Yo, rock, I´m let you finish - Uma análise sobre a capacidade de enfrentamento do rock em comparação com outros estilos musicais no atual cenário musical

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Artigo produzido para a disciplina Estética da Comunicação, do Curso de Mestrado em Ciências da Comunicação da Unisinos, em 2015, orientada pelo professor Doutor Fabrício Silveira
Jornalista. Mestrando em Comunicação na Unisinos. E-mail: [email protected]
Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Foo_Fighters_discography
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BD-fWMYcHXk
Disponível em http://www.usatoday.com/story/life/music/2015/06/12/foo-fighters-dave-grohl-leg-injury/71140026/
Disponível em http://mashable.com/2015/07/06/dave-grohl-foo-fighters-throne/#P3Eo6O8W9EqZ
Tradução nossa
Gumbrecht cita ainda o conteúdo da experiência estética, como os sentimentos íntimos, as impressões e as imagens produzidas pela nossa consciência; o objeto da experiência estética, ou seja, as coisas suscetíveis de desencadear tais sentimentos, impressões e imagens; e as condições da experiência estética, que são as circunstâncias situacionais historicamente específicas nas quais a experiência estética se baseia. (GUMBRECHT, 2006, p. 54)
Disponível em http://www.nytimes.com/1994/04/14/opinion/journal-far-from-nirvana.html
Disponível em http://www.today.com/id/4652653#.VmR5ofmrTIU
Disponível em http://www.hollywoodreporter.com/news/kurt-cobains-5-unforgettable-moments-174895
Disponível em http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2013/01/16/ha-20-anos-nirvana-fazia-em-sao-paulo-show-mais-surreal-e-emblematico-da-carreira.htm
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=YPy0uNpR7M4
Disponível em http://www.people.com/people/package/article/0,,20302940_20304330,00.html
Disponível em http://www.last.fm/fr/user/RadioKaKa/journal/2012/05/02/5g5i4g_rolling_stone's_500_greatest_albums_of_all_time_(2012_edition)
Disponível em http://pitchfork.com/features/staff-lists/9465-the-top-100-albums-of-2010-2014/5/
Tradução nossa. Disponível em http://www.nytimes.com/2013/06/16/arts/music/kanye-west-talks-about-his-career-and-album-yeezus.html?pagewanted=all&_r=0
Disponível em https://www.change.org/p/glastonbury-festival-cancel-kanye-west-s-headline-slot-and-get-a-rock-band
Disponível em http://www.kanyewest.com/
Disponível em http://www.huffingtonpost.com/entry/kanye-west-george-bush-black-people_55d67c12e4b020c386de2f5e
Disponível em http://www.democracynow.org/2015/8/28/george_bush_doesnt_care_about_black
Disponível em http://rollingstone.uol.com.br/noticia/vma-2009-beyonce-leva-premio-principal-mas-protesto-de-kanye-west-ganha-holofote/#imagem0
Disponível em http://news.bbc.co.uk/2/hi/entertainment/8258330.stm
Tradução nossa
Tradução nossa
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=LfcvmABhmxs
Disponível em http://www.hollywoodreporter.com/earshot/note-miley-cyrus-please-stop-614407
Disponível em https://twitter.com/MileyCyrus
Disponível em https://www.instagram.com/mileycyrus/
Disponível em https://www.facebook.com/MileyCyrus/
Tradução nossa
Disponível em http://www.huffingtonpost.com/entry/miley-cyrus-outrageous-tour-moments_565f29f7e4b08e945feda2fa
Tradução nossa
Tradução nossa
Yo, rock, I´m let you finish - Uma análise sobre a capacidade de enfrentamento do rock em comparação com outros estilos musicais no atual cenário musical
Carlos Corrêa

Resumo:
O trabalho analisa a capacidade de enfrentamento de três artistas – o rapper Kanye West, a cantora pop Miley Cyrus e o grupo de rock Foo Fighters. Ao relacionar teorias de autores como Walter Benjamin, Hans Gumbrecht, Walter Schusterman e Fabrício Silveira, o texto discute a possibilidade de o rock, um estilo musical nascido com um viés de rebeldia, ter perdido espaço no que se refere à disposição para o confronto para outros estilos como o rap e o pop.

