XXIª Semana Teológica da Beira - Uma Leitura dos capítulos V e VI de Laudato Sì

May 31, 2017 | Autor: Alfredo Manhiça | Categoria: Climate Change, Meio Ambiente, Mudanças Climáticas, Crise Ambiental, Laudato Si
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE



Intervenção na XXIª SEMANA TEOLÓGICA DA BEIRA: 13-17 de Junho, 2016 LAUDATO SI: UMA ENCÍCLICA QUE CONVOCA E PROVOCA AO CUIDADO DA NOSSA CASA COMUM A TERRA NÃO AGUENTA MAIS Uma leitura dos capítulos V e VI: Linhas de orientação e ação Educação e espiritualidade ecológicas

Alfredo Manhiça

Introdução Depois de ter apresentado, nos primeiros quatro capítulos da Encíclica , o quadro diagnóstico “da situação atual da humanidade, tanto nas brechas do planeta que habitamos, como nas causas mais profundamente humanas da degradação ambiental” (Laudato sì 163), nos dois últimos capítulos, Papa Francisco, examina os limites da resposta humana face à degradação global do Meio Ambiente; e indica os caminhos a serem percorridos para que a resposta se torne eficaz. I – LINHAS DE ORIENTAÇÃO E AÇÃO 1. Diálogo sobre o Meio Ambiente na política internacional Na parte introdutiva, o Santo Padre apresenta a sua Carta Encíclica Sobre o Cuidado da Casa Comum (a Terra) como “um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta” (Laudato sì, 14). Esta urgência é justificada pelo facto que, não obstante, na mesma Encíclica, o Papa reconheça a existência de sinais evidentes do incremento do empenho da comunidade humana no melhoramento do relacionamento Homem-Meio Ambiente (Cfr. Laudato sì, 7 - 8), lamenta que “muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabem, com frequência, frustrados pela recusa dos poderosos e pelo desinteresse dos demais (Cfr. Laudato sì, 14). O fundamento mais eloquente da asserção de Papa Francisco é o Protocolo de Kyoto, de 1997. Através dele a comunidade internacional (os Estados) estabeleceram uma meta de redução dos gases de efeito estufa (GEE)1 de 5,2%, em relação ao ano 1990, no período entre 2008 e 2012. Para a materialização da redução dos GEE, o Protocolo estimulava os países signatários a cooperarem entre si, através de algumas ações básicas: • Reformar os sectores de energia e transportes; • Promover o uso de fontes energéticas renováveis; • Eliminar mecanismos financeiros e de mercado inapropriados aos fins da Convenção; • Limitar as emissões de metano no tratamento de resíduos e dos sistemas energéticos; • Proteger florestas e outros sumidouros de carbono. Entretanto, o Protocolo que suscitou muitas expectativas, morreu “antes do seu nascimento”. De facto, embora a abertura para as suas assinaturas tivesse sido feita em Dezembro do mesmo ano da sua elaboração, só foi ratificado em Março de 1999, e só entrou em vigor no dia 16 de Fevereiro de 2005, depois que a Rússia o ratificou em Novembro de 2004, porque para a sua entrada em vigor precisava que 55 países, que juntos produziam 55% das emissões, o ratificassem. Os Estados Unidos da América recusaram-se a ratifica-lo, de acordo com a alegação do Presidente George Bush de que os compromissos acarretados por tal protocolo interfeririam negativamente na economia norte-americana. Dado que os períodos de tempo estabelecidos pelo Protocolo de Kyoto estavam quase a expirar,

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Os gases de efeito estufa (GEE) são substâncias gasosas que absorvem parte da radiação infra-vermelha, emitida principalmente pela superfície terrestre, e dificultam seu escape para o espaço. Isso impede que ocorra uma perda demasiada de calor para o espaço, mantendo a Terra aquecida. O efeito estufa é um fenómeno natural, e é necessário para a manutenção da vida no planeta, pois sem ele a temperatura média da Terra seria 33ºC mais baixa impossibilitando a vida no planeta, tal como a conhecemos hoje. O aumento dos GEE na atmosfera tem potenciado esse fenómeno natural, causando um aumento de temperatura – fenómeno denominado “Mudanças Climáticas”.



