Zuzu Angel e a Ciência Política: uma análise

June 6, 2017 | Autor: Lucas Eduardo | Categoria: Ciencia Politica, Brasil, Ditadura Militar, Zuzu Angel
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RESUMO

O presente trabalho analisa os princípios da Ciência Política a partir da experiência ditatorial brasileira vivida entre os anos de 1964 e 1985 e abordada na obra cinematográfica “Zuzu Angel”. O objetivo é estabelecer uma releitura crítica do filme capaz de relacionar didaticamente algumas problemáticas do pensamento político, como as relações de poder, a democracia e o autoritarismo. Para tanto, a explanação toma como base os debates desenvolvidos no delongo de semestre na disciplina, bem como a bibliografia utilizada nesta.

Palavras-chave: ciência política; Zuzu Angel; ditadura; Brasil.

ABSTRACT

This article analyzes the principles of Political Science learnt from the Brazilian dictatorial experience between the years of 1964 and 1985 and presented in the cinematographic production called "Zuzu Angel". The objective is establishing a critical rereading of the film which can didactically relate some issues of the political thought, as relations of power, democracy and autoritarism. Therefore, the explanation is based on the debates developed during the classes as well as its bibliography.

Keywords: political science; Zuzu Angel; dictatorship, Brazil.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa debater o fenômeno político-social da ditadura militar que assolou alguns países da América Latina, preponderantemente na segunda metade do século XX. Para tanto, a experiência do caso brasileiro será relatado a partir do filme Zuzu Angel (2006). À luz da Ciência Política, o tema se faz oportuno para a tentativa de identificação de traços recorrentes em regimes políticos de tipo autoritário/ditatorial. Entretanto, é válido ressaltar que a devida compreensão do período ditatorial nos países sul-americanos somente é possível se levada em consideração sua particularidade história, isto é, enquanto realidade única, situada no tempo e no espaço e com elementos próprios para sua existência. Mais importante ainda é que compreendendo o regime ditatorial também se compreende sua antítese: a democracia. Nesse quesito, o filme esboça um importante e didático contraste para o debate do que é a instituição “democracia”. Nos dias atuais, a democracia é uma ideia plenamente aceita e até moralmente defendida pelo mundo ocidental. Entretanto, quando se fala de democracia enquanto regime político, fala-se, sobretudo, da democracia liberal burguesa, nascida e desenvolvida a partir de realidades vividas pela Europa e pelos Estados Unidos e instituída tortuosamente mundo afora. Este enquadramento é por demasiado limitante e incorre no erro de se supor que a democracia é uma ideia pronta, contida em uma fórmula e plenamente aplicável em realidades adversas – dessa ideologia se baseia grande parte da política externa estadunidense. Mais do que isso, tomar o modelo de um sistema político que obteve relativo sucesso, em seu próprio contexto, e elevá-lo à condição de ideal a ser perseguido é uma das grandes chagas do pensamento difundido na academia e pelos meios de comunicação. Nesse quesito, a produção cinematográfica brasileira é satisfatória ao abordar esses dilemas contemporâneos. Zuzu Angel é baseado em fatos reais e, portanto, relata de maneira documental o período em questão. O filme, que leva o nome da protagonista homônima, uma famosa estilista brasileira de reconhecimento internacional perseguida e morta pela ditadura militar em 1976, foi escolhido como objeto de análise por sua capacidade didática e sua multiplicidade de elementos relacionados com a vertente adotada

