ZOOARQUEOLOGIA DO SÍTIO GALHETA IV: UM ENFOQUE NOS VESTÍGIOS DO PINGUIM-DE-MAGALHÃES (Spheniscus magellanicus, Spheniscidae)

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Jairo José Zocche

Juliano Bitencourt Campos

Nelson José Oliveira de Almeida

ARQUEOFAUNA e PAISAGEM

Claudio Ricken

Jairo José Zocche Juliano Bitencourt Campos Nelson José Oliveira de Almeida Claudio Ricken (Organizadores)

ZOOARQUEOLOGIA DO SÍTIO GALHETA IV: UM ENFOQUE NOS VESTÍGIOS DO PINGUIM-DE-MAGALHÃES (Spheniscus magellanicus, Spheniscidae) Jéssica Mendes Cardoso Joares Adenilson May Júnior Deisi Scunderlick Eloy de Farias Paulo DeBlasis

Publicado em: ZOCCHE, J. J.; CAMPOS, J. B.; ALMEIDA, N. J. O.; RICKEN, C. (Orgs) Arqueofauna e Paisagem. Erechim, RS: Editora Habilis Press, 2014. Citar como: CARDOSO, J. M.; MAY-JÚNIOR, J. A.; FARIAS, D. S. E.; DEBLASIS, P. Zooarqueologia do sítio Galheta IV: um enfoque nos vestígios do pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus, Spheniscidae). In: ZOCCHE, J. J.; CAMPOS, J. B.; ALMEIDA, N. J. O.; RICKEN, C. (Orgs) Arqueofauna e Paisagem. Erechim, RS: Editora Habilis Press, 2014. p. 155-170.

RESUMO Associado a uma ocupação Jê, o sítio arqueológico Galheta IV foi datado entre 1200 e 600 anos A.P. e está localizado no município de Laguna, no sul de Santa Catarina. As escavações deste sítio foram desenvolvidas pelo GRUPEP-Arqueologia/UNISUL em parceria com o MAE/USP3, no qual foram encontrados oito sepultamentos, cerâmica, concreção, artefatos líticos e grande quantidade de material faunístico envolvidos no contexto cerimonial. A arqueofauna coletada no sítio é composta principalmente por peixes ósseos e cartilaginosos, mamíferos marinhos e terrestres, répteis, moluscos e aves como o albatroz (Thalassarche sp.) e o pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus). Nessa pesquisa foram analisadas 1234 amostras de material arqueofaunístico com o objetivo de avaliar a presença de S. magellanicus no sítio arqueológico. Verificou-se a presença de elementos ósseos de S. magellanicus em 229 amostras, totalizando 444 peças identificadas (NISP) e o número mínimo de indivíduos (MNI) foi estimado em 35 indivíduos. Foi observada a ação humana por meio de marcas de corte em 40% dos ossos analisados. Assim, a presença do pinguim-demagalhães no sítio Galheta IV configura uma oferta alimentar oportunista e ocasional, além de estar relacionada ao contexto ritualístico representado por este sítio arqueológico.

Palavras-chave: Zooarqueologia. Pinguim-de-Magalhães. Jê.

ABSTRACT Associated with a Jê occupation, the archaeological site Galheta IV was dated between 1200 and 600 years B.P. and is located in the city of Laguna, southern Santa Catarina. The excavations at this site were carried out by GRUPEP-Arqueologia/UNISUL in partnership with MAE/USP, in which were found eight burials, ceramics, concretion, lithic artifacts and large amounts of faunal remains involved in a ceremonial context. The archaeological faunal remains collected at the site are mainly composed of cartilaginous and bony fish, marine and terrestrial mammals, reptiles, molluscs and birds such as the albatross (Thalassarche sp.) and Magellanic Penguin, (Spheniscus magellanicus). For this research, 1234 samples of archaeological faunal remains were analyzed with the objective of assessing the presence of S. magellanicus at this site. It has been verified the presence of bone elements from S. magellanicus in 229 samples, with a total of 444 specimens identified (NISP) and minimum number of individuals (MNI) estimated at 35. Human action was observed due to crop marks in 40% of the analyzed bones. Thus, the presence of the Magellanic Penguin at Galheta IV is an opportunistic and occasional food supply, as well as related to the ritualistic context represented by this archaeological site.

