Yvonne Rainer: a quebra do clássico

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Yvonne Rainer A quebra do clássico e a relação com o público

Introdução

Num mundo em constante mutação, novas tendências e novas explorações surgem. Nos anos 60, nos Estados Unidos, uma revolução iniciava-se: o panorama da dança e da performance modificavam-se e os paradigmas, inerentes aos mesmos, quebravam-se. O corpo enquanto corpo presente, a dança enquanto um conjunto de movimentos banais, expressos por um corpo do qual o público não consegue fugir. A norma clássica cai: o pósmodernismo, nos anos 60, quebrou com as convenções daquilo que poderia ou não ser considerado dança ou performance.

Yvonne Rainer, cineasta, coreógrafa e bailarina, fez parte do Judson Dance Group, nos anos 60, e marcou-se, nessa altura, enquanto uma das mais influentes coreógrafas e bailarinas do pós-modernismo - ou anti-modernismo - do universo da dança. Trio A e Terrain são alguns dos exemplos das peças mais influentes do seu trabalho, e que questionam, no seu cerne, a forma como a dança é representada, a forma como o corpo é representado, tal como o papel disruptivo e transgressivo da performance.

Ainda que esta seja a perspectiva actual, a realidade é que a opinião de grande parte dos críticos da época não era favorável em relação às performances de Rainer. As suas criações, no entanto, não tinham por objectivo agradar ao público, nem induzir uma relação de affect com o público. O público, neste caso, era predominantemente composto por indivíduos do mundo da dança, ou das artes em geral.

Qual será o real efeito de tal tipo de performance num público não inserido no mundo das artes, ou até mesmo num público especializado?

Neste ensaio, o foco é colocado no trabalho de Yvonne Rainer, no seu papel no panorama da dança e da performance, e, igualmente, na análise da recepção, por parte do público, de algo que quebra com as convenções e com as expectativas.

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Pós-modernismo e o Judson Dance Group

O termo pós-modernismo despertou e desperta inúmeras interpretações e diferentes categorizações. Relativamente à definição deste período no mundo da dança, Sally Banes procurou defini-lo enquanto uma transição cronológica e estilística da dança moderna para a dança pós-moderna, sendo que a dança moderna seria caracterizada enquanto um género de dança que “used stylized movements and energy levels in legible structures . . . to convey feeling tones and social messages” (Connor, 2004, p.100), em que as configurações de corpo incorporavam “various stylized vocabularies” (Connor, 2004, p.100), em que a dança se tornava “bloated with dramatic, literary, and emotional significance”, e em que a hierarquização das companhias de dança se tornavam evidentes (Connor, 2004, p.100). O pós-modernismo surgiria, então, na década de 60, enquanto uma forma de contrariar algumas das categorias da dança moderna, procurando criar “dances that would be nonliterary in content, created from accessible movement vocabularies (sometimes based on everyday movement and using untrained dancers), and more democratic”. (Connor, 2004, p.100-101).

No entanto, tal como esta definição não é fixa, e visto que a discussão entre autores é evidente, Banes indica, igualmente, que a sua definição poderá ser problemática, visto que “historical modern dance was never really modernist” (Burt, 2006, p.8), e que, somente no pósmodernismo na dança é que “issues of modernism in the other arts have arisen: the acknowledgement of the medium’s materials, the revealing of dance’s essential qualities as an art form, the separation of external references as subjects.”. (Burt, 2006, p. 8). A dança pós-moderna funciona, como tal, como uma arte moderna, de acordo com Sally Banes.


Na época definida por Banes enquanto o período de surgimento da dança pós-moderna, surge o Judson Dance Group, do qual faziam parte membros da Dancers’ Workshop, de Anna Halprin, e que participaram, em 1961, num curso de composição com Robert Dunn. Alunos com formação clássica, são confrontados com os novos métodos de Dunn.

