de seus pares e/ou de si mesmas. Como regra, há algumas características comuns que perpassam os casos mais críticos: escolas consideradas 4

Os nomes que aparecem neste trabalho foram alterados para preservar a privacidade dos envolvidos.

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“difíceis” (violentas, instáveis, etc.), grupos de trabalho inoperantes e o sentimento de um “impedimento” intelectual e emocional no exercício do trabalho. É justamente na intersecção desses três pontos (escolas difíceis, formação intelectual e grupos de trabalhos inoperantes) que se estabelece o cenário mais nocivo para uma ação educativa em qualquer nível. Estabelecemos, assim, uma relação entre a saúde não apenas com as condições concretas de trabalho, mas com a condição subjetiva do exercício desse trabalho. Desta forma, a qualidade da formação dos docentes, tão renegada na educação infantil, torna-se chave no processo saúde-doença dos professores. A professora Andréia, por exemplo, pensa com preocupação na questão da formação inicial como espaço para essas primeiras reflexões sobre o trabalho com o fim dos cursos de magistério em decorrência das metas do Plano Nacional de Educação (PNE): Todo esse tempo pensando na questão da formação inicial, já que agora as novas professoras não têm mais acesso ao magistério, fico muito preocupada! Elas não sabem o que fazer em sala. (...) Meu magistério, por exemplo, foi muito, mas muito melhor que a faculdade. (...) Por isso que eu fico tão intrigada com essa questão da formação inicial (...) não adianta, eu tenho que ter conteúdo! Não é só isso, eu preciso ter procedimento!

A professora Marta, por sua vez, que leciona na escola há quase vinte anos, questiona a forma “desprendida” com que a educação infantil se desenvolve no Brasil. É um ‘Laissez-faire’, no final das contas. Não temos nenhum tipo de parâmetro institucional para balizar o trabalho. Não há currículo5. No passado, as professoras tradicionais tinham suas práticas, mesmo que questionáveis, mas havia alguma ordem, alguma matriz para coordenar sua própria ação educativa. Algo a se buscar. Hoje, sei disso porque fui orientadora pedagógica da rede, estamos presos no brincar pelo brincar. “Joga um brinquedo que a criança se vira!”. As professoras mais novas não trazem nenhum conteúdo a respeito desse brincar, podem até conhecer os fundamentos, mas não a prática.

O fato é que os professores tendem, mesmo diante da precariedade da formação e das condições de trabalho, a desenvolver sua própria forma de agir. É impossível esperar deles uma passividade diante dos impedimentos no exercício da docência nas escolas públicas e de tantas dúvidas que ainda nos assolam a respeito do “educar”, porque, como nos indica Pino (2006, p. 56), “criar é uma necessidade humana”. Mas será justamente pela angústia diante da provável possibilidade de vivenciar um sentimento de 5

Na realidade, um guia curricular da educação infantil em Campinas foi estabelecido em meados de 2013. Durante o trabalho de campo desta pesquisa este documento ainda era desconhecido pelas docentes e gestores da rede. Ver: http://campinas.sp.gov.br/arquivos/educacao/04_diretrizes_infantil.pdf

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“fracasso” em sua ação solitária e atabalhoada que fará vingar uma das formas de sofrimento mais penosa na atividade docente. O docente da educação infantil, então, encontra-se muitas vezes diante de um duplo drama: de um lado, por conta da má formação (inicial e contínua) e da falta de parâmetros e formas de avaliar seu próprio trabalho, ele experiencia a precariedade subjetiva de seu trabalho - que se torna ainda mais evidente dependendo da realidade de trabalho que vivencia -, de outro, o sofrimento diante de tal “impedimento” se intensifica (e se complexifica) quando há a compreensão de uma relativa importância sobre o papel social de sua função, um “ethos profissional cujos fundamentos residem no fato de que eles sentem um vínculo forte que une seu trabalho, por mais desqualificado ou limitado que seja, à sociedade” (LINHART, 2011, p. 157). Ou seja, quanto mais o trabalhador se importar com a qualidade de seu trabalho, maior será seu sofrimento ao constatar a ineficiência de suas ações. Assim, temos estabelecido a lógica de nocividade do trabalho nessas condições: o sofrimento produz o desgaste mental, o desgaste mental produz o adoecimento. Neste sentido, a solidão típica no exercício da docência em ambientes de trabalho desagregados, em profundo contraste com as pretensas reconfigurações amparadas no princípio de gestão democrática da educação e das escolas, revela-se não apenas como um sintoma da má administração das escolas, mas como um elemento negativamente potencializador do processo saúde-doença dos docentes nas escolas públicas do país. O enfraquecimento ou inoperância dos coletivos de trabalho, reduzidos a "uma reunião de indivíduos expostos ao isolamento" (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 287), reverbera, assim, profundamente em termos psicossociais. Em outras palavras, O coletivo serve para interpor as formas de fazer estabilizadas entre o sujeito e ele mesmo. Ou seja, ele não é meramente uma soma ou uma “coleção” de indivíduos. É, acima de tudo, a fonte de uma história comum partilhada, momentaneamente estabilizada e que protege o indivíduo de si mesmo. Assim, cada trabalhador apela ao coletivo para tomar decisões. (LIMA, 2007, p. 101)