Keywords: Zooarchaeology. Magellanic Penguin. Jê.

INTRODUÇÃO

As pesquisas arqueológicas desenvolvidas no sul do Brasil ocuparam-se de diferentes grupos pré-coloniais: os sambaquieiros e os ceramistas portadores da Tradição Tupiguarani, no litoral; os caçadores-coletores vinculados às Tradições Umbu e Humaitá, e os grupos Jês meridionais (Kaingang e Xokleng), no interior (Farias 2005). Populações do cerrado brasileiro, do tronco linguístico Macro-Jê (Jês Meridionais), se expandiram pelo planalto meridional ocupando um espaço menos povoado (Schmitz 2005), onde construíram grandes aldeias com depressões conhecidas como casas subterrâneas. Posteriormente, migraram para a encosta e litoral, onde foi verificada a presença de sítios arqueológicos com estruturas de combustão, produção de artefatos e locais cerimoniais, como cemitérios, típicos desses grupos (Farias & Kneip 2010). Localizado em Laguna, sul de Santa Catarina, o sítio arqueológico Galheta IV está associado a uma ocupação Jê datado entre 1200 e 600 anos A.P. Os estudos realizados neste sítio tiveram início a partir do projeto “Sambaquis e Paisagem: modelando a inter-relação

entre processos formativos culturais e naturais no litoral sul de Santa Catarina” (FAPESP 2004/11038-0) e foi escavado pela equipe do Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia da Universidade do Sul de Santa Catarina (GRUPEP-Arqueologia/UNISUL) em parceria com o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP). As escavações foram realizadas em três etapas, em 2005, 2006 e 2007, revelando oito sepultamentos, artefatos líticos, cerâmica, amostras de concreções e material faunístico. Este sítio assenta-se sobre um promontório cristalino, a cerca de 50 metros acima do nível do mar, está envolto por uma paisagem de restinga com a presença de dunas, sambaquis e vista para o oceano Atlântico. Sobre o mesmo afloramento encontram-se os sambaquis Galheta I e II fazendo com que o sítio arqueológico Galheta IV esteja geograficamente e historicamente envolvido com a cultura sambaquieira (Farias & DeBlasis 2007). Análises laboratoriais desenvolvidas por Fernandes et al (2011) informam que os artefatos líticos estavam associados aos sepultamentos, muitos como mobiliário funerário, indicando este sítio como um local cerimonial. Já as análises preliminares da arqueofauna realizadas pelos autores e por André Osório Rosa apontaram a presença de espécies migratórias, levantando a hipótese de ocupação sazonal predominantemente durante o inverno. Entre as espécies identificadas estão as de peixes cartilaginosos como tubarão (Selachimorpha) e raia (Dasyatis sp.); peixes ósseos como a miraguaia (Pogonias cromis), tainha (Mugil sp.), corvina (Micropogonias furnieri), bagre (Ariidae), rolabo (Centropomus sp.), enchova (Pomatomus sp.) e sargo (Sparidae); cágado (Chelonia) e tartaruga marinha (Chelonia mydas); aves como albatroz (Thalassarche sp.) e pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus); mamíferos como baleia e golfinho (Cetacea), lobo marinhos (Arctocephalus sp. e Otaria flavescens), porco-do-mato (Tayassu sp.) e veados (Mazama sp. e Ozotocerus bezoarticus); e entre os moluscos foram identificadas as espécies Anomalocardia brasiliana, Olivancillaria vesica auricularia, Lucina pectinata, Thais haemastoma e Adelomelon sp. A zooarqueologia estuda os vestígios arqueofaunísticos encontrados nos sítios arqueológicos a fim de compreender a relação dos seres humanos com outras populações animais (Reitz & Wing 1999). A partir da zooarqueologia é possível obter informações importantes sobre o passado humano, bem como o contexto ambiental em épocas passadas (Rosa 2008; Alves 2008).

