XXI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos ÁREAS ÚMIDAS (WETLANDS): panorama e desafios teórico-conceituais

May 29, 2017 | Autor: Cecilia Gomes | Categoria: Wetlands, Urban Wetlands, Wetland Management, Wetland Conservation
Share Embed


Descrição do Produto

ÁREAS ÚMIDAS (WETLANDS): panorama e desafios teórico-conceituais Cecília Siman Gomes1* & Antônio Pereira Magalhães Junior2* Resumo – As Áreas Úmidas (AU’s) são consideradas como um dos ecossistemas mais relevantes do mundo em termos ambientais e sua perda pode resultar em grandes danos ambientais e socioeconômicos. Para uma efetiva proteção das AU’s brasileiras é necessário aprofundar as pesquisas relacionadas à sua concepção, suas características e formas de proteção, as quais demandam princípios e fundamentos multidisciplinares. Pretende-se, como objetivo geral, apresentar os principais conceitos atualmente existentes e levantar considerações e reflexões sobre as lacunas e os desafios relacionadas à concepção e ao entendimento das características intrínsecas das AU’s. Para a fundamentação da pesquisa foi realizada uma investigação teórico-reflexiva das definições advindas da literatura científica e aparato legal relativo às AU’s, no âmbito nacional e internacional. Verificou-se que encontrar uma definição de AU’s que sirva para fins científicos e legais ainda permanece um desafio. No Brasil, ainda são poucos os estudos que buscam investigar as AU’s sobre o ponto de vista teórico-conceitual. Uma das consequências é verificada em termos de marginalização das AU’s no campo legal, como pode ser verificado no conceito de AU’s apresentado pelo Código Florestal, que se mostrou dissonante e restritivo em relação aos conceitos que se tem produzido cientificamente e legalmente na literatura nacional e internacional.

WETLANDS: theoretical and conceptual prospect and challenges Abstract – Wetlands are considered one of the most important world ecosystems and its degradation can results in major environmental and socioeconomic damage. The researches intensification is necessary for the Brazilian wetlands protection, including those related to the conceptual basis, characteristics and conservation ways, which require multidisciplinary principles and fundamentals. It is intended to present the main currently existing wetland concepts and raise considerations and reflections on the gaps and challenges related to its theoretical and conceptual current state of art. The research was carried out a theoretical and reflective research settings arising from the national and international scientific literature and legal apparatus about wetlands. Conceive a definition that might be useful for scientific and legal purposes remains a challenge. In Brazil, few studies seek to investigate wetlands from the theoretical and conceptual point of view. One of the consequences is shown by the wetlands marginalization in the legal context, as can be seen in wetland definition adopted by the Brazilian Forest Code. This concept is restrictive in relation to the scientific and legal concepts in the national and international literature.

1 2

Mestranda em Geografia (UFMG) – Email: [email protected]. Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais – [email protected].