“Dunn distinguia a “composição” da coreografia ou técnica e estimulava os bailarinos a organizarem o seu material através de procedimentos aleatórios, explorando ao mesmo tempo as partituras regidas, pelo acaso, de Cage, e as estruturas musicais erráticas de Satie. Textos escritos, directivas (por exemplo, traçar, do início ao fim do espectáculo, uma longa linha no chão) e a prática de jogos também se tornaram parte do processo exploratório.” (Goldberg, 2012, p. 175).

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Diversos membros do Judson Dance Group tiveram aulas, nesse mesmo período, com Merce Cunningham, sendo, tal como no caso do curso com Robert Dunn, fortemente influenciados pelo seu estilo: movimentos anti-expressivos, bailarinos enquanto corpos que desencadeiam movimentos num determinado espaço, composições que não respeitam a estrutura narrativa “por meio da utilização do acaso, das criações de Cunningham com John Cage” (Fernandes, 2010, p. 154), e pelo ênfase da “autonomy of dance from other artistic media” (Sigman, 2000, p. 5), que se deveria tomar enquanto uma arte independente.

No entanto, a vertente anti-expressionista de Cunningham não causou a ruptura suficiente /necessária com os modelos clássicos da dança, na perspectiva dos futuros elementos do Judson Dance Theatre. "in the case of Cunningham, who was beginning to strip away the pretentiousness of classical modern dance, starting to explore the possibilities of pure movement for its own sake--- there was still the 'dancer-as-star' system…" (Sigman, 2000, p.6) Existe, igualmente, uma grande ligação de influência de Anna Halprin, que recorria “à improvisação “para descobrir o que os nossos corpos podem fazer, em vez de estudar as técnicas ou os modelos de terceiros.” (Goldberg, 2012, p.115), recorrendo àquilo que Freud definia enquanto Associação Livre. Essa foi uma técnica utilizada na psicanálise, que rapidamente se associou ao mundo das artes (como é possível observar pela sua relação com a montagem de filmes avant-garde - nos filmes de Jonas Mekas, por exemplo), por ser um método que procura induzir a expressão de pensamentos sem filtros, a partir de associações criadas ou “a partir de um elemento dado (palavra, numero, imagem de um sonho” (Froemming, 2002, p. 39) ou “de forma espontânea” (Froemming, 2002, p. 39). O grupo de alunos iniciou a criação de repertório próprio, procurando explorar novas possibilidades de movimento, e explorando o corpo e o espaço de uma forma original. Em 1962, devido à quantidade de material criado, apresentou o mesmo ao público, pela primeira vez, na Judson Church. O repertório consistia em cerca de três horas de performance, com materiais de diversas áreas artísticas. Sendo esta igreja um local apropriado para o grupo desenvolver o seu repertório, e apresentar o mesmo, “formou-se então o Judson Dance Group” (Goldberg, 2012, p. 175).

