A Educação, em Cabo Verde, como em todo o lado, não pode estar à margem da Lei e do Direito!

October 16, 2017 | Autor: B. Lopes Varela | Categoria: Ensino Básico, Legalidade, Obrigatoriedade E Gratuitidade, Pagamento De Propina
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A Educação, em Cabo Verde, como em todo o lado, não  pode estar à margem da Lei e do Direito!    1. Como se sabe, de entre os princípios fundamentais do Estado do Direito Democrático  destacam‐se os da constitucionalidade e da legalidade, nos termos dos quais tanto os  cidadãos e demais entidades privadas como as entidades públicas, incluindo os órgãos  do  poder  político  e  da  Administração  Pública,  bem  como  os  respetivos  titulares  e  agentes,  devem  obediência  à  Constituição  e  à  lei,  que  devem  cumprir  escrupulosamente.  Este introito vem a propósito da cobrança de propina no 7º e 8º anos de escolaridade,  que  o  líder  da  UCID  (União  Cabo‐verdiana  Independente  e  Democrática)  considerou  ilegal  por  ocasião  de  uma  recente  intervenção  através  da  comunicação  social.  Tanto  quanto pude acompanhar, não consta que esta denúncia tenha sido objeto de reação  por  parte  dos  demais  partidos  políticos  e,  sobretudo,  do  Governo,  nomeadamente  através da ministra da Educação ou de outro dirigente do ministério responsável pela  educação. Ora, o líder da UCID tem toda a razão, como demonstraremos nos pontos que  se seguem.     2. Nos termos da alínea c) do nº 3 do artigo 78º da Constituição da República, incumbe  ao Estado “garantir o ensino básico obrigatório, universal e gratuito, cuja duração será  fixada por lei”.  Em  desenvolvimento  desta  norma  constitucional,  o  Governo,  mediante  autorização  legislativa  do  Parlamento,  procedeu  à  revisão,  em  Maio  de  2010,  da  Lei  de  Bases do  Sistema Educativo cabo‐verdiano, consagrando, no artigo 14º, que o “o ensino básico é  universal, obrigatório e gratuito, com duração de 8 anos”.     3. Refira‐se ainda que, nos termos do artigo 13º da lei de bases em apreço, “o Estado  garante a educação obrigatória e universal até ao 10º ano de escolaridade” e “promove  a  criação  de  condições  para  alargar  a  escolaridade  obrigatória  até  o  12º  ano  de  escolaridade”.  Estamos  em  face  de  mais  duas  opções  de  política  educativa  que  o 

Governo  assumiu,  sendo  a  primeira  de  natureza  imperativa  e,  como  tal  exigível  no  imediato, e a segunda de cariz programático e, como tal sujeita à “reserva do possível”.     4. Importa ainda salientar que a lei de bases não só alargou a duração do ensino básico  mas também procedeu à reorganização deste nível de ensino, que passou estruturar‐se  em três ciclos sequenciais, sendo o primeiro de quatro anos e o segundo e o terceiro de  dois anos cada, cada um dos quais com a sua natureza específica, e à redefinição dos  seus objetivos específicos. Um dos objetivos do ensino básico que merecem destaque  (e de que nem sequer se ouve falar) é o de “proporcionar a aprendizagem de uma língua  estrangeira e a iniciação facultativa de uma segunda, nas escolas que reúnam condições  para o efeito” (alínea i) do artigo 8º).     5.  Em  consequência  das  inovações  introduzidas  no  ensino  básico,  e  tal  como  expressamente consagra a lei de bases em apreço, o ensino secundário passou a ser de  quatro anos, compreendendo dois ciclos, de dois anos cada: o 1º ciclo, que abrange o  9º e o 10º anos de escolaridade (com uma via geral, de consolidação do ensino básico e  de orientação vocacional) e o 2º ciclo, que abrange o 11º e o 12º anos de escolaridade  (com duas vias: a via geral e a via técnica profissionalizante).     6. Note‐se que a nova lei de bases do sistema educativo não só revogou expressamente  a legislação em contrário como entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação no  Boletim Oficial (artigos 93º e 94º), ou seja, a partir de 8 de Maio de 2010.     7. Assim sendo, desde há mais de quatro anos, o ensino básico “universal, obrigatório e  gratuito” de 8 anos (1º a 8º anos), e o ensino secundário, de 4 anos (9º a 12º anos),  encontram‐se a funcionar à margem da lei.  Repare‐se que não se está aqui perante normas de natureza programática, mas sim de  aplicação  imperativa  e  imediata,  não  estando  a  sua  observância  sujeita  a  quaisquer  condições  nem  tampouco  à  vontade  pessoal  de  qualquer  governante,  dirigente  ou  particular.   

