Acumular Possibilidade é acalmar o MUNDO 1 : Ímpeto e uma certa ordem no projeto literário de Gonçalo M. Tavares

May 30, 2017 | Autor: Graça Santos | Categoria: Fragmento
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Acumular Possibilidade é acalmar o MUNDO1: Ímpeto e uma certa ordem no projeto literário de Gonçalo M. Tavares M. Graça Santos Universidade de Évora (CEL)

Resumo Este texto pretende vincular o projeto literário de Gonçalo M. Tavares às séries Investigações, Arquivos e Enciclopédia; o carácter fragmentário da obra, a intertextualidade e a convocação do leitor constituem-se como pontos de referência para a compreensão de uma poiesis descontínua e ao mesmo tempo totalizante. Palavras-chave: séries, cadernos, processo criativo, fragmento, leitor. Abstract This text aims to link the literary project of Gonçalo M. Tavares the series Investigations Archives and Encyclopedia; the fragmentary character of work, intertextuality and the reader’s convocation it is compose as reference points for understanding of the poiesis discontinuous while totalizing. Keywords: series, notebooks, creative process, fragment, reader.

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Excerto do fragmento 23 de Investigações.Novalis (in TAVARES, 2002: 29)

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Para que o mundo não se escape por ali – este ou aquele desenho – ou para estancar a hemorragia do real projectado; rodeia o desenho com outros desenhos, distribuídos, quando o quadro dos quadros o permite, pelos quatro pontos cardeais. O desenho deixa de estar ao centro, viaja para um dos lados: Tudo se multiplica e desequilibra. (GUSMÃO, 2013: 61)

1.

(Portanto:) o indício gigante2 Os livros de Gonçalo M. Tavares deslizam para uma zona híbrida que,

contaminada por estratégias discursivas como a pulverização de géneros e o caráter fragmentário que se mescla na forma e na matéria (mental e sensível), contribui para a instabilização de conceitos e de teorias apriorísticas. Sobrepõe-se a inclinação de Tavares para uma persistente interpelação crítica assente num código moral ao qual correspondem tantas linguagens quanta a pluralidade de formas com que o autor se posiciona na dialogia texto-mundo. Contudo, a aparente profusa complexidade deste processo de criação literária foi convergindo para motivos dominantes e congregadores: a vívida impregnação imagética do corpo, transversal a todos os livros, e uma emergente convocação ontológica do leitor para um espaço de (des)empenho ético-estético3, em que a linguagem é, em simultâneo, matéria e objeto de investigação num laboratório de natureza existencial. A par disto, a exposição mediática frequente do autor permite-lhe posicionar-se num lugar onde a estratégia autoral é, visivelmente, a de mobilizar e criar a conivência do leitor na direcção do seu pensamento, ou, no limite, aproximá-lo de uma perspectiva crítica atravessada por muitas outras vozes que assumida, ou implicitamente, vivem na intertextualidade dessa sua práxis crítica. A linguagem, abrindo um campo de experimentação, torna-se o instrumento de controlo e poder onde o leitor encontra plasmadas questões fulcrais do pensamento contemporâneo, ao mesmo tempo que o processo criativo de Tavares transpõe o estrito domínio do literário no desvelamento de um quadro de fusão artística como lugar de interrogação e exploração de outras linguagens plásticas.

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TAVARES, 2002: 104. Compreendido na definição wittgensteiniana que surge no fragmento 6.421 do Tratado LógicoFilosófico “(Ética e estética são um só.)” (1961: 127). 3