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Trangressão e os anos 60 Os anos 60 foram uma época de exploração, em que tudo poderia ser usado: desde o silêncio, ao andar - típico de Steve Paxton -, correr - típico de Yvonne Rainer -, arrastar objectos, ou até mesmo o próprio nada - o vazio, a imobilidade. "(…) patterns, repetition and variation, bravura, sensuality, vigor were no longer requisite. In fact, there were no formal requirements. But what was really most important, at the root of all of this innovation, was the means of generating dances. Compositional methods were changed completely." (Sigman, 2000, p.7) Este tipo de abordagem, que, em grande parte, eliminava a construção narrativa clássica elaborada com atenção ao estabelecimento de momentos climax, por exemplo -, e que procurava explorar os movimentos e não-movimentos de uma forma mais pura e crua, fugindo ao expressionismo - e à necessidade de satisfazer os desejos e expectativas do público -, poderá ser associado ao contexto de arte transgressiva. "Transgression can be defined as any overstepping of boundaries, as normally laid out by polite society, law or convention — this is the way the American Heritage Dictionary defines it. Transgressive art, then, is art that oversteps boundaries." (DeTar, 2007, p.2) A transgressão ultrapassa os limites delimitados pelas normas e pelas convenções vigentes. A definição do conceito de norma implica, naturalmente, que o público toma determinados procedimentos como aqueles que são realizados num determinado contexto, numa determinada altura, sem variação. A dança clássica incorporava determinadas normas, que correspondiam às acções expectáveis. O pensamento e a prática transgressiva iniciaram-se nos anos 50, com os novos procedimentos de Anna Halprin, Merce Cunningham e Robert Dunn, que quebravam as necessidades estruturais narrativas, e que desenvolviam novas técnicas de exploração e representação do corpo, do movimento, e do espaço. No entanto, é com o Judson Dance Group que esta transgressão relativa à norma clássica atinge o seu auge, com a eliminação do star effect ainda característico de Merce Cunningham. Com inúmeras apresentações ao público, de diversos géneros de performances, que demonstravam o cunho pessoal - e, como tal, diferente - de cada autor, de forma subtil, o público - inicialmente maioritariamente da área artística - experienciou um tipo de performance e de dança que decorreu naquele contexto, naquele momento histórico, naquele local.

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Is boundary-pushing art worthwhile? The answer to this question depends on the reasons one has for enjoying or creating art — the “purpose” for art. (DeTar, 2007, p. 9)

O conceito de arte transgressiva implica, igualmente, uma noção de arte enquanto algo que "must create discomfort, disgust, unpleasantness, or some other displeasure in its audience." (DeTar, 2007, p. 51). O nível de transgressão implícito nesta abordagem não recairá tanto na criação de choque através de actos ofensivos, ainda que tal também possa ocorrer neste contexto - nomeadamente, na performance “The People’s Flag Show” , em 1970 -, mas sim na perspectiva de algo que cria desconforto por se desviar daquilo que é a norma, e que poderá, de alguma forma, colocar o público num papel instável de recepção (pela falta de bases num quadro de referências divergente). Esta questão torna-se relativamente relevante tendo em conta as reacções discrepantes do público - que poderá ficar agradado com a observação de algo transgressivo, ou que pode sentir repulsa, choque, etc. Para Karl Zinmeister, a arte deveria ser "something which people simply “enjoy” — which he claims is representational art, such as that of the pre-modern era" (DeTar, 2007, p.9), afirmando que, "since the 1960s, the hippest modern art has aspired to exactly what every garden-variety 13-year-old brat aims for: maximum opportunities to shock, flout, insult, and otherwise chuck rocks at polite society...." (DeTar, 2007, p. 8). Mas será este o real propósito da arte performativa dos anos 60? O choque poderá ser o objectivo, mas a realidade é que as intenções subjacentes não são comparáveis a infantilidade ou a desprezo daquilo que é high art. A transgressão, em si, implica uma determinada estética, e pode resultar como forma de pedagogia, ou de experimentação (DeTar, 2007, p. 8). A experimentação realizada pelo Judson Dance Group foi um ponto de partida para a criação de novas possibilidades dentro do mundo da dança, da performance, e da arte, no geral: "in many ways they are responsible for what we see in dance today. Judson left in its wake contact improvisation, casual athleticism, and neutrality, three major hallmarks of contemporary dance, and it planted the seeds for the limby, floppy, silken contemporary movement styles known under the heading of "release techniques"." (Sigman, 2000, p. 7) Daí, partiram bailarinos e coreógrafos que são considerados grandes influências no mundo da dança. Daí, surge Yvonne Rainer.