Por  isso,  a  ilegalidade  é  flagrante  em  dois  aspetos  essenciais:  o  7º  e  o  8º  anos  de  escolaridade  não  estão  a  ser  ainda  ministrados  no  âmbito  do  ensino  básico,  como  resulta de lei expressa, mas sim nos estabelecimentos públicos do ensino secundário; o  Estado  (através  das  escolas  secundárias)  está  a  cobrar  indevidamente  propinas  de  inscrição e frequência nos dois últimos anos do ensino básico.     8. É certo que a lei de bases prevê que “os encargos de frequência do ensino básico são  suportados pelo Estado, bem como pelas famílias” nos termos a fixar por lei. Todavia,  esta  lei  não  foi  ainda  publicada  e,  quando  o  for,  jamais  deverá,  sob  pena  de  inconstitucionalidade, fixar a cobrança de propinas para o ingresso e a frequência do  ensino básico.    Apesar  de  até  agora  não  haver  lei  que  regule  os  termos  e  as  condições  de  comparticipação das famílias no ensino básico, em Cabo Verde, as famílias, de um modo  geral, sempre suportaram encargos de frequência da escola primária, com a aquisição  de uniforme, livros e demais materiais didáticos para os educandos, a contribuição para  a cantina escolar (lanche), etc. Duvidamos que, nesta matéria, se pretenda legislar no  sentido de se exigir muito mais das famílias. A ver vamos. De todo o modo, está excluída,  por imperativo constitucional, a possibilidade de cobrança das propinas de frequência  do ensino básico ministrado pelo Estado. De resto, tal medida seria, única no mundo,  tanto  quanto  pudemos  apurar  a  partir  de  pesquisas  feitas  no  domínio  da  educação  comparada.     9.Concluindo:     O Governo não estava obrigado a alargar a escolaridade básica obrigatória e gratuita  para  mais  dois  anos.  Ao  fazê‐lo,  teve  certamente  em  vista  o  interesse  público  e,  seguramente,  terá  ponderado  as  respetivas  implicações  e  consequências.  Por  isso  mesmo, e de forma coerente, deve cumprir a lei que ele próprio fez aprovar, com base  na Constituição, sob pena de continuar a fazer tábua rasa de princípios matriciais do  Estado  de  Direito  Democrático  e,  em  particular,  de  lesar  direitos  reconhecidos  legalmente aos cidadãos. Na verdade a prática ilegal de cobrança de propinas no 7º e 

no 8º anos, ao condicionar a frequência escolar, em virtude do agravamento dos custos  das famílias, não favorece a observância dos princípios da inclusão e da democraticidade  do  ensino  básico  ministrado  na  rede  pública!  Daí  que  deva  repor‐se  a  legalidade,  banindo‐se  a  cobrança  das  propinas  nesses  dois  anos  do  ensino  básico,  tal  como  acontece do 1º ao 6º anos.  Para  que  não  subsistam  dúvidas,  há  muito  defendi  a  necessidade  de  criação  das  condições para o alargamento da escolaridade básica, pelo que não está em causa a  bondade intrínseca das opções vertidas na lei. Quanto ao alargamento da escolaridade  obrigatória a jusante, ou seja, para 10 anos, no imediato, e, progressivamente, para 12  anos,  não  sou  propriamente  contra  estas  opções  que,  no  entanto,  não  deixam  de  acarretar custos, tanto para as famílias como para o Estado (neste último caso, ainda  que  só  em  termos  de  ação  social  escolar).  De  notar  que  muitos  países  ricos  não  chegaram a tanto!     Afigura‐se‐me, no entanto, que, havendo condições para o alargamento da educação  obrigatória,  será  prioritária  a  sua  efetivação  a  montante,  mediante  a  criação  de  condições  para  a  oferta  generalizada  de  uma  educação  de  infância  de  qualidade,  preparando, assim, as crianças para um adequado e bem‐sucedido ingresso no ensino  básico, com efeitos positivos no sistema educativo. 

Praia, 28 de Novembro de 2014.

Ph.D. Bartolomeu Varela  

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