Zooarqueologia à luz dos paradigmas atuais da investigação arqueológica

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Universidade do Minho Mestrado em Arqueologia Unidade Curricular: Seminário III Docente: Doutora Cláudia Costa -Zooarqueologia à luz dos paradigmas atuais da Investigação arqueológica-

Nuno Tiago Correia Oliveira N.º: PG28229

Índice I.

Introdução ............................................................................................................................ 3

1.1. Arqueozoologia ou Zooarqueologia? – A sua definição ao longo de décadas. ..................... 4 2. Análise Tafonómica Paleofaunística em contexto Arqueológico – Conceitos, métodos e problemas associados a este tipo de registo. ................................................................................. 6 3.

Especificidade de cada espécie para compreender o contexto Paleoambiental................... 13

4. Contexto Português – Passado – Exemplo de Estácio Veiga e surgimento do estudo em Arqueozoologia e breve historiografia para Portugal.................................................................. 15 4.1. Contexto Português - Presente e Futuro. Desafios, problemas de conservação no caso português, sistemas de registo. Paradigmas atuais para a investigação em Arqueozoologia. ..... 19 V. Considerações Finais ............................................................................................................. 24 VI. Glossário ............................................................................................................................... 25 VII. Bibliografia .......................................................................................................................... 27 VIII. Webgrafia ........................................................................................................................... 28

Índice de Imagens Quadro 1 - Relação dos restos faunísticos recuperados por Estácio da Veiga nas suas intervenções no Algarve (Veiga, 1887). Man= mandíbula; Max= maxilar (Moreno Garcia e M. Pimenta 2004). É apenas um excerto do quadro original. ........................................................... 17 Figura 1 - Reprodução do quadro-resumo dos lugares e ocorrências de géneros realizada por Estácio da Veiga (Veiga, 1887, p.594) (Moreno Garcia e M. Pimenta 2004) Denota esta figura o trabalho e os sítios que percorreu Estácio Veiga para recolher e ter uma amostra considerável para os seus estudos da fauna do passado. .................................................................................. 18

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I.

Introdução

Como indica o título este trabalho refere-se ao papel que a Zooarqueologia deve ter à luz do que são hoje as investigações arqueológicas, da maneira como se fazem, como se processam, com que métodos se desenvolvem para descodificar o passado do Homem através das materialidades encontradas em escavações ou prospeções. Com efeito, tentarei com este trabalho, primeiro, traçar uma visão geral dos conceitos de Zooarqueologia e Arqueozoologia, qual o seu objeto de estudo no contexto arqueológico, porque se foi impondo como uma subdisciplina da Arqueologia e porque é tão importante esta subdisciplina para aumentar o conhecimento sobre um dado contexto arqueológico. De seguida, falarei dos métodos e princípios inicialmente utilizados e os que hoje em dia se usam para o estudo do material sobre a qual se debruça, tratarei de explicar alguns dos conceitos e terminologias relacionadas com a tafonomia e a quantificação dos dados como meios de processar e compreender melhor a informação contida no registo arqueológico. Em terceiro lugar, tentarei expor o que tem sido o estudo da Zooarqueologia em Portugal, retratando o percurso feito desde as primeiras coleções de Estácio Veiga até aos dias de hoje, mostrando como em Portugal se tem feito este tipo específico de estudos, problematizando os desafios e dificuldades que no nosso país se encontram para o estudo deste tipo de material que possui características muito próprias. A seguir, descreverei resumidamente a especificidade de cada espécie faunística estudada, e as diferentes respostas que cada uma traz sobre as sociedades do Homem do passado, e sobretudo sobre o clima existente num território onde está inserido uma dada sociedade. Ainda descreverei, sempre que achar pertinente o caso de estudo sobre Zooarqueologia, que tem por base a dissertação sobre Zooarqueologia e Tafonomia de Castanheiro do Vento, defendido pela Doutora Cláudia Costa, na Universidade de Faro, tratando especificamente dos métodos utilizados para a construção do conhecimento em Zooarqueologia. Na parte final deste trabalho estará um pequeno glossário onde constarão alguns dos conceitos que considero importantes para a melhor compreensão do tema abordado. Em consequência, com este trabalho espero descrever o papel que a Zooarqueologia tem hoje para a abertura de horizontes, na formulação de mais questões e de mais respostas a outras tantas perguntas para a solução de problemas que o registo arqueológico põe e que muitas vezes passa despercebido porque não se efetua um estudo atento, conhecedor e 3

capaz de uma matéria tão fundamental para uma melhor compreensão do registo arqueológico, para perceber o contexto paleoclimático e paleozoológico que se encontrava nas sociedades do passado acrescentando assim mais informação que deve ser cruzada com todo o registo permitindo assim um maior conhecimento. Mostrando assim que a Zooarqueologia não é só uma ciência auxiliar da Arqueologia mas sim uma disciplina essencial para o estudo das vivências com os animais e o ambiente em que o Homem viveu desde da Pré-História até quase aos dias de hoje. Em relação às imagens da capa, da esquerda para a direita e de cima para baixo: a primeira imagem é um exemplo de arte rupestre como motivos pictóricos de insetos (Bicho 2006), a segunda imagem é retirada de Reitz & Wing, 1999:111, e mostra o caminho possível desde dos animais inseridos do meio ambiente, depois são usados de alguma forma pelo Homem até chegarem ao contexto arqueológico (Costa. Cláudia 2008), a terceira imagem é uma fotografia de parte Osteoteca do laboratório do LARQUE (laboratório de arqueociências) e a quarta imagem refere-se a resto de Ovis/Capra mordido por carnívoro não determinado é uma foto de M. Costa (Costa 2007).

1.1. Arqueozoologia ou Zooarqueologia? – A sua definição ao longo de décadas. Gostava de começar por demonstrar o que penso sobre o registo arqueológico comparando esse registo a uma peça de teatro. Arqueólogos e investigadores interpretam sempre os vestígios materiais e físicos deixados pelo Homem, que sendo o ator na História do mundo deixa a sua marca, os materiais que produz, os muros e os vasos cerâmicos e outros artefactos, que vão sendo “enterrados” ao longo dos séculos por processos deposicionais e pós-deposicionais. Assim sendo, após estudar o Homem através dos seus objetos, edifícios, povoados ou cidades é necessário olhar para o cenário que contextualiza todo o registo arqueológico. Desse cenário, no seio do ambiente antigo ou paleoclimático e físico surge um tipo de registo que é de suma importância, os ecofactos. Ecofacto é tudo aquilo que se encontra no registo arqueológico e é de origem biológica mas não humana, ou seja, a macro e micro flora, as sementes, os carvões, os pólenes que podem revelar informações preciosas sobre as condições climáticas do passado, sobre a alimentação e economia de uma sociedade humana passada, num determinado contexto cronológico. Para o estudo de cada um destes ecofactos foram-se formando ao longo dos