XXI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos

1

INTRODUÇÃO As Áreas Úmidas (AU’s), internacionalmente conhecidas pelo termo em inglês wetlands, são ecossistemas complexos e apresentam uma ampla gama de tipologias. Suas funções são regidas por variáveis hidrológicas, climáticas, geomorfológicas, pedológicas, químicas e biológicas, bem como pelas variadas formas de interação destas variáveis. As AU’s são consideradas como ecossistemas dos mais relevantes do mundo em termos ambientais. Além de apresentarem uma grande diversidade de fauna e flora, atuam na recarga de aquíferos, na regulação dos ciclos biogeoquímicos, do regime hídrico e do clima, na purificação da água, na retenção de carbono, bem como no fornecimento de combustíveis fósseis, água e alimentos (MITSCH & GROSSELINK, 2000, 2007; REDDY & DELAUNE, 2008). As Áreas Úmidas cobrem aproximadamente 6% da superfície do planeta (MITSCH & GROSSELINK, 2000; 2007; REDDY & DELAUNE, 2008; BARROS & ALBERNAZ, 2014). Pode-se estimar que já houve uma perda em torno de 50% das AU’s no mundo em função, principalmente, dos processos de drenagem para a agropecuária (MITSCH & GROSSELINK, 2000; 2007). A perda dos benefícios das AU’s pode resultar em grandes danos ambientais e socioeconômicos, visto que sua degradação ou destruição podem levar à redução da disponibilidade hídrica, à contaminação das águas subterrâneas, à alteração do clima e das taxas de recarga do nível freático, à perda da biodiversidade e da identidade cultural das comunidades locais, e ao aumento dos processos migratórios populacionais (MITSCH & GROSSELINK, 2000; 2007; BARROS & ALBERNAZ, 2014). Conforme Ramsar (2010), a interrupção das funções e a gravidade da perda contínua das Áreas Úmidas têm gerado a necessidade de se formular novas políticas de gestão nacionais baseadas na proteção e no uso racional das Áreas Úmidas. Nesse sentido, considera-se que para uma efetiva proteção das Áreas Úmidas brasileiras é necessário aprofundar as pesquisas relacionadas à sua concepção, suas características, tipologias e formas de proteção, as quais demandam princípios e fundamentos multidisciplinares, sobretudo dos campos da hidrogeomorfologia, da pedologia e das ciências biológicas. Para a compreensão e definição das AU’s, diferentes áreas do conhecimento devem ser integradas, podendo ser citadas a hidrologia, a pedologia, a ecologia e as engenharias (REDDY & DELAUNE, 2008). Dependendo da formação e do campo de atuação de cada pesquisador, as AUs podem apresentar concepções e definições distintas. Como exemplo, Tiner (1999) destaca que a concepção dos hidrólogos tende a enfocar o regime hídrico e sua relação com a topografia, ao passo que a concepção dos pedólogos tende a centrar-se na presença de tipos de solos, principalmente aqueles que se apresentam mal drenados. A concepção dos biólogos e/ou ecólogos tende a salientar a ocorrência de determinadas espécies ou comunidades, ou ainda o tipo de vegetação associada às condições de umidade do solo e os processos bioquímicos vigentes. A engenharia tende a salientar as wetlands como sistemas naturais de controle e/ou tratamento da qualidade das águas. Dessa forma, não há consenso na literatura nacional e internacional sobre a definição de Áreas Úmidas, tanto no meio cientifico quanto social e legal. O estudo e a gestão destes sistemas envolvem diferentes campos de pesquisa e uma ampla gama de tipologias associadas a diferentes contextos hidrogeomorfológicos e climáticos. Por isso, os estudos sobre as Áreas Úmidas são inerentemente multidisciplinares e complexos e apresentam grande relevância para o meio científico e legal e para o equilíbrio ambiental. XXI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos

2

No campo internacional, a legislação relativa às AU’s começou a ser fomentada na década de 1970, reconhecendo-se, a partir de então, a necessidade de se gerar parâmetros conceituais com o objetivo de formular políticas de proteção e gestão. Além disso, como a regulamentação das AU’s impacta diretamente os usos e atividades humanas em tais áreas, cresceram as pressões sociais em vários países para uma definição mais clara e precisa do seu conceito. Atualmente, diversos países apresentam legislação e instrumentos oficiais de identificação e delineamento das Áreas Úmidas, como os Estados Unidos (COWARDIN, 1979), Canadá (ZOLTAI et al., 1975; TARNOCAI, 1980), França (CIZEL, 2010), África do Sul (OLLIS, 2013) e o sistema internacional proposto pelo Ramsar Convention Bureau (1997). O primeiro encontro internacional que marcou a valorização e a discussão sobre a relevância das AU’s ocorreu em 1971, na Convenção Internacional sobre as Zonas Úmidas, em Ramsar, no Irã. Referida como a Convenção de Ramsar, em vigor desde 1975, o tratado intergovernamental estabelece quadros de ações locais, regionais e nacionais e de cooperação internacional para a conservação e uso racional de zonas úmidas em todo o mundo, com o objetivo de alcançar o desenvolvimento sustentável. O Brasil, apesar de ser um país signatário da Convenção de Ramsar, pouco avançou na concepção e aplicação de critérios sobre as Áreas Úmidas, o que gerou a sua marginalização no âmbito conceitual e legal para fins de gestão e proteção. O conceito apresentado pela legislação brasileira, por meio do atual Código Florestal, é dissonante daqueles que se tem produzido cientificamente e legalmente na literatura nacional e internacional. O Instituto Nacional de Áreas Úmidas (INAU) formulou uma proposta inicial de classificação das Áreas Úmidas dos biomas da Amazônia e do Pantanal, e que não foi considerada em termos legais. Diante da necessidade de se refinar a base teórica e analítica definidora e delineadora das Áreas Úmidas, bem como de aprimorar e expandir a base de proteção legal das mesmas no Brasil, pretende-se, como objetivo geral, apresentar os principais conceitos atualmente existentes e levantar considerações e reflexões sobre as lacunas e os desafios relacionadas à concepção e ao entendimento das características intrínsecas das Áreas Úmidas. Para a fundamentação da pesquisa foi realizada uma investigação teórico-reflexiva das definições advindas da literatura científica e aparato legal relativo às Áreas Úmidas, no âmbito nacional e internacional. ABORDAGENS CONCEITUAIS DE ÁREAS ÚMIDAS As Áreas Úmidas (AU’s) não são facilmente definidas, especialmente para efeitos legais, pois apresentam condições físicas e biológicas diversas, dimensões variadas e ainda podem sofrer ou serem originadas por influência antrópica. As AU’s são consideradas ecossistemas frágeis, cuja presença, extensão e características estruturais e funcionais dependem das peculiaridades climáticas e hidrogeomorfológicas (MITSCH & GOSSELINK, 2000; 2007). Não existe uma única, indisputável e ecologicamente correta definição para as AU’s, em função, principalmente, da sua diversidade e da peculiaridade de serem ecossistemas transicionais entre ambientes secos e aquáticos. A complexidade na definição conceitual resulta, muitas vezes, em definições pouco claras, demasiadamente genéricas ou simplistas, e mesmo contraditórias. Os termos adotados nas definições e classificações, como pântano, charco, brejo, turfa, dentre outros, ilustram bem os desafios para uma maior precisão na concepção das AU’s (COWARDIN et al., 1979; MITSCH & GOSSELINK, 2000; 2007).