Devemos destacar o papel do coletivo não apenas no enfrentamento das condições concretas de trabalho, mas também na possibilidade de propiciar aos trabalhadores um domínio consciente sobre os princípios das formas de organização e das ações da atividade laboral. O coletivo, assim, deve ser entendido como um recurso para o desenvolvimento individual, da subjetividade individual (CLOT, 2006b, p. 102). A

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respeito da relação entre o desgaste e a produção de saberes pelo trabalhador na organização dos coletivos, Linhart (2008) é ainda mais enfática:

Análises sociológicas e ergonômicas revelaram amplamente a importância dos coletivos para diminuir e conter essas dificuldades com a ajuda da produção clandestina ou invisível de saber, o savoir-faire que permite realizar corretamente o trabalho nas condições que poupam e acomodam os esforços e os desgastes (tanto fisiológicos quanto psicológicos). Elas colocaram em evidência o trabalho real, a regulação autônoma em relação ao trabalho prescrito, aquela precisamente que organiza a elaboração e a transmissão das maneiras de fazer e de trabalhar que tomam em consideração as exigências, as restrições dos indivíduos, a necessidade de se poupar, de se proteger, de manter um interesse com o que eles fazem quando estão no trabalho. Elas evidenciaram a capacidade desses coletivos para inventar e fazer viver regras do jogo informais, que permitem a ajuda mútua, a solidariedade, sua capacidade em compartilhar valores relacionados a uma vivência em comum, valores com conotação sindical, política e profissional. Esses coletivos contribuem para minimizar o sofrimento de duas maneiras, diminuindo-o objetivamente por meio da ajuda mútua, e dando-lhe um significado coletivo: o sofrimento no trabalho é vivido no que diz respeito à relação de forças entre empregadores e assalariados; explica-se ao ver o que está em jogo econômica e politicamente, interpreta-se em termos de dominação. (LINHART, 2008, p. 132)

Envolto em um cotidiano de trabalho cujo adoecimento não é uma realidade concreta, ao retomarmos a escola tema deste trabalho, percebemos uma relação estreita entre a saúde das trabalhadoras e o funcionamento de um coletivo cuja participação dos sujeitos no planejamento e na (re)elaboração de suas próprias práticas se dá de forma intensamente intelectual, funcionando como meio de formação contínua, profissional e humana. A professora Paula, por exemplo, ao comentar sobre a relação entre sua formação e a experiência no coletivo, destaca: “Quando você chega na escola percebe que aquilo que você vê na faculdade não dá para realizar em sala de aula(...) você tem que perguntar, ver o que o outro está fazendo e desenvolver(...) copiar, até descobrir o que tem que ser feito.” Sabemos, porém, que trabalhar coletivamente não é uma tarefa simples. Não é fácil se expor, receber críticas, manter pontos de vista. Para que um trabalho coletivo realmente funcione deve haver necessariamente a compreensão de que os benefícios da ação conjunta são mais importantes que as diferenças. Talvez, como sugere a professora Marta, a questão não seja “superar as diferenças”, mas “construir algo a partir delas”. Como princípio desse coletivo, há a compreensão de que as professoras mais experientes possuem realmente um maior conhecimento sobre a prática – na qual nem tudo é factível e positivo na vida real – e de que essa forma de trabalho, que foi (re)discutida coletivamente durante anos, aumenta consideravelmente a eficiência das 13