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anos autênticas disciplinas cientificas associadas à Arqueologia. Assim, respetivamente surgiram: a arqueobotânica, a paleocarpologia, a antracologia e finalmente a palinologia. Neste trabalho abordarei a especificidade e complexidade sobre a qual versa o estudo da macro e micro fauna que também é ecofacto que se encontra no contexto arqueológico, que é estudado pela subdisciplina da Arqueologia a que se dá o nome de Arqueozoologia. Leroi-Gourhan, um dos nomes maiores do estudo da Pré-História, refere em 1989 que a Arqueozoologia respeita ao conjunto de estudos de restos de animais encontrados em estações arqueológicas. Aqui apercebemo-nos de que este olhar valoriza sobretudo a informação contida em cada osso de um dado animal do que as razões que levaram ao aparecimento de determinado animal num dado contexto, escapando assim o seu significado económico ou mesmo social. Ficando assim muito reduzida a informação retirada dos ossos encontrados numa escavação porque apenas se identificaria qual é o osso e a que espécie de animal pertence. Isto levou a que outros autores, nomeadamente germânicos olhassem para este registo e apenas o identificassem, e assim surge uma outra disciplina que é a Osteoarqueologia, que se dedica a identificar que ossos são e a que espécie pertence, o que para o estudo de um dado sítio pouco acrescentaria de importante. Sendo que para Uerpmann, em 1973, definiu osteoarqueologia como o estudo dos ossos de animais provenientes de contextos arqueológicos analisados numa perspetiva económica, mas também cultural (Costa 2007). Ou seja, queria um olhar mais humano, não tanto fixado em números e em dados científicos puros, é necessário perceber o que aconteceu aos restos e perceber se o Homem foi parte integrante na produção do que nós chamamos hoje de restos osteológicos. Já nos países anglo-saxónicos o termo Arqueozoologia foi sendo substituído pelo termo Zooarqueologia, uma vez que, preferem que a Arqueologia seja mais um meio que contribua para o conhecimento zoológico das espécies, ou seja, valoriza a informação reunida em sentido contrário (Cardoso, "Objetivos e princípios metodológicos da Arqueozoologia. Estado da questão em Portugal" 1996). Segundo Valente (2000:6), no Manual de Arqueologia Pré-História do arqueólogo Nuno Bicho, refere-se à Zooarqueologia e Osteoarqueologia com uma e a mesma coisa, apenas prefere o termo Zooarqueologia pondo a tónica na zoologia, e assim deixa de parte o termo arqueozoologia para o estudo apenas das espécies animais do passado e o termo Zooarqueologia é utilizado para o estudo das faunas numa perspetiva paleoecológica e perfeitamente integrada na interpretação arqueológica, com métodos e corpo teóricos próprios. (Bicho 2011) 5

A doutora Cláudia Costa, na sua tese de mestrado, separa os conceitos Arqueozoologia e Zooarqueologia. Para a arqueóloga, Arqueozoologia enfatiza a componente biológica da abordagem na ótica do estudo da evolução da própria espécie encontrada, já a Zooarqueologia, estuda os restos animais com procedência dos contextos arqueológicos na perspetiva antropológica (Costa 2007) com informação que diz respeito e que descodifica parte do comportamento humano relativamente aos animais e a sua função numa sociedade do passado.

2. Análise Tafonómica Paleofaunística em contexto Arqueológico – Conceitos, métodos e problemas associados a este tipo de registo. Após ter definido o percurso do conceito de Zooarqueologia ao longo do tempo, interpretado por vários arqueólogos, vou agora descrever com algum pormenor os processos por que passam os restos faunísticos desde da morte de um animal até ao momento em que é recuperado numa escavação (tafonomia). Tratarei dos métodos usados para estudar este tipo de registo, que informações nos podem oferecer os restos da fauna do passado e os problemas envoltos na conservação de restos ósseos no contexto arqueológico e fora dele. Ora, tafonomia é um conceito importado de duas ciências naturais a Paleontologia e a Geologia mas que serve a zooarqueologia para estudar os fenómenos que contribuem para a afetação ou preservação de um determinado conjunto arqueofaunístico recuperado em contexto arqueológico, desde a morte do animal, quando o organismo ainda se encontra na biosfera, até à recuperação do elemento em processo de escavação, ou seja, depois de incorporado na litosfera (Valente 2000). Parece-me a melhor definição daquilo a que a disciplina se dedica. Mesmo assim, penso ser pertinente a diferenciação que Lyman faz entre os conceitos de processo de tafonómico e efeito tafonómico. Para este autor o primeiro conceito diz respeito à ação dinâmica de uma força ou evento físico que vai alterar os restos ósseos de um animal, já o efeito tafonómico é o resultado da ação do processo tafonómico sobre esse animal. Para a Arqueologia, de modo geral, tafonomia é o estudo dos fenómenos pós-deposicionais dos restos animais.

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O processo tafonómico pode ocorrer de três formas diferentes: podem ser adicionados, mantidos ou removidos do lugar desde da sua deposição num determinado contexto, uma segunda forma quando restos faunísticos podem ou não ser movidos dentro de um certo contexto, por exemplo, uma deposição aquando de um enterramento humano e, finalmente, um outro fator prende-se com a modificação que o osso possa sofrer por processos externos, pode ser partido, queimado ou dar-se a mineralização. Falando agora dos efeitos tafonómicos, estes podem ser de vária ordem: por desarticulação, dispersão, fossilização e modificação mecânica. Quanto ao primeiro tem a ver com a desassociação dos ossos do animal diretamente relacionados com o efeito Schlepp, e ainda com os processos de decomposição que contribui para o desaparecimento dos tecidos moles, seja por ação física ou química através de bactérias na desarticulação dos ligamentos e tecidos moles que unem os ossos. Quanto à dispersão dos ossos começa quando na sua origem os ossos já se encontram desarticulados e que por um conjunto de fatores naturais que inclui o movimento de ossos devido à ação de animais carnívoros, ou por ação geomorfológica como por exemplo no caso do transporte fluvial. Pode também dar-se por ação antrópica quando se dá o transporte pelo Homem. Todos estes fatores possuem variáveis que dependem de região para região, como o substrato geológico, a topografia, a densidade, tamanho e morfologia do osso que afetam de forma diferente os restos ósseos. Falta agora falar do processo de fossilização que se traduz em todas as ações de alteração química que se dão nos ossos após a sua deposição. Ainda relacionado com o estudo da tafonomia há um conceito importante que é o da equifinalidade. A equifinalidade relaciona-se com as alterações ou modificações presentes nos restos faunísticos que podem ser resultado de um ou mais processos tafonómicos diferentes. Chamo agora a atenção de um pormenor, os mesmos processos tafonómicos podem resultar em diferentes efeitos dependendo dos fatores que enunciei em cima e que irei desenvolver mais à frente, mas como se nota é necessário uma investigação de todas as causas possíveis na alteração dos restos ósseos num contexto arqueológico. Tenho descrito um pouco do que são os processos e os efeitos tafonómicos nos restos ósseos, mas ainda falta tratar dos principais agentes tafonómicos que atuam na formação do registo arqueológico e são eles: o animal, o Homem e os fatores naturais do terreno que possuem características físicas, químicas e biológicas que deterioram ou conservam melhor os restos ósseos. A ação do homem neste registo pode ser de dois tipos: ação intencional ou não intencional apesar de serem difíceis de detetar no registo arqueológico 7

e só com cuidado e com uma metodologia muito precisa e cuidada se poderá superar essas complicações levando assim a novas interpretações. Por aqui se denota o quanto o Homem é o acumulador ou colecionador de restos ósseos (Costa. Cláudia 2008), por excelência, devido ao seu comportamento. Mas também fatores como o terreno em que se encontram os restos ósseos, o vento, a água, ou mesmo os agentes biológicos como pequenos roedores que alteram o estratos onde se encontram estes restos até a própria ação de raízes das árvores provocam alterações nos ossos antigos. Com efeito, quanto aos processos de origem antrópica que alteram o estado dos ossos ainda antes de se tornarem “lixo” são agrupados por diferentes tipos: desde logo, a marcas de corte e precursão, revelando padrões nas fraturas indicando o tipo de utensílio usado e até as técnicas para o desmanche das carcaças. Contudo, fratura é diferente de fragmentação, a primeira é consequência de uma ação biológica ou antrópica intencional, já a segunda é uma característica devida a fenómenos naturais do tipo geológicos, hidrotérmicos e climáticos. A ação de fracturação revela a intenção de segmentar os ossos, para aceder ao conteúdo medular do osso, por exemplo. (Costa. Cláudia 2008) Quanto à manipulação que se pode ser feita por animais pode resultar vários tipos de padrões e alterações nos ossos feitas por animais carnívoros e necrófagos (casos raros) ocultando por vezes a ação do Homem naqueles ossos. Esta manipulação que pode ser dividida e partilhada pelo Homem e pelos animais carnívoros torna-se difícil de observar e assim saber dizer, claramente, quem foi o agente que acumulou os restos ósseos tornase muito complicado de se saber. Mesmo assim, sabemos que o maior acumulador de restos ósseos é o Homem devido à sua própria alimentação, e que uma análise atenta a marcas de manipulação dos animais, e dos perfis de representação taxonómica e de representação anatómica consegue-se distinguir as diferentes acumulações. Nos últimos anos têm conhecido grande desenvolvimento os processos relacionados com os processos naturais que alteram os restos ósseos, como o pisoteio (trampling), a meteorização que é provocado aos agentes do ar, os processos hidráulicos devido à circulação da água, os eólicos devido às partículas pequenas que viajam pelo ar e vão erodindo os ossos provocando abrasão muito especifica, a ação de gelo também altera os ossos, e até alterações físico-químicas que nos ossos pode significar a alteração da cor e mesmo com a formação sedimentar do solo, defendido por Lyman em 2001. (Costa. Cláudia 2008) De facto, a formação sedimentar dos solos e seguindo uma investigação zooarqueológica mais tradicional e funcionalista, defende que ossos oriundos de 8