Palavras-chave: música, rock, rap, pop, Foo Fighters, Kanye West, Miley Cyrus, enfrentamento, confronto

1. Introdução
Desde o seu nascimento, entre o final dos anos 40 e início dos 50, o rock carrega uma imagem de contestação. Como afirma Renato Costa Villaça (2001), o estilo musical funcionava desde então para um público jovem na época como ícone do grito de recusa aos valores da geração de seus pais, e a juventude questionava o status quo e o moralismo protestante através do ruído, do despojamento e da sensualidade. Tal imagem se perpetuou nas décadas seguintes, quando rock e rebeldia passaram a ser expressões vistas cada vez mais juntas.
Em essência, um show de rock é, entre tantas outras descrições possíveis, um dispositivo de confronto (SILVEIRA, 2014). Este trabalho se propõe a analisar justamente essa capacidade de enfrentamento no cenário musical atual e observar se o rock, como estilo musical, ainda é o gênero que mais se destaca ou se outros como o hip-hop e o pop destacam-se mais neste sentido. Para tanto, escolhi analisar o rapper Kanye West, a cantora pop Miley Cyrus e o grupo de rock Foo Fighters, todos relevantes no contexto da música de hoje em dia, seja pelo números de fãs, seja pela venda de álbuns e singles, seja por sua presença maciça na mídia. Tendo em vista que muitos elementos encontrados ao longo da pesquisa de material para este texto tratam do comportamento dos artistas não apenas quando estão se apresentando, a abordagem aqui não ficará restrita ao show unicamente, mas será expandida também às atitudes de Cyrus, West e do Foo Fighters fora dos palcos que remetam ao tema aqui estudado.
Cabe antes de mais nada um esclarecimento que este texto não se propõe a discutir a qualidade musical dos artistas citados, visto que trata-se de uma análise muito subjetiva para o gosto de cada pessoa. O foco aqui será apenas na capacidade de confronto percebida em cada um dos três artistas citados.

2. My Hero
Quando o site do jornal Estado de São Paulo lista 17 motivos pelos quais Dave Grohl, o vocalista do grupo Foo Fighters, é o "cara mais legal da música" (2015), é compreensível entender porque a banda, formada em 1994, é uma das mais famosas no cenário do rock atual – desde 2002, todos os cinco álbuns lançados atingiram pelo menos o terceiro lugar na relação dos mais vendidos nos Estados Unidos e no Reino Unido. Calcada no carisma de Grohl, a banda não raro aparece nas manchetes com atitudes politicamente corretas, que são imediatamente saudadas pelos fãs. Em agosto de 2015, por exemplo, o grupo atrapalhou uma manifestação da Igreja Batista de Westboro, conhecida por sua intolerância em relação aos homossexuais. Compartilhado na internet, o vídeo que mostra Grohl e os demais integrantes do Foo Fighters interrompendo a ação dos religiosos de forma pacífica e bem-humorada, teve mais de oito milhões de visualizações na internet e uma série de comentários positivos.
A relação das características que fariam de Grohl "o cara mais legal da música" nos leva a alguns apontamentos interessantes. São listadas justificativas como "Recebe as melhores homenagens", "Chama fãs para cantar no palco" e "Faz clipes engraçados" (2015). Outro aspecto saudado pelos entusiastas do grupo norte-americano é a sua entrega e prova disso seria o fato de David Grohl ter quebrado a perna durante uma das apresentações e mesmo assim continuado o show. Da mesma forma, não cancelou o restante da turnê – ao invés disso, desenhou um trono feito de guitarras (figura 1), em referência ao seriado de televisão Game of Thrones. Talvez sejam de fato elementos que ajudem a construir uma imagem mítica em torno da banda e de Grohl e ganhe a simpatia dos fãs, ainda que em nenhum destes casos se mostre presente algum elemento de confronto.

Figura 1
Essa ausência do confronto no Foo Fighters, seja nos shows, seja na postura da banda, também é percebida pelo ex-baterista do grupo norte-americano Guns N´ Roses, Matt Sorum, em entrevista à revista New Musical Express:
Se você vai a um show do Foo Fighters, você vai ver a banda tocar o seu set e tudo vai correr bem, e eles vão agradecer à plateia e todo mundo vai para casa dizendo 'Wow, aquilo foi realmente um bom show de rock!'. Nem tudo foi perfeito em nenhuma das bandas que eu estive, mas eu sei de uma coisa: as pessoas iam para casa dizendo 'Puta merda, o que foi aquilo?". (SORUM, 2015)
Quando Hans Gumbrecht, baseado nas redes conceituais desenvolvidas por Kant, Heidegger e Seel, propõe quatro conceitos para a descrição da experiência estética, entre eles cita os efeitos, que o filósofo alemão descreve como sendo as "consequências e as transformações decorrentes da experiência estética, que permanecem válidos além do momento exato em que ocorrem" (GUMBRECHT, 2006, p. 54). Ora, trazendo o conceito de Gumbrecht para o objeto deste trabalho, poderíamos afirmar que um espetáculo do Foo Fighters não conseguiria atingir os efeitos da experiência estética propostos, visto que o show se encerra nele mesmo como um mero dispositivo de entretenimento, não permanecendo muito além do momento exato em que ocorre.
