Agora eu era um coreógrafo...

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CRÍTICA​ , ​ DANÇA 

Agora eu era um coreógrafo…  [Assim, tipo… dança  contemporânea]    

Companhia  Instável.  Direcção:  Tiago  Rodrigues.  Assistência:  Mafalda  Deville.  Intérpretes:  Bruno  Alexandre,  Diletta  Bindi  e  Liliana  Garcia.  Cenografia  e  Desenho  de  Luz:  Thomas  Walgrave.  Vídeo:  Bruno  Canas.  Pós­Produção  Áudio:  Cristóvão  Faria  Carvalho.  Director  Técnico:  Ricardo  Alves.  Co­produção:  Espaço  do  Tempo.  Apoio:  ESAD,  Matinal.  Entidade  programadora e parceria: LARGO Residências. 

Largo do Intendente, 23 de Julho de 2015 

Intendente em Festa 

É  inegável  o  facto  de que o  passar  dos  anos condena  o ser  humano a um  estado  sorumbático  e  pouco  dado  a  sorrisos  ou  gargalhadas  francas.  Deixamos  de  saber  ser  crianças,  experimentar  novas sensações,  retomar  o  fingimento  de  ser  outra  coisa,  outra  pessoa,  de  nos  aventurarmos  pelo  desconhecido.  Deixa,  simplesmente,  de  nos  ser  permitido  fantasiar.  Agarramo­nos  a  uma  espécie  de  segurança  confortável  que  nos  remete  para  uma  despreocupada  e  aborrecida  monotonia.  É  nesta  fase  que  o  teatro  e  os  seus  criadores  têm  um  papel  preponderante;  em  que  espectáculos  como  este  nos  conseguem  fazer  olhar  o  mundo  de  uma  forma  mais  despreocupada.​ Assim,  tipo…  dança  contemporânea  ​ é, para  o  espectador,  uma  brincadeira.  Para os  seus  criadores foi,  possivelmente,  a  apresentação  de  um cruzamento  de  realidades em que o teatro, o vídeo, a  dança e a música podem conviver harmoniosamente.  A  Companhia  Instável,  criada  em  1998  e  sediada  no  Porto,  tem  como  premissa  básica  a  experimentação,  a  rotatividade dos  seus  intervenientes  e  a  digressão  dos  seus  espectáculos  cuja  estrutura  está  assente  numa 

contínua  mutação.  Esta  “instabilidade”  é  o  apanágio  do  colectivo  que  se  reflecte  também  na  formação  e  na  aprendizagem  da  dança  contemporânea  que  promovem.  Desde  2010,  a  CI  apresenta  dois  espectáculos  anuais  –  um  criado  por  um  renomado  coreógrafo  e  outro por  um  criador  “experimental”.  É  neste  âmbito  que  surge  o  convite  a  Tiago  Rodrigues,  director  artístico do  Teatro  Nacional, para dirigir esta produção.  Começado  em  Maio  de  2013,  com  o  apoio  financeiro  da  Fundação  GDA,  na  categoria  de  dança,  ​ Assim,  tipo…  dança  contemporânea ganhou forma  na  Casa  dos  Amigos  do  Minho,  sediada  no  Intendente.  Ali,  Tiago  Rodrigues  recrutou  os  seus  primeiros  intérpretes  –  anónimos  moradores  do  bairro  lisboeta,  de  várias  idades  e  nacionalidades.  Estreado  em  Dezembro  desse  ano,  no  Porto, o espectáculo apresentou­se na capital no  passado  dia  23  de  Julho,  no  Largo  do  Intendente,  no  âmbito  do  evento  Intendente em Festa 2015.  Às  22h00,  o  público,  que  ocupava  já boa  parte  das  cadeiras  dispostas  ao  ar  livre  em  frente  à  estrutura  desmontável,  ouviu  as  primeiras  frases  do 

espectáculo.  Sem  perceber  de  onde  vinham  e  a  que  propósito  surgiam  aquelas  frases,  vamo­nos  apercebendo  que  se  tratam  de  indicações  de  movimentos corporais:  “levanta  a  perna”,  “abre  os braços”,  “está  com cara  de  zangada”,  etc…  A  luz  branca,  crua  e  sem  artifícios,  surge  para  dar  a  conhecer  a  cena:  uma  tela  em  que  se  projecta  um  vídeo  onde  nos  são  mostrados  os  rostos  dos  desconhecidos  recrutados  para  esta  “experiência”.  É  deles  que  partem  as  indicações  que  ouvíamos.  Ao  contrário  do  que  se  podia  pensar  inicialmente,  não  eram  ordens  de  movimento  mas  sim  um  relato  do  que  estavam  a  ver.  “Estica  os  braços,  observa o espaço à sua volta… Vira­se de costas para mim”. 