sedimentos mais ácidos e ritmos sedimentares lentos tornam os ossos com superfícies muito erodidas e meteorizadas fazendo com as coleções sejam muito fragmentadas, danificadas, e de pequena dimensão. Existem 5 estádios de meteorização segundo Beherensmeyer 1978, classificados de 0 a 5: 0, Elemento sem alteração contendo às vezes restos de tecidos moles; 1, Fissuras longitudinais e superfícies articulares estaladas; 2, Esfoliação e estalamento com forma angular; 3, Osso compacto alterado de forma uniforme resultando numa estrutura fibrosa, meteorização penetra até 1-1.5 m; 4, superfícies fibrosas, fissuras abertas, meteorização penetra nas cavidades; 5, Osso desintegrado in situ, fissuras largas e material muito frágil. (Costa. Cláudia 2007) Este método ajuda em muito para saber quanto tempo de exposição os restos ósseos tiveram e a sua integridade da acumulação o que permite saber algo muito importante para os zooarqueólogos e arqueólogos, que é saber se determinado conjunto osteológico é fruto de uma deposição primária, como uma “lixeira”, ou se estava junto a uma fogueira, se era um concheiro, ou mesmo se estava enterrado numa sepultura ou se era antes uma deposição secundária. Em ambientes calcários e de sedimentação rápida acontece o contrário, ou seja, os restos ósseos conservam-se de melhor forma, e os índices de fracturação são muito mais baixos, e assiste-se a uma representação anatómica mais equilibrada e uma maior percentagem de elementos que se podem identificar. Falta ainda falar dos restos que provêm de meios de deposição aluvial, portanto de sedimentação rápida, o que apresenta alguns problemas. Com efeito, o transporte e deslocação de ossos da sua deposição primeira por fenómenos de arrastamento e a presença periódica ou mesmo constante de água provoca grandes alterações químicas nos ossos através da catalisação de água. (Costa. Cláudia 2008) Mesmo assim como já fui referindo neste capítulo, houve nos últimos anos grandes desenvolvimentos no estudo tafonómico para haver uma investigação zooarqueológica mais de índole interpretativa, assim hoje existem outros fatores que levam à destruição deste tipo de restos para além da acidez ou não dos solos. Existem fatores culturais ou de manipulação do Homem que pode afetar a preservação dos ossos na perspetiva de que o Homem pode mesmo incorporar nos restos faunísticos características que à partida poderão levar a dissolução/destruição dos restos, alguns já falei, como a manipulação térmica, mas também preferência por determinadas partes anatómicas, ou a deposição de partes articuladas por oposição aos fragmentos. O desafio, principalmente para sítios da Pré-História recente é tentar perceber se estes restos arqueológicos são fruto de uma 9

cadeia operatória de manipulação intensa e propositada dos restos faunísticos ou se é fruto dos processos tafonómicos não antrópicos, tais como a erosão, a meteorização, entre outros que já referi. Interessa, para além de saber a quantidade dos restos que se recuperam e quais os animais a que corresponde, hoje a perspetiva é tentar compreender que gestos, que significado tinha para Homem determinada espécie animal, ou que parte de determinada espécie parece importante. Um exemplo ilustrativo disto que acabei de referir é o caso de que no período da Idade do Bronze e para Portugal, tal como foi dito na aula de Seminário III, há dois animais associados aos enterramentos de humanos, é o caso das vacas e das ovelhas, mas não se enterra com o defunto todo o corpo mas sim a pata dianteira, o rádio e a ulma. Estes ossos têm que ser desarticulados para serem depositados, e hoje cabe ao arqueológo e zooarqueólogo perceber o porquê desta manipulação, que importância tinha para estas populações esta manipulação dos restos ósseos. Um outro exemplo são as escápulas de vacas que é preciso tempo e paciência e saber fazer para desarticular os ossos. Assim surge a Zooarqueologia Funerária reconstituindo gestos e atitudes do Homem do passado relativamente ao comportamento em relação à morte dos seus entes queridos e do simbolismo que determinadas partes de animais possuíam no passado. A fauna funerária pode ser por vezes acidental, uma vez que as fossas de enterramento podiam ficar abertas e o que acontecia era que os animais mais pequenos caiam dentro da fosse e depois não conseguiam sair e morriam, ficando assim depositados juntos ao morto. Contudo existem exemplos de fossas hipogeus onde são depositados animais completos ou apenas partes desarticuladas. Pode também ocorrer num sítio arqueológico que se encontre restos desarticulados, sejam eles agrupados ou isolados, pode-se encontrar também conjuntos fragmentados e desarticulados. Quando se nota a segmentação intencional e escolha de determinadas partes do animal estamos já perante práticas humanas que muito tem a ver com práticas sociais e até simbólicas (ritos de comensalidade) já estruturadas. Podem ainda acontecer as chamadas acumulações de origem antrópica que mais não é do que as famosas lixeiras que são acumulações primárias que se distinguem das acumulações secundárias por serem outros agentes como aves de rapina ou animais carnívoros que se aproveitam do resto dos ossos e os desarticulam e mudam de lugar. Assim depreende-se algo simples, o Homem é um colecionador de ossos, ou de lixo devido a tudo isto que acabei de expor. Apesar de que nos últimos anos tem havido uma maior insistência no estudo dos fatores naturais que alteram ou danificam os restos paleofaunísticos ao mesmo tempo tem-se 10

dado aos fatores antrópicos um papel determinante na preservação ou dissolução dos restos ósseos nos sítios arqueológicos. Tratando agora da representação anatómica de um animal, de todos aqueles que possuem endosqueleto ou esqueleto interno que é caso de todos os vertebrados são compostos pelo esqueleto do crânio, o esqueleto axial que é representado pela coluna e as costelas, o esqueleto apendicular proximal, que são os membros superiores (torácicos) e os membros inferiores (pélvicos) e finalmente foi-nos também ensinado na aula de Seminário que o esqueleto apendicular distal que é presentado pelas patas dos animais. É com base nesta classificação anatómica que se deve fazer a classificação dos restos ósseos, para se saber a que parte do esqueleto um determinado resto pertence. Para além disto, num contexto arqueológico é necessário que estes restos ósseos façam sentido, é necessário compreender e fazer associações aos locais precisos no qual se encontraram ossos e essa associação é fundamental para indicar, por exemplo, as zonas funcionais num sítio arqueológico. Agora vou ocupar-me um pouco da questão da quantificação em Zooarqueologia. Esta quantificação depende de vários fatores e procura responder a questões relacionadas com possíveis perturbações dos restos osteológicos aplicando para isso métodos quantitativos aos elementos ósseos encontrados para assim se traduzir em números a realidade observada em contexto arqueológico, para assim haver uma maior objetividade sobre o estudo de um dado sítio. Assim, e como defendeu a Doutora Cláudia Costa na sua tese, os métodos quantitativos mais utilizados em Zooarqueologia e que ajudam a responder a problemas desta natureza são por exemplo, o Número Mínimo de Indivíduos, o Número Mínimo de Unidade Animal (introduzida por Binford em 1984), o Número mínimo de Elementos, mas estes métodos são apenas alguns que têm vindo a ser discutidos por muitos autores tendo sempre em vista melhorar a qualidade da informação sobre a importância efetiva de cada espécie em cada contexto arqueológico, em cada comunidade do passado. Contudo, dependendo da qualidade e quantidade das amostras deve-se escolher o método que melhor poderá responder às questões que se colcocam. Ou seja, não existe um método perfeito mas sim vários que auxiliam o arqueólogo consoante a sua necessidade. No caso da coleção estudada pelo Doutora na tese sobre a Tafonomia de Castanheiro de Vento foi utilizado o método do Número de Restos Determinados taxonomicamente. A doutora utilizou este método para responder a uma questão específica que era perceber a dispersão por todo o sítio arqueológico dos restos exumados 11