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Yvonne Rainer: a elevação do banal

NO to spectacle no to virtuosity no to transformations and magic and make-believe no to the glamour and transcendency of the star image no to the heroic no to the anti-heroic no to trash imagery no to involvement of performer or spectator no to style no to camp no to seduction of the spectator by the wiles of the performer no to eccentricity no to moving or being moved. (Manifesto de Yvonne Rainer) Ser ou não ser pós-moderno? Yvonne Rainer classificava, nos anos 60, os seus trabalhos enquanto pós-modernos por uma questão de lógica temporal: após o moderno, surge o pósmoderno (Zurbrugg, 2004, p. 296). A quebra com o passado - moderno - implica uma quebra estrutural da forma como se elabora uma determinada peça, e o tipo de abordagens que se podem realizar. Para Rainer, o pós-modernismo dos anos 60 era uma "refusal of the grand storytelling gesture, a refusal of emotion-laden pantomimic gesture, a refusal of the Louis Horst theme-and-variation approach to constructing a dance, and a turning to John Cage’s principles, which came out of Duchamp, and to the use of chance procedures. I guess a lot of it was a preference for surrealism over expressionism." (Zurbrugg, 2004, p. 296). A associação do surrealismo ao tipo de práticas realizadas pelo Judson Dance Group é invulgar, mas Rainer determina que o facto de invocarem o dia-a-dia, pelo tipo de movimentos que realizavam, pelo tipo de actividades que demonstravam, dentro de um "theatrical setting you’re playing with a kind of surrealism." (Zurbrugg, 2004, p. 297) O manifesto dos "Não", destacado inicialmente, foi apresentado numa das primeiras peças de Rainer, Terrain, estreada em 1963, e que demonstra a linha orientadora delineada pela coreógrafa/bailarina. Rainer, em entrevista com Zurbrugg, clarifica, no entanto, que o manifesto era, em si, um exagero - não sendo, logicamente, possível realizá-lo de forma plena -, mas que serviu, como outros manifestos, para desafiar e provocar. O foco colocava-se na representação do corpo, na materialidade do movimento, na consciência dessa materialidade e desse mesmo corpo: a quebra da ilusão de facilidade da dança clássica, fugindo, ao mesmo tempo, da espectacularização dos movimentos - manter os pés do bailarino no chão, explorar o dia-a-dia. No entanto, a verdade é que, mesmo com uma dança que se procura desligar da técnica e das exigências do espectacular, e que se assemelha a um conjunto de movimentos do dia-a-dia - ou, de alguma forma, a movimentos que qualquer pessoa poderia realizar -, a realidade é que o tipo de movimentos exigidos pela coreógrafa não são livres de exigência, de forma alguma. "The audience observes the performers navigating a cumbersome object, noting how the working bodies adjust their muscles, weights, and angles." (Sigman, 2010, p.8)

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O corpo do performer é despido de adereços simbólicos, o espectacular torna-se o ordinário, a técnica é eliminada, e até mesmo a personalidade se perde - sendo que, muitas vezes, o olhar do performer não se dirige ao público, como no caso da performance Trio A. "You're left with pure body, and what Rainer famously called "unenhanced physicality." (Sigman, 2010, p.9)

Para além deste olhar cuidado sobre o corpo, Yvonne Rainer utiliza técnicas do acaso e técnicas de composição aleatória, quebrando, tal como os restantes elementos do Judson Dance Group, com a linha narrativa comum, recorrendo, como tal, à improvisação e à associação livre para a composição das suas peças. "It had to do with forgetting beginnings, middles and ends, and sometimes forgetting climaxes. It had to do with performing tasks and doing ordinary activities ordinarily and talking about what you were doing while you were doing it and it had to do with walking around forests and on tightropes, silence, nudity, improvising, using spaces other than stages, stillness, using non-dancers, looking at objects and making objects." (Sigman, 2000, p. 6) Uma característica visível em diversas obras desta coreógrafa é a separação de linhas narrativas/exploratórias de diferentes elementos da peça. De um lado, a dança; de outro, a palavra, por exemplo. Este é um tipo de exploração já vísivel na ligação Cunningham-Cage, sendo que Rainer, em entrevista com Zurbrugg, demonstra que uma das suas grandes influências foi, precisamente, John Cage, utilizando, por exemplo, "his strategies for indeterminate relationships of sound and image." (Zurbrugg, 2004, p. 301). Aqui, é possível verificar um dos passos determinantes para a declaração da independência da dança em relação a outras artes: a dança não depende da música e do seu ritmo, a dança não depende da poesia. São, no geral, artes independentes, que se apoiam entre si, ou que podem, somente, coexistir. "(...) It was a way of sequencing things I liked, it was somewhat arbitrary. There was an overall design, but where the particular moments were concerned, there was no design." (Zurbrugg, 2004, p. 301)

