A desordem e o limite - a propósito da violência em Grande sertão: veredas. Dissertação de mestrado - USP, 1993. Orientador: Prof. José Miguel Wisnik.

July 14, 2017 | Autor: Jaime Ginzburg | Categoria: Violence, Literatura brasileira, João Guimarães Rosa, Grandes Sertão: Veredas
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A DESORDEM E O LIMITE A propósito da violência em Grande sertão: veredas

Dissertação de mestrado em Literatura Brasileira apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Orientador: Prof. Dr. José Miguel Soares Wisnik

Aluno: Jaime Ginzburg

1993

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"Ser capaz de visualizar as possibilidades de autodestruição e, ainda assim, levar até o fim o debate com o desconhecido não é uma coisa banal."

George Steiner, No castelo de Barba Azul

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Índice

NOTA INTRODUTÓRIA

5

PARTE I A FORMA E A MORTE

8

A DESORDEM COMO FUNDAMENTO

10

A CONSCIÊNCIA AMBÍGUA

13

ORIGEM ESCURA

16

ATRAÇÃO E REPULSA

22

VIDA E GUERRA

24

AMIGO E INIMIGO

25

VIDA EM ERROS

30

ENIGMA HUMANO

32

PARTE II NARRAR O ESTRANHO

37

NARRATIVA E VIOLÊNCIA

42

O NARRADOR PRECÁRIO

45

CONTAR ERRADO

49

CONTAR HISTÓRIAS VIOLENTAS

54

4

RIOBALDO E "O NARRADOR" DE BENJAMIN

58

A LINGUAGEM INQUIETANTE

59

ÉPICO E ROMANESCO

73

PARTE III O MAL NA ORIGEM

75

O DEMÔNIO LOUCO

77

RIOBALDO E A VIOLÊNCIA DA JAGUNÇAGEM

80

VIOLÊNCIA E CRUELDADE

89

DO ÓDIO

91

A EXPIAÇÃO

94

DOIDEIRAS E COSTUMES

96

DIADORIM E A GUERRA

97

O SUJEITO E O LIMITE

101

BIBLIOGRAFIA

106

5

Nota Introdutória

Este trabalho consiste numa tentativa de pensar a caracterização da violência em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa 1, relacionando este tema com o modo de construção formal da obra. A idéia que se pretende defender é de que existe um vínculo entre o "punhal atravessado na boca" (p.158) e a "boca" que "não tem ordem nenhuma" (p.19), isto é, entre a sujeição à morte e a descontinuidade da narração. Esse vínculo consistiria, a meu ver, em uma necessidade estética, um fator de coeso interna da obra. O interesse que essa leitura pode eventualmente despertar estaria na tentativa de interligar elementos compositivos aparentemente desconexos ou irrelevantes, que seriam examinados então como construções não casuais que, considerando o todo, expressam uma problemática geral. Isso não significa, evidentemente, que a proposta de leitura tente dar conta de todos os elementos de composição do texto, nem mesmo da maioria deles; ela restringe-se a um pequeno conjunto de elementos, considerado representativo em relação à densidade do texto. O trabalho não é a aplicação de um método de leitura rígido pré-determinado, valendo-se de referenciais teóricos de diversas linhas de reflexão, na medida em que esses referenciais sejam funcionais para a construção dos argumentos. O texto tem uma série de limitações, carecendo de um caráter sistemático e de um perfil metodológico bem definido. A maneira mais adequada de encará-lo é considerá-lo como uma etapa de um trabalho inconcluso, que não se desenvolveu com o fôlego necessário, por restrições de ordem prática que condicionaram a sua execução, e pela complexidade da própria obra, que me fez constantemente reconhecer meus próprios limites reflexivos. Originalmente, o projeto de dissertação de mestrado estava centrado na análise do foco narrativo do romance. A rota foi desviada, felizmente, para uma leitura envolvendo problemas que remetem às ciências humanas. As aulas dos professores Alfredo Bosi e Davi Arrigucci Jr. foram fundamentais por fazerem com que eu tomasse consciência da necessidade de articular o estudo da forma com uma

1

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. 12 ed.

6

reflexão sobre o tema. Porém, a tarefa se revelou mais difícil do que ambiciosamente eu supunha no segundo ano de mestrado, e afinal não foi possível chegar a apresentar um resultado inteiramente orgânico ou encadeado. O caráter descontínuo do texto decorre da descontinuidade que marcou a pesquisa, tanto no sentido de ocupação de tempo como de organização do trabalho de análise e interpretação. Sem seguir uma linha de reflexão única, o trabalho se vale de materiais de procedências e naturezas diversas, que são integrados em função das questões condutoras da pesquisa. Isto é, na medida em que a construção da argumentação exigiu, a leitura absorveu referências bibliográficas que, na verdade, não são passíveis de uma articulação pacífica. Por exemplo, Jean-Pierre Vernant é um crítico de René Girard; o emprego de textos dos dois autores não leva em conta esse tipo de conflito que, se considerado, possivelmente exigiria mudanças no trabalho. Porém, a coerência metodológica foi deixada em segundo plano, tendo-se tentado deixar em primeiro plano a coerência argumentativa, embora esta dependa naturalmente da primeira. Consciente de que interrompi a pesquisa em razão de circunstâncias externas, que nada têm a ver com a fidelidade ao projeto original, que está longe de ter sido executado, apresento o trabalho apenas por considerar que uma etapa foi realizada, e é preciso fazer o registro e a avaliação do que foi feito. Cabe expor duas idéias do projeto original que foram deixadas de lado. A primeira consiste em ver no Grande sertão uma representação do Brasil, uma espécie de síntese da história cultural brasileira, em que estaria enfatizado o papel preponderante da violência na constituição do Brasil, conseguindo o livro resguardar a complexidade desse processo. Outra idéia é de propor uma comparação entre Grande sertão: veredas e obras literárias e ensaísticas do período de 1920 a 1960 que tratam da violência, procurando identificar constantes e variáveis antropológicas e filosóficas, que seriam pensadas tendo como horizonte a problemática da representação da guerra, a elaboração estética do horror absoluto percebido nas duas grandes guerras. Nesse caso, seria considerada a importância da vivência alemã de Guimarães Rosa na década de 40. As duas idéias se voltam para o problema da historicidade do livro, problema do maior interesse para mim, que ficou à margem deste trabalho em seu resultado final.

7

Gostaria de agradecer às pessoas que contribuíram para que este trabalho fosse levado da melhor forma possível. Em primeiro lugar, a José Miguel Soares Wisnik, por ter aceito a orientação do trabalho, pela leitura que fez com atenção e minúcia, e por ter conseguido tornar mais fácil meu período de vida em São Paulo. Aos professores Davi Arrigucci Jr. e João Luiz Lafetá, pela argüição realizada em meu exame de qualificação, em outubro de 1991. Suas perguntas, além de terem aberto caminhos para a execução mais segura do trabalho, fizeram com que eu encarasse o trabalho com maior seriedade. À professora Maria do Carmo Campos, que me iniciou nos estudos literários, pelos caminhos abertos. Aos professores Zenir Campos Reis e Bernd Witte, que contribuíram com indicações importantes. Ao Prof. José Antônio Pasta Jr., pelas conversas. À professora Maria da Glória Bordini, pelos estímulos constantes. Ao Prof. Alfredo Bosi, pela generosidade com que acompanhou e estimulou meu trabalho. Ao professor Celso Pedro Luft e demais professores do Instituto de Letras que permitiram que eu me candidatasse a uma bolsa PICD-CAPES-RG, dando um importante voto de confiança. Agradeço à própria CAPES, que através de sua bolsa permitiu que o trabalho fosse realizado. À professora Cecília de Lara, que me permitiu acesso ao Arquivo João Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Embora este não seja um trabalho a respeito do material do Arquivo, a leitura de partes desse material ajudou a nortear melhor sua execução. Aos amigos que, lendo e comentando partes do trabalho, emprestando livros, conversando sobre o Rosa, me ajudaram a atravessar esse período. A meus pais e minhas irmãs.

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PARTE I

A forma e a morte

"Teu olhar está fixado sobre mim e eu já não existo. Como a nuvem que se dissipa e desaparece, Assim o que desce ao inferno não subirá jamais." Livro de Job

Riobaldo tem uma trajetória incomum. "Como o homem comum é rodeado pela vida, ele é rodeado pela morte"2. A violência assume na jagunçagem uma função decisiva; nem acidental, nem condenável, o ato de matar cumpre nessa forma de sociabilidade um papel efetivamente constitutivo. A consciência rodeada pela morte não tem a mesma disposição da consciência do homem comum. Ela tem de lidar com o risco de uma destruição radical do sujeito. A gravidade do limite último da existência está, em certo sentido, latente no cotidiano. A situação de guerra da jagunçagem, em que a morte é uma possibilidade permanentemente colocada, exige da consciência certas condições de funcionamento particulares. Grande sertão: veredas apresenta o exercício de uma consciência de recuperação de um passado, cujo sentido não é inteiramente compreensível. O modo de essa consciência funcionar no passado, no tempo da jagunçagem, cria determinações para o processo de narração no presente, diante do interlocutor. A forma de narrar envolverá, ambiguamente, andamento épico e substrato lírico, atenção do sujeito a temas do passado e a si próprio no presente, exaltação e melancolia, extenso larga e autocrítica radical. Para Riobaldo, a narração não se reduzirá a uma transmissão de eventos ocorridos. Ela consiste também em um instrumento interpretativo, em uma tentativa de o sujeito conhecer o sentido de sua própria experiência. E é de algum modo uma tentativa de cura, de apontar o Mal e libertar-se dele.

2

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, l984. p.137.

9

George Steiner, discutindo as condições de existência da literatura no século atual, abordou o problema das relações entre linguagem e desumanização. Comentando um texto de Hofmannsthal, Steiner escreve:

"Assim também fez Hofmansthal em sua mais madura e enganosa comédia, Der Schwierige. Enterrado vivo por instantes nas trincheiras, Hans Karl Bühl volta da guerra com uma profunda desconfiança da língua. Usar palavras como se elas pudessem de fato transmitir a pulsação e as dúvidas do sentimento humano, confiar o cerne do espírito humano à moeda inflacionada da conversa social, é enganar a si próprio e cometer uma `indecência' (a palavra chave na peça). `Eu me entendo muito mais quando estou calado', diz Bühl." 3 Riobaldo vive uma situação semelhante. Depois de encerrar sua vida de jagunço guerreiro, ele se dispõe a narrá-la. Essa narração, porém, não é feita com utilização apenas dos recursos comuns da linguagem; para "transmitir a pulsação e as dúvidas do sentimento humano", Riobaldo trabalhará com potencialidades da linguagem poética. A obra vai abolir "as fronteiras entre narrativa e lírica" 4. Esse problema foi examinado por Davi Arrigucci Jr.:

"A língua, analítica e linear, não pode, certamente, suprir as exigências de expresso de universos hipertensos, perpassados de violentas descargas emotivas e sensoriais, como os de Rosa e Gôngora. É necessário refundi-la, deixar correr para dentro do cadinho o manancial das possibilidades lingüísticas, aproveitar ao máximo, na liga poética, as suas virtualidades, em busca da diferenciação expressiva, da fuga ao lexicalizado, ao bem comportado e esteticamente morto." 5 Como explica Arrigucci, representar "universos hipertensos" vincula-se, em Rosa, a uma concepção incomum de linguagem. No caso, uma das bases decisivas dessa hipertensão é o constante enfrentamento da morte. Em Hofmansthal, segundo Steiner, a experiência na guerra conduz a uma problematização da linguagem, que leva no limite ao interesse pelo silêncio. A interpretação de Steiner converge com a reflexão de Walter Benjamin sobre os homens que, em nosso século, voltam da guerra como que destituídos da capacidade de narrar plenamente, "silenciosos", "mais pobres em experiências comunicáveis" 6.

3

STEINER, George. O poeta e o silêncio. In: ___. Linguagem e silêncio. São Paulo: Companhia das Letras, l988. p.71.

4

BOSI, Alfredo. João Guimarães Rosa. In: ___. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, l987. p.486.

5

ARRIGUCCI JR., Davi. Guimarães Rosa e Góngora: metáforas. In: ___. Achados e perdidos. São Paulo: Polis, l979. p.133.

6

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ___. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras

escolhidas, 1). p.115. A mesma idéia reaparece em "O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov", à p.198.

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No caso do romance de Rosa, essa mesma problematização se expressa de outra maneira 7. A fala interminável de Riobaldo é o avesso do silêncio; seu gigantismo sugere, pelo caminho simetricamente contrário, uma desmedida, uma hipertensão. O caráter tenso desse gigantismo é acentuado pelas passagens que, ao comentarem a própria narração, problematizam o sentido de seu teor - "estou contando errado" (p.77); "falo falso" (p.142). Grande sertão: veredas é uma obra que expõe, por sua temática e seus elementos formais, a constituição de uma subjetividade cuja consistência interna é marcada pelo constante risco de morte; uma consciência permanentemente tensionada em sua própria possibilidade de sobrevivência. Essa margem de ameaça permanente torna insustentável qualquer estabilidade neutra do olhar. Sendo assim, a narração não poderia ser do tipo onisciente realista; ela tende às fissuras internas, a uma relativa desordem. A expectativa de continuidade da leitura é constantemente conduzida ao choque por um componente demoníaco que atravessa a obra, criando lapsos, fraturas, vaivéns temporais e recorrências ambíguas, como que para nos lembrar constantemente que a continuidade da experiência é uma ilusão.

A desordem como fundamento

"Seu grande focinho fareja uma coisa que não tem forma. (...) Esse homem precisa pintar o diabo na parede, al fresco, sempre de novo. Não admira, portanto, que sempre de novo o diabo apareça para buscá-lo." Walter Benjamin, A crise do romance

A compreensão de Goethe sobre o demônio serve como referência para pensar a perspectiva do romance de Rosa. O escritor alemão vê essa figura como um ser "despojado de razão", com "uma alegria maligna de destruir", e que "assemelhava-se ao acaso"; e assim avaliou seus poderes:

"Tudo o que, para nós, era limitado, parecia ele poder cruzá-lo de lado a lado; parecia dispor a seu bel-prazer dos elementos necessários à nossa existência, contraía o tempo e 7

Guimarães Rosa escreveu um conto, intitulado O mau humor de Wotan, em que o personagem principal, Hans-Helmut, "o menos

belicoso dos homens, nada marcial" (p.10), é obrigado a ir à guerra. Convidado, na volta, a falar do que vivera, apresenta "um nenhum relato, dito de acurtar conversa" (p.13). A construção parece obedecer à lógica exposta por Steiner e Benjamin. Cf. Ave, palavra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.

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dilatava o espaço; parecia só se comprazer no impossível e rejeitar o possível com desprezo."8 A figuração do diabólico, desde suas origens medievais, se manifesta como desvio, anormalidade ou, em suma, desordem 9. Essa característica pode ser considerada um princípio estético de Grande sertão: veredas. O diabólico nele não se reduz a um aspecto temático, a possibilidade do pacto fáustico, mas se estende à totalidade da estrutura. A expectativa banal de que um narrador apresente uma sucessão de eventos linearmente encadeada é transgredida. A história do jagunço Riobaldo, suas paixões, seu medo e sua coragem, é recuperada em sua memória de forma sinuosa, descontínua e problemática, através de "enredamentos satânicos"

10

.A

narração tem forma demoníaca. O livro é constituído como manifestação de desordem, descontrole, beirando constantemente o desconhecido. A forma literária e os temas se vinculam em profundidade; esse vínculo é dado pela perspectiva

11

que institui em Grande sertão: veredas a desordem como base para a linguagem, o

encadeamento narrativo e a consciência narradora. Tal perspectiva está inteiramente de acordo com a importância, para a subjetividade de Riobaldo, do elemento de desordem que habita de várias maneiras o seu passado. Ela tende também a abalar constantemente a noção de causalidade, que supõe a irreversibilidade da cadeia de acontecimentos, e impõe à História uma lógica própria, como a do enredo tradicional "com seu encadeamento lógico de motivos e situações, com seu início, meio e fim" 12, sustentando a construção de uma ordem objetiva do tempo. Na medida em que a causalidade for problematizada, o universo deixa de

8

GOETHE, apud LUKÁCS, Georg. Condicionamento e significação histórico-filosófica do romance. In: ___. Teoria do romance.

Lisboa, Presença, s.d.p.99. 9 NOGUEIRA, Carlos Roberto. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, l986. Ver as convenções de reconhecimento do demoníaco, ps.49-52. Cabe registrar que, em um estudo sobre José de Anchieta, Alfredo Bosi focaliza a conexão entre a figura do demônio e a representação de um mundo desordenado. Cf. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.77. 10 BENJAMIN, Walter. op.cit. p.165. 11

BOSI, Alfredo. A interpretação da obra literária. In: ___. Céu, inferno. São Paulo: Ática, 1988. p.279.

12

ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In:____. Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, l969. p.84.

12

ser algo explicado; é como se "a Natureza desandasse"

13

. Nesse caso dominaria algo que poderia ser

chamado de o reino do Acaso, ou o Caos; um universo sem leis regulares previsíveis ou controláveis 14. Na Idade Média, segundo Carlos Nogueira, os médicos que encontrassem um caso de uma doença que não conseguissem identificar, compreender ou controlar considerariam o paciente vítima de possessão demoníaca

15

. O estranho, aquilo que não pode ser compreendido, conforme essa concepção, é

demoníaco. A perda do sentimento de uma totalidade ordenada abre o horizonte de um estranhamento constante. Lukács define que "A psicologia do herói de romance é o campo de atividade do demoníaco" 16

. Essa situação corresponderia precisamente ao problema do desenraizamento transcendental. O sentido

da experiência não é algo dado, com base em uma relação entre o divino e o humano da ordem da totalidade, como no mundo da epopéia grega, mas algo buscado, dentro dos limites da precariedade humana. A épica envolve "uma totalidade de vida acabada por ela mesma, o romance procura edificar a totalidade secreta da vida" 17. Conforme Alfredo Bosi,

"O romance, estrutura formada em uma sociedade heterogênea, contraditória e descontínua, procede sem modelos prévios, como toda busca ou arriscada travessia: o seu herói é problemático, pois deve construir para si mesmo - em meio aos acasos e às rupturas da existência - um sentido que, contrariamente ao que ocorre na antiga epopéia, não lhe é dado jamais e poderá fugir-lhe para sempre." 18

A perspectiva demoníaca está associada a algumas características que remontam à noção de poética da destruição, atribuída por Davi Arrigucci Jr. à obra de Julio Cortázar. Essa poética, "oscilante entre o convite do caos e a necessidade da forma" 19, envolve uma tendência ao encontro com o limite da palavra, 13

NUNES, Benedito. Do tempo real ao tempo imaginário. In: ___. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

14

Ao discutir teoricamente o conceito de mal, Paul Ricoeur comenta uma visão de mundo maniqueísta, que faz "da ordem das

coisas uma ordem moral", distingue "os bons dos maus", medindo um "grau de culpabilidade de cada um". Essa visão é implausível em Grande sertão: veredas. O romance aponta para a relativização da dualidade bem-mal; as afinidades entre Riobaldo e Hermógenes impedem que eles sejam considerados, de maneira esquemática, como representantes de forças moralmente opostas. Cf. RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas: Papirus, 1988. p.29. 15 NOGUEIRA, Carlos Roberto. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, l986. p.51. 16

LUKÁCS, Georg. op.cit. p.102.

17

LUKÁCS, Georg. Epopéia e romance. In: ___. Teoria do romance. Lisboa, Presença, s.d. p.66.

18

BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, l985, p.46. Cabe comentar que o uso do termo travessia neste trecho

parece remeter diretamente a Grande sertão: veredas. 19 ARRIGUCCI JR., Davi. Tema e voltas. In: ___. O escorpião encalacrado. São Paulo: Perspectiva, l973. p.27.

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uma tentativa de expressar o que não se presta à verbalização imediata. "Muita coisa importante falta nome." (p.86) "Neste ponto estou tentando expressar algo que não se pode expressar" 20.

A consciência ambígua

"Do ponto de vista da morte, a vida é a produção do cadáver." Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão

Um dos personagens de Grande sertão: veredas, Sô Candelário, afirma, durante a cena do julgamento de Zé Bebelo, que "morrer em combate é coisa trivial nossa" (p.210) 21. A jagunçagem no sertão é um tipo de vida que supõe precisamente essa virtualidade - a possibilidade de morrer - como algo constante e necessário. Reduzida ao trivial, a morte parece algo facilmente aceitável; o bom jagunço não deveria ver nada de inadequado nisso. As condições de sociabilidade e os valores morais da jagunçagem são estabelecidos de modo a tornar isso plausível. A história, porém, não é apresentada por um jagunço comum. O narrador Riobaldo não mantém uma relação simples com a morte. Logo numa das primeiras cenas do livro, num combate, Riobaldo se sente à beira da morte. Sua atitude é ambígua; embora inicialmente afirme aceitá-la com naturalidade, a situação de limite evoca a figura de Diadorim, o que sugere que se trata, na verdade, de um momento não de banalidade, mas de intensidade afetiva radical.

20 21

WITTGENSTEIN, apud ARRIGUCCI JR., Davi. idem. p.27. Cabe registrar a ambigüidade dessa frase. Ela pode ser lida, por um lado, como manifestação de um jagunço de idéias

adequadas a seu papel e que, de certo modo, consiste em um integrante típico do grupo. Por outro lado, os comentários de Riobaldo a respeito de Sô Candelário, à p. 186, levam a crer que se trata de um caso incomum de vontade de beirar o limite da morte. "As favas fora, ele perseguia o morrer, por conta futura da lepra; e, no mesmo do tempo, do mesmo jeito, forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só dava resultado que mandava mortes, e matava. Doido, era?". Essa condição de Sô Candelário pode ser compreendida com base nas idéias de Edgar Morin, comentadas adiante, à p. 90.

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"Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-comigo cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau-d`Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos sô-candelários... Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando coisas divagadas." (p.19)

Justapostas no trecho, as duas atitudes - a de encarar com naturalidade a morte, "sem se importar", como se fosse algo trivial, e a de associá-la a uma imagem de enorme intensidade afetiva, a algo radicalmente decisivo - sintetizam um problema que atravessa o livro. A diferença entre essas atitudes, necessária e logicamente excludentes, mas aqui vinculadas, é como que condicionada por uma realidade cujas leis próprias admitem coletivamente a banalização da morte. Abre-se assim um horizonte de sociabilidade que é ambiguamente construção e destruição, afirmação e dissolução; o comportamento violento dos jagunços pode ser visto como justo e racionalizado, se visto de dentro, considerando os valores da comunidade, ou devastador e injustificável, se visto de fora, considerando as vítimas inocentes, que pagam o preço de, por acaso, não serem parte do grupo armado. O mesmo comportamento violento pode ser interpretado, dependendo do ângulo que o vê, como a serviço de uma razão guerreira justa ou como destruição esterilizante, negativa e arrasadora. Constitui-se assim em Riobaldo uma posição da consciência que admite fissuras entre as duas polaridades, tocando até na hipótese de reversibilidade de posições; a morte não é por definição banalidade, nem limite radical. Riobaldo, como os outros na jagunçagem, "em guerra", esteve exposto constantemente à possibilidade de morrer. Esse componente ostensivo é que acentua, como pressão permanente, o grau de sujeição da consciência ao horizonte de sua própria implosão. Riobaldo tem de encarar "o enigma desta convivência inexplicável com a morte" 22. Da perspectiva de quem está em guerra, a vida pode não ter continuidade no próximo minuto; ainda assim, a consciência tem de se forçar, em estado de alerta, a olhar o mundo, para poder se proteger. A consciência, para sobreviver, é obrigada a olhar o mundo em busca de qualquer sinal remoto de uma ameaça à sua existência, do inimigo à espreita. Excluída a opção pela fuga, o sujeito 22

ROSENFIELD, Kathrin. Figuras da condição humana. In: ____. Os (des) caminhos do demo: tradição e ruptura em Grande

sertão: veredas. Material inédito, no prelo.

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humano guerreiro, para afastar a própria morte, precisa manter a consciência desperta para todo sinal de perigo; ou seja, precisa buscar em seu horizonte as marcas de sua morte próxima. Simone Weil, pensadora que em seus escritos apresenta "a vivência intensa e ao mesmo tempo a contemplação crítica das condições e possibilidades da existência humana"23 expôs,

com clareza

extrema, em um ensaio sobre a Ilíada, a tragicidade do modo de relação entre o sujeito humano e a morte que a condição de vida em guerra supõe.

"Chega um dia em que o medo, a derrota, a morte dos companheiros queridos dobra a alma do combatente sob a necessidade. A guerra, então, deixa de ser um jogo ou um sonho; o guerreiro compreende, afinal, que ela realmente existe. É uma realidade dura, infinitamente dura para poder ser suportada, pois encerra a morte. O pensamento de morte não pode ser suportado senão por relances, assim que se sente que a morte é realmente possível. É verdade que todo homem está destinado a morrer, e que um soldado pode envelhecer dentro de um combate; mas para aqueles cuja alma está submetida ao jugo da guerra, a relação entre a morte e o futuro não é a mesma que para os outros homens. Para os outros a morte é um limite imposto previamente ao futuro; para eles, ela é o próprio futuro, o futuro que sua profissão lhes assinala. Terem os homens por futuro a morte é contra a natureza. Desde que a prática da guerra torna sensível a possibilidade da morte que cada minuto contém, o pensamento se torna incapaz de passar um dia ao que se segue sem atravessar a imagem da morte. O espírito fica então tenso, de uma forma que ele não agüenta senão por pouco tempo; mas cada nova alvorada traz a mesma necessidade; os dias acrescentados aos dias formam anos. A alma sofre violência todos os dias. Cada manhã a alma se mutila de toda aspiração, porque o pensamento não pode viajar no tempo sem passar pela morte." 24 A morte é a "sede do perigo absoluto"

25

. Nela reside uma radicalidade na forma de um termo

intransponível, um limite. Grande sertão: veredas obriga a pensar uma condição de vida em que o perigo é parte da rotina diária. A radicalidade é a regra. "Tudo que é estúrdio comparece em tempo de guerra..." (p.189). As condições de vida em guerra instituem uma instabilidade que se cola ao movimento da consciência. A dinâmica da jagunçagem propõe que a sobrevivência é plausível sob a condição de que se a possibilidade de morrer seja encarada frontalmente. A continuidade da vida, na sociabilidade jagunça, está enredada permanentemente com o horizonte do limite, do perigo absoluto. Consiste nessa ambigüidade em relação à morte um dos principais elementos estruturadores da composição do texto. A passagem da fala de Riobaldo, citada à p. 14 , desemboca em um comentário 23

ROSENFELD, Anatol. Estrutura e problemas da obra literária. São Paulo: Perspectiva, 1976. p.55.

24

WEIL, Simone. A Ilíada ou o poema da força. In: ___. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1979. p.333. 25 BENJAMIN, Walter. op.cit. p.128.

16

sobre as condições de narração. A imagem da boca sem ordem é uma das várias marcas de autoconsciência da narração ao longo do texto, nas quais Riobaldo problematiza sua forma de encadear os fatos. O livro não apenas tem uma forma de narração relativamente fragmentária, como incorpora a ela comentários sobre essa fragmentação. Grande sertão: veredas elabora esteticamente uma representação do homem humano em termos de uma tensão fusional entre continuidade e limite, de modo que presenciamos uma forma do viver humano que assimila sua própria destruição como algo plausível.

Origem escura

"Criatura gente é não e questão" (p.32), diz Riobaldo, logo no início de Grande sertão: veredas. Essa definição propõe que se pense o homem segundo um conceito que afasta a caracterização puramente positiva - como espécie boa, equilibrada, em harmonia com o mundo. E problematiza também a idéia de que o sujeito humano tenha uma constituição inteiramente compreensível, de natureza transparente. Lançado à negatividade e à interrogação, o "homem humano" de Riobaldo erra, erra "de toda conta" (p.15). As palavras rimadas "não" e "questão" evocam sonoramente o termo recorrente "cão", o demo, força negativa, submetida à interrogação persistente. O componente demoníaco caracteriza um "homem dos avessos" (p.11), homem visto pela inversão, pelo lado oculto. A emergência desse lado oculto coloca em questão a existência de uma substancialidade estável positiva na constituição humana 26. Trata-se de uma concepção da condição humana marcada pela negatividade e pela interrogação. Riobaldo diz: "Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.

26

Tema afim é abordado no conto de Rosa "O espelho". O narrador deste conto expõe a um interlocutor uma série de episódios

vividos, em que procurava visualizar em um espelho sua "vera forma" (p.68). A busca dessa imagem verdadeira se teria iniciado a partir de uma visão em um espelho de lavatório público, em que teria aparecido subitamente uma imagem terrível, repulsiva, que o protagonista reconhece como uma imagem própria. A partir do choque, é iniciada uma complexa busca em forma de pesquisa, com a criação de métodos de análise e estratégias de olhar com o fim de chegar a um eu fundamental, o "eu por detrás de mim" (p.67). ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 14 ed.