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O Atlas do Corpo e da Imaginação, exemplo maior dessa estratégia polifónica, é um extenso texto, uma obra seminal desenvolvida a partir da tese de doutoramento de Gonçalo M. Tavares, à qual, num desassombrado processo de montagem, o autor aditou novos fragmentos textuais, imagens, legendas e notas, dando forma a uma obra híbrida, de registo predominantemente ensaístico, e conceptualmente inédita no panorama literário português. Apesar dos seus quase trezentos fragmentos, o autor termina com este juízo: “De resto felizmente, há muitos outros assuntos” (TAVARES, 2013: 506), potenciando uma interacção com os demais livros que operam em “co-presença” (GENETTE, 1982: 8). Além de todos os vultos intelectuais, da antiguidade à contemporaneidade, que, nesse imenso intertexto, foram chamados a dialogar, subsiste, ainda, no autor, um desejo inesgotável de abertura a outros. E se, por um lado, o Atlas do Corpo e da Imaginação é princípio, ele mostra-se também meio e fim, como se o seu valor epistémico inicial se tivesse desdobrado em diferentes registos de escrita para, de novo, regressar a si próprio. Nesta medida, o Atlas do Corpo e da Imaginação pode ser lido como um original e extraordinário paratexto necessário para a compreensão do pensamento que percorre todos os livros de Tavares, mas, também, o inverso será verdadeiro, i. e., todos os livros se podem analisar como um paratexto estilhaçado do Atlas do Corpo e da Imaginação . Na reivindicação de um lugar de encontro com o leitor, o autor tem encontrado no peritexto4 e num epitexto5 formas privilegiadas de comunicação. Ressalvo, contudo, um certo excesso de exposição mediática (possivelmente resultado da pressão editorial), seja nas entrevistas, seja nas múltiplas formas de intervenção pública em que, por exemplo, o acto de se deixar fotografar pode ser entendido como desvio propositado e complementar, servindo o domínio da epitextualidade. As fotografias que acompanham as entrevistas, tendo como pano de fundo a paisagem urbana, evocam uma arte de desconstrução, de onde emerge uma

energia

reprodutora

da

tensão

homem-espaço,

descobrindo,

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Para além das formas tradicionais de peritexto, Tavares, complementa com outras informações: nomeação das séries, organização e reorganização, pontual, dos cadernos nas séries, numeração final dos cadernos, imagens, fotografias, tabelas, legendas e outros textos, como o longo posfácio “Notas sobre Matteo perdeu o emprego” com trinta e quatro textos numerados. 5 O epitexto é vasto, destaco as entrevistas, as mesas redondas, os colóquios, os cursos de Pensamento Contemporâneo (Fundação de Serralves) e a participação em leituras encenadas.

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intencionalmente, algumas problemáticas presentes nos textos. Na construcção e expressividade,

presentes

no

espessamento

dessas

manifestações,

autorais/editoriais, ou estéticas, observa-se uma vontade de encenação de Tavares cuja insistência no deslocamento do referente literário para outras áreas artísticas como a fotografia, o teatro e demais reconfigurações corpóreas, nesse encontro do eikon com o logos, permitem analisar a obra no seu conjunto. 2.

Ser mais é mudar de sítio6 De acordo com uma taxonomia editorial mais estável a partir de

Animalescos (2013), os trinta e cinco livros, até agora publicados, foram distribuídos por catorze séries7. Os subtítulos e outros paratextos, que desde as primeiras publicações já desenhavam um propósito autoral bem definido, foram, muitos deles, sucessivamente, alterados, outros acrescentados, redesenhando uma moldura para os seus livros num inequívoco espelho de intenções. Na simplicidade do termo “caderno”, a contrario sensu da força ilocutória da escrita tavariana, vejo uma certa renúncia ao signo mais óbvio, o livro, impendendo sobre ele uma eventual conotação indesejável de objecto já massificado e fechado sobre si mesmo, e, daí resultando, o descomprometimento do autor por via da fuga a uma imagética social vulgarizada que alguma literatura mais comercial tem servido. A multiplicidade das séries em que se inscrevem cadernos tão dissemelhantes quanto, por exemplo, Uma Viagem à Índia ou Biblioteca, decorrerá de uma pulsão inerente à comunicação na oscilação permanente entre a constante elaboração em que o pensamento vive e a necessidade de suspensão. Encontro, no pensamento de Blanchot, uma justificação plausível, ou seja, “O facto da palavra precisar de passar de um para o outro, seja para ser confirmada, contestada, ou desenvolvida, mostra a necessidade do intervalo.” (BLANCHOT, 2010: 131). Defendendo o valor circunstancial da interação, no sentido de “interromper-se para compreender-se, compreender-se para falar” (idem: 132), Blanchot lembra que, de outra forma, restariam os “terríveis monólogos de Hitler

