Antinomia Radical entre as Leis de Autoanistia e a Obrigação de Punir os Perpetradores de Violações aos Direitos Humanos: Fundamentos e Análise de Casos (Antinomy between Amnesty Laws and the Obligation to Punish Perpetrators of Human Rights Violations)

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Descrição do Produto

EMÍLIO PELUSO NEDER MEYER MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA Organização

Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988

2ª edição ampliada

Belo Horizonte 2014

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NOS 25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Emílio Peluso Neder Meyer Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira Organização 1ª Edição – 2014 – Initia Via 2ª Edição [ampliada] – 2014 – Initia Via Copyright © desta edição [2014] Initia Via Editora Ltda. Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104 - Bairro Lourdes Belo Horizonte, MG, Brasil, 30140-061 – www.initiavia.com Editora-Chefe: Isolda Lins Ribeiro Editora Adjunta: Renata Esteves Furbino Editora Júnior: Lídia M. de Abreu Generoso Revisão: Ana Carolina Borges, Lívia C. Lopes Chaves, Silvia Cardoso Cesar Arte da capa: Eduardo Furbino Imagem da capa: Assembléia Nacional Constituinte, 2 de Outubro de 1988, by Agência Brasil (cc) TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial deste livro ou de quaisquer umas de suas partes, por qualquer meio ou processo, sem a prévia autorização do Editor. A violação dos direitos autorais é punível como crime e passível de indenizações diversas.

C749

Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 / Emílio Peluso Neder Meyer, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (organização). 2ed. ampliada – Belo Horizonte : Initia Via, 2014. 918 p. Outros autores: Ana Paula Ferreira de Brito, Maria Letícia Mazzucchi Ferreira, Isabela Camila da Cunha, Ramon de Sousa Nunes, Aécio Filipe Coelho Fraga Oliveira, Maria Gabriela Freitas Cruz, Mariana Rezende Oliveira, Natália Araújo, Deisy Ventura, Ricardo Silveira Castro, Eduardo Fernandes de Araújo, Eduardo Soares Bonfim, Igor Leon Benício Almeida, Wyllck Jadyson Santos Paulo da Silva, Tayara Talita Lemos, Maria Clara Oliveira Santos, Roberta Cunha de Oliveira, José Carlos Moreira da Silva Filho, Naomi Roht-Arriaza, Thomaz Francisco Silveira de Araujo Santos, Diego Oliveira Murça, Janaína Santos Curi, Lucas Costa de Oliveira, Marcelo D. Torelly, Julia A. Cerdeiro, Maria Carolina Bissoto, Marlon Alberto Weichert, Ranieri Lima Resende, Flávia Piovesan, Giselle Fernandes Corrêa da Cruz, Henrique Ratton Monteiro de Andrade, Jessica Holl, Maria Celina Monteiro Gordilho, Natália de Souza Lisbôa, Thayara Castelo Branco, Cristiane dos Santos Silveira, Daniel Vianna Maricato, Débora Karina Gonçalves Vaserino, Ana Luisa Zago Moraes, Diego Oliveira de Souza, Diorge Alceno Konrad, Vanessa Dorneles Schinke, Thelma Yanagisawa Shimomura. ISBN 978-85-64912-50-2 [E-book] 1. Direito constitucional. 2. Justiça de Transição. I. Meyer, Emílio Peluso Neder. II. Cattoni de Oliveira, Marcelo. III. Título. CDU: 340(061.3)

Sumário   Nota à 2a edição

8   Introdução

Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988

9  

Emílio  Peluso  Neder  Meyer   Marcelo  Andrade  Cattoni  de  Oliveira   Parte I - Direito à memória e à verdade e identidade constitucional

As reivindicações por memória e verdade e a Comissão Nacional da Verdade: construindo a memória social sobre o período militar no Brasil 37   Ana  Paula  Ferreira  de  Brito   Maria  Letícia  Mazzucchi  Ferreira  

Memória com verdade: memória coletiva e formação da identidade nacional

65  

Isabela  Camila  da  Cunha  

Justiça de Transição no Brasil: um estudo sobre a transição democrática brasileira ante o direito internacional dos direitos humanos 88   Ramon  de  Sousa  Nunes  

O arcabouço jurídico da Justiça de Transição: comparações teórico-práticas entre Brasil e Argentina 121   Aécio  Filipe  Coelho  Fraga  Oliveira   Maria  Gabriela  Freitas  Cruz   Mariana  Rezende  Oliveira  

 

A lenta democratização do Itamaraty: o caso do acesso à informação sobre a reforma do Sistema Interamericano de Direitos Humanos 159   Natália  Araújo   Deisy  Ventura  

A dimensão da "justiça" na Justiça de Transição: uma aproximação com o caso brasileiro

190  

Ricardo  Silveira  Castro  

Justiça Transicional e a repressão no campesinato nordestino brasileiro

231  

Eduardo  Fernandes  de  Araújo   Eduardo  Soares  Bonfim   Igor  Leon  Benício  Almeida   Wyllck  Jadyson  Santos  Paulo  da  Silva  

Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988: a Justiça de Transição como descontinuidade da exceção 271   Tayara  Talita  Lemos   Maria  Clara  Oliveira  Santos  

Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional: o lugar do testemunho na transição pós-ditadura civil-militar brasileira 301   Roberta  Cunha  de  Oliveira   José  Carlos  Moreira  da  Silva  Filho  

Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais

350  

Naomi  Roht-­‐Arriaza  

Um modelo para políticas de reparações: lições do Fundo Fiduciário em Benefício das Vítimas do Tribunal Penal Internacional 413   Thomaz  Francisco  Silveira  de  Araujo  Santos  

Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos na ditadura militar 447   Diego  Oliveira  Murça   Janaína  Santos  Curi   Lucas  Costa  de  Oliveira  

 

A formação da norma global de responsabilidade individual: mobilização política transnacional, desenvolvimento principiológico e estruturação em regras internacionais e domésticas 475   Marcelo  D.  Torelly  

El rol de la constitución en la transición democrática argentina: los argumentos que posibilitaron el proceso de juzgamiento 518   Julia  A.  Cerdeiro  

A cumplicidade em violações aos direitos humanos durante a ditadura civil-militar brasileira 537   Maria  Carolina  Bissoto  

Proteção penal contra violações aos direitos humanos

557  

Marlon  Alberto  Weichert  

Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação de punir os perpetradores de violações aos direitos humanos: fundamentos e análise de casos 600   Ranieri  Lima  Resende  

Justiça de transição, reformas institucionais e consolidação do Estado Democrático de Direito: o caso brasileiro 636   Flávia  Piovesan  

Ampliando as lentes: experiências de Justiça Restaurativa em Minas Gerais 664   Giselle  Fernandes  Corrêa  da  Cruz  

Os desafios da Justiça de Transição ante a consolidação do Estado Democrático de Direito: as dificuldades enfrentadas pelo processo transicional brasileiro expressas nas reformas institucionais para a implementação da democracia 703 Henrique  Ratton  Monteiro  de  Andrade   Jessica  Holl  

A justiça diante das armas e os mecanismos eleitorais contramajoritários: a experiência do regime de exceção brasileiro 735   Maria  Celina  Monteiro  Gordilho  

Os desafios da Justiça de Transição no Brasil: o Estado, a legitimidade de suas ações e os reflexos da legalidade autoritária no Poder Judiciário 757   Natália  de  Souza  Lisbôa  

Simbolismo democrático vs. realidade autoritária sobre a política criminal brasileira

757  

: notas 781  

Thayara  Castelo  Branco  

781  

Parte II - Políticas de reparação

A reparação como elemento constitutivo da Justiça Transicional: reparações simbólicas e econômicas em um contexto de Justiça de Transição pós-ditadura de 1964 no Brasil 790   Cristiane  dos  Santos  Silveira   Daniel  Vianna  Maricato   Débora  Karina  Gonçalves  Vaserino  

O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia: do banimento pela ditadura civil-militar brasileira à tentativa de reparação pela democracia 813   Ana  Luisa  Zago  de  Moraes   Parte III - Constitucionalização e responsabilização criminal e civil na América Latina

Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar: a morte do operário Manoel Fiel Filho e a defesa da memória das violações de direitos humanos 841   Diego  Oliveira  de  Souza   Diorge  Alceno  Konrad  

 

O discurso tectônico do judiciário: subversão, política e legalidade a partir dos casos mãos amarradas e sequestro dos uruguaios 877   Vanessa  Dorneles  Schinke   Parte IV - Reformas institucionais e consolidação do Estado Democrático de Direito

Símbolos de violência no “trote” universitário: corrente e saudação nazista 900   Thelma  Yanagisawa  Shimomura  

Nota à 2a edição

A segunda edição da obra “Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988” conta com significativas contribuições, somadas aos já valiosos artigos da primeira edição. Na Parte II, “Políticas de reparação”, Cristiane dos Santos Silveira, Daniel Vianna Maricato e Débora Karina Gonçalves Vaserino participam com o artigo “A reparação como elemento constitutivo da justiça transicional”. Além disto, Ana Luiza Zago de Moraes apresenta o artigo “O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia: do banimento pela ditadura civil-militar brasileira à tentativa de reparação pela democracia”. Na Parte III, “Constitucionalização e responsabilização criminal e civil na América Latina”, temos as contribuições de Diego de Oliveira Souza e Diorge Alceno Konrad, com o artigo “Responsabilização e reparação pósditadura civil-militar: a morte do operário Manoel Fiel Filho e a defesa da memória das violações dos direitos humanos”, bem como de Vanessa Dorneles Schinke, com o artigo “O discurso tectônico do judiciário: subversão, política e legalidade a partir dos casos mãos amarradas e sequestro dos uruguaios”. Por fim, na Parte IV, “Reformas institucionais e consolidação do Estado Democrático de Direito”, temos a contribuição de Thelma Yanagisawa Shimomura, com o artigo “Símbolos da violência em trote universitário: corrente e saudação nazista”. Emilio Peluso Neder Meyer Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira Organizadores

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Emílio  Peluso  Neder  Meyer1   Marcelo  Andrade  Cattoni  de  Oliveira2  