Considero importante também aqui ressaltar que Grohl, fundador do Foo Fighters, foi integrante do Nirvana, um dos grupos de rock alternativo mais influentes e importantes a partir dos anos 90. Liderada pelo vocalista Kurt Cobain, a banda carregava consigo uma capacidade de enfrentamento que era percebida tanto nas apresentações como fora delas e aqui dois casos exemplificam tal comportamento. O primeiro é de 1992, quando a banda foi tema principal da publicação norte-americana Rolling Stone. Na foto da capa, Cobain vestia uma camiseta onde se lê: "Corporate magazines still sucks", que em uma tradução livre poderia significar "Revistas corporativas ainda são um saco". O segundo exemplo é de 1993, quando o Nirvana se apresentou no Brasil pela primeira vez, no festival Hollywood Rock, em São Paulo. O show é lembrado por integrantes da banda como um dos piores da carreira. Em dado momento, foi preciso que a equipe técnica da banda tivesse que procurar Cobain, que havia sumido da apresentação. No mesmo espetáculo, os integrantes do Nirvana decidiram que inverteriam, mesmo sem um ensaio prévio, os instrumentos: Grohl trocou a bateria pelo baixo, o baixista Kris Novoselic virou o guitarrista e Cobain assumiu a bateria. A apresentação seguinte, no Rio de Janeiro, mesmo sem tantas improvisações no setlist, ficou marcada por Cobain cuspir na câmera que transmitia o show e depois simular uma masturbação.

3. Black skinhead
Logo em um dos primeiros episódios da 12ª temporada do programa musical britânico The X Factor, em 2015, um dos concorrentes, Mason Noise, desgostoso com o tratamento recebido pela produção, discute, ao vivo com um dos jurados, Simon Cowell. Em seguida, joga o microfone no chão e dá as costas ao palco, indo embora. Atônita com a reação, outra jurada, a cantora Rita Ora, comenta com um de seus colegas, o radialista Nick Grimm: "É o chamado 'Efeito Kanye West'", no que recebe como resposta: "É, mas ele ainda não é um Kanye West". Tanto um como o outro comentário podem servir como um bom ponto de partida para entender tanto o personagem Kanye West no contexto da cena cultural atual como a sua importância. Sim, o rapper norte-americano é conhecido por uma lista de polêmicas e controvérsias que parecem se acumular ao longo dos anos, mas da mesma forma a qualidade do seu trabalho é incensada pela crítica especializada, e prova disso é o fato de seus álbuns mais recentes serem presença recorrente nas listas dos melhores da última década .
A sua relação com o público, no entanto, não é das mais fáceis, criando uma linha de tensão frequente, seja nos shows ou não. "Eu não tenho um tipo de relação romântica com o público. Eu sou como a anti-celebridade e a minha música vem desse lugar de ser anti", disse ao The New York Times, em 2013. Evidências desse enfrentamento não faltam e nem é preciso cavar fundo na memória. Só em 2015, foram dois episódios onde estavam colocados de um lado o público e de outro Kanye. Primeiro, ao ser anunciado como a atração principal de uma das noites do tradicional festival de música inglês Glastonbury, o rapper viu circular quase que imediatamente na internet uma petição contra a sua apresentação. "Kanye West é um insulto aos fãs de música de todo o mundo. Gastamos dezenas de libras para ir a Glasto, e ao fazer isto, esperamos um certo nível de entretenimento. Kanye tem sido muito franco em relação as suas opiniões sobre a música. Ele deveria ouvir o seu próprio conselho e transferir essa apresentação a alguém que merece. Vamos prevenir essa injustiça musical já", bradava o texto. Apesar do documento angariar mais de 100 mil assinaturas e da imensa repercussão, que incluiu uma série de opiniões divididas de artistas se posicionando contra e a favor da presença dele no festival, em junho o show aconteceu. Resposta ou não, o registro da apresentação virou a tela inicial do site oficial do artista. Um mês depois, coube a Kanye o espetáculo de encerramento dos XVII Jogos Pan-Americanos, em Toronto, no Canadá. Mais uma vez, uma petição contrária à presença dele foi lançada. Cinquenta mil assinaram. Mais uma vez, sem sucesso. O espetáculo, no entanto, desta vez foi mais controverso. No final da apresentação, irritado com a queima de fogos de artifício antes do término do show, o artista simplesmente jogou o microfone para o alto e se retirou do palco (Figura 2).

