A violência policial e carcerária no Estado do Espírito Santo

May 29, 2017 | Autor: Matheus Boni | Categoria: Violence, Homicide, Torture, Crime, Police Violence
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A VIOLÊNCIA POLICIAL E CARCERÁRIA NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO BITTENCOURT, Matheus Boni1 Grupo de Trabalho: GT.05 - Direitos Humanos e Violência Institucional Resumo: O objetivo é analisar a violência produzida pelo aparelho de segurança pública do Estado do Espírito Santo. Enfocamos a participação de policiais em homicídios, clandestinamente em “grupos de extermínio” ou em nome do “cumprimento do dever legal” e a violência no interior do sistema prisional, seja dos agentes de segurança contra os presos ou destes entre si. Embora faltem dados quantitativos sistematizáveis em séries históricas, há uma forte consistência entre diversas evidências empíricas, permitindo-nos inferir um processo de institucionalização da violência policial e carcerária como mecanismos sociais de controle punitivo sobre as camadas inferiores da estrutura socioeconomica. Palavras-chave: Polícia; Prisão; Violência.

1 Introdução Este artigo tem como objetivo analisar a violência policial e carcerária no Espírito Santo como um caso da relação estrutural entre a seletividade penal e a criminalidade violenta. A polícia, nesta perspectiva, é considerada o conjunto de “pessoas autorizadas por um grupo para regular as relações interpessoais dentro deste grupo através da aplicação de força física. Essa definição possui três partes: força física, uso interno e autorização coletiva” (BAYLEY 2001, p. 20). O policiamento é o controle social coativo e legitimado pelas leis vigentes. Esta definição ampla inclui várias agências estatais, privadas ou mistas, além das organizações estatais, especializadas e profissionais que correspondem à moderna concepção de polícia. Órgãos desse tipo, no Brasil, são as Polícias Militar, Civil, Federal, Rodoviária Federal e Ferroviária Federal. As Guardas Municipais e Agentes Penitenciários de Segurança frequentemente carecem de profissionalizaçao. As Forças Armadas, que eventualmente participam de operações policiais não são especializadas em policiamento, mas sim na guerra. 1

Graduado e mestre em Ciências Sociais, especialista em História Cultural pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) e servidor público efetivo da Secretaria de Cultura do Espírito Santo. E-mail: [email protected].

Os vigilantes patrimoniais praticam o chamado policiamento privado, com variados níveis de especialização, profissionalização e legalidade. Deste modo, define-se a violência policial como aquela que tem policiais entre os seus agentes, e a violência carceraia, a ocorrida no interior das prisões. Mas o que seria violência? Há diversas definições, que podem ser restritas à agressão física intencional ou ampliadas até considerarmos a violência simbólica (BOURDIEU, 2005). Trabalharemos com foco nos órgãos estaduais (Polícia Civil e Militar e Segurança Penitenciária) e nos casos extremos (tortura e homicídios), que se encaixam na definição restrita e são muitas vezes entendidos como “casos isolados”. No entanto, longe de serem “casos isolados” – como muitos são tratados –, são frequentes e seletivos, recaindo sobre camadas multiplamente estigmatizadas (pela pobreza, raça/etnia, uso de drogas, etc). De modo que é impossível separar o tipo de violência física que enfocamos da violência simbólica que ideologicamente a autoriza. 2 Desenvolvimento Para o nosso estudo sobre a violência policial e carcerária no Espírito Santo, não dispomos de dados quantitativos em séries históricas, como os estudos realizados sobre o mesmo problema em Rio de Janeiro e São Paulo (FORÇA, 2009). Os dados quantitativos disponíveis mostram-se muito mais fragmentados (apesar de dispormos das informações gerais sobre homicídios dolosos e encarceramento). Contudo, ao se analisar os dados há indícios de que a letalidade policial no Espírito Santo é registrada como homicídios entre outros – a exceção é aparece num pequeno número de mortes apontadas como “justificadas” em “confrontos” com “suspeitos”. Por outro lado, as diversas fontes qualitativas apresentam uma razoável consistência. Sendo assim, nos esforçaremos ao máximo para oferecer um quadro empiricamente fundamentado dessa violência policial e carcerária a partir da evidência encontrada, apesar das suas limitações. 3 Resultados Entre 2003 e 2004 a Corregedoria da PM-ES registrou 736 crimes envolvendo policiais militares, incluindo 93 homicídios dolosos consumados, 3 homicídios tentados e 391 lesões corporais, sendo, destas últimas, 200 por armas de fogo e 191 por tortura física (Braga, 2006, p. 51-53). Entre 2001 e 2004 a Corregedoria da PC-ES registrou 333 crimes envolvendo policiais civis, incluindo 3 casos homicídios, 31 de tortura e 34 de lesão corporal (op.cit., 2324). O Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2013 , p. 126) contabiliza, entre os anos de 2010 e 2012, houve oficialmente 54 mortes em “confrontos com a polícia” no