ações e notadamente diminui o desgaste da atividade docente. Isso não significa dizer que não há dinamismo nas atividades, muito pelo contrário, mas de que há um relativo cuidado. E se ocorrem mudanças nas práticas, o grupo é capaz de sustentar ou rever sua posição diante de sua própria história, depois de uma década de trabalho conjunto. Há uma disposição e sensibilidade para transformar as críticas e embates numa contestação intelectual dentro do coletivo, que não apenas fortaleceu os laços de solidariedade, como impulsionou a produção das professoras em suas práticas educativas. Como nos indica Clot (2006b, p. 106), “o pensamento se desenvolve na discussão, na confrontação e, portanto, a controvérsia é a fonte do pensamento”. Um coletivo de trabalhadores, mesmo já há bastante tempo consolidado, não representa, necessariamente, um problema para quem vem de fora; não significa um lugar inóspito por excelência. Muito pelo contrário, baseado nas nossas experiências e nas das professoras Paula e Andréia, as “caçulas da turma”, o coletivo da escola demonstrou-se menos como um lugar de desconfiança do que um lugar de acolhimento. A respeito da receptividade e das possibilidades de integrar-se e de interagir nesse coletivo, a professora Isabel, que foi Orientadora Pedagógica (OP) da rede entre os anos de 1991 e 2013, e da escola entre os anos de 2008 a 2013, discorre sobre sua experiência: Eu sempre busquei pautar minha ação no coletivo, nos espaços coletivos. Então, assim, eu confesso para você que demorou um pouquinho para me aproximar das professoras mais individualmente falando: das práticas, observar as crianças; isso no ensino fundamental. Já no infantil foi muito possível para mim. Isso por conta daquilo que você deve ter presenciado lá: das crianças que pegam a gente pela mão, das professoras que têm uma certa carência, “vamos lá ver meu trabalho”(...) Se eu tinha alguma dificuldade para me aproximar das professoras no ensino fundamental, isso caiu por terra no infantil.

A professora Andréia, por sua vez, diante de sua experiência de quatro anos como diretora na rede, discorre a respeito de sua experiência na avaliação dos professores da rede e da escola em questão:

Na rede a gente não avalia, mas teria como avaliar. Porém, é difícil! As pessoas acreditam que a gente não tem o direito de falar sobre o trabalho delas, mesmo que seja para elas mesmas. Isso é muito sério!... Na nossa escola a avaliação ocorre de forma sistemática, nas conversas individuais, nas reuniões do coletivo. As coisas ocorrem de forma diferente quando há algo a ser mostrado. Quando a gente tem um trabalho que a gente acredita, a gente não quer abandoná-lo, quer mostrá-lo.

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Não obstante às críticas mais progressistas que defendem a separação definitiva entre às práticas da educação infantil e do ensino fundamental (brincar x escolarização), observamos que a prática das professoras mescla um pouco de ambas as concepções: ao mesmo tempo em que há, por exemplo, a rotina (a descrição da organização das ações estabelecida nos primeiros momentos da aula), há espaço, mesmo que de forma não muito intensa, para a transgressão; são exploradas as dimensões de tempo, espaço, gesto, movimento, turma, arranjos familiares e linguagem, porém, pautadas por uma noção de desenvolvimento extremamente dependente de diversas formas de avaliação e registro das atividades. Essencialmente, as professoras adaptaram conceitos de sua formação inicial (no magistério e no curso de pedagogia) e de suas experiências anteriores no ensino fundamental e na educação infantil, mas, importante, de forma coletiva. Isso significa que muitas das práticas são encontradas em outras escolas, outras foram inventadas ou adaptadas por elas, mas em cada uma dessas práticas há uma história e um sentido construídos coletivamente. Esse processo, como exemplo, é revelado pela professora Laís, na escola desde o ano 2000, quando pondera a respeito do desenvolvimento do processo de adaptação das crianças novatas à escola, cujos fundamentos partiram da Orientadora Pedagógica da escola na época. No primeiro ano em que eu peguei o agrupamento II eu tinha dezoito crianças, agora são quatorze (... )não havia a adaptação como é hoje(...)eu fiquei louca! Era criança chorando, era mãe não querendo ir embora, então eu cheguei para a Selma - até ela estava me ajudando neste dia - e disse: “Selma, posso pegar minha bolsinha e ir embora?” Aí ela me disse: “calma, calma que a gente vai conseguir, a gente vai passar por essa dificuldade”. A gente percebeu, então, que não dava para fazer uma adaptação igual a das crianças maiores. Foi assim nos dois primeiros anos. No terceiro ano, estruturamos a adaptação assim: nós realizamos uma reunião preliminar com os pais para que eles saibam o papel deles durante três dias na escola, qual a postura dele com a criança, que ele não perde sua autoridade, mas que deve mostrar que quem irá comandar as atividades é a professora(...) então a mãe, ou pelo menos um responsável, entra com a criança e acompanha o trabalho durante estes dias. Muito tranquila a adaptação assim! Os pais não apenas conhecem a escola, mas criam um vínculo com a gente. Quem veio com a sugestão de realizar a adaptação dessa forma foi a Mônica (antiga OP da escola). No início, eu e a outra professora do AG II ficamos em dúvida, achávamos que não iria dar certo. Na hora a gente colocou um “não”. Depois de alguns dias começamos a pensar sobre a possibilidade desta sugestão realmente funcionar: será que realmente não pode dar certo? Vamos tentar! E não é que deu certo?! Por isso que a gente tem que dar oportunidade para novas ideias.