XXI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos

3

Na literatura internacional, há várias definições para Áreas Úmidas no âmbito cientifico e legal. Ao longo do século XX as definições foram sendo alteradas com o aumento das pesquisas cientificas e das políticas legais destinadas à regulamentação das Áreas Úmidas, por vezes em resposta a pressão da sociedade civil preocupada com a sua proteção e/ou com os usos permitidos. Entre as definições mais adotadas no mundo destaca-se a da Convenção de Ramsar (1971). Nos Estados Unidos destacam-se algumas definições de origem institucional: U.S. Fish and Wildlife Service – USFWS - (1956; COWARDIN, 1979), US Army Corps of Engineers (1975), Food Security Act Definition (1985), International Biological Program (IBP,1988) National Research Council (NRC,1995). Outras foram propostas por autores como Mitsch & Gosselink (2005; 2007), Keddy (2010) e Paul (2013). No Canadá destacam-se as definições de Zoltai (1988) e Tarnocai et.al (1988). Na França há duas definições apresentadas pela Agence de l’eau RM&C (2010) elaboradas pelo Muséum national d’histoire naturelle, sendo uma científica e a outra legal. Na África do Sul destaca-se a definição do National Water Act; Act No. 36/ 1998 em OLLIS (2013). No Brasil, além do conceito adotado pela Convenção de Ramsar (1971), há uma definição no novo Código Florestal (Lei nº 12.651/ 2012) e também no Plano Nacional de Recursos Hídricos (BRASIL, 2006). No campo cientifico destaca-se o conceito proposto pelo Instituto Nacional de Áreas Úmidas (INAU, 2013) e por Piedade et al. (2012). A Figura 1 apresenta uma sistematização dos principais conceitos propostos na literatura nacional e internacional. Autor/Ano U.S. Fish and Wildlife Service (1956)

Convenção de Ramsar (1971)

Cowardin et al. (1979)

US Army Corps of Engineers (1977) Food Security Act, (1985)

Zoltai (1988)

Tarnocai et.al (1988) International Biological Program (1988) Agence de l’eau (1992)