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neste. Ou seja, o filme é útil na medida em que serve de pretexto para debater não somente o tema em si, mas os principais elementos de uma análise da Ciência Política. Em suma, pode-se afirmar, de modo mais abrangente, que um regime político de tipo ditatorial é aquele que impossibilita a liberdade de expressão, restringe ou anula os meios de controle da sociedade sobre o governo e usurpa as instituições políticas, pois age através do autoritarismo e da arbitrariedade. Entretanto, os regimes ditatoriais que assolaram a América Latina somente podem ser compreendidos à luz do contexto internacional à época. A Guerra-Fria, que a partir da segunda grande guerra dividiu o mundo entre dois grandes polos, o capitalista, representado pelos Estados Unidos (EUA), e o comunista, pela extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), repercutiu uma série de ingerências externas e consequências sociais na política doméstica de países direta ou indiretamente envolvidos com os blocos. No contexto regional sul-americano, mais precisamente no chamado Cone-Sul, representado por Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, as ditaduras militares foram deflagradas como uma reação conjunta à ideologia comunista perpetrada pelo bloco soviético, donde o seu país representante máximo na América Central foi e ainda é Cuba. A Operação Condor, como é conhecida, representou a prática de cooperação existente entre os regimes do Cone-Sul para caçar opositores internos ao regime. Hoje é sabido que o Estado norte-americano não só apoiou como financiou a Operação Condor na América do Sul (Tavares 2012). Embora tais ditaduras viessem a acabar e, os países, a se redemocratizarem, a memória coletiva desse passado negro ainda assola o cotidiano político, social e cultural da região. No Brasil, isso se torna evidente ora pela identificação dos resquícios da estrutura burocrática herdada dos militares, que perpassa o sistema político e educacional, os costumes, as debilidades sociais e a pouca renovação das elites historicamente instituídas no Estado; ora pelos esforços na democracia atual de resgatar a memória do período e de quitar sua dívida histórica com o passado – aliás, como elemento essencial para a redemocratização.

DESENVOLVIMENTO

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Zuzu Angel é uma cinebiografia brasileira de 2006, do gênero drama, dirigida por Sérgio Rezende, com roteiro deste e de Marcos Bernstein, estrelado por Patrícia Pillar no papel homônimo e Daniel de Oliveira como Stuart Jones, filho de Zuzu, entre outros. O filme se ambienta no Rio de Janeiro durante o período em que o Regime Militar brasileiro atinge seu ápice, os anos de chumbo, entre o final da década de 60 e um pouco após a metade da década de 70, e narra a história da famosa estilista brasileira Zuleika Angel Jones (a Zuzu), que passou a se envolver politicamente após o desaparecimento de seu filho, Stuart Edgar Angel Jones, um militante combatente do regime, preso, torturado e morte pela ditadura em 1971. O apogeu de sua carreira como estilista de moda dá-se a partir de 1971, com o desfile na cidade de Nova York, quando ela começa a ganhar visibilidade internacional. A moda de Zuzu é irreverente, diversificado e de forte inspiração na matriz cultural brasileira e vem daí grande parte de seu sucesso nas passarelas. Até então, o período de conturbada efervescência político-social da ditadura não havia sido uma preocupação para a estilista. Paradoxalmente, esse período ficou conhecido como um dos mais violentos e nebulosos de todo o regime militar. Portanto, o primeiro debate levantado pela narrativa é a omissão – e muitas vezes, a cooperação – que as classes dominantes faziam perante o regime militar. A protagonista é a própria simbologia disso: uma estilista de classe média alta, mãe de 3 filhos, cujo trabalho é costurar para suas clientes, todas elas damas da alta sociedade, mulheres de generais, doutores e advogados. O universo da moda é visto aqui, na primeira parte, como atividade alienadora dos problemas sociais do Brasil, ao mesmo tempo em que também refletia o aparente estado de normalidade propagado pelo governo brasileiro interna e internacionalmente. Entretanto, é dentro de casa que Zuzu começa seu choque de realidade. A trama se desenrola a partir da notícia, vinda de um telefonema anônimo, de que seu filho Stuart tinha sido preso na Base Aérea do Galeão/RJ. O informante não tratou Stuart por seu nome verdadeiro, mas por um codinome, Paulo. Os codinomes foram largamente adotados pelos militantes revolucionários que caiam na clandestinidade. Era uma maneira de protegerem a si e a seus familiares e amigos próximos. Também era uma tática utilizada nas sessões de tortura, quando capturados, para dificultar a delação de companheiros de guerrilha.