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Verdade maior. É o que a vida me ensinou." (p.20-1). O homem é caracterizado pelo movimento de mudança, por uma condição processual, pela instabilidade, pela abertura. A experiência parece se desenvolver sem uma substância fixa que defina inteiramente suas leis e seu significado. A matéria do Eu - um tema caro a Fernando Pessoa - se apresenta como "matéria vertente", que desliza em "travessia". A condição processual torna a relação do sujeito com o mundo e consigo mesmo algo profundamente marcado pela incerteza, pela ambigüidade e pela abertura ao paradoxo. O pensamento assume epistemologicamente as propriedades antropológicas do sujeito - disposição à mudança, possibilidade de trânsito pelos "avessos". Os "avessos" do pensamento afirmativo articulado (incerteza, ambigüidade) vão pontuando a busca reflexiva de compreensão, condicionando sua sustentação. O pensamento pode passar por definições que vão do paradoxo - "Tudo é e não é" (p.12) - à tautologia - "Eu sou é eu mesmo" (p.15) -

ao longo da edificação de um discurso denso que é ao mesmo tempo expresso e tentativa de

interpretação. Inclusive em relação à sua capacidade intelectual Riobaldo é ambíguo. Ele vê em si mesmo um pensador fragilizado e um pensador hábil. A certa altura lê-se: "Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal" (p.14). E na página seguinte, lê-se: "O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!" (p.15). O discurso ambivalente de Riobaldo, monólogo e diálogo, relato e reflexão, finito e aberto ao infinito, épico e lírico, se abre a partir de uma necessidade, verbalizada de maneira interrogativa. "Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre para arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?" (p.33). A fala como forma de libertação do mal que reside dentro do eu: essa concepção do discurso como confissão, como expiação, tem uma função estritamente religiosa, a purificação. Aqui se encontram a negatividade - o erro, o mal consciente, a desordem - e a interrogação - a ausência de verdade, a dificuldade de compreender, o defrontamento com o mistério, a necessidade de iluminação. "Treva toda do sertão, sempre me fez mal" (p.27). O mal se associa à escuridão, ao não poder ver. A origem de Riobaldo é assim: "escuro nascimento" (p.35), por falta do pai. A origem é figurada como falta

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e enigma (27). Ao contrário, Diadorim sabe quem é seu pai. Joca Ramiro: "Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens, ele tinha uma luz, rei da natureza" (p.32). Joca Ramiro, divinizado, sobrehumano, é um ser iluminado. "Deus no Céu e Joca Ramiro na outra banda do Rio" (p.30). Diadorim é filho de luz. Riobaldo, filho do escuro. A aproximação entre os dois, figurada como associação de contrários, cria um tipo de envolvimento singular, propriamente impensável para os padrões sociais e afetivos vigentes. "E veja: eu vinha tanto tempo me relutando, contra o querer gostar de Diadorim, mais do que, a claro de um amigo se pertence gostar" (p.30). A inefabilidade da situação lhe dá contornos de negatividade (transgressão) e mistério. O amor é enigma. "Coração da gente - o escuro, escuros" (p.30). Assim como a treva do sertão perturba, também o escuro do coração. O "escuro nascimento" e o "escuro" do coração guardam uma analogia. Assim como não saber quem é o pai inscreve trevas na origem de Riobaldo, também não saber pensar de onde vem a atração estranha traz escuridão. Nos dois casos, temos mistérios em torno de referências de origem. No primeiro caso, no sentido mais literal de uma origem biológica incógnita. No segundo caso, em um sentido mais figurado, trata-se da fonte de motivações para o comportamento erótico estranho (28). A origem da atração de Riobaldo por Reinaldo é um mistério fundamental. De onde viria o escuro do coração, o impensável, aquilo que é estranho aos parâmetros de compreensão da experiência, mas ao mesmo tempo não apenas é interior à experiência como é decisivo para sua constituição - tal enigma é fundamental por se imbricar com vários outros. Uma questão primeira no sentido cronológico - quem é o pai - é familiar a essa outra, primeira no sentido afetivo - de onde vem esse amor. A imagem do escuro reaparece quando Riobaldo se diz satisfeito com seu não saber - "Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida?" (p.234-5). O escuro é condição para presenciar luzes insólitas, demoníacas (conforme a imagem do dividido), que só de dentro dele podem surgir. O erotismo estranho causa "duvidação, ranço de desgosto". Mas a avaliação moral no prevalece: "Só que meu coração podia mais. O corpo não translada, mas muito sabe, adivinha se não entende." (p.26). O 27

A reação de Riobaldo ao ouvir dizer que seu padrinho era na verdade seu pai acentua a relação tensa e negativa de Riobaldo

com esse assunto. 28 É possível, guardadas as proporções, associar esta imagem, a origem escura, à idéia do caos como origem, cara à mitologia grega (cf. Teogonia de Hesíodo). Nos dois casos, há uma construção informe, desordenada, escura (isto é, imponderável), que é fundamento de uma série de desdobramentos.

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corpo tem um saber próprio, que passa ao largo das operações da consciência (29). Como a origem da paixão é "escura", isso leva a que se extravase por formas "escuras" - indiferentes ao controle da consciência. A imagem que sintetiza isso está à p.189: "Diadorim e eu, a sombra da gente uma só uma formava." A fuso dos corpos, impensável nas condições reais de vida, ocorre, como que em segredo, nos escuros, nas sombras. Esses dois elementos ajudam a pensar uma idéia mais geral, que é a de que a origem das coisas possa estar marcada por uma negatividade. O próprio discurso de Riobaldo tem sua origem num termo "Nonada" - que parece trazer dupla negação, por reunir "no", que constitui parcial ou totalmente marca de negação em diversos idiomas, e "nada", palavra portuguesa com traço semântico de negatividade. Ocorre que essa palavra é dicionarizada com um significado que ironiza seu impacto evocativo e sua posição de abertura de um romance de cerca de 500 páginas: "coisa sem importância", "insignificância". Embora esse significado não corresponda à idéia de "nada", ele é negativo no sentido de consistir em um ponto de partida supostamente "ínfimo" - "insignificante" - para o desdobramento de substratos "elevados" - metafísicos, religiosos, épicos - em uma fala de tamanho nada ínfimo. "Nonada" é uma negação do quilate do sentido de toda a obra; no entanto, é precisamente sua origem. Se pudermos aproximar o tema do "escuro" e a noção de "insignificância", reduzindo-os a um termo mais genérico, temos como traço comum a negatividade. A origem do fio de narração, a origem da vida e a origem da paixão estão todas marcadas por uma base de negatividade. Nesse sentido, cabe examinar um trecho do romance que consiste, em termos de linearidade temporal, na primeira vivência de Riobaldo exposta em detalhe (30). Considerando que a linguagem empregada por Riobaldo no momento da narração se relaciona com o movimento de um olhar que transita pelo conjunto das vivências passadas, e portanto que alguns termos podem apontar para mais de uma referência, cabe comentar um termo desta passagem. A palavra "adivinha" pode ser lida de pelo menos duas maneiras. Uma faz pensar que o corpo "adivinhava" a mulher que se travestia de homem - sugerindo, assim, a idéia de uma heterossexualidade constitutiva da atração, que fosse aparentemente "desmentida" pela convivência cotidiana dos dois companheiros. Outra leitura conduz à idéia de que o corpo "adivinhava" a viabilidade e a naturalidade do homoerotismo, indiferentemente à racionalização e aos julgamentos morais. O corpo "adivinhava" assim a reciprocidade do interesse de Reinaldo/Diadorim. A ambivalência do significado do termo pesaria ao se avaliar a autocompreensão de Riobaldo, como é que ele se vê. 29

De todo modo, fica claro que o jagunço tinha uma certa percepção, para além do estranhamento da consciência, que aceita inteiramente a afetividade de e para com Reinaldo, sendo então, pelo menos pensando no caso desta frase, irrelevante uma definição do sexo de Diadorim. 30 Cabe lembrar que a primeira lembrança de Riobaldo em termos de cronologia linear não é essa, e sim o ódio de Gramacêdo (p.35); mas a primeira lembrança apresentada como história completa é a dos meninos. Neste caso também há um vínculo entre

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Ao apresentar essa passagem, Riobaldo manifesta ter uma recuperação precisa do que está na memória - "Não esqueci de nada, o senhor vê" (p.82). Esse trecho é o que conta a estória do encontro dos dois meninos; ele condensa e articula, exemplarmente, vários dos principais elementos temáticos do romance (31). O encontro dos dois meninos é apresentado como conseqüência de antecedentes sombrios. Riobaldo vai ao porto por causa de uma promessa de sua mãe, que deve cumprir por ter sido curado de uma doença. Reinaldo vai para a compra de arroz, que é necessária em razão da recente morte de sua tia. É algo negativo vivido no passado que faz cada um deles ir àquele porto. O passeio na canoa é marcado pela instabilidade. O seu balançar provoca em Riobaldo um forte medo da morte. "Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo!" (p.83). Esse medo, porém, se mistura com a perturbação erótica provocada pela figura do Menino. À p. 82, aparece: "Eu queria que ele gostasse de mim."; a atração pela segurança e pelo silêncio do companheiro estimula em Riobaldo a entrega ao envolvimento. O erotismo cresce, até gerar o envergonhamento, que surge em razão de ter consciência de, espontaneamente, estar-se comportando de forma inadmissível para alguém como ele.

"Aqueles olhos então foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele, no profundo, desse a minhas carnes alguma coisa. Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. - `Você também é animoso...'- me disse. Amanheci minha aurora. Mas a vergonha que eu sentia agora era de outra qualidade." (p.84) O toque de mão, que faz com que Riobaldo atente para seu próprio corpo - "minha pele", "minhas carnes" - aparece à p.34, quando os personagens são adultos, em uma cena em que a paixão de Diadorim por Riobaldo tem revelada sua força, com a frase "(...) se você algum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter a tristeza mortal...". Tendo descido da canoa, os meninos são encontrados por um rapaz que, entendendo que eles estivessem envolvidos sexualmente, fala que `também quer'. O Menino então faz gestos femininos sedutores, e em seguida ataca o mulato com a faca. origem e negatividade. O ódio a Gramacêdo - sentimento associado à negação, à rejeição - é o que Riobaldo expõe como sentimento mais remoto. 31 Não se trata aqui de ler o trecho como causa de que os episódios da maturidade sejam efeito; o livro não autoriza essa leitura. O caso é perceber como se enredam questões que se tornarão centrais com o desenvolvimento da narração.

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Depois disso, ao voltarem, eles têm uma conversa, em que Riobaldo pergunta: "Você é valente sempre?" (p.85). A resposta de Diadorim é: "Sou diferente de todo o mundo." (p.86). Riobaldo então manifesta ao interlocutor da narração: "E eu não tinha medo mais". E diz que "o sério (...) da estória toda" consiste precisamente nessa transformação. Ao final dessa parte do relato, Riobaldo indaga: "Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino?" (p.86). Esse primeiro encontro - e primeira cena narrada, de acordo com o tempo linear - envolve o enfrentamento do inimigo pela violência (o mulato), a sujeição à morte (a travessia do rio na canoa instável) e o erotismo estranho (a atração pelo companheiro). Esse processo iniciatório tem como resultado uma aprendizagem: o enfrentamento do medo, que cresce e depois se dissolve num esgotamento. A atração pelo Menino "diferente" vai criar dentro de Riobaldo um vínculo, que se manterá até a velhice, entre o estranho e o interior. Ele de alguma forma percebe em si disposições, comportamentos e emoções estranhos a seus padrões compreensivos. A percepção de que falta nome para as coisas importantes, mencionada logo após o relato, à p.86, marca esse lapso entre as condições de assimilação e compreensão da experiência e o teor dos acontecimentos. A linguagem se mostra insuficiente, inadequada para expor em que consiste o sentido desses acontecimentos, dessa travessia de um rio. A história, como um pequeno conto dentro do romance, aponta para a idéia de que a atração de Riobaldo por Diadorim esteja fortemente ligada ao despreparo para a morte. A insólita valentia do Menino, capaz de se mostrar firme e carinhoso, seguro e traiçoeiro, sereno e dissimulado, fascina Riobaldo porque o companheiro parece estar livre desse despreparo. A dimensão mítica, superior à condição humana comum, atribuída a seu pai - "Meu pai é o homem mais valente deste mundo" (p.83) - é a base para que o Menino, mimeticamente, se comporte como "diferente de todo o mundo", isto é, alguém não fragilizado pelo despreparo para a morte (32).

32

Essa atitude mimética do Menino se desdobra, mais tarde, na condição travestida de Maria Deodorina, que procura ser tratada

como um homem jagunço como o pai, e ainda, no momento de vingança final, na posição substitutiva que assume no combate; para vingar seu pai, Diadorim se entrega à própria destruição, no momento em que elimina aquele que o havia assassinado, Hermógenes. A grandeza que Riobaldo vê em Diadorim, e que este vê miticamente em seu pai, consiste em saber como encarar e enfrentar a possibilidade de morrer.

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A atração de Riobaldo por Reinaldo envolve o fascínio da possibilidade de dominar o despreparo para a morte. A figura da canoa como que sintetiza as condições de travessia de Riobaldo ao longo de todo o romance: uma instabilidade, uma dificuldade de lidar com o medo, misturadas a um prazer erótico impensável. A "coisa importante" que não tem nome tem a ver com essa espécie de superação dos limites que o Menino propõe, com que Riobaldo não pode lidar facilmente. Porém, a trajetória junto ao Menino é tensa, dialetizando atração e repulsa. Riobaldo grita, sofre com o medo, se interroga sobre o companheiro e sobre si próprio, e se envergonha do que sente. Como em sua maturidade, ambiguamente, Riobaldo sente prazer na companhia de Reinaldo, mas não aceita isso com serenidade, sendo envolvido por emoções instáveis. Tendo na infância experimentado com erotismo a exposição à destruição, Riobaldo passa na maturidade a viver de maneira demoníaca; isto é, cai em um modo de ser que não cabe em normas rígidas, nem é passível de descrição pelos parâmetros comuns, e que se constitui em termos de negatividade e incerteza.

Atração e repulsa

"Oh, como tudo é incerto. E no entanto dentro da Ordem. Não sei sequer o que vou te escrever na frase seguinte. A verdade última a gente nunca diz. Quem sabe da verdade que venha então. E fale. Ouviremos contritos." Clarice Lispector, Água viva

Em Crepúsculo vespertino, de Baudelaire, o sujeito lírico contempla a noite, O soir, aimable soir, e nela observa personagens, movimentos, tensões. Depois de longa e detalhada exposição, volta-se sobre si próprio

Recueille-toi, mon âme, en ce grave moment,

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Et ferme ton oreille à ce rugissement. (33)

como se quisesse se afastar totalmente do que contemplava. Essa ambigüidade - atração e repulsa pela Noite e suas figuras - tem, em certa escala, afinidade com a problemática de Riobaldo em Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa. O livro apresenta um personagem que revê seu passado de forma descontínua e intrincada. O relato é fragmentário em vários níveis de sua construção. Longe de ser uma figura constante em sua caracterização, Riobaldo sofre alterações e vive instabilidades, tanto no que se refere ao passado revisto, como ao tempo presente da narração. Um dos modos de tentar explicar essa inconstância e seu significado é examinando a relação de Riobaldo com a violência. É possível perceber que esse aspecto tão fundamental de sua experiência está longe de ser encarado de maneira rígida ou unilateral por ele. Tal como a Noite baudelairiana, a violência roseana é um horizonte em relação ao qual o sujeito se coloca de forma visivelmente ambígua, vivendo atração e repulsa. A abordagem do tema dissolve toda possibilidade de um juízo maniqueísta que reduzisse em oposição simples a paz ao Bem e a violência ao Mal. Em seu presente, Riobaldo é alguém que tem certos traços pacifistas, mas conserva o gosto pelas armas. No que se refere a seu passado, Riobaldo é apresentado ora como alguém que sente repulsa pela violência, ora como alguém que não quer outra coisa senão matar. A ambigüidade de Riobaldo no que concerne à violência se articula, dentro da obra, com elementos temáticos e formais. Walter Benjamin considera que a ambigüidade é "estigma do demoníaco" (34). A construção ambígua da consciência do narrador-protagonista institui uma perspectiva demoníaca, que condiciona toda a estruturação da obra.

33

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, l985. Tradução de Ivan Junqueira: "Â noite, amável

noite, (...)"; "Recolhe-te, minha alma, neste grave instante, / E tapa teus ouvidos a este som uivante". 34 BENJAMIN, Walter. op.cit. p.132.

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Vida e guerra

"Felícia, apenas a mais jovem, clamou, falando ao pai: -`Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos-e-baixos?' Não haverá, para a gente, algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança?" E ele, com muito caso, no devagar da resposta, suave a voz: `Faz de conta, minha filha... Faz de conta...'" Guimarães Rosa, Nada e a nossa condição

"Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim no seja." (p.175) A analogia insólita é decisiva dentro do romance. Definir a vida com termos idênticos à definição da guerra supõe uma implicação profunda dos dois termos. Essa implicação envolve uma espécie de espelhamento explicativo, que leva ao impasse: a guerra existe em razão de a vida ser como é ou é o contrário? Essas alternativas são retóricas, pois o impasse não pode ser resolvido. A analogia se baseia nos "tontos movimentos". A imagem da "tontura" enfatiza o traço descontrolado e desordenado da experiência. A paz em "estado puro" corresponderia a uma trajetória de movimentos "retos", controlados e inteligíveis. Essa imagem tem afinidade com outra, que expressa o modo de funcionamento da consciência no âmbito da guerra: "...na desordem de mente do alvoroço..." (p.165). Dentro de um campo de combate, "alvoroço", a vida mental está sujeita à desordem. Esse aspecto converge com a noção de que a vida na jagunçagem tem uma caracterização demoníaca.

"E mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?" (p.11)

"Guerra diverte - o demo acha." (p.48)

No final da primeira passagem, as duas expressões interrogativas acentuam a instabilidade que marca a vivência da própria jagunçagem. A estrutura condensa interrogação e antítese, intensificando o dilema que envolve a relação de Riobaldo com o assunto da proposição - o teor demoníaco (descontrolado, desordenador) inerente à vida jagunça.

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A segunda passagem coloca o problema do prazer associado à violência e ao sofrimento (35). De acordo com os trechos, se o fundamento da jagunçagem for o demoníaco, estaria instituída uma forma de sociabilidade cujo horizonte é o puro interesse pela destruição, envolvendo ou não razões supostamente racionalizadas, cuja formulação no fundo seria irrelevante. Considere-se a seguinte passagem, em que Riobaldo ouve Zé Bebelo:

Zé Bebelo: "- `Sei seja de se anuir que sempre haja vergonheira de jagunços, a sobrecorja? Deixa, que, daqui a uns meses, neste nosso Norte não se vai ver mais um qualquer chefe encomendar para as eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça, só para tudo destruírem, do civilizado e do legal!' Assim dizendo, na verdade sentava o dizer, com ira razoável. A gente devia mesmo de reprovar os usos de bando em armas invadir cidades, arrasar o comércio, saquear na sebaça, barrear com estrumes humanos as paredes da casa do juiz-de-direito, escramuçar o promotor amontado à força numa má égua, de cara para trás, com lata amarrada na cauda, e ainda a cambada dando morras e aí soltando os foguetes! Até não arrombavam pipas de cachaça diante da igreja, ou isso de se expor sacerdote nu no olho da rua, e ofender as donzelas e as famílias, gozar senhoras casadas, por muitos homens, o marido obrigado a ver?" (p.102) O julgamento moral proposto por Riobaldo - "a gente devia mesmo de reprovar" - incide sobre essa imagem de crueldade injustificada. Nesse caso, Riobaldo vê a jagunçagem com o olhar do outro, de fora, e não com critérios de um jagunço em ação.

Amigo e inimigo

Yves Michaud afirma, em seu estudo sobre a violência, que "os indivíduos são péssimos juízes de suas próprias capacidades de agressão e de obediência". Comentando experiências científicas sobre o assunto, Michaud aponta para a idéia de que não se pode identificar o comportamento violento com uma tendência a um Mal puro e absoluto, pois "a simples paixão de obedecer e a submissão à autoridade transformam indivíduos que não são particularmente perversos em torturadores" (36); isto é, a violência

35

ROSENFIELD, Kathrin. op.cit.

36

MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, l989. p.81.

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mais cruel pode se confundir com o socialmente aceitável. Esse princípio está presente em Grande sertão: veredas. O romance apresenta alguns elementos que ajudam a pensar o problema colocado por Michaud de uma inconsciência do sujeito humano em relação ao seu próprio grau de disposição para a violência. A canção de Siruiz traz um desses elementos:

"Remanso do rio largo, viola da solidão: quando vou p'ra dar batalha, convido meu coração..." (p.93)

Essa imagem de que o coração é convidado para a batalha associa metaforicamente a frieza e o terror do combate aos sentimentos delicados da interioridade humana. O guerreiro funde condições subjetivas que consideraríamos antitéticas e excludentes. Convidar o coração para a batalha significa doar-se, emocionalmente, de forma radical. O tom melancólico da estrofe acentua o caráter inquietante dessa atitude. Essa imagem do guerreiro com coração dissolve a imagem do jagunço inteiramente cruel, e se conecta com a tematização ambígua da figura do guerreiro em termos das dimensões pública e privada. O combatente mau, na vida particular, é um homem extremamente bom.

"Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos!" (p.12)

Esse aspecto é examinado por Riobaldo também com referência ao Hermógenes, seu oponente maior.

"Âi-de-vai, meu pensamento constante querendo entender a natureza dele, virada diferente de todas, a inocência daquela maldade. A qual me aluava. O Hermógenes, numa casa, em certo lugar, com sua mulher, ele fazia festas em suas crianças pequenas, dava conselho, dava ensino. Daí, saía. Feito lobisomem? Adiante de quem, atrás de que?" (p.179) A imagem estereotipada do "lobisomem" sugere uma mudança do humano para o meio humano ou não humano, caracterizando como que uma passagem do bom comportamento civil para a crueldade

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guerreira. Essa imagem levaria a crer que o homem, em condições normais, não seria cruel; apenas quando lobo-homem, lobisomem. Essa concepção supõe uma distinção clara entre homens e bestas ferozes. Ela não se sustenta frente ao medo do homem humano (p.307), medo da crueldade especificamente humana. Riobaldo é perturbado pela ferocidade estranha e fora de controle dos jagunços; então é o homem humano, e não o não humano, que provoca o terror. A tematização da violência tem na ligação entre Riobaldo e Zé Bebelo um de seus aspectos mais complexos. Nessa relação aparece claramente o componente de reversibilidade, central para a formação da instabilidade de perspectiva de Riobaldo. Zé Bebelo, ao longo da história, passa por diferentes posições em sua relação com Riobaldo. Durante algum tempo, é seu aluno; mais tarde, durante um conflito, é seu inimigo. Leia-se o trecho:

"Em todos os momentos, em Zé Bebelo sempre pensei, e em como a vida é cheia de passagens emendadas. Eu, na Nhanva, ensinando lição a ele, ditado e leitura, as contas de juros; depois, de noite, na sala grande, na mesa grande, se comia canjica temperada com leite, coco-da-bahia, amendoim, açúcar, canela e manteiga-de-vaca. - `Fofo faço, e em prazo, siô Baldo: acabar para uma vez com essa cambada canalha de jagunços!' - ele referia, com rompante e festa no dizer, bebendo seu coité de chá-de-congonha, que de tão quente pelava. Então, agora, era eu também - Zé Bebelo vinha de lá, comandando armas de esquadrões, e o que ele tinha jurado, naquela ocasião, ficava sendo também de acabar comigo, com minha vida." (p.167-8)

Essa variação de posições se converte, em termos de autoconsciência, em índice da instabilidade do próprio Riobaldo. É insensato aceitar que o antigo amigo e aluno seja potencialmente seu assassino. Isso cria uma fissura que abala toda viso segura do que seja a diferenciação entre o amigo e o inimigo e, portanto, abala a idéia de uma ordem rigorosa de legitimidade ética da violência. Mais tarde, Riobaldo virá a ser - contrariamente a Hermógenes - autor de um discurso decisivo para a salvação de Zé Bebelo, na cena do julgamento. Em certo ponto, Riobaldo comenta o comportamento de Zé Bebelo, acentuando uma ambigüidade fundamental para a trama: a mobilidade semântica (e ética) dos conceitos de guerra e paz, dupla de polaridades cuja simetria aponta para uma implicação profunda que beira a indistinção. O êxtase do guerreiro Zé Bebelo é expresso, no afã do combate, como êxtase de paz.

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"Ah, mas, com ele, até o feio da guerra podia alguma alegria, tecia seu divertimento. Acabando um combate, saía esgalopado, revólver ainda em mão, perseguir quem achasse, só aos brados: - `Viva a lei! Viva a lei!...'- e era o pipoco-paco. Ou: - `Paz! Paz!'gritava também; e bala: se entregaram mais dois. `Viva a lei! Viva a lei!...' Há-de-o, que quilate, que lei, alguém soubesse?" (p.61)

É como se a paz não fosse encarada em estado puro, como algo diferente da guerra, mas como um ponto de elevação que se confunde paradoxalmente com a intensidade emocional da guerra. A histeria de Zé Bebelo, mente em "alvoroço", dissolve o eixo causal que, segundo Riobaldo, justificaria a guerra em função da busca da paz, expressa no trecho: "Mas que faca e fogo houvesse, e braços de homens, até resultar em montes de mortos e pureza de paz..." (p.207). Diferentemente, na passagem citada anteriormente, em meio à guerra, os gritos "Paz! Paz!" não expressam fim da violência, mas a euforia em sua prática. Em certa passagem, Riobaldo reflete sobre o fato de que ele mesmo, ambiguamente, é capaz de matar e de amar.

"Ao perto de mim, minhas armas. Com aquelas, reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu mandava a morte em outros, com a distância de tantas braças. Como é que, dum mesmo jeito, se podia mandar o amor?" (p.220)

Diz em certo ponto Zé Bebelo: "- Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus exércitos!..." (p.71) Vista por um lado, a frase é paradoxal; por outro, pode subentender idéias complementares (entendendo o nexo "por" ora como "para instituir", ora como "para eliminar"). Mas uma terceira leitura talvez seja mais adequada no contexto: Zé Bebelo vem ao combate para trazer ordem e desordem simultaneamente, no sentido de que, em termos práticos, como a justiça é buscada através de forças de destruição, trazer violência e trazer justiça significam a mesma coisa. Nessa coincidência precisamente consiste a base do

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projeto de vingança contra Hermógenes. Isso sustenta a justificação desse projeto, como de modo geral as leis próprias da jagunçagem. A elaboração da representação da violência em Grande sertão: veredas não se pauta por um determinismo causal. A obra expõe uma série de fenômenos de violência, enredados entre si, sem definir rigidamente as bases ou os fins do conjunto desses eventos. Não há uma razão única para toda a violência, nem uma finalidade geral que a justifique. Os diferentes níveis de sentido em que a violência se desdobra - instrumento de justiça, caminho para a vingança, modo de obtenção de prazer, crueldade imponderável - problematizam uns aos outros, colocando em suspensão a possibilidade de Riobaldo (ou o leitor) definir, com segurança, um telos para a violência. O livro aponta para algumas hipóteses de compreensão sobre os fundamentos da violência, mas a totalidade da obra parece remeter, de modo assustador, a uma causa ausente (37), a um sem-fundo (38). Alguns elementos da obra apontam para uma possibilidade de esclarecimento - nunca esgotada - sobre a origem da violência. Há uma perspectiva possível de abordagem dessa questão, que definiria a motivação da violência jagunça como algo externo. Antes de Medeiro Vaz se tornar jagunço, segundo Riobaldo, a situação social era caótica, "tudo era morte e roubo" (p.36). A existência dessa espécie de violência generalizada justificaria a intervenção de uma força violenta racionalizada, organizada, justiceira. Isto é, uma situação social caótica motivaria o aparecimento de um certo regime de violência. Outro aspecto seria a hostilidade da natureza, que se apresenta claramente no episódio do Liso do Sussuarão, onde "A luz assassinava demais". Riobaldo diz que o Liso "concebia silêncio, e produzia uma maldade - feito pessoa?" (p.41/2), atribuindo às condições geográficas do lugar uma agressividade como que humana. Esses problemas complexos - conturbação social generalizada, condições geográficas inadequadas à sobrevivência humana - são fatores de pressão, privação e ameaça, fatores de sujeição à morte, que alimentam a necessidade de harmonizar a vida coletiva, pela distribuição de recursos, de terras, o que sem dúvida estaria ligado a uma definição de justiça. Ocorre que, no sertão roseano, a

37

Cf. JAMESON, Fredric. A interpretação: a literatura como ato socialmente simbólico. In: _____. O inconsciente político. A

narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo, Ática, 1992. 38 Cf. ROSENFIELD, Kathrin H. Os sentidos modernos do trágico. Porto Alegre, UFRGS, 1992. (xerox)

30

mobilização do ideário de justiça está articulada com o emprego político da violência. Aquilo que se quer superar equivale em certo nível ao que seria o instrumento da superação. Uma outra perspectiva possível de abordagem consistiria em definir motivações ligadas apenas à própria subjetividade, o que significaria indissociar a disposição para a violência da condição humana. O medo do "homem humano" está ligado a essa perspectiva. Nesse caso, o homem portaria uma potência de destruição, indiferente à moral, à razão e às circunstâncias exteriores. A pergunta pela existência do demônio, pela possibilidade do pacto, que atravessa o livro, traduz num certo nível o embate entre essas perspectivas.