Espírito Santo. O número representa aqueles casos em quê a morte é considerada justificável pelo cumprimento do dever legal ou legítima defesa, resultando em exclusão de ilicitude. Os demais casos, tendo policiais ou civis como vítimas, são incluídos como homicídios. A violência policial também possui uma face clandestina, pela atuação de alguns policiais e ex-policiais como pistoleiros individualmente, ou reunidos em “grupos de extermínio”. O mais famoso grupo paramilitar com participação policial do Espírito Santo foi a Scuderie Detetive Le Cocq, registrada em cartório como organização privada sem fins lucrativos, que foi dissolvida por decisão judicial em 2006. Mas em 2011 haviam mais de 80 investigações sobre grupos de extermínio e milícias na Grande Vitória 2. Muitos desses grupos se impunham como serviços clandestinos de segurança privada, e, em muitos casos, ocorria a prática de “produzir insegurança para vender segurança”, o que dá um caráter extorsivo e violento ao comércio da segurança privada clandestina, tornando-se uma verdadeira imposição de “justiça com as próprias mãos” e de “taxas de proteção” a comerciantes e moradores do local3. A partir de 1999 a segurança prisional externa ficou sob comando da PM-ES (Decreto 4.405 de 2 de fevereiro de 1999)4, que na prática acabou se envolvendo na segurança interna e administração de presídios. A militarização do sistema penitenciário levou ao agravamento do uso da tortura para controlar presos, o que ocasionou várias rebeliões e mortes de presos (BRASIL, 2005, pp. 35-42 e 111-142). Em 2005 foram elaborados rígidos Padrões operacionais de segurança interna e externa das unidades prisionais, prescrevendo um controle rigoroso sobre a rotina de presos, visitantes e funcionários, incluindo revistas

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VALIM, Patrícia. Investigação sobre grupos de extermínio e milícia já passam de 80 no Estado. A Gazeta, Vitória, 11/01/2011, disponível em , acesso em 26/09/2014. GARRETO, Glacieri. Agente de presídio é suspeito de extermínio. A Gazeta, Vitória, 22/03, 2012. Disponível em , acesso em 26/09/2014. A GAZETA. Armeiro de quadrilha de extermínio é preso. A Gazeta, Vitória, 16/04/2009. Disponível em , acesso em 26/09/2014. GIAMOMIN, Anne. Polícia investiga milícia na Grande Vitória. A Gazeta, Vitória, 3/10/2011. Disponível em , acesso em 26/09/2014. 3 Todas as expressões entre aspas deste parágrafo são resultantes de reportagens jornalísticas publicadas em: A GAZETA. Coagidos, moradores de Vila Velha pagam por vigilância clandestina. A Gazeta 16/7/2009. Disponível em , acesso em 26/09/2014. BARBOSA, Wagner. Milícias tentam se impor em Itapoã. A Gazeta 31/10/2011. , acesso em 26/09/2014. MILL, Ana Paula. Policiais tomavam terra de agricultores. A Gazeta, Vitória, 1/12/2011. Disponível em , acesso em 26/09/2014. 4 “Art. 1o – O Instituto de Readaptação Social – IRS, Casa de Detenção da Grande Vitória – CADEV, Penitenciária Agrícola do Espírito Santo – PAES e Casa de Custódia de Viana – CASCUVI, em caráter excepcional, ficarão pelo período de 180 (cento e oitenta) dias, prorrogáveis, por duração que não exceda o tempo necessário à satisfação do restabelecimento do sistema, sob a guarda externa da Polícia Militar, ficando também sob sua responsabilidade, o atendimento médico-odontológico, transporte e escoltas dos seus encarcerados. Parágrafo único – Os Oficiais PM empregados nas ações previstas neste artigo serão colocados à disposição da Casa Militar da Governadoria, atribuindo-se-lhes atividades pertinentes à segurança do sistema penal, definidos em lei sob a responsabilidade da SEJUC, e juntamente com os demais Policiais Militares empregados serão considerados em atividade de natureza policial militar”.(Decreto 4.405 de 2 de fevereiro de 1999)