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TAVARES, 2002: 7. Investigações, O Reino, O Bairro, Teatro, Bloom Books, Poesia, Arquivos, Estudos Clássicos (até 2014 apenas Histórias), Canções, Enciclopédia, Cidades, Epopeia, Short Movies e Atlas. 7

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e de qualquer chefe de Estado” (idem: 131) que, no respetivo gozo pela palavra solitária, se encontram correlacionados, per se, com a violência implícita do ato de dictare. O distanciamento desejável dessa “repetição do monólogo imperioso”, concretiza-se num discurso coerente que “deve sempre fragmentar-se mudando de protagonista, de um para outro”, pois interrompendo-se “permite a troca.” (idem: 132). Em Tavares, este intervalo, também exigido pela extensão do corpus, além de, apelar à interacção, num enquadramento mais abrangente, impulsiona a pulverização dos títulos pelas séries num sistema intra-autoral. O processo de encaixe dos títulos nas respetivas séries descobre a existência de uma macro estrutura, primeiramente delineada no universo autoral e, depois, no espaço de recepção, assaz elucidativa da determinação de totalidade apresentada no disperso. Em primeiro lugar, devido à sua amplitude titânica, destaco a série Atlas que, entendida como um grande mapa, remete para três lugares do sistema tavariano: O Reino, as Cidades e O Bairro; em segundo, ressalvo o facto de a quase totalidade das séries nomear, maioritariamente, géneros e subgéneros: Teatro, Poesia, Epopeia, Canções, Estudos Clássicos, Bloom Books e Short Movies; em terceiro e último lugar, contudo, para esta perspectiva, o mais relevante, saliento Investigações, Arquivos e Enciclopédia. Fundadoras de uma metodologia de investigação da(s) linguagem(ns) e do pensamento, estas séries constituem-se como corpus consolidatório de todas as restantes. Neste contexto, o Livro da Dança (2001), Investigações. Novalis (2002) série Investigações - , Biblioteca (2004) - série Arquivos -, Breves Notas sobre Ciência (2006), Breves Notas sobre o Medo (2007) e Breves Notas sobre as Ligações (Llansol, Molder e Zambrano) (2009) - série Enciclopédia, não configurando os livros de maior fôlego elocutório, confirmam, por um lado, um objetivo primordial de centralização orgânica do pensamento do autor, por outro, filiam a mescla de géneros e de intentos literários, e também filosóficos, nucleares em toda a

criação de Tavares. Sustentarei, assim, os aspectos basilares e

transversais em cada uma das três séries (que designarei por módulos). (Módulo 1) O nome atribuído à primeira série, Investigações, por hipotética apropriação do título de Wittgenstein, Investigações Filosóficas, começa por