Vida em erros

Crimes suaves, que ajudam a viver. Ração diária de erro, distribuída em casa. Os ferozes padeiros do mal. Os ferozes leiteiros do mal. Carlos Drummond de Andrade, A flor e a náusea

A morte de Diadorim é a condição para Riobaldo encarar sua condição sexual oculta. É estabelecida assim uma relação entre a perda do objeto da paixão, que envolveu Riobaldo na jagunçagem por muito tempo (o protagonista esteve oscilando entre os limites da manifestação dos sentimentos e da sua negação, sem cair em nenhum deles) e a descoberta de uma verdade sobre o objeto. Essa relação é representativa de algo que é decisivo na constituição do ponto de vista da narrativa : a busca da verdade como algo que está associado necessariamente - num paradoxo - ao afastamento do objeto. Trata-se de uma ignorância no que se refere ao modo de relação com o que está próximo, uma precariedade da capacidade de assimilação do que é dado imediato para a consciência, que se expressa na passagem "...a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e no sabe, não sabe, não sabe!" (p.79). A repetição de "não sabe" acentua a perplexidade e frustração pelo dano aberto por essa precariedade. O objeto próximo, colocado diante do olhar imediato, é essencialmente desconhecido. A busca do conhecido deve

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se dar necessariamente por um descentramento do olhar (39), que abre horizontes insólitos, para dar lugar a revelações, iluminações profanas, ótica que pode ver "o cotidiano como impenetrável" (40). A fala de Riobaldo, em seu modo de encarar a palavra, parece lidar com uma cognição que respeita essa ótica, misturando elementos banais da linguagem cotidiana com composições insólitas, algumas vezes herméticas. A narração é apresentada como se se reduzisse a falsidade e erro ("estou contando errado", p.77; "falo falso", p.142), abrindo o horizonte de que, pelo caminho difuso do erro e da imprecisão se chegue ao caminho reflexivo e interrogativo pertinente à verdade e ao sentido. A desordem tem algo de constitutivo.

"Em desde aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como na sala do teatro, cada um fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava. "(p.187).

A vida vai em erros. Para Riobaldo, seria bom se cada pessoa tivesse uma definição de seu papel, isto é, da razão de estar vivendo, do modo como deve ser. Na falta desse papel, tudo está sujeito ao erro, à inversão, ao avesso. Pelo que ele diz, permanece desde o passado até o presente a convicção na idéia de que a vida vai em erros. O modo como se apresentam os verbos ser e achar na última frase do trecho sugere uma subversão da ordem linear temporal por um jogo de encontro e desencontro. Em uma vida errada, ao contrário do teatro, nunca ninguém pode ter certeza se está fazendo o que deveria fazer (41). A verdade não se apresenta de forma nítida, transparente ou óbvia. E sendo assim, o caminho para o enfrentamento com a verdade tem de ser o avesso daquilo que convencionalmente traz a verdade, o avesso do pensamento reflexivo positivo e sereno. No que se refere à linguagem, são colocadas de lado a univocidade, a referência direta, o valor semântico previsível, a sintaxe logicamente organizada; em termos de atitude de percepção, é atribuída uma natureza misteriosa e enigmática à experiência. E existe 39

WISNIK, José Miguel. Iluminações profanas (poetas, profetas, drogados). In: VÁRIOS. O olhar. São Paulo: Companhia das

Letras, FUNARTE, 1988. 40 BENJAMIN, Walter. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: ___. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.33. 41 O personagem Nhô de Barros, em Bicho mau, expõe precisamente a dificuldade de lidar com essa incerteza: "Que inferno, a gente não saber certo, sempre, a coisa que a gente tem mesmo de fazer: e que devia ser uma só, mandada alto, escrita em tudo, estreita, a ordem..." ROSA, Guimarães. Bicho mau. In:___. Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 3 ed. p.216.

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uma inconstância de ritmo (no sentido musical), isto é, uma variação de tipos e graus de repouso e tensão na narrativa ao longo do tempo. Assim, a consciência do narrador se propõe à pesquisa sobre o sentido da experiência através de meios de representação verbal que descartam a uniformidade e a previsibilidade. A linguagem de Riobaldo apresenta algo que é consistente com sua própria experiência a inconstância (em relação às convenções do idioma) - como fundamento constitutivo. É nesse sentido que se poderia entender a noção de que o erro é caminho para a verdade. "Erro" aqui diz respeito à ruptura com a expectativa convencional da correção expressiva, isto é, ruptura com a noção de que a linguagem, em seu uso convencional, consegue apresentar as idéias que revelam a verdade. Trata-se de optar por uma linguagem que, por meios insólitos, atinja o que a linguagem mais regrada não permite atingir (42).

Enigma humano

A noção de ambigüidade se estabeleceu como chave conceitual de interpretação de Grande sertão: veredas com os estudos de Antônio Cândido (43) e Walnice Nogueira Galvão (44). O mesmo termo foi

42

Cabe comentar, em relação a isso, a posição de Rosa em relação à linguagem. Ele tinha plena consciência da diversidade de

materiais lingüísticos que aproveitava (Entrevista de Guimarães Rosa concedida a Gunter Lorenz. In: COUTINHO, Eduardo, org. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília: INL, 1983. p.81.) - elementos regionais, idiomas estrangeiros, vocabulário científico, termos arcaicos. A multiplicidade teria uma função de alcance amplo: redimensionar os usos da linguagem implicaria rever a própria condição humana. Ele declarou que a língua tem um "aspecto metafísico", e a história de seu uso deveria convergir com o percurso vital: "a linguagem e a vida são uma coisa só (...) como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente (...) o idioma é a única porta para o infinito..." (Idem, p.83.). Essas implicações do modo de lidar com a linguagem são a base de um discurso de teor político: "somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo" (Idem, p.86.). As dimensões insólitas de uso da linguagem serviriam à manifestação de idéias, em um contexto em que, ao ver de Rosa, seu uso convencional não produz idéias - "a linguagem corrente expressa apenas clichês e não idéias (...) Não se pode fazer desta linguagem corrente uma língua literária" (Idem, p.88.). A atitude estética de Guimarães Rosa teria um intuito epistemológico - a articulação de um pensar forte, denso de idéias - e um intuito histórico-político de renovação humana, de fundo metafísico (colocando no horizonte o infinito, tal como o final do romance). Nessa entrevista, em que apresentou alguns elementos de seu processo de criação, Rosa usa uma linguagem que, como observou Willi Bolle, "é rica em paradoxos e imagens e cheia de humor e de auto-ironia" (BOLLE, Willi. Guimarães Rosa: artigo de exportação (uma recepção com tendências panegíricas). In: ___. Fórmula e fábula. São Paulo: Perspectiva, 1973. p.24.). E isso está longe de representar um fracasso de uma suposta tentativa de explicitar conceitualmente seu processo de criação - coisa que não lhe interessava fazer (a não ser abordando questões específicas para auxiliar seus tradutores), como atesta sua aversão a entrevistas. Na verdade, sua fala tem uma série de imagens, uma instabilidade lógica e uma oscilação de tons que lembram, mesmo que vagamente, traços da fala hamletiana (AUERBACH, Erich. O príncipe cansado. In: ___. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1976.). O discurso do melancólico, cético em relação à ordem institucional vigente, meio metafísico, meio político, meio louco, meio racional, é algo que faz parte dessa fala de Guimarães Rosa. 43 CÂNDIDO, Antônio. O homem dos avessos. In: ___. Tese e antítese. São Paulo: Nacional, 1978. 3 ed. p.128. 44

GALVÃO, Walnice N. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1972. p.18.

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usado por Jean-Pierre Vernant (45) em seu estudo sobre Édipo Rei, de Sófocles. O uso do mesmo termo sugere uma aproximação das duas obras que, relevadas as enormes diferenças entre elas, pode ser fecunda. O narrador de Grande sertão: veredas, Riobaldo, tem uma construção enigmática, no sentido dado a esse termo por Vernant. O protagonista de Édipo Rei é ao mesmo tempo o grande Rei, que foi capaz de livrar a população do terror da Esfinge, e o criminoso, parricida e incestuoso. A tragédia cresce enquanto se mantém a posição de Édipo, que resiste o quanto pode a aceitar a possibilidade de que ele mesmo seja o criminoso e, portanto, que o oráculo efetivamente tivesse dito a verdade. Ele cometeu o erro, no sentido aristotélico (46), de não reconhecer a verdade oracular como a sua verdade, verdade sobre o seu destino. E se mostrou incapaz de atribuir um significado adequado a seus atos - ter matado um homem era também ter matado o pai; o assassinato "comum" e inconseqüente era também a destruição de seu genitor, sua origem. O ponto de partida da trajetória de Riobaldo é um defrontamento com uma figura enigmática, o Menino, que, tal como a Esfinge, o coloca diante da possibilidade da morte, ao realizarem juntos a travessia do rio. O enigma que Diadorim apresenta a Riobaldo já na infância, e que se arrastará por toda a sua vida, é o enigma que circunda a natureza de seu próprio comportamento. O encontro dos dois meninos é marcado pela descoberta em Riobaldo daquilo que é interior a ele e estranho à sua compreensão. Cria-se um lapso entre a capacidade intelectual de assimilação e definição do que ocorre e o teor da própria experiência, insólito e impensável. O enigma central de Riobaldo está em se entregar a acontecimentos e se comportar de uma forma que não seria capaz de prever, calcular ou compreender. A figura do Menino e a travessia do rio abrem para Riobaldo o horizonte de uma forma inteiramente nova de experiência, que é caracterizada essencialmente pela desordem, pelo desequilíbrio. Também em outro sentido Riobaldo pode ser comparado a Édipo, que reúne em si o ty'rannos e o pharmakós - o Rei poderoso e sábio, capaz de enfrentar a Esfinge, e o bode expiatório, polução que deve ser expulsa da comunidade para a purificação. 45

VERNANT, Jean-Pierre. Ambigüidade e reviravolta. Sobre a estrutura enigmática de "Édipo Rei". In: ___ & VIDAL-NAQUET,

Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Brasiliense, 1988. 46 ARISTÓTELES. Poética. In: ___. Ética a Nicômaco; Poética. São Paulo: Nova Cultural, l987. p.212.

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A partir do pacto com o demônio, a narração apresenta Riobaldo - ainda que de forma ambígua - no domínio sobre-humano, entre os homens comuns e forças não humanas, num entrelugar passível de idealização, que se assemelha à posição anteriormente ocupada por Joca Ramiro, na liderança do grupo de jagunços. Essa posição, investida das qualidades de guerreiro a ele atribuídas, em um ambiente marcado pela violência e tensão constante, se assemelha em certo sentido à condição do reinado de Édipo na Tebas avassalada pela peste. Ambos são líderes impuros, marcados pela força de um Mal, engajados em missões que envolvem destinos coletivos. Em Hamlet, o protagonista busca, assim como Édipo, restabelecer a ordem em uma sociedade desordenada, com a identificação e extirpação de um criminoso. Neste caso, para eliminar o Rei impuro, Claudius, seu tio, Hamlet será obrigado a igualar-se a ele. Para punir um assassino, é preciso assassinálo. Para vingar a morte de um Rei, é preciso matar também um Rei. O resultado dessa vingança seria lamentável para Hamlet: ele seria um Rei, ao lado de sua mãe como Rainha (à beira do incesto), colocado no poder às custas da matança, tal como seu tio. Esse igualamento do criminoso e do punidor dissolveria todo princípio de distinção ética. A melancolia hamletiana se deve, em parte, ao fato de que a justiça, colocada em mãos humanas, é idêntica, no caso, ao crime. Para ser justo, é preciso se igualar ao impuro. Essa situação é afastada ao máximo, e o ato de vingança demora a acontecer. Ele mata Claudius apenas depois de ser atingido mortalmente - liberando-se, portanto, da possibilidade de ganhar o trono, e de se igualar ao criminoso. Hamlet, em meio a suas divagações, reflete sobre o ato de matar; sua fala aponta para a idéia de que, se não fôssemos obrigados a nos controlar, não nos faltariam razoes para matar.

"Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal?" (47)

47

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d. p.91.

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Definindo o homem como "um simples bruto", Hamlet reflete sobre a naturalidade com que os membros de um exército defrontam a morte. Sentindo ele mesmo necessidade de encarar de forma incisiva o plano de matar o tio, ao comentar o empenho dos militares, diz:

"Vejo, envergonhado, vinte mil homens próximos da morte, que por simples capricho de vaidade caminham para o túmulo tal como se fossem para o leito (...) Doravante terei só pensamentos de sangue ou sem valor, soltos aos ventos." (48) A afirmação de uma necessidade de se entregar a "pensamentos de sangue" para poder fazer justiça é uma das expressões da inadaptação melancólica de Hamlet ao seu projeto de vingança. Diferentemente da situação de Édipo, em que a verdade oracular sobre o destino se apresenta como certeza, Hamlet lida com noções humanas. Disso resulta uma diferença essencial. Em Édipo, o próprio Rei impuro se pune. Em Hamlet, não; é preciso que outro o faça. Riobaldo e Hermógenes se igualam como pactários, e a justiça jagunça não distingue do ponto de vista prático o crime e a punição. Trata-se, em ambos os casos, do assassinato de uma liderança jagunça. E Riobaldo, ambiguamente, está do lado oposto a Hermógenes, mas para enfrentá-lo se torna um igual. Hamlet está beirando o tempo todo a condição de ambigüidade trágica, tal como descrita por Vernant o sujeito que é ao mesmo tempo Rei, acima dos outros humanos, e criminoso, idêntico ao mais condenável transgressor (49). Um dilema que concerne a essas três obras consiste na possibilidade de a condição humana abarcar formas diametralmente opostas do ponto de vista moral, que vão do Rei sábio e vigoroso ao criminoso mais condenável. Édipo reúne em si, ambiguamente, essas duas faces. Hamlet, Príncipe, tem de igualarse ao criminoso abominável que se tornou Rei para fazer justiça. Riobaldo vive dentro de um contexto em que ser o líder glorioso e justiceiro coincide com ser um assassino cruel.

48 49

Idem. p.136-7. Sua contradição tem desdobramentos. O líder contraditório, no caso, pode representar, como elemento-síntese, uma

coletividade que vive em condições que a sujeitam à contradição e à desordem. Leia-se o seguinte trecho da segunda cena do último ato: "Hamlet: (...) Usai vosso chapéu de acordo com a sua finalidade; foi feito para a cabeça. / Osric: Agradeço a Vossa Senhoria; mas faz muito calor. / Hamlet: Ao contrário, podeis crer-me; faz muito frio; é vento norte. / Osric: Realmente, príncipe, está fazendo bastante frio. / Hamlet: Conquanto me pareça que o tempo está abafado e quente para a minha compleição. / Osric: Sim, não há dúvida, algo abafado, de certo modo... Não sei como me exprima (...)" Expressando de forma paródica e irônica suas contradições internas para seu subordinado, Hamlet, por sua condição na hierarquia de poder, faz com que o serviçal, para não desrespeitá-lo, manifeste opiniões contraditórias. O líder ambíguo, em suma, pode submeter a comunidade a ele subordinada à mesma ambigüidade. SHAKESPEARE, William. idem. p.174.

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Considerando esses elementos de construção dos personagens, seria o caso de pensar um conceito de ser humano que o definisse como abandonado em sua precariedade, como que à deriva, sujeito à maleabilidade ético-política das relações humanas circunstanciais, sem ter no horizonte um sustentáculo sólido para distinguir leis e transgressões. Nesse sentido, teríamos de abandonar a viso do homem como ser elevado, de ideais sempre bons e justos. Sendo assim, a experiência está aberta a possibilidades inimagináveis de ruptura com qualquer tipo de previsibilidade ou regra. Os enigmas que surgem a partir do encontro com Diadorim - a natureza do comportamento e dos sentimentos espontâneos, e a condição de constante enfrentamento da morte - têm, de certa maneira, a mesma resposta do enigma de Édipo: "é o homem". O componente trágico dos dois textos está associado ao abismo existente entre a capacidade de compreensão e o teor da própria experiência, que torna a sujeição ao erro traço irredutível da condição humana. O erro define a situação trágica (50): a vida que vai em erros de Riobaldo é vida sem sentido claro, fora de controle, demoníaca. Quando afirma "Estou contando errado" (p.77), manifesta a condição de enunciação adequada à vida que "vai em erros". Na medida em que no livro o processo de constituição da experiência propriamente humana tem como base a desordem, e o homem se define como aquele que tem na inconstância sua lei geral, o Menino andrógino, que abre horizontes de experiência imprevisíveis e conduz ao limite da possibilidade da morte é imagem sintética da abertura a uma condição ao mesmo tempo à beira do sobre-humano e à beira do inferno. A problemática de Édipo tem como desfecho um esclarecimento, desvelamento de uma verdade divina, oculta todo o tempo do olhar do protagonista. O desfecho de Grande sertão: veredas é também revelação: a sexualidade verdadeira de Diadorim aparece ao olhar de Riobaldo. Porém, há um contraste importante: em Édipo Rei, a revelação traz a consciência de crime e transgressão; em Grande sertão, ela traz a dissolução da virtualidade da transgressão sexual - a atração de natureza homossexual subitamente se converte aos olhos do protagonista em envolvimento pelo sexo oposto, sem caráter transgressor.

50

ARISTÓTELES. op.cit. p.212.

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PARTE II

Narrar o estranho

"Eu queria decifrar as coisas que são importantes. Eu estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! Sendo isto, ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! No sei." (p.79).

Riobaldo declara não saber de seu assunto, o "grande sertão". Sua trajetória perpassa dialeticamente, no espaço do sertão, o previsível e o imprevisível. "Sertão, -se diz-, o senhor querendo procurar nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem." (p.289). "Possível o que é possível o que foi. O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena. Mas o sertão de repente se estremece, debaixo da gente... E - mesmo - possível o que não foi" (p.395). "Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo" (p.121). Do horizonte infindável de terra ao interior de Riobaldo, a ambigüidade e complexidade do sertão, a convivência do familiar e do estranho, fundam no sujeito uma postura diante do mundo das experiências, uma condição humana marcada pela incerteza. "O sertão está em toda a parte" (p.9), e "Sertão: é dentro da gente"(p.235). A imagem da matéria vertente, metaforicamente, acentua o traço processual da constituição do sujeito. Esse traço, levado à radicalidade, implode a possibilidade de o sujeito humano definir uma identidade psicológica, moral, social - superior e alheia em relação às circunstâncias. A vida tem maleabilidade e

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abertura para a inconstância - algo que Pessoa soube representar poeticamente como nenhum outro em nosso idioma. Uma imagem semelhante à "matéria vertente", acentuando que há uma matéria vital na base da narrativa, aparecerá, décadas depois, em outro romance em que as condições de narração também são objeto de reflexão; trata-se de A hora da estrela, de Clarice Lispector.

"No se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária, que respira, respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos" (51) (grifos meus). A tentativa de Riobaldo de compreender a sua própria existência e as forças que o conduziram em sua trajetória atribui ao trabalho da narração uma função de processo hermenêutico, isto é, a própria narração se constitui como discurso em que se interpreta o que se pensa (52). De um lado, o próprio Riobaldo age sobre as lembranças enquanto as narra ("esquentando o coração", "enfiando a idéia"). De outro lado, o interlocutor ("o senhor") tem um papel importante, embora, ao longo do romance, no apareçam frases atribuíveis à sua voz. O próprio Riobaldo se refere a ele como alguém que "ouve, pensa e repensa, e rediz", isto é, pelo menos virtualmente, o interlocutor teria a função de auxiliar Riobaldo nesse processo de interpretação. "Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor no sabe; mas principal quero contar é o que eu no sei se sei, o que pode ser que o senhor saiba" (p.175). As experiências de Riobaldo devem representar novidade, informação para o interlocutor. E a atenção do narrador repousa sobre as próprias incertezas, e ele supõe que seu interlocutor tenha condições de esclarecer suas dúvidas. Mesmo que, no decorrer do romance, o interlocutor seja apenas uma referência que aparece através da voz de Riobaldo, o papel que Riobaldo deposita nele é de interesse, pois enfatiza a intenção do narrador quanto à narração. Essa intenção, em síntese, é a de que a narração desempenhe uma função hermenêutica. Isto é, ao contar sua história, Riobaldo está tentando interpretar e entender sua experiência vital, sua subjetividade e sua relação com o mundo. Portanto, a significação da narrativa, para o próprio Riobaldo, no está

51 52

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 9 ed.p.19. Irlemar Cortez, com base em Vernant, entende o processo de narração de Grande sertão: veredas como busca de um

fundamento ordenador do cosmos. CORTEZ, Irlemar Chiampi. Narração e metalinguagem em Grande sertão: veredas. Língua e literatura. São Paulo: FFLCH-USP, 1973. Ano II. n.2. p.74.

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integralmente definida de início. A narração funciona ela própria como instrumento de busca de sentido para o conjunto de experiências vividas. Em suma, a complexidade dessas experiências, a necessidade de equacionar o sentido de episódios importantes, a potencialidade de polissemia que eles apresentam, as diferenças percebidas por Riobaldo em relação a si próprio nos episódios vividos que rememora são razões que impedem que se considere a narrativa de Riobaldo como transmissão de experiências vividas a que ele deu sentido, e de que tem uma visão de conjunto organizada. A produção de sentido e a organização de rede de relações entre os episódios fazem parte do processo em que a narração se constitui. O historiador Carlo Ginzburg sugeriu, em um texto intitulado Sinais, que a origem da narração talvez esteja ligada à experiência do caçador. O saber do caçador consiste, segundo ele, na capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa, no experimentável diretamente. Pode-se acrescentar que esses dados são sempre dispostos pelo observador de modo tal a dar lugar a uma seqüência narrativa, cuja formulação mais simples poderia ser `alguém passou por lá' (...) a partir da (...) decifração das pistas" (53). De acordo com essa hipótese, que ele mesmo sabe que é indemonstrável, o ato de narrar está ligado à necessidade de revelar algo. Os detalhes da experiência passada real, desimportantes se encarados isoladamente, ao serem colecionados e articulados, sendo respeitada a linearidade temporal e a lógica causal, passam a ter sentido. A narrativa organiza o que há de dispersivo em nossa experiência. Pensadores de outras linhas de reflexão avaliam o significado do ato de narrar de modo semelhante. Para Paul Ricoeur,

"Contando histórias, os homens articulam sua experiência do tempo, orientam-se no caos das modalidades potenciais de desenvolvimento, marcam com enredos e desenlaces o curso muito complicado das ações reais dos homens. Deste modo, o homem narrador torna inteligível para si mesmo a inconstância das coisas humanas, que tantos sábios, pertencendo a diversas culturas, opuseram à ordem imutável dos astros" (54).

53

GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: ___. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989. 54 RICOEUR, Paul apud NUNES, Benedito. Narrativa histórica e narrativa ficcional. In: RIEDEL, Dirce, org. Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago, 1988. Cabe observar que a aproximação entre Ginzburg e Ricoeur, bem como a que é proposta entre Benjamin e Lévi-Strauss, são baseadas em analogias puntuais, que não devem sugerir a identificação em nível genérico das produções desses autores.

40

Alguns dos mais belos trechos da prosa de Walter Benjamin, no ensaio O narrador, abordam a idéia de que a narrativa tradicional das sociedades arcaicas expressava uma sabedoria. A transformação do gênero narrativo se vincula à perda de um saber coletivo imemorial, e à passagem para uma situação em que o conhecimento sobre a questão essencial do sentido da vida já no é mais possível. A narrativa tradicional, de raízes longínquas no tempo e/ou no espaço, tem "uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos" (55). "A origem do romance é o indivíduo isolado, que no sabe mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que no recebe conselhos nem sabe dá-los" (56 - grifos meus). A preocupação de Benjamin em vincular a mudança da forma literária com o problema das possibilidades do saber (ainda que no se trate de sistemas de saber) é uma questão para reflexão, a um tempo, estética e epistemológica. Essa função de produção de conhecimento que é possível atribuir ao ato de narrar abre a possibilidade de superar certas limitações. Nesse sentido, a possibilidade de interpretar é também tentativa de libertarse do oco, do obscuro, do negativo. Outro trabalho de Walter Benjamin, o pequeno texto Conto e cura, expõe a estória da mãe de uma criança doente que se senta na cama e começa a contar histórias. A narração teria um poder de cura. Diz ele:

"... já se sabe como o relato que o paciente faz ao médico no início do tratamento pode se tornar o começo de um processo curativo. Daí vem a pergunta, se a narração no formaria o clima propício e a condição mais favorável para muitas curas, e mesmo se no seriam todas as doenças curáveis se apenas se deixassem flutuar para bem longe - até a foz - na correnteza da narração" (57). Com um horizonte de

questionamento afim a essa reflexão benjaminiana e método próprio, o

antropólogo Claude Lévi-Strauss realizou um trabalho, que relatou em um ensaio, intitulado A eficácia simbólica; o objetivo desse trabalho é entender como, em uma comunidade primitiva, um feiticeiro pode curar uma doente. O texto aborda a tribo indígena Cuna, que habita o Panamá. Uma mulher, que está 55

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ___. Magia e técnica, arte e política. São

Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, 1).p.200. 56 Idem. p.201. 57

BENJAMIN, Walter. Conto e cura. In: ___. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas, 2) p.269.

41

parindo, sofre muitas dores. A cura do feiticeiro (o xamã) consiste em cantar uma estória (58). A cura é possível porque, atribuindo significado às dores internas e aceitando então a sua presença dentro do sistema de significados conhecido, a doente se entrega a uma experiência na qual "os conflitos se realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenvolvimento e conduzem ao seu desenlace" (59). No se trata de explicar conceitualmente à doente causas das dores, mas de propiciar condições para que ela simbolize as dores, e as integre a um sistema simbólico conhecido. A expressão verbal de estados internos que no estavam formulados, que eram estranhos, provoca o "desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, num sentido favorável, da seqüência /de transformações/ cujo desenvolvimento a doente sofreu" (60). O poder curativo da narração, pela análise de Lévi-Strauss, está ligado ao poder que ela tem de fazer com que elementos de nossa experiência que, a princípio, nos são estranhos, passem a ser compreendidos de forma sistemática. O que importa sobretudo é a possibilidade de verbalizar (representar) o estranho e o maligno e reconhecê-lo dentro de um processo em que conflitos acontecem mas a ordem pode ser recuperada. Se pudermos integrar circunstancialmente as idéias desses pensadores que têm tantas diferenças entre si - Carlo Ginzburg, Paul Ricoeur, Walter Benjamin e Claude Lévi-Strauss - teremos então uma idéia antropológica geral sobre o que compete ao ato de narrar, no universo da narrativa tradicional. Um narrador pode lidar com elementos da experiência que, fora do discurso narrativo, poderiam ser considerados sem sentido, ou tratados como estranhos.

58

Essa estória, que reúne elementos míticos da tradição oral da comunidade, tem por tema "uma luta dramática entre espíritos

protetores e espíritos malfazejos" (LÉVI-STRAUSS, Claude. A eficácia simbólica. In: ___. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. 3 ed. p.222.). Todos os personagens míticos envolvidos são descritos minuciosamente. Ocorre que a estória vai apresentando uma espécie de "geografia afetiva, identificando /como se fosse por dentro do corpo da doente/ cada ponto de resistência e cada movimento impetuoso". O canto expõe um processo complexo que a doente reconhece como homólogo ao que se passa no interior do seu corpo. O canto cobre desde uma situação inicial, que apresenta uma preparação para os conflitos, até um desfecho. "Os acontecimentos anteriores e posteriores são cuidadosamente relatados. Trata-se, efetivamente, de construir um conjunto sistemático". O desfecho é "uma situação onde todos os protagonistas reencontraram seu lugar, e ingressaram numa ordem sobre a qual não paira mais ameaça" (Idem, p.227.). Lévi-Strauss explica que "os espíritos protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais mágicos fazem parte de um sistema coerente que fundamenta a concepção indígena do universo. A doente os aceita, ou, mais exatamente, ela não os pôs jamais em dúvida. O que ela não aceita são dores incoerentes e arbitrárias, que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que, por apelo ao mito, o xamã vai reintegrar num conjunto onde todos os elementos se apóiam mutuamente" (Idem, p.228.). 59 Idem, p.229. 60

Idem, p.228.

42

Ele pode ser capaz de integrar aquilo que a princípio é negligenciado ou estranho a uma articulação sistemática. E pode intervir no desenvolvimento de um mal que o ouvinte guarda em si; a figuração metafórica do mal através do acompanhamento na narrativa contribui para a possibilidade de eliminação real desse mal. É esperado de um narrador, em suma, que ele torne articulados, integrados e dotados de sentido os dados da experiência, e que dentro dessa integração o estranho e o maligno sejam assimilados e de algum modo aceitos como algo que tem sentido no todo.

