Zurara: A Crónica de Guiné e os Primórdios do Racismo Anti-Negro

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Zurara: A Crônica da Guiné e os Primórdios do Racismo Anti-Negro Mário Maestri

Os primórdios da escravidão em Portugal No segundo século antes de nossa era, com a chegada das legiões romanas, o escravismo instalou-se como forma de produção dominante nos atuais territórios portugueses. A partir de então, a economia daquelas regiões centrou-se em torno da vila rustica, explorada pela mão-de-obra escravizada e voltada para o mercado mundial de então (Columella, 1977; Giardina e Schiavone, 1981; Kolendo, 1980; Petit, 1986; Staerman e Tofimova, 1975). Nesse contexto, em modo geral, a instituição escravista obedeceu a mesma trajetória conhecida em outras regiões da Europa, ao menos até a Reconquista. O domínio visigótico sobre a Lusitânia deu-se no contexto da desorganização das relações internacionais do Império Romano. O que não impediu que a prática da escravidão tenha prosseguido singularmente ativa sob a nova ordem, que legislou em forma detalhada sobre ela no Código Visigótico. O historiador português Manuel Heleno assinala: “Como uma classe quase equivalente à dos escravos romanos, os visigodos aceitaram, ao estabelecerem-se no século V na Hispânia, sem dificuldade a escravidão ali existente.” A mão-de-obra escravizada continuou a reproduzir-se “pelo nascimento, casamento, cativeiro, sanção penal, consentimento voluntário e abuso da força” (Heleno, 1933, p. 66). Em 711, os muçulmanos atravessarem o estreito de Gibraltar, permanecendo na Península Ibérica por oito séculos, de onde foram expulsos, em 1492, em forma definitiva. A reconquista feudal-cristã dos atuais territórios portugueses foi mais precoce. “O Porto e Braga foram reconquistados cerca de 868. Coimbra voltou [...] à posse cristã em 1068 e Lisboa em 1147.” Silves foi libertada em 1189, Alcácer do Sal, em 1217 e, finalmente, o Algarve, em 1249 (Saraiva, 2001, p. 34). Por um lado, a reconquista cristã da Ibéria melhorou a sorte dos “servos originários” que, anteriormente sob o jugo mouro, passaram ao jugo dos novos senhores cristãos. Mas, pelo outro, fortaleceu a escravidão, devido aos abundantes apresamentos de cativos realizados pelos cristãos, nos territórios sob controle muçulmano. Ao contrário do que comumente se acredita, em Portugal como alhures, a Reconquista não determinou a extinção da escravidão de cristãos. Entretanto, dos séculos IX ao XI, boa parte da “população inferior [cristã] das províncias de Além-Douro e Beira” teria evoluído da servidão pessoal para a servidão da gleba, em um movimento que registrou verdadeiro progresso sócio-produtivo. A seguir, ela assumiria o status de colonos livros, em geral arrendatários de terras gravadas com foros feudais. Essa “diminuição dos escravos originários” teria sido acompanhada por forte “incremento dos muçulmanos” escravizados (Saraiva, 2001, p. 119). O que não justifica a proposta de Alexandre

Herculano9 de “não ter havido na Península, a partir do século VIII, servidão pessoal, tirante a dos muçulmanos cativos de guerra”. 10 Segundo parece, nos primeiros tempos da Reconquista, os muçulmanos teriam sido passados simplesmente pelo fio da espada. A seguir, adotou-se comumente a prática de justiçar os guerreiros e escravizar as populações restantes. Muito logo, a Reconquista passou a significar para os senhores da guerra promessa da posse de terras e de trabalhadores escravizados. Com o confronto peninsular islamo-cristã, a guerra e as razias tornaram-se os grandes meios de produção de cativos. “[...] um dos objetivos das expedições que os cristãos faziam durante a Primavera por terras de mouros era [...] capturar homens para servirem na propriedade senhorial, onde a população semi-serva estava diminuindo rapidamente e para onde dificilmente se encaminhava os homens livres” (Heleno, 1933). Mesmo após a conquista do Algarve, em meados do século 13, eram comuns razias nos territórios inimigos para obter bens, gados e cativos. Reduziam-se mouros à escravidão durante os socorros militares concedidos pelos senhores lusitanos à Castela contra o reino de Granada. O comércio e a pirataria foram também importantes fontes de abastecimentos de cativos mouros. “Dos meados do século XIII à conquista de Ceuta (1415) a escravidão alimentou-se principalmente das expedições e assaltos às costas do Norte da África.” (Heleno, 1933, p. 133). Em meados do século 15, Eanes de Zurara registrou em sua Crônica de Guiné que os primeiros navegadores enviados pelo príncipe dom Henrique para explorarem a costa atlântica da África orientavam-se para a “costa de Granada, outros corriam por o mar de Levante, até que filhavam – do latim, piliare – grossas presas dos infiéis, com que se tornavam honradamente para o reino” (Zurara, 1973, p. 51). Escravidão moura Mesmo após a expulsão de Portugal dos judeus e dos mouros que não quisessem se converter, decretada, em 1497, não era incomum o ingresso de mouros em Portugal, de livre e espontânea vontade, para negociar, escapar da fome, fugir de perseguições políticas, etc. ou, mais numerosos, trazidos como cativos da costa mediterrânica ou atlântica do norte da África (Braga, 199, p. 51). No contexto da conquista e reconquista da península ibérica, a escravidão passou a justificar-se sobretudo pelo ato de guerra e pelo fato religioso, e não mais pela qualidade intrínseca do cativo, como propunha a visão aristotélica da escravidão. A própria característica étnica desqualificou-se como razão de cativeiro diante do pressuposto religioso, sobretudo porque eram pouco perceptíveis as diferenças raciais entre o mouro e o moçárabe, isto é, o cristão que vivia nos territórios ibéricos dominados pelos árabes. Mesmo quando o cativo era comprado ao mercador, ele era sobretudo um infiel filhado na guerra, em terra ou no mar. Ou um seu descendente que herdava o status minorado de sua mãe – partus sequitur ventrem, determinava o direito romano. Nesse contexto, não havia por que duvidar da justiça da escravidão. O destino e o tratamento do mouro em terras cristãs eram semelhantes ao do cristão em possessões islamitas. A grande justificativa da redução de um homem livre à escravidão era ter sido capturado em uma guerra justa. Quando era resgatado, não havia qualquer infâmia no ter sido escravizado. Como veremos com mais detalhes, a definição da justeza de uma guerra

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Cf. HERCULANO, Alexandre. Do estado das classes servas na Península desde o VIII até o XII século. [1858]. Opúsculos, III, 1876. 10 Cf. HELENO (1933, p. 112, 117). 35

cabia à Igreja e, secundariamente, ao Estado. E entre todas as guerras justas não havia outra que fosse mais justa do que a terçada em prol da expansão da fé em Cristo. Os momentos finais da Reconquista deram-se em contexto de profunda intransigência religiosa, transformando-se a “santa fé” na principal razão legitimadora da luta senhorial pelo domínio de terras e de trabalhadores. Nesse contexto, a religião era a justificativa por excelência da escravidão, como apenas assinalado. A redução do mouro ao cativeiro era o justo castigo por sua ofensa pessoal à divindade verdadeira (Tinhorão, 1988, p. 45). O fato de que o mouro capturado na guerra, comprado no comércio ou nascido no cativeiro fosse o escravo por excelência não criava relação necessária entre religião e servidão. Jamais houve impedimento de escravizar cristãos. Mesmo que as Partidas de Afonso X [1221-1282], rei de Castela, restringisse desde o século 13 a “redução a escravos” aos infiéis. Senhores cristãos fugiram dos mouros portando seus cativos de mesmo credo que prosseguiram na servidão. Moçárabes foram escravizados pelos barões cristãos. O mouro convertido e seus filhos batizados não deixavam de ser cativos. Diversas transgressões puniam os cristãos com o cativeiro: delitos civis, venda de armas aos infiéis, etc. 11 Na Baixa Idade Média e no Renascimento, a Igreja prosseguiu apoiando e legislando sobre a escravidão. “Em 1294, o papa Celestino V nada opunha ao fato de um cristão livre se vender voluntariamente como escravo. Inclusive, condenava à escravidão todo o cristão que auxiliasse os muçulmanos, fornecendo-lhes armas” (Pimentel, p. 19). Da escravidão Moura à Africana: Denominações Em Portugal, não houve solução de continuidade nem salto de qualidade entre a escravidão moura e negra. Ao contrário, elas conviveram por um muito longo tempo, sem contradições. Porém, a transição da dominância da primeira para a segunda foi bastante rápida e deu-se devido à maior oferta do cativo negro-africano arrancado das costas africanas. Porém, essa transição ensejou importantes evoluções nas representações das classes proprietárias sobre a escravidão e na própria nominação do trabalhador escravizado. Até o século XI, devido à importância da escravidão e da própria legislação romana, o trabalhador escravizado europeu era designado por nomes provenientes do latim – servus, mancipium, criatio, homines. Na Península Ibérica, com o confronto muçulmano-cristão, o cativo passou a ser designado como mouro. Inicialmente, mouro designava o habitante da Mauritânia. Isto é, das regiões do Saara ocidental de onde chegaram grande parte das tropas islâmicas que invadiram a Península Ibérica. A seguir, esse apelativo pátrio foi estendido a todos os muçulmano, originários ou não da África Dessa denominação nasceu o vocábulo português moirejar ou mourejar, ou seja, trabalhar como mouro, muito duro, como escravo. Na Europa, foi tão lenta a metamorfose do trabalhador escravizado em trabalhador feudal que não foi plasmada uma nova categoria para descrever a nova forma de subordinação. O produtor direto adscrito a uma gleba, mas gozando de direitos de uso sobre ela e de maior ou menor liberdades diante do seu explorador, prosseguiu sendo denominado de servus ou, nas palavras correspondentes das línguas neo-latinas, servo, serve, etc. Isto é, escravo (Dockes, 1979, p. 19). Em fins do décimo século, quando esse processo de transição realizara-se plenamente, e ocorrendo um fortalecimento relativo das relações escravistas, generalizou-se o uso de um novo designativo para o trabalhador escravizado, diante da impossibilidade de prosseguir 11

