2016_O ENSINO-APRENDIZAGEM EM TIMOR-LESTE: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE FUTUROS PROFESSORES DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA.

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O ENSINO-APRENDIZAGEM EM TIMOR-LESTE: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE FUTUROS PROFESSORES DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA Mayana Lacerda Leal (Mestranda – PPGECT/UFSC/CAPES1 ) André Luís Franco da Rocha (Doutorando - PPGECT/UFSC/CAPES¹) José Pedro Simas Filho (Doutorando - PPGECT/UFSC/CAPES¹)

Resumo: A partir de uma experiência de pesquisa internacional em associação Brasil e Timor-Leste, este trabalho busca investigar qual a compreensão dos futuros professores de Ciências e Biologia em formação sobre o processo de ensino-aprendizagem. Nossos dados nos mostram que tanto o ensino quanto a aprendizagem, a partir de intencionalidades nacionalistas e cientificistas, são concebidos de forma linear, transmissiva e reprodutivista, em íntima associação com a concepção bancária de educação. Esta constatação traz a necessidade de problematizar junto ao povo timorense a educação como uma situação gnosiológica. Logo, o diálogo se torna um pressuposto essencial à formação de professores, no sentido de buscar desenvolver uma prática pedagógica alternativa e crítico-libertadora. Palavras-chave: Timor-Leste; Formação de Professores; Ensino Bancário Introdução Timor-Leste ou Timor Lorosa’e2 é um país que se situa no sudeste do continente asiático na porção oriental da Ilha de Timor e que, em vários sentidos, aproxima-se do contexto brasileiro. Esses países são fortemente marcados pelo colonialismo e imperialismo presentes nas mais variadas esferas sociais, sendo a Educação uma importante dimensão para se entender a relação de dominação (FREIRE, 2005) existente em ambas as sociedades. Falar sobre a educação em Timor–Leste é considerar uma história de cerca de cinco séculos de resistência e luta por um espaço de humanização. Com base em Martins (2010) o contexto

1

Programa Pró-Mobilidade Internacional Este é o nome do país na língua Tétum que, junto ao Português, foram definidas como línguas oficiais em sua constituição (TIMOR-LESTE, 2002). Entretanto, essas línguas se concentram na capital, na região d e Díli, constando ainda cerca de 16 outras línguas nativas no interior do país (HULL, 2001). 2

histórico da educação timorense pode ser dividido em três períodos históricos: colonial; invasão indonésia e o período educativo atual. Por quatro séculos e meio (1512-1975) o território timorense foi uma colônia de exploração portuguesa. Durante esse período, a educação se fez presente no país através da Igreja Católica, onde missionários da Congregação de Padres Dominicanos, provenientes de Portugal, eram responsáveis por ensinar Português e Matemática à aristocracia timorense e aos filhos dos portugueses que viviam na colônia (MARTINS, 2010). Era uma educação elitizada e descontextualizada da realidade local da época. Tendo em vista que Portugal não priorizou a Educação em Timor-Leste, evidencia-se que o sistema educativo permaneceu estagnado durante quase todo o período colonial, expandindo-se modestamente apenas no período pós Segunda Guerra Mundial, contudo, poucas escolas foram construídas e o ensino manteve seu caráter elitista (MARTINS, 2010). Com a revolução dos cravos em Portugal, Timor-Leste pôde alcançar sua independência em 28 de novembro de 1975. Porém, três dias depois, com a justificativa de bloquear e/ou frear a constituição de um estado comunista, a Indonésia, com apoio dos Estados Unidos e da Austrália, invadiu Timor-Leste, o qual ficou sob seu domínio por 24 anos (GUNN, 2007; HULL. 2001). No período da invasão indonésia o ensino passou a ser obrigatório e ministrado na língua do invasor. Logo, com o objetivo de estabelecer a ideologia e impor o seu regime político, social e cultural, a Indonésia expandiu consideravelmente o sistema escolar de Timor-Leste, agora chamado de província de Timor-Timur, ampliando o número de escolas, o acesso a educação e os níveis de escolaridade do povo timorense (MARTINS, 2010). A partir desse período, a população do Timor-Leste passou a ter a disponibilidade de acesso ao ensino universitário de caráter privado e ministrado por professores indonésios. Entretanto, o percentual de jovens timorenses que ingressavam nesse nível de ensino era muito baixo (MARTINS, 2010). Apesar do avanço sobre o acesso a Educação, Hull (2001) aponta que a dominação indonésia