Figura 2
O comportamento de Kanye parece carregar consigo as letras de suas músicas, mesmo longe das apresentações. Ainda que fuja do estereótipo do hip-hop, traz questões relacionadas ao preconceito racial e econômico que sofrem os negros. Dessa forma, acaba pagando o preço de um gênero musical que, apesar do sucesso financeiro, ainda carece de um maior reconhecimento artístico além da crítica especializada – não à toa, a petição contra sua presença em Glastonbury pedia a "volta de uma banda de rock".
A incapacidade de reconhecer as figuras de linguagem tradicionais, as convenções estilísticas e as complexidades impostas na criação verbal do inglês afro-americano (...) induziu à crença de que as letras do rap são superficiais e monótonas, senão até mesmo estúpidas. Mas uma leitura atenta e desimpedida revela em muitas letras expressões espirituosas, de aguda perspicácia, bem como formas de sutileza linguística e níveis diversos de significação, cuja complexidade polissêmica, ambiguidade e intertextualidade podem, muitas vezes, rivalizar com qualidades de obras ditas "abertas" das artes maiores. (SHUSTERMANN, 1998, p. 146)
A disposição do rapper para o enfrentamento não fica restrita às apresentações ao vivo ou mesmo apenas às questões ligadas ao universo musical, mesmo que os envolvidos estejam em esferas bem mais acima do que qualquer artista ou celebridade, como pôde ser comprovado em um controverso episódio de 2005. Os Estados Unidos buscavam forças para se recuperar da tragédia causada pelo furacão Katrina. A rede de televisão NBC organizou então um evento para arrecadar fundos e auxiliar as famílias. "A Concert for Hurricane Relief" foi transmitido ao vivo para todo o país, sem espaço de tempo para possíveis cortes na transmissão. Entre celebridades do porte do ator Leonardo DiCaprio, Kanye West apareceu dividindo a tela com o ator Mike Myers, que seguiu o protocolo e leu o texto como previsto. Logo na primeira intervenção, o rapper já quebrou o roteiro com uma fala improvisada. A palavra voltou para Myers, que completou a sua parte e devolveu o foco para West. Que, para surpresa de toda uma nação, foi tão sucinto quanto direto: "George Bush não se importa com os negros". Em entrevistas posteriores, o então presidente norte-americano cita o episódio como "um dos mais nojentos do seu mandato".
Não seria a única vez em que o cantor seria criticado pelo mais alto cargo dos Estados Unidos. De todos os episódios controversos da carreira de West – pelo menos até aqui – a sua participação no Video Music Awards, da MTV, em 2009, talvez seja o mais conhecido. Durante o discurso de agradecimento da cantora Taylor Swift pelo prêmio de melhor vídeo feminino, o rapper invadiu o palco, pegou o microfone da vencedora e protestou: "Yo, Taylor, estou realmente feliz por você e vou deixar você terminar, mas Beyoncé tinha um dos melhores vídeos de todos os tempos. Um dos melhores vídeos de todos os tempos!". A repercussão foi bastante negativa e até Barack Obama não poupou o artista: "He´s a jackass" ("Ele é um imbecil", em tradução literal).
Em um ambiente no qual excentricidades e a busca pelos holofotes não são exatamente uma exceção, poderia a capacidade e disposição de enfrentamento de Kanye West serem apenas um atalho para as manchetes? Levando-se em conta uma série de músicas nas quais o foco está na crítica social, a fala na qual acusa Bush de não se importar com os negros e a própria defesa de Beyoncé, uma artista também negra, o rapper emite sinais de um discurso coerente que traz à tona a questão do racismo. O que, consequentemente, nos remete à relação feita por Richard Shustermann entre o hip hop e a cultura negra:
As raízes culturais do rap e seus primeiros adeptos pertencem à classe baixa da sociedade negra norte-americana; seu orgulho negro militante e sua temática da experiência do gueto representam uma ameaça para o status quo complacente da sociedade. (SHUSTERMANN, 1998, p. 143)
Uma entrevista concedida pelo cantor à Radio 1, da BBC, em 2013, evidencia que o racismo é um tema recorrente na sua carreira. Isso fica claro quando West questiona o fato de rótulos como "gângster", "criolo" ou "cafetão" serem considerados corriqueiros, ao contrário de outras denominações.