A presença intensa das famílias no cotidiano da escola trouxe também a necessidade de uma aguçada “diplomacia” ao conservadorismo de algumas delas com relação às atividades lúdicas desenvolvidas na escola. Uma parte considerável dos pais vê 15

na educação infantil a possibilidade de se “pular etapas”, ou seja, pressionam as professoras e a gestão para que processos como a alfabetização ocorram o mais cedo possível. O desejo de uma escolarização antecipada é um tema que não raramente volta à tona nas reuniões de pais, como foi relatado no caderno de campo. A mãe de Pedro, que completará seis anos de idade no final de 2014, está preocupada pelo fato de seu filho ficar por mais um ano na escola6. Para ela, mais um ano na educação infantil representa um atraso em sua carreira discente. A professora Marta, então, afirma que não é uma perda de tempo e discorre sobre as atividades que são planejadas para as crianças que se encontram na mesma situação, buscando um diálogo com o ensino fundamental sem, no entanto, utilizar o mesmo formato. Ela ainda informa que durante os últimos anos a escola acompanhou seus ex-alunos e verificou que eles obtêm resultados muito positivos por terem se preparado melhor que outras crianças para o ensino fundamental. A mãe de Pedro, aparentemente, concordou com a justificativa da professora. (Caderno de Campo, 12 de dezembro de 2013)

Isso não significa dizer, porém, que não há embates mais calorosos com as famílias, mas que os problemas são menos desgastantes aos trabalhadores quando o coletivo está operante. A esse respeito, a professora Laís destaca: Acredito que nossa força também está no fato de que nada que venha de fora da escola nos surpreende. Qualquer questão que nos aflija individualmente acaba sendo diluída porque sabemos o que está acontecendo com cada professora. Se uma mãe reclama de algo do meu trabalho ela pode conversar com outra professora, com a OP ou com a diretora que receberá a mesma resposta. Os problemas não são varridos para debaixo do tapete.

Neste sentido, as possibilidades e as formas de se tornar “concreto” o desenvolvimento do trabalho assumem uma enorme importância. Como parte das atividades de registro, por exemplo, uma tentativa de materialização empírica da ação educativa, as professoras da escola elaboram uma “Ficha de Observação” para cada criança que compreende uma avaliação de seu desenvolvimento em relação às atividades propostas,

comportamentos,

dificuldades,

avanços.

Sobre

a

possibilidade

de

reorganização do trabalho e de seus sentidos nessas atividades de registro, a professora Isabel, por exemplo, discorre sobre o papel da “Ficha de Observação” como resposta à 6

Antes de 2010, apenas as crianças que completassem sete anos até o final de março poderiam ser matriculadas no ensino fundamental. Uma resolução do Conselho Nacional de Educação (Parecer CNE/CEB nº 12/2010) antecipou em 1 (um) ano a idade mínima para matrícula no ensino fundamental, instaurando o ensino fundamental de 9 (nove) anos.

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forma institucional e (pouco sensível) de avaliação institucional dos professores e das crianças na cidade de Campinas. Não sei se eu chamaria de avaliação, mas de explicitação do trabalho. Nós tínhamos esse fundamento no projeto pedagógico como um todo. (...)No processo de avaliação do desempenho das professoras, por exemplo, mesmo que tenha sido imposta pela Prefeitura esta avaliação numa condição muito ruim, a gente conseguiu fazer isso de um jeito bacana. De olhar para a avaliação não como esse bicho-papão que julga, mas que faz a gente parar para pensar. E isso foi fundamental para que a equipe pudesse dizer “olha, aqui a gente precisa avançar nisso ou naquilo”.