Cf. HELENO (p. 117, 125, 131, 132). 36

denominando-o por uma categoria que então se consolidara como referente do produtor feudal hegemônico, o servo. Na Antigüidade, os cativos eram comumente denominados pela suas nacionalidades. Assim sendo, não raro, em muitas línguas, uma denominação pátria estrangeira perdia o sentido inicial de apelativo étnico-nacional para descrever o homem submetido à escravidão, quando os trabalhadores escravizados eram obtidos, em grande número, naquelas regiões. As guerras de Otão I [912-973], o Grande, duque da Saxônia, inundaram a Europa com cativos trazidos da Esclavônia [Balcãos], que foram denominados de escravos. Com o passar dos anos, o termo escravo perdeu o sentido étnico-nacional, passando a descrever o homem que conhecia a servidão plena. Ou seja, o servus da Antiguidade. Na Lusitânia, o uso do designativo escravo foi tardio. Até meados do século 15, a dominância da escravidão de muçulmanos levou a que o termo português substitutivo de servus fosse mouro. Isto é, o muçulmano reduzido à escravidão. Em Portugal, o uso da palavra “escravo” surgiu após a contradição posta pelo ingresso sistemático de negro-africanos no país. Salvo engano, o seu primeiro registro escrito teria ocorrido nos anos 1450, logo após a sistematização do tráfico negroafricano. Porém, durante muito tempo, o terno “escravo” continuou sendo designação erudita, pouco comum entre a população (Pimentel, 1995, p. 20). Tamanha fora a impregnação semântica do vocábulo “mouro” com o sentido de “escravo” que o muçulmano livre e o cativo alforriado eram chamados de “mouro livre” e “mouro forro”. Mouro, sem adjetivo, era o muçulmano sujeito ao cativeiro. No mesmo sentido, os primeiros negro-africanos desembarcados em Portugal foram denominados de “mouros negros”. Mesmo se eram reconhecidamente pagãos e não vinham da Mauritânia (Carboni e Maestri, 2003). A impropriedade da designação dos negro-africanos como “mouros negros” aumentava ainda mais quando eles convertiam-se ao cristianismo. Assim, apesar de serem designados de mouros, eram cristão, jamais haviam sido muçulmanos e não provinham da Mauritânia! (Tinhorão, 1988, p. 47). No século 15, em Portugal, a palavra “negro” designava de “forma genérica, todos os tipos raciais de pele morena”. Portanto, os mouros eram também chamados de negros. Em inícios do século 16, com o afluxo de negro-africanos, os cativos de cor negra mais intensa foram chamados de “homem preto” e “mulher preta” e, a seguir, “preto” e “preta” (Carboni e Maestri, 2003, p. 77). Nesse novo contexto, a palavra "escravo”, então de uso já comum, passou a significar “apenas posição servil [plena], sem qualquer conotação religiosa” ou racial. Desde então, falava-se de “escravos pretos”, de “escravos negros”, de “escravos mouros” e de “escravos brancos” (Saunders, 1994, p. 13). Portugal: A Escravidão do Preto na Cidade Em 1527-32, o primeiro censo lusitano demonstrou que o Reino teria 282.734 fogos, com uma população estimada entre um milhão e meio de habitantes. Com 13.010 fogos, Lisboa possuiria de cinqüenta a sessenta e cinco mil habitantes, localizando-se portanto entre as grandes metrópoles da Europa da época (Marques, 2001, p. 155). Em 1551, dezenove anos após a conclusão daquele censo, levantamento realizado por Cristóvão Rodrigues de Oliveira apontou que a cidade teria cem mil habitantes, entre eles, “nove mil e novecentos e cinqüenta escravos”. O cômputo não abrangia a população mestiça e afro-descendente liberta e livre, possivelmente já significativa (Tinhorão, 1988, p. 112). A contagem minuciosa dos cativos sugere como mais possível um erro para menos na computação da população escravizada. Se a população lisboeta fosse 37

cinqüenta mil, os cativos seriam vinte por cento da população; se fosse cem mil, dez por cento. Os especialistas dividem-se entre os dois números ao estimarem a população escravizada da cidade. Em todo caso, em meados do Quinhentos, a escravidão negra era já claramente dominante, ainda que subsistissem cativos mouros, em número decrescente, fornecidos pelo comércio e pelas operações no norte da África. Salvo engano, não temos avaliações sobre o peso da escravidão moura nesses anos. Tinhorão assinala que em Lisboa os cativos negros trabalhavam nos serviços mais pesados, mais sujos e mais fedorentos. Labutavam na estiva; na descarga e no abastecimento do carvão; na venda da carne de gado, de peixe, de mariscos. Cativos limpavam de “canastra à cabeça” as ruas da cidade. Uma importante atividade dos cativos urbanos era caiar as paredes das residências urbanas. Eram sobretudo mulheres escravizadas que despejavam os potes contendo os dejetos humanos na Ribeira – os cabungos ou tigres do Brasil colonial e imperial. Cativas também vendiam água em potes e outros produtos em balaios pelas ruas e praças da capital e lavavam roupas nas águas do Tejo. O trabalho doméstico era importante atividade das pretas e pretos escravizados que trabalhavam em grande número nas ricas residências urbanas e em menor número nas moradias menos abonadas. A não ser por salários muito vantajosos, o trabalhador livre relutava a se empregar nessa atividade tida como degradante. Ter um doméstico livre estava fora das possibilidades de “gente de posses médias” (Tinhorão, 1988, p. 117). Como no Brasil escravista, em Portugal desses anos, os cativos domésticos eram verdadeiros paus-para toda-obra. Faziam as compras; traziam a água das fontes; despejavam potes na Ribeira; cozinhavam; passavam; arrumavam; transportavam os proprietários; trabalhavam nos quintais das residências urbanas. A importância do trabalhador doméstico escravizado era fenômeno urbano geral. Em março de 1535, o padre flamengo Nicolau Clenardo [c.1493-1542] escrevia de Évora, terceira cidade em população do Reino: “Os escravos pululam por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. [...].” Destaque-se o fato que o clérigo enfatizava a escravidão moura, após a negra. O professor e latinista completava sobre os trabalhos domésticos: “Dificilmente se encontrará uma casa, onde não haja pelo menos uma escrava desta. É ela que vai ao mercado comprar as coisas necessárias, que lava a roupa, varre a casa, acarreta a água, e faz os despejos à hora conveniente: numa palavra, é uma escrava, não se distinguindo de uma besta de carga senão na figura” (Tinhorão, 1988, p. 10). Cativos ao ganho Era igualmente comum que os proprietários mandassem cativos oferecer produtos ou serviços pelas ruas da cidade, cobrando-lhes uma renda fixa, diária ou semanal. O que fosse obtido acima dessa renda revertia ao cativo para sua alimentação e manutenção, o que lhe permitia, em alguns casos, viver independentemente do escravista – “viver em casa per si” (Tinhorão, 1988, p. 10). Como no Brasil escravista, tal foi a generalização desse uso que proprietários dependiam em parte ou totalmente dos cativos postos ao ganho para sobreviverem. Em 1526, Tomé Lopes, guarda-mor da Torre do Tombo, requereu apoio de dom João III já que, segundo ele, a peste lhe ceifara sua mulher e mais quatorze escravos “que era a fazenda que tinha”. Destaque-se o elevado número de cativos do malogrado Tomé Lopes (Tinhorão, 1988, p. 119). Também era importante o trabalho do cativo negro nos ofícios urbanos. Em novembro de 1494, o médico e humanista alemão Jerônimo Müzer escreveu suas impressões da capital portuguesa, ressaltando a importância do trabalho escravizado no artesanato: “Vimos também enorme ferraria com muitos fornos, onde fazem âncoras, 38