foi

extremamente

violenta,

descaracterizando

ideologicamente

o

território

timorense. A Escola, enquanto instituição formativa foi um dos espaços de promoção de uma pressão ideológica e política silenciadora da história, cultura, identidade e da autonomia do povo timorense (HULL, 2001). Em 30 de agosto de 1999, em referendo organizado pela ONU a partir de pressões internacionais contrárias à violenta dominação indonésia, aproximadamente 80% do povo timorense optou pela independência do país (MARTINS, 2010). Com a independência, a Indonésia foi obrigada a se retirar de Timor-Leste, destruindo no processo grande parte das

escolas, gerando um colapso no sistema educacional do país. Assim, durante o período de transição, onde a ONU administrou o território timorense, 90% das escolas não funcionavam por falta de infraestrutura física e humana 3 adequada. Com o apoio internacional, este foi um momento de reconstrução das escolas e de reestruturação do sistema de ensino timorense (AMARAL, 2015). Em 2002, Timor-Leste foi reconhecido mundialmente como um país independente e teve instaurada a assembléia constituinte, cuja constituição respaldou a educação como um direito de todo cidadão timorense. A partir desse momento a educação passou a ser comandada pelo governo timorense, que começou a traçar políticas educacionais referendadas em seu plano de desenvolvimento nacional articulado ao sistema econômico mundial. Hoje, o sistema educacional de Timor-Leste busca sua universalização, por isso constitui-se de Ensino Pré-primário de dois anos; Educação Básica de nove anos; Educação Secundária ou Técnico Profissional de três anos e Ensino Técnico e Superior de quatro anos (MARTINS, 2010). De forma geral, assim como também pontua a história educativa de Timor-Leste, as instituições de ensino vêm representando um instrumento para a manutenção e/ou aceitação de um sistema de produção promotor de desigualdades e contradições sociais, econômicas e políticas (GIROUX, 1997; FREIRE, SHOR, 2011; PIMENTA, GHEDIN, 2002). Nessa perspectiva conservadora, reforçam-se as instituições escolares como uma “agência de reprodução social e cultural [...]” (GIROUX, 1997, p.37-38) fortalecendo a manutenção da concentração do poder econômico e político (FREIRE, 2005; 2007). Logo, a Escola teria como função preparar os indivíduos para o desempenho de papeis sociais de acordo com suas aptidões individuais, sendo necessário aprender a se “adaptar” aos valores e às normas vigentes na sociedade de classes, através do desenvolvimento da cultura individual e de sua competência profissional. A partir dessa diretriz técnica 4 , podemos compreender a visão hegemônica de ensino e de currículo escolar que busca uma eficácia técnico-conceitual nos comportamentos objetivos e nos princípios de ensino-aprendizagem enquanto consumo de conhecimentos (GIROUX, 1997), estes justificados a partir de uma concepção bancária de educação (FREIRE, 2005). De acordo com Freire (2005), o processo de ensino-aprendizagem bancário é concebido como um depósito de conhecimentos do professor sobre os alunos, como se os 3

Os professores que atuavam no país até então eram de nacionalidade indonésia e com a desocupação retornaram para as suas cidades de origem (MARTINS, 2010; AMARAL, 2015). 4 A racionalidade técnica é uma forma de pensar e agir sobre os sujeitos e o mundo diretamente relacionada ao gerenciamento dos meios de produção e consumo no maquinário capitalista, ampliando a eficiência com o menor ônus possível na busca de lucro (FREIRE, SHOR, 2011; FREIRE, 2005; GIROUX, 1997; PIMENTA, GHEDIN, 2002).

últimos fossem recipientes vazios, sem nenhum conhecimento. A coisificação e a opressão dos sujeitos, aluno e professor, acabam por traduzir-se em aulas anti-dialógicas, baseadas na memorização mecânica e acrítica do conteúdo histórico-cultural e científico pertencente à elite dominante.

Nessa perspectiva, as escolas teriam como função a transmissão do

conhecimento visando somente à preparação de recursos humanos para o mercado de trabalho, obedecendo às metas econômicas e tecnológicas internacionais. A racionalidade técnica na Escola é silenciadora, pois está mais preocupada com “o que” ou “como” ensinar, do que questionando as relações entre conhecimento e poder ou entre cultura e política. Em oposição ao modelo bancário, Freire (2005) apresenta a educação libertadora, que não é depositária,

mas comunicante.