Narrativa e violência

"Como, porém, no dizer que talvez, uma ou outra vez, a teia mental se ajusta fio por fio à da vida, embora dizê-lo seja fruto de puro medo, pois no acreditar um pouco nisso impedirá de continuar enfrentando as teias de fora." Julio Cortázar, Tango de volta

Pensar na presença do estranho e do maligno faz retornar o problema da violência. Cabe observar o modo como a violência é incorporada aos padrões de sentido da narrativa tradicional. No conto de fadas, o lobo mau mata, e é mau, merece ser punido; o caçador mata, e é bom, merece ser glorificado. No esquema mítico arquetípico, a violência no é maligna por si; depende de quem está atacando quem. Se é o caçador, humano, defendendo os interesses do grupo de humanos, o ato de matar é bom e importante; se é o lobo, estranho, alheio aos interesses do grupo de humanos, o ato de matar é mau e é criminoso. Esse mesmo princípio nítido na estória infantil se preservou, em certa medida, na epopéia. Hegel examinou a relação entre violência e forma épica. A ação heróica, própria do épico, tem como base, para ele, "movimentos guerreiros" (61). O material da epopéia estaria nas guerras que "nações estrangeiras travam entre si". Hegel diz que, havendo inimizades entre nações, estas lutam pela conservação de seus valores e pelo seu direito à existência. Os heróis épicos em si mesmos representariam elementos do

61

HEGEL. A poesia épica. In: __. Estética-poesia. Lisboa, Guimarães, 1980. p.151.

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caráter nacional (62). Sendo as contingências dos conflitos dadas pelo destino e, em geral, regidas pela Necessidade, o que interessaria sobretudo seria a legitimidade ou ilegitimidade da ação no quadro das situações dadas. Esta análise de Hegel nos permite dizer que toda violência no interior da epopéia pode ser legitimada, se corresponder aos interesses do caráter nacional, à conservação dos valores de uma nação contra valores diferentes. O ato heróico seria justamente o ato violento que se justifica moral e politicamente, pelo aspecto patriótico. O ato ilegítimo, que deve fomentar vingança, é o ato que desconsidera ou transgride os valores em questão. Portanto, nesse caso, no há nada de mal na violência em si; o mal estaria no ato que infringe a ordem política do caráter nacional. Hegel deixa claro, aliás, que faz parte da "energia de épocas heróicas" "uma certa crueldade" (63). No há épica sem violência; ela é fundamento estrutural do gênero. A narrativa oral tradicional de forma simples, e a narrativa oral épica se assemelham em um ponto. Em ambos os casos, existe a distinção entre violência legítima e ilegítima, entre violência a favor de certos valores e contra esses valores. Num caso estão em jogo o bem e o mal míticos. No outro, existem o caráter nacional e seus inimigos. Em ambos os casos, a violência é perfeitamente assimilável, plausível, e o que está em questão no é a violência como fenômeno em si, mas a quem ela serve ou atinge. A consciência moderna, no entanto, modifica o lugar da violência na narrativa. Diminuindo o lugar dos interesses coletivos, relativizando os esquematismos éticos dos mitos e contos de fada, o romance se concentrará na constituição da experiência individual, na relação oblíqua entre indivíduo e sociedade e na busca do sentido da vida. As ações no têm mais o heroísmo épico, e a sociedade é contraditória internamente. Nessa perspectiva, a violência por si mesma evidencia que existem conflitos em meio aos padrões éticos e políticos das ações humanas. A imagem da nação perfeitamente integrada, da sociedade orgânica, do grupo coeso e homogêneo, seria então insustentável. Em uma narrativa de tipo realista, esses problemas seriam apresentados pela ótica de um narrador que, inabalável, mantendo uma atitude pretensamente objetiva com a matéria narrada, permanecendo em uma

62

Idem. p.161.

63

Idem, p.161.

44

posição bem determinada, articula os acontecimentos, pondo à mostra os problemas sociais. Esse tipo de forma implicaria uma suposta isenção - que poderia ser interpretada como uma independência ética entre a consciência narradora e os acontecimentos que ela transmite - e uma capacidade plena de dar ordem e significado à experiência. Esse narrador objetivo, pleno e isento mantém-se excluído da barbárie que estaria narrando. No romance moderno, diferentemente, vão se desenvolver recursos estéticos que expressarão uma outra postura da modernidade frente à violência. Em certo ponto, o narrador de Grande sertão: veredas faz um comentário importante:

"De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir narração, e isso de guerra é mesmice, mesmagem." (p.230) Essa espécie de desdém com o assunto que narra, como se fosse tedioso ou monótono, aponta para uma crítica latente que a obra faz ao leitor/ouvinte fascinado por relatos de guerra. Essa atitude afasta Riobaldo da elevação da guerra como fator de interesse de uma narração ficcional, o que é próprio da epopéia. Conduzindo o interesse do interlocutor para outros aspectos, o narrador aponta para a necessidade de se pensar no os eventos de guerra em si próprios, mas a medida, os problemas e as condições do envolvimento de um homem com esses eventos. Ou seja, o teor propriamente épico do livro se subordina às coordenadas da reflexão de um Eu instável sobre as condições de uma subjetividade (64). Com isso, predominam em Grande sertão: veredas características formais do romance moderno, em detrimento dos esquemas épicos.

64

Em termos da Lingüística, a história está subordinada às condições do discurso. Emile Benveniste, em "As relações de tempo

no verbo francês" (Problemas de lingüística geral. São Paulo: Nacional/EDUSP, 1976), distingue as categorias história e discurso nos seguintes termos. A primeira representa um plano de enunciação narrativa em que não aparecem "eu", "tu", "aqui", "agora", em que o tempo verbal por excelência é o passado simples. Por contraste, o segundo é "a enunciação que suponha um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar, de algum modo, o outro". Trata-se da presença da categoria de pessoa (eutu); na história, o domínio é do "ele", que Benveniste vê como pronome sem marca de pessoalidade. No discurso, são passíveis de incorporação os diferentes tempos verbais. Embora a prática da narração oral suponha a intersubjetividade, é como se as referências lingüísticas a essa interação fossem dispensáveis, talvez pela evidência real das presenças físicas e pelo caráter fixo dos papéis de locutor e ouvinte durante o processo da narração. A pergunta do ouvinte ao narrador só pode ser a que menciona Benjamin (em: O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. op.cit.) `- O que acontece depois?'; não faz parte da dinâmica da narração oral a pergunta `- Você está narrando certo?' que introduziria a relação intersubjetiva dentro da própria fala. Essa pergunta não tem cabimento se forem respeitadas as bases do funcionamento da narração oral, inclusive a já mencionada "autoridade" do narrador. O caso de Riobaldo, em que as referências à primeira e à segunda pessoa são freqüentes, se distingue frontalmente da atitude do narrador de tradição oral.

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O narrador precário

"(...) o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, (...)" Carlos Drummond de Andrade, Congresso Internacional do Medo

As marcas de oralidade na narração de Grande sertão: veredas, que apontam para a tradição popular do sertão, estão associadas a marcas da formas narrativas da literatura européia moderna. Para descrever a composição do discurso de Riobaldo, cabe examinar teorizações voltadas para essas formas. Elaborando noções que sôo retomadas em Reflexões sobre o romance moderno, Anatol Rosenfeld expõe, em À procura do mito perdido, a idéia de que, em obras de alguns grandes autores do século XX, é abalada a noção de uma consciência psicológica una e coesa. "Ante a tumultuosa ampliação da experiência, a realidade como que se esfacela e se torna incoerente." (65) A tendência à fragmentação dado essencialmente moderno (66) - se associaria, em alguns casos, a um retorno ao arcaico. A crise de sustentação da subjetividade se enredaria com conflitos de teor mítico. A história de Riobaldo se apresenta, ambiguamente, como problematização das condições de existência no sertão e como dilema metafísico. As personagens interessam no apenas como indivíduos mas, dentro do conjunto de relações que se estabelecem descontinuamente, "como parceiros no drama eterno que lança as forças divinas contra o demônio" (67). Por suas ressonâncias com materiais da imaginação literária arcaica e medieval, Grande sertão: veredas constantemente evoca conflitos elaborados em matrizes anteriores à formulação da racionalidade moderna. No obstante, sua forma no é idêntica à dos mitos arcaicos ou à das grandes epopéias, mas aponta para uma estética propriamente moderna. De acordo com Rosenfeld, o que se observa em algumas grandes obras - e entre elas poderia ser citada Grande sertão: veredas - é a "elaboração de concepções sociais ou metafísicas ou o estudo de

65

ROSENFELD, Anatol. À procura do mito perdido. In: ____. Doze estudos. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, l959. p.34.

66

Considerando aqui a própria noção de romance moderno desenvolvida por Rosenfeld, no artigo Reflexões sobre o romance

moderno (op.cit.). 67 ROSENFELD, Anatol. À procura do mito perdido. op.cit. p. 33.

46

determinadas reações mentais exemplares em situações-limite" (68-grifo meu). A convivência cotidiana com a gravidade da possibilidade da morte constitui precisamente uma situação-limite, em que a autosustentação do sujeito é problematizada constantemente. Na obra de Guimarães Rosa é elaborada ficcionalmente a noção de uma concepção humana precária. Através do discurso descontínuo, é feita uma tentativa de responder à comentar a necessidade do sujeito de uma integração "numa ordem universal e social coerente, acessível ao entendimento" (69), integração nunca conseguida. Adorno afirma que os romances recentes que examina "se assemelham a epopéias negativas. Sôo testemunhas de um estado de coisas em que o indivíduo liquida a si mesmo e se encontra com o préindividual, da maneira como este um dia pareceu endossar o mundo pleno de sentido" (70). Referindo-se a Proust, diz que "o comentário está de tal modo entrelaçado na ação que a distinção entre ambos desaparece, então isso quer dizer que o narrador ataca um elemento fundamental na sua relação com o leitor: a distância estética. Esta era inamovível no romance tradicional. Agora ela varia como as posições da câmara no cinema: ora o leitor é deixado fora, ora guiado, através do comentário, até o palco, para trás dos bastidores, para a casa das máquinas" (71). O procedimento de enredar ação e comentário é constante em Grande sertão: veredas. Logo na primeira página, por exemplo, o fato narrado - a morte do bezerro considerado demoníaco - é exposto incluindo um comentário de avaliação, "povo prascóvio", uma declaração a respeito da falta de certa informação, "dono dele nem sei quem for", e um registro da reação do interlocutor, "o senhor ri certas risadas" (p.9). No se trata, portanto, de apenas expor um fato, mas de submetê-lo a diversos movimentos da consciência que condicionam sua significação. É possível observar que, de modo geral, ao longo da exposição de Riobaldo, os acontecimentos narrados sôo constantemente avaliados, desdobrados, fraturados e/ou associados pela subjetividade do protagonista. Quando Adorno, referindo-se a mudanças históricas na estrutura do romance, afirma que "a ameaça permanente de catástrofe no permite a mais ninguém a observação desinteressada" (72), parece atingir o

68

Idem. p. 32.

69

Idem. p. 38.

70

ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: VÁRIOS. Textos escolhidos. São Paulo: Abril

Cultural, 1983. 2 ed. (Os Pensadores) p.273. 71 Idem. p.272. 72

Idem. p.272.

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cerne do problema: a impossibilidade de uma neutralidade do olhar, que resulte em uma compreensão descritiva desinteressada do objeto. E o contexto em torno de Riobaldo - com o risco constante da morte potencia precisamente condições que propõem uma vida à margem da catástrofe; o domínio do medo drummondiano. Anatol Rosenfeld, em Reflexões sobre o romance moderno, afirma: "A consciência como que põe em dúvida o seu direito de impor às coisas - e à própria vida psíquica - uma ordem que já no parece corresponder à realidade verdadeira (...) Trata-se, antes de tudo, de um processo de desmascaramento do mundo epidérmico do senso comum (...) A visão de uma realidade mais profunda, mais real, do que a do senso comum é incorporada à forma total da obra" (73). Conforme outro ensaio do autor, "mundo e Eu desfazem-se numa sucessão de impressões; ambos os pólos perdem os seus contornos precisos ..." (74). Rosenfeld observa a dissolução da personagem de contornos bem definidos e do encadeamento lógico de motivos e situações do enredo, sustentado pela lei da causalidade. "Devido à focalização ampliada de certos mecanismos psíquicos, perde-se a noção de personalidade total e do seu `caráter', que já no pode ser elaborado em seqüência causal, através de um tempo de cronologia coerente" (75). Referindo-se a Nathalie Serraute, ele analisa: "Já no existe um Eu narrador fixo face a um Eu narrado em transformação; o próprio Eu narrador se transforma constantemente" (76). Essa caracterização corresponde à de Riobaldo, que assume posições diferentes em relação à matéria narrada ao longo de sua exposição. Em suma, entende-se, a partir das idéias de Adorno e Rosenfeld, que o modo de constituição do narrador, em textos representativos da ficção erudita contemporânea, é um modo em que, tendo categorias básicas de compreensão da existência (como tempo, espaço, causalidade, personalidade) se tornado noções suscetíveis de problematização, sendo abalada a segurança da consciência em relação às suas referências de organização da realidade, o narrador perde a garantia de que pode efetivamente articular referências; ele é um narrador precário, incerto quanto às possibilidades de sua própria

73

ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. op.cit. p.81.

74

ROSENFELD, Anatol. È procura do mito perdido. op.cit. p.36.

75

ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. op.cit. p.85.

76

Idem. p.93.

48

consciência de pensar e representar o real. O tempo no linear, o enredo cujo encadeamento no é logicamente claro, a personagem cujos contornos de personalidade no sôo definidos sôo expressões estruturais de uma mesma concepção de consciência, como consciência precária, que tem a representação de si mesma no como pressuposto fixado e pacífico, mas como algo por definir, em processo, sem sustento fixo. Em Grande sertão: veredas, se elabora uma concepção de forma apropriada à vida em erros, que corresponde esteticamente às noções de Adorno e Rosenfeld.

"Em desde aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria." (p.187). Nessa passagem, Riobaldo como que justifica sua forma de narrar. A vida é comparada a um relato; o relato de Riobaldo, em certo nível, pode ser comparado à sua vida. O nexo como, próprio para comparações, pode ser lido como marca de uma adequação: sendo a vida "em erros", o relato é "sem pés nem cabeça", desordenado. Tal é o caso de Riobaldo: sendo a vida algo de significado incógnito, a narração se desenvolve com falta de encadeamento causal, continuidade e amarração interna. "Eu, quem é que eu era? (...) Eu era de mim. Eu, Riobaldo. Eu no queria querer contar." (p.117). A relação problemática com o narrar, com que se envolve de maneira paradoxal - no querer querer - se vincula diretamente com a falta de certezas do sujeito sobre si próprio, sobre a substancialidade do Eu. A repetição (de efeito anafórico) do pronome aponta para a pluralidade de possibilidades; a instabilidade abre horizontes impensáveis para a relação da consciência com o mundo. "Estou contando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada." (p.114). A vida "embrejada", sem sentido claro, leva ao "pensar mal". A desordem inerente às vivências se manifesta como instabilidade no controle do pensamento, o que condiciona a narração. À página 109, aparece a formulação de Riobaldo: "a vida não é entendível". Fora do alcance das condições de compreensão do narrador, a vida é apresentada e examinada em uma perspectiva entre a familiaridade e o estranhamento. "Deveras se vê que o viver da gente no é tão cerzidinho assim?" (p.86). A vivência em tempos de guerra, no contexto da desordem violenta da jagunçagem, tem a marca da instabilidade, que se associa

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freqüentemente à ansiedade, à aflição, constituindo uma tensão que é imposta à consciência. A vivência com essas características no se presta à narratividade convencional. Um trecho que expressa com força essa noção está à página 106. "O senhor sabe, se desprocede: a ação escorregada e aflita, mas sem sustância narrável".

Contar errado

"No começo de tudo, tinha um erro - Miguilim conhecia, pouco entendendo." Guimarães Rosa, Campo geral

As referências que Riobaldo faz à própria narração, contando as vezes em que menciona o interlocutor presente (o "senhor"), sôo numerosas. Mas, em algumas delas, ele abre como que um rápido intervalo para comentar seu próprio trabalho como narrador. E confessa, certas vezes, de forma clara, ter dificuldades de narrar. É preciso registrar que, em algumas passagens de sua narração, Riobaldo demonstra plena convicção no que diz a seu interlocutor - por exemplo, "A verdade digo ao senhor" (p.46); "Conto tudo ao senhor" (p.156); "E o que aí foi, lhe conto" (p.339). Mas o fato de a atitude de Riobaldo quanto à narração ser variável no elimina o significado da abordagem aqui intencionada. O que certamente derivará dos comentários seqüentes é a relativização da convicção apresentada nas declarações citadas acima (77).

77

É preciso desde já esclarecer que não se trata aqui de analisar Riobaldo como narrador autêntica ou puramente popular. A esse

respeito, cabe comentar uma abordagem do problema pela crítica. Referindo-se a "Grande sertão: veredas", Leonardo Arroyo aproveitou de uma crítica de Oscar Lopes a idéia de que Riobaldo é um "narrador popular". A argumentação se faz em torno de uma ingenuidade literária, de uma expressão lingüística que se trama em uma "lúcida imprecisão de primeira descoberta". O narrador, para Arroyo, estaria, por isso, inserido "na mais legítima literatura de cultura popular". Sem prejuízo da importância do trabalho de Arroyo, é necessário registrar o equívoco dessa argumentação. "Ingenuidade literária" não constitui característica da cultura popular. E "lúcida imprecisão de primeira descoberta" parece antes uma tentativa de equacionar o lirismo da prosa roseana do que uma observação reveladora da presença do popular no discurso de Riobaldo. Oscar Lopes cabe perfeitamente na caracterização dos intelectuais limitados à estética da representação, capazes de avaliar o produtor como "ingenuidade literária", apontados e criticados com força por José Antônio Pasta Jr. Cf. ARROYO, Leonardo. A cultura popular em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília: INL, 1984. p.22.; PASTA JR., José Antônio. Cordel, intelectuais e o Divino Espírito Santo. In: BOSI, Alfredo, org. Cultura brasileira - temas e situações. São Paulo: Ática, 1987.

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Em algumas passagens, Riobaldo reflete sobre as condições de produção de sua narração, e nessas reflexões apresenta elementos que considero importantes para a compreensão e interpretação do romance.

"Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas no é por disfarçar, no pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor tudo. No crio receio. (...) No. Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. (...) A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem no misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe." (p.77/78)

Consciente de seu trabalho de narrador, Riobaldo declara ter um desempenho precário, pois narra "errado, pelos altos". Mas a carência de rigor em sua narração nada tem a ver com mentira deliberada, e sim com o "jeito", as suas condições próprias de trabalhar com a matéria narrável. Segue-se um comentário sobre as lembranças dos fatos de sua trajetória, em que explica que cada parte, ou cada episódio de sua vida tem sentido e valor emocional específicos, o que faz com que os nexos entre as várias partes no sejam evidentes ("acho que nem no misturam"). Depois, declara que percebe a si mesmo, em cada situação de intensidade emocional (de "alegria forte ou pesar") que viveu, como "diferente pessoa". As partes de sua vida têm sentidos específicos, e em cada situação intensa vivida ele se percebe como diferente. Com suas lembranças relacionadas dessa maneira irregular, ele percebe sua trajetória no de modo bem ordenado, mas numa espécie de fluxo "sucedido desgovernado". Uma outra passagem oferece elementos para examinar essa posição de Riobaldo.

"Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. No pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem no. Sôo tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo muito recruzado." (p.142)

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Reiterando a falta de veracidade no que diz - "falo falso" - e enfatizando as dificuldades que sente em seu trabalho como narrador, dificuldades que declara no estarem relacionadas à velhice, Riobaldo comenta novamente o que pensa sobre as lembranças que estão em jogo na sua narração. Declara que a causa de suas dificuldades está no próprio modo de ser de certas lembranças de eventos. Atribuindo-lhes astúcia, poder de enganar, Riobaldo chama a atenção para um poder das próprias lembranças, das imagens que tem dos fatos que viveu, o poder que têm de "se remexerem dos lugares". É possível compreender essa idéia no sentido de as lembranças, em vez de terem um significado definido, deslocarem seu próprio significado, apresentarem sentidos insólitos para o sujeito que as evoca. Isto é, as lembranças têm um certo potencial de polissemia. Como sugere a palavra "astúcia", o sujeito pode ser enganado pela própria coisa em que pensa, no sentido de, ao equacioná-la em certo momento, interpretála de um modo que ainda no experimentara. Quando, na continuação, Riobaldo responde de maneiras diferentes ao "foi?" e ao "teria sido?", relativiza sua própria posição diante do que narra, posição dependente de certas condições circunstanciais. A marca de "agora" é um índice importante dessa dependência. Na última frase, ele legitima as relativizações de sua própria posição diante dos fatos com a compreensão que tem do mundo das experiências: um mundo múltiplo, em que horas, pessoas e coisas se encontram, "miúdo recruzado", no percurso dos "tempos" (78). A insistência em "tantos", "tantas", "tudo", marcas da multiplicidade, expressa com ênfase a inquietação de Riobaldo com a quantidade de elementos que participam de sua experiência passada. Benedito Nunes, em um ensaio de teoria da narrativa, pensa a narratividade em sua relação com a temporalidade, problema trazido pelo trecho citado. Ao tocar na questão da inteligibilidade de uma história, aborda dois aspectos importantes: a noção de uma estrutura intencional da ação ("reconhecimento antecipado de fins, motivação dos agentes condicionadas a circunstâncias (...)") e o 78

Uma interpretação parcial do uso do plural em "tempo" nessa frase, além da mais evidente que diz respeito à sucessão de anos

ou décadas, é a que remonta ao conto de Borges "O jardim dos caminhos que se bifurcam", em que a bifurcação não é do espaço, mas do tempo. A bifurcação do tempo, mostra o conto, tem conseqüências para a idéia de narrativa: em vez de optar por uma alternativa de ação, um personagem opta simultaneamente por todas, constituindo um romance contraditório. Em Rosa, como o próprio Riobaldo demonstra em certos pontos dúvidas quanto ao que realmente fez, se pactuou ou não com o demônio (o que depende de sua existência ou não e, portanto, da crença ou não em entidades místicas), o significado da sua ação no evento das Veredas-Mortas fica ambíguo, relativizando o sentido de várias outras experiências com que o pacto se relaciona. Nessa perspectiva, a ambigüidade toma conta da narração pela indefinição do sentido de uma ação lembrando, com o reforço desse plural ("tempos"), essa questão da contradição no texto apresentada por Borges. Em BORGES, Jorge Luis. O jardim dos caminhos que se bifurcam. In: __. Ficções. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

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papel da temporalidade na apreensão dessa estrutura. Segundo o autor, "(...) as motivações dos agentes implicam numa experiência retrospectiva (passado) e as circunstâncias condicionais à execução de atos num dado momento (presente)" (79). Isto é, as relações recíprocas de significado entre passado e presente permitem a definição do sentido de uma ação. Em Grande sertão: veredas, a assimilação do tempo está profundamente marcada pela sujeição à morte.

"O governante dos meses, `o deus grego do tempo e o demônio romano das sementeiras' transformaram-se na morte ceifadora, com sua foice, que agora no visa mais os cereais, mas a espécie humana, da mesma forma que a passagem do tempo no é mais caracterizada pelo ciclo anual da semeadura, da colheita e do repouso invernal da terra, mas pelo implacável trajeto da vida em direção à morte." (80)

A ausência de um sentido para a morte relativiza a concepção do mundo como ordem geral que funciona de acordo com a lei da causalidade. O "teor de necessidade" dos acontecimentos (81) é objeto de incertezas de Riobaldo. O horizonte da morte, condicionando o enquadramento causal das ações realizadas, remove a evidência lógica dos acontecimentos, e faz pulsarem os limites da finitude e do nada, que se impõem como um telos irremovível. A narração, em razão desse problema, ganha duas características mutuamente implicadas. A primeira é a problematização do encadeamento discursivo, resultado formal da fissura irredutível atribuída ao princípio causa-efeito. A segunda é a função que a narrativa assume, claramente de acordo com um aspecto das concepções de História de Benjamin (82) e Michelet (83): salvar os mortos. O discurso do narrador, enovelado pela ausência de sentido claro para a morte, procura dar sentido aos acontecimentos, e com isso interpretar e/ou justificar as mortes do passado ( 84); no caso de Riobaldo, trata-se de pensar a 79

NUNES, Benedito. Narrativa histórica e narrativa ficcional. op.cit. p.20.

80

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.173.

81

NUNES, Benedito. op.cit. p.28.

82

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras

escolhidas, 1) 83 NUNES, Benedito. op.cit. Cf. p. 33 e sobretudo a nota de rodapé 6, à p. 35. 84

Em um ensaio sobre Infância de Graciliano Ramos, Maria do Carmo Campos elabora a noção de que o discurso memorialista é

pautado em uma consciência da morte. Em certa escala, o mesmo poderia ser dito de Grande sertão: veredas. Cf. Nas voltas da

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sua disposição para "matar e morrer" e de algum modo jogar luz intensa sobre as mortes simultâneas, idênticas e opostas, de Diadorim e Hermógenes, clímax da tensão das últimas cenas de batalha. A representação dos acontecimentos envolve "um conceito de tempo incompleto e inacabado, portanto: uma história aberta, sujeita a transformações" (85). Contar é "dificultoso", conta-se "pelos altos", usa-se "palavras tortas" - e com a ameaça de eliminar a veracidade, conta-se "errado", fala-se "falso". Problematizando a própria expressividade, Riobaldo se julga um narrador precário, com dificuldades no trabalho da narração, sentindo a precariedade dos resultados desse trabalho. Na verdade, Riobaldo no narra para transmitir um sentido efetivo sobre sua experiência. Ele no entende a própria vida, e o que quer é entendê-la ele mesmo. A narração faz parte desse processo de busca de entendimento.

"O senhor sabe? No acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demeiar, defeito, meu coração naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que no houve. Às vezes, no é fácil."(p.135) O trabalho da narração funciona como retomada da vivência em foco, apreendida por uma ótica emocional, ou submetida a uma atitude analítica. "Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que no entendi." (p.370). A complexidade da matéria narrada se relaciona, nas três passagens, com complicações em sua fala. Por estar permanentemente consciente de seu trabalho como narrador, e por se defrontar com a complexidade desse processo, é que Riobaldo trata a si próprio como narrador precário, declarando contar "pelos altos", em "palavras tortas". No ponto em que relata a história de Davidão e Faustino, Riobaldo diz:

"...isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. (...) o moço me disse (...) que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam memória: a experiência de Infância. In: FISCHER, Luís Augusto, org. Graciliano Ramos. Porto Alegre, Secretaria Municipal de Cultura, 1993. 85 BOLLE, Willi. A modernidade como `Trauerspiel'. Representação da história em W. Benjamin, `Origem do drama barroco alemão'. Revista de História. São Paulo: USP, jun.85 - dez.89. n.119. p.47.

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numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração de Faustino, que falecia... (...) A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! (...) No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam." (p.67) (86)

O comentário aponta para a idéia de que a substância da vida, a matéria vertente, não tem um formato lógico, passível de ser apreendido por esquematismos causais. Pelo contrário, a vida tem formato "inacabado" - aberto, fragmentário.

Contar histórias violentas

"Revolvia tudo isto dentro do meu peito miserável, oprimido pelos mordazes cuidados do temor da morte e por não ter encontrado a verdade." Santo Agostinho, Confissões

Nosso problema remete a alguns elementos que dizem respeito às posições de Walter Benjamin e Hannah Arendt referentes à filosofia da história e ao discurso historiográfico. Considerando esses pensadores, é possível entender que a fragmentação do discurso da história se relaciona com a condição própria do material histórico a ser representado. No caso de Benjamin, trata-se de ver a história como ruína. Distanciando-se da visão positiva da história como progresso, Benjamin a define em termos de destruição. No fragmento 9 de suas teses Sobre o conceito de história, analisando o quadro de Klee Angelus Novus, ele diz sobre a figura do anjo: "Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os

86

A respeito dessa passagem, cabe comentar ainda a imaginação narrativa desse visitante da cidade. Sua história tem uma

diferença fundamental em relação ao desfecho conhecido por Riobaldo: ela tem uma extrema violência que os acontecimentos reais não tinham. Há algo envolvido nesse comentário que merece atenção: o homem de alta cultura se interessa pela violência a ponto de conceber, na fantasia, um evento violento como algo necessário para trazer sentido lógico e beleza a uma narrativa. Isso supõe, na elaboração da fantasia literária, uma disposição intelectual para a visualização da violência associada ao prazer.

55

fragmentos."(87). De acordo com ele, para que se escreva uma história levando "em consideração os sofrimentos acumulados", e dando "nova face às esperanças frustradas", trata-se de reavaliar o conceito de tempo (88). Benjamin recusa a idéia de um tempo "vazio" e "homogêneo". O tempo da história, para ele, é "um tempo saturado de agoras" (89). Isso se assemelha às idéias de Riobaldo, que, a seu modo, procura preservar o "agora" de cada momento específico (com seu "signo e sentimento"), considerando sua intensidade particular, evitando a imagem do tempo homogêneo: "Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.". Essa recusa da homogeneidade, com a valorização do singular e do inefável, faz com que o olhar dedique sua atenção a cada fragmento do passado, sem menosprezar pormenores. A recusa ao tempo homogêneo pode ser pensada como uma recusa ao tipo de pensamento historiográfico que, comprometido a qualquer preço com a ilusão pretensiosa de totalidade, com a sistematicidade e a coerência, opta por representar a História em esquemas gerais, sem reconhecer que podem ser parciais e redutores, e renega objetos que, considerados irrelevantes, ficam à margem do esforço de conhecimento. Por outro lado, "o materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada" (90). A primazia é dada ao objeto singular e não ao sistema total; o conhecimento histórico deve juntar fragmentos, desse espantoso acúmulo de ruína sobre ruína (cf. tese 9). Essa atenção a cada elemento singular, ao pormenor, se demonstrará nos ensaios literários de Benjamin como dedicação ao fragmento. Trata-se de uma postura em relação ao conhecimento do passado que se afasta da posição de alguns dos defensores dos grandes sistemas, que se convencem ilusoriamente da capacidade de eficiência total do que postulam, e humildemente assume a parcialidade inerente ao conhecimento, a subjetividade inevitável que se envolve nele. E toma então essa subjetividade não como um problema técnico a ser suprimido, em nome de uma objetividade supostamente neutra, mas pelo contrário, como ponto de

87

BENJAMIN, Walter. op.cit. p.226.