e fazer a comparação entre os diferentes contextos no interior do sítio. Interessa também como método quantitativo fazer medições do comprimento máximo de toda a coleção que se encontrar, o que poderá permitir o cálculo dos índices de fragmentação e saber que diferentes classes e espécies de animais surgem no contexto arqueológico. Também para determinar a idade de abate de um animal pode ser utilizado dois métodos. Um deles serve para analisar o estado de fusão das epífises e o desenvolvimento dos ossos longos que termina na fusão da epífise com a diáfise. Assim, existem 5 fases para a ocorrência deste fenómeno: elemento fundido, ou parcialmente fundido onde se poderá observar a linha de fusão, a fusão completa, já em estado jovem, chegando-se a ela a partir da análise da porosidade e densidade do osso, e por último o estado adulto em que este elemento já está totalmente formado. Já o segundo método concentra-se na análise dos dentes para determinação da idade do animal, a partir de duas premissas: a primeira tem a ver com o desenvolvimento dentário, e a segunda com o desgaste dos dentes. Como no ser Humano, nos animais acontece também a substituição dos dentes de leite por dentes permanentes em idades muito específicas e assim torna-se mais acessível perceber que idade tinha um animal partindo do estado de substituição dos dentes. Quanto ao desgaste dos dentes observa-se a mártir do desaparecimento do esmalte do dente. Uma outra análise que se pode fazer aos ossos é a avaliação das marcas de manipulação pelo Homem depois do animal estar morto, de que são exemplo das marcas de corte por instrumento para a produção de artefactos em osso. Existe três tipos de fratura: a de osso fresco, a de osso seco e fratura recente esta que resulta das escavações e transporte deste material para o laboratório. Finalmente, quanto às marcas de fogo que evidenciam o ação antrópica a Doutora Cláudia Costa na sua tese classificou com base na coloração que possuem e assim temos 4 termos segundo a coloração: temos o não queimado, o ligeiramente queimado com uma coloração acastanhada mas que possui ainda coloração original, carbonizado quando o fragmento apresenta cor negra e já não existe cor original no osso e finalmente calcinado quando o fragmento exibe uma outra coloração: cinzenta, azulada e branca. Finalmente quanto às fontes históricas e literárias servem, por vezes, de base para o conhecimento das bases de subsistência das populações pretéritas, mesmo que seja para tempos mais próximos de nós como na Idade Média ou Época Moderna. Destaco, neste caso, o códice quinhentista sobre receitas culinárias da Infanta D. Maria de Portugal, onde é descrito como e o que era cozinhado na corte portuguesa. Um outro caso interessante de fontes históricas é o foral de Almodôvar em que a região do Castelo muçulmano 12

Castelo muçulmano das Mesas do Castelinho, que hoje possui na sua envolvente escassa vegetação, o surgimento de veado nas escavações que se realizaram vieram confirmar o que já no foral da mesma região indica, a existência de um coberto vegetal muito maior o que permitia a existência de veados para serem criados, e caçados para se praticarem exercícios para a guerra. Há claro outras fontes para o estudo dos animais no passado Humano: temos as manifestações artísticas como em cerâmica, em mosaicos, miniaturas em cerâmica e em osso, a arte rupestre, na escultura tumular e na arquitectura, em iluminuras e fontes escritas, mesmo em livros de receitas como já referi.

3. Especificidade de cada espécie para compreender o contexto Paleoambiental Neste capítulo tratarei de expor as características particulares que cada espécie e o quanto isso pode tornar difícil não só a sua conservação num contexto arqueológico como a dificuldade em retirar esses restos ósseos de uma escavação. Em relação aos mamíferos encontram-se presentes em muitos sítios arqueológicos e quase sempre em grande número. Podemos encontrar, a chamada macro fauna como por exemplo, gado bovino, caprino, coelhos, lebres, animais herbívoros, primatas, e encontrase, por vezes, microfauna que inclui roedores, insectívoros. Aliás, para Rapp e Hill (1998:100) algumas destas espécies são bons indicadores climáticos, tanto as mais pequenas, como espécies consideradas extintas ou que se encontram em regiões muito restritas, como o caso das renas, ou hipopótamos permitindo dar uma preciosa ajuda na reconstituição da fauna no passado do Homem. De facto, e graças à temperatura interna dos mamíferos, assim: “Quanto maior for o animal, menor será a probabilidade de a sua distribuição geográfica ser determinada pela temperatura média, quanto mais não seja devido à relação entre uma maior massa corporal (cuja função de aumento é ao quadrado), e que lhes permite conservar o calor”. (Bicho 2006) Assim, parece simples concluir que os mamíferos podem indicar se num dado local existiam grandes variações climáticas através de gradientes entre regiões costeiras e do interior. Em regiões do interior e a maior latitude as variações climáticas são menores, e as espécies de mamíferos aí existentes adotam certas características que são a chave para compreender o clima passado. Com efeito, os mamíferos de médias e grandes dimensões dão-nos um conjunto de informações não só do ambiente que habitavam como florestas 13

de tipo mediterrâneo ou atlântico, zonas de vegetação aberta e rasteira, ou mesmo a espessura da cobertura de neve no solo, mas também do regime alimentar das comunidades. Contudo, dando o exemplo do javali, apesar de ser uma espécie que se adapta muito bem a alterações climáticas prefere habitar áreas de floresta de carvalhos devido à preferência alimentar, por outro lado o veado europeu que aguenta temperaturas próximas dos -20ºC prefere habitar zonas onde a espessura de neve seja reduzida para assim não ficar tão vulnerável ao seu primeiro predador, o lobo. Um outro exemplo particular é o da cabra-montês que habita zonas de topografia irregular apesar de poder perfeitamente habitar zonas abertas, mas o facto de existirem predadores tentam “defender-se” deslocando-se de forma quase impossível por encostas escarpadas e de alto declive. Em consequência, encontrando restos deste tipo de mamíferos podemos compreender como caçavam estas espécies, e qual a parte dos animais era mais consumida em detrimento de outras, percebendo assim como era o clima determinada região há milhares de anos atrás. Finalmente, em relação aos lagomorfos (coelhos e lebres), já são um caso diferente uma vez que são muito mais sensíveis às diferenças de temperatura, sendo que é em zonas quentes que se reproduzem mais facilmente, por altura da Primavera e o Outono. Assim, para além de ajudar a fornecer dados sobre a evolução paleoecológica de um dado sítio dá-nos também a curva etária da população presente no sítio arqueológico, estudando assim a sazonalidade dessa ocupação e ainda pode indiciar nos restos ósseos dependendo como eles se encontram num arqueossítio as técnicas de caça como a utilização de armadilhas individuais ou coletivas, nas quais a rede pode ter sido um instrumento fundamental. Finalmente, quanto às microfaunas que são representadas pelos pequenos roedores, insectívoros e quirópteros são os que mais importância possuem para a reconstrução paleoecológica porque se adaptam e possuem uma sensibilidade extrema a um determinado conjunto de fatores geográficos e climáticos. Destes destaco, o tipo de cobertura vegetal, a humidade e ainda a temperatura. A microfauna desloca-se com grande facilidade quer escolhendo uma topografia diferente quer uma área geográfica a latitudes maiores ou menores. Existe, pois, uma grande diferença entre a microfauna e a macrofauna e é na resposta a alterações climáticas e paisagísticas repentinas cuja resposta destes animais são rápidas, e isso fica marcado no registo arqueológico mostrando a frequência de aparecimento deste tipo de espécies, ou ausência destas ou o aparecimento. 14