Definições Planícies cobertas com águas rasas e, por vezes, temporárias ou intermitentes. São denominadas por termos como pântanos, brejos, turfeiras, dentre outras. Lagos rasos e lagoas, geralmente com presença de vegetação especifica, estão incluídos na definição, mas as águas permanentes de córregos perenes, reservatórios e lagos profundos não estão incluídas. Também não abrangem áreas com água temporária que pouco ou nada influenciam no desenvolvimento de vegetação em solos úmidos. Áreas de pântano, charco, turfa ou água, natural ou artificial, permanente ou temporária, com água estagnada ou corrente, doce, salobra ou salgada, incluindo áreas de água marítima com menos de seis metros de profundidade na maré baixa. Áreas de transição entre sistemas terrestres e aquáticos, onde o nível da água está normalmente na superfície ou próximo a ela, ou onde o solo está coberto por águas rasas. Devem apresentar pelo menos um dos seguintes atributos: a) ao menos periodicamente deve estar coberta com vegetação hidrófita; b) apresentar substrato de solo predominantemente hidromórfico não drenado; c) apresentar substrato sem a presença de solo, mas que esteja saturado ou com águas rasas em algum momento durante o período vegetativo de cada ano. Áreas que são inundadas ou saturadas por água superficial ou subterrânea com frequência e duração suficientes para dar suporte e que, em circunstâncias normais dão suporte, à prevalência de vegetação adaptada às condições de solo saturado. Áreas que: (A) tem uma predominância de solos hidromórficos; (B) são inundadas ou saturadas por água superficial ou subterrânea com frequência e duração suficientes para dar suporte a prevalência de vegetação hidrófila adaptada às condições de solo saturado; (C) em circunstâncias normais suportam uma prevalência de tal vegetação. Terrenos que apresentam água subterrânea na superfície, próximo ou acima da superfície, ou que estão saturados por um período de tempo suficiente para promover Áreas Úmidas ou processos aquáticos, como indicados por solos hidromórficos, vegetação hidrófila, e vários tipos de atividades biológicas típicas de ambientes úmidos. Terrenos saturados o suficiente para promover solos úmidos ou processos aquáticos, os quais são identificados por solos mal drenados, vegetação hidrófila e/ou atividades biológicas típicas de ambientes úmidos. Áreas dominadas por vegetação herbácea específica que cresce principalmente na superfície da água, apresentando partes aéreas e que resistem a ambientes cuja quantidade de água é excessiva para a maioria das outras plantas terrestres. Definição legal: Terras, exploradas ou não, geralmente inundadas ou alagadas por águas doces, salgadas ou salobras, de forma permanente ou temporária, onde a vegetação, quando existente, é dominada por plantas higrófilas em, pelo menos, uma parte do ano.

XXI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos

4

National Research Council (1995)

National Water Act; Act No. 36/ 1998 Junk (apud BRASIL, 2006)

Mitsch & Gosselink (2007)

Keddy (2010) Código Florestal (Lei 12.727/2012). Piedade et al. (2012)

INAU (2013)

Paul (2013)

Definição científica: Áreas caracterizadas pela presença, permanente ou temporária, de água superficial ou subsuperficial, doce, salobra ou salgada. Muitas vezes estão em posição de interface, de transição, entre ambientes terrestres e aquáticos, sendo caracterizadas por águas rasas, solos hidromórficos e/ou uma vegetação compostas predominantemente por plantas higrófilas em, pelo menos, uma parte do ano. Ecossistemas que dependem de constantes ou recorrentes inundações rasas ou saturação do substrato na/ou próximo da superfície. As características mínimas essenciais são sustentadas por recorrente inundação ou saturação na/ou próximo da superfície e presença de características físicas, químicas e biológicas que refletem a recorrência de inundação ou saturação do substrato. Indicadores típicos no diagnóstico de Áreas Úmidas são os solos hídricos e a vegetação hidrófila. Estas características estarão presentes exceto onde os fatores físico-químicos, bióticos ou antrópicos específicos tenham removido ou impedido o seu desenvolvimento. Terrenos de transição entre sistemas terrestres e aquáticos onde o nível freático está geralmente na/ou próximo da superfície, ou onde periodicamente a superfície é coberta com águas rasas, e que, em circunstâncias normais, dão suporte a uma vegetação adaptada às condições de solo saturado. Ecossistemas dinâmicos situados na interface entre ambientes aquáticos e terrestres, heterogêneos no tempo e no espaço, dependentes da dinâmica hidrológica para a manutenção de sua diversidade biológica e produtividade. Áreas que apresentam características específicas, cuja mais notável é a presença de água estagnada por um período de tempo que permite o desenvolvimento de vegetação adaptada às condições de solos saturados. A definição inclui três componentes principais: (1) presença de água na superfície ou na zona de raízes; (2) normalmente apresentam solos característicos que diferem das áreas adjacentes; (3) suportam vegetação adaptada as condições saturadas ou úmidas, como espécies hidrófitas. Ecossistemas com gênese associada à saturação do solo e ao predomínio de processos anaeróbicos e adaptação de organismos vegetais a essas condições. Pantanais e superfícies terrestres cobertas de forma periódica por águas, cobertas originalmente por florestas ou outras formas de vegetação adaptadas à inundação. Áreas episodicamente ou periodicamente inundadas pelo transbordamento lateral de rios ou lagos, pela precipitação direta e/ou pelo afloramento do nível freático, abrigando flora e fauna específicas desses ambientes. Entre as Áreas Úmidas de maior relevância no território nacional destacam-se as veredas, os manguezais, as restingas, as áreas alagáveis, as várzeas e os igapós. Ecossistemas na interface entre ambientes terrestres e aquáticos, continentais ou costeiros, naturais ou artificiais, permanentemente ou periodicamente inundados por águas rasas ou com solos encharcados, doces, salobras ou salgadas, com comunidades de plantas e animais adaptadas à sua dinâmica hídrica. Devem possuir a presença, pelo menos periodicamente, de espécies de plantas superiores aquáticas ou palustres, e/ou a presença de substrato/solo hidromórfico. Áreas que comumente compartilham quatro características: (1) águas rasas na superfície ou na zona de raízes, em, pelo menos, parte do tempo; (2) dinâmica lenta da água ou águas estagnadas (ambientes lênticos); (3) solos inundados ou alagados sob processos de redução ou, pelo menos, solos saturados; (4) vegetação adaptada a condições de encharcamento e/ou alagamento. Plantas não tolerantes a estas condições são praticamente ausentes. Plantas adaptadas às condições úmidas, designadas por hidrófitas, podem ser emergentes ou submersas. Figura 1 –Principais conceitos de Áreas Úmidas ao longo dos séculos XX e XXI