88

Esse conceito, "tempo de agora", "caracterizado por sua intensidade e brevidade" (grifo meu) tem seu modelo "calcado na

tradição messiânica e mística judaica". GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, 1) p.8. 89 BENJAMIN, Walter. op.cit. p.229. (Tese 14) 90

Idem, p.231.

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partida capaz de definir humanamente a pertinência de seu trabalho intelectual e de seu modo de encarar a racionalidade. Assim, o conhecimento abandona a posição falsa e autoritária do poder total, infinito, e assume sua medida humana: nunca inteiramente racional ou inteiramente objetivo, mas sim marcado pelas circunstâncias do sujeito cognoscente, seus interesses e seus limites; tem, por isso, um caráter necessariamente parcial, fragmentário. Cabe também avaliar a pertinência da idéia de história como ruína para o caso de Riobaldo. Ela faz sentido na medida em que se entenda ruína aqui como expressão de uma trajetória centrada na destruição, no massacre. Sua trajetória não tem como desembocadouro nada que pareça com um progresso, que a justificasse. A condição economicamente estável que Riobaldo conquista não foi obtida com a vida na jagunçagem; e o final de sua estória está marcado por uma perda - de Diadorim. Walter Benjamin, em outro texto, assinalou que "Goethe via nos acontecimentos políticos apenas o horror de uma vontade de destruição periodicamente renovada, à semelhança das forças naturais" (91). Esse horizonte está fortemente presente nos conflitos narrados por Riobaldo. A concepção de Goethe é pertinente para pensar a jagunçagem, pois aponta para uma possibilidade de uma forma de sociabilidade que valoriza a destruição e que apenas aparentemente controla isso por regras. Mais do que isso, projeta o tema para âmbitos mais amplos da História, o que levaria a pensar essa relação constitutiva básica entre violência e política como algo que transcende às especificidades regionais do sertão mineiro, envolvendo problemas históricos mais complexos, de interesse antropológico. O problema de como narrar uma estória pautada por uma escala incompreensível, injustificável e inaceitável de destruição foi vivido por Hannah Arendt, quando se propôs a escrever Origens do totalitarismo. Para ela, a "historiografia é necessariamente salvação e freqüentemente justificação". Como analisa Seyla Benhabib, Arendt parte de uma visão da historiografia que remete a Homero, ou seja, à tradição oral, aproximando-se nesse ponto do horizonte narrativo de Riobaldo. No âmbito da tradição oral, o contador de histórias ultrapassa, com a transmissão de elementos da memória coletiva, os limites dos sujeitos individuais. Conta-se histórias para preservar o passado que, não documentado, só pela voz

91

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.112.

57

do narrador pode sobreviver. Em Arendt se afirma a idéia de uma relação tensa entre o narrador e o passado, que resulte numa repulsa à idéia de preservá-lo. A forma da narração tem de ser adequada a essa relação tensa.

"Historiography originates with the human desire to overcome oblivion and nothingness; it is the attempt to save, in the face of the fragility of human affairs and the inescapability of death, something "which is even more than remembrance.". Proceeding from this Greek and even Homeric conception of history, for Arendt the first dilemma posed by the historiography of totalitarianism was the impulse to destroy rather than to preserve. "Thus my first problem was how to write historically about something - totalitarianism - which I did not want to conserve but on the contrary felt engaged to destroy". The very structure of the traditional historical narration, couched as it is in chronological sequence and the logic of precedence and sucession, serves to preserve what has happened by making it seem inevitable, necessary, plausible, understandable, and in short justifiable. Nothing seemed more abhorrent to Arendt than the dictum that die Weltgeschichte ist das Weltgericht (world history is the court of the world). Her response to this dilemma was the same as Walter Benjamin`s: to break the chain of narrative continuity, to shatter chronology as the natural structure of narrative, to stress fragmentariness, historical ends, failures and ruptures. Not only does this method of fragmentary historiography do justice to the memory of the dead by telling the story of history in terms of their failed hopes and efforts, but it is also a way of preserving the past being enslaved by it, in particular without having one`s moral and political imagination stifled by arguments of "historical necessity"". (92).

Como aceitar a violência do real como Necessidade? Se tudo tem sentido, que sentido dar à violência? O dilema de Arendt, que condiciona a estrutura e a finalidade de seu discurso historiográfico, está marcado por questões que moralizam a narratividade. O problema colocado por Benjamin e Arendt e, em certo sentido, por Rosa através de Riobaldo, é o de contar a história de uma experiência vivida em um universo em que a idéia de uma harmonia última, de uma ordem do mundo, parece insustentável, e a história se apresenta como acúmulo de experiências de destruição, sem qualquer horizonte positivo.

92

BENHABIB, Seyla. Hannah Arendt and the redemptive power of narrative. Social Research. V.57. n.1. New York: New School for

Social Research, spring 1990. p.181. O trecho citado inclui passagens (entre aspas) de um texto de Hannah Arendt, "A reply" (Review of politics, jan.1953).

58

Riobaldo e "O narrador" de Benjamin

Grande sertão: veredas é uma obra que exige atenção especial ao ser examinada de acordo com a oposição, avaliada no ensaio O narrador por Walter Benjamin, entre narrativa oral e romance. Benjamin opõe o romance à narrativa oral antiga; a obra de Guimarães Rosa, constituída como romance, encena uma narração oral. Guardadas as devidas proporções que distinguem a antigüidade a que se reporta Benjamin da paisagem brasileira para a qual Rosa se volta, parece ser de interesse analisar, segundo alguns dos vários critérios propostos por Benjamin, o que é que Guimarães Rosa parece ter preservado da antiga tradição narrativa oral, e quais traços atribuíveis ao romance Grande sertão: veredas apresenta. São examinados neste ponto apenas dois aspectos - a narrativa oral como sabedoria, e o romance como arte do indivíduo isolado. Para que a narrativa represente um saber, é necessário que sua forma seja clara, de maneira a tornar o sentido apreensível pelos ouvintes. Um bom exemplo dessa disposição clara é o tradicional conto de fadas. Para Benjamin, "o primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de conto de fadas" (93). Nos contos de fadas, é possível estabelecer, às vezes provisoriamente, mas geralmente com clareza, a linha divisória entre as forças em tensão (polarizando, o bem e o mal). Com a percepção dessa linha divisória, de função mítica, o mundo ganha uma ordenação moral relativamente clara, sendo possível identificar, ao longo do tempo narrativo, os predicados específicos de cada personagem. Em Grande sertão: veredas, essa clareza não existe. Riobaldo declara: "Neste mundo tem maus e bons - todo grau de pessoas. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons?" (p.237). "... a gente não sabe em que rumo está - em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?" (p.410). Como as linhas divisórias entre as forças do bem e do mal não estão claras, os predicados dos personagens que giram em torno de Riobaldo, e especialmente os de suas próprias ações, são precários, e o sentido de cada episódio é incerto.

93

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. op.cit. p.215.

59

Como a narração de Riobaldo, por essa linha de raciocínio, representa uma tentativa de interpretação, e não a transmissão de um sentido já elaborado, ela se distingue daquelas narrativas orais a que se refere Benjamin. As incertezas de Riobaldo, que pontuam o decorrer do romance, impedem que se encare a narração como ditado de uma norma de vida, de um conselho, pois na verdade, marcadamente nas referências ao interlocutor, fica claro que quem deseja alguma orientação é o próprio Riobaldo. "Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que? Quero é armar o ponto num fato, para depois lhe pedir um conselho. Por daí, então, careço que o senhor escute bem essas passagens da vida de Riobaldo, o jagunço." (p.166). Benjamin fala no romance como arte do "indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los" (94). A descrição parece corresponder à condição de Riobaldo, incerto em sua narração. Para Benjamin, isso consiste em um traço do romance, mas parece ter ganho nitidez, nesse caso, exatamente pela encenação da narração oral. Trazendo a figura do interlocutor para dentro do romance, a obra põe em jogo a questão da comunicabilidade. O romance elabora, em certa medida, uma meta-história, colocando, como que circunscrita às experiências narradas, a problemática do poder narrar. Estando abertas fissuras entre o Bem e o Mal, a narração assume o papel de pesquisa com finalidade de cura; a insistência em definir se o Diabo existe, as perguntas sobre as motivações das coisas (por que encontrou o Menino?), são expressões de uma busca de uma ordem do mundo; com essa ordem, seria possível assimilar, com seu significado devido, a presença do estranho e do maligno. Assim, considerando as idéias de Lévi-Strauss, Benjamin e Carlo Ginzburg, é possível afirmar que a narração em Grande sertão: veredas é operada tendo em vista uma intenção de tornar de algum modo aceitáveis (ou pelo menos mais compreensíveis) situações e problemas que, antes de ela se processar, não o são.

A linguagem inquietante

94

Idem. p.201.

60

"...quando Hermes se faz de poeta inspirado, que com arte e saber tira sons harmoniosos da lira, longe de pronunciar palavras `vós, inúteis', `realiza' os deuses imortais e a Terra tenebrosa." Marcel Detienne, Ambigüidade da palavra

Um critério de Walter Benjamin para identificar uma obra historicamente significativa cabe para examinar Grande sertão: veredas. Ele afirmou:

"(...) justamente as obras significativas se colocam além dos limites do gênero, a menos que nelas o gênero se revele pela primeira vez, como ideal. Uma obra de arte significativa ou funda o gênero ou o transcende (...)"(95) Anatol Rosenfeld afirmou ver na obra de Rosa "o romance caminhando para a poesia" (96). A idéia de uma fusão de gêneros em Grande sertão: veredas foi apresentada, de diferentes maneiras, por Sérgio Milliet (97), Alfredo Bosi (98) e Roberto Schwarz (99), e discutida sistematicamente por Davi Arrigucci Jr. (100). A fusão de gêneros na estrutura envolve um vínculo de ordem semântica entre a matéria narrada (incluindo os elementos de teor notadamente épico, como os grandes combates) e um tom lírico. O gênero lírico, em estado puro, se caracteriza por ser subjetivo. De acordo com Anatol Rosenfeld,

"Quanto mais os traços líricos se salientarem, tanto menos se constituirá um mundo objetivo, independente das intensas emoções da subjetividade que se exprime. Prevalecerá a fusão da alma que canta com o mundo, não havendo distância entre sujeito e objeto. Ao contrário, o mundo, a natureza, os deuses são apenas evocados e nomeados para, com maior força, exprimir a tristeza, a solidão ou a alegria da alma que canta." (101).

A forma poética de utilização da linguagem em Grande sertão: veredas está ligada diretamente aos temas decisivos da obra. A fragmentação formal, esteticamente necessária, expressa o modo de constituição da subjetividade de Riobaldo. Conforme as noções examinadas anteriormente, à p. 9, a 95

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.66.

96

ROSENFELD, Anatol. Vanguarda em questão. In: VÁRIOS. Vanguarda e modernidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971.

97

"A saga do jagunço, com sua épica e sua lírica, aí se nos oferece." (grifos meus). MILLIET, Sérgio. Julho, 31.In:____. Diário

crítico. São Paulo: Martins, EDUSP, 1982. V.X. p.196. 98 BOSI, Alfredo. João Guimarães Rosa. op.cit. p.486. 99

SCHWARZ, Roberto. Grande sertão: a fala. In: ___. A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

100

Esse tema consistiu no eixo central das reflexões apresentadas em seu curso "Aspectos da teoria do romance (A questão dos

gêneros em "Grande sertão: veredas")", ministrado no segundo semestre de 1990, na Pós-Graduação da FFLCH-USP. 101 ROSENFELD, Anatol. op.cit. p.23.

61

convivência com a morte condicionaria a forma de o sujeito empregar a linguagem, abrindo horizontes impensáveis para o homem comum. A "concentração intencional da sonoridade sobre certas letras, sílabas e palavras" é um recurso que "conforma-se inteiramente com a natureza da poesia lírica" (102). A narração de Riobaldo é constituída com tom e estilo propriamente líricos; está em jogo a "expressão do modo de conceber e de sentir, do estado de alma alegre ou melancólico, corajoso ou deprimido..." (103). Em um caso em que a consciência sofre instabilidades, e se constitui em termos de ambigüidades, a expressão lírica dessa consciência tende a se estruturar precisamente com esses traços. Um inventário dos recursos de exploração da sonoridade em Grande sertão: veredas (104) foi feito por Cavalcanti Proença. Exemplos de aliterações, rimas, ritmos e onomatopéias são extraídos do romance. Proença diz que por vezes a "tendência lúdica da prosa" é reforçada "até a pura música" (grifo meu) (105). As aliterações aparecem constantemente na fala de Riobaldo. Cabe tentar desenvolver uma reflexão sobre a função desses recursos na ficção de Rosa (106), mesmo considerando as inevitáveis limitações de rigor analítico no campo da motivação da sonoridade. Em vários casos, as analogias consonantais parecem apontar para vínculos semânticos ou ênfases.

HEGEL, G. A poesia lírica. In: ____. Estética-poesia. Lisboa, Guimarães, l980. p.250. Idem. p.225. Por exemplo, em Grande sertão: veredas, freqüentemente, o estado amoroso é exposto por Riobaldo com uma linguagem que acentua o envolvimento intenso através de aliterações ostensivas. Cabe mencionar alguns exemplos, nos quais a ênfase recai sobre os sons de /m/ (em (a)), /b/ (em (b)), /r/ (em (b) e (c)) e /l/ (em todos): (a) "Molhei mão em mel, regrei minha língua" (p.146) 102 103

(b) "(...) de bel-ver, bel-fazer, bel-amar" (p.149) (c) "(...) os belos olhos dele formavam lágrimas." (p.225). 104 Cabe lembrar o enfoque de Augusto de Campos, que pensa a relação entre literatura e música em "Grande sertão: veredas" em termos de arranjo estrutural: seria possível pensar a narração de Riobaldo em termos de uma "tematização musical". A partir de uma frase ou de uma palavra, seriam elaborados motivos musicais, recorrentes na obra. Valorizações de fonemas sugeririam "uma temática de timbres" (p.333); entre esses timbres, o enfático d de Diadorim e do demônio seria fundamental. CAMPOS, Augusto de. Um lance de dês do Grande sertão. In: COUTINHO, Eduardo, org. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília: INL, 1983. (Fortuna crítica). Embora essa leitura de uma semelhança estrutural seja ligada à nossa reflexão, faltam bases de conhecimento de música para avaliar as homologias feitas por Campos. 105 PROENÇA, Cavalcanti. Trilhas do Grande sertão. In: ___. Augusto dos Anjos e outros ensaios. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. p.225. Inventário afim, mas detido nos contos de "Primeiras estórias", foi elaborado por Paulo Ronai. Como Proença, Ronai chama a atenção para rimas, aliterações, marcas de ritmo e onomatopéias, através de exemplos. Ele diz que há frases de Rosa "que exigem notação musical" e também que a aliteração serve como "acompanhamento musical" (RONAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. 6 ed. p.XIV. grifos meus.). 106 Proença menciona o aparecimento de procedimentos idênticos na linguagem popular (PROENÇA, Cavalcanti. Trilhas do Grande sertão. op.cit. p.229), o que significaria justificar sua exploração com uma filiação à cultura popular. Esse fator, não sendo o único, certamente é um dos elementos envolvidos na definição da forma.

62

Davi Arrigucci Jr. formulou o problema da função da sonoridade, avaliando sua complexidade: "a sonoridade (...) em Rosa parece tender, às vezes, a adquirir valor autônomo, como se correspondesse a uma intenção poética autônoma ou procurasse fundar a sua própria significação, ao desligar-se do significado" (107). A leitura de declarações não ficcionais de Guimarães Rosa autoriza a dizer que o autor tinha interesse por uma expressividade musical da linguagem. Suas idéias sobre o assunto supõem uma consciência do valor estético da musicalidade dos textos.

Embora suas reflexões não constituam uma inclinação

teorizante sistemática, e o conjunto de suas declarações seja complexo e controverso, há uma intenção clara, evidenciada esparsamente, de valorizar a potencialidade musical inerente aos significantes verbais. Rosa, em uma entrevista, diz ser "precisamente um escritor que cultiva a idéia antiga, porém sempre moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos." (108). Para Alfredo Bosi, a musicalidade da linguagem em Rosa é relacionada aos "conteúdos sociais e psicológicos" veiculados na sua obra: a exploração da sonoridade seria uma forma de dimensionar o signo estético, fazendo da palavra um "feixe" de significações em "grau eminente de intensidade" (109). O uso de recursos sonoros que incorrem em musicalidade teria uma intenção semântica (110). Em O ser e o tempo da poesia, de Alfredo Bosi, a relação entre sonoridade e significado na linguagem literária foi explicada teoricamente, com os seguintes termos:

107

ARRIGUCCI JR., Davi. Guimarães Rosa e Góngora: metáforas. op.cit. p.135.

108

Entrevista de Guimarães Rosa concedida a Gunter Lorenz. op.cit. p.88. Cabe assinalar que a relação de Rosa com a música

também se desenvolve no nível da estrutura do texto, de modo afim ao investigado por Augusto de Campos (CAMPOS, Augusto de. Um lance de dês do Grande sertão. op.cit.). Rosa disse que as alusões intertextuais que fez em "Dão-Lalalão" têm semelhança com o procedimento de Beethoven de inscrever em sua sinfonia uma frase temática da `Marselhesa', e que o modo como as referências são distribuídas no conto pode ser comparado ao processo de modificação do tema que "ocorre, na música, nas fugas" (Esta colocação aparece em uma carta entre parênteses e sob forma interrogativa.), em sua correspondência com seu tradutor italiano (ROSA, Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizarri. São Paulo: T.A.Queiroz, Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1980. 2 ed. p.55.). 109 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. op.cit. p.485-6. 110

Um comentário importante de Rosa, em carta ao tradutor, aborda o conto O recado do morro (de Corpo de baile). Ele esclarece

o significado do termo "superlim": "muito gentil, encantador". E diz: "Valeu, no texto, pela rima, ritmo, aliteração. E pelo agudo, insistido, da vogal". Esse comentário é exemplar para reparar na valorização da musicalidade por Rosa. Abre-se um parêntese e ele então enuncia: "Tudo deve ser cacho de acordes" (ROSA, Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizarri. São Paulo: T.A.Queiroz, Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1980. 2 ed. p.43.). Usando um termo próprio da metalinguagem musical - acorde - e uma palavra generalizante - tudo - em frase assertiva, essa frase é expressão de uma poética, uma estética que Rosa não sistematizou objetivamente, mas que efetivamente realizou em sua arte: evidenciar a potencialidade musical dos signos verbais. Radicalizando (mas não exagerando) é possível dizer que Rosa quer a literatura como música, pelo menos em uma dimensão: alheando-se em certo nível à condição gráfica de seus textos, Rosa pensa sua linguagem enquanto som, articulando-a numa estética a um tempo literária e musical.

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"(...)o que se dá é uma operação expressiva organizada em resposta à experiência vivida e, o quanto possível, análoga a um ou mais perfis dessa experiência. Nessa operação o som já é um mediador entre a vontade-de-significar e o mundo a ser significado." (111). Considerando essas noções, cabe tentar examinar de que modo elementos temáticos de Grande sertão: veredas - como a violência, o mal, a morte - podem condicionar a superfície formal; e em que medida a violenta vida de jagunço pode ser um fundamento de musicalidade lírica. A figuração desses elementos através da sonoridade, como recurso esteticamente necessário com relação às referências do enredo, ocorre através de procedimentos expressivos como a ênfase (112) e a descontinuidade (113). A ênfase, desmedida, pode ser interpretada no contexto como marca do excesso a que a consciência está submetida, com a gravidade imposta pelo convívio cotidiano com a possibilidade da morte. A descontinuidade, por sua vez, no contexto, aponta para as incongruências de sentido entre os fatos recuperados pela memória. As rupturas da linearidade temporal e causal nos blocos da sintaxe narrativa têm correspondente expressivo nas elipses e inversões sintáticas e nas variações de timbres e tons sonoros dadas pela diversidade de aliterações, assonâncias e ritmos. A tendência à desordem, temática central na obra, estaria mimetizada na desordem morfológica e sintática (114). Walter Benjamin usou o termo "violência fonética" para avaliar a versificação barroca (115). Em certa medida, essa noção é fecunda para a leitura de Grande sertão: veredas. Retomando a idéia de Alfredo 111

BOSI, Alfredo. O som no signo. In: _____. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, s.d. p.50.

112

Davi Arrigucci Jr. diz sobre Guimarães Rosa e Góngora: "Ambos violentam a língua para acomodá-la a uma visão de mundo

que tem por traço característico, no plano expressivo, a ênfase. Cabe observar que Arrigucci usa o verbo "violentar" (em sentido figurado, como tensionar, transgredir regras). ARRIGUCCI JR., Davi. Guimarães Rosa e Góngora: metáforas. op. cit. p.132; grifo meu. 113 Comentado as construções sintáticas de Grande sertão: veredas, Jean-Paul Bruyas afirma: "...o descontínuo, o chocante, o imprevisto das construções dão à língua uma acentuação muito diferente. Daí a eficácia, pela surpresa, pela alerta constante." BRUYAS, Jean-Paul. Técnicas, estruturas e visão em Grande sertão: veredas. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP-IEB, l976. n.18. p.78; grifo meu. Os dois traços levantados, de acordo com esta leitura, considerando o conjunto dos elementos da obra, mimetizam em certo nível as tensões da violência. Porém, nada autoriza a se entender essa compreensão como uma proposta de código geral de decifração, suscetível de aplicação na leitura de outras obras; tendo em vista outros textos, a análise e interpretação de elementos sonoros similares poderia ser elaborada de maneiras muito diferentes. 114 Está se levando em conta aqui a noção de "efeito sugestivo da poesia", exposta por Hugo Friedrich. (Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978. p.122.) Cabe lembrar, nesse sentido, que Ivan Fónagy, em um estudo sobre Racine, afirma que uma personagem "transgride as leis da métrica ao mesmo tempo que enfrenta as regras da moral". FÓNAGY, Ivan, apud TODOROV, Tzvetan. O sentido dos sons. In: VÁRIOS. Linguagem e motivação. Porto Alegre: Globo, l977. p.63. 115 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.227.

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Bosi de que a exploração da sonoridade faria da palavra um "feixe" de significações em "grau eminente de intensidade" (116), a fonética poderia ser considerada violenta na medida em que o comportamento provocador da sonoridade acentuasse, como que por timbres, a intensidade das imagens de violência apresentadas no discurso. A musicalidade da linguagem, perceptível nos exemplos abaixo, não sendo casual, tenderia a vincular vocábulos e temas, através de efeitos que indiciassem timbres sugestivos

e tons emocionais. Foi

percebida por Benjamin, no âmbito do drama barroco, uma "lei estilística do bombástico", que poderia ser percebida nas relações tensas entre sonoridade e logicidade ou no modo de "composição e no ordenamento das palavras" (117), e que em alguma medida está presente na forma de Grande sertão: veredas.

(1) "De manhã, de três lados, demos fogo." (p.75) Um recurso empregado para acentuar a relação de Riobaldo com a batalha é o /d/ que se repete quatro vezes. Esse som, por estar carregado no contexto do livro pelas referências centrais ao demônio (ou ao diabo) e a Diadorim, pode manifestar figuradamente , nessa insistência ostensiva, a presença do demoníaco, ou daquilo que não está inteiramente sob controle (118). A frase se estrutura em uma composição que acentua o elemento três, que se refere à estratégia de guerra, pela partição da frase em três partes. Embora a frase seja impressionante pelo efeito de conjunto, é nítido que há diferenças entre os elementos envolvidos na composição - o número de sílabas e o número de palavras variam (119) - o que acentua a idéia de diferenças por trás da impressão de regularidades ou, dizendo de outro modo, de uma desordem presente na base de uma aparência de ordem, o que se liga ao significado da cena.

(2) "Marcelino Pampa (...) demorou dentro dum momento." (p.71)

116

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. op.cit. p.485-6.

117

BENJAMIN, Walter. op.cit. p.231-2.

118

O mesmo poderia ser dito a respeito do uso de /d/ na frase "(...) depois se deu a selvagem desgraça (...)" (p.122).

119

O número de sílabas em "De manhã" é três; nas outras partes, é quatro. A quantidade de palavras em "De três lados" é três;

nas outras partes, é duas.

65

O /d/ se repete, em uma composição que envolve a idéia da contração da linguagem - trissílabo, dissílabo, monossílabo. Essa contração, observável na quantidade de sílabas sonoras, mimetiza a contração de Marcelino, voltado para sua consciência, em silêncio, tendo de decidir sobre quem ocupará o cargo de chefia. O /d/, de dúvida e decisão, reaparece em nova aliteração quando a decisão é tomada, como se se fechasse um círculo codificado: "Depressa deu, o consumado" (p.71).

(3) "(...) comem o cru de cobras. Carecem." (p.131) O /k/, som seco, fisicamente avesso à continuidade, que se esgota ao ser enunciado, é enfatizado ao Riobaldo se referir a condições hostis, de privação, limitação.

(4) "(...) um terrível escorrer de chumbo derretido." (p.173) A insistência na aspereza do /r/ acentua, quase sugerindo um rosnar de feras, a agressividade do ato de Maria Mutema, na cena relatada.

Cabe examinar como exemplo, com a mesma perspectiva, uma passagem mais extensa.

(5) "Conheci o que estava para ser: que os dele e os meus tinham cruzado grande e doido desafio, conforme para cumprir se arrumavam, uns e outros, nas duas pontas da rua, debaixo da forma; e a frio desembainhavam. O que vendo, vi Diadorim - movimentos dele. Querer mil gritar, e não pude, desmim de mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno daquela rua, para encurralar comprido... Tiraram minha voz. Como vinham de lá e de lá, em contra-ranchos, a tomar armas, as cartucheiras de tiracol. Atirar eu pude? A breca torceu e lesou meus braços, estorvados. Pela espinha abaixo, eu suei em fio vertiginoso. Quem era que me desbraçava e me peava, supilando minhas forças? -"Tua honra... Minha honra de homem valente!..." - eu me, em mim, gemi: alma que perdeu o corpo. O fuzil caiu em minhas mãos, que nem pude segurar com o queixo e com os peitos. Eu vi minhas agarras não valerem! Até que trespassei de horror, princípio branco. Diadorim a vir - do topo da rua, punhal em mão, avançar - correndo amouco... Aí, eles se vinham, cometer. Os trezentos passos. Como eu estava depravado a vivo, quedando. Eles todos, na fúria, tão animosamente. Menos eu! Arrepele que não prestava para tramandar uma ordem, gritar um conselho. Nem cochichar comigo pude. Boca se encheu de cuspes. Babei... Mas eles vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro, bramavam, se investiram... Ao que - fechou o fim e se fizeram. E eu atravessei, na ânsia por um livramento... Quando quis rezar - e só um pensamento, como raio e raio, que em mim. Que o senhor sabe? Qual: ... o Diabo na rua, no meio do redemunho... O senhor soubesse... Diadorim - eu queria ver - segurar com os olhos... Escutei o medo claro nos meus dentes... O Hermógenes: desumano, dronho - nos cabelões da barba... Diadorim foi nele... com uma quebra de corpo, gambetou... E eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão... e só...