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sem o alcance das metas estabelecidas, a Conferências das Partes da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 17), realizada em 2011, na cidade de Durban (África do Sul), instituiu um grupo com a missão de criar um novo instrumento internacional legal até 2015, com implementação a partir de 2020 (a chamada Plataforma Durban para Ação Aumentada), e as metas estabelecidas pelo Protocolo de Kyoto foram estendidas para 2017, para não dizer foram abandonadas. O Santo Padre convida ao diálogo porque embora a consciência da possível catástrofe derivante das mudanças climáticas seja difusa, e embora haja um consenso de base sobre a necessidade de reverter a situação, é também evidente a dificuldade na promoção de políticas capazes de travar a degradação do Meio Ambiente. 2. Obstáculos na Promoção das Políticas Internacionais Eficazes sobre o Meio Ambiente A importância da Conferência de Estocolmo, de 1972 – a primeira Conferência mundial sobre o Meio Ambiente -, não reside só no facto de ter “chamado a atenção da comunidade internacional para a gravidade da crise ambiental” (De Pessoa, 2009, p. 12), ou por ter criado as “mais indispensáveis bases à moderna política ambiental adotada pela maioria dos Estados no seus respectivos ordenamentos jurídicos” (Idem), mas também porque delineou as questões de fundo que iriam constituir objecto de discussão e negociação entre os vários Estados, e indicou, já naquela altura, os principais pontos de discordância. De facto, a Declaração resultante daquela Conferência, muito embora evidencie o engajamento comprometido dos Estados com a cooperação internacional em matéria de Meio Ambiente, ela reflete também a divergência subjacente entre as perspectivas dos países desenvolvidos e as dos países em via de desenvolvimento. A título ilustrativo, gostaria de evocar alguns princípios da chamada Declaração de Estocolmo: • O Princípio nº 2 diz que “os recursos naturais da terra incluídos o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e especialmente amostras representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefício das gerações presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou ordenamento”. • O Princípio nº 6 diz que deve-se pôr fim à descarga de substâncias tóxicas ou de outros materiais que libertam calor, em quantidades ou concentrações tais que o Meio Ambiente não possa neutralizá-los. • O princípio nº 21 diz que em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de direito internacional, os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos em aplicação de sua própria política ambiental e a obrigação de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo, dentro de sua jurisdição, ou sob seu controle, não prejudiquem o Meio Ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora da jurisdição nacional. Os países desenvolvidos, preocupados com os efeitos da devastação ambiental sobre a Terra, propunham um programa internacional voltado para a conservação dos recursos naturais e genéticos do planeta, pregando que medidas preventivas teriam que ser encontradas imediatamente, para que se evitasse um grande desastre. Os países em via de desenvolvimento argumentavam que eles encontravam-se assolados pela miséria, com problemas de habitação condigna, saneamento básico, atacados por doenças