I – O Congresso Internacional Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988 As universidades sempre foram consideradas um local de vanguarda para a luta política e a efetivação de ideais gestados na academia. Tornar parte da práxis política o que se desenvolve cientificamente é uma das incumbências dessas instituições de índole constitucional. Para além de uma oposição cega entre teoria e práxis, o que se dá, muito mais, é que as ativi1 Professor Adjunto I de Direito Constitucional, Teoria da Constituição e Teoria do Estado dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Pesquisador Visitante no Brazil Institute do King’s College de Londres. Membro do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição. Gostaria de agradecer o apoio da discente Raissa Lott Caldeira da Cunha, pesquisadora do Programa Jovens Talentos para a Ciência, na coleta de dados e confecção do presente artigo. 2 Bolsista de Produtividade do CNPq (1D). Mestre e Doutor em Direito (UFMG). Estágio Pós-Doutoral com Bolsa da CAPES em Teoria e Filosofia do Direito (Università degli Studi di Roma Tre). Professor Associado de Teoria da Constituição e Direito Constitucional dos Cursos de Graduação em Ciências do Estado e Direito e de PósGraduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Membro do IDEJUST - Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição.

 

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dades de ensino, pesquisa e extensão são, por si só, fundamentais para constituir práticas dentro e fora da instituição que fatalmente repercutirão na efetividade de um projeto constituinte e constitucional. Tanto é assim que, como mostram muito bem os trabalhos de Rodrigo Patto de Sá Motta, as universidades foram objeto de preocupação da ditadura civil-militar para muito além do combate às manifestações, principalmente a partir das Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESI)3. Com a transição democrática levada à frente com a promulgação da Constituição de 1988, esse papel se destacou sobremaneira. Desse modo, o presente artigo pretende resgatar um importante momento de reafirmação da postura democrática que deve ser defendida institucionalmente pelas universidades e, obviamente, por instituições de ensino superior do Direito: a realização do Congresso Internacional Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988 na Faculdade de Direito da UFMG. O Congresso Internacional foi realizado entre os dias 23 e 25 de maio de 2013, contando com apoio da FAPEMIG, da CAPES, do CNPQ, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais, da Comissão de Anistia do Minis3

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os olhos do regime militar brasileiro nos Campi: as Assessorias de Informações e Segurança nas universidades. Topoi, v. 9, n. 16. jan.-jun. 2008, p. 35: “No âmbito das Universidades, as AESI foram criadas a partir de janeiro de 1971, após o Ministério da Educação e Cultura ter aprovado seu Plano Setorial de Informações. Poucos dias após a aprovação do Plano a DSI do MEC mandou ofício circular às Universidades acompanhado da documentação relativa à criação das AESI, em que recomendava nomeação do chefe responsável em prazo de 10 dias. No caso da UnB, a Assessoria de Segurança (inicialmente Assessoria de Assuntos Especiais, anos depois renomeada ASI) foi criada a 19/2/1971, por meio de portaria do Reitor. Na Universidade Federal da Paraíba a criação da AESI se deu em março de 1971, enquanto na Universidade de São Paulo (USP) a AESI local foi formada apenas em outubro de 1972”.

 

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tério da Justiça e do Memorial da Anistia. A realização coube ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG, à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, ao IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição, ao Centro Acadêmico de Ciências do Estado – CACE – e ao Centro Acadêmico Afonso Pena – CAAP. Evento este que envolveu a participação de 500 ouvintes, 16 painelistas brasileiros e estrangeiros e a apresentação de trabalhos por 41 autores, entre eles, alunos de graduação e pós-graduação em Direito e em outras áreas, como Ciência Política, professores, ativistas de direitos humanos, juízes, membros do Ministério Público e outros atores sociais. As atividades desenvolvidas abarcaram a discussão por parte de importantes pesquisadores de temas fundamentais para a justiça de transição; atividades culturais, como o lançamento de livros e a exibição de filmes; apresentação de trabalhos em virtude da VII Reunião do IDEJUST; assim como a realização de uma sessão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça por meio da Caravana da Anistia. Essa breve introdução recupera importantes momentos desse evento, apresentando as discussões que integram a presente obra de acordo com as temáticas desenvolvidas no Congresso Internacional e nas apresentações de trabalhos.

II – Direito à memória e à verdade e identidade constitucional A temática do “Direito à memória e à verdade e identidade constitucional” contou com a representação da Comissão Nacional da Verdade pela pesquisadora

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Glenda Mezarobba4. Cumprindo a função de Consultora em Pesquisa, Geração e Sistematização de Informações e Pesquisadora Responsável pelo GT Ditadura e Gênero da Comissão Nacional da Verdade, sua participação foi fundamental para permitir o conhecimento do estágio atual dos trabalhos da comissão. Mezarobba abordou o dever da verdade no cenário nacional atual, como também na legislação internacional, além da função da Comissão Nacional da Verdade. Segundo ela, o dever de revelar a verdade após períodos em que ocorreram violações em massa aos direitos humanos é abordado em diversos documentos da normativa internacional, tais como tratados e declarações aos quais o Brasil se vincula. Dessa forma, é dever e obrigação do Estado recordar o passado, de forma a evitar a aparição de teses revisionistas ou de negação dos fatos ocorridos. A sociedade, por outro lado, possui o direito inalienável de conhecer a verdade, assim como os motivos e as circunstâncias da ocorrência dos crimes que violaram os direitos fundamentais do homem. Segunda ela, uma análise do processo de justiça de transição no Brasil mostra que o mesmo vem sendo pautado por uma lógica do esquecimento, a começar pela Lei da Anistia (Lei nº 6.683/1979), que foi pensada com o propósito de pacificação e esquecimento, havendo a inclusão dos agentes do Estado que violaram direitos fundamentais como anistiados. As leis posteriores, Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei nº 9.140/1995) e a lei que reconhece a perseguição política e estabelece o pagamento de indenizações (Lei nº 4 Cf. MEZAROBBA, Glenda. Between reparations, half-truths and immunity: the difficult break with the legacy of the dictatorship in Brazil. Sur: Revista Internacional de Direitos Humanos (Impresso), v. 1, p. 7-25, 2011; MEZAROBBA, Glenda . Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências: um estudo do caso brasileiro. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2006; e, MEZAROBBA, Glenda. Políticas de la memoria y memorias de la política el caso español en perspectiva comparada. Perseu: História, Memória e Política, v. 5, p. 244-248, 2010.