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E eu estou vendo! Trecheio, aquilo rodou, escarniçados, roldão de tal, dobravam para fora e para dentro, com braços e pernas rodejando, como quem corre, nas entortações. ... o diabo na rua, no meio do redemunho... Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e rapado... Sofri rezar, e não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas, no embrulhável. A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios. ... o Diabo na rua, no meio do redemunho... Assim, ah mirei e vi - o claro claramente: aí Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... Ah, cravou - no vão - e ressurtiu o alto esguicho de sangue: perfiou para bem matar! Soluço que não pude, mas que eu queria um socorro de rezar uma palavra que fosse, bradada ou em muda; e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios de arrebatado no momento, foi poder imaginar a minha Nossa-Senhora assentada no meio da igreja... Gole de consolo... Como lá em baixo era fel de morte, sem perdão nenhum. Que enguli vivo. Gemidos de todo ódio. Os urros... Como, de repente, não vi mais Diadorim! No céu, um pano de nuvens... Diadorim! Naquilo, eu então pude, no corte da dor: me mexi, mordi minha mão, de redoer, com ira de tudo... Subi os abismos... De mais longe, agora davam uns tiros, esses tiros vinham de profundas profundezas. Trespassei. Eu estou depois das tempestades. O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucúia é ázigo... Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O senhor enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?... Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei. Conforme conto. Como retornei, tarde depois, mal sabendo de mim, e querendo emendar nó no tempo, tateando com meus olhos, que ainda restavam fechados. Ouvi os rogos do menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito e meus braços, reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem acordo, dando ataque, mas que não tivesse espumado nem babado. Sobrenadei. E daí, não sei bem, eu estava recebendo socorro de outros - o Jacaré, Pacamó-de-Presas, João Curiol e o Acauã -: que molhavam minhas faces e minha boca, lambi a água. Eu despertei de todo - como no instante em que o trovão não acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caiu o raio... Diadorim tinha morrido - mil-vezes-mente - para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejaram." (p.449-51) A passagem pode ser examinada, para compor o andamento dos comentários, por meio de uma divisão em três partes. Na primeira, Riobaldo narra cenas do combate entre seus homens e os de Hermógenes. A segunda, que para efeito de raciocínio restringimos ao parágrafo iniciado com "O senhor", é um intermezzo, em que nossa atenção é desviada para referências ao interlocutor. A terceira, iniciada com "Conforme conto", expõe a morte de Diadorim. Cada uma das partes tem características estilísticas específicas, que têm seu peso semântico. Na primeira parte do trecho examinado, alguns sons se destacam pela sua recorrência. O /k/, que no exemplo (3) estava vinculado à privação, associada ao sofrimento do corpo, aqui é aproveitado na expressão minuciosa do esfacelamento, do momento do corte: "Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e rapado...". O /d/ está associado ao combate: "doido desafio", como no exemplo (1); e também é repetido na descrição do inimigo: "O Hermógenes: desumano,

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dronho". O /r/ aparece, como no exemplo (4), na expressão de imagens de aniquilação: "aquilo rodou, escarniçados, roldão de tal"; "Ao ferreio". Na passagem em que Riobaldo expõe a cena de seu próprio desfalecer, a queda que lhe impede de participar ativamente do combate, momento que coincide com o encontro de Hermógenes e Diadorim, são usados recursos de fragmentação na composição que procuram mimetizar, no momento da narração, o estado específico da interioridade de Riobaldo naquele ponto do passado. Assim, de "Ao que" até "e só...", são utilizadas numerosas vezes traços e reticências, separando unidades sintáticas que poderiam, plausivelmente, estar dentro de estruturas subordinativas. A lógica da subordinação dá lugar à descontinuidade dos fragmentos representada graficamente, marcando a perda radical, neste ponto, de qualquer vínculo com uma das bases do pensamento que respeita imposições gramaticais convencionais: a idéia de que a matéria da narração se presta à organização esquemática, pela causalidade sucessiva. Esse pequeno trecho revela a implosão radical da linguagem subordinativa, que cede, em parte como numa espécie de iluminação profana (120), a visões que se sucedem de maneira desarticulada diante de uma consciência que está atenta, mas incapaz de alojá-las em uma ordem sintática. Há um dado relevante no vocabulário da passagem. Existe uma recorrência do verbo ver e de elementos afins: "O que vendo, vi Diadorim" ; "Eu vi minhas agarras"; "Diadorim - eu queria ver segurar com os olhos... "; "E eu estou vendo!"; "Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando,"; "Assim, ah - mirei e vi - o claro claramente:"; "não vi mais Diadorim!". Essa intensidade de visão - que chega ao desejo de "segurar com os olhos", um desejo de atingir o objeto através da visão expressa uma intensa entrega ao sentimento e ao conhecimento. O estado contemplativo de Riobaldo envolve um interesse em ter um contato com o amigo que luta, e uma descontinuidade que manifesta a fragilidade de Riobaldo nesse momento. Para Alfredo Bosi, o olhar "está implantado na sensibilidade, na sexualidade (...) sua direção é atraída pelo ímã da intersubjetividade. O olhar condensa e projeta os estados e movimentos da alma." (121)

120

WISNIK, José Miguel. Iluminações profanas (poetas, profetas, drogados). op.cit.

121

BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. In: ____ e outros. O olhar. São Paulo, Companhia das Letras/FUNARTE, 1988. p.78.

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Outro aspecto recorrente é a marca de primeira pessoa. Há diversas marcas verbais, mas vale destacar as pronominais: "os meus"; "desmim de mim-mesmo, me tonteava,"; "Tiraram minha voz"; "Atirar eu pude?"; "me desbraçava e me peava, supilando minhas forças?"; "Minha honra de homem valente!"; "eu me, em mim, gemi"; "minhas mãos"; "minhas agarras"; "eu estava depravado"; "Menos eu!"; "Nem cochichar comigo pude"; "E eu atravessei"; "que em mim"; "eu queria ver"; "nos meus dentes"; "E eu estou vendo"; "eu queria um socorro"; "a minha Nossa-Senhora"; "eu então pude"; "me mexi, mordi minha mão,"; "Eu estou depois das tempestades". Como recurso formal, a recorrência de marcas de primeira pessoa contribui para dar à exposição do combate entre os grupos e ao encontro entre Diadorim e Hermógenes a seguinte característica: essa repetição faz voltar a atenção sobre o sujeito Riobaldo, afastando-a do objeto de sua consciência, daquilo que ele vê. A conseqüência mais natural disso é que o encadeamento narrativo se torna descontínuo, por não haver um único núcleo de interesse de leitura. Há ainda outra conseqüência, de ordem semântica. A recorrência figura, por si mesma, uma problemática: a necessidade de reconhecer um conteúdo no eu. Riobaldo se abala em razão de que esse combate é, do ponto de vista do conjunto da narrativa, um ponto em que se coloca em questão sua condição como jagunço. A queda no momento em que deveria ir combater, indicativa da sua fragilidade, sua incongruência em relação à função que assumiu, vem acompanhada de um jorro de referências ao que é o eu, o meu, o mim. Esse ocupar-se de si mesmo através de um olhar que vê partes e decompõe representa um exame dos fundamentos da subjetividade, que se vê lançada no vazio, no "desmim de mim-mesmo", num redemoinho de figuras que remetem constantemente a um eu que não tem âncora segura, referente último, nem motor definido para o que faz. O que resta ao eu é a consciência da fragilidade - "Atirar eu pude?", "eu me, em mim, gemi", "eu estava depravado", "eu queria um socorro", "Eu estou depois das tempestades". A relação entre a recorrência de marcas de primeira pessoa e de formas de referir ao ato de ver consiste em que, tendo sido jogado o eu na fragilidade, na crise de referências aberta pela chegada do momento de um combate decisivo do qual Riobaldo não tem condições de participar, o que interessa a Riobaldo é "segurar com os olhos", substituir o agir impossível pelo ver possível, que capta o objeto sem atingi-lo materialmente. O objeto, sendo oferecido à consciência através da representação visual, surge para Riobaldo, sem que sua consciência possa subtrair a distância entre sujeito e objeto. Essa situação

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remete, em certo sentido, ao estado ao mesmo tempo presente e ausente de Riobaldo, dentro do combate. Sua posição contemplativa e isolada é como que presente ao mesmo tempo que ausente; as representações visuais lhe oferecem figuras que, mesmo distantes de seu corpo, se aproximam pelo olhar intenso, que "mira e vê" e "quer segurar com os olhos". Essa encenação de presença e ausência, e de uma absorção contemplativa intensa, como que sintetiza imageticamente traços da trajetória de Riobaldo importantes em sua composição como personagem - integrado e estranho à jagunçagem, e dedicado a observar obsessivamente Diadorim. A frase "... o Diabo na rua, no meio do redemunho..." aparece três vezes nesse trecho. Uma, antes de Diadorim atacar Hermógenes. Outra, quando os dois estão lutando, antes da palavra "Sangue". A terceira, logo antes de Diadorim "sangrar o Hermógenes". A cada vez, a frase serve de prenúncio de uma nova etapa do combate, referindo-se justamente àquilo que é o "resumo da vida" de Riobaldo: o ato de matar Hermógenes. A articulação entre as imagens de luta e a recorrência da frase aponta para uma identificação entre o mistério do demônio - "existe e não existe" - e o da necessidade desse combate. A luta entre o pactário e aquele que provoca o amor demoníaco constitui o redemoinho no qual, aparentemente, Riobaldo, mesmo à distância, se afoga: "Subi os abismos... (...) Trespassei.". Os dois seres, considerados por Riobaldo demoníacos por diferentes razões, destroem-se à sua frente, sem que ele nada faça. O combate mortal de Diadorim e Hermógenes joga Riobaldo num abismo que tem a pressão desnorteadora de um redemoinho. Um abismo de um encaminhar das coisas sem critérios compreensíveis, da morte sem sentido e sem razão. Riobaldo deixa de se expor à morte, enquanto vê seu inimigo e seu amigo igualarem-se no "fel de morte". O redemoinho é o momento da perda das diferenças: o morrer iguala os seres contrários. E o céu vira então um enigmático e escurecido "pano de nuvens". A segunda parte do trecho examinado, em que Riobaldo dirige-se ao "senhor", concentra frases interrogativas - quatro em um único parágrafo. Não se trata apenas de uma atitude pragmática, de expor dúvidas a serem esclarecidas, mas de uma construção retórica que acentua o teor de incerteza - em sentido amplo - do narrador. As perguntas remetem retrospectivamente a temas anteriormente desdobrados na narração: o saber, o sentido da história, o sertão. São temas que já incorreram, anteriormente, em problematização, em imprecisão. Concentrados neste único parágrafo, os temas do

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saber, da história e do sertão se associam aos "escuros buracos". É o mundo da "origem escura", do "escuro do coração", em que o sujeito é obrigado a se entregar a uma abismal carência de qualquer sentido. A ressalva - "tirante o que vem do Céu" - não é capaz de obstruir a produtividade infinita dos "escuros buracos", do fator imponderável de destruição que atinge constantemente a trajetória de Riobaldo. O ponto onde se situa essa série de enunciações interrogativas, alinhadas aos "escuros buracos", não é casual: está entre a enunciação da morte de Hermógenes e a enunciação da morte de Diadorim. O enigma da morte se instaura de maneira irredutível: a morte de Hermógenes - buscada, planejada, resumo da vida de Riobaldo - coincide com a morte de Diadorim - perda do amigo, separação sem volta do "amor que amei" (p.182). Na terceira parte da passagem examinada, em que Riobaldo volta a si e toma consciência de que Diadorim morreu, a sintaxe recebe tratamento diverso em relação às partes precedentes. As reticências, utilizadas repetidamente em momentos anteriores, aparecem aqui uma única vez, logo antes da enunciação da morte de Diadorim. Mais fluente, o texto agora utiliza repetidamente vírgulas, e emprega recursos de articulação frasal - "e", "mas", "e daí", "que", "como" - que organizam o pensamento de Riobaldo de maneira mais encadeada. O final do combate, a recuperação da consciência e a forma de composição relativamente mais ordenada são três níveis expressivos de uma mesma passagem: a passagem para um mundo em que mais nada prende à jagunçagem, pois o grande combate de vingança acabou, e Diadorim não existe mais. A mudança representa, na caracterização de Riobaldo, uma abertura para uma nova atitude mental, que "sabe e não quer saber", que conhece a desordem e o vazio. Tendo antes dito que queria segurar Diadorim com os olhos, Riobaldo diz que, com sua morte, seus olhos "marejaram". A visão intensa de antes dá lugar à entrega à "tristeza mortal" (p.34), à dor da perda do objeto ao qual se dedicava a visão.

Essas formas complexas de arranjar os elementos lingüísticos contribuem para uma mimetização em diversos níveis expressivos das condições de relação do sujeito narrador com a experiência. Isso consiste em fator de sustentação interna à obra.

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Lidando com a materialidade dos signos lingüísticos, o autor "busca na semântica do insólito o seu modo de responder a situações singulares extremas (...)" (122). A forma de Guimarães Rosa trabalhar a linguagem em seu romance, envolvendo desdobramentos de campos de significação conotativos, contribui de maneira decisiva para a significação da obra. A descrição estrutural dessa forma pode ser, em suma, a seguinte, que corresponde à noção de poética da destruição:

"Fragmenta-se a sintaxe da frase, e, sobretudo, a do texto inteiro, exigindo uma leituramontagem dos segmentos justapostos, que ele deve conciliar dentro do leque ambíguo das múltiplas possibilidades combinatórias. Fragmenta-se também a palavra, freqüentemente se remontando os destroços em neologismos." (123).

"Quando a confrontação se torna colérica e violenta, os fragmentos lingüísticos se amontoam", sugerindo "a impressão do estilhaçado e do caótico". Usando termos de Walter Benjamin, a "linguagem segmentada não está mais a serviço da mera comunicação", não se prestando à compreensão imediatista (124). Essa poética dialetiza, do ponto de vista da percepção do leitor, o andamento da continuidade da leitura e os parâmetros dos limites da significação. O significado de um termo pode ser apreendido de diferentes modos, dependendo dos contornos do contexto textual de leitura. Em uma frase como

"E olhava para os horizontes, sem paciência neles, parecia querer mesmo: guerra, a guerra, muita guerra." (p.185) a repetição ostensiva do termo cria um efeito poético (125) através do jogo rítmico; os significantes, no contexto criado pela sucessão, apontam para um conceito de guerra como excesso. Do primeiro ao terceiro termo, o número de sílabas dobra; e o fato de que as palavras muita e guerra são paroxítonas,

122

BOSI, Alfredo. Situação e formas do conto brasileiro contemporâneo. In: ___, org. O conto brasileiro contemporâneo. São

Paulo, Cultrix, s.d. p.13. 123 ARRIGUCCI JR., Davi. Tema e voltas. op.cit. p.22-3. 124

BENJAMIN, Walter. op.cit. p.230.

125

Conforme Umberto Eco: "A mensagem mostra-se ambígua justamente por um excesso de redundância ao nível do emprego

dos significantes; e o uso da redundância gera, portanto, obrigatoriamente, tensão informativa". ECO, Umberto. A mensagem ambígua e auto-reflexiva. In: ____. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, l976. p.56.

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que consiste em afinidade fônica, se desdobra, pela ação do ritmo - que cria uma figura de fusão crescente - em uma implicação semântica necessária (126).

guerra a guerra muita guerra

"Mas que faca e fogo houvesse, e braços de homens, até resultar em montes de mortos e pureza de paz... Sal que eu comi, só." (p.207) A pureza é atribuída à paz, havendo associação fônica (/p/, /a/, /z/ estão contidos em pureza) e semântica entre os vocábulos. Analogamente, é criado um laço fônico e semântico entre montes e mortos, que acentua a visão de guerra como demasia, excesso, mencionada anteriormente. O par fônicosemântico

faca e fogo, duas paroxítonas de quatro letras, uma feminina e uma masculina, expõe

figuradamente os movimentos da guerra.

Esses exemplos, em suma, apontariam para a idéia de que, em Grande sertão: veredas, a linguagem poderia ser examinada de modo que fossem observados procedimentos associativos, empregados constantemente ao longo de toda a narração, abrindo fissuras na superfície, enredando descontinuamente um tecido de composições adequado à relação tensa de Riobaldo com o assunto de sua narração.

Esse

modo de arranjar os elementos lingüísticos é lírico, pois se fundamenta na subjetividade; a perspectiva privilegia não um relato objetivo de eventos do passado, mas as incertezas de um sujeito no presente sobre si próprio e sobre sua relação com os conteúdos desse relato memorialístico. Os temas, focalizados pela consciência do narrador, chegam ao leitor maculados pela relação inquietante e instável de Riobaldo com suas lembranças. Toda a ação do livro é apresentada em um andamento irregular, descontínuo, de forma freqüentemente dispersiva ou associativa, de acordo com a problemática da consciência do sujeito.

126

O leitor é incitado, ao presenciar as repetições, pela ênfase, a assimilar de forma incomum -

com estranhamento - o

significado do vocábulo, desautomatizando sua relação com ele. Conforme CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In: VÁRIOS. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, l978. p.54.

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Estaria em jogo "a busca de um estilo lingüístico violento, que esteja à altura da violência dos acontecimentos históricos." (127).

Épico e romanesco

O caráter problemático da relação entre Riobaldo e a jagunçagem impede que ele possa ser considerado um personagem rigorosamente heróico. É essencial para a existência heróica que os valores sociais fundamentais não tenham adquirido "objetividade separada da subjetividade individual". Quando essa separação existe, como no caso de Riobaldo, trata-se de uma existência prosaica, não heróica. Por outro lado, um aspecto importante do livro remonta ao heróico - a vingança, como forma de justiça que depende "da subjetividade daqueles que se encarregam do ocorrido (...) à base do direito que fala de dentro deles" (128). A obra combina, ambiguamente, o prosaico e o heróico. Essa combinação corresponde, em termos de gêneros literários, à articulação do épico e do romanesco (129). A ação heróica, própria do épico, tem como base, para Hegel, "movimentos guerreiros"; "a vingança pessoal, e também uma certa crueldade, fazem parte desta energia de épocas heróicas" (130). Porém, Riobaldo tem uma relação ambígua com a violência, e seu empenho no plano de vingança está ligado a um ódio por Hermógenes cujo fundamento ele mesmo desconhece. Assim, o sentido das ações guerreiras é problematizado por Riobaldo, e os elementos propriamente épicos funcionam, ambiguamente, como parte de uma estrutura romanesca. O heroísmo, na modernidade, pode ser pensado em termos de uma ambigüidade ética. Segundo René Girard, o herói, para o pensamento moderno, "não pode se tornar benéfico sem deixar de ser maléfico, e vice-versa" (131). Em geral, o herói é transgressor e destruidor de monstros. Riobaldo reúne essas características: por um lado, é avesso a certos aspectos das convenções jagunças; por outro, se engaja no

127 128

BENJAMIN, Walter. op.cit. p.77. ROSENFELD, Anatol. Heróis e coringas. In: Teoria e prática. São Paulo: (2):41-3, out.s.a.

129

O termo "romanesco" aqui se refere ao gênero moderno romance, e não ao gênero medieval que recebe o mesmo nome.

130

HEGEL. A poesia épica. op.cit. ps.151, 160.

131

GIRARD, René. Édipo e a vítima expiatória. In:___. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 1990. p.112.

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plano de matar Hermógenes exatamente como alguém que tem a missão de destruir um monstro (um demônio). Essa ambigüidade, segundo Girard, escapa às nossas condições de poder julgar.

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PARTE III

O Mal na origem

A lembrança mais remota de Riobaldo, momento decisivo da infância, que em certo ponto da narração é evocada pela memória, é uma lembrança de ódio.

"O senhor sabe: a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacêdo..."(p.35)

O ódio tem uma dimensão constitutiva em Riobaldo. Essa referência, aparentemente eventual ou casual, é relevante ao esclarecer a força que tem, para a consciência do narrador, uma relação de ódio; a origem, assim, está associada a uma negatividade, ao invés de a um apego ao mundo. Esse elemento de valor biográfico está relacionado com uma concepção mais ampla sobre a vida humana - esta de Quelemém, o confidente amigo - que vê o Mal na origem. Especificamente, o que se vê no trecho citado a seguir é a possibilidade de um fundamento infernal - demoníaco - na origem de todos os homens, que estaria na base da vocação para a violência.

"A gente viemos do inferno - nós todos - compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstros-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua substância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros - as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso." (p.40)

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Essa hipótese de uma origem infernal, de uma condição humana advinda do Mal puro, é um dos caminhos para a compreensão do problema, fundamental na obra, da vocação humana para o Mal. Essa hipótese dá a entender que essa vocação é inata; nascemos com ela. Outro caminho de reflexão é apresentado em outra passagem: a idéia de uma educação da perversidade, baseada em exercícios e dedicação.

"Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência. Mas, com o tempo, todo o mundo envenenava do juízo." (p.131)

Na leitura que Alfredo Bosi faz do Grande sertão, o Mal apareceria no romance como um componente da subjetividade humana. Riobaldo, segundo Bosi, "parece concluir que o mal é um atributo do ser, um acidente que vicia o coração dos homens (...)" (132). Grande sertão: veredas aborda o problema da dimensão humana do Mal. Colocado nessa perspectiva, o tema do demônio ganha contornos antropológicos bem definidos; o problema do Mal é, em suma, um aspecto de uma abordagem sobre a constituição da subjetividade. O Mal seria algo próprio da interioridade humana, em uma dimensão aquém ou além de regras de atitude moral ou do peso de circunstâncias, remetendo a regiões essenciais e obscuras do comportamento humano, fora do controle do pensamento racional (133). BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. op.cit. p.488. A suposição de uma vocação humana para o Mal - ou para a destruição, a transgressão - foi tema constantemente abordado na história da literatura. Grande sertão: veredas recupera a seu modo um assunto que tem importância sobretudo em sua articulação com a noção de livre escolha; em vários textos literários, o homem que pode definir o que fazer de si próprio freqüentemente é apresentado com uma tendência à destruição, à transgressão, à violência. Sem desconsiderar o peso das diferenças (históricas, de tema, de gênero) entre as obras, cabe assinalar essas afinidades eletivas que, tendo sido observadas em intuições, por razões práticas, não serão exploradas aqui mais detidamente. A idéia de um Mal definidor da própria condição humana foi formulada por Shakespeare, em um de seus sonetos: 132 133

No, I am that I am, and they that level/ At my abuses, reckon up their own,/ I may be straight though they themselves be bevel;/ By their rank thoughts, my deeds must not be shown./ Unless this general evil they maintain,/ All men are bad and in their badness reign. (SHAKESPEARE, William. Soneto 121. In: ____. Sonetos. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d. p.116. Tradução de Péricles E. Ramos: "Oh não! Eu sou o que sou; e aqueles que maldosos / censuram meu deslize, apontam meu pecado; / posso ser reto, já que tantos são tortuosos; / nem por mentes de lama eu devo ser julgado, / a menos que este mal sustentem ser verdade: / a humanidade é má, e exulta na maldade." ) Machado de Assis, em A igreja do Diabo, apresenta uma anedota irônica em que o Diabo resolve fundar sua própria doutrina. Os seguidores do Mal, na medida em que ele se torna a Norma, passam a transgredir pelo caminho avesso: as antigas virtudes se tornam os novos vícios. Esse texto reforça a noção de que, seja qual for o teor dos grandes princípios reguladores da vida social, o homem estará disposto a transgredi-los, abrindo o caminho para a ação condenável (ASSIS, J.M. Machado de. A igreja do diabo. In: ___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, l986. v.2.). Machado trabalhou com a idéia de uma tendência para a destruição como traço positivo da condição humana na teoria do humanitismo, apresentada em Quincas Borba. O personagem-título, que acaba sendo considerado louco, enuncia sua tese sobre o caráter "benéfico da guerra" (ASSIS, J.M. Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Ática, 1982. cap. VI. p.18.). A mesma tese aparece nas Memórias póstumas de Brás Cubas. Lê-se em seu capítulo 117"...sendo a luta a grande função do gênero humano,

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Em Grande sertão: veredas, a complexidade de tratamento do tema está ligada à questão da reversibilidade. Existe entre o Bem e o Mal uma espécie de poro, um canal de interpenetração, que leva à relativização dos pólos. Logo no início, Riobaldo afirma: "Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar." (p.16). O bem em desmedida, fora de controle - o bem desordenado - é já algo maligno. Logo no início do livro, Riobaldo fala nas mandiocas, a doce e a brava (p.11-2). A reversibilidade apresentada - uma pode ir-se transformando, e ficar como a outra - aponta para a idéia de que a fissura entre o Bem e o Mal, o ponto em que um passa a como que se confundir com o outro, seja algo da própria Natureza, aquém das questões propriamente humanas. Nas mandiocas está sinalizada a ausência de uma substancialidade última do Mal; este pode surgir de dentro do próprio Bem. Em certa passagem, mais adiante, Riobaldo, em um enfoque diferente, propõe a seguinte conceituação. "O mal ou o bem, estão é em quem faz; não no efeito que dão." (p.77). Essa afirmação aponta para a idéia de que o julgamento moral deveria recair sobre agentes, e não sobre ações. Esse argumento contribui para legitimar a ambigüidade da violência. Por si, ela não é benigna ou maligna; depende de quem está agindo.

O demônio louco

todos os sentimentos belicosos são os mais adequados à sua felicidade. (...) a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas" (ASSIS, J.M. Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, l984. p.118-9.). A forma irônica como a teoria é apresentada, na voz de um personagem considerado louco, não diminui a relevância que assume indiretamente nos romances de Machado. Tanto em Quincas Borba como nas Memórias Póstumas, as relações de sociabilidade são apresentadas em formas de crise cujo fundamento é uma espécie de convicção na idéia de que a confiabilidade entre os homens não é plausível (isso valeria também para Dom Casmurro), o que, em alguma medida, remeteria ao aspecto de vocação para o conflito do humanitismo. Dostoievski, em O subsolo, traça um perfil negativo da condição humana, vinculado a um período histórico "essencialmente negativo", em que a tendência à destruição é a regra. "Não se faz senão guerrear, com efeito. Luta-se hoje, lutou-se ontem, lutar-se-á amanhã. (...) É indiscutível que o homem gosta muito de construir e traçar caminhos; mas como acontece então que ele ame tão apaixonadamente a destruição e o caos? Dizei-me. (...) Ora, estou certo de que o homem não renunciará jamais ao verdadeiro sofrimento, isto é, à destruição e ao caos." (DOSTOIEVSKI, F. O subsolo. In: ___. Contos. São Paulo: Cultrix, l985. p.35, 43, 45-6, 47.) A história de Aschenbach, em Morte em Veneza, pode ser lida alegoricamente como uma representação da queda de um homem para a desordem e o descontrole, quando o Mal - a peste - assola a cidade. "Pois a paixão, como o crime, não se adapta à ordem segura e ao bem estar cotidiano, e todo afrouxar da estrutura civil, toda confusão e tribulação do mundo lhes é bem vinda..." (MANN, Thomas. A morte em Veneza. São Paulo: Hemus, s.d.p.93.) Thomas Mann disse a respeito de seu romance algo que, em parte, poderia servir de comentário à posição de Riobaldo em relação aos jagunços. Segundo Mann, o tema do livro é "o fascínio da morte, o triunfo da desordem numa vida fundamentada na ordem". Especificamente em Grande sertão: veredas, essa base de ordem é posta em dúvida. (Citação extraída de BRADBURY, Malcolm. Thomas Mann. In: ____. O mundo moderno: dez grandes escritores. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.98.)

78

Sans cesse à mes côtes s`agite le Démon; Il nage autour de moi comme un air impalpable; Je l`avale et le sens qui brûle mon poumon Et l`emplit d`un desir éternel et coupable. Baudelaire, La destruction

À p. 365, Riobaldo pergunta ao interlocutor se o demo existe. A relevância desta dúvida está em que ela representa um desconhecimento fundamental de Riobaldo: a medida de sua própria capacidade de destruição. A indefinição sobre a existência do demônio é comentada com inquietação por ele: "O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias" (p.11). Ao longo do romance, ora o demônio é tratado como entidade maligna autônoma (nessa visão se baseia todo o episódio do pacto), ora essa visão é desmontada e o tratamento é outro: "...o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos" (p.11). "E o demo existe? Só se existe o estilo dele, solto, sem um ente próprio" (p.365). A presença do diabólico figuraria uma potência de destruição, cujo controle último foge à consciência humana. A idéia do estilo demoníaco, sem ente próprio, remete para uma convergência entre propriedades do Mal e a ação humana. O demônio, encarnação do Mal, pode ser considerado como uma potência de destruição em estado puro. Ele agiria de fora para dentro, isto é, tendo autonomia fora do homem, poderia influenciá-lo, outorgar-lhe forças. O pacto seria uma forma de receber forças demoníacas, a fim de realizar a vingança. Se o pacto tiver realmente acontecido, as forças de destruição de que Riobaldo dispôs para liderar seu grupo contra o grupo de Hermógenes seriam apenas forças externas, um poder tomado de aquém de si próprio. Porém, se o demônio for considerado apenas uma figura imaginária, se se entende que ele não existe, não sendo assim possível pacto algum, então as forças viriam de dentro dele mesmo. Dele, homem humano (134). 134

Ernildo Stein desenvolve uma interpretação filosófica da figura do demônio em Grande sertão: veredas. Diz ele: "Uma latência

demoníaca se incorpora ao homem e o suspende sobre um abismo onde se insinuam todos os matizes do mal." A leitura de Stein aponta para a idéia de que o demônio sintetizaria as diversas formas de vivência do mal, do físico ao moral. Saber que o diabo não existe leva a que ele tome "conta de tudo" (p.49); a sujeição à privação e ao sofrimento se torna constitutiva da existência. Cf.