Trio A Versão verbalizada do efeito da estrutura narrativa de Trio A, 10 anos depois da primeira apresentação, no Soho Weekly News: "thereisnopartofthisarticlethatisanymoreimportantthananyotherparteachwordsenntenceparag raphcarriesthesameweightasanyotheranditssmoothnessliesnotonlyintheequalweightednesso feachwordsentenceandparagraphbutinthejuxtapositionofoneparagraphtoanothemhichcauses 7 thereadertoreacttothearticleasawholeratherthanassepen" [sic] (Lambert, 1999, p.96)

Em 1966, Trio A foi apresentado pela primeira vez, inserido no contexto da performance The Mind is a Muscle, na Judson Church. A performance foi documentada, em vídeo, por Sally Banes, em 1978, sendo esta uma das poucas amostras disponíveis dos trabalhos de Rainer (fora em exposições específicas, ou em fotografia), o que levou à escolha da apresentação da mesma para uma caracterização mais concreta do estilo coreográfico de Rainer. No caso da performance de 1978, Trio A foi realizado como um solo - sendo Rainer a bailarina -, mas a realidade é que já foi apresentado também como um trio, e até mesmo em equipas de 10. Esta peça representa a tentativa de Rainer em escapar às metodologias narrativas típicas, procurando estabelecer uma narrativa sem a estrutura início-meio-fim e que não cedesse a momentos de clímax: em Trio A, o movimento é ininterrupto e as frases não só não terminam, como desaparecem os ênfases. No entanto, ao contrário de outras peças de Rainer, Trio A não se baseia em movimentos banais do dia-a-dia: observando a performance é possível verificar que os mesmos não correspondem a movimentos que um indivíduo realiza normalmente. É explorado um outro nível de movimento, também característico de performances dos anos 60: o movimento que não corresponde à técnica, que foge à mesma, exemplificando propriedades daquilo que poderá ser considerado um movimento ordinário ["Trio A signifies through chains of reference. In particular, it represents ordinary movement through the exemplification of certain properties we associate with ordinary movement." (Soldati, 2014, p.370)]. Esta referência a propriedades de movimentos ordinários induzem uma associação, por parte do público, com movimentos que são vistos no mundo real (Soldati, 2014). Este tipo de abordagem, tomada por Rainer, induz, igualmente uma observação particular da movimentação do corpo, tomando-o não como algo inacessível, mas sim enquanto algo próximo, que se pode observar ao detalhe. As deslocações em palco são curtas, mas o corpo invade o espaço. Os movimentos são ininterrumptos, mas assemelham-se a algo que parece permanecer incompleto, e que não alcança o seu verdadeiro potencial - o expectável de uma dança clássica. A estruturação não-narrativa e inimterrupta permite a criação de um espaço e de um tempo específico, um fluxo que não tem princípio nem fim, e que invade, por completo, a visão do público. O corpo demonstra o peso do movimento, e as forças que nele são aplicadas (Lambert, 1999 p. 104). A leveza característica da dança clássica desaparece, para dar lugar a um corpo que realiza movimentos que incorporam a sua própria significação. O público é o significante (Lambert, 1999, p. 102). "Rainer's word for this relation is "geared": what the audience perceives is "geared to the actual time it takes the actual weight of the body to go through the prescribed motions." Tooth-in-groove, the actual qualities of the body in motion materially affect the 8 dance signifier." (Lambert, 1999, p.102)