É como realmente um estado de racismo onde, do nada, alguém chega e diz algo como "Eu sou um deus", e todo mundo diz: 'Quem ele pensa que é?'. 'Eu acabei de te dizer quem eu penso que era. Um deus. Eu te disse. É quem eu acho que sou'. Teria sido melhor se eu tivesse feito uma música onde digo 'Eu sou um criolo'? Ou se tivesse feito uma canção onde dissesse 'Sou um gângster'? Ou se fizesse uma dizendo 'Sou um cafetão'? Todas essas cores se encaixam melhor em pessoas como eu, certo?(WEST, 2013)
Por fim, não deixa de ser curioso o fato de que o rapper demonstre em suas manifestações um interesse por temas aparentemente distantes do universo musical. Parceiro de uma fabricante de material esportivo na criação de uma linha de roupas, West não esconde ter aspirações estéticas bastante ousadas e aqui não se fala em estética apenas no sentido da aparência, mas de outros valores, como aponta Gumbrecht. "Trata-se da convicção de que um máximo de adaptação da forma de um objetivo à sua função produziria necessariamente o mais alto valor estético. 'Quanto mais funcional, mais bonito', teria sido o lema apropriado." (GUMBRECHT, 2006, p.51). Algo bastante próximo do que almeja o artista quando diz que:
Eu acredito que o mundo só pode ser salvo pelo design. E quando eu falo pelo design, eu sei que algum editor pedante vai pegar isso e dizer: 'Kanye West afirma que o mundo só poderá ser salvo pela cultura da moda', e não é isto que estou dizendo. A mentalidade por trás... você sabe, arte é para ser livre. Design é para corrigir. Sem políticas, apenas a verdade. Essa porra funciona ou não? Irrigação, por exemplo, é uma forma de design. (WEST, 2015).

4. Wrecking ball
Quando em 25 de agosto de 2013, Miley Cyrus subiu ao palco da premiação daquele ano do Video Music Awards para se apresentar, era bem provável que para o público em geral, aquele que não vinha acompanhando em detalhes a sua carreira, a imagem da artista ainda estivesse ligada à ingenuidade e candura da personagem Hannah Montana, protagonista de uma série de TV com o mesmo nome produzida pela Disney e exibida entre 2006 e 2010. Na ficção, Miley Stewart levava a vida de uma garota como qualquer outra durante o dia, mas à noite se transformava na popstar Hannah Montana. Na vida real, Miley Cyrus já havia deixado a vida comum para trás há bastante tempo. Ainda assim, a aparição dela no evento da MTV foi o símbolo de uma transição que já se ensaiava há mais tempo.
A artista que surgiu no palco aquela noite, ao invés dos figurinos e corte de cabelo comportados e do jeito adolescente da série de televisão, vestia apenas um maiô e abusava de um gestual sensual. Os elementos de palco traziam a contradição de uma postura sem receio em fazer várias referências ao sexo, ao mesmo tempo em que era cercada por bailarinos fantasiados de ursos de pelúcia. A polêmica maior, contudo, ainda estava por vir. Na segunda música, já acompanhada do cantor Robin Thicke, Miley tirou o maiô e ficou apenas de calcinha e sutiã. Enquanto ambos se alternavam nos versos da canção "Blurred Lines", simulavam um flerte nada sutil, ao ponto de simularem uma cena de sexo (figura 3), enquanto ela, com a língua para fora, sinalizava uma provocação que ali poderia ser entendida tanto quanto para Robin Thicke como para a plateia em geral. Como era de se esperar, a performance tomou de assalto as manchetes do noticiário ligado à cena pop e não necessariamente com a melhor das repercussões.

Figura 3
Apesar da repercussão negativa, o recado estava dado. Naquela noite, quase três anos após o fim do seriado, Hannah Montana finalmente havia acabado de forma definitiva. Saía de cena a menina, entrava a mulher. Bem antes daquele 25 de agosto, Walter Benjamin já deixava claro que a destruição pode representar muito mais do que o simples fato de se terminar com algo, assim como também pode ter um desfecho positivo.
O caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que todo ódio. O caráter é jovial e alegre. Pois destruir remoça, já que remove os vestígios de nossa própria idade; traz alegria, já que para o destruidor, toda remoção significa uma perfeita subtração ou mesmo uma radiciação do seu próprio estado. (BENJAMIN, 1987, p.236)
Mudanças de rumo na carreira de um artista não são exatamente exceções, e quase nunca vêm sem uma sensação de estranhamento por parte do público. Fabrício Silveira (2014) lembra toda a animosidade que cercou a turnê de lançamento do álbum "Bringing it All Back Home" (Columbia Records, 1965), do cantor Bob Dylan, uma vez que o artista decidiu incorporar de vez a guitarra e o acompanhamento de uma banda de rock em suas apresentações. Naquele ambiente de disputa entre o artista e o público, onde a sua mudança era contestada de forma explícita, Dylan teria que convencer seus fãs da mudança naquele que foi o primeiro show de rock como dispositivo de confronto. "A audiência precisaria aceitar isso, precisaria ser convencida. Precisaria suportá-lo. Já que o amava tanto, precisaria saber odiá-lo um pouco. Instalava-se a adversidade e o confronto" (SILVEIRA, 2014, p.6). Curiosamente, a fase de transição de Miley Cyrus mostrou a cantora, na tentativa de se desvencilhar da imagem criada pela personagem da Disney, se arriscando em outros estilos e participando da gravação de um álbum em homenagem justamente a Dylan: "Chimes of Freedom: Songs of Bob Dylan Honoring 50 Years of Amnesty International" (Fontana, 2012) trouxe uma versão de Miley para "You´re Gonna Make Me Lonesome When You Go".
A capacidade de enfrentamento da cantora em relação à própria carreira causou, em um primeiro momento, um estranhamento principalmente entre os seus fãs. Visto que o seriado Hannah Montana era voltado a um público infantil e adolescente, era de se esperar que essa audiência não compreendesse todos os significados de uma transformação radical. "Nós todos já passamos por esses momentos em que um objeto que durante muito tempo nos foi familiar, de repente e sem qualquer motivo visível, ganha uma aparência estranha ou causa um sentimento de estranheza" (GUMBRECHT, 2006, p.55). Como apontam os pesquisadores Phillipe Xavier e Alan Mascarenhas (2015), Miley se viu em uma situação inusitada, ainda que não surpreendente. "Naquele momento, a cantora havia se colocado num entrelugar: de um lado, seus fãs mais novos, a maioria fãs da série de TV, se queixavam das mudanças; de outro, fãs de divas já consagradas não a percebiam de forma tão amadurecida" (XAVIER e MASCARENHAS, 2015, p. 5).
O que torna Miley uma personagem tão interessante no atual contexto cultural não é apenas a capacidade de enfrentamento para reinventar a sua carreira, mas sim, a partir disso romper com uma série de limites e dar voz a temas ainda tão caros à sociedade em geral, como as discussões de gênero. Quando uma artista reconhecida como ela concede uma entrevista a uma revista de expressão como a edição britânica da publicação Elle afirmando ser pansexual (CASPARIS, 2015), é esperado que o assunto torne-se uma polêmica. Por outro lado, é uma polêmica que passa a ser discutida fora de um nicho, com um alcance muito maior, até mesmo pela abrangência que a cantora pode alcançar – são 24,3 milhões de seguidores no Twitter, 32,1 milhões no Instagram e 46,6 milhões no Facebook, por exemplo, tratando apenas de algumas das redes sociais mais populares na internet.
As diferenças conceituais de Omar Calabrese, trazidas por Xavier e Mascarenhas (2015) para evidenciar o que é limite e o que é excesso talvez se façam necessárias antes de seguirmos: "Enquanto o limite é o trabalho de levar às extremas consequências a elasticidade de um entorno cultural, sem destruí-lo, o excesso pode ser considerado como a saída desse entorno depois de tê-lo extrapolado" (XAVIER e MASCARENHAS, 2015, p. 7). Postos tais conceitos, parece claro que Miley Cyrus não apenas avança limites como não teme o excesso para fazer ser ouvida a sua mensagem. Ainda que o faça, por muitas vezes em cima de uma lógica que tanto pode ser considerada pragmática como ingênua. "Você mostra seus peitos e eles estão olhando, então você pode usar aquele espaço para dizer alguma coisa e fazê-los escutar" (2015).