FATORES DE FORMAÇÃO DE ÁREAS ÚMIDAS Com exceção do conceito proposto pela Convenção de Ramsar (1971), que resultou de um desejo de abarcar todos os habitats das aves aquáticas migratórias em Áreas Úmidas (SCOTT & JONES, 1995 apud KAR, 2013), aplicar, na prática, qualquer umas das definições de Áreas Úmidas apresentadas na Figura 1, requer conhecimentos específicos de hidrologia, pedologia e ciências biológicas, assim como de contextos morfológicos e climáticos associados. Conforme Mitsch & Gosselink (2007), a dinâmica hidrológica em uma área úmida é responsável por alterar as características físico-químicas do ambiente e se constitui no principal mecanismo de transporte de sedimentos. As modificações físico-químicas, por sua vez, determinam XXI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos

5

as condições pedológicas como a quantidade de oxigênio disponível, o pH e os nutrientes presentes. Essas alterações, em consequência, podem definir as concentrações de matéria orgânica acumuladas e a ciclagem de nutrientes, os quais impactam diretamente a composição e a riqueza de espécies. A biota, como as plantas aquáticas emergentes, se adapta à ausência de oxigênio, embora a maioria das espécies de plantas vasculares não sobrevivam nesses ambientes. Por sua vez, a biota de uma área úmida também influencia as condições hidrológicas e físico-químicas do solo, por meio de uma variedade de mecanismos como a produção de novos compostos químicos, interrupção de fluxos de água e aumento da concentração da matéria orgânica, gerando turfeiras por exemplo. Forma-se, assim, um sistema complexo que se retroalimenta. Há um reconhecimento universal de que a dinâmica hidrológica é a força motora das Áreas Úmidas, visto que é a presença da água que exerce uma influência dominante sobre a vida vegetal ou animal ou para o desenvolvimento do solo (NRC, 1995). É, portanto, o ponto de partida para a formação das Áreas Úmidas (MITSCH & GOSSELINK, 2000; 2007). A dinâmica hídrica das wetlands é, por sua própria natureza, variável anualmente, sazonalmente e/ou diariamente de um contexto físico para outro, o que exige estudos de curto e longo prazo para documentar as flutuações dos níveis d’água na superfície e/ou subsuperfície. Poucos estudos investigam o regime hídrico das Áreas Úmidas devido a motivos como: o interesse ainda recente pelo tema, que apenas surgiu em função da necessidade de regulamentar as Áreas Úmidas; a identificação das Áreas Úmidas por meio da vegetação e/ou dos solos foi amplamente aceita como uma abordagem prática, ao passo que a identificação por meio de condições hidrológicas específicas é uma abordagem relativamente nova; e custos e prazos relativamente longos para caracterizar a hidrologia das Áreas Úmidas (TINER, 1999). A falta de dados hidrológicos específicos para estabelecer os limites das Áreas Úmidas, juntamente com a alta variabilidade hidrológica entre as Áreas Úmidas são as principais razões pelas quais as definições existentes evitam maiores especificidades hidrológicas e se limitam a defender que a área deve estar saturada ou alagada o suficiente para originar vegetação hidrófita e/ou solos hidromórficos (TINER, 1999). Contudo, estas definições apresentam lacunas conceituais, uma vez que as Áreas Úmidas nem sempre apresentam solos hidromórficos e/ou vegetação hidrófita. Estes critérios servem mais como auxílio de identificação das AU’s do que necessariamente de definição das mesmas. Os solos hidromórficos, caracterizados como aqueles que se encontram permanentemente ou temporariamente saturados por água, resultando em condições anaeróbicas, não são pré-requisitos para a formação de área úmida, pois em determinadas circunstâncias os solos saturados podem não ser reduzidos (MOORMANN & VAN DE WETERING, 1985 apud TINER, 1999), como em ambientes de descarga de águas subterrâneas onde considerável oxigênio dissolvido está presente. Além disso, os solos de Áreas Úmidas podem apresentar feições redoximórficas (REDDY & DELAUNE, 