colubrinas [peça de artilharia], etc., e tudo o que diz respeito ao mar. Eram tantos os trabalhadores negros junto aos fornos, que nos poderíamos supor entre os Ciclopes no antro de Vulcano” (Tinhorão, 1988, p. 10). Mesmo que os trabalhos historiográficos lusitanos sejam ainda mais restritos no relativo à participação do trabalhador escravizado no meio rural, tudo assinala uma importância igual ou próxima do negroafricano nas grandes propriedades campestres. Tinhorão lembra que, a partir da segunda metade do século 15, o cativo africano seria de grande serventia no desbravamento de campos inculto, ao escassear a mão-de-obra, há muito livre da servidão da gleba. Quando das cortes de 1472-3, proprietários requereram que o rei impedisse a saída de africanos do Reino. As razões eram claras: “[...] fazem grande povoação em vossos reinos e são causa de se fazerem terras novas e romper matos e abrir país e outros proveitos, e esses da África são de rendição [rendimento] e melhor será ficar a rendição [rendimento] deles em vossos reinos que os estrangeiros gozarem delas [...]”(Tinhorão, 1988, p. 99). Menos três décadas após a chegada dos primeiros negro-africanos, os senhores lusitanos vacilavam ainda na forma de denominá-los, referindo-se apenas à origem dos cativos – a África. Chama a atenção que o rei não acedeu, precisamente devido aos “mores preços” obtidos no mercado mundial. Ao contrário do Brasil, em Portugal, a mão-de-obra escravizada era categoria social subordinada, dominando, quanto aos interesses metropolitanos da época, as rendas fundiárias produzidas pelos homens livres e as rendas do comércio ultramarino, nas quais as rendas do tráfico se destacavam. Estima-se que, no século dezesseis, dez por cento da população rural do Algarve seria composta de negro-africanos ou afro-descendentes escravizados. Uma realidade que se apoiaria na muito antiga tradição da região de emprego de mouros feitorizados na agricultura. No Alentejo, terra de grandes propriedades, comumente arrendadas a lavradores, seria também importante o uso de “pretos” escravizados ((Tinhorão, 1988, p. 101). Em 19 de setembro de 1761, quando Pombal proibiu, por alvará, o ingresso de escravos em Portugal, em um momento em que a mineração brasileira vivia momento de bonança e, portanto, de carência de cativos, “apenas nas províncias transtaganas [além do Tejo] ainda trabalham nos campos nada menos de 4000 a 5000 mil escravos” (Tinhorão, 1988, p. 105). Como assinalado, Em Portugal, mesmo importante, a mão-de-obra negro-africana escravizada ocupou papel subordinado, tanto nas cidades como no campo. Ao contrário do Brasil, onde a produção livre habitou sempre os interstícios da sociedade negreira, no mundo português dos séculos quinze e dezesseis, eminentemente agrícola, no campo, dominou, sempre, o trabalho livre dos pequenos proprietários; dos arrendatários rurais; dos assalariados rústicos. A força e a coesão do escravismo lusitano nasciam sobretudo dos proventos obtidos pelas classes dominantes no tráfico negreiro, na produção escravista americana, no comércio com as colônias escravistas da América e da África. Sobretudos nos séculos quinze, dezesseis e dezessete, a exploração subordinada de trabalhadores negro-africanos em Portugal cimentava esses interesses negreiros. Coesão escravista O golpe dado em 1761 por Pombal à produção escravista metropolitana não significou qualquer ruptura lusitana com a ordem negreira. Ao contrário, como parte do mesmo movimento, a administração portuguesa reforçou o comércio e a produção escravistas em Angola e no Brasil, através da fundação de companhias privilegiadas destinadas a incentivar a produção comercial-negreira. A coesão do escravismo lusitano nascia do fato de que a Coroa, os cortesãos, os letrados, os comerciantes, os armadores, 39

os clérigos, as irmandades religiosas, etc. dependiam, direta ou diretamente, em maior ou menor forma, da boa continuidade do tráfico e da exploração produtiva do trabalhador escravizado colonial. Em um país em que as riquezas das Índias, do Brasil e da África fortaleceram o absolutismo e as classes aristocrático-rurais, a burguesia portuguesa restringiu sua ação sobretudo à esfera comercial, com escassos interesses na produção fabril. Nesse sentido, até o fim do tráfico, ela manteve-se atrelada aos interesses negreiros e, a seguir, coloniais-africanos (Capela, 1974; Carreira, 1979). O apoio da população plebéia ao tráfico e à escravidão constitui questão mais complexa que exige trabalhos e investigações, salvo engano, ainda não disponíveis. Nesse processo, certamente os interesses da burguesia comercial no tráfico e na escravidão contribuíram para uma importante neutralidade, se não apoio, das classes plebéias lusitanas à escravidão e ao colonialismo, classes que conheceram, sempre, independência político-ideológica relativa às classes dominantes rurais e urbanas. Mesmo que a escravidão metropolitana tenha recebido poderoso golpe com a proibição da introdução de cativos em 1761, o comércio negreiro lusitano com o Brasil, sobretudo angolano e moçambicano, interromperam-se apenas em 1850, por necessidade e vontade do império brasileiro, pressionado pelo governo inglês.12 Porém, o tráfico transatlântico português de trabalhadores escravizados chegou ao fim apenas em 1865, com a derrota dos estados escravistas na Guerra da Secessão. Em fins do século 19, quando se conclui o tráfico lusitano, as elites portuguesas faziam já grandes esforços para reconquistar na exploração do africano na África o que haviam perdido na expatriação destes últimos como cativos. Num processo salvo engano ainda não elucidado plenamente em todas as suas mediações, o racismo anti-negro produzido como reflexo da exploração do africano no tráfico e na escravidão, desdobra-se na visão racista e preconceituosa ensejada pela exploração dos nativos das colônias africanas. Num processo que se assemelha a um ponto que avança para alcançar um mesmo plano horizontal, mas em um segmento superior de uma espiral, o racismo gerado sobretudo durante a exploração escravista do africano em Portugal, consolidada com a dominação colonial, consubstancia-se, sob outras formas, no forte racismo contra o operário negro-africano, mão-de-obra superexplorada no Portugal atual. Zurara: Escravidão e Ideologia A entronização de dom Afonso V e a derrota e a morte de dom Pedro, seu tio, regente de Portugal em 1439-48, na batalha de Alfarrobeira, em 20 de maio de 1449, consolidaram o domínio da grande nobreza, em detrimento dos segmentos burgueses e populares que sustentaram, primeiro, a instalação da dinastia de Avis, em 1383-5 e, a seguir, o malogrado regente (Saraiva, 2001, p. 127). Ainda mais desde então, a alta aristocracia portuguesa foi a grande privilegiada das rendas do Reino, substancialmente acrescidas pelo comércio africano que se apoiaria, a seguir, mais e mais, na captura, transporte e venda na Europa e na América do negro-africano escravizado. No mundo das representações culturais, o eclipsar-se do cronista real Fernão Lopes diante de Eanes de Zurara registrou o declínio político e social da burguesia e das classes laborais urbanas e rurais, fortalecidas relativamente durante a gênese da dinastia de Avis, e o correspondente zênite da grande aristocracia lusitana.