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infecciosas e que necessitavam de desenvolver-se economicamente, e rapidamente; e questionavam a legitimidade das recomendações dos países ricos (os que já se tinham industrializado com o uso predatório de recursos naturais) em impor a eles complexas exigências de controlo ambiental, que poderiam encarecer e retardar a industrialização dos países em via de desenvolvimento. Em outras palavras, a questão que se coloca é que, se por um lado a natureza global de muitos dos problemas ambientais exige que todos os Estados trabalhem em conjunto na resolução dos desafios mais prementes, por outro lado, no xadrez global, nem todos partem da mesma posição e, por isso, nem sempre os resultados que se obtêm são do tipo “win-win”. Existem, muitas vezes, os vencedores e os vencidos, no jogo global. Embora se possa assumir que haja, entre todos os Estados, e entre todos os segmentos sociais, uma homogeneidade do fundo, em termos de interesse, prioridade, expectativas, e preocupações, em relação à questão do Meio Ambiente, é também notória uma significativa contraposição, em primeiro lugar, entre os países do hemisfério Norte, também chamados ricos ou desenvolvidos, e os países do hemisfério Sul, também chamados pobres ou subdesenvolvidos ou em via de desenvolvimento, sobretudo em três questões: 1. A assimetria em termos de utilização e de possibilidade de acesso aos recursos naturais, e na consequente contribuição ao agravamento de problemas ambientais; 2. A necessidade de reconhecimento da exigência de desenvolvimento do hemisfério Sul no atual contexto da exploração excessiva dos recursos naturais e do crescimento demográfico; 3. Enquanto, por um lado, a natureza global da maior parte dos problemas ambientais levantados nas últimas duas décadas requer uma forte cooperação entre os Estados, entre estes e os vários níveis de governação ultra-nacional, por outro lado, esta necessária cooperação torna-se sempre mais complexa por causa dos problemas de freeriding, conflitos de interesses, soberania, partilha do poder, participação na tomada de decisões e, inevitavelmente, a contenda sobre custos e benefícios das políticas ambientais. As evidentes diferenças económicas, sociais e institucionais entre o Norte e o Sul criam uma fractura entre estes dois blocos quanto à política internacional sobre o ambiente. Os países do Sul pretendem que os países do Norte assumam um papel de guia na luta contra o problema ecológico global e assumam a quota maior dos custos adjacentes, porque os países desenvolvidos são, contemporaneamente, os principais responsáveis pela degradação do ambiente e os principais beneficiários da exploração dos recursos naturais. De facto, as emissões pro capite dos GEE dos países industrializados são muito mais elevadas do que dos países em via de desenvolvimento. Os países do Norte, até hoje, não demonstram nenhuma sensibilidade em relação às exigências dos países do hemisfério Sul, temendo, sobretudo o elevadíssimo onere financeiro que o reconhecimento da responsabilidade histórica pela degradação do ambiente iria comportar. A este propósito, Papa Francisco nota que as “negociações internacionais não avançam significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global” (Laudato sì, 169).



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Por outro lado, existe uma grande disparidade entre as agendas ambientais do Norte e do Sul. Enquanto os problemas ambientais dos países do Norte são, fundamentalmente, originados pelo objectivo do crescimento económico ilimitado, utilização excessiva dos combustíveis fósseis e aos modelos de consumo não sustentáveis, aqueles dos países do Sul são substancialmente originados pela pobreza. O Sul é caracterizado por um alto grau de vulnerabilidade física e social, determinada, sobretudo por maior dependência da agricultura, pela escassez de recursos financeiros, pelo subdesenvolvimento tecnológico e institucional, pela limitada difusão de conhecimentos científicos e pela fragilidade especifica dos seus ecossistemas. Papa Francisco ataca a raiz da dificuldade na promoção das políticas internacionais eficazes sobre o Meio Ambiente, indicando que o século XXI, mantendo um sistema de governança próprio de épocas passadas, é, porém, caracterizado pela corrosão de poder dos Estados nacionais, em favor do poder financeiro de carácter planetário, que tende, sempre mais, a prevalecer sobre a política (Cfr. Laudato sì, 175). E para reverter esta situação, o Santo Padre recomenda “a maturação de instituições internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre os governos nacionais e dotadas de poder de sancionar” (Laudato sì, 175). Políticas Moçambicanas sobre o Meio Ambiente Existem muitas razões de ordem jurídica, política, ou económica que fazem com que muitos acordos internacionais sobre o Meio Ambiente, ou sobre outra matéria, não encontrem a efetivação desejada. Em primeiro lugar, além do percurso necessário para a incorporação de um acordo ou norma internacional nos ordenamentos internos dos Estados que, por si só, é longo e complexo, às vezes é também necessário criar de raiz instituições específicas destinadas a materializar os acordos estipulados. Devo também notar que os Estados soberanos gozam da liberdade de determinar a modalidade da estipulação de um tratado internacional (Cfr. Cassese, 2006, p. 233). E, como é notório, os acordos internacionais, sobretudo os acordos solenes e os acordos elaborados ao longo de uma Conferência internacional, cuja adopção é possível com uma maioria de dois terços, e não se exige a unanimidade, vinculam as partes interessadas só depois da ratificação (Cfr. Cassese, p. 235). O consentimento de vinculação de um Estado por um tratado ou acordo internacional realiza-se com a ratificação (Cfr. Cassese, p. 233). A assinatura serve unicamente para autenticar o texto resultante das negociações. Quem ratifica um acordo internacional é, geralmente, o Presidente da República, com o consentimento do Parlamento. Mas a ratificação não é tudo porque um acordo internacional só entra em vigor depois da deposição do instrumento da ratificação de 50+1 Estados partes do acordo. A entrada em vigor de um acordo ou norma internacional não significa que a partir daquele momento passa a ser aplicada em todos os Estados, não. Cada Estado tem modalidade própria para a adaptação de uma norma ou acordo internacional no seu ordenamento jurídico. Em geral faz-se através de uma emanação de uma lei ou norma específica.