Os registros arqueofaunísticos podem fornecer informações de grande importância sobre a forma como as populações pré-históricas interagiam com o ambiente. A partir desse material, é possível indicar a distribuição geográfica das espécies no passado, possibilitando as linhas de pesquisa relacionadas às transformações ambientais, mudanças climáticas e também para o enriquecimento do conhecimento sobre os padrões de desenvolvimento das comunidades bióticas (Rosa 2008). Além disso, podem também fornecer subsídios para a análise do comportamento simbólico das sociedades humanas, a maneira como espécies animais específicas referenciam o contexto simbólico através do qual os grupos humanos agenciam sua relação com o meio ambiente e, desta forma, elaboram referências para a construção e interpretação do mundo (p.e. Ingold 2000). No Brasil, a zooarqueologia ainda é bastante recente, e os trabalhos realizados apresentam carência de abordagem teórica, frequência e abundância relativa das partes esqueletais e análises tafonômicas, temas que atualmente são trabalhados em outros países (Rosa 2008). Isso ocorre devido ao déficit de zooarqueólogos e ao uso de técnicas inadequadas para a escavação dos vestígios arqueofaunísticos (Ferrasso & Schmitz 2012). Assim, esse estudo foi realizado a partir de um Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do título de Licenciado em Ciências Biológicas na Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Teve como objetivo analisar a presença do pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus Forster, 1781) no sítio arqueológico Galheta IV a partir da quantificação dos elementos ósseos por meio dos índices de frequência (NISP e MNI), analisando aspectos tafonômicos, determinando a distribuição dessa espécie no sítio e averiguando a presença de artefatos e adornos confeccionados a partir dos ossos de S. magellanicus. O PINGUIM-DE-MAGALHÃES Os pinguins (Sphenisciformes) são aves oceânicas típicas do hemisfério sul, correspondem a cerca de 90% da biomassa de avifauna da zona subantártica (ao sul de 35oS) e antártica (Círculo Polar Antártico em aproximadamente 66oS). São ao todo 18 espécies, sendo que 7 delas são encontradas na América do Sul. No Brasil, os pinguins ocorrem somente na época de migração, durante o inverno (Sick 1997). O pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus) chega ao Brasil pela Corrente das Malvinas, podendo alcançar até o litoral do Rio de Janeiro entre os períodos de inverno até o início da primavera. A migração de S. magellanicus ocorre pela busca de alimentos (Valim et al 2004). No entanto, conforme o trabalho de Silva et al (2012) a

migração, comportamento e população de S. magellanicus pode sofrer influências climáticas, assim considera-se que a vinda dessa espécie para o litoral brasileiro pode ocorrer pela busca exclusiva por alimentos e/ou em virtude das correntes que os trazem para o norte. Em sítios arqueológicos do Rio de Janeiro e Santa Catarina, datados de 4000 anos, foram encontrados ossos de pinguins, mostrando a utilização dessas aves pelos ocupantes préhistóricos no litoral brasileiro (Sick 1997). Estudos realizados em Santa Cruz e Rio Negro, Argentina, apontam a presença de S. magellanicus em sítios arqueológicos, porém, as marcas de descarne apareceram somente em 2% do conteúdo amostral (Cruz 2005; Belardi et al 2011; Borella & Cruz 2012). No Brasil não há estudos específicos sobre a zooarqueologia dos pinguins, os registros arqueológicos não trazem informações sobre a interação dessa espécie com povos pré-coloniais (Gaspar 1999; Schmitz 2006; Rosa 2006, 2008; Klökler et al 2010).

MATERIAIS E MÉTODOS

A presente pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso quantitativo e qualitativo, restrita à análise zooarqueológica laboratorial. Foram analisadas 1234 amostras correspondentes ao total do material arqueofaunístico coletado nas três etapas de escavações do sítio arqueológico Galheta IV. Sendo que o objeto principal da pesquisa foram os remanescentes ósseos de Spheniscus magellanicus.

Em campo

Em cada etapa foram abertas diferentes áreas de escavação, as quais foram decapadas em quadras de 1 m2, perfazendo um total de 32 m2. Para este sítio, foram consideradas duas camadas: a primeira com 50 cm, composta por um sedimento arenoso, de deposição eólica, granulação fina e coloração clara, apresentando, eventualmente, algum vestígio arqueológico, como fauna e cerâmica; a segunda é a camada arqueológica propriamente dita, configurando os elementos que identificam a sua ocupação (Farias & DeBlasis 2007). O material zooarqueológico foi coletado diretamente nas quadras, ou no processo de peneiramento do sedimento, sendo acondicionado em embalagens plásticas. Cada amostra contém uma etiqueta com informações de quadra, camada, nível, data, pesquisador e NP (Número de Procedência).