Relação Público-Rainer A relação performer-público e performance-público é de extrema importância, de forma a se poder entender o porquê de obras de Rainer - como foi o caso de Trio A - não terem sido aceites pela crítica e, por vezes, pelo público. O foco da artista poderia ser o de realizar uma performance pura - o corpo enquanto corpo, o movimento sem técnica, a dança sem espectáculo -, com uma atenção pormenorizada do corpo, mas a recepção de tais explorações é fulcral para a futura influência destes trabalhos. A experiência do público é, ainda actualmente, definida por uma convenção do espaço onde se realizam performances. No anos 60, não só se realizaram experiências com a técnica, como também se iniciaram as explorações de locais alternativos para a apresentação de obras artísticas. O anfiteatro comum, onde o público se coloca de um lado, para a observação dos movimentos que ocorrem do outro lado, enquanto está sentado numa cadeira - numa posição passiva, em termos de interactividade - (Dyson, 2015) não foi abandonado, mas a convenção inerente foi desafiada, o que implicou, igualmente, um desafio para o papel do público. Para além da exploração do local, que influenciou a recepção das performances por parte do público, é de relevar os aspectos que induzem o entendimento/prazer/entusiasmo na dança e de que forma é que tais foram alcançados pelas performances de Rainer. Freud determinou que o conteúdo ou a matéria de uma obra de arte, mais do que "stylistic qualities or formal properties of the artwork" (Glass & Stevens, 2005, p.3), são "the most potent source of pleasure (Glass & Stevens, 2005, p.3), o que implica que, caso os membros do público não entendam o conteúdo, ser-lhes-á impedido o alcance do prazer, independentemente de o registo estético ser ou não do seu agrado. No entanto, tal delimitação da apreciação de dança poderá ser reduzido, tendo em conta o conjunto de variáveis que envolvem uma obra artística. Para Berlyne, existem três variáveis que contribuem para a alteração do entusiasmo do público: "1) psychophysical variables, 2) collative variables and, 3) ecological properties" (Glass & Stevens, Ano, p.3). As propriedades ecológicas correspondem ao valor simbólico e de significado de uma determinada peça correspondendo, então, àquilo que Freud determinava -, e, tal como foi apresentado, existem mais duas variáveis: "psychophysical properties would include kinematic properties such as velocity, acceleration and displacement. Collative properties such as novelty, complexity, incongruity and surprise can give rise to arousal." (Glass & Stevens, 2005, p. 3). Relativamente às propriedades ecológicas, é possível notar que, de forma a que haja um entendimento do símbolo e do significado de uma determinada obra, é necessário que as codificações realizadas pelo autor se insiram dentro do contexto cultural do público, e, para além