vexatorias (Portaria 514-S de 24 de outubro de 2005 da Secretaria de Justiça do Espírito Santo). Há vários testemunhos sobre a violência generalizada nas superlotadas prisões capixabas. Com importante participação de agentes de segurança pública no problema, por meio do uso sistemático da tortura. E da própria administração penitenciária estadual, por meio de instalações inadequadas (como contêineres e carceragens, insalubres, etc), negação de assistencia jurídica e médica e registros de mortes como se fossem fugas (SANTOS, 2010; BRASIL 2006; 2007; 2009a; 2009b; 2009c; 2009d ). O uso sistemático da tortura permaneceu mesmo após a construção e reforma de numerosos presídios (BRASIL, 2010). De 2003 a 2012, foram registrados 268 mortes no sistema prisional, e no período taxa média de óbitos é 438 por 100 mil presidiários, mas 558 entre os anos 2003 e 2009. As taxas médias de óbitos, fugas e evasões somadas são de 7806 por 100 mil presidiários, mas no período de 2003 a 2008 a taxa média é de 9794. A correlação entre encarceramento e as mortes por causas externas com intenção indefinida em as taxas por 100 mil habitantes é de 0,748. Neste sentido, é possível admitir que presos mortos no sistema penitenciário e registrados como foragidos tenham às vezes os seus corpos encontrados em outros lugares e registrados como morte por causa externa com intenção indefinida. Entre 2012 e 2013, os dados do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, registram quase 400 casos de tortura (muitos com mais de uma vítima e até dezenas), das quais apenas 5% resultam em abertura de Inquérito Policial, sendo que houve apenas uma sentença judicial entre todos os casos. A descrição sumária dos casos denunciados mostra o uso sistemático de armas menos letais, como gás lacrimogêneo, balas de borracha, pistolas elétricas e spray “de pimenta”. Os acusados na maioria das vezes são agentes de segurança pública: policiais civis e militares, agentes penitenciários e às guardas municipais.

4 Considerações finais A redemocratização formal trouxe a independência relativa dos tribunais em relação ao Executivo, o pacto federativo e o do (parcial) comando civil em grande parte estadualizado sobre as forças de segurança, sem que houvesse uma transformação expressiva na organização policial formal, nem nas culturas práticas incorporadas (habitus e ethos) e transmitidas através da socialização profissional, nem do discurso político sobre a segurança pública. A democracia liberal herdou, incorporou e se apropriou da violência policial militarizada como instrumento de governo, sob controle externo de uma justiça penal seletiva (Bittencourt, 2013).

A resposta repressiva à insegurança social submete cada vez mais indivíduos socialmente excluídos à violência policial, tortura e encarceramento, produzindo reincidência criminal, gerando mais insegurança, etc. A repressão criminal se torna instrumento de segregação e eliminação dos indesejáveis. Separa os segmentos de média e de baixa renda das classes trabalhadoras, bem como os trabalhadores e os delinquentes entre os pobres. Herdeiras de uma tradição jurídico-penal militarista e punitiva, as atuais políticas “tolerância zero” de segurança pública levam à criminalização da pobreza.

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