Em laboratório

Coleção de referência

A coleção de referência foi elaborada com o objetivo de auxiliar a identificação taxonômica a partir da anatomia comparada. Foi utilizado um espécime de Spheniscus magellanicus doado pelo professor Dr. Sérgio Antônio Netto, coordenador do laboratório de Ciências Marinhas da UNISUL. O espaço utilizado foi o Laboratório de Anatomia Humana e Animal da UNISUL, e foram realizadas as técnicas de dissecação, maceração química e mecânica adotadas por Pacheco et al (2005). Figura 1 – Dissecação de S. magellanicus.

Figura 2 – Coleção de referência

Análise A análise dos elementos ósseos referentes à S. magellanicus encontrados no sítio arqueológico Galheta IV foram realizadas no laboratório do GRUPEP-Arqueologia. Inicialmente os ossos passaram pelo processo de higienização com água e escova, de modo a facilitar a identificação. Após, foram catalogados por amostras (embalagens) de acordo com os dados contidos nas etiquetas de campo. Na catalogação, cada amostra contém um número de registro, permitindo a organização do material, de maneira a facilitar a busca por elementos específicos. A identificação de S. magellanicus ocorreu a partir da coleção de referência osteológica elaborada pelos autores, na qual se utilizou análises comparativas entre os vestígios de arqueofauna com os ossos do animal atual. O objetivo da identificação foi alcançar o táxon mais próximo à espécie, contudo, os processos tafonômicos sofridos pelo material zooarqueológico (fragmentação, carbonização, calcificação, entre outros) afetam a eficácia da identificação. Portanto, serão desconsiderados os ossos fragmentados e/ou não identificados.

Em cada elemento identificado, consta uma etiqueta de análise laboratorial, com o número de catálogo, descrição da peça (estrutura anatômica) e sua classificação taxonômica. Os dados foram organizados e tabulados. Os cálculos de índices de frequência (NISP: número de elementos identificados; e MNI: número mínimo de indivíduos) foram realizados de acordo com Lyman (1994) e Reitz & Wing (1999). Para a análise da distribuição dos ossos de S. magellanicus no sítio estudado, bem como sua relação com os cerimoniais, como os sepultamentos, foram considerados as camadas, níveis e quadras determinados em campo e registrados nas etiquetas de cada amostra. A identificação das ações antrópicas e naturais sobre os vestígios faunísticos (tafonomia) seguiu a metodologia de Lyman (1994), no qual determina processos de desarticulação, descarne e cozimento.

RESULTADOS E DISCUSSÃO O pinguim-de-magalhães no Galheta IV Para este trabalho, foi considerado como elemento ósseo toda estrutura esqueletal do indivíduo em estudo, podendo este se encontrar fragmentado, incompleto, apresentar quebras, desgastes ou permanecer inteiro. Assim, verificou-se a presença de elementos ósseos de Spheniscus magellanicus em 229 amostras de material arqueofaunístico coletadas nas escavações realizadas no sítio arqueológico Galheta IV. Foi identificado um total de 444 peças (NISP) e o número mínimo de indivíduos (MNI) foi estimado de 35 indivíduos. Entre os elementos ósseos identificados estão o esterno, escápula, coracóide, sacro, vértebras caudais, ossos do crânio e dos membros (Tabela 1 e Figura 3), sendo que os de maior frequência foram os elementos ósseos dos membros anteriores e posteriores, representando 80,6% do total de elementos identificados. As escápulas, esternos e ossos do crânio (fragmento orbital, articular e quadrado) se encontraram bastante fragmentados, sendo mais comum identificar no conteúdo amostral as regiões mais resistentes desses ossos. Os Sphescinidae são aves adaptadas para a vida aquática e por isso é preciso considerar que o seu esqueleto se diferencia de aves que estão aperfeiçoadas para alcançar altos voos, a exemplo do albatroz (Thalassarche sp.) que, de acordo com os vestígios encontrados, também se fez presente no litoral catarinense em períodos pré-coloniais. Embora, em sua maioria, os ossos dos pinguins sejam pneumáticos, o peso e densidade de sua