Os  três  bailarinos  ocupam  já  o  palco  obedecendo  a  estas  instruções.  É  curioso  verificar  que  cada  um  deles  interpreta  de  maneira  distinta  aquilo  que  é  dito,  ou  seja,  ouvem  a  mesma  coisa  mas  reagem  de  maneira  diferente.  O  mesmo  se  poderá  dizer  em  relação  aos  intervenientes  do  vídeo  que,  assistindo  a  um  movimento,  têm  interpretações  distintas  do 

mesmo.  Assim,  há  os  que  descrevem  o  que  vêem  de  maneira  factual  –  “braços  para o  lado  esquerdo,  vira  o pescoço  e  baixa  a  cabeça”  –  e há  os  que  tentam  interpretar  o  que  esse  movimento  pode  significar  na  sua  essência –  “afasta­te,  estou zangada”. A  partitura corporal dos bailarinos é  descomprometida  e  solta,  correspondendo  à  simplicidade  das  descrições  que  ouvem.  Podemos  reconhecer  nas  suas  coreografias  alguns  dos  parâmetros  estabelecidos  por  Rudolf  Von Laban no sistema do movimento  corporal  que  desenvolveu  –  gestos  rápidos  e  fortes,  lentos  e  leves  de  diferente  duração  e  intensidade,  com  momentos  de  actuação  individual  e  outros  de  entrosada  interacção.  Em  alguns  momentos  os  bailarinos  ocupam  o  banco  de  jardim  que  serve  de adereço  tanto no  vídeo  como no  palco,  como  se  se  observassem  a  eles  mesmos  na  coreografia  por  si  executada.  Há,  no  entanto,  algo  que  distingue os  dois cenários. A imagem  que  serve  de  pano  de  fundo no vídeo é de árvores frondosas e montanhas  cobertas de  neve;  o  cenário do  palco  montado  no  Largo do Intendente era  a  Avenida  Almirante  Reis  e  os  transeuntes  que,  com  o  passar  do  tempo, 

se  foram  aglomerando  ao  redor  da  estrutura.  Nem o  frio  que  se fez sentir  (n)os  afastou  dali.  As  varandas  dos  prédios  em  volta  ganhavam  espectadores  com  vista  privilegiada  sobre  aquele  que  seria,  talvez,  o  primeiro  espectáculo  de  dança  contemporânea  a  que  assitiram.  Os  movimentos  dos  bailarinos  continuavam  ao  ritmo  muitas  vezes  alucinante  das  descrições  até  chegar  ao  momento  em  que,  um  por  um,  ocuparam  o  banco  do jardim, na  direita  alta  do  palco. A  luz  apagou­se,  ficando o palco  iluminado  apenas  pela  projecção  do  cenário  das  montanhas  cobertas  de  neve. O vento fazia ondular a tela e dava­lhes vida. 

“Por  favor,  não  me  façam  mais  isto  que  eu  não  aguento!”  é  a  última frase  que  se  ouve  do  vídeo.  Tudo  me  leva  a  crer  que  o  público,  que  agora  ocupava  já  todas  as  cadeiras  disponíveis,  aguentaria  e  quereria  mais.  Podia tornar­se, por vezes,  complicado  acompanhar o desenrolar frenético  dos  movimentos  em  cena  e  acompanhar,  em  simultâneo,  as  imagens  projectadas. Percebemos  que  para  os intérpretes anónimos,  (alguns deles 

presentes  na  plateia  dessa  noite)  também  houve  situações  de  difícil  descrição  e  então  olhavam  simplesmente, com  ar enternecido  e  sem dizer  uma  palavra,  a  coreografia  que  lhes  era  mostrada.  Nesses  momentos  de  silêncio,  o  som  do  piano  tomou  conta  da  cena  e  deu  total  liberdade  aos  bailarinos.  Era  como  se  as  notas  da  música  os  tornassem  autónomos  e  livres  das  “cordas”  por  que  eram  movidos.  Os  bailarinos,  notáveis  e  de  fôlego  invejável,  cumprem  a  sua  função  de  “títeres”  dos  protagonistas  do  vídeo  que  foram, por sua vez,  alvo  de  uma  experimentação  artística  vinda  da  mente  de  um  criador  que  pugna  pela  sensibilidade  e  simplicidade  criativa. 

Assim, tipo… Dança Contemporânea é tudo isto: um espectáculo que tanto  tem  de  despretensioso  como  de  complexo  e  intrincado  e  que  nos  mostra  que  a  beleza  da  simplicidade  pode  ser  encontrada tanto  no  fingimento  de  um  espectáculo  teatral,  a  que  assistem  centenas  de  pessoas,  como  na  brincadeira  solitária  de  uma  criança  que  finge,  por  momentos,  ser  o  que 

não  é.  Aceitemos  este  espectáculo  como  um  exercício  de cruzamento  de  linguagens artísticas, sem necessidade de complicarmos mais.     Andreia Brito Silva   

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