Um processo

educativo

que caminha em direção à

humanização dos sujeitos – professor e aluno – e que através da práxis político-pedagógica promove a conscientização, ou seja, desenvolve a consciência crítica e a ação transformadora do sujeito sobre o mundo. É por isso que para Freire e Shor (2011), existe uma distinção radical no currículo entre os cursos de formação de professores mais concretos para o trabalho, baseados em múltiplas técnicas, e os que fazem uma reflexão mais crítica. Os autores sustentam que essa distinção não é casual e sim política. Essa intencionalidade administrativa e burocrática impede que o futuro professorado se livre da ideologia dominante, isolando o pensamento crítico de sua formação profissional. Assim, ao reduzir os professores a competências técnicas para o trabalho, também se reduz a capacidade dos mesmos em posicionar-se criticamente, e possivelmente contestar o sistema vigente (FREIRE, SHOR, 2011). Nessa óptica, Marcelo Garcia (1999) ressalta que, geralmente, a formação inicial de professores está isolada do cotidiano escolar, o que leva a uma separação alienante entre os elementos teóricos da formação face aos práticos. Logo, a formação docente é separada em dois mundos, o da teoria, representado pela universidade e o da prática que é vivenciada dentro das instituições escolares (MARCELO GARCIA, 1999; FRANCO, 2002). O autor sustenta que, dentre as diversas orientações propostas, existe atualmente uma hegemonia conservadora dentro dos programas de formação de professores, alicerçando-se na Orientação Acadêmica e na Orientação Técnica, ambas distantes de uma perspectiva de formação crítica. No que se refere à Orientação Acadêmica sobre a formação inicial dos professores, a mesma vem sendo concebida a partir de uma abordagem enciclopédica da docência (MARCELO GARCIA, 1999), o que justifica o foco conteudista no ensino correspondente às áreas disciplinares e à priorização pela qualidade técnico-conceitual do conhecimento. Já na Orientação Técnica, o eixo está centralizado na transmissão de competências e destrezas aos

professores, estas adquiridas a partir de princípios e práticas docentes providas de estudos científicos sobre o ensino dos conteúdos (MARCELO GARCIA, 1999). Com o intuito de estabelecer relações entre as propostas técnicas de formação e a concepção bancária de educação, este artigo objetiva investigar, dentro do processo formativo do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas na Universidade Nacional Timor Lorosa’e 5 , qual a compreensão de ensino-aprendizagem dos futuros professores de Ciências e Biologia em formação. Percurso Metodológico A pesquisa que originou esse trabalho foi financiada pelo Programa Pró-mobilidade Internacional proposto pela coordenação do Programa de Qualificação de Docente e Língua Portuguesa (PQLP)6 à CAPES em 2013. Esse programa se estabelece nas áreas das Ciências e Matemática com vistas a incentivar a mobilidade docente e discente para a estruturação, fortalecimento e internacionalização dos Programas de Graduação, Pesquisa e Pós-Graduação das instituições de ensino superior integrantes à Associação das Universidades de Língua Portuguesa. O programa prevê como ações base a realização de pesquisas no contexto timorense; a proposição e implementação de processos formativos junto aos cooperantes brasileiros do PQLP; a participação acadêmica em grupos ou núcleos de pesquisa e estudo in loco, bem como a participação em eventos das referidas áreas de atuação dos pesquisadores. Esse artigo é parte dos resultados da pesquisa coletiva in loco realizada pelos membros da mobilidade brasileira de 2015, a qual reuniu duas teses e uma pesquisa de graduação sandwich7 , que originaram a pesquisa intitulada “A problematização do Diálogo como uma necessidade à formação de professores em Timor-Leste”. A pesquisa contou com três instrumentos de coleta: (1) um bloco de 12 entrevistas semi-estruturadas (CHIZZOTTI, 1995); (2) um roteiro de observação em sala de aula (LUDKE; ANDRÉ, 1986), bem como a análise do currículo do curso e dos documentos oficiais do Ministério da Educação de Timor-Leste; e (3) 81 questionários abertos (ALVESA Universidade Nacional Timor Lorosa’e é a única instituição pública de ensino superior do país (TIMORLESTE, 2013). 6 Trata-se da concretização de um acordo de Cooperação Educacional Brasil – Timor-Leste, promulgado no ano de 2004 (Decreto nº 5104 da República Federativa do Brasil) e instituído pelo Decreto nº 222, de 19 de novembro de 2004. O PQLP é vinculado à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e seleciona professores brasileiros de múltiplas áreas de conhecimento para o desenvolvimento de pesquisa e qualificação de docentes de diversos níveis de ensino dentro do território timorense. 7 As Teses foram: “Uma articulação entre as potencialidades e os limites do referencial de Paulo Freire para a formação permanente do educador timorense” e “A avaliação educacional como objeto de análise: contribuições para a formação do professor em Timor-Leste”, enquanto que a pesquisa de graduação denomina-se: “Uma análise do processo de ensino-aprendizagem na disciplina de Educação ambiental”. 5

MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999). Como a UNTL ainda não possui um comitê de ética, este trabalho teve anuência do Departamento de Ensino de Biologia da instituição, de forma que todos os sujeitos envolvidos na pesquisa preencheram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para a análise, nesse trabalho fizemos uso dos questionários, dos quais 40 foram aplicados junto à turma de licenciandos do 7º semestre na disciplina de Biotecnologia, e 41 junto aos alunos do 5º semestre na disciplina de Educação Ambiental, ambas do Curso de Ciências Biológicas da UNTL. Devido a uma maior identidade dos estudantes com o Tétum, os questionários foram desenvolvidos nessa língua e traduzidos para o português por timorenses. O instrumento era composto por 27 questões abertas, as quais buscavam levantar informações acerca da dimensão epistemológica, pedagógica e linguística da formação de professores no país. No presente trabalho focamos nossas análises na dimensão pedagógica, mais precisamente na concepção sobre o processo de ensino-aprendizagem apontado pelos licenciandos do referido curso. Dentre as respostas foram selecionadas e analisadas aquelas que eram mais representativas às concepções presentes nos alunos participantes dessa pesquisa. A concepção de ensino-aprendizage m dos licenciandos em Ciências Biológicas: Os licenciandos envolvidos nessa pesquisa são provenientes de todo o país e representam boa parte da diversidade cultural timorense. Em sua maioria (67,5%) estão entre 21 e 23 anos de idade e 69% dos participantes são do sexo feminino. Durante o desenvolvimento do questionário os licenciandos responderam a duas perguntas: “O que é ensinar Biologia na escola?” e “O que é aprender Biologia na escola?”. Destas emergiram categorias e subcategorias de análise 8 descritas na tabela I e II. Tabela I – Concepções de Ensino Categoria Produção de conhecimento Recursos didáticos

8

Subcategoria Diretivo Não-diretivo Relacional Material didático Recurso gráfico Aula prática

Nº de citações 11 2 1 8 6 5

O número de citações apresentadas nas tabelas I e II não representa o total de estudantes participantes, pois como a análise é uma caracterização qualitativa e as pergunt as são abertas, as respostas não se restringiram necessariamente apenas a uma categoria e ou subcategoria de análise, com exceção das categorias divergentes e subcategorias excludentes entre si.

Diversas metodologias Uso de pesquisa Diversas fontes Mapa de conceitos Necessidade formativa do O domínio do conteúdo professor O planejamento pedagógico Reprodução/extensão Conteúdos biológicos Objetivo geral de ensino Transformação/comunicação Desenvolvimento de capacidades

4 3 2 1 39 15 30 8 5 2

Na Tabela I consideramos a “produção de conhecimento” como uma categoria a priori, divergente com três subcategorias excludentes entre si. Suas subcategorias fazem referência aos modelos pedagógicos propostos por Becker (1994) que buscam caracterizar as relações pedagógicas e epistemológicas possíveis entre os professores, os alunos e o conhecimento em sala de aula. Respeitando os devidos limites entre a aproximação do campo epistemológico e do campo pedagógico (ROCHA, PEREIRA, 2015), de acordo com o autor podem ocorrer três modelos distintos: a pedagogia diretiva, em oposição, a pedagogia não-diretiva e um terceiro modelo alternativo chamado de pedagogia relacional, aos quais podem ser aproximados a modelos epistemológicos específicos (BECKER, 1994). Na pedagogia diretiva, a mais presente no ensino de Ciências brasileiro (BECKER, 1994) e no contexto de pesquisa apontado pela tabela I, o professor acreditaria ser possível transmitir seu conhecimento para o aluno, o qual seria considerado uma tábula rasa cujo papel seria apenas absorver os conteúdos transmitidos. Desta forma, similarmente à educação bancária, o ensino e a aprendizagem de Ciências e Biologia estão em polos opostos se relacionando de forma linear e impositiva em que o conhecimento parte do professor e é depositado no aluno. Essa relação nos faz compreender a fala representativa 9 de um licenciando a seguir, que acreditamos adequar-se ao modelo diretivo: “Ensinar Biologia na escola para transmitir a ciência para as novas gerações na escola”. Becker (1994) aponta que essa pedagogia estaria sustentada na epistemologia empirista, onde o conhecimento seria originado apenas pela experiência sensorial advinda da interação do sujeito com o meio físico e social (BECKER, 1994). Para a epistemologia empirista o sujeito é “[...] totalmente determinado pelo mundo do objeto ou meio físico e social” (BECKER, 1994, p.2). Nessa 9