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Conferir, entre outros: BETHELL (1976); CONRAD (1985); GOULART, (1975); MARQUES, (1999); SALVADOR, (1981); UNESCO, (1978). 40

Fernão Lopes teria nascido em uma cidade do litoral português, quando do exórdio da dinastia de Avis. Em 1418, ainda jovem, foi agraciado com a elevada função de guarda-mor das escrituras da Torre do Tombo e, no ano seguinte, com a também digníssima posição de cronista do reino. Ele foi igualmente tabelião geral e conselheiro real. 13 Apenas o apoio decisivo da burguesia, de oficiais e da raia miúda das cidades e dos campos à dinastia de Avis, contra a grande aristocracia ibérica, apoio apresentado pela historiografia abusivamente como revolução burguesa, explica a dignidade funcional de Fernão Lopes, apesar de sua origem vilã que se expressava no fato de possuir um cunhado sapateiro. Fernão Lopes revolucionou na forma e no conteúdo a historiografia de sua época, representando talvez o seu mais elevado momento. Sua obra de maturidade, a Crônica de dom João I, concluída possivelmente em 1443, foi redigida em linguagem simples, de raiz comunal e urbana, que espanta os contemporâneos pela modernidade da sua concisão, precisão e elegância (Saraiva, 2001, p. 149). Tem-se explicado o caráter singularmente expressivo e dramático da prosa de Fernão Lopes como tradução erudita da rica narrativa oral popular lusitana. Ou seja. Ela seria a potenciação criativa de narrativa que, assentando profundas raízes na literatura e na tradição oral popular de cunho realista, valorizava e legitimava aquela tradição citadina e rural (Saraiva, 2001, p. 149). José Hermano Saraiva propõe que a Crônica de dom João I seja “mais um livro de história”, na acepção moderna do termo, do que uma crônica, como então se compreendia. O historiador português defende que tenha sido o “primeiro livro de história que se escreveu em Portugal e, durante muito tempo, o único”. A grande revolução da Crônica de dom João I foi epistemológica. Fernão Lopes analisou a revolução de 1383-5 a partir da sua experiência como espectador da revolução de 1438-9. O livro registrava a visão da história de um “homem do povo, morador de Lisboa, parente de mesteirais”, que, ao viver na primeira pessoa os fatos de 1438-9, compreendera os interesses e a força social das classes ditas inferiores (Saraiva, 1990, p. 12-13). Fernão Lopes incorporaria na sua obra magna o papel essencial do povo nos acontecimentos de 1383-5, a partir da genial compreensão do caráter decisivo das classes não-aristocráticas na imposição de dom Pedro como regente, em 1439-48. Seriam essas determinações histórico-culturais que explicariam o anacronismo aparente de narrativa historiográfica que tem como herói o povo e explica os fatos a partir das forças e interesses sociais em cena. Fernão Lopes exalta o poder e a autonomia da raia miúda: “Era maravilha de ver que tanto esforço dava Deus neles e tanta covardice nos outros, que castelos que os antigos reis, por longos tempos jazendo sobre eles com força de armas não podiam tomar, os povos miúdos, mal armados e sem capitão, com os ventres ao sol, ante de meio dia os filhavam pela força!” (Lopes, p. 162). A revolução metodológica e formal realizada por Fernão Lopes não teria descendência direta, de curto e médio prazo, nas letras portuguesas. Hermano Saraiva defende que Crônica de Dom João I não seja “uma voz no amanhecer dos tempos democráticos, mas um último e solidário protesto contra a mudança inexorável” (Saraiva, 1990, p. 25). Talvez seja mais correto registrar o eclipsar-se da voz de Fernão Lopes como expressão da agonia das forças burguesas e mesteirais urbanas, silenciadas – a ferro e forro – pela aristocracia rural que reinaria inconteste sobre o país, por longos séculos, apoiada na força ensejada pela rapinagem 13

INSTITUTO PORTUGUÊS DO LIVRO. Dicionário cronológico de autores portugueses. Mira-Sintra: Europa-América, 1985. I vol. p. 116; 41

das colônias africanas e americanas, aprofundando Portugal na dependência e no anacronismo. Reação literária Em 1454, em desgraça, Fernão Lopes foi aposentado e substituído por Gomes de Eanes no cargo de “guardador” das escrituras reais. Ele já perdera para o sucessor a elevada posição de “cronista real”, possivelmente após o trágico desfecho da regência de dom Pedro, no início de reinado de dom Afonso V [1448-1481] (Saraiva, 1990, p. 67). Gomes Eanes de Zurara nasceu entre 1410 e 1420. Após carreira militar de pouca relevância, já homem maduro, iniciou sua bem remunerada carreira de escriba louvaminheiro da alta nobreza, enquanto Fernão Lopes ocupava ainda as funções de guarda-mor das escrituras e cronista real (Bragança, 1973, p. 39). A vitória de Zurara expressava a consolidação de novos paradigmas culturais que propunham o afastamento aristocrático da cultura e da linguagem popular, das quais Fernão Lopes era expressão excelente. Na narrativa em prosa, imperavam agora as citações dos clássicos grecoromanos e as frases e vocábulos alatinados, tortuosos e rebuscados, de uso e compreensão restritos aos iniciados. Apesar de reconhecer “grande autoridade” ao seu genial antecessor, Zurara diria em forma pretensiosa que ele fora homem de “comunal saber”. Ou seja, de saber “plebeu”, pertencente à “comuna” e, portanto, estranho e desconhecedor da cultura que tinha como erudita, aristocrática e superior (Saraiva, 1990, p. 7-8). Mikhail Bakhtin lembra que cada “época e cada grupo social tem seu repertório de formas de discursos na comunicação sócio-ideológica”, e que as modificações nessa esfera expressam comumente modificações infra-estruturais significativas (Bakhtine, 1999, p. 112). A substituição do arguto historiador, criador de linguagem revolucionária, pelo pomposo e superficial cronista expressava a consolidação da grande aristocracia lusitana e a frustração das classes burguesas lusitanas. Em relação a Fernão Lopes, foi geral o decaimento de forma e de conteúdo da narrativa histórica de Zurara, que retornou aos padrões da crônica, vertida em linguagem gótica. Ao apresentar a Crónica da Guiné com erudição e sensibilidade, José de Bragança descreve-a como “longa e por vezes fastidiosa narrativa, enferma dessa árida deformação do espírito da cavalaria medieval que rematou no Quixote” (Bragança, 1972, p. 47). Zurara registra na Crónica de Guiné a visão tradicional da história como obra da vontade e da decisão dos príncipes, determinados esses últimos pelos astros, uns e outros obedientes à vontade divina. Retrata as classes ínfimas livres como incapazes dos elevados sentimentos próprios à nobreza e descreve os homens e mulheres escravizados – sobretudo negro-africanos – como seres próximos à bestialidade. O cronista real interrompeu sua narrativa em 1448 e assinalou 1453 como data da conclusão de sua redação. A análise interna do documento evidencia a interpolação de acréscimos posteriores àquele ano. Zurara registra no texto a morte de dom Henriques, em 1460, e há indícios da introdução de capítulos, num texto inicial, que, este sim, talvez tenha sido concluído em 1453. Como Fernão Lopes, Eanes de Zurara apoiou sua narrativa em depoimentos orais; na farta documentação que tinha acesso; em narrativas e crônicas anteriores, das quais se serviu com a liberalidade habitual da época. Em verdade, o livro tem duas grandes vocações que expressam as duas grandes almas que o inspirava. Por um lado, Crónica de Guiné é uma espécie de livro tombo, onde se registra minuciosamente o número de cativos e o avanço dos navegadores lusitanos na costa africana. Por outro, é a narrativa enobrecedora dos ataques rapinadores lusitanos das 42