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A partir de então, Zuzu Angel começa uma luta para obter informações do paradeiro de seu filho. A todos os lugares a que ela vai à procura de respostas, as autoridades dizem nada saber, ou desconversam e dão versões distintas. Esta é uma das características mais desconsoladoras de um regime autoritário: a impossibilidade de acesso à verdade, ou, em outras palavras, a total irresponsabilidade do Estado em prestar contas à sociedade de forma técnica, objetiva e impessoalizada. O filme torna isso claro uma vez que demonstra todo o aparato institucional arquitetado pelo Regime para omitir informação, deturpar fatos e criar versões quando relacionadas à violação aos direitos humanos. Ao fim, o que parecia ser apenas a luta de uma mãe pelo direito à verdade sobre o paradeiro de seu filho – que nesse momento já era tido como morto pela própria – tornouse uma briga contra todo o regime – e, portanto, uma briga extremamente assimétrica e perigosa. Zuzu Angel usou de seu nome e prestígio para mobilizar a opinião pública dentro e fora do Brasil. Distribuiu cartas a personalidades da época relatando as atrocidades da ditadura, parou um voo e discursou aos turistas estrangeiros dentro de um avião prestes a aterrissar no Rio de Janeiro e fez de seu trabalho um meio de denúncia. “Suas coleções são como síntese do espírito nacional - antes, estampas carmenmirandísticas, depois, figurinos frios com imagens de pássaros engaiolados e anjos feridos” (Hessel, 2006). Ademais, Zuzu atingiu avanços políticos concretos. No marco de uma visita do então secretário de Estado estadunidense, Henry Kissinger, a estilista conseguiu furar o bloquei feito pela segurança e entregou ao secretário um dossiê que relatava as atrocidades cometidas pela ditadura. Mais adiante, Zuzu ganha o foco da organização não governamental Anistia Internacional, cuja atuação versa sobre a proteção dos direitos humanos. Mesmo com os esforços notáveis, a imprensa manteve-se calada. Nenhum jornal de grande expressão ousou dar voz à estilista contra o Regime Militar. A perseguição era generalizada. Qualquer pessoa que exercesse o pensamento crítico contra o regime, estudantes, jornalistas, artistas, atores e atrizes, estava suscetível à perseguição política, tortura e morte. Contudo, mesmo assim, há jornais que deliberadamente ajudaram o Regime. É a linha tênue entre a omissão e a cooperação. No desfecho da trama, Zuzu obtém documentos internos do governo, através de militares dissidentes, que comprovam a prática da tortura contra civis e que são necessários para levar adiante sua denúncia na Anistia Internacional. Entretanto, a caminho do

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encontro com um representante da ONG, a estilista sofre um acidente fatal de carro. As tais provas que incriminam o governo são retiradas do seu carro em destroços por um oficial militar. Entretanto, o mesmo não consegue fazer parar a música de Chico Buarque que soava no toca-fitas do automóvel: “Apesar de você/Amanhã há de ser/Outro dia...” 1.

Zuzu Angel e os ensinamentos da Ciência Política Zuzu Angel aponta vários tipos de “fazer política” trabalhados no delongo da disciplina de Ciência Política. Em um primeiro momento, o mais evidente é a política enquanto instituição, identificado neste o regime de tipo ditatorial. É basicamente uma visão institucional da política. Como reação à ditadura, surge a política enquanto atividade subversiva, mostrada no filme através da luta armada de grupos internos dissidentes ao regime. De forma mais generalizada, a obra ainda permite o estudo da política como ideologia – perpetrado através da dicotomia direita/esquerda e capitalismo/socialismo – e da política através das relações de poder na sociedade, nitidamente percebida pelos interesses e jogos de influência tanto de Estados quando de grupos internos ao Brasil. Por fim, tem-se a política em seu viés antropológico, identificado em diversos âmbitos da vida social, como através da expressão artística recorrente no filme.