 

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10.559/2002), também não tratam expressamente da questão da verdade. Apesar disso, essas leis e as comissões por elas formadas tiveram efeitos não previstos no texto normativo e acabaram por esclarecer fatos, crimes e práticas arbitrárias que foram cometidas5. A constituição do processo da verdade no Brasil vem ocorrendo por meio de iniciativas que buscam o cumprimento do dever à verdade como o “Projeto Brasil Nunca Mais”6, a releitura dos arquivos do DOPS, o lançamento do livro “Direito à memoria e à verdade” e as Caravanas da Anistia. A Comissão Nacional da Verdade (Lei nº 12.528/2011) surge, também, procurando cumprir o direito à verdade e à memória, sendo um órgão temporário de função investigativa não judicial. Ainda de acordo com Mezarobba, o principal objetivo desse órgão é a construção de um presente e futuro mais democrático e pacífico, pois a impunidade constitui um obstáculo ao desenvolvimento da democracia. De se esperar, pois, que os trabalhos da CNV contribuam para confirmar a legitimidade da democracia brasileira e reafirmar a relação intrínseca entre democracia e respeito aos direitos humanos7. Na sequência, Menelick de Carvalho Netto8 abordou o tema da identidade constitucional e a sua 5

Em relação ao papel da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, cf. BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e à verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007. 6 ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Projeto Brasil nunca mais. São Paulo: 1985. O projeto está disponível em: . 7 Para uma análise comparada das comissões de verdade ao redor do mundo, cf. HAYNER, Priscilla B. Unspeakble truths: facing the challenges of truth commissions. Routledge, 2002. 8 Algumas importantes obras do Professor Menelick de Carvalho Netto, todas permeadas por uma compreensão procedimentalmente adequada do paradigma do Estado Democrático de Direito instaurado

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relação com o direito à verdade e à memória. A identidade constitucional diz respeito a quem nós somos enquanto uma comunidade constitucional formada por pessoas que se reconhecem como livres e iguais. A construção da identidade constitucional tem relação com o passado e com a forma como o vemos, logo, remete diretamente à questão da memória. Uma identidade constitucional sadia tem como pré-requisito o acerto de contas com o passado, sendo preciso revê-lo e reavaliá-lo com critérios constitucionais de forma a transformá-lo em um passado a não mais se recorrer. “Será que em termos de uma identidade constitucional podemos decretar nosso próprio esquecimento?”; “um decreto de esquecimento feito pela ditadura sobre ela mesma é democrático?” – essas são algumas das perguntas que aquela relação desperta e que devem ser respondidas por meio da relação entre democracia e respeito aos direitos fundamentais. Segundo Carvalho Netto, a democracia só é efetivamente democrática se respeitar os direitos fundamentais – inclui-se aí o direito à memória. Logo, a ditadura não pode ser com o pós-1988, ex-professor da Faculdade de Direito da UFMG e, atualmente, Professor Associado da UnB, são: CARVALHO NETTO, Menelick de. A sanção no procedimento legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992; CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. 20 anos da Constituição: o desafio da assunção da perspectiva interna da cidadania na tarefa de concretização de direitos. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. OLIVEIRA, Felipe Daniel Amorim (org.). Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 95-110; CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. In CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (org.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 25-43. PAIXÃO, Cristiano. NETTO, Menelick de Carvalho. Entre permanência e mudança: reflexões sobre o conceito de constituição. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto. (Org.). Constituição, jurisdição e processo – estudos em homenagem aos 55 anos da Revista Jurídica.1ed.Sapucaia do Sul - RS: Notadez, 2007, p. 97109.

 

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entendida como um passado constitucional ou democrático, uma vez que não havia participação política, as normas eram elaboradas de forma a excluir toda e qualquer participação da sociedade e o desrespeito aos direitos fundamentais era uma prática constante. A própria Lei da Anistia foi elaborada sem ampla participação, resultando em uma autoanistia, que não é considerada uma real anistia no âmbito internacional. A vivência inconstitucional de uma ditadura e de suas práticas, assim como as violências cometidas por parte do Estado contra toda a sociedade devem ser relembradas, recordadas e jamais esquecidas, pois fazem parte da identidade constitucional brasileira. É preciso ressaltar que a identidade não deve ser pensada de forma estática, mas como algo vivo, em constante desenvolvimento. Ruti Teitel9 abordou a importância das Cortes estabelecidas para julgar crimes de violação em massa aos direitos humanos para o estabelecimento da justiça, verdade e memória. Ela afirmou estar ciente da importância do atual momento que o Brasil vive e como ele repercute na efetivação de uma justiça de transição pautada na memória e na verdade. A justiça de transição ocorre de forma de diferente de país para país, ela deve atender as necessidades que surgem do contexto e história únicos de cada país. É preciso entender que são exatamente essas singularidades – tradições, relações 9