pobres comunidades de pescadores daquelas regiões. O abismo entre a grandiloqüência da linguagem empregada e a mesquinharia dos feitos descritos impacta profundamente o leitor contemporâneo. No capítulo “Como tomaram os dez mouros”, temos a descrição de uma das tantas operações bélicas lusitana, em verdade, um simples movimento de pirataria contra populações civis desprotegidas. “Porém a vontade, que andava já acesa no feito, não quis deixar lugar a razão, e sem outro temor, seguiram avante, até que chegaram onde uns poucos de mouros [...] os quais não tão somente tiveram coração de se defender, mas ainda de fugir. Eram todos dez, contando aí homem e mulheres e moços.” Tratava-se da rapinagem de dez adultos, mulheres e crianças, por grupo aguerrido de soldados bem armados. (Zurara, 1973, p. 188). Pirataria pequena Verdadeiramente brutal é a narrativa cavalheiresca do assalto à aldeia desarmada pelos “homens de peleja”: “Ora – disse Álvaro Vasques – eis a nossa presa está ante nossos olhos, pero está tão descoberta, que de necessidade seremos vistos antes que a ela cheguemos; e porque me não parece tamanha que possa ter gente com que nós não possamos [...] cada um corra o mais que poder, e assim rijamente vamos a eles, e se não pudermos tomar os mancebos, tomaremos os velhos e mulheres e moços pequenos; e [...] qualquer que se intrometer de defesa, sem nenhuma piedade seja morto, e os outros prendei como poderdes.” (Zurara, 1973, p. 192). Ou seja, uma enorme correria de piratas para escravizar alguns poucos velhos, mulheres e crianças desarmadas. Como assinalado, a Crónica de Guiné constitui espécie de livro tombo das rapinagens praticadas nas costas atlânticas da África Branca, a Terra dos Mouros, quando os lusitanos abandonavam seus navios e lançavam-se como cães famélicos sobre comunidades desprotegidas. Ele encerra-se com a substituição dessas razias pelo resgate do cativo, quando, já na Terra dos Negros, os rapinadores depararam-se com as numerosas e aguerridas comunidades negro-africanas. Efetivamente, ao vencerem o rio Senegal, os lusitanos compreenderam que de ceifadores que obtinham primícias abundantes na Terra dos Mouros terminavam comumente ceifados na Terra dos Negros. Estarrecido, o cronista registra desgostoso que, nas novas terras, comumente, os portugueses terminavam levando mais bordoadas do que conseguiam dar: “[...] e já sabeis que a gente desta terra não é assim ligeira de filhar como nós desejamos, que são homens mui fortes e avisados e percebidos em suas pelejas [...]”(Zurara, 1973, p. 208). Crónica de Guiné sequer é narrativa de viagens, já que revela grande despreocupação com a realidade geográfica e etnográfica africana devassada pela primeira vez pelos olhos europeus, preocupando-se obsessivamente quase apenas com o registro do número exato de cativos e das circunstâncias gerais do aprisionamento dos africanos. Zurara move-se em espaço ideológico agrário-aristocrático, sem deixar de expressar os interesses escravistas, vigentes havia séculos em Portugal. Sobretudo porque havia correspondência, e não contradição, entre um e outro. O direito e o poder dos superiores sobre os inferiores e dos amos sobre os cativos alicerçavam o mundo em que vivia e a visão com que via o mundo. O período regencial de dom Pedro conhecera o fortalecimento da grande aristocracia e da expansão mercantil na África atlântica, em detrimento das conquistas militares na África mediterrânica. A obra de Zurara constitui narrativa tardia, de cunho medieval, que procura enobrecer os atos da pirataria africana apresentando-os como fatos fidalgos de arma contra inimigos desumanizados pela natureza vil. A linguagem grandiloqüente e o estilo retorcido eram os recursos formais com os quais Zurara procura dar foros de nobreza aos mesquinhos atos de pirataria contra populações aldeãs 43

desarmadas. Eles terminam reforçando o caráter pastiche da narrativa, ao potenciar o abismo que separava os fatos de suas representações. A Reconquista ensejara ideologia feudal-escravista, de vocação religiosa, que justificava a execução e a captura indiscriminadas de velhos, adultos, jovens e crianças muçulmanos. Essa visão de mundo apoiava a expansão territorial e a apropriação da força de trabalho do espaço territorial e da mão de obra islâmica pela aristocracia feudal cristão. A conquista das terras, o extermínio de vidas, a servidão perpétua dos corpos eram a recompensa da luta contra os inimigos da fé verdadeira. Os céus bendiziam e a Igreja acalorava e recebia as primícias das cavalgadas terrestres e das razias marítimas contra os sequazes de Mafamede. Essas visões de mundo foram também esteio dos interesses mercantis que, durante a expansão marítima e a conquista africana, americana e asiática, garantiram rendas supimpas para a alta, média e pequena aristocracia e importantes lucros para a burguesia mercantil. Intelectual orgânico Zurara registra a fusão do aristocratismo e do mercantilismo, ao descrever epicamente a pequena pirataria contra povoados de pescadores e ao verbalizar as razões dualistas daquelas expedições. Os lusitanos aterrorizariam essas populações “por serviço de Deus e do Infante [...] e honra e proveito” de si “mesmos” (Zurara, 1973, p. 201). A Crônica de Guiné constitui panegírico da grande aristocracia, na pessoa do Infante, e justificação da empresa escravista de saque. A glória antes obtida no assalto aos castelos marroquinos era agora conquistada abarrotando as cobertas dos navios de aldeões livres reduzidos à escravidão. Zurara refere-se obsessivamente aos primeiros negreiros enobrecidos nas praias devido a feitos realizados durante o filhamento das populações da costa. A narrativa de Zurara é produto e registro direto do momento em que se organizava o saque escravista da África. Ele próprio lembra ter sido observador contemporâneo à chegada dos primeiros cativos trazidos das costas atlânticas: “[...] que eu, que esta história escrevi, vi tantos homens e mulheres daquelas partes tornados [...].”(Zurara, 1973, p. 46). Pobre na forma e no conteúdo, Crónica de Guiné constitui valioso registro das elaborações ideológicas ensejadas pela organização do tráfico atlântico e, a seguir, pela escravização do negro-africano, para os quais não era funcional a apologia criada anteriormente para justificar o cativeiro do mouro. Talvez o momento de maior expressividade de Crónica de Guiné é a primeira grande repartição, em Lagos, de cativos apenas chegados das costas atlânticas. Este foi também o primeiro registro direto das duras e cruéis condições de transporte dos cativos do tráfico atlântico. Lançarote registra a triste situação física e psicológica dos cativos, ao dirigir-se a dom Henrique, pedindo que sejam desembarcados e levados a um “campo”, “além da porta da vila” de Lagos: “E agora estes mouros, pelo grande tempo que andamos no mar, assim pelo nojo que [...] terão em seus corações, vendo-se fora da terra de sua natureza e postos em cativeiro”, sem terem “algum conhecimento de qual será seu fim; daí a usança que não hão de andar em navios; por tudo isto vem assaz mal corregidos e doentes [...].”(Zurara, 1973, p. 120). Obtida a magnânima licença, no dia seguinte, 8 de agosto de 1444, às portas da vila de Lagos, com a presença do Infante, 235 cativos foram desembarcados para serem quintados, repartidos e vendidos: “[...] muito cedo pela manhã por razão da calma, começaram os mareantes de correger [concertar] seus batéis e tirar aqueles cativos, para os levarem segundo lhes fora mandado [...]”(Zurara, 1973, p. 122). Os berberes capturados na costa atlântica dominariam entre os cativos. Havia também alguns negroafricanos, obtidos nas mesmas regiões, alguns deles cativos dos próprios azenegues 44

[idzāgen]. Ao descrever berberes e negro-africanos, Zurara registra a precoce hierarquização e desqualificação estética e essencial dos cativos, tidos por belos e brutos, por plena e parcialmente humanos, no momento em que se refere aos fatos, no início da segunda metade do século 15. “[...] posto juntamente naquele campo, era uma maravilhosa cousa de ver [...] havia alguns de razoada brancura, fremosos e apostos; outros menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como etíopes [tiópios], tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quase parecia, aos homens que os esguardavam, que viam as imagens do hemisfério de baixo.” (Zurara, 1973). É tão grande a tensão da narrativa da dor e da tristeza dos prisioneiros que ela destoa da profunda aridez geral da Crónica. É possível que Zurara tenha transcrito o relato de alguma outra crônica, como era normal e habitual aos cronistas de então. A. C. Saunders sugere que, eventualmente, a “compaixão” seja de escrito perdido de Afonso de Cerveira “de quem o cronista copiou passagens inteiras” (Saunders, 1994, p. 74). Descrição pungente Segue Zurara em Crónica da Guiné: “Mas qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela campanha? Que uns tinham as caras baixas e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo muito dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos em eles, bradando altamente, como se pedissem acorro ao Padre da Natureza ”. A descrição assinala que os cativos expressavam como podiam o desespero: “[...] outros feriam seu rosto com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quais, posto que as palavras da linguagem aos nossos não pudesse ser entendidas, bem correspondia ao grau de sua tristeza” (Zurara, 1973, p. 122). Ainda maior é a tensão da narrativa ao referir-se ao desespero dos cativos ao serem separados dos familiares, sucesso que o cronista descreve com cores singularmente fortes: “Mas para seu dó ser mais acrescentado, sobrevieram aqueles que tinham cargo de partilha e começaram de os apartarem uns dos outros”. Para porem os “quinhões em igualeza”, obedecia-se à “necessidade de se apartarem os filhos dos padres, e as mulheres dos maridos e os uns irmãos dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde o a sorte levava!” Desesperados, os infelizes, tentavam resistir à separação: “Que tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados!” (Zurara, 1973, p. 123). São raros os estudos e poucas as informações sobre a recepção da ideologia e das práticas escravistas pelas classes subalternizadas em Portugal, quando da organização do tráfico atlântico. A Crónica de Guiné valoriza-se também pelo seu registro da rejeição da população à repartição dos cativos. Em sua História social dos escravos e libertos negros em Portugal, A. Saunders lembra que “o primeiro leilão de escravos em Lagos foi interrompido por gente do povo enfurecida ao ver a separação das famílias” de cativos. Destaque-se que o “povo” referido era possivelmente o trabalhador livre que vivia da “força” do trabalho de suas “mãos” (Saunders, 1994, p. 63). As palavras do cronista não deixam margens à dúvida sobre a profunda indignação popular com as cenas presenciadas. Zurara registra: “E assim trabalhosamente os acabaram de partir, porque além do trabalho que tinham com os cativos, o campo era todo cheio de gente, assim do lugar como das aldeias e comarcas 45