As instituições políticas da ditadura A ditadura brasileira instaurada pelo Regime Civil-Militar2, que teve início em 1º de abril de 1964, com o golpe das Forças Armadas que destituiu o então presidente João Goulart, e findou em março de 1985, mergulhou o país em seu período mais nebuloso – e cotidianamente presente - da história recente. Não é atoa que a ditadura ainda é um dos temas mais polêmicos e controversos no imaginário popular, uma vez que, ao mesmo tempo, ainda é capaz de seduzir saudosistas e de indignar as novas gerações já nascidas no período democrático. O Regime militar brasileiro é uma derivação do autoritarismo que, por sua vez, é uma forma de governo de tipo autocrático. No caso do Brasil, a autocracia

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“Apesar de você” é uma música de composição de Chico Buarque que faz referência à ditadura militar. Embora muito comumente o período ditatorial brasileiro de 1964-1985 seja fortemente reconhecido na literatura especializada como um Regime Militar, os últimos estudos apontam a importante participação de setores da sociedade civil na aspiração, formulação e manutenção do período ditatorial. 2

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era representada por uma junta militar na qual o presidente exercia a autoridade dúbia de chefe de governo e chefe de Estado. Em contraste com a democracia, a ditadura não respeita os preceitos constitucionais. A partir do golpe de 31 de março de 1964, o governo militar institui uma série de dispositivos jurídicos para o exercício de seu poder: os atos inconstitucionais (dezessete ao todo), que suprimiram gradativamente os direitos básicos de um Estado democrático de Direito, que pressupõe o direito à livre expressão, à defesa, à participação da política pelos cidadãos através da escolha de seus representantes e à garantia de cumprimento dos mecanismos constitucionais desde o indivíduo até seus mandatários. Dentre os métodos empregados, a perseguição política aos opositores e o terrorismo de Estado, levado a cabo pela tortura oficial, são os elementos mais caracterizadores de um regime de natureza ditatorial. Os poderes da república – executivo, legislativo e judiciário –, necessários para a balança de poder no interior do Estado, são suprimidos na tentativa de centralização e controle absoluto pela alta cúpula dos militares. O livre exercício da produção artística e da imprensa é também limitado através da Censura. Por outro lado, a economia foi um dos grandes pilares de sustentação do Regime Militar. Com a abertura de mercado proporcionada pela política econômica e a entrada de produtos importados, aliados a um crescimento vertiginoso no produto interno bruto (PIB) do país, a sensação de prosperidade econômica dissipava os aspectos negativos vindos do âmbito social. É como se a era de ouro da economia brasileira não só compensasse a repressão social como dependesse exclusivamente desse caminho. No filme, o filho de Zuzu Angel, que na altura já havia sido torturado e morto pelo regime, é oficialmente intimado pela Justiça a responder em julgamento por seus atos de subversão. A então modelo brasileira Eike Maravilha, amiga de Zuzu, denuncia a farsa do julgamento aos berros após avistar o cartaz de intimação em um edifício público. A consequência desse estouro, tal qual como aconteceu veridicamente, foi a cassação de sua cidadania e a proibição de deixar o país. Com isso, comprova-se a debilidade de um regime autoritário em promover as liberdades individuais e o respeito à direitos fundamentais presente na democracia. Em uma ditadura, é impossível de se conceber autonomia decisória mesmo do poder mais apolítico dentro da República, o Judiciário.