No caso de Miley, ele não apenas "mostrou os peitos", como deu início no segundo semestre de 2015 à turnê intitulada Miley Cyrus and Her Dead Petz Tour, na qual a maior parte do espetáculo faria a apresentação no Video Music Awards de 2013 parecer ingênua. Ora a cantora aparece mordendo as nádegas de uma bailarina, ora beijando os seios desta mesma bailarina, ou então com um figurino que consiste em uma peruca azul com um chifre na testa e dois acessórios: um que simula seios desnudos e outro um pênis ereto. Pouco antes de iniciar a turnê, a artista foi o destaque da 9ª edição da revista norte-americana Candy Transveral, voltada para o público transgênero. Em um ensaio comandado pelo fotógrafo Terry Richardson, Miley surge em fotos que de certa forma chocariam não apenas aos fãs da época de Hannah Montana, como até mesmo aqueles acostumado a artistas com um viés polêmico como Lady Gaga ou Madonna, como evidencia uma das nove capas especialmente feitas para a publicação (figura 4). Tanto no show como na Candy Transversal, a cantora transcende o que seria uma hiper-feminização, tomando para si não apenas uma postura de empoderamento feminino, como indo além, e mostrando que, em cima do palco ou em frente às lentes, o poder é dela, e que também ali ela pode exercer o papel masculino se preciso.

Figura 4
Ao contrário de Kanye West, as letras das músicas de Miley Cyrus ainda parecem mais voltadas a um público adolescente, com temáticas como relacionamentos, e não trazem – pelo menos na superfície – maiores críticas sociais ou mesmo abordam os temas que ela traz à tona em entrevistas. Assim, a sua capacidade de choque parece acontecer em outra esfera. "Miley busca constantemente diferenciar-se e ir de encontro aos padrões pré-estabelecidos pela sociedade em geral. E tais vontades são refletidas muitas vezes em temas ligados à sexualidade, expostos frequentemente em seus discursos" (XAVIER e MASCARENHAS, 2015, p. 8). Assim, a disposição da cantora para o enfrentamento parece se dar muito mais na postura dela como artista, rompendo limites e abrindo espaço para discussões que se não são consideradas tabu, ainda estão restritas a nichos.

5. Considerações finais
Um show, seja de rock ou de qualquer outro estilo musical, é o momento em que artista e público se encontram em maior sintonia, dividindo um só espaço e com as atenções voltadas para o mesmo lado. O que não significa, necessariamente, que não possa existir uma tensão nesta relação. Inúmeros fatores podem contribuir para tanto, desde uma performance decepcionante ou inesperada por parte do artista, como um comportamento mais agressivo por parte da plateia. Ao contrário dos álbuns gravados, um espetáculo ao vivo, por mais que siga um mesmo roteiro, é sempre diferente. Para tanto, podemos nos valer até mesmo dos conceitos de Benjamin acerca da obra de arte e sua capacidade de reprodutibilidade. "Mesmo na reprodução mais perfeita falta algo: o aqui e agora da obra de arte - sua existência única no lugar em que está" (BENJAMIN, 2012, p. 12). Enquanto o disco é a reprodução, o show é único. Em outra frente, Silveira (2014) ao tratar o show de rock como dispositivo de confronto, traz outros elementos necessários para que a experiência seja vivenciada:
É uma falsa mágica vivida intensamente, com ardor. É fundamental acreditar nela, levá-la existencialmente a sério. Em alguma medida, ela estará sempre presente. Caso contrário, estaremos diante de um espetáculo de outra natureza, o encantamento terá se dissipado e a ilusão da transcendência terá se perdido. (SILVEIRA, 2014, p.4)
Ao observar o material pesquisado para este trabalho, é possível verificar um elemento de singularidade nos espetáculos de cada um dos três artistas aqui pesquisados: Foo Fighters, Kanye West e Miley Cyrus. No entanto, as semelhanças param por aí se formos investigar o elemento confronto nos três – e aí não apenas em se tratando dos espetáculos ao vivo, como também da própria carreira e suas atitudes longe dos palcos.
Se tomarmos o Foo Fighters como um dos exemplos de grupos de rock mais conhecidos da atualidade – e é claro que aqui poderiam estar outras bandas de tanto ou mais renome, como os Rolling Stones ou o U2, sem que esse elemento do confronto variasse muito, pelo menos em um passado mais recente – parece ficar evidente que o estilo musical que outrora foi símbolo de contestação e rebeldia, hoje possui uma preocupação em agradar aos fãs e ter o comportamento mais correto possível, evitando qualquer tipo de confronto. Não por acaso a banda acaba tendo uma imagem tão simpática, a ponto do seu líder ser chamado pelo site do jornal Estado de São Paulo como o "cara mais legal da música".