As falas são representativas, pois foram selecionadas a partir da alta incidência de um determinado tipo de resposta às questões analisadas. Desta forma, essas falas são trazidas como a partir da tradução timorense e buscam ilustrar o fenômeno social a que a categoria e subcategorias intentam representar.

perspectiva, o suposto conhecimento científico apontado na fala do futuro professor seria considerado uma verdade inquestionável, ou seja, um conhecimento neutro, objetivo e acabado, devendo por isso mesmo ser transmitido mecanicamente ao aluno que, resignado, caberia somente à memorização e a reprodução passiva de um conhecimento que lhe é externo e descontextualizado. Ao analisar a tabela I podemos perceber que os sujeitos em processo de formação inicial compreendem o ato de ensinar a partir da pedagogia diretiva. Por isso, é compreensível a visão conservadora e tecnicista da ação docente na incidência das demais categorias e subcategorias de análise apresentadas na tabela. Devido ao foco técnico-conceitual e uma formação

ainda

restrita

aos

conhecimentos

disciplinares10

sem

relacioná-los

aos

conhecimentos pedagógicos (MARCELO GARCIA, 1999), induz-se no professor uma dependência tanto dos conhecimentos prescritos nos materiais didáticos, quanto nos currículos impostos. Daí fica evidente a necessidade do professor em formação buscar dominar o conteúdo disciplinar como mostra a fala a seguir sobre o que seria o ato de ensinar: "Para dar aula de biologia na escola nós temos que entender a disciplina biologia e também nós temos que ter o conhecimento máximo da disciplina que vamos ensinar.". Desta forma, no processo pedagógico ignora-se o fenômeno natural, histórico e fluido presente na realidade e focaliza-se nos produtos da ciência, ou seja, no consumo dos conteúdos estáticos, tornando-os o principal objeto de trabalho do professor e a transmissão, seu principal objetivo de ensino, como apontam as falas a seguir: “Eu vou ensinar biologia na escola para seguir os conteúdos que estão escritos nos manuais de biologia.”. “Eu vou aplicar todas as coisas que eu encontra na UNTL-FEAH, Departamento de Biologia. Para aprofundar a implementação da Ciência ou Biologia na geração do futuro.”. Pensamos que devido à recente independência e reconstrução de Timor-Leste, tais falas oriundas de futuros professores timorenses, com frequência sobrepõem acriticamente os conhecimentos científicos aos conteúdos escolares e por isso, os discursos adquirem um tom mesclado entre nacionalismo e o cientificismo ao pensar a ação docente. Tom este que, ao buscar o desenvolvimento econômico e social, acabam por reproduzir o mito salvacionista da ciência. Por isso, compreendemos porque o conteúdo escolar sobreposto ao científico é tão valorizado como objeto de doação ao aluno, pois estaria neste o peso do desenvolvimento do

10

Entendemos que diferentemente dos conhecimentos científicos presentes na academia, os conhecimentos disciplinares são recortes específicos que são desenvolvidos histórica e culturalmente da transposição didática dos conhecimentos científicos para uma disciplina escolar.

país. Logo, devido a sua importância, ele precisa ser memorizado e, para tanto, o conteúdo precisa

estar

associado

a

recursos

didáticos

imagéticos,

motivacionais

e

práticos

(KRASILCHICK, 2008) como aponta a categoria “Recursos Didáticos” na Tabela I. Consideramos que o uso verticalizado desse material é problemático, pois não considera o ato educativo como uma produção coletiva de um conhecimento escolar (FREIRE, 2011). Essa verticalização transforma a ação educativa em mera extensão do docente sobre o aluno impedindo a verdadeira comunicação pautada na dialogicidade entre ambos no e sobre o mundo concreto em que vivem (FREIRE, 2011), como podemos observar na categoria “Objetivo geral de ensino” da tabela I. A educação bancária, que é sinônimo de extensão, é geradora da cultura do silêncio, é alienante e desumanizadora, na medida em que fortalece práticas didáticas desconexas da realidade dos alunos e dos professores, silenciandoos enquanto sujeitos da transformação de si e do mundo (FREIRE, 2011). Desta forma, ao negar o papel transformador dos sujeitos na situação educativa, nega-se também a constituição do conhecimento autêntico e humanizador (FREIRE, 2011). É com essa perspectiva que podemos entender a tabela II a seguir ao apontar a concepção de aprendizagem dos futuros professores de Biologia de Timor-Leste fortemente associada a um reprodutivismo conceitual. Tabela II – Concepções de Aprendizagem Categoria Compreensões de aprendizagem