Professora da Cátedra Ernst C. Stiefel de Direito Comparado da New York Law School; Codiretora do Instituto para o Direito, Justiça e Políticas Globais; Professora Visitante da London School of Economics. O papel desempenhado por Teitel para a construção de uma teoria da justiça de transição é inestimável. À guisa de introdução ao seu pensamento: TEITEL, Ruti G. Transitional justice. Nova Iorque: Oxford University Press: 2002; TEITEL, Ruti G. Genealogia da justiça de transição. In RÉATEGUI, Félix (coord.). Justiça de transição: manual para a América Latina. Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011, p. 135-170; TEITEL, Ruti G. Humanity’s Law. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011.

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políticas, institucionais e constitucionais – do processo de justiça de transição brasileiro que levaram ao estabelecimento de medidas de reparação e comissões pautadas na memória e na verdade anos após o acontecimento dos crimes. De modo comparativo, é preciso lembrar que, na Argentina, os julgamentos aconteceram em até 30 anos após o fim dos períodos de violação aos direitos humanos. Segundo ela, a nossa justiça de transição pode ser comparada com a da África do Sul, pautada na reconciliação e na pacificação. Na África do Sul, a transição foi negociada, porém não resultou em uma anistia geral que levasse ao esquecimento do passado: ela buscou a restauração social da sociedade, deixando a punição em segundo plano, pois seu maior objetivo era o de promover a verdade. Teitel abordou a importância do papel desempenhado por tribunais internacionais de direitos humanos em países que não estão prontos como um todo para lidar com a justiça de transição, mas em que existe o clamor da sociedade para que a transição pautada na verdade e justiça ocorra. Para finalizar Ruti Teitel tratou das cortes estabelecidas para julgar crimes de violação em massa aos direitos humanos, sua estrutura, funcionamento, funções e objetivos. Em seguida, como parte do Congresso Internacional, realizou-se a atividade cultural de lançamento das seguintes obras: “Justiça de transição: contornos do conceito”, de Renan Honório Quinalha10; “Constitucionalismo e Teoria do Estado: ensaios sobre história e teoria política”, de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Adamo Dias Alves e David Francisco Lopes Gomes11; 10

QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões, Dobra Editorial, 2012. 11 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. ALVES, Adamo Dias. GOMES, David Francisco Lopes. Constitucionalismo e Teoria do Estado: ensaios sobre história e teoria política. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013.

 

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“Justiça de transição e Estado Constitucional de Direito: perspectiva teórico-comparativa e análise do caso brasileiro”, de Marcelo D. Torelly12; “Os direitos da transição e a democracia no Brasil”, de Paulo Abrão e Tarso Genro13; “Ditadura e responsabilização: elementos para uma justiça de transição no Brasil”, de Emilio Peluso Neder Meyer14. Com relação a esta última obra, é preciso destacar que corresponde ao texto da tese de Doutorado do autor, cujo trabalho de orientação coube ao Professor Doutor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, e recebeu o Prêmio CAPES de Tese em Direito 201315, o Prêmio UFMG de Tese em Direito e o Grande Prêmio UFMG de Teses na área de Ciências Humanas, Ciências Sociais e Aplicadas e Linguística, Letras e Artes16. Foi possível verificar contribuições de diversos pesquisadores sobre a justiça de transição, cujos trabalhos foram aprovados por comitê científico do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Justiça de Transição e Internacionalização do Direito. Vários desses trabalhos integram essa obra. Na tarde do dia 23 de maio 12

TORELLY, Marcelo D. Justiça de transição e Estado Constitucional de Direito: perspectiva teórico-comparativa e análise do caso brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2012. 13 ABRÃO, Paulo. GENRO, Tarso. Os direitos da transição e a democracia no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2012. 14 MEYER, Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização: elementos para uma justiça de transição no Brasil. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. 15 Cf. a notícia disponível em http://www.capes.gov.br/premiocapesdetese/edicoesanteriores/6590-teses-premiadas-em-2013>. Acesso em 5 mar. 2014. A premiação repercutiu nacionalmente, como se pode ver pela entrevista concedida pelo autor ao jornal Folha de S. Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/12/1391159-lei-daanistia-deve-ser-reanalisada-pelo-stf-diz-especialista.shtml>. Acesso em 5 mar. 2014. 16 Cf. a notícia disponível em < https://www.ufmg.br/online/arquivos/030620.shtml>. Acesso em 5 mar. 2014.