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prenunciar a relação pensamento-linguagem, um dos traços distintivos de toda a poiesis tavariana. Por via da investigação, Tavares irá experimentar, ou mesmo forçar os limites da própria linguagem. Logo no primeiro caderno: “uma frase?/ as frases não têm importância/ Insisto. Uma frase?/ as frases não têm importância/ Insisto. Peço desculpa. Uma frase?/ as frases não têm importância.” (TAVARES, 2001: 76). Num discurso marcadamente fragmentário, ressalva-se a preocupação ad infinitum pela procura da coerência. A própria concepção das catorze séries já contém em si uma tensão entre o uno e o múltiplo, na medida em que as partes, e a sua organização, vão tornando possível um certo sincretismo entre o ideal de totalidade e de abertura, ou de incompletude da obra. Nos dois cadernos da série, surge, transversalmente, uma informação prévia, de natureza paratextual muito semelhante, no Livro da Dança, a nota de que se vai seguir um “Projecto para uma poética do movimento” (2001: 7), e, em Investigações.Novalis, o registo do subtítulo “Poesia”, não na capa, mas no interior do livro.8 De ambas as indicações, emerge um intento que se fará caminho para grande parte da obra de Tavares. Não se tratando de livros de poesia, mas de fragmentos e de aforismos, a satisfazerem uma deliberação poética de pôr a “Poesia em colaboração com o Invisível” (2001: 114) e, ressalvando-se o registo híbrido dos textos mais longos, começa a ser delineada a vontade de associar a escrita fragmentária à poesia, para Tavares, “ O fragmento é um lugar pequeno onde o espanto tem espaço. (…) A totalidade é burocrática e monótona, e só o corte provoca alegria entre o sítio da ferida e o sítio onde algo novo recomeça. (TAVARES, 2004, p. 14). Na opinião de João Barrento (2010), o fragmento terá tido origem na ideia do romantismo de Iena “de que fragmentos são poemas”, pelo que o fragmento seria a única forma possível, na noção de poesia de Schlegel e Novalis que, na Revista Athenaum, dizem encontrar, na reflexão poética, a forma capaz de “potenciar incessantemente as coisas multiplicando-as como numa série infinita de espelhos”(BARRENTO, 2010: 63, apud BARRENTO, 1989: 233234). A “poesia”, nos dois livros iniciais de Tavares, veicula essa força maior, não apenas contida nas formas breves, ou nas sínteses, mas sobretudo no exórdio de 8

Apesar das informações ao leitor sobre o pendor poético dos dois cadernos, nem o Livro da Dança, nem Investigações. Novalis se encontram adstritos à série Poesia.

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uma reiteração temática que se seguirá ao longo da obra. Estamos, ainda, junto aos alicerces de um edifício em que a profusão textual, organizada numericamente, e a tendência para a brevidade reivindicam, já, um projeto literário sólido no qual também se inscreve a prática da citação iniciada em Investigações.Novalis: “Da Linguagem?/ Apenas o que Novalis queria da palavra:/«atingir diversas ideias com um só golpe» (2002: 64). Para evidenciar que a poiesis de Gonçalo M. Tavares tem vindo a caracterizar-se por uma certa ocultação traduzida pela ausência, ou o lugar do não dito, que o fragmento tão bem enuncia, registe-se a repetição com que Tavares encerra as duas partes de Investigações.Novalis: “E o Mais Desaparecido é o que Aparecerá com mais força.” (ibidem: 75 e 118). Quando se associa o “desaparecimento” a tudo o que ficou oculto no branco das páginas, existe uma interpelação a que o leitor, procurando um desvelamento metonímico, terá de responder, fazendo “aparecer”. Como dizer na solidão autoral aquilo que o excesso de palavras torna incomportável, senão por via da reescrita do leitor? Barthes, ao explicar que o fragmento é um género retórico, dirá: “la rhétorique est cette couche-là du langage qui s’offre le mieux à l’interpretation, en croyant me disperser, je ne fais que regagner sagement le lit de l’imaginaire.” (BARTHES, 1975: 672). (Módulo 2) A série Arquivos, aberta em 2004, apenas tem um caderno: Biblioteca. Vem a prelo, então, dois anos depois do primeiro livro. Tavares redigiu, aí, duzentos e noventa e seis textos, em formato de entradas bibliográficas, ordenadas por ordem alfabética. O conteúdo de cada uma é pouco extenso, o autor chama-lhe, mesmo, em breve nota introdutória (uma vez mais o paratexo tavariano), fragmentos. Tavares refere que, como ponto de partida do livro, teve em consideração a obra dos autores e não os respetivos aspetos biográficos: “Uma ideia ou apenas uma palavra mais usada pelo escritor (por vezes, mesmo associações inconscientes e puramente individuais) estão na origem do texto.” 9 (TAVARES, 2004: 9). Ora, este pressuposto, do qual saem todos os fragmentos, confere aos textos, desde logo, um ónus de extrema subjetividade que acaba por ser um apelo lúdico ao 9

Também na série O Bairro, Tavares faz o mesmo exercício de distanciamento biográfico.