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Mas, como dizíamos anteriormente, além de adaptar uma norma ou conteúdos de um acordo internacional no corpo jurídico nacional, às vezes é necessários instituir, de raiz, instituições capazes de se ocuparem da matéria em questão. O Estado moçambicano, na sua qualidade de signatário dos acordos internacionais sobre o Meio Ambiente, atua as políticas sobre o Meio Ambiente através do Ministério Para a Coordenação da Acção Ambiental. E as políticas mais recentes do Governo moçambicano sobre esta matéria estão delineadas no Documento intitulado Estratégia Nacional de Adaptação e Mitigação das Mudanças Climáticas (ENAMMC) para o período 2013-2025, elaborado em 2012. Este Documento, depois de afirmar que o fenómeno da Mudança Climática (MC) manifesta-se já, no nosso país, “através do aumento de frequência e intensidade de eventos climáticos extremos tais como secas, cheias, ciclones tropicais, mudanças nos padrões de temperatura e precipitação e outros fenómenos associados tais como subida do nível das águas do mar, intrusão salina e propagação de incêndios florestais, entre outros” (ENAMMC, 2012, p. IX), prossegue dizendo que “dado que as MC já não podem ser evitadas, e as projeções indicam que os seus impactos em Moçambique irão aumentar tanto em frequência como em intensidade, foi preparada a ENAMMC com vista a identificar áreas chave de atuação e ações que podem (devem) ser levadas a cabo com vista a diminuir a gravidade dos impactos através de ações de adaptação e de redução dos riscos” (Idem). Para diminuir a gravidade dos impactos através de ações de adaptação e de redução dos riscos, o Governo moçambicano concebeu uma visão, uma missão, alguns princípios e alguns objectivos: • A visão concebida pelo Governo é de um “Moçambique próspero e resiliente às Mudanças Climáticas, com uma economia verde em todos os sectores sociais e económicos” (ENAMMC, p. 12). • A missão é “reduzir a vulnerabilidade às Mudanças Climáticas e melhorar as condições de vida dos Moçambicanos, através da implementação de medidas concretas de adaptação e redução de riscos climáticos e ainda de mitigação e desenvolvimento de baixo carbono, visando um desenvolvimento sustentável, com a participação ativa de todos os atores e sectores sociais, ambientais e económicos” (ENAMMC, p. 13-14). • Os princípios que irão nortear este programa, segundo o Governo de Moçambique, incluem: a). A Equidade social, ou seja, “o reconhecimento e respeito dos direitos humanos e do facto de que todos os cidadãos, independentemente da sua condição social, deverem conduzir ações específicas de adaptação e mitigação às Mudanças Climáticas”; b). “A Igualdade de direitos e oportunidades [...] em todos os domínios da vida política, social, económica e cultural, independentemente da cor, raça, origem étnica ou geográfica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição socioeconómica, profissão, filiação partidária e crença política”; c). “Transparência e participação, ou seja, a necessidade de disponibilização de informação, prestação de contas e resposta adequada aos diferentes atores no âmbito das Mudanças Climáticas, procurando que o processo da implementação da estratégia seja inclusiva, participativa e abrangente” (ENAMMC, p. 14).