Se a macrofauna está normalmente associado a atividades do Homem, a presença numa escavação de restos de microfauna é muito revelador do ambiente e paisagem existente nesse local. O mais complexo é compreender que fenómenos ocorreram a este tipo de fauna desde do momento da sua morte até ao momento em que os seus ossos são estudados pelo zooarqueólogo.

4. Contexto Português – Passado – Exemplo de Estácio Veiga e surgimento do estudo em Arqueozoologia e breve historiografia para Portugal. Neste capítulo tentarei abordar um pouco do que foi o estudo pioneiro de Estácio Veiga e o seu contributo imprescindível para o surgimento da Arqueozoologia em Portugal. Estácio Veiga foi realmente um visionário português que notou e percebeu o que é a Arqueologia e como se devem estudar os restos ósseos faunísticos do passado começando assim, em Portugal, os primeiros estudos de Arqueozoologia ainda no final do século XIX. Estácio da Veiga começa por expor, no primeiro volume da sua obra “Antiguidades Monumentaes do Algarve” em 1886, um conjunto de ideias e pensamentos sobre como se fazia arqueologia por toda a Europa. Ou seja, em terras portuguesas desde dos finais do século XIX que surge o interesse cientifico pela Arqueologia, sendo que se queria romper com o paradigma de colecionismo de objetos de valor arqueológico. Defendia também que a Arqueologia devia por um lado tornar-se uma ciência social tal como a Antropologia mas por outro devia associar-se às ciências ditas Naturais (Biologia e Geologia) principalmente para períodos anteriores à escrita para assim auxiliar a Arqueologia para possuir um corpo cientifico e teórico para assim despertar ainda mais interesse por todos aqueles que queriam e querem descobrir e compreender o passado do Homem. Como se nota, é um homem das ciências, não esquecer que teve a sua formação de base em geologia e portanto o interesse pela Arqueologia era próximo. Assim, durante a produção da sua obra que já falei, desenvolve um profundo interesse pelos restos faunísticos, manifestando mais tarde ser um dos maiores conhecedores e estudiosos de fósseis e de animais antigos existente em Portugal nos inícios do século XX. Sendo um geólogo de formação começava também a estudar, a ler e compreender o que já se escrevia por toda a Europa sobre as grandes alterações climáticas operadas durante o Quaternário e começou a refletir sobre elas, e como estas podiam ter levado as extinções 15

e migrações de algumas espécies de mamíferos e o papel que a fauna desempenhava como bio-indicador de mudanças climáticas e ambientais do passado. Algo inovador para a época. (Moreno Garcia e M. Pimenta 2004) A sua obra revela, à distância de mais de um século que, para além da sua preocupação na recolha, registo e descrição dos restos animais, perspetivava já um conjunto de problemáticas relativas à relação do Homem com a fauna que com ele partilhara os ambientes do passado. Com efeito, Estácio Veiga enumera três pontos essenciais para se estudar Arqueozoologia, que permanecem e são a base de estudo até aos dias de hoje: equacionar as condições paleoecológicas do território envolvente; abordar a caracterização das estratégias de exploração dos animais e por último reconhecer os fatores que afetaram os restos faunísticos uma vez incorporados no registo sedimentar. (Moreno Garcia e M. Pimenta 2004) Como é de notar, hoje a investigação em Arqueozoologia não está assim tão longe destas premissas, apenas o método e alguns paradigmas mudaram e apenas se acrescentou mais premissas, mais complexas mas na essência é isto que se pretende da Arqueozoologia. Estágio Veiga estudou principalmente o território do Algarve e do Alentejo e apesar de não ter autorização para proceder a pesquisas nas grutas e cavernas do Algarve seguiu uma abordagem cronológica e conseguiu registar e recolher restos ósseos de animais da superfície das cavernas e grutas que pode visitar produzindo assim a Carta Arqueológica do Algarve. (Figura 1.) De forma sistemática e afeiçoada produziu comentários e descrições sobre a fauna que encontrou nas suas prospeções que hoje se revelam importantes por exemplo para perceber a distribuição geográfica da fauna deste território e até de espécies que se tornaram extintas no nosso país. Destas descrições, que se encontram no volume II da sua obra que apresentam detalhadamente o que ia encontrando nas suas pesquisas, revela também que os traços tafonómicos e alterações dos ossos não passavam incólumes aos olhos e saber de Estácio Veiga, as chamadas evidências antrópicas que eram descritas detalhadamente, como marcas de corte, fraturas intencionais, e as alterações químicas dos ossos devido aos solos e ao contacto com agentes erosivos da Terra. Deixo aqui uma pequena descrição: “Fragmento de esgalho queimado e cortado a golpes” (sítio do Amendoal, Veiga, 1887: 576) e “O ilhéu do Rosário, …, também contribuiu com os seus vestígios osteológicos, manifestando algumas pontas de veado parcialmente tostadas pela ação do fogo…” (op. cit., p. 571), (Moreno Garcia e M. Pimenta 2004)

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Apesar do seu profundo estudo, análise e recolha de dados, este geólogo no volume II da sua obra Antiguidades, tece uma crítica ao seu próprio trabalho fazendo alusão ao que conseguiu explorar e identificar dizendo que foi um trabalho “muito muito incompleto, porque apenas denuncia o produto de explorações, que não poderam ser extensivas ás cavernas e ás formações geológicas d’aquella região, …” (Veiga, 1887: 593). (Quadro 1.) Para além da preocupação de estudar e identificar as espécies recolhidas e perceber que fenómenos estiveram na origem da destruição ou conservação dos restos ósseos Estácio Veiga foi mais longe tentando compreender que uso teriam os animais para as sociedades do homem do passado. Por consequência, chega a colocar a possibilidade de que as peles dos animais eram utilizadas como fonte para produzir vestuário e o aproveitamento da medula dos ossos para fazer tintas. E revelou que alguns restos ósseos serviam para fabricar objetos para o quotidiano das sociedades do passado, como agulhas e alfinetes dos quais faz descrições notáveis de gravuras destes objetos na sua obra “Antiguidades”. Hoje, esta pequena amostra do profundo estudo que Veiga fez das paleofaunas do Sul de Portugal mostra que aquilo que fez foi um passo de gigante para a investigação e afirmação da Arqueozoologia em Portugal, que apesar de ter-se “limitado” a descrever extensivamente, e a fazer contagens estatísticas dos dados recolhidos revelou pelo menos uma preocupação que até então não se tinha observado em Portugal e era dos poucos casos pelo mundo inteiro, tornando-se assim numa referência para todos aqueles que queriam iniciar o estudo da Arqueozoologia, deste que na minha opinião é um dos pais da disciplina em terras portuguesas. Estácio da Veiga revelou assim um domínio de investigação nesta disciplina auxiliar da Arqueologia que só nas últimas décadas do século XX voltaria a ganhar forma e expressão nos trabalhos arqueológicos realizados no nosso país.