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processo de reconhecimento daqueles autores, mas sobretudo de descoberta, de outros, mediada por outro leitor, i.e., o próprio escritor. Apesar de a Biblioteca suster o espólio matricial bibliográfico de um leitor omnívoro, não abriga todos os autores decisivos para o pensamento de Tavares, detectando-se a ausência, por exemplo, de Séneca e de Nietzsche. Contudo, na convocação dos leitores para zonas de subjectividade do pensamento, multiplicam-se as entradas bibliográficas, num perpetuum mobile, transformadas, grosso modo, numa considerável base de dados. A identificação da linguagem com o mundo, por via do pensamento de Wittgenstein10, desde cedo assumida pelo autor, mostra-se nesta Biblioteca de onde recupero apenas breves partes do verbete dedicado a Ludwig Wittgenstein: “Mentalmente lateral como todos os indivíduos interessantes. (…) alguém que experimentava palavras.” (TAVARES, 2004: 105). Esta aproximação ao filósofo enfatiza a possibilidade de a experiência do futuro se realizar na palavra: “Ninguém tem a experiência do futuro, no entanto temos a palavra.” (ibidem). A emergência de um devir, apenas possível pela via criativa da linguagem, para a qual apela o fragmento, estabelece, por sua vez, ligações com o processo de criação artística de Tavares, cujo “Prazer invisível” é “imaginar” (2002: 41). Será relevante lembrar o conceito de “pensamento lateral” de Edward de Bono (1973), para quem, o objetivo do pensamento lateral seria gerar ideias que escapassem ao alinhamento do pensamento habitual, atribuindo a obstrução do pensamento, em linhas gerais, a três grandes causas: a falta de informação, o bloqueio mental e o óbvio (BONO, 1973: 10-12). Quando o epíteto “mentalmente lateral” é adotado, não encerra apenas a paternidade de Wittgenstein, mas a própria filiação do pensamento que, destes fragmentos da Biblioteca, se move em contínuo devir. Evidencia-se, nesta sucinta relação, o facto de Tavares explorar alternativas ao social e artisticamente fácil, pelo que o afastamento do óbvio seja o maior desafio para o leitor. Levantar a questão da singularidade do pensamento de Tavares pressupõe ultrapassar a fronteira do território da colagem, ou da apropriação factual de 10

Wittgenstein e Bachelard são as grandes referências de Gonçalo M. Tavares que no Atlas do Corpo e da Imaginação assim o expressa: “Wittgenstein e Bachelard: os dois autores centrais deste ensaio: os pontos de que não nos afastaremos.” (2013: 45).

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centenas de autores. O entrelaçamento metódico da linguagem, da poesia, da filosofia e da arte, não poderia sustentar-se na simples tessitura textual por mais organizada que ela se apresentasse. Quer nesta série, quer em tantas outras (Investigações, Enciclopédia, O Bairro, Teatro Bloom Books, Cidades, Atlas), o autor vai para lá desse ónus intertextual, ousando apresentar uma nova perceção da realidade ancorada na sua singular criatividade e imaginação.11 (Módulo 3) A série Enciclopédia, que inclui três cadernos, Breves Notas sobre Ciência, Breves Notas sobre o Medo e Breves Notas sobre as Ligações (Llansol, Molder e Zambrano), completa a trilogia (das séries). Diferencio os dois primeiros cadernos do terceiro devido à singularidade do diálogo com as três escritoras expressamente convocadas. O nome da série, Enciclopédia, ao mesmo tempo que aponta para uma instigante dimensão de abrangência, deixa soçobrar, no contido “breves” dos títulos, esse formato referencial. O latente fragmentário, presente nos curtos textos dos três cadernos e, ao mesmo tempo, a expressão de temáticas universais tão abrangentes, sobretudo nas Breves Notas sobre a Ciência e nas Breves Notas sobre o Medo, ressurgem da etimologia da própria palavra enciclopédia. Do grego eukyklios paideia, enciclopédia encontra-se definida no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (1987) como «o círculo da educação ou das ciências, o conjunto das ciências que constituem uma educação completa» (p.397). Não totalmente afastada a intenção educativa, para que algumas metáforas conduzem, a série introduz, sobretudo, uma visão peculiar do mundo em que se fundem o orgânico com o comportamental: “Como o rápido estudo da fisiologia corporal mostra, relaxamentos sucessivos, sem tensões nem contracções intervaladas, provocam uma lenta, mas inequívoca, decadência dos tecidos.” (TAVARES, 2007: 54). O desenvolvimento das ideias enunciadas nestes dois cadernos encontrase, de forma recorrente e circular, em séries como O Reino, O Bairro, Cidades, 11