Recursos de ensinoaprendizagem

Objetivos gerais da aprendizagem

Subcategoria Conteudista Relação teoria e prática Relação afetiva Avaliativo Presença de atividades práticas Pesquisa Manual didático Ausência de atividades práticas Internet Estudo de grupo Trabalhos Debate Seminário Conteúdos biológicos Conteúdos linguísticos Progressão Apresentar a verdade científica Conservacionista Relação com a realidade discente

Nº de citações 26 22 7 3 22 10 7 4 4 3 3 1 1 34 2 2 2 2 1

Sujeito do processo de ensinoaprendizagem

Docente Agentes externos Discente Articulação professor-aluno

21 7 4 3

"Eu aprendi biologia através dos meus professores na escola, pois eles distribuem os conhecimentos básicos da biologia para mim". Como podemos observar pela fala apresentada, o conceito de aprendizagem segue os mesmos pressupostos do modelo diretivo/bancário até aqui discutidos. Nesse modelo a centralidade e “Objetivos gerais da aprendizagem” estariam na transmissão e natural memorização do conteúdo disciplinar da biologia, sendo o Professor o único “Sujeito no processo de ensino-aprendizagem”, como aponta a seguinte fala: “Vou ensinar na escola, dar a matéria aos alunos e depois faço a explicação”. A Biologia enquanto área de conhecimento disciplinar se constitui a partir da história e da cultura humana. Assim, o conhecer enquanto ação tipicamente humana é processo e não produto, contrariamente ao que parece demonstrar a fala a seguir: "Eu aprendo biologia na escola entendendo o que é a biologia e seus conceitos”. Dessa forma, pensamos que a Biologia não é um mero aglomerado de conceitos e informações sobre a vida e seus processos compiladas pelo professor, nas páginas dos livros ou manuais didáticos, mas um conjunto de saberes comprometidos com uma visão de sujeito e de mundo que se constrói e se reconstrói na temporalidade (LEITE, 1995) da sala de aula. Por isso, entendemos os motivos de se articular na “intenção”11 dos alunos, a aprendizagem a partir de atividades práticas, como aponta a categoria “Recursos de ensino-aprendizagem” na tabela. De acordo com Freire (2011), a dialetização da educação como ação gnosiológica deve tornar o processo de ensinoaprendizagem um que-fazer que leva a uma permanente busca concreta da realidade e de si mesmos. Para isso, não podemos negar o condicionamento sócio-histórico autoritário em que vivemos, mas devemos a partir deste, refletir e agir coletivamente no sentido da transformação da realidade que queremos construir. O que-fazer é a união de prática e teoria, portanto é práxis exclusivamente humana, e por isso mesmo, um ato político de posicionamento do sujeito em busca da permanente humanização. Algumas Considerações

11

Apesar de estar presente na tabela, não foram percebidas durante o período da pesquisa, integração

orgânica entre a teoria e a prática nos processos formativos observadas.

Neste trabalho não buscamos avaliar o processo de ensino-aprendizagem em TimorLeste, mas compreender que, assim como no Brasil, a formação de professores possui vastas raízes em Orientações Acadêmicas e Técnicas, refletindo-se um pensamento bancário e desumanizador da prática docente. Acreditamos que, ao nos distanciarmos de nossas realidades locais, podemos compreender o autoritarismo neoliberal que nos rege e que, a partir da abertura de instâncias de diálogo junto ao povo timorense, podemos contribuir mutuamente para o desenvolvimento da educação como prática de liberdade e resistência para ambos os países. É somente a partir de uma perspectiva democrática e comunicativa que ambos os povos podem construir interna e externamente sua real identidade cultural e nacional. Para isso, é essencial discutir e refletir sobre a formação dos professores na construção do diálogo que queremos alcançar. Agradecimentos Agradecemos aos amigos timorenses pelo grande auxílio na tradução dos questionários: Alexandrino Amaral, Aprinisius Ony Castro, Celestina de Jesus, Inês do Carmo, Mariana da Costa e Rufina dos Santos.

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