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Quanto aos objectivos, o Governo quer “tornar Moçambique resiliente aos impactos das Mudanças Climáticas, reduzindo ao máximo os riscos climáticos para pessoas e bens” (ENAMMC, p. 14).

Quem lê o acima citado Documento intitulado Estratégia Nacional de Adaptação e Mitigação das Mudanças Climáticas (ENAMMC) para o período 2013-2025, e considera as práticas administrativas do dia a dia, o que lhe salta à mente é a dissonância entre estas práticas administrativas e os propósitos escritos no Documento. O Preside do Município de Quelimane, Manuel de Araújo, questionado pelo Semanário SAVANA, sobre como analisava a evolução dos discursos do Presidente da República, Filipe Nyusi, partindo da inauguração até então, disse que era “incongruente”, porque ele (o Presidente) piscava para direita e virava para esquerda (2015, 04 de Dezembro). O mesmo se poderia aqui dizer porque é difícil perceber como é que o Governo moçambicano pensa “implementar medidas de adaptação e redução de riscos climáticos e ainda de mitigação e desenvolvimento de baixo carbono” quando continua, sistematicamente, a promover ou a autorizar a exploração insustentável de vários recursos naturais em condições desaconselháveis, segundo os critérios da preservação do Meio Ambiente; quando algumas elites dirigentes e funcionários públicos continuam a servir-se, impunemente, dos recursos naturais para o enriquecimento ilícito próprio e dos membros das próprias famílias; não se percebe como o princípio de “igualdade dos direitos e oportunidades” será observado quando se amplia o processo da exclusão e perseguição a todos os moçambicanos com ideias diferentes e alternativas. Papa Francisco diz que é a “construção míope do poder [que] trava a inserção de uma agenda ambiental com visão ampla na agenda pública dos governos” (Laudato sì, 178). Esta construção míope do poder faz com que os estudos das previsões do impacto ambiental dos empreendimentos e projetos sejam feitos de maneira não transparente e em troca de favores (Cfr. Laudato sì, 182). No nº 179 da sua Encíclica, o Santo Padre observa que “dado que o direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, […] a sociedade, através de organismos não-governamentais e associações intermédias, deve forçar os governos a desenvolver normativas, procedimentos e controles mais rigorosos. Se os cidadãos não controlarem o poder político – nacional, regional e municipal –, também não será possível combater os danos ambientais”. II – EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS Depois de completar a apresentação do quadro diagnóstico sobre a nossa “casa comum” enferma, as causas profundas que estão na origem dessa enfermidade, Papa Francisco conclui a sua Encíclica sobre o Meio Ambiente, indicando os caminhos a serem percorridos, de modo a reagir com eficácia à progressiva degradação do Meio Ambiente. Sem subestimar o valor e a importância das recomendações técnico-científicas e dos esforços sociopolíticos, que visam mitigar os efeitos das Mudanças Climáticas, o Santo Padre observa que antes das intervenções que visam reajustar o rumo das coisas, “é a humanidade que precisa de mudar” (Laudato sì, 202). Citando o teólogo alemão, de origem italiana, Romano Guardini (1885 – 1968), segundo o qual o ser humano “aceita os objetos comuns e as formas habituais da vida como lhe são impostos pelos