2007; KAMPF & CURI, 2012), que são produzidas em ambientes de redução, mas sem a formação de horizonte Glei. Por fim, os solos aluviais, geralmente presentes em Áreas Úmidas localizadas em planícies de inundação, não são hidromórficos e também podem não apresentar feições redoximórficas. Contudo, são as condições de solo saturado associadas à atividade anaeróbica que podem resultar em mudanças nas várias propriedades biogeoquímicas dos solos, incluindo as reações de oxidação-redução, ou movimento e acumulação de vários compostos reduzidos como o ferro. Estes processos podem resultar em mudanças morfológicas distintas em padrões que podem persistir no XXI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos

6

solo das Áreas Úmidas durante períodos secos, tornando-os úteis para a identificação de solos de Áreas Úmidas (REDDY & DELAUNE, 2007). Em relação ao critério vegetacional, as espécies podes ser tanto hidrófitas, plantas que vivem dentro da água com os órgãos assimiladores submersos ou flutuantes, quanto higrófilas, plantas que vivem em AUs não permanentemente alagadas. As respostas da vegetação às condições de excesso de água serão determinadas pela duração e profundidade da lamina d’água, pela fase de desenvolvimento das plantas no momento da imposição do estresse e pelo genótipo da planta afetada (DIAS-FILHO, 2002, 2012). Por sua vez, o grau de tolerância de uma determinada espécie vegetal a condições de ausência ou deficiência está diretamente relacionado à sua capacidade de desenvolver respostas fisiológicas e morfológicas/estruturais que garantam a manutenção de suas funções vitais (TINER, 1999; MITSCH & GOSSELINK, 2000; 2007; DIAS-FILHO, 2002, 2012; REDDY & DELAUNE, 2007). Assim, estabelecer a presença de plantas hidrófitas na definição de úmida pode ser considerado um fator limitante, uma vez que diversas tipologias de AU’s podem não apresentam esta vegetação específica, ou ainda não apresentar vegetação. No Brasil, o conceito apresentado pelo Novo Código Florestal (Lei 12.727/2012) se mostrou bastante restritivo, já que definiu as AUs como áreas cobertas periodicamente por águas, excluindo aquelas permanentemente cobertas por águas ou com presença apenas de solos saturados. Outro fato importante é que uma grande variedade de tipologias de áreas úmidas não é originalmente coberta por florestas, podendo ser formadas por gramíneas e vegetação herbácea.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A definição de Áreas Úmidas (AU’s) é de importância fundamental para a elaboração de propostas que visem a sua gestão e proteção, bem como que façam cumprir a legislação pertinente direta e indiretamente a estas áreas (INAU, 2013). Apesar dos solos hidromórficos e/ou a vegetação hidrófita serem frequentemente adotados nas definições de Áreas Úmidas, vários autores salientam que estes indicadores têm aplicação conceitual mais adequada para fins legais, pois auxiliam na definição dos limites das Áreas Úmidas (TINER, 1995; MITCH & GOSSELINK, 2000, 2007; REDDY E DELANE, 2008). Encontrar uma definição de Áreas Úmidas que sirva tanto para fins científicos quanto legais ainda permanece como um desafio. No Brasil, ainda são poucos os estudos que buscam investigar as áreas úmidas sobre o ponto de vista teórico-conceitual, o que aumenta a complexidade da sua compreensão. Uma das consequências é facilmente verificada em termos de marginalização das Áreas Úmidas no campo legal, como pode ser verificado no conceito de AU’s apresentado pelo Novo Código Florestal brasileiro, que se mostrou dissonante e restritivo em relação aos conceitos que se tem produzido cientificamente e legalmente na literatura nacional e internacional. Dessa forma, salienta-se a necessidade de se aprofundar os estudos relacionadas à concepção e ao entendimento das características intrínsecas das áreas úmidas brasileiras e avançar nas iniciativas de proteção e gestão das AUs, envolvendo a concepção de instrumentos legais e operacionais efetivos. REFERÊNCIAS