estrutura são maiores em relação ao albatroz. Os ossos encontrados com maior frequência, como os dos membros, são principalmente os que possuem maior densidade óssea, podendo ser considerados mais resistentes em relação a estruturas como o esterno, costelas e vértebras. Com isso, infere-se sobre a resistência dos vestígios de Spheniscus magellanicus às ações tafonômicas sofridas ao longo do tempo. Muitos pesquisadores defendem a relação entre densidade e preservação óssea, pois existe uma associação entre elas em diversos registros arqueológicos e paleontológicos (Lyman 1994; Bissaro-Júnior 2008). Assim, estima-se que a abundância de vestígios dos membros de S. magellanicus encontrados em Galheta IV esteja relacionada diretamente com a densidade, por apresentar uma maior resistência às interferências antrópicas e ambientais. Tabela 1 – Número absoluto de elementos ósseos de Spheniscus magellanicus identificados no sítio arqueológico Galheta IV. ELEMENTOS Articular Carpometacarpo

Direito Direito Esquerdo

Coracóide

Direito Esquerdo

Crânio (fragmento orbital) Escápula

QUANTIDADE 2 11 7

Direita Esquerda

4 11 10

Esterno Falange

Membro posterior Membro anterior

2 91 13

Fêmur

Direito Esquerdo

14 23

Quadrado

Direito Esquerdo

4 6

Rádio

Direito Esquerdo

31 15

Direito Esquerdo

5 15 8

Tíbiatarso

Direito Esquerdo

24 12

Ulna

Direita Esquerda

18 14

Úmero

Direito Esquerdo

27 35

Sacro Tarsometatarso

Vértebra caudal TOTAL (NISP)

-

24 14

-

4 444

Figura 3 – Representação do esqueleto de Spheniscus magellanicus, lados direito e esquerdo, apresentando a frequência dos elementos ósseos identificados no sítio arqueológico Galheta IV.

Vestígios de corte e queima

A presença de marcas de corte nos ossos faunísticos, assim como a exposição ao fogo, indica uma forte atividade antrópica. Em relação aos remanescentes ósseos de S. magellanicus, foram observadas marcas de corte em 178 elementos, representando 40% das peças identificadas. Para BissaroJúnior (2008) a presença de marcas de corte em vestígios faunísticos são evidências diretas do processamento de animais pelos seres humanos para a extração de tecidos e músculos por meio de instrumentos cortantes. As marcas de corte foram identificadas em epífises e diáfises de ossos longos dos membros anteriores e posteriores e em menor número em coracóides, escápulas e falanges. Essas marcas ocorreram mais frequentemente nos ossos dos membros anteriores,

representando 52% dos vestígios analisados, seguido pelos elementos ósseos dos membros posteriores com 33%. Além disso, foram encontrados 39 ossos que apresentaram vestígios de queima, sendo 21 calcinados (apresentando coloração esbranquiçada) e 18 carbonizados (apresentando pigmentação escura). Os Spheniscidae possuem características que permitem pensar em uma intensa exploração, dentre elas a facilidade de captura e o rendimento econômico (volume de tecido muscular) elevado em relação a outras aves (Cruz 2005). Dessa forma, a espécie em estudo pode ter representado uma forma de subsistência estacional para os grupos pré-históricos que ocuparam a região da Galheta. Os vestígios de queima também sugerem que este animal era consumido por estes grupos. Figura 4 – Fêmur esquerdo com as marcas de corte indicadas pela seta.

Figura 5 – Rádio direito com as marcas de corte.