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de 2013, a partir das 14h, foram apresentados trabalhos ligados à temática “Direito à memória e à verdade e identidade constitucional”. Presidiram as atividades os Profs. Drs. Aziz Tuffi Saliba e Fabrício Polido. A partir das 16h, foram apresentados os trabalhos relativos à temática das “Políticas de reparação”. Os Profs. Marcelo Torelly e André Morais coordenaram a apresentação de trabalhos. Todas as apresentações foram seguidas de amplos debates. No que respeita à temática “Direito à memória e à verdade e identidade constitucional” (Parte I), a presente obra conta com as seguintes contribuições: “Capítulo I – As reivindicações por memória e verdade e a Comissão Nacional da Verdade: construindo a memória social sobre o período militar no Brasil” de Ana Paula Ferreira de Brito e Letícia Mazzuchi Ferreira; “Capítulo II – Memória com verdade: memória coletiva e formação da identidade nacional” de Isabela Camila da Cunha; “Capítulo III – Justiça de transição no Brasil: um estudo sobre a transição democrática brasileira ante o Direito Internacional dos Direitos Humanos”, de Ramon de Sousa Nunes; “Capítulo IV – O arcabouço jurídico da justiça de transição: comparações teóricopráticas entre Brasil e Argentina” de Aécio Filipe Coelho Fraga Oliveira, Maria Gabriela Freitas Cruz e Mariana Rezende Oliveira; “Capítulo V – A lenta democratização do Itamaraty: o caso do acesso à informação sobre a reforma do Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, de Natália Araújo e Deisy Ventura; “Capítulo VI – A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição: uma aproximação com o caso brasileiro”, de Ricardo Silveira Castro; “Capítulo VII – Justiça de transição e a repressão no campesinato nordestino brasileiro”, de Eduardo Fernandes de Araújo, Eduardo Soares Bonfim, Igor Leon Benício Almeida e Wyllck Jadyson Santos Paulo da Silva; e, “Capítulo VIII – Jurisdição constitucional e estado de exceção pós-1988: a justiça de transição como descontinuidade da exceção”, de Tayara Talita Lemos e Maria Clara Oliveira Santos  

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III – Políticas de reparação A primeira contribuição sobre a temática das “Políticas de reparação” proveio da Professora Naomi Roht-Arriaza17. Ela abordou os tipos de políticas de reparação com as quais teve contato na América Latina, assim como alguns dos problemas que surgem com as reparações em casos de violações em massa dos direitos humanos. Segundo ela, existem duas visões do processo de reparações: uma decorre da tradicional ideia de que a reparação tem a função de reestabelecer a vitima à condição em que ela se encontraria se os crimes não houvessem ocorrido. A outra provém da ideia de que as reparações são uma forma do Estado mostrar às vítimas que reconhece os crimes e abusos cometidos, restaurando a dignidade e os direitos dessas pessoas. O primeiro caso se torna muito difícil de ser posto em prática, pois exige um volumoso orçamento. Dessa forma, deve-se pensar nas reparações do segundo caso, que se dividem em individuais ou coletivas. As reparações individuais são basicamente compostas por uma compensação monetária, mas podem ser também a restituição de um emprego, de uma terra, de uma propriedade, dos direitos civis e da própria reputação da vítima. Elas podem ser simbólicas, como um pedido de desculpas oficial por parte do Estado ou podem vir na forma de acesso à saúde, à educação e aos serviços sociais. As reparações coletivas visam o benefício de uma comunidade inteira, uma vez que toda a comunidade sofreu com os períodos de cri17

Professora da Universidade da Califórnia, na Hastings College of Law, Roth-Arriaza é autora de obras fundamentais da justiça de transição, como por exemplo: ROHT-ARRIAZA, Naomi. The Pinochet effect: transnational justice in the age of human rights. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2005; ROHT-ARRIAZA, Naomi. MARIEZCURRENA, Javier (orgs). Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

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mes e abusos. Essas reparações ocorrem com a construção de escolas, estradas, hospitais, enfim, todo tipo de ação que possa ser usufruída por todos da comunidade. O problema desse tipo de reparação decorre da “dupla consideração”, uma vez que construir escolas e outras instituições do tipo já é uma obrigação do Estado, então se torna complicado considerá-las reparações por crimes cometidos pelo próprio Estado contra a sociedade. Para finalizar, Roht-Arriaza relatou o problema que surge da miscelânea entre dano e necessidade na questão das reparações, uma vez que a reparação deve ser feita de acordo com dano infringido pelos crimes, porém se o orçamento é limitado, a tendência é que se reparem preferencialmente as pessoas com maior necessidade. O problema que surge é que, dessa forma, a reparação passaria a ser uma questão social e não atenderia ao seu real objetivo. Nilmário Miranda18 tratou da Lei da Anistia e da necessidade de se discutir determinados temas à luz do regime democrático. De acordo com ele, a luta pela anistia foi uma luta popular, porém a Lei nº 6.683 de 1979 foi um projeto excludente, elaborado por um Congresso Nacional formado após o Pacote de Abril, ou seja, era um órgão parlamentar composto majoritariamente por políticos da ARENA, partido político que apoiava a ditadura militar. Dessa forma, não se pode dizer que a anistia foi um acordo político para sair da ditadura, uma vez que foi uma imposição não democrática. Nem por isso, a lei deixa de ser importante, pois ela possibilitou a volta de exilados e a liberdade para os presos. A crítica a ser feita é a de que com a Lei de Anistia ficaram perdoados os “crimes conexos” e isso significou o perdão para os agentes dos crimes de 18

Deputado Federal. Jornalista e Mestre em Ciências Sociais pela UFMG. Ex-Ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Membro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Presidente da Fundação Perseu Abramo.