de arredor, os quais deixavam em aquele dia folgar suas mãos, em que estava força do seu ganho, somente por ver aquela novidade. E com estas cousas que viam, uns chorando, outros departindo, faziam tamanho alvoroço, que punham em turvação os governadores daquela partilha” (Zurara, 1973, p. 123). Última região de Portugal a ser reconquistada, o Algarve possuía na época importante população moçárabe, mourisca e muçulmana. Como vimos, os moçárabes haviam adquirido cultura islâmica, sem perder a religião católica. Os mouriscos eram muçulmanos que haviam se convertido ao cristianismo, muitas vezes formalmente. Isto é, eram cristãos novos de muçulmanos (Braga, p. 23). Em Mouriscos e cristãos no Portugal quinhentista, Isabel Braga lembra que até fins daquele século os “mouros viviam apartados da maioria cristã nas mourarias, um pouco por todo o reino, mas especialmente ao sul do Tejo” (Braga, p. 28). Portanto, não é improvável uma identificação étnica, religiosa e lingüística, maior ou menor, de parte da população presente à partilha. Mundos diversos Haveria eventualmente razões sócio-econômicas para a oposição popular, já que a introdução de novos braços servis determinaria a queda dos salários dos jornaleiros e aumentaria os preços dos arrendamentos cobrados pelos proprietários no Algarve. Eventualmente, esses e outros sentimentos contribuíam ao desagrado registrado pelo cronista da distribuição e venda de 235 cativos em leilão público. É interessante registrar que foi clara a diversa aceitação por parte da aristocracia e da população livre do ingresso de mouriscos em Córdoba em fins do século 16. 14 Indiferente aos sentimentos dos miseráveis protagonistas e dos humildes espectadores do triste espetáculo, em “cima de um poderoso cavalo”, o infante dom Henrique a tudo assistia, já que a ele coube o quinto das presas, ou seja, 46 cativos, em parte distribuídos entre a “gente” de seu paço que o acompanhava. Isso porquê, lembrava Zurara, registrando o princípio da expansão do poder feudal cristão pelos suseranos, como forma de expansão do cristianismo, que sua maior riqueza seria, não a obtenção do vil lucro, indigno de um tão grande senhor, mas o “grande prazer na salvação daquelas almas, que antes eram perdidas”. No dia anterior, antes mesmo do leilão, a Igreja, grandes sustentáculo ideológico da empresa feudal e escravista, já recebera sua parte do botim humano: “[...] primeiramente que se em aquilo outra cousa fizesse, learam [levaram] em oferta o melhor daqueles mouros à igreja daquele lugar, e outro pequeno [...] enviaram a S. Vicente do Cabo [...].” O capítulo 26, posterior à descrição da “partilha”, é sobremaneira valioso, já que é dedicado quase totalmente à justificativa da captura, distribuição e uso, em especial dos cativos ali repartidos e vendidos e, em geral, de todos os homens e mulheres filhados pelos portugueses, até a época em que Zurara escrevia. Apesar de se referir à introdução de um carregamento de cativos proveniente da África Branca, em 1444, o capítulo foi certamente escrito em um momento em que a escravidão negro-africana superava já a moura. A primeira linha de defesa de Zurara da escravidão é o bom tratamento dos cativos e a benignidade relativa da nova vida sob a escravidão. Propostas retomadas por quase todos os intelectuais defensores da instituição, durante e após sua vigência. Segundo o cronista, os africanos superariam a tristeza inicial devido ao bom acolhimento que teriam recebido e ao tomarem conhecimento da “grande abastança” da terra em que viveriam, como cativos, verdadeira emancipação da miséria que haviam conhecido, na África, como homens livres. 14

Cf. DONCEL,1983. Apud Braga (1999, p. 34). 46

Zurara propõe que aqueles cativos foram tratados “como servidores livres, como naturais da própria terra”, sobretudo por que se convertiam facilmente ao cristianismo. Lembra que, ao contrário dos mouros habituais, esses prisioneiros não “trabalhavam de fugir”, o que ressalta, salvo engano por primeira vez, no relativo ao africano, o valor da distância entre a terra de nascimento e a de escravidão, na submissão do trabalhador escravizado. Esta proposta foi igualmente retomada ao se defender a superioridade do cativo negro-africano sobre o americano, no Brasil. O cronista propõe que os amos mandariam as crianças filhadas aprender ofícios, possivelmente para tornarem-se ganhadores, e forrariam e casariam os adultos com “mulheres naturais da terra”, entregando-lhes “fazendas” para administrar, numa dissolução das relações escravistas pelas feudais. As “viúvas honradas” perfilhavam cativas ou deixavam-lhes dotes, para bem casarem-se. Esses cenários apologéticos da servidão dos primeiros africanos escravizados trazidos desde as costas atlânticas da África parecem apoiar-se na descrição romantizada da realidade e na generalização de casos singulares. É também crível que, no Algarve, os cativos conhecessem existência próxima da servidão. Zurara registra que nunca viu, “a nenhum” dos cativos do leilão, nos “ferros como aos outros cativos”. Observação que registra as duras condições de vida dos outros cativos (Zurara, 1973, p. 126). O cronista registra a seguir a principal e mais duradoura justificativa do tráfico e da escravidão. Ou seja, o pagamento, com o cativeiro do corpo, durante a breve vida terrena, o imposto necessário para a aquisição da libertação da alma, na vida eterna espiritual. Um argumento válido tanto para o berbere islamizado como para o negroafricano pagão. O homem e a besta Na ocasião que explica a escravidão como necessária à liberdade da alma, propõe que ela era imprescindível para que o cativo – nesse caso negro-africano – se elevasse do estado próximo à barbárie no qual se encontrava empantanado, devido a sua humanidade imperfeita ou parcial. Esse argumento é dirigido essencialmente ao negroafricano. Quando Zurara escrevia sua Crónica, as regiões mais desenvolvidas do mundo islâmico ultrapassavam ainda em esplendor o reino português. E foi, como já assinalado, nesses anos, que o cativo negro-africano começou a superar o cativo mouro, como mão-de-obra escravizada em Portugal. “E assim que onde antes viviam em perdição das almas e dos corpos, vinham de todo receber o contrário: das almas, enquanto eram pagãos, sem claridade e sem lume da santa Fé; e dos corpos, por viverem assim como bestas, sem alguma ordenança de criaturas razoáveis [que vivem pela razão], que eles não sabiam que era pão, nem vinho, nem cobertura de pano, nem alojamento de casa”. Zurara refere-se à razão complementar que demarcaria a irracionalidade das populações negro-africanas, destinadas naturalmente ao cativeiro. “[...] e o que peor era, a grande ignorância que em eles havia, pela qual não haviam algum conhecimento de bem, somente viver em uma ociosidade bestial” (Saunders, p. 67; Zurara, p. 126). No capítulo 55, ao descrever o assalto, em 1445, comandado por Laçarote aos cada vez mais escassos mouros à ilha de Tinder, na volta de pouca frutífera expedição à Terra dos Negros, Zurara retomou a justificava apologética da servidão devido à humanidade incompleta, apresentada por Aristóteles e retomada, por, entre outros pensadores cristãos, Egidio Colonna, autor que conhecia (Zurara, 1973, p. 67). Após relatar o assalto de pacatos nativos que carregavam asnos – “E finalmente foram ali presos por gente LVII [57]; alguns foram mortos e outros fugiram.” –, recrimina duramente os mouros e mouras por fugirem, em vez de irem oferecer os punhos às 47