Aqui presente o conceito de imaginação de Gaston Bachelard que se desviou da tradição filosófica da perceção sensorial e subjetiva da imagem para a sua perceção material, como acontecimento da linguagem, numa nova estética filosófica contemporânea em que o corpo vivencia a força da imaginação. (1990)

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Canções e Epopeia. Apesar das datas de publicação dos títulos da Enciclopédia serem posteriores a alguns cadernos de O Reino ou O Bairro12, coloca-se a possibilidade de esta série ter sido escrita antes da publicação desses textos, confirmando o que Tavares tem vindo a referir em algumas entrevistas sobre a não coincidência temporal do processo de criação com o da publicação. Considerado, então, um esboço enciclopédico na projeção do conhecimento em construção, método parcialmente compatível com o caderno Biblioteca,13 reconhece-se afinidade com os pressupostos da Encyclopédie de Denis Diderot (1713-1784) e Jean le Rond d’Alembert (1717-1783) na sustentação do conhecimento humano na memória, na razão e na imaginação. Assumido desta maneira, o compromisso ontológico tavariano restauraria na literatura, precisamente, as faculdades subjacentes a estes três ramos do conhecimento, a História, a Filosofia e as BelasArtes: i) no reconhecimento sistemático da elevada importância da memória, através da recuperação de grandes acontecimentos da história mundial, ii) na dialética homem-mundo e iii) na arte através de frutuosos diálogos com a dança, o teatro e a performance. Em Breves Notas sobre as Ligações, o exercício de Gonçalo M. Tavares, para a organização das entradas, diverge da estratégia dos dois cadernos anteriores, de modo que o objeto enciclopédico se instaura, não tanto pelos temas, mas pela matéria citacional. A arrumação de citações das três escritoras (Maria Gabriela Llansol, Maria Filomena Molder e Maria Zambrano) torna visível o respeito pelo respetivo pensamento e desvela, na organização das colagens e no seu encontro com outras de outros filósofos,14 o que está em obra na obra, isto é, o motor da sua poiesis. Os fragmentos iniciam-se com citações das escritoras e estabelecem nexos com versos, frases, ideias, que se configuram como (pre)textos para dar lugar à sua própria voz. Tavares, seja na ampliação do pensamento inicial, no comentário, no desvio ou na abertura para outras reflexões, desenha novos percursos de leitura

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Os três primeiros cadernos de O Reino são publicados em 2003 e 2004; os sete primeiros cadernos de O Bairro são publicados entre 2002 e 2006, esta última data coincidente com a publicação do primeiro caderno da série Enciclopédia. 13 Em Biblioteca, mais do que o conhecimento em construção, deve ser considerado o desvio do pensamento tavariano por mecanismos psicológicos que se afastam do saber dito enciclopédico. 14 Surgem, pontualmente, Bachelard, Adorno, Benjamin, Deleuze, Nietzsche, Vicente Franz Cecim, Brodsky, Marco Aurélio, Platão, Heraclito, algumas vezes citados no interior das citações.