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disso, que o público tenha competência para interpretar/descodificar aquilo que lhe é apresentado. "A beholder who lacks the specific code feels lost in a chaos of sounds and rhythms, colours and lines, without rhyme or reason.” (Jola, Ehrenberg & Reynolds, 2012, p.31) Ao observar dança, o público retém as imagens motoras, e o cérebro prevê a trajectória de movimento e a dinâmica (Stevens & McKechnie, 2005, p. 246), sendo que o prazer, de acordo com Hagendoorn, advém de "1) increased allocation of attention and a general state of arousal if a movement deviates from its predicted path, and (2) rewarding correct prediction of the motion trajectory." (Stevens & McKechnie, 2005, p. 246). É possível observar, como tal, que o público obtém tanto prazer quando o movimento é previsível, como quando o movimento não segue a trajectória deduzida implicitamente pelo cérebro, a partir do conhecimento que detém a priori e pelo facto de, enquanto se observa dança, ser possível reconhecer determinados traços supostamente estáveis - do coreógrafo. " (...) observers learn implicitly features of a particular choreographer’s movement vocabulary, as well as the grammar or relations between identifiable patterns—the systematic way patterns are structured, sequenced, and related to one another in a piece. (Svedalis & Keller, 2011, p. 248) O público obtém prazer, igualmente, pela observação de movimentos complexos, que não são executáveis por qualquer pessoa - sendo, portanto, espectaculares, nesse sentido. " (...) not only do dance-naive participants enjoy watching difficult dance movements that they cannot physically perform, but this relationship between liking and a lack of physical ability appears to be mediated by parietal and occipital cortices." (Bläsing, Calvo-Merino, Cross, Jola, Honisch & Stevens, 2012, p. 23) Trio A, com a sua estrutura contínua/ininterrupta, impede a localização e o entendimento de movimentos que, ainda que estejam em permanente relação, não apresentam qualquer tipo de diferenciação ao nível de intensidade - e, de tal forma, de contraste, que implica uma noção de maior ou menor importância, e que permite um diferente entendimento simbólico da acção que se desenrola. As peças de Yvonne Rainer, no geral, ainda que baseadas numa simplificação do movimento, com performances baseadas na realização de tarefas do dia-a-dia, por exemplo, têm, como qualquer outra peça, um significado inerente, pelo simples facto de existirem. A criação de peças por associação livre - uma técnica utilizada frequentemente por Rainer - não são desprovidas de significado, por exemplo, por não seguirem uma determinada lógica clássica: as relações estabelecidas entre movimentos, o surgimento dos movimentos tem um fundamento psicológico que, a partir daí, é carregado de significado pessoal de quem realiza a performance (ou de quem a constrói). No entanto, o facto de a norma ser quebrada induz uma maior dificuldade de entendimento, por parte do público, da eventual carga simbólica inerente aos movimentos que observa/à performance.

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O objectivo da arte não é a definição de objectos/intenções, e não implica uma justificação de tudo aquilo que ocorre, mas, de forma a ser possível uma reacção do público que não simplesmente a confusão, é necessário apresentar algo que se encaixa nos modos de referência do mesmo. No entanto, ainda que esta aparente confusão possa criar um certo desapego inicial, por parte do público, ela é essencial para o desafio dos quadros de referência do público, de forma a que seja possível que a arte evolua. O público apresenta determinadas características que entram em confronto com as performances de Rainer: a preferência por movimentos complexos, e a preferência por movimentos previsíveis. Tal poderá justificar, de alguma forma, a má recepção das obras de Rainer na altura em que foram apresentadas pela primeira vez. No entanto, tal como existe a preferência pelo previsível, existe, igualmente, um gosto pelo imprevisível, que se relaciona, provavelmente, com a noção de que, no inesperado, é possível arranjar métodos para ultrapassar limites e avançar para diferentes ramos. É nesse campo que podemos encontrar Rainer: uma performer que desafiou os paradigmas da dança clássica, com performances transgressivas, que, mesmo não indo de acordo com as preferências psicológicas/socio-culturais, permitiram uma evolução para a dança que observamos actualmente.

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Conclusão

O público apresenta determinadas características implícitas que condicionam e influenciam a recepção de uma obra de arte. Yvonne Rainer não só quebrou com os paradigmas vigentes da dança moderna, como quebrou, igualmente, com os quadros de referência do público. A procura por uma dança independente das outras artes, com uma linha narrativa não obrigatoriamente lógica - de acordo com a noção clássica -, com movimentos desprovidos de técnica rígida, com uma procura da simplificação com a consequente redução da espectacularização da dança: estes eram alguns dos objectivos de Rainer e do Judson Dance Group que, graças à experimentação de novas possibilidades dentro do mundo da performance, em termos de movimentos, espaços, e conceitos, induziram uma espécie de revolução que permitiu a evolução da dança para aquilo que é actualmente. Pós-modernistas ou não - dependerá da definição de cada um -, expectáveis ou não, estas experiências desafiaram as fronteiras e os limites daquilo que é ou do que poderá ser a dança e a performance.

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