Por outro lado, estilos musicais como o rap e o pop têm sido mais profícuos em mostrar personagens com capacidade de, além de entreter ao público, também testar – e se preciso ultrapassar – limites, ainda que isto custe uma dose de enfrentamento e estranhamento, seja com os seus fãs ou com o público em geral. Tanto Kanye West como Miley Cyrus não são necessariamente artistas inovadores, mesmo no que diz respeito à disposição para ir além dos limites. No entanto, são personagens que tomaram um papel de protagonistas neste sentido no cenário atual, muito mais do que qualquer grupo de rock.
Mais do que isso, são personagens dispostos a assumir esse protagonismo, o que fica notório nas entrevistas de West. "Eu sou tão confiável, e tão influente, e tão relevante, que eu vou mudar as coisas", disse ao NY Times (2013). Dois anos depois, não titubeou em afirmar à BBC (2015) qual o seu posto na música hoje em dia: "Nós (os rappers) somos os rockstars, e eu sou o maior de todos. Eu sou o rockstar número 1 do planeta". Para alguém que contesta um presidente da república norte-americano em rede nacional, que encara uma plateia em parte contrária a sua presença em um tradicional festival de música e que invade o palco de premiações para ao vivo protestar contra o que acha serem injustiças, capacidade de confronto não é algo que lhe falte.
A reconstrução da carreira de Miley Cyrus, de personagem adolescente da Disney à artista que se dispõe a levantar o debate sobre questões de gênero e que não se furta de chocar o próprio público em apresentações nas quais sobe ao palco vestindo um acessório que simula um pênis ereto, não teria acontecido dentro das fronteiras de uma zona de conforto.
Atingindo limites, por meio da excentricidade, e excedendo-se no que se refere ao entorno cultural, ao provocar com a sexualidade e quebrar paradigmas envolvendo as discussões de gênero, Miley transita em terrenos que vão além da música, assim como artistas pioneiras que vieram antes dela. A mulher, a comunidade LGBT e os conceitos de belo e feio são apenas alguns dos pontos tocados por ela, com destaque, em seu trabalho, que oferece um vasto material de pesquisa (XAVIER e MASCARENHAS, 2015, p. 13).
O que talvez seja ainda mais curioso na comparação entre as carreiras de Miley Cyrus e do Foo Fighters é que são caminhos inversos. Enquanto a cantora surgiu como a protagonista de um seriado voltado para os públicos infantil e adolescente e dali passou para uma carreira mais ousada e disposta a ir além dos limites pré-estabelecidos pela indústria da música em geral, o Foo Fighters, na figura de seu líder, tem uma trajetória oposta. David Grohl surge para o cenário cultural como integrante do Nirvana, uma banda com uma série de exemplos de enfrentamento ao longo de sua existência, e depois vai comandar o Foo Fighters, que amealha milhões de fãs com atitudes esperadas e corretas, a ponto de virarem os caras mais legais da música.

Referências
BENJAMIN, Walter. O caráter destrutivo. In: BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. São Paulo – SP: Editora Brasiliense, 1987.
___________. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012
BRITTON, Luke Morgan. Ex Guns N´Roses drummer criticises Foo Fighters for a 'lack of danger'. New Musical Express. 29 de novembro de 2015. Disponível em . Acessado em 9 de dezembro de 2015.
CARAMANICA, Jon. Behind Kanye´s Mask. The New York Times. 11 de Junho de 2013. Disponível em . Acessado em 9 de dezembro de 2015
CASPARIS, Lena de. Express Yourself. Elle, Londres. p. 236 – 244, outubro de 2015.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Pequenas crises. Experiência estética nos mundos cotidianos. In: GUIMARÃES, César; LEAL, Bruno; MENDONÇA, Carlos Camargos (orgs). Comunicação e Experiência estética. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006
SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte. O pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo – SP: Ed. 34, 1998.
SILVEIRA, Fabrício. Show de rock como dispositivo de enfrentamento. Trabalho apresentado ao GT Comunicação e Experiência Estética do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014.
XAVIER, Phillipe; MASCARENHAS, Alan. Excentricidade, os excessos e o grotesco na construção de Miley Cyrus como diva pop. Trabalho apresentado no DT 6 – Interfaces Comunicacionais, GP Comunicação, Música e entretenimento do XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado de 4 a 7 de setembro de 2015.
Youtube. Kanye West. Zane Lowe. Part 2. Vídeo (13min05s). BBC Radio 1. 24 de setembro de 2013. Disponível em . Acessado em 9 de dezembro de 2015.
Youtube. Zane Lowe meets Kanye West 2015. Vídeo (43min51s). BBC Radio 1. 26 de fevereiro de 2015. Disponível em . Acessado em 9 de dezembro de 2015.

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