Quadro 1 - Relação dos restos faunísticos recuperados por Estácio da Veiga nas suas intervenções no Algarve (Veiga, 1887). Man= mandíbula; Max= maxilar (Moreno Garcia e M. Pimenta 2004). É apenas um excerto do quadro original. 17

Figura 1 - Reprodução do quadro-resumo dos lugares e ocorrências de géneros realizada por Estácio da Veiga (Veiga, 1887, p.594) (Moreno Garcia e M. Pimenta 2004) Denota esta figura o trabalho e os sítios que percorreu Estácio Veiga para recolher e ter uma amostra considerável para os seus estudos da fauna do passado.

Em relação ainda ao passado do estudo da Arqueozoologia em Portugal, os primeiros estudos feitos nesta área foram realizados pela Comissão Geológica nos finais do século XIX, feitas em estações pré-históricas, sob orientação de Carlos Ribeiro e Nery Delgado e ainda por Pereira da Costa, que com extremo cuidado exumaram os materiais osteológicos, descrevendo-os e valorizando-os, constituindo assim trabalhos ao mesmo nível ou até de superior qualidade com que o já se fazia fora de Portugal. Estes estudos representam uma época áurea na investigação científica e arqueológica em Portugal. Posto esta primeira fase, veio uma segunda que se mostrou decadente durante as décadas seguintes, na primeira metade do século XX onde a informação sobre restos faunísticos se resume a listas de espécies cujas características foram feitas sem grande cuidado. Mas tudo mudou a partir da década de 50, e novamente pelos Serviços Geológicos de Portugal iniciou-se uma nova investigação e um renovado olhar sobre os restos da fauna passada encontrada em escavações arqueológicas, e surgem os estudos sobre mamíferos encontrados no concheiro de Moita do Sebastião, 1956, e a fauna do mesmo concheiro mas agora sobre restos de peixes. Mesmo assim nas duas décadas seguintes houve ainda uma extraordinária publicação de uma estação paleolítica, a gruta Nova da Columbeira no Bombarral que foca os restos paleofaunísticos encontrados. Apesar disto, estes estudos

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ainda são algo incipientes uma vez que continuam a ser listagens das espécies faunísticas e pouco mais. Só a partir de 1980 os trabalhos produzidos sobre a fauna encontrada em sítios arqueológicos começou a partir da quantificação das diversas espécies encontradas, para obter respostas sobre o paleoambiente de um contexto arqueológico com objetivos mais precisos para saber que economia tinha dada comunidade. Assim, passo já de seguida para o capítulo onde tratarei de expor que pressupostos, métodos e paradigmas regem hoje a Arqueozoologia em Portugal, que dificuldades surgem nos contextos arqueológicos quando se exumam restos ósseos de animais, como fazer essa exumação e que desafio possui hoje a Arqueozoologia para os Arqueólogos e que objetivos de estudo e respostas deve a Arqueozoologia oferecer e complementar aos contextos arqueológicos.

4.1. Contexto Português - Presente e Futuro. Desafios, problemas de conservação no caso português, sistemas de registo. Paradigmas atuais para a investigação em Arqueozoologia. Apesar do território português ser relativamente pequeno, comparando com o país vizinho, os tipos de solos e o seu nível de acidez em Portugal diferem muito de região para região. Destaco a região da Estremadura onde estão concentrados os sítios arqueológicos onde restos de ossos de animais foram encontrados em bom estado de conservação, e que em consequência das vastas coleções encontradas possibilitou o desenvolvimento de projetos de investigação mais aprofundados nesta região do que noutras em Portugal. Por outro lado, a região Norte é onde os estudos são muito reduzidos e as coleções de paleofaunísticas muito limitadas, uma vez que o nível de ph dos solos é muito elevado levando a uma maior deterioração dos ossos, mas existem algumas exceções como no Castelo Velho de Freixo de Numão e sobretudo a coleção encontrada até 2006 em Castanheiro do Vento, coleção que serviu de base para a tese da doutora Cláudia Costa em 2007 e de que falarei mais à frente neste trabalho. Em relação ao Alentejo os casos de estudo são em maior número, de referir: o Povoado de Perdigões, uma coleção de necrópole, na região de Évora existe uma coleção pequena do sítio do Neolítico Antigo da Valada do Mato, entre outros. Nesta caso, tal como ocorreu na Estremadura, a Universidade do Algarve formou uma equipa de investigadores que têm 19

publicado sucessivos dados sobre coleções arqueofaunísticas de sítio arqueológicos do paleolítico e do neolítico para as regiões do Alentejo e Algarve. Assim, esta diferença em termos de tradição na investigação das coleções da fauna do passado deve-se sobretudo às diferenças “geoquímicas oferecidas pelos terrenos” que fornecem níveis de preservação diferentes, atribuindo à acidez dos solos a razão dos níveis de conservação precários. (Costa. Cláudia 2008) Apesar disso, em áreas de solos calcários que são tradicionalmente solos em que melhor se preserva este tipo de restos paleofaunísticos por vezes esses restos revelam fracos níveis de conservação, provávelmente devido a outro tipo de fatores que deterioram os ossos e não porque a acidez do solo o tivesse provocado, como é o caso do Abrigo da Pena d’Águia no Maciço Calcário Estremenho, área geográfica da Serra de Aire e Candeeiros. Introduzo agora um pouco daquilo que foi tratado na aula de Seminário III, ministrado pela Doutora Cláudia Costa, principalmente o que respeita ao registo e recolha em contexto arqueológico, aquilo que se deve fazer caso nos deparemos com restos ósseos. Primeiramente deve-se alertar o responsável da escavação, depois proceder ao desenho e fotografia do achado, de seguida escavar os restos ósseos tal como se fossem restos de esqueleto humano, deve-se a seguir proceder à recolha integral do resto ósseos, quando não se conseguir retirar o resto inteiro o melhor é retirar parte dos sedimentos juntos ao osso para depois passar por um crivo de 1 ou 2 mm. Deve-se também fazer o controlo da proveniência espacial e estratigráfica dos elementos faunísticos para depois perceber em que contexto no sítio arqueológico apareceram os restos ósseos. Deve-se sempre recolher sedimentos desta área onde estavam os ossos para serem crivadas e até analisadas em laboratório. Esta recolha de sedimentos que há cerca de 20 anos passavam completamente ao lado na investigação arqueológica, valorizando-se muito pouco este tipo de ecofactos, hoje valoriza-se tudo desde das macrofaunas, até às microfaunas, o que se traduz numa colheita volumosa de sedimentos para depois serem analisados em laboratório. Esta recolha de sedimentos deve ser feita sobretudo em contexto de escavações de salvamento. Deve-se também recolher as articulações em conjunto e coloca-las no mesmo saco, evitando assim sacas e sacas de quilos de ossos e associado a tudo isto o bom senso, que deve sempre imperar sobre tudo o que se faz em Arqueologia, e no que respeita à recolha destes restos ósseos todo o cuidado é pouco. Para além de tudo isto, interessa salientar um aspeto que é transversal em Arqueologia que é o trabalho em equipa e a multidisciplinaridade.