As relações de poder

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“Política" significaria para nós, portanto, a tentativa de participar no poder ou de influenciar a distribuição do poder, seja entre vários Estados, seja dentro de um Estado entre os grupos de pessoas que este abrange (...). Quem pratica política, reclama poder: poder como meio ao serviço de outros fins - ideais ou egoístas -, ou poder "pelo próprio poder", para deleitar-se com a sensação de prestígio que proporciona. (Weber, 2004: 526)

Teoricamente, todo o Estado é soberano no exercício de suas atribuições externas e possui o monopólio de violência legítima como instrumento de coerção interna. Em ambiente internacional, a ordem vigente entre os atores é anárquica, cabendo aos mesmos a manutenção desse sistema através do direito internacional, dos costumes e da tradição. A atuação dos Estados, por sua vez, dá-se através das relações de poder e força de uns para com os outros. O estopim dessas relações é a guerra, o modo mais radical encontrado pelas partes em questão para expressar-se politicamente (Clausewitz, 2003). Essa visão de Estado e sistema está fortemente relacionada com a teoria realista das Relações Internacionais. Tal corrente tende a avaliar a política de um modo menos institucional do que as teorias de matriz liberal. A política, para os teóricos realistas, está subordinada aos interesses dos mais fortes sobre os mais fracos (Morgenthau, 2003). Zuzu Angel está permeado de atores (subnacionais, supranacionais, internacionais etc.) e de relações de poder (o da mãe sobre o filho; dos militares sobre as instituições; da ONG Anistia Internacional sobre o Estado etc.). A relação de poder primeira é a nível internacional, vinda dos Estados Unidos sobre os países latino-americanos, dentre os quais, o Brasil. Nos dias de hoje, é comprovado o grande envolvimento dos EUA no golpe de 1964 e posteriormente durante a ditadura militar. Mesmo que de modo indireto (nunca se sabe a profundidade dessas relações interestatais), o poder dos EUA é destacado pela sua influência política enquanto potência. Retomando o sentido clássico do poder, é essa capacidade mesma de engendrar no outro sua própria vontade. Nesse sentido, confrontando teoria e prática, pode-se relativizar quão soberano um Estado é diante de uma potência capaz de impor seus interesses na comunidade internacional. Ou então, propor que a soberania, tal qual concebida desde o Tratado de Vestefália de 1648, não pode se confundir com a autonomia decisória desses países. São instituições completamente distintas. À luz do Direito, todos os Estados são igualmente (a redundância é proposital) soberanos.

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Outro tipo de relação de poder presente no filme é entre o governo militar e a igreja e imprensa. Na cena, Zuzu Angel pede ajuda a um padre e a seu poder de influência para tentar obter resposta de seu filho Stuart. O padre não só a nega essa ajuda como tenta abrandecer a visão de Zuzu sobre o Regime. Nesse momento, Zuzu se dá conta de que há um pacto tácito de omissão até na própria Igreja, que supostamente teria de ser solidária e defender o princípio da justiça. O mesmo acontece na cena em que a estilista solicita a um jornal a veiculação de uma nota sobre o paradeiro de Stuart e isto lhe é negado veementemente pelo editor chefe da publicação. O padre representa a Igreja Católica, instituição historicamente conservadora, e o jornal, a imprensa, símbolo da liberdade de expressão no mundo contemporâneo. Em ambos os casos, o poder do regime militar se dá de maneira abusiva (daí sua derivação autoritária/ditatorial) através do instrumento do medo e do estado constante de insegurança e impotência gerado.