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à semelhança do livro Biblioteca. Por outro lado, faz ressurgir o aforismo, essa forma privilegiada de vincar uma sabedoria autoral, e as tabelas literárias,15 numa inequívoca atracção pelo ato de interpelar o leitor. O leitor é, aqui, convocado duplamente: para o movimento de pensar e para o movimento ocular, obrigandose a procurar vínculos semânticos entre as colunas e as linhas (movimentos horizontal e vertical. Neste processo, de leitura à deriva das tabelas, já por si caracterizadas por uma elaboração literária híbrida,16 a “disposição muscular do raciocínio” é, continuamente, desafiada. As ligações, tal como noutros livros, feitas por um leitor que tacteia e explora as fronteiras lógicas e cerebrais, proporcionam uma experiência de suposições (ou rasgões) de um tecido textual bastante denso. Apesar de um certo estado de sítio, ressurgem, aspetos aglutinadores do contexto enciclopédico, nomeadamente, todos os cadernos enunciarem temáticas das humanidades, das ciências e da arte e a abundância de registos que a matriz de uma poética de ligações, por si só, já abarca. 3.

“et caetera” Sobre a produção em forma de séries, Gonçalo M. Tavares, em entrevista,

esclarece que as séries surgem enquanto forma de “tentar colocar alguma ordem na desordem” (Entre Livros, 2007) da sua escrita. Ora, quando a intenção de catalogar se evidencia desde a formação inicial de um corpus, que se vai avolumando, o seu aparente caráter aleatório dissipa-se, ficando a sua organicidade assegurada por mecanismos de ordem filosófica, nomeadamente na intensa focalização em determinados valores morais. Esta fixação moral, mas não moralizadora, no sentido em que não se reveste de qualquer propósito heurístico, aliada ao que poderei denominar, de estética do fragmento-movimento, poderá resultar da observação atenta da falência do homem na dinâmica de um mundo determinado pelo excesso de conteúdos, de informação e de materialidades fluidas. A metodologia poietica, como resposta individual a esse estado de carência do ser social, assenta numa concentração e intensidade capazes de apreender e reproduzir a substância desse sopro vertiginoso de duplicação a que

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Aparecem pela primeira vez em A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil (2004). 16 Nas tabelas surgem citações, aforismos e fragmentos de registo ensaístico.

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correspondem, na sua criação, as séries e, também, os cadernos na sua prolixidade. Tal movimento, incansável, tem correspondência na poética do “et caetera”, uma vertente do pensamento plástico de Umberto Eco (2009) expressa em A Vertigem das Listas. A perspetiva de Eco cria uma ponte com aquele lugar em que Gonçalo M. Tavares, para que a leitura continue infinitamente, apresenta ao leitor outra “vertigem”, a do indizível, no sentido em que o que é dito não basta, e que encontra expressão no projeto literário e filosófico para o qual concorrem séries em que o elenco e, também, a repetição estão presentes, como Arquivos, Investigações, Enciclopédia, O Bairro e Atlas. Umberto Eco define a “lista, ou elenco ou catálogo” como uma modalidade “de representação” que “sugere quase fisicamente o infinito, porque, de facto, este não acaba, a sua forma não se conclui” por oposição ao “infinito da estética” que, de acordo com as suas palavras, é “um sentimento consequente à realização finita e perfeita da coisa que se admira” (ECO, 2009: 17). O que em Eco é um resto imenso, para Tavares corresponderá à apreensão de um mundo em que as suas definições conceptuais seriam sempre insuficientes, justificando-se o recurso à organização (da obra em séries), às listas (de autores, de referências, dos Senhores), à numeração (dos índices, dos capítulos, dos textos dentro dos cadernos e dos próprios cadernos), justificando-se, enfim, o recurso ad infinitum a configurações de reiteração intermináveis. A relevância do movimento, na construção de um novelo de catalogação, associada a todo um corpus textual, semanticamente impregnado pelo fascínio do movimento dos corpos, aparece orientada, muitas vezes, pela dicotomia velocidade-lentidão e pela vivificação da expressão plástica potenciadora, por excelência, do movimento, a dança. No primeiro livro publicado, Livro da Dança, essa convivência estético-filosófica, sintetiza-se: “Não encontro AMOR nos corpos que suportam a IMOBILIDADE/ O movimento é possível, o amor é a conclusão./ Dançar para chegar à Conclusão.” (TAVARES, 2001: 77). À vontade de listar, de repetir para fortalecer o sentido tautológico do mero pulsar físico da vida, corresponde o ideal de forçar as ideias e a respetiva intensidade. Para o conseguir, Gonçalo M. Tavares tem como metodologia fazer as coisas mais pequenas, mais concentradas (Bomb Magazine, 2013),