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A Arqueologia é, por excelência, um conjunto de ciências, de vários ramos desde da biologia, zoologia, geologia, necessita por vezes de áreas da física e da química para assim construir o seu próprio discurso sobre o passado do Homem, dando assim a oportunidade a especialistas participarem neste meio da Arqueologia, mas esta participação tem de começar desde logo no campo, no sítio, na estação arqueológica sendo indispensável a sua participação para se saber o que se pode sobre as bases de subsistência de uma comunidade, as suas características económicas, sociais e culturais. Faço minhas as palavras pelo Doutor João Luís Cardoso, que escreveu em 1996, no artigo sobre os objetivos e princípios metodológicos da Arqueozoologia. Estado da questão em Portugal: “ É que um conjunto de ossos estratigrafados, por pouco estéticos que sejam, valem potencialmente mais, (…) que um punhado de pontas de setas, por mais belas que sejam…” E de facto, até certo ponto este arqueólogo tem razão porque num osso podem estar contidas as chaves para perguntas sobre uma sociedade, a sua alimentação, a sua forma de pensar e olhar o mundo, a forma de olhar o mundo animal e determinados animais em específico. As pontas de seta podem ser o mais belo trabalho produzido pelo Homem, no seu tempo, são com certeza a mais bela tecnologia da Pré-História mas encerram em si significados muito concretos e objetivos de uma sociedade. O que interessa hoje à Arqueozoologia é tentar reconhecer alguns sinais que lhe permitam interpretar as estratégias de exploração operadas por uma comunidade, bem como compreender o aproveitamento que aqueles animais teriam proporcionado. Variáveis atualmente contempladas pela Arqueozoologia, tais como perfis de idade de abate, proporções da presença de diferentes sexos (machos/ fêmeas/ castrados), variações osteométricas (seleção reprodutora e melhoramento das raças), condições patológica, questões que claramente Estácio Veiga, recuando um pouco, não sabia nem se esperava que conseguisse responder. Mesmo assim, ele tentou interpretar à sua maneira da forma mais rigorosa e científica possível e com intuição relacionar os ossos dos animais do passado com a exploração e uso que o Homem fazia desses animais! Hoje em dia, dado que a investigação arqueozoológica se baseia nos grupos de animais representados nas amostras e nas partes esqueléticas pelas quais são identificados, é necessário reunir conhecimentos de taxonomia e de osteologia e contar com coleções de referência, ferramenta imprescindível para uma correta identificação (Moreno-García et al., 2003b). Retornando a Estácio da Veiga, ele estava consciente destas premissas e era conhecedor das coleções à data existentes em Portugal que não eram tão vastas como são hoje. Nesse aspeto tem uma importância fundamental, o LARQUE (Laboratório de 21

Arqueociências), que possui nos dias de hoje uma coleção de referência (ou Osteoteca), concebida como a principal ferramenta de trabalho dos técnicos do laboratório do LARQUE, mas sobretudo para servir a comunidade científica em geral. Com efeito, esta Osteoteca possui nos dias de hoje 2572 esqueletos de animais de 459 espécies de aves e mamíferos, peixes, répteis e anfíbios. Ou seja, um excelente recurso para todos aqueles que queiram estudar a fauna do passado, fazendo análises comparativas aos ossos (paleontologia comparada). Tenho referido ao longo deste trabalho que o estudo da arqueofauna serve sobretudo para primeiro, saber como era o clima, e que espécies existiam no passado, onde se localizavam e sobretudo como certas espécies serviam de alimento, serviam para produzir, por vezes, objetos, as peles dos animais para construírem os habitats para as comunidades do homem do passado. Em Portugal, com frequência, as listagens de espécies não se fazem acompanhar por uma integração espacial e estratigráfica do sítio onde foram retirados estes ecofactos nem por explicações de ordem tafonómica tanto animal como antrópica e assim as conclusões que se tira deste registo por vezes podem ser erradas e precipitadas sobre o consumo de carne, em primeiro lugar e em segundo lugar das atividades económicas e artesanais relacionadas com os restos ósseos. Sabemos hoje que em alguns momentos da história do Homem o osso não foi apenas “lixo” mas sim um objeto com significado profundo que até era depositado em enterramentos humanos, ou era utilizado para o aproveitamento para fazer objetos de uso quotidiano, como pentes, como pesos de tear, até mesmo como objetos de uso que ofereciam um dado estatuto social numa comunidade (surge assim a Zooarqueologia social) chegando mesmo até ser necessário para produzir armas, como as nós de besta. Com efeito, hoje em dia, esta perspetiva economicista foi quase por completo abandonada, o que os arqueólogos querem compreender e interessam-se mais hoje em dia neste tipo de registo é saber se existiam redes de troca deste tipo de ossos, se estes ossos mais do que alimento, ou produto secundário representavam algo, se definiam identidades e estatuto social dentro e fora de uma comunidade, que tipo de sistema de crenças poderíamos assistir no passado, com crenças nos fenómenos da natureza e veneração de animais, ou de partes deles. Outras e novas perguntas se impõem ao registo para além da identificação da espécie e de que parte do animal estamos a estudar, mais que quantificação dos dados recolhidos, que são essenciais é necessário ir mais além. Numa perspetiva antropológica um zooarqueólogo tentará sempre procurar uma explicação para 22

o comportamento, mesmo relação entre o homem e o animal, tentando compreender se por exemplo já havia domesticação de determinada espécie num determinado tempo e contexto arqueológico, tentar perceber de que forma a relação com o mundo animal interfere e molda o comportamento humano, já que é esse no fundo o objetivo primeiro de qualquer arqueológo que é perceber de que forma os seres humanos pensavam e agiam sobre o meio que o rodeava há 2000 ou 5000 anos atrás. Interessa hoje, também saber os efeitos que o comportamento humano teve sobre a evolução de umas espécies em detrimento de outras, qual o papel do Homem na construção da paisagem física (construção de galerias para explorar os recursos minerais existentes em dado local, ou desmate de densas florestas para o aproveitamento de lenha) mas sobretudo na destruição ou modificação da paisagem viva, da flora e sobretudo a fauna existente num dado local. Isto seduz o arqueozoólogo para saber que problemas e patologias passaram a existir nos animais devido à ação do homem que usou de uma ou de outra forma determinada espécie levando a que esta tivesse a partir desse instante tomado uma evolução diferente, afetando assim a vida animal. Este registo faunístico torna possível a reconstituição da própria evolução Paleoambiental de um sítio e das suas populações para saber por exemplo, o grau de sedentarização (isto é expresso pela presença de animais domésticos com os animais selvagens), ou a existência de espécies que vivem em meios mais arborizados, ou mais desertificados revelam desde logo a existência de um ambiente que hoje já não existe. A pressão humana que foi e é exercida pela caça teve com certeza consequências ao nível da extinção de certas espécies e à manutenção e desenvolvimento de outras ao longo de milénios. Finalmente, em pleno século XXI a Zooarqueologia é uma arqueociência, com métodos científicos próprios quase independentes da Arqueologia, mas que não se deve considerar como uma disciplina apenas para especialistas, todos aqueles que são arqueólogos um dia vão-se deparar com certeza com este tipo de ecofactos, de registo e assim sendo, seja em que contexto histórico for, seja numa escavação integrando um projeto de investigação ou fazendo parte de um projeto de salvamento todo o cuidado é pouco, tudo tem que ser armazenado com as devidas cautelas, porque é mais um elemento importante para o estudo de um sítio em que serve para acrescentar mais informação, por vezes surgem mais perguntas que respostas mas sobretudo é como escreveram Shanks e Hodder, na viragem do século XXI, em 1999, afirmaram: “A tarefa do arqueólogo é andar numa espiral hermenêutica, procurando relações e afinidades e encaixando peças do puzzle” são com certeza os restos da fauna do passado que se tornam “apenas” mais uma peça do puzzle 23

de uma escavação, mas que nos abrem horizontes mais vastos permitindo não só olhar para a paisagem do passado, mas tentando ver e compreender a mente do Homem do passado.