79

Em Grande sertão: veredas, o uso das forças malignas não está, como em outras estórias fáusticas, a serviço de algo como o conhecimento ou a arte, mas - ainda que considerada como instrumento de justiça - da violência, da determinação de um assassinato. Não se pode, no caso, superestimar o componente de justiça no processo. Riobaldo deixa claro que há uma consistência entre o demônio e a violência. "Quem vence, é custoso não ficar com a cara de demônio" (p.270). "Guerra diverte - o demo acha" (p.48). O problema de definir se o demônio realmente existe não está reduzido apenas a um interesse pessoal. Riobaldo vê necessidade de se reconhecer nele algo que exige ação política. "Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem- se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção - proclamar por uma vez, artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranqüilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?" (p.15). O problema do demônio - e com ele, o da origem da capacidade de destruição - é encarado como intelectual, político e jurídico. Trata-se de entregar a autoridades letradas o problema, o que se relaciona com o papel do interlocutor de Riobaldo. Embora, ao longo do romance, não apareçam frases atribuíveis à sua voz, ele é mencionado como alguém que "ouve, pensa e repensa, e rediz". Pelo menos virtualmente, Riobaldo espera do interlocutor auxílio no esclarecimento do significado dos fatos de sua trajetória. "Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba" (p.125). Entre as dúvidas de Riobaldo, uma apresentada logo no início da narração vincula o problema do demônio com a visão da condição de vida jagunça. "E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?" (p.11). Está em jogo nessa associação um dos problemas centrais do romance - a definição das condições de vida na jagunçagem em termos de uma ligação com o demônio, isto é, de um compromisso com a destruição. O problema da origem do Mal, que está contido na interrogação sobre o demônio, se articula com o da origem da violência, vinculado às reflexões sobre a jagunçagem. Os dois se unem num problema complexo, figurado nessa imagem de jagunços em ação destruidora com forças que não são deles próprios, a serviço de um Mal

STEIN, Ernildo. A conversão mitopoética, chave hermenêutica de Grande sertão: veredas. In: ____. A instauração do sentido. Porto Alegre: Movimento, 1977. p.22.

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substancial, potência destrutiva sem horizonte positivo último. O que determinaria enfim as ações jagunças, nesse caso, seria então não um ideário de justiça, mas o puro Mal, cuja origem é interrogada. O tema do demônio aparece associado a uma ruptura com as expectativas de previsibilidade causal. O demônio é associado à desordem, ao ilógico, ao inexplicado. Quando explica como se realiza um pacto, Riobaldo diz que "vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação..." (p.40). As imagens contrariam a idéia de que o mundo seja construído como ordem, segundo um sistema coerente e previsível; a introdução do elemento demoníaco representaria algo de potencialmente caótico no mundo natural. Essas imagens de perturbação da ordem natural se vinculam também à disposição, por parte do homem, para a ação sem razão, infundada, inexplicada. Cabe reiterar que a disposição para a violência não instrumental, sem finalidade para além de si mesma, estaria relacionada a isso. Trata-se de não mais perceber relações de causa e efeito entre as coisas. Cabe observar que tema da ausência de racionalidade no Mal está figurado na imagem do demônio como louco, "o doido completo" (p.179). A identificação de Riobaldo com o demônio, feita de forma interrogativa - "(...) o demo então era eu mesmo?" (p.356), aponta para a superação da hipótese em que se baseia o episódio do pacto - de que o demônio é uma entidade externa, com quem se dialoga - que dá lugar a outra, que reconhece a desordem maligna como algo constitutivo do próprio sujeito (135).

Riobaldo e a violência da jagunçagem

"A possibilidade de uma situação tão violenta é inconcebível enquanto não se passou por ela; o fim é inconcebível quando se está nela." Simone Weil, A Ilíada ou o poema da força

135

A própria cena do pacto contém um elemento fundamental que já antecipa essa identificação. Riobaldo em certa vez o chama

assim: "Satanaz, dos meus Infernos!" (p. 319). A palavra "meus" não conota apenas uma adoração contemplativa. O pronome pessoal como que desenha infernos na interioridade.

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Uma das ambigüidades importantes de Grande sertão: veredas está no modo como o narradorprotagonista Riobaldo se relaciona com a vida jagunça. Sua posição oscila entre a identificação e o estranhamento, a aceitação e a revolta. Há um ponto da narração em que ele afirma: "Eu era um homem bastante trivial. A verdade que diga, eu achava que não tinha nascido para aquilo, de ser sempre jagunço não gostava" (p.53). Logo em seguida, ao relatar a cena em que é elogiado pelo Vupes, declara: "Mas o mais garboso fiquei, prezei a minha profissão. Ah, o bom costume de jagunço. Assim que é vida assoprada, vivida por cima." (p.57). Essa oscilação se define ao ponto de Riobaldo, por um lado, demonstrar interesse em abandonar completamente a vida jagunça ("'Vou para os Gerais! Vou para os Gerais!' - eu dizia, me dizia ", p.160) e, por outro, chegar a se tornar líder no projeto de vingança dos judas. A articulação dessas duas posições se vincula à visão que Riobaldo tem da vida jagunça, como uma condição intensamente violenta. "Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu fosse, eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria firme, numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte" (p.110). A idéia de que não fazia parte das atrocidades da jagunçagem aparece associada à ausência de uma "certeza", de uma "razão", de uma motivação definida. A indefinição dessa motivação é decisiva na formação da perspectiva do narrador Riobaldo. Embora Riobaldo declare não fazer parte das atrocidades da vida jagunça, e não viver em "fúria firme", declara também ter gosto pelas armas e atração pela violência. Logo no início, afirma que, mesmo na velhice, já tendo deixado a jagunçagem, pratica exercícios de tiro, por diversão (p.9), e julga ter competência para lidar com eventuais conflitos armados de terra

(p.21). Em diversos momentos

Riobaldo menciona sua disposição para matar - no episódio de Jazevedão (p.17); na conversa sobre competência nas armas (p.131); quando descobre que o pai de Diadorim era Joca Ramiro ("Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria" , p.34). Essa disposição ganha maior força quando se trata de Hermógenes. Riobaldo sente que o que há de mais importante em sua vida está essencialmente

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ligado ao ato de matar esse homem. "A modo que o resumo de minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes - naquele dia, naquele lugar" (p.434). Riobaldo não adere, do ponto de vista moral, à forma de vida da comunidade jagunça, assim como não pode se desligar completamente dela. O fato de declarar não fazer parte das atrocidades da vida jagunça e, ao longo da narração, evidenciar sua própria disposição para a violência define uma forte ambigüidade do personagem, que envolve o problema, anteriormente mencionado, da causalidade, da motivação. Há, em um certo ponto, uma digressão de Riobaldo segundo a qual, ao seu ver, estar na jagunçagem não se justifica. "Conforme eu pensava: tanta coisa já passeada; e, que é que eu era? Um raso jagunço atirador, cachorrando por este sertão (...) De que é que adiantava, se não, estatuto de jagunço? Ah, era. Por isso, eu tinha grande desprezo de mim, e cisma de todo o mundo" (p.305/6). A ausência de uma justificativa clara lhe perturba, a ponto de desprezar a si mesmo. Num certo momento, Riobaldo se sente cansado da jagunçagem, supondo incerto que o que lhe incomodava era a violência: "De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na constante brutalidade" (p.105). Porém, quando é valorizado por sua valentia (pelo Hermógenes, que ele vê como maligno) sente prazer. "Eu gostei. (...) aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza do querer, (...) eu mesmo senti: eu, Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia" (p.155). O fato de ser destacado como jagunço, por aquele que "nasceu formado tigre, e assassim", lhe dá prazer. Ele define a si próprio como jagunço e homem que lida com a morte - "homem de matar ou morrer". Dessa forma, por um lado, a violência é a razão pela qual talvez Riobaldo se afastasse da jagunçagem; por outro, é o que faz com que se sinta integrado a ela. No primeiro caso, contempla a violência como algo externo a ele. No segundo, orgulha-se de ser um agente dela. A violência ora é percebida como fenômeno externo, ora como iniciativa subjetiva, enraizada na interioridade de Riobaldo. Essa ambigüidade se desenvolve no livro, envolvendo a questão da reversibilidade: a dialetização do externo e do interno. "Ah, o que eu agradecia a Deus era ter me emprestado essas vantagens, de ser atirador, por isso me respeitavam. Mas eu ficava imaginando: se fosse eu tivesse tido sina outra, sendo só um coitado morador, em povoado qualquer, sujeito à instância dessa jagunçada? A ver, então, aqueles que agorinha eram meus

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companheiros, podiam chegar lá, façanhosos, avançar em mim, cometer ruindades. Então? Mas, se isso sendo assim possível, como era pois que agora eles podiam estar meus amigos?!" (p.308). Ao supor a troca de posições entre agentes e vítimas da violência, Riobaldo problematiza sua relação com o grupo de jagunços. Para ser respeitado nesse grupo, nessa condição de vida, era importante ser hábil na capacidade de matar; a possibilidade de uma "sina outra", em que ele não estivesse na condição de agente da violência, poderia determinar sua sujeição à morte, sua sujeição a um grupo exatamente como o dele, e a alguém exatamente como ele. Mesmo sem mencionar a palavra morte, é em torno dela que

Riobaldo, inquieto, se debate.

A cena secreta, figura que se plasmaria com a aceitação da

reversibilidade entre agente e vítima, é a auto-destruição. A capacidade de destruição de Riobaldo (e seu grupo de jagunços) poderia se voltar contra ele próprio, convertendo-se em algo que, se fosse consciente e voluntário, se assemelharia a uma tensão suicida. Se se considera a reversibilidade, a violência externa que, ao ser contemplada, causa desconforto e motiva a abandonar a vida jagunça, não se distingue da violência interna, que atrai Riobaldo e o integra à vida jagunça. Assim, a consciência da reversibilidade de posições entre agentes e vítimas da violência faz com que Riobaldo perceba sua posição ambígua, de repulsa e atração pela violência. O componente trágico dessa posição é o fato de que, aceitando a condição jagunça, se sujeita à violência e à morte, por sua própria determinação (136). As referências à coragem e ao medo estão ligadas à atitude ambígua em relação à violência. A valentia integra Riobaldo ao grupo; o medo perturba essa integração. "coragem em mim era variável" (p.38), declara ainda no início da narração. Noutro ponto, comentando o ódio ao Hermógenes, declara ter medo "da confusão das coisas, do mover desses futuros, que tudo é desordem" (p.98). O que traz medo a Riobaldo está associado à insuficiência dos esquemas de pensamento conhecidos para lidar com a complexidade da experiência. Esse medo daquilo que não pode ser pensado se liga a outro, que afinal é o mesmo. O "medo de homem humano", que aparece quando Riobaldo comenta que os jagunços achariam natural incendiar um 136

Yves Michaud expõe que, do ponto de vista científico, é possível falar em uma "correlação entre auto-agressão suicida e

agressão voltada contra outrem, como se uma mesma agressividade pudesse voltar-se seja contra o sujeito seja contra o exterior". Nesse sentido, a reversibilidade de que Riobaldo tem consciência é algo de certo modo imanente à disposição para a violência - a agressividade pode se voltar "ora contra o próprio indivíduo, ora contra outrem". Isto é, o objeto do ódio tem um caráter relativamente aleatório, e pode vir a confundir-se com o próprio sujeito. Cf. MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, l989.p.79-80.

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arraial, com "gente como nós, com madrinhas e mães" (p.307). O potencial de violência e destruição dos jagunços (tomado como algo externo a ele próprio) horroriza Riobaldo. O medo do que é imprevisível, desordenado, confuso, é também o medo do homem humano, violento, destruidor, que entende a destruição do outro como "questão natural, que podiam ir salientemente cumprir, por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem". Quando fala em "gente como nós", Riobaldo pensa na hipótese de reversibilidade entre agentes e vítimas da violência. A consciência da reversibilidade lhe permite vislumbrar que a destruição virtualmente se volta contra ele próprio - alguém como ele poderia morrer num incêndio causado por seu próprio grupo. Riobaldo sabe que ele próprio detém uma força de destruição, ele próprio é agente de destruição; se a violência dos jagunços horroriza, a dele próprio igualmente perturba;

se a dos jagunços

pode ser comparada a uma desordem, uma confusão

imprevisível, porque para Riobaldo não se justifica, a dele igualmente é sentida como desordem, confusão imprevisível no interior de sua subjetividade. Seu horror reside, enfim, em não compreender a capacidade de destruição de seu grupo, nem a sua própria. Essa profunda ambigüidade de Riobaldo, entre a coragem e o medo, entre a disposição para matar e o horror à violência, é fundante da problemática do personagem. Ele permanece durante longo tempo envolvido em uma condição de vida complexa, dividido entre o desejo de manter-se integrado a ela e o de abandoná-la. A condição de vida, no caso, supõe a sujeição à morte. Antônio Cândido define o "mundo-de-jagunço" como um mundo onde a violência é uma norma de conduta (137). O respeito coletivo a essa norma se sustenta em valores comentados por Walnice Galvão - a violência se vincula às noções de honra (138), vingança, enfim, a um ideário de justiça; a destruição e a crueldade, nesse quadro, ganham um caráter positivo (139).

137

CÂNDIDO, Antônio. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In: ___. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades,

1977. 138 Cabe lembrar aqui a interpretação da Ilíada feita por Jean-Pierre Vernant, em que o autor discute a relação entre a honra e a morte. Na guerra épica, a definição de identidade de um indivíduo depende necessariamente de sua reputação social ("da zombaria ao louvor, do desprezo à admiração"). A sujeição à morte, nesse caso, representa algo de glorioso; no que se refere à figura heróica, "mortalidade e imortalidade, ao invés de se oporem, se associam à sua pessoa e se interpenetram.". VERNANT, Jean-Pierre. A "bela morte" de Aquiles. In: CZECHOWSKY, Nicole, org. A honra: imagem de si ou o dom de si - um ideal equívoco. Porto Alegre: L&PM, 1992. p.34 e 39. 139 GALVÃO, Walnice N. As formas do falso. op.cit. p.18.

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Os líderes jagunços efetivamente são apresentados como justiceiros. Medeiro Vaz queria "impor a justiça"; Joca Ramiro "também igualmente saía por justiça e alta política" (p.37). E o plano de matar Ricardão e Hermógenes, levado por Zé Bebelo, Diadorim e pelo próprio Riobaldo, teria a função de vingar a morte de Joca Ramiro. As ações violentas dos jagunços teriam sua racionalidade, suas justificações. Riobaldo comenta que, antes de Medeiro Vaz se impor como jagunço, os gerais estavam invadidos por um "imundo de loucura", em que não havia ordem social - "tudo era morte e roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas" (p.36). A violência racionalizada dos jagunços incidiria sobre uma outra, caótica, comparada a uma "loucura". A cena do julgamento de Zé Bebelo expõe um senso de justiça dos jagunços, apurado por uma racionalidade que se vale de critérios socialmente discutidos para definir a necessidade ou não de matar. Essencial à condição de vida jagunça, a violência é como que administrada por seus líderes, numa espécie de economia da destruição calcada em interesses políticos e éticos. A violência surge entre militares e jagunços, entre diferentes grupos de jagunços e nos ataques a comunidades rurais. O ritmo de permanente guerra civil é semantizado pela recorrência de expressões referentes a guerras e exércitos; os jagunços qualificam a si mesmos de "guerreiros" (140). Em Rosa existe a representação de uma sociedade civil em termos de violência estrutural (141). A condição de vida jagunça depende - do ponto de vista político, econômico, social e moral - do uso da violência. A definição das lideranças, que articulam as leis e dão ordens, envolve graus de capacidade para a violência (142). Um dos problemas essenciais da condição jagunça consiste em que a violência é, por um lado, modo de sobrevivência e crivo de organização coletiva (ordem) e, por outro, algo que não pode ser inteiramente

140

CÂNDIDO, Antônio. O homem dos avessos. op.cit. p.128. A base dessa guerra civil tem lastro histórico, como explica Walnice

Galvão. O uso da violência com finalidades políticas nas comunidades interioranas no Brasil é uma prática historicamente disseminada (GALVÃO, Walnice. op.cit. p.21.). Cf. também FRANCO, Maria Sylvia C. O código do sertão. In: _____. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983. 141 O termo, utilizado aqui em sentido estrito, foi extraído de BOSI, Alfredo. O nacional e suas faces. In: V.V.A.A. Eurípedes Simões de Paula: in memoriam. São Paulo: FFLCH-USP, 1983. p.37. 142 Walter Benjamin, ao discutir a guerra e o militarismo, propõe a noção de um caráter legislador do ato violento. A idéia de que as instituições políticas e jurídicas se articulam, em nível estrutural, com a capacidade de violência foi examinada pelo autor em: BENJAMIN, Walter. Crítica da violência. In _____. Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, EDUSP, 1986.

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controlado (desordem). Os eixos principais do enredo do romance apontam para a fragilidade estrutural das relações jagunças. A transformação do inimigo Zé Bebelo em amigo e a do companheiro Hermógenes em oponente radical caracterizam uma instabilidade e talvez uma inconsistência nas lideranças jagunças, e por conseguinte em todo o grupo. O direcionamento das vontades de poder dos líderes não tem fixidez. As vacilações de Riobaldo - entre seu desejo de abandonar tudo e seu desejo de ficar no grupo - são outra expressão da problemática da jagunçagem. Esta não tem para seus membros função como forma de congregação de pessoas, no sentido humanitário. Ela se define em termos de uma forma política de autopreservação coletiva, alheia à legislação do Estado. A forma de vida jagunça é sustentada sobretudo pela importância cultural decisiva que assume seu instrumento de sobrevivência, a violência. A conversa de Riobaldo com Garanço, citada a seguir, traz a noção de que, dentro da jagunçagem, não matar é vergonhoso. O ato de matar corresponde a uma forma de auto-afirmação (143), como que justificando e valorizando a pertença do indivíduo ao grupo.

"- `Eta, e você já matou seus muitos homens, Garanço?'- pois perguntei. O riso dele ficava querendo ser mais grosso: - `Eh, eh, nós... Sou algum medroso? E mecê encomenda o quê, no rifle que está em minha mão, mano velho! Eh, não desprevino, não lhe envergonho o desse...'" (p.144)

O ato de matar é algo que não apenas é comum, mas chega mesmo a consistir em uma rotina propriamente naturalizada.

"Digo tudo, disse: matar-e-morrer? Toleima. Nisso mesmo era que eu não pensava. Descarecia. Era assim: eu ia indo, cumprindo ordens; tinha de chegar num lugar, aperrar as armas; acontecia o seguinte, o que viesse vinha; tudo não é sina?" (p.156)

A banalização e indiferença com relação ao ato de matar se alternam na obra com manifestações de repulsa a episódios de violência sangrenta e de prazer intenso em matar. Não há por parte de Riobaldo uma postura bem definida; ele apresenta posições variadas e contraditórias em relação à violência.

143

Adorno examina em profundidade o problema, estabelecendo relações entre a afirmação de virilidade e a disposição para a

violência. Ver ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: COHN, Gabriel org. Theodor W. Adorno - sociologia. São Paulo: Ática, l986.

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As repetições dos vocábulos nas frases abaixo acentuam o caráter rotineiro do ato de matar, mas dão uma conotação emocional, que aponta enfaticamente para a relação nervosa de Riobaldo com o processo.

"Matar, matar, sangue manda sangue." (p.26) "Matar, matar, quê que me importava?" (p.160)

Os livros de René Girard e Yves Michaud sobre a violência, densos e articulados, não chegam a definir um fundamento geral para a violência e o ato de matar. Esse assunto parece estar cercado de uma insondabilidade, um mistério; a base desse enigma é a questão da motivação, da causalidade. A vontade humana de destruir é algo enigmático, porque parece estar fora do controle do sujeito sobre si próprio. Um dos caminhos apontados na literatura sobre o assunto é pensar essa vontade não como um sentimento ou uma atitude em estado puro, mas como amálgama e/ou torsão de outros elementos. Nesse sentido, pensando sobretudo em tempos de guerra, o significado incógnito do ato de matar se relacionaria com outra incógnita fundamental - por que morrer (144). A sujeição à morte, dado que por definição não tem sentido, não tem razão (145), sendo algo assimilado ao cotidiano, coloca a problemática insustentável de uma vida jogada ao nada. No contexto da guerra, esse horizonte vazio convive ambiguamente com a intensidade furiosa da força, empregada na superação de obstáculos e no enfrentamento de inimigos, portadores da ceifadeira. Assegurar a própria vida se associa diretamente a ameaçar a vida de outros. O risco de morrer está condicionado pela capacidade de destruir. Morrer e matar são verbos mutuamente implicados. O narrador assim se define: "(...) eu, Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer" (p.155 - grifo meu).

144

A história da onça, narrada à p.237, aponta para uma espécie de fatalidade. "Como no homem que a onça comeu, cuja perna.

Que culpa tem a onça, e que culpa tem o homem?". Projetada para os conflitos estritamente humanos, essa menção à onça propõe uma indagação sobre o agenciamento da destruição, sobre o problema da responsabilidade, que se problematiza em função dessa fatalidade. 145 Nessa afirmação, está-se desconsiderando o horizonte das epopéias arcaicas, em que está em jogo o enraizamento transcendental.

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Edgar Morin apresenta algumas idéias, férteis e polêmicas, que dizem respeito ao tema. O autor entende que a destruição do outro é contrapartida de uma afirmação do sujeito. Do mesmo modo que o horror à morte, o assassinato seria comandado pela afirmação da individualidade.

"Au paroxisme de l'horreur que provoque la décomposition du cadavre, correspond le paroxysme de la volupté que provoque la décomposition du torturé. Et il y a communication intime entre cette horreur et cette volupté, comme nous le révélera plus loin la signification magique du meurtre, qui est d'échapper à sa propre mort et à sa propre décomposition, en les transférant sur autrui."(146) Existe uma espécie de reciprocidade naturalizada no que se refere ao risco de morrer. Aquele que corre o risco e é obrigado a conviver com o medo de forma controlada assume como implicação natural que outros se submetam ao mesmo risco. "Aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo contra os demais e se vinga da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir." (147) A naturalização da exposição à morte estaria ligada à necessidade de firmar posições ou valores que ambiguamente se apresentam ao sujeito humano como constitutivos dele, mas que devem ser defendidos mesmo ao preço do risco de sua própria destruição.

"Le risque de mort déborde la guerre, déborde la barbarie du meurtre, recouvre tous les secteurs de l'activité humaine. (...) On risque la mort pour ne pas renier ses idées, et pour ne pas se renier soi-même, ce qui souvent est la même chose. Ces `valeurs' que fonde l'individu et qui le fondent sont reconnues comme supérieures à la vie (...)" (148) Essa naturalidade com que se encara o risco de morrer estaria vinculada diretamente, para Morin, "à la peur de la mort"; coragem e medo seriam duas faces de uma mesma instabilidade. O sujeito humano vive permanente a ambigüidade de sua adaptação / inadaptação à possibilidade de morrer. A convivência com o risco de morrer seria uma forma de levar ao limite o despreparo humano para a morte. O contexto de guerra, assim, cria determinações para a vida humana impensáveis por uma causalidade simples. O cotidiano jagunço é avaliado, em certo ponto, como algo governado por uma "razão de muita loucura". A expressão aparentemente paradoxal manifesta com precisão a ambigüidade de uma

146

MORIN, Edgar. Le paradoxe de la mort: le meurtre et le risque de mort (inadaptation-adaptation à la mort). In: ___. L'homme et

la mort. Paris, Seuil, 1970. p.81. 147 ADORNO, Theodor W. op.cit. p.39. 148

MORIN, Edgar. op.cit. p.84.

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coletividade que se firma com base na disposição para a violência, constituindo assim uma idéia de ordem (com legalidade, justiça, honra) vinculada a uma disposição para a desordem.

"O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, coisa que só mesmo em guerra é que se quer. O punhal atravessado na boca, sabe?: sem querer, a gente rosna." (p.158)

Este trecho desenvolve um aspecto essencial para a perspectiva estruturadora do romance: as condições específicas de vida na jagunçagem abrindo limites humanos impensáveis fora da vida de guerra. O "punhal atravessado na boca", metáfora da iminência da morte como pesadelo permanente, se vincula poeticamente com a "boca em desordem" - "esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando coisas divagadas." (p.19). A onipresença da violência atua sobre a consciência, moldando a forma fragmentária da fala do narrador.

Violência e crueldade

"Olhai pois em torno de vós! O sangue corre em borbotões, alegremente mesmo, como champanha. (...) Então em que é que a civilização nos adoça? A civilização não faz mais que desenvolver em nós a diversidade das sensações... nada mais. E graças ao desenvolvimento dessa diversidade, é muito possível que o homem acabe por descobrir uma certa volúpia no sangue. Isto aliás já aconteceu." Dostoievski, O subsolo

Embora a violência jagunça esteja vinculada à honra e à vingança, e a princípio possa servir a uma racionalidade interessada em justiça, ela não se reduz a um instrumento de valores positivos. Para aquém ou além de qualquer finalidade, a violência escapa aos esquemas lógicos de causa e efeito - nos quais se baseia o ideário corrente de justiça - e ganha espaço por si mesma, definindo um homem humano que provoca medo.

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As estórias de Aleixo, Pedro Pindó, Jazevedão e Firmiano tomam parte da narração de Riobaldo, no início do romance. Em todas elas, aparece o tema da crueldade. Aleixo é um homem que matou um velhinho que lhe pediu esmola (p.12); Pedro Pindó e sua mulher batiam com prazer no próprio filho, Valtêi, que tinha gosto em maltratar e matar animais (p.14); Jazevedão era um delegado que se divertia em causar dor (p.17); Firmiano, ex-jagunço, doente, declarou a Riobaldo ter vontade de esfolar e castrar um soldado (p.20). Mesmo que se considere que na estória de Pedro Pindó a violência dos pais surge inicialmente como modo de controlar a crueldade do filho, e que na estória do Aleixo o fato de seus filhos adoecerem provoca uma mudança em seu comportamento, a violência dessas estórias não pode ser definida apenas em termos de um campo moral, enredando culpas e castigos. A violência, aqui, não é definida como um meio para uma finalidade diferente dela. É uma violência com fim em si mesma, violência prazerosa, divertida. Estando aquém de uma lógica de dano e reparo, culpa e castigo, a violência não pode ser abordada pelos cânones de racionalidade, legalidade e justiça convencionais, vinculados à idéia de causalidade. Por esses cânones, é a qualidade da finalidade que pode definir o teor racional (149) e a legitimidade do ato violento. Destituída de finalidades outras (150), fechada em si mesma, a violência desses personagens acena com a possibilidade humana de uma pura potência de destruição, indiferente à racionalidade e à idéia de justiça. Esse lado da violência convive com o outro, o racionalizado, ligado à justiça, num mesmo ambiente social e geográfico. Noutras palavras, a estória de Guimarães Rosa envolve, por um lado, uma violência instrumental, essencial às condições de funcionamento da vida política na jagunçagem, e por outro, uma violência sem finalidades para além dela, indiferente a cânones de justiça e racionalidade, associada ao prazer. Colocadas num mesmo quadro, essas duas formas se problematizam reciprocamente. Se a violência for essencialmente instrumental, casos como os de Pedro Pindó e Firmiano teriam de ser

149 150

ARENDT, Hannah. Da violência. Brasília: UNB, 1985. p.44. Conforme Simone Weil, "(...) a guerra apaga toda e qualquer idéia de finalidade, até mesmo as finalidades da guerra." WEIL,

Simone. A Ilíada ou o poema da força. In: ___. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p.333.

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interpretados como comportamentos com algum tipo de ação irracional, excepcional, anômala. Se pelo contrário, for essencialmente irracional, a condição de vida jagunça não é mais que uma sucessão de episódios violentos, sem positividade última, em que o ideário de justiça é uma espécie de ilusão aceita coletivamente, sem consistência histórica real. Ocorre que, ao longo do romance, o desenvolvimento da violência não se reduz a uma dessas possibilidades. Riobaldo, ambiguamente avesso à violência e atraído por ela, em um certo sentido persegue a explicação sobre a motivação última da violência - e, por conseguinte, a motivação de sua própria disposição para matar (151). Sô Candelário, na cena do julgamento de Zé Bebelo, defende a idéia de libertá-lo "para a guerra poder continuar mais, perfeita, diversificada..." (p.203). Essa avaliação faz supor uma vocação para a guerra como fim em si mesma; a supressão do inimigo, pondo talvez (ainda que provisoriamente) um fim total ao conflito é, para esse jagunço, uma estratégia errada. Isso tem a ver com um problema maior da jagunçagem, que é o fato de não se visualizar um fim último para a vida de guerra. Zé Bebelo, enquanto inimigo, planejava chegar a dar fim à jagunçagem. Porém, Riobaldo, durante o processo, sente a ausência desse horizonte de esgotamento. Em certa passagem, referindo-se a um combate, diz: "Aquilo não ia ter pique de ponto, guerra que não se sabe terminar?" (p.163).

Do ódio

"Todos os seres se chocam numa luta aberta. As águas, há pouco contidas, enchem os seios acima das margens e inundam este globo sólido. A violência domina a 151

A história de Nhô Constâncio Alves expõe uma atitude de Riobaldo inadequada à função que lhe cabia: uma vacilação em

relação ao ato de matar. O protagonista improvisa estratagemas para não ter de matar ninguém, apesar de prometer, por ter poupado Constâncio, matar o primeiro que aparecesse. Sem intenção de destruir o primeiro homem que vê, sujeito "desgraçado" (p.357), Riobaldo declara que "a vontade de matar tinha se acabado" (p.358). Reflete: "Como é que eu ia matar aquele sujeito, anunciado de pobre, e matar em vez de outro, sadio em bojo, e rico? Aquilo era justiça?" (p.358). A incongruência entre os critérios de legitimidade adotados e as determinações das circunstâncias definem para o sujeito um horizonte imponderável, em que o ato de matar fica inteiramente destituído de uma função compreensível.