algemas, devido às vantagens espirituais e materiais que certamente obteriam com a escravidão (Zurara, 1973, p. 283). Propõe o cronista real que, em Portugal, mesmo “em senhoria alheio”, os cativos conheceriam a salvação da alma e a bem-aventurança do corpo. “Oh! e se [...] aquestes [os mouros] que fugiam [aos portugueses] houvera um pequeno conhecimento das cousas mais altas! Por certo [...] aquela mesma trigança que levavam fugindo, trouveram por se vir para onde salvassem suas almas e repairassem suas vidas [...]” Como já vimos, a liberdade material na África seria uma ilusão, considerando-se o caráter bestial das vidas que ali conheceriam: “[...] que pero a eles parecesse que vivendo assim viviam livres, em muito maior cativeiro jaziam seus corpos, considerada a disposição da terra e a bestialidade da vida [...]”. Para Zurara, a grande conquista garantida para o cativo seria a libertação espiritual: “[...] quanto mais a perdição das almas que sobre todalas cousas devera ser mais sentido”. Zurara propunha que, mesmo não ficando provado que a troca da liberdade, na África, pelo cativeiro, em Portugal, garantisse a felicidade nessa vida, as benesses da salvação do espírito seriam reconhecidas após a morte, certamente. “[...] ainda que os olhos corporais não conhecessem alguma parte desta benventurança, os olhos do verdadeiro conhecimento, que é a alma limpa com infinda glória, recebidos em este mundo os santos sacramentos, com alguma pequena de fé, [os mouros] partidos desta vida, em breve poderam conhecer o erro de sua ceguidade.” Destaque-se que não havia argumento contra essa proposta – ou seja, a breve vida material como ante-sala da imortalidade do espírito –, no interior da narrativa cristã, que constituía ideológica do Estado, imposta pela própria força (Zurara, 1973). Diferenças na igualdade As classes escravistas da Antiguidade haviam desenvolvido a proposta da necessidade da escravidão do homem semi-bestial, como uma necessidade natural, social e individual ao ser escravizado. Segundo Aristóteles, a natureza criara as coisas diferentes, na procura da especialização, já que o melhor “instrumento” era o que serve para “apenas” um “mister”, e não para muitos. Assim, seres de essência diversa complementam-se, cada qual desempenhando a função para que era criado, na consecução de fins que lhes eram comuns (Aristóteles, 1957, p. 5). Porém, a hierarquização desses seres obedecia à natureza. Assim sendo, os seres naturalmente mais elevados comandavam os objetivamente menos perfeitos. “A autoridade e a obediência não só são cousas necessárias, mas ainda [...] úteis. Alguns seres, ao nascer, se vêem destinados a obedecer; outros, a mandar” (Aristóteles, 1957). Eram determinações da natureza que o pai dominasse o filho, o homem a mulher, o senhor o escravo. “[...] a todos os animais é útil viver sob a dependência do homem. Os animais são machos e fêmeas. O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. A mesma lei se aplica naturalmente a todos os homens” (Aristóteles, 1957, p. 12). Refutando o direito da servidão nascida da força, em prol da servidão originada pela inferioridade natural, Aristóteles consolidava ideologicamente a ordem escravista, negando o direito de escravização do grego e a validade do bárbaro de emancipar-se pela força. Aristóteles racionalizava a escravidão, ao hierarquizar o desenvolvimento da espécie humana. “Há também, por obra da natureza e para a conservação das espécies, um ser que ordena e um ser que obedece. Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que nada mais possui além da força física para executar, deve, forçosamente obedecer e servir – e, pois, o interesse 48

do senhor é o mesmo que o do escravo.” (Aristóteles, 1957, p. 4). A inferioridade dos “animais domésticos”, que serviriam com “sua força física” aos escravizadores nas “necessidades quotidianas”, materializaria-se nos seus próprios corpos de brutos. “Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor que deles se obtém. [...] tais indivíduos são destinados à escravidão [...]” (Aristóteles, 1957, p. 13). A narrativa aristotélica seria adaptada pelas elites portuguesas que passaram propor que o negro-africano livre, incapaz de desenvolver-se na África, era alçado a um patamar civilizacional superior, como cativo, na América e na Europa. A escravidão seria um quase privilégio. Essa proposta tornou-se uma das mais longevas justificativas dos negreiros e escravistas. Ela chegou aos nossos dias, retomada por ideólogos para justificar historicamente a escravidão e alicerçar as argumentações triviais do racismo contemporâneo e da incapacidade africana à civilização. Sinais de bestialidade Os sinais de bestialidade do negro-africano do litoral eram evidentes. Eles não conheciam os dois mais nobres alimentos – o pão e o vinho –; não se alimentavam com comidas complexas; desconheciam as vestimentas e andavam nus. Sua linguagem era rústica e incompreensível e as suas armas, muito pobres. Ao descrever populações africanas, Zurara relatava: “As mulheres vestem alquices [mantos] [...] com os quais somente cobrem os rostos, e por ali entendem que acabam de cobrir toda sua vergonha, que os corpos trazem todos nus.” Zurara lembra que a nudez era “um das causas” capazes de identificar a “bestialidade” humana, pois os homens que possuem razão seguem a “natureza” “cobrindo aquelas partes” “que ela mostrou que deviam ser cobertas”, ao pôr nelas “cerco de cabelos”, para mostrar que as “queria esconder” (Zurara, 1973, p. 324). Uma visão do encobrimento capilar das partes desonestas do corpo que certamente diminuía o tradicional status nobre da cabeça e que obrigaria os calvos a se cobrirem com chapéus e barretes para não serem acusados de impudícia! Em Portugal, o negro-africano aprenderia o português, superando os falares bárbaros; seria vestido, cobriria suas vergonhas; comeria o pão e beberia o vinho; não mais passaria fome; viveria em casas de homens, e não em tugúrios de animais; submeteria-se a governo legítimo, e não viveria à margem da lei, como as bestas (Saunders, p. 67). Destaque-se que todas essas conquistas eram de realização hipotética, não se materializando, nos fatos, na prática, considerando-se as condições de existência do cativo, no relativo à alimentação, ao vestuário, à moradia, à proteção pela lei. Porém, para o cronista real, o “peor” pecado e maior signo de semi-animalismo era precisamente o fato de que os pretos vivessem em uma “ociosidade bestial”. Ou seja, que se assemelhassem às bestas por não se dedicarem a um trabalho produtivo sistemático, em proveito e sob a autoridade de um senhor. Nas sociedades classistas, é constante a acusação dos segmentos dominantes de que as classes ditas inferiores – escravo, servo, índio, caboclo, operário – não se dedicarem naturalmente ao trabalho produtivo devido a uma constituição ou disposição natural, moral ou social – raça, preguiça, vício, corrupção, decadência, hábitos, etc. Nessas narrativas, trabalho produtivo é apenas aquele realizado em favor das classes exploradoras. Dessa imperfeição supra-histórica, as ditas elites deduziam, no passado, a necessidade da compulsão física ao trabalho e, no presente, da compulsão econômica. Ou seja, que o produtor direto jamais receba uma remuneração que lhe permita uma autonomia em relação à produção compulsória, mesmo relativa. 49