V. Considerações Finais Chego ao final deste trabalho à conclusão que aprendi muitas coisas que não fazia ideia que eram e são importantes para a Arqueologia. Compreendi o quanto é importante o papel da Zooarqueologia para o estudo dos restos de animais que são exumados nos contextos arqueológicos tendo em vista reconstruir numa perspetiva antropológica as vivências e relações entre os animais e o Homem mas também numa perspetiva biológica porque permite dar resposta a tantas questões que se deixarmos de lado os restos osteológicos provavelmente nunca iremos saber, nem se quer questionar. Uma vez foime transmitido que um arqueólogo só vê aquilo que conhece, e por isso digo que comecei a olhar o registo arqueológico com um renovado olhar compreendendo a importância que os restos ósseos de animais achados em contexto são tão importantes como qualquer artefacto encontrado. Talvez até mais importante, em algumas situações dá-nos um tal manancial de informação que permite saber que cenário ambiental está por trás de toda a ação do Homem. Na prática, a arqueozoologia no geral procura, primeiro, o reconhecimento e descrição das espécies animais, a sua abundância num sítio arqueológico, a sua idade, sexo; depois, o estabelecimento das relações entre o grupo humano e as espécies animais (a origem da sua presença no sítio arqueológico e que utilização foi feita desses animais), a chamada paridade ontológica; por fim, a arqueozoologia também procura a obtenção de dados que contribuam para a compreensão do comportamento dos grupos humanos do passado. Assim, através da análise de determinados aspetos, essencialmente anatómicos, determinam-se as espécies presentes no sítio arqueológico ou, de outra forma, a composição taxonómica presente no sítio O estudo faunístico é tão importante que permite como fui referindo ao longo do trabalho a reconstrução paleoecológica das comunidades humanas. Isto é fundamental em Arqueologia, mais do que os artefactos, as estruturas, interessa pois perceber em meio tudo isto se insere, em que paisagem determinada comunidade se inseria. Com efeito, os arqueozoólogos, e os arqueólogos tentam encontrar no material osteológico as respostas para questões de carácter ambiental, de carácter socioeconómico 24

e cultural, e de carácter tafonómico (relativas aos processos que os afetaram durante a sua integração e conservação no contexto arqueológico, distinguindo o que são os processos naturais e os que são culturais, ou seja, feitos pelo Homem). Assim termino este trabalho no qual mostrei o crescente desenvolvimento teórico, técnico e metodológico da Arqueozoologia, passando sempre pelo contexto português, porque é o meio onde me insiro, tentei traçar um pouco da história da investigação desta disciplina em Portugal, mostrei os seus métodos, a sua bagagem teórica, a sua complementaridade no estudo dos contextos arqueológicos, tentei mostrar que existem fenómenos que afetam os restos ósseos logo após o seu uso, distinguindo aquilo que são processos naturais (físicos e químicos) daquilo que são processos culturais e humanos e como estes se processam. Em consequência, do que há bem pouco tempo não passava de quase lixo durante uma escavação, algo inútil, passa hoje a ser encarado com uma grande fonte de informação dos hábitos alimentares, da economia, e da forma de pensar o mundo e a relação com os animais que o Homem do passado teve, para além da ajuda muito preciosa para a “visualizar” como era o pano de fundo, o ambiente da peça de teatro que é a Historia e Arqueologia tentando com os restos paleofaunísticos dar o palco e o cenário onde Homem viveu há milhares de anos atrás. A Arqueozoologia não é um fim sem si mesmo é com certeza uma disciplina que num futuro próximo irá afirmar-se cada vez mais no meio da Arqueologia passando a ser uma base para o estudo em Arqueologia e não apenas algo de um mero especialista que apenas estuda os restos osteológicos mas sim pretende com diálogo permanente com o arqueólogo ajudar a reconstituir o passado do Homem.

VI. Glossário Coorte – (conjunto de animais nascido numa mesma altura), conforme o tempo passa diminui o seu número de animais. Como resultado, o padrão de mortalidade desse conjunto é, por razoes de estatística e probabilidade, representado por uma curva que, apos o primeiro ano, se mantem essencialmente estável com tendência para diminuir progressivamente. (Bicho 2006) Curva de tipo catastrófico – também conhecida como a curva em L. nesta situação, uma dada população é totalmente eliminada, espelhando, portanto, a curva demográfica ou estrutura em vida dessa mesma população – uma curva com um desvio claro positivo, isto

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é, uma curva em que o número de mortos diminui conforme a idade da classe etária aumenta. (Bicho 2006) Efeito Schlepp – é um conceito que permite explicar a variação da presença relativa das várias partes anatómicas de um animal nos sítios arqueológicos. Introduzido por Perkins e Daly em 1968. Surgiu devido a uma escavação do neolítico na Turquia, e o termo schlepp é um verbo de origem alemã que significa arrastar. Assim devido à abundância de ossos que pertenciam às áreas distais das pernas que teriam provavelmente sido arrastados para a comunidade pelo facto de serem facilmente transportáveis. Com efeito, este conceito evoluiu e hoje pensa-se que os caçadores teriam desmanchado a carne no local de caça e foram consumidas partes como os órgãos por terem uma conservação limitada e depois foram transportadas as partes com mais nutrientes ou com o maior aproveitamento dos ossos para fabrico de utensílios em osso para a comunidade. (Bicho 2006) Estratégia de tipo k – é marcada por um período de crescimento lento, dependendo a cria da protecção dos progenitores. (Bicho 2006) Estratégia do tipo R – a reprodução é feita frequentemente e em grande quantidade e com um crescimento muito rápido. Este processo permite manter o equilíbrio ecológico, porque geralmente, a taxa de mortalidade é também muito alta, correspondendo esta estratégia a espécies cuja esperança de vida é, em geral, menor do que o das outras espécies. (Bicho 2006) Índice de utilidades – é a ideia básica de Binford é a de que partes diferentes do corpo de um animal têm potencial diferente ao nível da sua utilidade – a utilidade de cada parte anatómica pode determinar o que o caçador transporta do local de caça para o local de consumo. (Bicho 2006) Índice geral de utilidade / índice geral modificado de utilidade – estes dois foram desenvolvidos pelo autor a partir do estudo dos Nunamiut, esquimós do Alasca, com base na anatomia da ovelha e da rena, nomeadamente no que diz respeito às quantidades e pesos de ossos, carne, tutano, gordura e pele para cada área anatómica dessas espécies, chegando assim ao índice de utilidade das várias zonas anatómicas. (Bicho 2006) Método da mutualidade na amplitude climática – este método pressupõe que a tolerância climática de cada espécie seja a mesma no presente e no passado. Usando duas 26

variáveis de temperatura (temperatura máxima e amplitude térmica) é construída uma rede composta por um número variado de espécies que permite reproduzir um determinado ambiente. (Bicho 2006) Número de restos determinados ou NRD – corresponde às espécies identificadas ao nível taxonómico e na da sua região anatómica. Estas variáveis permitem, por um lado, uma observação do estado de preservação dos ossos através do rácio entre o NRD e o ND. (Bicho 2006) Número mínimo de elementos ou NME – os elementos ou dente completo pertencendo ao esqueleto de um animal, sendo única e exclusivamente uma unidade anatómica. (Bicho 2006) Número mínimo de indivíduos ou MNI – esta variável representa o número mínimo de animais de uma determinada espécie presente no sítio e, portanto, permite incluir todos os restos dessa espécie presente no sítio. A contabilização do NMI é geralmente feita utilizando dois critérios, o dos dentes e o dos outros ossos no caso dos vertebrados – e é um cálculo muito mais complexo do que o das variáveis anteriores e que não representa a realidade. (Bicho 2006) Número total de restos ou NTR – esta variável corresponde à totalidade de restos faunísticos analisados e divide-se em duas outras variáveis, o número de restos não determinados (ND) e o número de restos determinados (NRD). (Bicho 2006)

VII. Bibliografia BICHO, N. F. (2006) – Manual de Arqueologia Pré-Histórica, Lisboa, edições 70, pp. 333-360. CARDOSO, J. L. (1996) – “Objectivos e princípios metodológicos da Arqueozoologia. Estado da questão em Portugal”, Al-Madan, II série, 5, pp. 78-88. CARDOSO, J. L. (2002) – “Arqueofaunas – balanço da sua investigação em Portugal”, História e Arqueologia. Revista da Associação dos Arqueólogos Portugueses, vol. 54. Arqueologia

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