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planos nacionais e pelos produtos fabricados em série e, em geral, age assim com a impressão de que tudo isto seja razoável e justo”, Papa Francisco denuncia o paradigma liberal cuja liberdade real é gozada por uma “minoria que detém o poder económico e financeiro, enquanto a maioria funda a própria liberdade apenas na possibilidade do acesso ao consumo (Laudato sì, 203). Para o Santo Padre, a humanidade pós-moderna não encontra uma nova compreensão de si mesma capaz de orienta-la, e esta falta de identidade é vivida com angustia. A avidez de comprar, possuir e consumir são um claro reflexo do vazio interior, incapaz de tolerar limites, inclusivo os limites impostos pelo bem comum. Ora, enquanto for “este o tipo de sujeito que tende a predominar numa sociedade, as normas serão respeitadas apenas na medida em que não contradizem as necessidades próprias” (Laudato sì, 204). O lugar onde esta degradação moral se manifesta de forma acentuada é na arena política, no relacionamento entre os governantes e os governados. Papa Francisco diz que “a grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo” (Laudato sì, 178). Contrariamente, conhecendo a fragilidade de carácter da humanidade pós-moderna, nos próprios Manifestos, as classes políticas e os candidatos aos cargos políticos, não propõem, nem os princípios que estão na base de uma convivência justa e pacífica, nem as políticas que promovem o bem comum a longo prazo. Os políticos prometem garantir, no caso que sejam eleitos, a liberdade a cada cidadão de satisfazer egoisticamente as próprias paixões, desde que não interfira nos afares alheios; e garantem a possibilidade de consumo ilimitado, mesmo que isso implique consumir daquilo que “não existe” ou daquilo que pertence às futuras gerações. Neste exercício de autodestruição colectiva, é como se existisse um acordo tácito entre os cidadãos que precisam duma lei que lhes permita viver como animais irracionais, e um poder político que, em troca disso, mantém ou conquista cargos públicos. O poder político conquistado ou mantido através destes procedimentos renuncia a tradicional tarefa de orientar e disciplinar os indivíduos e a comunidade (no respeito e na tutela das independências e liberdades dos sujeitos individuais e sociais) na realização do bem comum integral, e contenta-se com o simples papel de mediação entre a ação das grandes corporações económico-financeiras e os consumidores. Por estas e outras razões similares, Papa Francisco exorta-nos a pensarmos, “não só na possibilidade de terríveis fenómenos climáticos ou de grandes desastres naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises sociais, porque a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca” (Laudato sì, 204). Não obstante esta exortação, o Papa assegura-nos que “nem tudo está perdido, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto [...]. Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações” (Laudato sì, 205).



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A abertura ao bem é sempre presente na pessoa humana porque, criado à imagem e semelhança de Deus (Gen 1, 27), recebeu, no ato da criação, a capacidade de distinguir o bem do mal, unido ao princípio imperativo que o exorta a fazer o bem e a evitar o mal e, assistido pelo Espírito de Deus, o Sumo Bem, a possibilidade de escolher o bem. O significado desta asserção é de que “uma mudança nos estilos de vida poderia chegar a exercer uma pressão salutar sobre quantos detêm o poder político, económico e social” (Laudato sì, 206). Em outras palavras, se até aqui os indivíduos e as sociedades têm sido determinados nos próprios comportamentos económico-sociais pelos interesses dos detentores de poder político ou económico, a mudança de atitude em relação às ofertas feitas por estes poderes pode determinar a mudança na forma em si de fazer política e de realizar atividades económicas. Para o Santo Padre, o que deve iluminar o comportamento humano nas suas atividades económicas é a consciência de que “comprar é sempre um ato moral, para além de económico” (Laudato sì, 206). A colocação da moralidade nas atividades económicas rompe com a consciência isolada e a autorreferencialidade, e abre a possibilidade do cuidado dos outros e do Meio Ambiente; e faz brotar a reação moral que tem em conta o impacto que possa provocar cada ação e decisão pessoal fora de si mesmo. Educar para a aliança entre a humanidade e o Meio Ambiente A Revolução Científica iniciada no século XVI convenceu o Homem de que a natureza era uma fonte inesgotável de riqueza e ele, valendo-se da ciência, podia satisfazer, de forma ilimitada, os próprios desejos de conforto e consumo, dominando e colocando a natureza ao próprio serviço. Hoje, como bem o diz Papa Francisco, “muitos estão cientes de que não basta o progresso atual e a mera acumulação de objetos ou prazeres para dar sentido e alegria ao coração humano, mas não se sentem capazes de renunciar àquilo que o mercado lhes oferece” (Laudato sì, 209). O “mito” da ciência vista como solução de todos os problemas humanos fragilizou, não só os recursos da terra, mas também as vontades e os caracteres dos indivíduos e das sociedades. “A consciência da gravidade da crise cultural e ecológica [deve], segundo o Santo Padre, ser traduzida em “novos hábitos” (Idem). E para munir os indivíduos e as sociedade de “novos hábitos” na própria relação com o Meio Ambiente, com os outros e com as futuras gerações, é necessário uma educação ecológica. Para ser eficaz, a educação ecológica não se deve limitar na simples “informação científica e na consciencialização e prevenção dos riscos ambientais” (Laudato sì, 210), ou na simples aprovação de leis e normas que estabelecem o que é permitido e o que não é permitido fazer, ou o simples estabelecimento de instrumentos de controlo ou de penalização dos infractores; ela deve ser capaz de penetrar as mentes e os corações dos indivíduos, e a cultura das sociedade porque, como bem o diz Papa Francisco, “para que uma norma jurídica produza efeitos importantes e duradouros, é necessário que a maior parte dos membros da sociedade a tenha acolhido, com base em motivações adequadas, e reaja com uma transformação pessoal” (Laudato sì, 211). Sem subestimar os vários âmbitos onde a educação ecológica pode e deve ser realizada, a escola, os meios de comunicação, a catequese, etc, Papa Francisco indica a família como o lugar privilegiado para a realização de uma educação ecológica eficaz, porque a família “é o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos