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fraqueza e o filho brutal bate no pai até matá-lo. A força se transforma em justiça; ou melhor, o justo e o injusto, adversários eternos, entre os quais tem assento a eqüidade, perdem os nomes, como a eqüidade perde o seu." Shakespeare, Troilus and Cresida

A associação mais recorrente entre o demoníaco e a violência diz respeito à caracterização de Hermógenes, que entre todos os jagunços, foi o único que "nasceu formado tigre, e assassim" (p.16). Riobaldo, em certo ponto, diz que as ações de Hermógenes seriam orientadas pelo demônio (p.229); noutro, que "não sofria nem se cansava, nunca perdia nem adoecia; e o que queria, arrumava, tudo" (p.309) por causa do pacto. Personagens secundários, como João Bugre (p.39/40), João Goanhá (p.53) e Lacrau (p.308) apontam Hermógenes como pactário. E, sendo responsável pela morte de Joca Ramiro, ele se torna o alvo da vingança de Diadorim e Riobaldo. Matar Joca Ramiro, líder justiceiro dos jagunços, é considerada violência injusta, traidora, que, para Diadorim e Riobaldo, exige vingança. Cabe enfatizar que, nesse caso, a violência que está fora dos cânones de justiça é a mesma que é demoníaca. O fato de Hermógenes ser considerado pactário se liga diretamente ao interesse de Riobaldo em ele mesmo fazer um pacto. Segundo Antônio Cândido, "a vingança contra o bando traidor de Hermógenes e Ricardão só pode ser efetuada quando Riobaldo, novo chefe do bando que representa o lado justo das coisas no sertão, passa por um processo de mudanças de personalidade, simbolizada no pacto com o diabo, que completa a riqueza da situação, instalando-o também no terreno do mal" (152); " Riobaldo sai /do episódio do pacto/ transformado - endurecido, arbitrário, roçando a crueldade, na prepotência das funções de mando que logo assume, em contraste com a situação anterior, em que as tinha rejeitado" (153). Para derrotar o maligno e cruel Hermógenes, Riobaldo passa a se identificar com ele, a partir do igualamento como pactário. Se vigorar, entre as interrogações do narrador, a hipótese de que o demônio realmente existe, já não se trata de um defrontamento entre bons e maus, mas de duas forças que se equivalem como malignas. Ainda que uma seja considerada vingadora e outra traidora, da perspectiva da justiça do grupo, ambas atuariam com forças demoníacas. Por trás da oposição, um conflito entre iguais.

152 153

CÂNDIDO, Antônio. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. op.cit. p.153. CÂNDIDO, Antônio. O homem dos avessos. op.cit. p.133.

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Há algumas marcas da simpatia que Riobaldo sentia por Hermógenes. Uma está no fato, já comentado, de que o protagonista gosta quando o outro o elogia (p.155). Outra, na admiração com que comenta a aptidão de Hermógenes para as determinações guerreiras (p.154). Por outro lado, o ódio que Riobaldo sente por seu antagonista, que o move na determinação de matá-lo, é um ódio inexplicado. "Nem, no meu juízo, para essa aversão não carecia de compor explicação e causa, mas era assim, eu era assim. Que ódio é aquele que não carece de nenhuma razão?" (p.298). "Tive ódio dele? Muitos ódios. Só não sabia por quê. Acho que tirava um ódio por causa de outro, cosidamente, assim seguido de diante para trás o revento todo. A modo que o resumo da minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes - naquele dia, naquele lugar" (p.434). Essas afirmações impedem que se atribua a razão da determinação em matar apenas em função da vingança em nome de Joca Ramiro. Se fosse apenas a imposição de justiça, não haveria incógnitas a respeito desse ódio. Ocorre que um ódio se entrelaça com outros, em cadeia, sendo a morte de Hermógenes o desembocadouro de uma estória complexa. Em certa passagem, Riobaldo faz uma espécie de descrição do funcionamento da forma psicológica de ódio que o governa. Nessa descrição se propõe a idéia de um componente aleatório e, portanto, casual, destituído de razão - demoníaco, nos termos de Goethe - na transitividade do ódio. Lembrando Mário de Andrade, aqui se institui uma concepção do odiar como verbo intransitivo, como potência destituída de direção ou finalidade.

"Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa solta e cega." (p.181) Esse caráter "erroso" da condução interior do ódio é sintetizado na imagem da raiva "como coisa solta e cega": energia fora de controle e destrutiva, ameaça em direção aleatória. Sendo assim, Riobaldo

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relativiza toda possibilidade de argumentar racionalmente sobre os motivos para odiar e matar por ódio: percebe, em si próprio, uma fissura irredutível na possibilidade de auto-controle. Quando Riobaldo diz não saber por que tem ódio de Hermógenes, apontando assim que a motivação de sua própria determinação em matá-lo está privada de uma racionalidade que a justifique plenamente, abre espontaneamente uma analogia entre os dois, indicada com seu próprio modo de se referir ao inimigo. "O Hermógenes: mal sem razão" (p.409). Hermógenes representa um bode expiatório na história. A purificação da comunidade jagunça, em nome da honra e da vingança pela morte do líder honrado Joca Ramiro, expiação da impureza da quebra de confiança pelo assassinato do grande guerreiro, é conseguida através da aniquilação de Hermógenes e seu bando. Esse massacre simbolicamente restitui aos seguidores de Joca Ramiro a condição de irmandade, unida e competente na guerra, avessa à traição. Ocorre que o enfrentamento entre Riobaldo e Hermógenes supõe um nível de igualamento - pactário contra pactário. A morte de Hermógenes é expiação metonímica do mal que cimenta a sociabilidade jagunça. Mas é também expiação do mal particular de Riobaldo - ódio sem razão, ódio em cadeia, desembocadouro de uma longa trajetória. A morte de Hermógenes coincide, em primeiro lugar, com o fim de uma desordem demoníaca - o pactário tigre assassim que fazia parte de seu cotidiano. Em segundo lugar, com o fim da desordem demoníaca transgressora que era a paixão por Diadorim. Mas sobretudo com o fim da vida jagunça, na qual a violência é estrutural. Matar Hermógenes é também matar a figura especular, igualmente (virtualmente) pactária, demoníaca, e pelo componente mimético, matar a si próprio enquanto pactário; livrar-se, como num suicídio parcial, do próprio Riobaldo-demônio.

A expiação

"Tu és um excremento, Tu és um monte de lixo, Tu vens para nos matar, Tu vens para nos salvar." Canto do Mono-Naba, da tribo africana Mossi

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René Girard formulou uma teorização sobre a relação entre violência e cultura. Cabe recuperá-la aqui para examinar com maior clareza algumas das questões levantadas anteriormente. Segundo Girard, o sacrifício, nas sociedades arcaicas, tem a função de dar uma canalização à violência de uma comunidade. Ele evita o desenvolvimento de uma "violência recíproca", isto é, um processo de generalização da violência com base no princípio da vingança como justiça. Para se vingar, qualquer indivíduo tem o direito de agir com violência; essa legitimidade, dada pelo estatuto de forma de justiça que se atribui à vingança, autoriza o crescimento descontrolado da violência social. O sacrifício de um bode expiatório teria a função de dar um caráter de unanimidade à decisão sobre como conduzir a violência. O alvo eleito socialmente para o sacrifício recebe, de forma ritualizada, a violência acumulada de toda a comunidade. Com isso, a sociedade se liberta de sua necessidade de violência, sem correr o risco de se auto-pulverizar pela ação da violência recíproca. Isto é, se todos matam um, todos não matam todos (154). A tese de Girard é fecunda para pensar Grande sertão: veredas. O ódio de Riobaldo por Hermógenes é sem razão. Porém, sem prejuízo disso, ele se dedica com intensidade ao assassinato desse homem. "A modo que o resumo de minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes (...)" (p.434). Talvez a explicação para esse paradoxo - falta de razão e posição prioritária - esteja no fato de que Hermógenes se tornou, aos olhos de Riobaldo, um exemplar bode expiatório. Seu ódio essencialmente intransitivo tinha de receber um objeto para ser manifestado. Esse objeto aparece em função de uma unanimidade coletiva: todo o grupo vê em Hermógenes, por ser o traidor, a impureza que deve ser eliminada. Além de ser impuro, Hermógenes é um líder, cujo passado como guerreiro o coloca em posição central na vida jagunça. Essa ambigüidade - impuro (baixo) / líder (elevado) - corresponde à ambigüidade de Édipo, que é um modelo de bode expiatório para René Girard, e também à do próprio

GIRARD, René. Violencia y representación en el texto mítico. In: ___. Literatura, mímesis y antropología. Barcelona, Gedisa, l984. 154

______________. Capítulos I, II e III. In: ___. A violência e o sagrado. São Paulo: UNESP, l990.

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Riobaldo, que assume a condição de líder precisamente quando se acentua seu caráter impuro (maligno, demoníaco - após o episódio do pacto). Não casualmente, a morte do bode Hermógenes coincide com a de Diadorim; imageticamente, está apresentada aí a idéia de que o ritual de expiação supõe livrar-se do que ameaça a ordem. Em um sentido muito diferente da traição de Hermógenes, Diadorim também ameaça a ordem - perturba os princípios de condução da vida afetiva dominantes nas condições em que vive Riobaldo.

Doideiras e costumes

Em certo ponto, logo após falar do "medo do homem humano", Riobaldo faz alusão a "doideiras" que "haviam de estar regendo o costume da vida da gente" (p.307). O maligno e o demoníaco tomariam forma na loucura (cf. p. 80); e esta estaria por trás dos comportamentos habituais. Já foi mencionado que, no caso do sertão roseano, a violência é uma norma de conduta; nesse quadro, é possível inferir que a loucura estaria por trás da violência - não apenas da que é "sem razão", mas também da que se incorpora ao costume da vida jagunça. Como a loucura se inscreve nos comportamentos habituais, no "costume da vida da gente", ela não se reduz à excepcionalidade, ela se integra às regularidades do modo de vida da jagunçagem. Trata-se de uma situação que não é nem o total desregramento de uma loucura avessa à sociabilização, nem a vida social perfeitamente coordenada e explicada pela racionalidade. Nesse fio, entre o caos e a ordem, a razão é problematizada, mas não eliminada; a legalidade e a justiça funcionam, mas somente em parte; os homens têm controle sobre suas próprias ações, apenas até certo ponto. Trata-se da "compresença embaraçosa de acaso e necessidade, desordem e coerência" (155). Esse quadro envolve imprecisões e ambigüidades de ordem ética e epistemológica, relativos à problematização da definição dos significados das ações. Num universo em que doideiras regem

155

BOSI, Alfredo. Acaso, necessidade. In: ____. Céu, inferno. São Paulo: Ática, 1988. p.269.

97

costumes e o "homem humano" provoca medo no próprio homem, as categorias morais são precárias para diferenciar as ações humanas. "...a gente não sabe em que rumo está - em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?" (p.410). O bem, o mal, o justo, o traidor, o real e o aparente têm seu sentido posto em dúvida, e são integrados a um quadro que suscita contínuas interrogações. Como o poder de referência dessas categorias não garante certezas, a definição do sentido dos acontecimentos não é passível de irredutibilidade. O conhecimento é, necessariamente, sujeito ao equívoco, e à abertura ao insólito. A "admissão da existência de uma ordem universal, de um cosmos racional, em cujo interior os homens e cada homem, assim como todas as coisas, possuíam um lugar próprio e definido que determinava a condução racional de cada um segundo certos fins tidos universalmente como belos, bons e justos", ideal do pensamento antigo (156), está muito próximo de alguns ideais de Riobaldo.

"eu careço que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... Como é que posso com este mundo?" (p.169).

A passagem apresenta repetições e termos relacionados de forma banal como opostos, de forma a denunciar a incompatibilidade entre o mais simples bom senso lógico e a complexidade da experiência vivida. Os caminhos convencionais do pensamento são insuficientes para a compreensão adequada do significado das coisas. A frase interrogativa acentua a impotência de quem fala em relação ao mundo, como se fosse um "mundo à revelia" - nas palavras de Zé Bebelo, antes de seu julgamento (p.195).

Diadorim e a guerra

"Aquilo que se faz por amor sempre se faz além dos limites do bem e do mal." Nietzsche, Aforismos e interlúdios

156

CHAUÍ, Marilena. Público, privado, despotismo. In: ___ e outros. Ética. São Paulo: SMC/Companhia das Letras, l992. p.348.

98

O tema do homem que tem vontade de ir à guerra por causa de uma paixão por uma mulher que não ganha condição de viabilidade na realidade está na obra de Goethe, em dois grandes romances. Werther, em carta de 25 de maio, em meio à sua tensão crescente em razão de seu amor por Carlota, afirma que "queria ir para a guerra" (157). Em Afinidades eletivas, Eduardo chega a fazê-lo realmente, como declara ao amigo major. "Conheces minha paixão por Otília e há muito tempo compreendeste que foi ela o motivo que me impeliu para a guerra. (...) em busca da morte, não como um mentecapto, mas como alguém que espera viver" (158). Riobaldo, que demora a estabelecer sua vida ao lado de Otacília, permanece na jagunçagem em parte por causa de Diadorim. De certo modo, ele vive, numa outra composição, os mesmos problemas de Werther e Eduardo; ele ama alguém e, em função da problematização da possibilidade desse amor, que é inviabilizado, se interessa pela guerra. No caso, o impulso inicial para ir à jagunçagem foi devido ao fascínio por Diadorim, e pela vontade de ficar perto do amigo.

"Ah, ele, que de tudo sabia em tudo, agora assim de tenção me largava lá sem uma palavra própria da boca, sem um abraço, sabendo que eu tinha vindo para jagunço só mesmo por conta de amizade!" (p.175) Assim, invertendo os termos do tema goetheano, Riobaldo vai à guerra e nela permanece não para se afastar da convivência com a pessoa que ama, mas para ficar perto dela. Assim como Eduardo, Riobaldo se entrega à possibilidade da morte como alguém que "espera viver", mesmo que de forma intranqüila e insustentável. A homossexualidade é considerada, pela voz de Riobaldo, "vício desencontrado" (p.114). Na cena em que os meninos são assediados por um rapaz, após a travessia do rio, Riobaldo comenta : "(...) consegui falar alto, contestando, que não estávamos fazendo sujice nenhuma (...)" (p.85). A possibilidade de um relacionamento homossexual entre os dois amigos é tratada por Riobaldo em termos que apontam para a idéia de algo fora de ordem: desencontrado e sujice têm traços semânticos de negatividade, e apontam para uma espécie de implausibilidade nessa forma de amor.

157

GOETHE, Johann. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Clube do Livro, l988. p.89.

158

GOETHE, Johann. Afinidades eletivas. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d. p.221.

99

A idéia de sujeira, apresentada na passagem citada, está estreitamente associada à idéia de transgressão, ruptura com uma ordem estabelecida (159). Se pensarmos a jagunçagem como ordem, entenderemos a transgressão - a sujeira - no sentido de que, em Grande sertão: veredas, a jagunçagem é vivenciada apenas por homens, e as mulheres aparecem, como sedentárias, ocasionalmente, em certos pontos da trajetória dos guerreiros. A supressão do corte que diferencia o masculino e o feminino implicaria uma mudança de um princípio estrutural. A possibilidade de Riobaldo se apaixonar por um companheiro, redimensionando as posições do homem e da mulher, perturba esse princípio de ordem irredutível. Do mesmo modo, a própria condição ambígua de Diadorim, por definição, abala a estabilidade desse princípio. A impossibilidade de exteriorizar o desejo sexual traz para Riobaldo uma perturbação nos processos da subjetividade. Há um episódio que confirma essa interpretação. É a conversa em que Diadorim conta a Riobaldo que Joca Ramiro era seu pai. Entre sentimentos como vergonha e surpresa, Riobaldo está internamente conflituado e, diante do amigo, tendo vontade de dizer algo, espontaneamente diz outra coisa, com agressividade. "De um acaso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final" (p.32/3). A figura de Diadorim, ambiguamente, suscita um sentimento diferente dessa inquietação: "Pensar em Diadorim, era o que me dava cordura de paz" (p.160). Noutro ponto, Riobaldo diz: "Era ele estar perto de mim, e nada me faltava" (p.114). Sendo privação da paz e da plenitude, o recalcamento da paixão coincidiria com uma desordem maligna - violência e carência. Em uma cena que envolve tensão e ciúme entre os dois companheiros, Riobaldo diz: "Só não queria que os outros percebessem a má loucura de tudo aquilo" (p.150). A "má loucura" aponta para o caráter estranho, aos olhos dos outros, do tipo de envolvimento afetivo que os dois apresentam na conversa. O termo "loucura" aparece poucas páginas adiante, empregado para caracterizar o modo de vida de guerra. 159

"Sujeira, então, não é nunca um acontecimento único, isolado. Onde há sujeira há sistema. Sujeira é um subproduto de uma

ordenação e classificação sistemática das coisas, na medida em que a ordem implique rejeitar elementos inapropriados.". DOUGLAS, Mary. Profanação secular. In: ____. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, l976. p.50.

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"O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, coisa que só mesmo em guerra é que se quer." (p.158) E mais adiante, surge a imagem do demônio como "o doido completo" (p.179). Essa correspondência semântica manifesta uma afinidade entre o envolvimento com a guerra, o interesse por Diadorim e com o Demônio. Em todos os casos, trata-se de uma entrega a uma espécie de desordem. O fato de Riobaldo referir-se à homossexualidade em termos como "desencontro" e "sujice" faria supor que se trata apenas de uma questão de transgressão a uma ordem rígida estabelecida. Mas, considerando esse contexto de significação, se trata de algo mais complexo. A paixão secreta de Riobaldo pelo amigo e a condição dissimulada e travestida de Diadorim abrem uma fissura em um dos princípios estruturadores da sociabilidade jagunça. Nesse sentido, tanto a relação Riobaldo-Diadorim como a guerra e o demônio são abordados com uso do termo "loucura" porque, nos três casos, tratam-se de formas de experiência cujo fundamento real é uma incógnita. O demônio pode existir ou não; a guerra pode ser "por justiça" ou "sem razão"; a paixão por Diadorim, sendo implausível, é intensamente vivida. Falta, em todos os casos, uma causalidade última, definitiva, para as coisas; e isso não impede que a experiência seja atravessada, como pura travessia, sem começo ou fim claros. A forma literária assumirá precisamente uma caracterização em que transparece a problematização do nexo causal que "explicaria" lógica e linearmente as coisas, e a necessidade de uma linguagem que seja adequada à tensão e ao desequilíbrio que deram singularidade à experiência vivida. A intensa relação amorosa entre Riobaldo e Diadorim, latente e vivida, impossível e possível, é base de uma interrogação mítica de Riobaldo, sobre a Origem de tudo: "Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino?" (p.86). Esse olhar para a Origem não tem um significado independente do Fim do jagunço Diadorim, na batalha contra Hermógenes. O Menino - que apresentou Riobaldo à possibilidade da morte, na travessia do Rio, é o mesmo que morre quando o grande objetivo ("resumo da vida") de Riobaldo chega a uma resolução, com a morte de Hermógenes. Diadorim está lá, ciclicamente no medo da morte na infância e no grande combate final; ele presencia e motiva a convivência intensa de Riobaldo com a morte.

101

Riobaldo, durante a narração, se volta melancolicamente para o passado, resgatando a figura perdida. Junto à Otacília, o amor correto, Riobaldo sente necessidade de falar de Diadorim, o amor demoníaco, que deu densidade à vida "em erros".

O sujeito e o limite

"Sem dúvida, sou apenas um andarilho, um peregrino na Terra! E vocês são mais do que isso?" Goethe, Werther

A possibilidade da morte é um ponto radical da experiência humana real em que há, num certo nível, uma espécie de concorrência entre a subjetividade e a objectualidade (aqui no sentido propriamente corporal da noção de objeto - a imagem do corpo morto, destituído de consciência, reificado se encontraria com a consciência subjetiva) e uma separação entre sujeito e objeto (em sua atitude de alerta, condicionado pela posição de agente e potencial vítima no ambiente de constante violência, o sujeito age em auto-preservação, individual e coletiva, supostamente seguro e amparado em relação à própria morte, distanciando-se dela, preservando-se como se, sujeito de si próprio, pudesse controlar a morte, sua e de outros, objectualizá-la). Esse ponto limite, do quase morrer, do talvez morrer no próximo instante, no caso de Riobaldo, é naturalizado e cotidiano. A sobrevivência dentro da sociabilidade jagunça depende da aceitação desse ponto limite como parte estrutural da consciência. No caso de Grande sertão: veredas, essa constituição da experiência como constante defrontamento com a consciência radical da negação da idéia de sua continuidade, com o limite da morte, torna-se fundamento constitutivo do ponto de vista do romance, que problematiza, formal e tematicamente, a idéia de continuidade, incompatível com a experiência do limite.

102

Assim, em suma, uma vida conduzida permanentemente sobre um limite não pode ser exposta apenas como objeto de um discurso, como algo à distância do sujeito que fala. A continuidade da vida, permanentemente ameaçada no passado, não poderia ser artificialmente criada no presente da velhice. Assim, a narração se ocupa em expor essa tensão entre continuidade e limite, que permeou toda a existência, como algo inerente à própria forma. Nessa situação, "a morte sendo a finitude em si e, desse modo, o limite por excelência" (160), a consciência elabora a representação da experiência de modo a, considerando a presença ostensiva do limite, aspirar "à manifestação de um sentido acima de toda crise" (161). A possibilidade de morrer é aceita dentro de parâmetros criados pela condição de vida jagunça. Porém, na medida em que se considera que a violência não é algo racionalmente controlável, a morte é encarada em termos trágicos. A ambigüidade da violência converge com a problematização do significado da morte - trivial ou trágica, necessária ou injusta, explicável ou absurda. Há um desdobramento associativo da questão da posição de limite do sujeito, cuja base consiste em uma idéia tratada por René Girard. A idéia consiste em que a ordem cultural é "um sistema organizado de diferenças", e a supressão de diferenças ameaça a preservação pacífica da cultura (162). Se tomarmos a jagunçagem como ordem cultural, é possível observar que, pelo menos em dois sentidos, Riobaldo rompeu com estruturas de diferenciação básicas para essa ordem. Sua paixão por Diadorim subverte a lei segundo a qual jagunços se envolvem amorosamente apenas com mulheres, e não entre si. Para ele, as diferenças entre o masculino e o feminino, e o amor e a amizade, são problematizadas. Diadorim, também, de outro modo, está acima da distinção masculino/feminino. Riobaldo problematiza também a diferença entre agentes e vítimas da violência, em passagem anteriormente comentada (da p.308). Ao pensar na virtual reversibilidade de posições, ele se interroga sobre o problema da disposição para a destruição.

160

PASTA JR., José Antônio. Parte I. In: __. Pompéia (a metafísica ruinosa d`O Ateneu). São Paulo: FFLCH-USP, 1991. Tese de

doutoramento. p.50. 161 Idem. p.57. 162

GIRARD, René. A violência e o sagrado. op.cit. p.69.

103

O mote "Tudo é e não é" (p.12) está ligado a tudo isso. Riobaldo percebe que um sentimento imprevisível e fora de controle pode relativizar uma disposição tão básica quanto a sexual; e que há um componente circunstancial em estar integrado a seu grupo e não ser vítima dele, o que relativiza sua própria identificação com o grupo. O imprevisível e o contingente condicionam o que aparentemente é seguro. A condição jagunça, tal como apresentada no livro, é inconsistente com a indiferenciação entre homens e mulheres (de modo que Deodorina precisa se disfarçar), e impensável sem a organização do poder jagunço, internamente e diante dos militares ou vítimas ocasionais (se os amigos se tornassem inimigos constante e aleatoriamente, não se sustentaria qualquer padrão de justiça, havendo violência generalizada). Por esse raciocínio, é possível afirmar que a "doideira" ou o insólito estão ligados à problematização de diferenças básicas da ordem cultural. Ela faz com que Riobaldo tenha uma relação ambígua, ora distanciada, ora integrada à condição jagunça. Ele está no limite, isto é, à beira de uma linha que o sustenta dentro da cultura de sua comunidade. Fora dessa linha, ele pode perder as condições básicas de definição de uma identidade aceitável e estável. O Mal humano, assim, estaria essencialmente ligado a uma inadequação em relação à ordem cultural, que poderia se desdobrar em força maligna (desordenadora) contra o sujeito e a própria ordem cultural. Pois a supressão das diferenças básicas é destruição de algo essencial na auto-sustentação da cultura como um todo; portanto, ainda que subjetiva, secreta e minimalmente, é uma experiência de destruição da própria ordem cultural, de conseqüências imprevisíveis. "O modo de existência mais autêntico do Mal é o saber, e não a ação." (163) Entre o viver perigoso e o narrar, Riobaldo tem de se defrontar com o problema da compreensão; viveu coisas a que não é capaz de atribuir sentido. Essas lacunas no conhecimento de si próprio condicionam emocionalmente Riobaldo envelhecido, quando narra - e o levam a querer uma "cidade da religião", estável e plena de sentido.

163

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.253.

104

A religiosidade que Riobaldo desenvolve na velhice é uma forma de dar ordem ao mundo. O pensamento religioso atribui à realidade uma integridade que o protagonista vê como um porto seguro. Seu sincretismo consciente assinala o componente obsessivo e inseguro disso. A intensidade da vida religiosa, para ele, afastaria a desordem: "todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura." (p.15). Em certo ponto, Riobaldo expõe que a figura de Deus é necessária para o mundo se "resolver"; "se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra." (p.48). Riobaldo quer algo como "um mundo de normas estáveis, fundamentado em uma hierarquia de valores absolutos, inerentes à própria realidade divina" (164). Porém, no contexto da guerra jagunça, isso não vige. A vida burra é levada em um cosmos que não é racional, no qual as coisas acontecem fora de um regime de Necessidade (165), sem significado preciso ou destituídas de sentido. A hipótese de um mundo sem Deus, abandonado no nada, implicaria a falta de razão, de sentido, de uma causa última, para tudo o que é. Riobaldo desenvolve ao longo da narração uma reflexão (não sistemática) ética e antropológica. A vida burra tem aqui um lugar de parâmetro reflexivo, e não de conclusão final. Isto é, não representa uma concepção final sobre o funcionamento da realidade. Mas essa imagem especulativa assombra como possibilidade cruel radical. Várias afirmações de Riobaldo interpretam o viver como algo que não é facilmente compreensível. A vida burra na verdade é uma radicalização da dificuldade de compreender o significado das próprias vivências. Isto é, a vida seria "burra" em si própria; não seria apenas o sujeito que teria dificuldades de compreendê-la. Noutras palavras, num extremo, a vida não faria sentido algum. O mundo da "vida burra" é o mundo "sinistro, que significa a morte e o inferno" (166). A matéria expõe então sua natureza `tartárica' (167), demoníaca. Nesse mundo domina o perigo absoluto.

164

BORNHEIM, Gerd. O sujeito e a norma. In: VÁRIOS. Ética. São Paulo: Companhia das Letras / SMC, 1992.

165

BOSI, Alfredo. Acaso, necessidade. op.cit.

166

BENJAMIN, Walter. op.cit. p.255.

167

Idem. p.250.

105

Benedito Nunes estabelece uma afinidade entre o viver e o narrar de Riobaldo. O "viver perigoso", "cuja regra certa (...) não se possui antecipadamente" (168), é análogo ao narrar. "Narrar é perigoso, porque não se pode contar tudo - porque não se pode contar certo - e porque se deve fazê-lo" (169). Pensando em torno do tema da violência, é possível desenvolver essa mesma linha de raciocínio. Cabe considerar alguns temas para esclarecer esse ponto. No sertão roseano, convivem a violência a serviço da justiça, racionalizada e integrada aos valores culturais, e a violência não instrumental, estranha aos cânones de racionalidade e legalidade baseados na relação entre causa e efeito. Essa convivência perturbadora se vincula ao tema do demoníaco, à origem do Mal e à idéia de que doideiras regem os costumes. A articulação desses elementos teria como fundamento uma experiência de destruição de bases da cultura, pela supressão de diferenças que lhe são essenciais. A base da complexidade da narração talvez seja precisamente essa desordem, no sentido de que, pela razão de ter rompido com bases da cultura jagunça nos fios da experiência, Riobaldo constitui uma relação ambígua com seu próprio modo de vida, sem entregar-se integralmente a ele; e as ambigüidades do passado potenciam-se no momento presente da narração. As coisas não têm significados claros, mas sim, "astúcia (...) de se remexerem dos lugares" (p.142), o que dificulta o enlaçamento dos acontecimentos em processos de causa e efeito. No interior da narração, enfim, conviveriam acontecimentos cuja causa e significado se apresentam como explicáveis, e fatos complexos que parecem irredutíveis à determinação de uma causalidade ou um sentido preciso. A convivência perturbadora potencia ambigüidades continuamente, ao longo da narração. Analogamente, a convivência perturbadora da violência a serviço da justiça e da violência estranha aos cânones de racionalidade problematiza a possibilidade de um fundamento harmônico último em uma ordem cultural como a jagunça, em que a violência é estrutural.

168

NUNES, Benedito. Literatura e filosofia (Grande sertão: veredas). In: LIMA, Luiz Costa, org. Teoria da literatura em suas fontes.

Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. 2 ed. V.2. p.201. 169 Idem. p.203.

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