 

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violação aos direitos humanos, conduzindo ao esquecimento e à impunidade. O art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 estabelece que a anistia se enderece a todos que foram atingidos por atos de exceção, institucionais ou transitórios, ou seja, a anistia é só para quem foi perseguido por atos de exceção. A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund19 retoma esse assunto, ao afirmar que não existe anistia para os que praticaram tortura, perseguições, desaparecimentos forçados, prisões arbitrárias e assassinatos. A Constituição de 1988 é a mais democrática da história do Brasil, porém ela deixou grandes temas a serem enfrentados pela nossa sociedade, temas que constituem problemas e mazelas do presente. As dívidas da nossa democracia só podem ser corrigidas pela ação de toda a sociedade, pela voz do povo. Em conclusão, Nilmário Miranda enfatizou que é o estudo do tema de justiça de transição que nos dá o respaldo ético, jurídico e histórico para almejar que a Constituição seja cumprida, assim como se reveja a Lei da Anistia de 1979, que até o presente momento garante a impunidade e o esquecimento. Coube ao Professor Paulo Abrão20 tratar do trabalho das comissões de reparação estabelecidas no Bra19

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em . Acesso em 1 jan. 2011. 20 Secretário Nacional de Justiça. Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Doutor em Direito pela PUC-Rio. Professor da PUC/RS e da Universidade de Pablo Olavide. Cf., apenas a título de exemplo na extensa bibliografia do autor sobre a temática: ABRÃO, Paulo. TORELLY, Marcelo. Mutações do conceito de Anistia na Justiça de Transição Brasileira: a terceira fase da luta pela anistia. In SOARES, Inês Virginia Prado. PIOVESAN, Flávia (org.). Direitos Humanos atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 112-127; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. ABRÃO, Paulo. TORELLY, Marcelo (org.). Justiça de

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sil, da agenda da transição brasileira e das críticas feitas a ela. Segundo ele, existem hoje no Brasil mais de 30 comissões de verdade em funcionamento concomitante e que lidam com o legado de violências do passado, as quais produzem memória, verdade e reparação. Como são comissões administrativas, não possuem caráter jurisdicional para produzir justiça, o que torna necessário refletir sobre a existência de dimensões do alcance da verdade histórica que só são atingidas com o efetivo envolvimento do sistema de justiça. Esse é um importante momento para enfrentarmos todos os resquícios da cultura autoritária ainda presente na sociedade brasileira, pois as comissões de reparação criaram um ambiente de enfrentamento da negação da história e romperam com o medo de discutir o passado. Verdade, justiça, memória e reparação são elementos que se completam na justiça de transição, já que uma comissão no momento em que reconhece as responsabilidades do Estado em torno de violações aos direitos humanos está reconhecendo uma verdade histórica, que estava escondida. Logo, naquele instante, pode haver o enfrentamento de um ambiente de sigilo e de esquecimento e, consequentemente, a construção da verdade e produção de história. A justiça de transição adotada pelo Brasil sofre duas críticas que precisam ser enfrentadas. A primeira delas é a de que o nosso programa de reparações privilegiaria violações menos graves em relação àquelas em que houve a perda da vida da vítima. De acordo com Abrão, é preciso separar os mecanismos de reparação dos mecanismos de compensação, pois se compararTransição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013; PRONER, Carol; ABRÃO, Paulo (org.). Justiça de transição - reparação, verdade e justiça: perspectivas comparadas Brasil-Espanha. Belo Horizonte: Fórum, 2013; PAYNE, Leigh; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo (org.). A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011.

 

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mos somente as possibilidades de compensação previstas em lei, veremos que a violação da vida é mais valorizada que as outras violações. Logo, não há uma incongruência real no caso de reparação brasileiro. A segunda crítica é a de que o Brasil privilegiaria o processo de reparação em detrimento das outras possibilidades de justiça de transição. Paulo Abrão afirma que essa crítica é fraca, pois desconsidera o elemento de contextualidade, uma característica da justiça de transição, que coloca o contexto histórico de cada país como um elemento fundamental para a construção da agenda de transição. No Brasil, o marco inicial da transição jurídico-política está no viés da reparação e isso não é um demérito, mas um reconhecimento de que essa é a nossa característica histórica própria que se conecta de modo evidente com as características da nossa própria realidade. Finalizando, ele afirmou ser necessário potencializarmos as virtudes do nosso processo de reparação, apropriando-se do que foi construído para, em seguida, avançar e estender os horizontes da nossa agenda de transição. O Congresso ainda contou com a atividade cultural de lançamento da obra “As duas guerras de Vlado Herzog: da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil”21, de Audálio Dantas22. Dantas 21

DANTAS, Audálio. As duas guerras de Vlado Herzog: da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. A obra foi vencedora do Prêmio Jabuti em 2013. Disponível em: . Acesso em 5 mar. 2014. 22 Ex-Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo. Deputado Federal pelo MDB (1978-1982). Presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (1983-1986). Vice-Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (2005-2008). Conselheiro da União Brasileira dos Escritores. Atual Presidente da Comissão da Verdade, Memória e Justiça dos Jornalistas Brasileiros.