Distribuição

A partir de análises estatísticas DeBlasis, Farias & Kneip (ms.) mostram que os vestígios faunísticos, líticos e cerâmicos, apesar de exibirem uma distribuição geral aparentemente homogênea, mostram tendências à aglomeração, associando-se às feições funerárias. Os elementos arqueofaunísticos correspondentes a Spheniscus magellanicus foram encontrados dispostos em 39 quadras, 5 perfis e em todos os níveis, indicando a presença destes elementos em 86,6% do total de quadras e perfis do sítio arqueológico Galheta IV. E de acordo com a estratigrafia, os elementos ósseos de pinguim-de-magalhães estavam dispersos em todas as camadas e níveis escavados. Apesar da distribuição aparentemente homogênea desses vestígios foi possível observar, no entanto, a aproximação dos ossos de S. magellanicus com os sepultamentos 2, 4, 6, 7 e 8 (cinco dos oito sepultamentos do sítio). A presença de arqueofauna próximo aos sepultamentos pode representar oferendas alimentares, possivelmente destinada a nutrir os mortos durante suas viagens pós-morte, existindo a possibilidade de que a figura do pássaro estivesse ligada à viagem dos mortos (Prous 1992). A oferenda pode, também, ter um significado não alimentar como, por exemplo, símbolo clânico.

Artefatos e adornos

Não foram identificados quaisquer artefatos ou adornos confeccionados a partir das partes esqueletais de pinguim-de-magalhães, Spheniscus magellanicus, no sítio arqueológico Galheta IV. A ausência de ossos polidos pode ser justificada pela alta densidade óssea e pelo menor número de ossos pneumáticos, como citado anteriormente, em relação a outras aves possivelmente utilizadas para a atividade artesanal. No entanto, foram encontrados 14 artefatos de formato fusiforme elaborado por meio de ossos de outras espécies de aves não identificadas (Figura 6). Esse tipo de instrumento é muito comum em sítios arqueológicos do centro-sul brasileiro, e se torna útil principalmente devido a sua estrutura compacta. São denominadas “pontas duplas” e podem ter sido utilizadas para armação de arpões e anzóis (Prous 1992). Figura 6 – Artefatos confeccionados a partir de ossos de aves encontrados no sítio arqueológico Galheta IV.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta pesquisa foi avaliar a presença do pinguim-de-magalhães, Spheniscus magellanicus, no sítio arqueológico Galheta IV, a fim de contribuir para a compreensão de seu contexto ocupacional, envolvendo os aspectos econômicos e cerimoniais, além de trazer informações sobre a distribuição dessa espécie no passado. Os estudos nesse sítio revelam que sua ocupação ocorreu durante um período longo, entre 500 a 600 anos, indicando que o local era revisitado regularmente para ocasiões cerimoniais. Nessas visitas, a obtenção dos recursos naturais do ambiente marinho e terrestre pode atender não apenas as finalidades fúnebres, mas também às necessidades de subsistência de maneira geral, como sugere a grande quantidade e variedade deles. No entanto, a presença de aves aquáticas e mamíferos característicos dos meses de inverno sugere a utilização do sítio de forma circunstancial e estacional. A tafonomia dos remanescentes de S. magellanicus aponta para o processamento in situ dos animais para a retirada de tecido e músculos, prática esta aparentemente inserida no contexto cerimonial, tendo em vista a vinculação relacional dos vestígios de fauna com os sepultamentos indicada acima. Por fim, deduz-se que, tendo em vista a migração do S. magellanicus, as populações Jê do Sul estavam no litoral no período entre inverno e primavera, época de ocorrência dessa espécie na região. Observa-se, ainda, que há no sítio uma quantidade significativa de outras espécies faunísticas subtraída do ambiente marinho, como peixes, cetáceos, pinípedes e aves. Essa oferta abundante de alimentos sugere que, para além das motivações associadas às práticas funerárias, pode muito bem haver razões de ordem econômica para a presença estacional dos Jê nesse pontão rochoso isolado do continente. Com este estudo dá-se o passo inicial para as análises relacionadas à presença do pinguim-de-magalhães no litoral brasileiro em época pré-colonial. Assim, espera-se que este trabalho venha contribuir com as futuras pesquisas zooarqueológicas integradas com a história e antropologia catarinense, e também com a biologia dessa espécie. Agradecimentos Aos professores e pesquisadores da UNISUL: Josiane Somariva Prophiro, Sérgio Antônio Netto e Geovan Martins Guimarães que participaram do andamento e da banca examinadora deste trabalho, contribuindo para sua melhoria.

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