A ideologia na política

Se nos dias atuais, o neoliberalismo é uma ideologia triunfante, a muito se deveu ao término da Guerra-Fria e à extinção da União Soviética. A partir da segunda grande guerra, o mundo viveu um grande debate no campo da ideologia política. O que estava em questão na corrida armamentista difundida pelos EUA e pela URSS, para além do equilíbrio de poder propriamente dito, eram, sobretudo, os ganhos em termos ideológicos ao bloco vitorioso. Se um bloco obtivesse um determinado ganho em relação ao outro em dado contexto, demonstrava aos outros países que seu sistema político-econômico era o mais credível. Por outro lado, a perda representaria o fracasso de sua ideologia. Portanto, a ideologia não pertence (somente) ao mundo das ideias, pois que é a base de legitimação sob a qual a prática social e política se desenvolve. Em se tratando do contexto das ditaduras latino-americanas, não se pode dissocialas da efervescência ideológica do período. A ideologia da esquerda e sua reação da direita não só foi instrumento do discurso de terror na mão de governos, como produziu efeitos materiais a partir dela. Todo o período ditatorial, a começar pelo golpe de 1964 que o originou, foi justificado pelo perigo eminente de uma ameaça comunista no país, contra a qual os militares “tiveram” que agir em nome da segurança nacional. Hoje se comprova que a instauração do comunismo no Brasil estava longe de acontecer.

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A expressão artística como prática política

No âmbito cultural, é interessante notar como os períodos ditatoriais estimulam a expressão política e favorecem o surgimento de um dos momentos mais ricos da produção nacional. Tal qual como Zuzu, uma série de artistas utilizam sua arte para protestar contra o regime, gerando assim o subgênero da arte de denúncia. Dentre eles, o filme mostra o cantor e compositor Chico Buarque de Holanda, que é também um dos maiores símbolos na luta contra a ditadura3. Chico tornou-se ainda mais admirado pela genialidade na composição de suas letras. Uma vez que todas as produções artísticas passavam pela aprovação da Censura, os artistas, como Chico, faziam uso de inúmeros recursos estilísticos para camuflar o verdadeiro objetivo de sua obra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a redemocratização, o Estado brasileiro, indo na mesma direção de países como a Argentina, tem se esforçado para a superação do período ditatorial. O acesso à verdade sobre o assassinato de Zuzu Angel só foi possível em 1998, vinte e dois anos depois de sua morte, através da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Assim como proposto por Judith Squires (2012), a política está por toda a parte. Geralmente, as opiniões que versam demasiadamente pela análise institucional da política desconsidera uma série de fatores mais que presentes para além das regras do jogo. Contudo, não se trata de negar o papel protagonista do Estado frente à política. Nesse sentido, a ditadura militar possui uma gramática própria, pois só pode ser compreendida de acordo com a análise dos grupos de interesses internos – que não só instituíram a opressão, no caso dos militares, como também aqueles que serviram de sustentáculo ideológico, a exemplo da classe média em sua “Marcha da Família com Deus, pela Liberdade” (Folha de S. Paulo, 1964) – e as relações internacionais da época.

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A título de curiosidade, Chico Buarque compôs, à época, a música “Angélica”, tema do filme, em homenagem à Zuzu Angel e sua determinação na procura de respostas, pela qual pagou com a própria vida.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Aron, Raymond (2002) Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: Editora UNB.

Clausewitz, Claus von (2003) Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes.

Hessel, Marcelo (03 de agosto de 2006) Zuzu Angel: crítica. Acesso em 09 de dezembro de 2013. Disponível em Portal UOL | Omelete: http://omelete.uol.com.br/cinema/zuzuangel/#.UqM6edJdWJ0

Folha de S. Paulo (20 de março de 1964) São Paulo parou ontem para defender o regime. Acesso em 09 de dezembro de 2013. Disponível em Almanaque Folha: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm Morgenthau, Hans (2003) Política entre as Nações. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 3-45. Squires, Judith (2002) “Politcs Beyond Boundaries: a feminist perspective” in Leftwich, Adrian (ed.) What is politics?: the activity and its study. Oxford: Polity Press, 119-133.

Tavares, Camilo (dir.) (2012) O Dia que Durou 21 Anos. (Documentário). Distribuidora: Pequi Filmes. 77 min.

Toledo, Caio Navarro de (2004). 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. Acesso em 11 de dezembro de 2013. Disponível em Scielo: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102 01882004000100002&lng=en&nrm=iso

Weber, Max (2004) Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. São Paulo: UNB.

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