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inventariando-se, assim, as séries e os cadernos, pela profusão das suas especificidades semântico-formais, num ímpeto autoral com uma certa ordem.

Bibliografia BACHELARD, Gaston, A Terra e os Devaneios do Repouso. Tradução de Paulo Neves da Silva, Martins Fontes. S. Paulo: 1990.

BARRENTO, João, O Género Intranquilo, anatomia do ensaio e do fragmento, Assírio e Alvim. Lisboa: 2010. BARTHES, Roland, Roland Barthes par Roland Barthes, Editions du Seuil. Paris: 1975. BLANCHOT, Maurice, A Conversa Infinita, A palavra Plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Edições Escuta. São Paulo: 2010. BONO, Edward de, Lateral think: creativity step by step, Harper Perenial. New York: 1973. CAMPOS, Álvaro, Poesias, Edições Ática. Lisboa: 1980. ECO, Humberto, A Vertigem das Listas. Tradução de Virgílio Tenreiro Viseu, Difel. Lisboa: 2010. GENETTE, Gérard, Palimpsestes La littérature au second degré, Éditions du Seuil. Paris:1982. GUSMÃO, Manuel, Pequeno Tratado das Figuras, Assírio e Alvim. Porto: 2013. MACHADO, José Pedro, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte. Lisboa: 1987. NOVALIS, Friedrich, Fragmentos são Sementes. Tradução de João Barrento, Assírio e Alvim. Lisboa: 1992. Machado, José Pedro, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte. Lisboa: 1987. 2.º vol, p. 397. TAVARES, Gonçalo M., Livro da Dança, Assírio e Alvim. Lisboa: 2001. ______, Investigações. Novalis, Difel. Lisboa: 2002. ______, Biblioteca, Campo das Letras. Lisboa: 2004. ______, Breves Notas sobre Ciência, Relógio d’Água. Lisboa: 2006. ______, Breves Notas sobre o Medo, Relógio d'Água. Lisboa: 2007. ______, Breves Notas sobre as Ligações, Relógio d'Água. Lisboa: 2009.

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______, Atlas do Corpo e da Imaginação, Caminho. Lisboa: 2013. WITTGENSTEIN, Ludwig, Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti, Companhia Editora Nacional. São Paulo:1961. Referências electrónicas Entrevista da Revista Entre Livros, edição 29, a Gonçalo M. Tavares “Ler para ter lucidez”», set. 2007, disponível em: http://www2.uol.com.br/entrelivros/artigos/entrevista_goncalo_m__tavares Entrevista de Pedro Sena Nunes (Bomb Artists in Conversation 125, Fall 2013), disponível em: http://bombmagazine.org/article/7332/gon-alo-m-tavares

Nota curricular Investigadora do Centro de Estudos em Letras da Universidade de Évora. Mentora no Instituto de Investigação e Formação Avançada (UÉ). Doutoramento em Literatura Contemporânea (UÉ). Mestrado em Criações Literárias Contemporâneas (UÉ). Licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas na variante de Estudos Portugueses e Franceses pela Universidade Nova de Lisboa.

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