Como apenas assinalado, essa concepção assentava-se na valoração do trabalho produtivo apenas quando organizado para produzir trabalho excedente possível de ser apropriado pelos segmentos sociais exploradores que se compreendem, não como parte dependente, mas como verdadeiros demiurgos do mundo social. A divisão da humanidade em seres humanos plenos e seres humanos incompletos era necessária à justificativa da escravidão, sobretudo de populações que não conheciam o cristianismo e não podiam ser punidas por rejeitá-lo. Sobretudo porque o monogenismo cristão propunha que todos os homens possuíssem alma e fossem irmãos, descendendo de um casal primordial – Adão e Eva. O capítulo 25, dedicado à partilha realizada sob supervisão de dom Henrique, iniciara-se, efetivamente, pelo registro retórico da identidade entre o escravizador e o escravizado, a partir da pertencia a uma mesma humanidade: “Eu te rogo [celestial Padre] que as minhas lágrimas nem sejam dano da minha consciência, que nem por sua lei daquestes, mas a sua humanidade constrange a minha, que chora piedosamente o seu padecimento. E se as brutas animálias, com seu bestial sentir, por um natural instinto conhecem os danos de seus semelhantes, que queres que faça minha humanal natureza, vendo assim ante os meus olhos aquesta miserável campanha, lembrando-me de que são da geração dos filhos de Adão!” ? (Zurara, 1973, p. 122). A visão tendencialmente democrática e comunitarista do unitarismo cristão primitivo, que assentava raízes nas visões cosmológicas de comunidades primitivas do Oriente, antagonizava-se poderosamente com a realidade e a ideologia aristocrática, feudal e escravista cristã da época. Apoiando-se em operações ideológicas efetuadas já na Antiguidade e na Idade Média, Zurara registrava a dissolução dessa contradição através da diferenciação essencial dos aparentemente iguais. O cronista reconhece o monogenismo cristão: “Mas para que falo eu estas cousas, em quanto sei que somos todos filhos de Adão, compostos de uns mesmos elementos e que todos recebemos alma como criaturas razoáveis!” Por destino natural Porém, mesmo sendo todos os seres humanos formados da mesma matéria, Zurara lembra que, por vontade divina, alguns teriam sido organizados em forma imperfeita, necessitando portanto para viverem em sociedade do jugo do homem superior. Retomando a visão aristotélica, já adaptada ao cristianismo por Isidoro de Sevilha, no século sexto, esclarece que essa imperfeição expressava-se sobretudo na incapacidade moral de seguir o reto caminho: “Bem é que os instrumentos em alguns corpos não são tão dispostos para seguir as virtudes, como são outros, a que Deus por graça outorgou tal poderio, e carecendo dos primeiros princípios de que prendem os outros mais altos, fazem vida pouco menos de bestas [...].” Para completar seu argumento, Zurara reapresenta a visão tripartida do mundo [de Platão], mais própria ao republicanismo escravista do que à ordem aristocrático-feudal. A primeira e mais elevada parte da humanidade seria formada por todos aqueles que viviam apenas em contemplação – os filósofos, os sacerdotes, etc. A segunda, seria composta pelos que viviam em sociedade, “nas cidades”, “aproveitando seus bens e tratando uns com os outros”. A classe dos homens livres proprietários de trabalhadores escravizados. A parte imperfeita do mundo social seria formada pelos que “vivem nos ermos, afastados de toda conversação, os quais, porque não hão perfeitamente o uso da razão, vivem assim como bestas”, desde os primeiros tempos, “sem acrescentarem alguma parte de sabedoria em seu primeiro uso”. Mesmo imperfeitos, possuiriam “seus padecimentos, como as outras criaturas razoáveis, assim como amor e ódio e esperança [...].” (Zurara, 1973, p.162). Descendente dos mesmos pais e feitos da mesma matéria, 50

mas originalmente imperfeitos, esses homens incompletos possuíam as principais qualidades humanas – entre elas a de trabalhar. Suas vontades tinham porém que ser comandadas, para viverem na ordem e obterem a salvação, na vida de lá, e a fortuna mínima, na de cá. Como assinalado, uma das grandes qualidades do cativo negroafricano era ter registrada somaticamente – pele, feições, cabelo, etc. – sua inferioridade natural. Algumas justificativas da escravidão registradas por Zurara em Crónica de Guiné tiveram grande sucesso. Outras, ao contrário, não prosperaram. No último caso encontra-se a explicação bíblica do destino dos negro-africanos à servidão. Essa argumentação judaico-mulçumana do cativeiro dos povos da África Negra foi associada à visão cristã-medieval da escravidão como resultado do pecado original. Segundo a Génesis, ao sair da arca, Noé tinha três filhos – Sam, Cam e Jafet. Ao criar a vinha e o vinho, Noé embriagou-se e “despiu-se completamente dentro de sua tenda”. Cam comentou com seus irmãos ter visto o progenitor nu. Ao recuperar-se da esbórnia, Noé amaldiçoou Canaã, filho de Cam, pelo pecado do pai, determinando que fosse “escravo” dos tios15. Na Bíblia, não há ligação dos descendentes de Canaã aos negro-africanos. O cronista real registra, em forma condicional, a proposta da predestinação bíblica dos negro-africanos ao cativeiro: “[...] estes negros, postos que sejam mouros como os outros, são porém servos daqueles por antigo costume, o qual creio que seja por causa da maldição que depois do dilúvio lançou Noé sobre seu filho Cam, pela qual o maldisse, que sua geração fosse sujeita a todalas outras do mundo, da qual estes descendem [...]”. Zurara registra autoridades que corroboravam a tradição bíblica da escravidão negro-africana. Ele lembrava que essa era a posição do “arcebispo D. Rodrigo de Toledo e assim Sosepho, no livro das Antiguidades dos Judeus e ainda Gualtero” como “outros autores que falaram das gerações de Noé depois do saimento da arca” (Zurara, p. 85). Vozes silenciadas Gomes Eanes de Zurara foi intelectual orgânico das classes dominantes lusitanas, na plena acepção gramsciana do temo, no momento em que o comércio escravista estruturava-se como atividade econômica. Ele viveu do trabalho intelectual, retribuindo seus empregadores através da coleta, seleção, sistematização, ampliação, refinamento, etc. das representações do mundo social produzidas pelas elites. Como já assinalado, sua Crónica de Guiné constituiu esforço de servir a dois grandes senhores, já que esforçou para integrar os valores pecuniários do mercantilismo em nascimento às visões de mundo da grande aristocrática medieval. Como também proposto, essa operação gerou as esdrúxulas tentativas de nobilitar os mesquinhos atos de pirataria na costa africana. O caráter precoce da produção literária de Zurara, realizada no momento mesmo em que se estruturava o tráfico escravista atlântico e se iniciava a substituição da dominância do cativo mouro pelo preto, concluída em meados do século 16, permite o acompanhamento, nos séculos seguintes à produção daquele escrito, da mais ou menos feliz trajetória dos argumentos apologéticos que arrola sobre o cativeiro e a exploração do cativo, combatidos, em Portugal, por fracas mas corajosas vozes dissonantes, como as de Fernão de Oliveira e António Nunes Ribeiro Sanches (Oliveira, 1970; Sanches, s/d). Crónica de Guiné registra igualmente que a ideologia escravista da Antiguidade e 15

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da Alta Idade Média foram materiais basilares na conformação das justificativas da escravidão negra dos Tempos Modernos. Crónica de Guiné permite organizar um rol sintético das explicações e justificativas sobre a escravidão, em geral, e do cativeiro dos negro-africanos, em especial. Ao ser escravizado, o cativo, mouro ou guiné, era salvo nas almas e nos corpos. A expansão e a defesa da verdadeira fé justificava portanto a perda da liberdade do infiel ou do gentio, sobretudo porque ele conquistava a possibilidade da libertação eterna. Mas, sobretudo o negro-africano, era também escravizado por constituir ser estruturalmente inferior que necessitava do jugo para elevarem-se à civilização, já que incapaz do trabalho produtivo e da vida organizada, por moto próprio. Na Europa e na América, ele conheceria uma existência material superior. Considerando-se a inadequação do discurso tradicional sobre a servidão do mouro, impunha-se uma nova racionalização que apoiasse a submissão do negroafricano, destinada, em primeiro lugar, aos próprios segmentos portugueses e europeus dominantes e, a seguir, aos extratos livres subalternos e, em última instância, aos próprios objetos desse discurso – os trabalhadores escravizados. Como assinalado, pouco sabemos da receptividade da ideologia escravista pelos segmentos populares. Zurara registra a oposição dos jornaleiros ao leilão de Lagos e o apoio da população lisboeta às rapinagens nas praias africanas. Ainda que não seja claro o sentido que dê para o termo “povo”: “[...] que os clamores do povo eram tão grandes; quando viam levar aqueles cativos em cordas ao longo daquelas ruas, louvando as grandes virtudes do Infante [...].” (Zurara, p. 169). As narrativas escravistas destinavam-se igualmente aos cativos. Em forma crescente, aos tendencialmente integrados à sociedade lusitana através do aprendizado da língua, conversão ao catolicismo e realização de funções mais complexas. Em forma decrescente, aos empregados em tarefas duras, executadas sobretudo através da compulsão física. Também é muito limitado o conhecimento das contra-representações à ideologia escravista pelos escravizados, sobretudo as avançadas diretamente por estes setores (Braga, 1999). Realidades que as classes dominantes lusitanas esforçaram-se para reprimir sua produção, difusão e registro. Referências Bibliográficas ARISTÓTELES, Política. São Paulo: Atenas, 1957. BAKHTINE, Mikhail. Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard, 1999. BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no BrasiL. A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos (1807-1869). Rio de Janeiro: Expressão e Cultura/São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1976. BRAGA, Isabel M.R. Mouriscos e cristãos no Portugal quinhentista: duas culturas e duas concepções religiosas em choque. Lisboa: Hugin, 1999. BRAGANÇA, José de. “Introdução”. ZURARA, Gomes Eanes da. Crónica de Guiné. Segundo o ms. de Paris. Modernizada. Introdução, notas, novas considerações e glossário de. Barcelos: Civilização, 1973. CAPELA, José. Escravatura, a empresa de saque, o abolicionismo (1810-1875). Porto, Afrontamento, 1974. CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada: Língua, história, poder e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2003. 52

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