XXI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos

7

BARROS, DF. & ALBERNAZ, ALM. Possible impacts of climate change on wetlands and its biota in the Brazilian Amazon. Braz. J. Biol., vol. 74, no. 4, 2014, p. 810-820. BRASIL. Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas - PNAP. Brasília: MMA, 2006. CIZEL O., GHZH (2010), Protection et gestion des espaces humides et aquatiques. Guide juridique, Pôle-relais Lagunes, 13 Agence de l’eau RM&C. COWARDIN, I.M., et al (1979). Classification of wetlands and deepwater habitats of the United States. US Department of the Interior, Fish and Wildlife Service, Washington, D.C,131 p. DIAS-FILHO, M.B (2013). Características morfofisiológicas associadas à tolerância de gramíneas ao alagamento e ao encharcamento. In: Documentos Embrapa Amazônia Oriental. Belém, PA, 43 p. INAU. Definição e classificação das áreas úmidas (AUs) brasileiras: base científica para uma nova política de proteção e manejo sustentável, 2013. 67 p. KAMPF & CURI (2012). Pedologia: fundamentos. Viçosa, 2012. 343p. KAR, D (2013). Wetlands and Lakes of the World. New Delhi: Springer India. KEDDY,P.A.(2010). Wetland ecology: principles and conservation. Cambridge: Cambridge Press, 2.ed., 2010. MITSCH, W.J. & GOSSELINK, J.G., (2000, 2007): Wetlands, John Wiley & Sons, Inc. US. NATIONAL RESEARCH COUNCIL -NRC (1995). Wetlands characteristics and boundaries. Washington, DC: National Academy Press. OLLIS, D.J., SNADDON, C.D., JOB, N.M. & MBONA, N. (2013). Classification System for Wetlands and other Aquatic Ecosystems in South Africa. User Manual: Inland Systems. SANBI Biodiversity Series 22. South African National Biodiversity Institute, Pretoria PAUL, S (2013). Workbook for managing urban wetlands in Australia. Sydney Olympic Park Authority. PIEDADE et al. As áreas úmidas no âmbito do Código Florestal brasileiro. In: Código Florestal e a Cincia: o que nossos legisladores ainda precisam saber. Comitê Brasil. Brasília-DF, 2012. REDDY, R. e DELAUNE, R.D (2007). Biogeochemistry of wetlands: science and applications. CRC Press. TARNOCAI, C. Canadian wetland registry. In Proceedings of a Workshop on Canadian Wetlands. C.D.A. Rubec and F.C. Pollett, editors. Ecological Land Classification Series, No. 12. Lands Directorate, Environment Canada. Ottawa, Ontario 1980, pp. 9-39. TINER, R.W (1999). Wetland Indicators: A Guide to Wetland Identification, Delineation, Classification, and Mapping. Boca Raton: CRC Press LLC. ZOLTAI, S.C., POLLETT, F.C., JEGLUM, J.K. and ADAMS, G.D. Developing a wetland classification for Canada. In Proceedings, Fourth North American Forest Soils Conference. B. Bernier and C.H. Winget, editors. Laval University Press. Quebec, Quebec.1975, pp. 497-511

XXI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos

8

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.