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ataques a que está exposta, e pode desenvolver- se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico [...]. E é na família, onde cultivam-se os primeiros hábitos de amor e cuidado da vida, como, por exemplo, o uso correto das coisas, a ordem e a limpeza, o respeito pelo ecossistema local e a protecção de todas as criaturas” (Laudato sì, 213). O Papa afirma que é da competência da política, das várias associações, e da Igreja formar as consciências das populações. E faz votos também para que nos Seminários e nas casas religiosas de formação, “se eduque para uma austeridade responsável, a grata contemplação do mundo, o cuidado da fragilidade dos pobres e do Meio Ambiente (Cfr. Laudato sì, 214). No esforço de renovar a humanidade, o Santo Padre propõe a todos, sem distinção, a grande riqueza da espiritualidade cristã, proveniente de vinte séculos de experiencias individuais e comunitárias, como fonte de inspiração (Cfr. Laudato sì, 216). Esta proposta dirigida, de modo particular, aos cristãos, justifica-se na medida em que a crise ecológica se apresenta como um apelo a uma profunda conversão interior porque os desertos exteriores começaram a multiplicar-se no mundo quando os desertos interiores se tornaram amplos (Cfr. Laudato sì, 217). Consciente de que alguns cristãos, inclusivo os mais comprometidos e piedosos, com pretexto de realismo e pragmatismo prestam pouca atenção às preocupações pelo Meio Ambiente, outros são insensíveis ao chamamento relativo à conversão ecológica, Papa Francisco salienta que “viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa. De facto, depois de os ter criado à sua imagem e semelhança(criou-os homem e mulher, Gen 1, 27), Deus colocou-os no Jardim para o cultivar e guardar (Gen 2, 15); dominando sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu , sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra (Gen 1, 26). Cultivar a terra significa não abandoná-la à própria sorte; exercer domínio sobre ela significa cuida-la como um rei sábio cuida do seu povo e um pastor do seu rebanho (Cfr. Compandio della dottrina social della Chiesa, 255). Depois de ter proposto o caminho da conversão – a conversão ecológica -, o qual poderia facilmente ser equivocado, Papa Francisco faz notar que a espiritualidade cristã não é contrária ao bem estar. A sua particularidade consiste em propor “uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo” (Laudato sì, 222). O Santo Padre diz que propõe a espiritualidade cristã porque não basta falar apenas da integridade dos ecossistemas, sem ter a coragem de falar da integridade da vida humana, da necessidade de incentivar e conjugar todos os valores, porque quando se debilita de forma generalizada o exercício de alguma virtude na vida pessoal e social, isso acaba por provocar variados desequilíbrios, mesmo ambientais (Cfr. Laudato sì, 224). Alfredo Manhiça



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