Esses materiais também representam documentos que promovem o diálogo com as famílias. Durante todo o ano, por exemplo, as atividades também são registradas através de fotografias e vídeos que são compilados e editados especialmente para os pais. A respeito dessa produção, a professora Laís destaca:“a gente sabe o que ocorre aqui, mas os pais não sabem. Além disso, é um documento do desenvolvimento da criança que eles podem guardar para sempre”. Há na escola, na dinâmica de seu coletivo, um sentido de transformação que, apesar de cautelosa, ressoa como uma prioridade do agir, por mais que algumas práticas possam (e devam) ser questionadas. Pouco antes de deixar o cargo de diretora da instituição, e com outras experiências na educação infantil como professora, Andréia reflete sobre suas primeiras impressões e o apuramento do olhar ao observar de perto o trabalho das professoras: De onde vem essa sabedoria adquirida? A gente, do alto de nossas pretensões, pensa: tem que mudar a prática, tem que mudar a prática (...) não acredito mais nisso. É o que está por trás, é a intencionalidade de acreditar naquela criança. (...) Eu falava para elas, “isso eu faria diferente”, mas aí eu pensava, “o que é que eu vou oferecer em troca?”.

Rebelar-se contra as condições de trabalho, contra o descaso ou meras imposições burocráticas em nosso usual modelo de escola pública torna-se o passo fundamental para que o poder de agir não permaneça apenas na esfera do desejo e da angústia. Como nos alerta Vilela et al (2010), “Quando as atividades estão impedidas, confinadas, encarceradas”, o sofrimento que delas decorre é uma forma de "amputação do poder de agir" do sujeito: (...) pode-se pensar que "o sofrimento não é unicamente definido pela dor física ou mental, mas pela diminuição, seja pela destruição da capacidade de agir, do poder-fazer, percebidos como agravo à integridade de si" (p. 293 grifos do autor)

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É na (re)tomada do “poder de agir”, no processo dinâmico de se tentar levar realmente a cabo o que foi pensado por aqueles que executam a ação, na possibilidade de (inter)agir, experimentar e (re)significar, que reside a força vitalizante promovida por esse

coletivo. O coletivo, assim, conseguiu, por mais que haja variações nas práticas individuais de cada professora, estabelecer uma forma de trabalho com um espectro robusto que não foi apenas capaz de produzir alguma coisa realmente relevante e viva, mas um processo que uniu a experiência das trabalhadoras - inclusive na medida da parcimônia utilizada para as práticas -, garantindo que o desgaste físico e psíquico laboral não se tornasse maior que a capacidade de recuperação no desgaste típico da função. O trabalho que elas ainda desenvolvem possui sentido porque é fruto exclusivo de suas ações pensantes, possibilitando às professoras o acesso à essência de sua atividade e à (re)organização de suas próprias identidades.

Considerações Finais Por mais que, de maneira geral, a formação dos professores em nosso país ainda permaneça precária, superficial, acreditamos que uma parcela fundamental desta formação profissional - muitas vezes renegada pelos gestores das escolas - esteja no ato de compartilhamento do próprio exercício da docência. A reorganização do trabalho promovida pelos trabalhadores, na retomada das decisões e do desenvolvimento intelectual de suas próprias ações, demonstra-se como um fator fundamental da vitalidade no exercício da docência. Porém, para que o trabalho coletivo realmente ocorra há a necessidade de tempo, apoio institucional, estabilidade, amadurecimento e comprometimento. Na possibilidade de aprimoramento das políticas públicas e do processo de formação de professores no Brasil, devemos lutar não apenas para que se criem condições mínimas para que o trabalho coletivo ocorra, mas, indo além, lutar para torná-lo parte da cultura da docência. Destacamos a solidariedade como uma marca daquelas professoras, o lugar de onde elas retiram sua força: nas ponderações, na escuta, no planejamento, na controvérsia, no consenso. Solidariedade que também abarca o respeito à alteridade de cada sujeito. A base do sucesso daquele coletivo, não por coincidência, compartilha do mesmo fundamento por trás práticas que fazem prosperar a qualidade do ensino naquela escola: uma sistematização e materialização do aprendizado, uma sensibilidade sobre as 18

individualidades, um processo de trocas capaz de potencializar as estratégias de intervenção dos sujeitos no mundo. A busca pela emancipação das crianças só pode existir se também contemplar a busca pela emancipação dos adultos. Obviamente, temos a compreensão de que estudamos um contexto muito propício para a qualidade do trabalho dessas professoras, que se favoreceu do fato de ter sido realizado numa realidade de trabalho menos complexa e dinâmica se comparada a outras realidades na rede pública. Cabe-nos avançar nas discussões que contemplem outros cenários. Em certa ocasião, logo após o término da pesquisa, a professora Marta indagou-me se aquele grupo seria capaz de encarar o desafio de obter resultados tão positivos em uma escola considerada mais complexa que aquela. E apesar de ser impossível responder essa questão diante de tantas variáveis, mantenho a resposta que lhe dei na ocasião, que na realidade é outra pergunta: “há uma alternativa melhor do que ter como base o que vocês fizeram aqui?”.

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