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rememorou suas atividades à frente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo quando da perseguição de diversos deles no ano de 1975, culminando com a morte sob tortura de Vladimir Herzog. No que respeita ao grande tema das “Políticas de reparação”, Parte II dessa obra, pudemos contar com as seguintes valorosas contribuições: “Capítulo IX – Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional: o lugar do testemunho na transição pós ditadura civil-militar brasileira”, de Roberta Cunha de Oliveira e José Carlos Moreira da Silva Filho; “Capítulo X – Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais”, de Naomi Roht-Arriaza; e, “Capítulo XI – Um modelo para políticas de reparações: lições do Fundo Fiduciário em Benefício das Vítimas do Tribunal Penal Internacional”, de Thomaz Francisco Silveira de Araújo Santos.

IV – Constitucionalização e responsabilização criminal e civil na América Latina No que concerne à temática “Constitucionalização e responsabilização criminal e civil na América Latina”, coube a Mark Osiel23 discorrer acerca das decisões judiciais adotadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos de graves violações aos direitos humanos, fazendo uma análise comparativa entre as medidas de responsabilização criminal e de reparação estabelecidas pela Corte Interamericana e as tradicionais medidas até então estabelecidas por outras cortes que se propõem ao mesmo fim.

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Professor do College of Law da Universidade de Iowa. Ex-consultor para promotores de responsabilização do General Pinochet e de perpetradores do Genocídio de Ruanda. Cf. OSIEL, Mark. Mass atrocity, collective memory and the law. New Jersey: Transaction, 2000; OSIEL, Mark. Making sense of mass atrocity. New York: Cambridge University Press, 2009.

 

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Segundo Osiel, as decisões proferidas pela Corte Interamericana vêm sendo consideradas por muitos juristas e acadêmicos como “inovadoras”, “fora do comum”, “singulares” e “criativas” quando comparadas com as medidas tradicionais, uma vez que o objetivo padrão dessas últimas é o de basicamente reestabelecer a vítima à condição em que ela se encontraria caso os crimes e os danos provenientes dos mesmos não tivessem ocorrido. Elas propõem “reparações simbólicas” e “políticas de caráter preventivo” que objetivam reestabelecer a dignidade das vítimas, concretizar o direito à verdade e à memória e evitar que tais crimes e abusos se repitam no futuro. Atualmente, muitos dos tradicionais teóricos de justiça de transição vêm mudando sua postura frente à forma como é feita a reparação às vítimas, pois se torna ineficaz retornar a vítima à condição em que ela se encontrava antes dos crimes, já que, em muitos casos, foram exatamente essas condições que as tornaram vulneráveis aos abusos e crimes contra elas cometidos. Dessa forma, na prática, as medidas tradicionais buscam algo mais amplo que simplesmente retornar as vítimas a sua “posição de direito”; procuram também oferecer as condições e os meios de se protegerem contra possíveis futuras violações aos direitos humanos. Ao se comparar os novos métodos com os tradicionais, percebe-se que os objetivos de ambos são, em sua essência, os mesmos: reafirmar a dignidade e os direitos das vítimas e prevenir a ocorrência de crimes futuros, proporcionando um presente e futuro mais pacífico. Concluindo, Osiel afirma que as medidas adotadas pela Conter Interamericana não são de forma alguma radicais, elas apenas aplicam princípios já conhecidos e bem estabelecidos de uma nova maneira.

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Julia Cerdeiro24 traçou um panorama das medidas praticadas pela Unidade Fiscal de Coordenação e Seguimento de Causas de Graves Violações aos Direitos Humanos cometidas durante o Terrorismo de Estado da Procuradoria-Geral da Nação Argentina. Para tanto, ela começou por recuperar o contexto da transição argentina, dividindo-o em três etapas: uma primeira, com o Governo Alfonsín e a criação da CONADEP; uma segunda, com as Leis do Ponto Final e da Obediência Devida; e, a terceira, com, nos anos 2000, a declaração de inconstitucionalidade das referidas leis pela Suprema Corte Argentina (Caso Símon). Com isto, foi possível levar a frente responsabilizações de caráter criminal de agentes envolvidos com a ditadura argentina. Ela mencionou que, hoje, pelo menos 400 pessoas já foram julgadas. Tratou também dos argumentos jurídicos que têm fundamentado as condenações, principalmente do dispositivo da Constituição Argentina que serve de “porta de entrada” para os documentos internacionais de proteção dos direitos humanos. Desse modo, foi possível tratar dos crimes como crimes contra a humanidade e, portanto, imprescritíveis. Marlon Weichert25 tratou da necessidade de produção de justiça no Brasil, da pauta de valores do Direito Internacional referente aos direitos humanos e da decisão do Supremo Tribunal Federal Brasileiro na ADPF nº 153. Segundo ele, a decisão do Supremo Tri24 Secretária da Unidade Fiscal de Coordenação e Seguimento de Causas de Graves Violações de Direitos Humanos cometidas durante o Terrorismo de Estado da Procuradoria-Geral da Nação Argentina. Advogada. 25 Procurador Regional da República na 3ª Região da Justiça Federal. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Integrante do Grupo sobre Justiça de Transição do Ministério Público Federal. Cf. WEICHERT, Marlon. Proporcionalidade, Direito Penal e direitos humanos. In ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (org.). Direitos humanos e direitos fundamentais: diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013.

 

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bunal Federal ADPF nº 153 seria, atualmente, o maior empecilho à produção de justiça no Brasil. O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a arguição de preceito fundamental que pedia uma interpretação da lei de anistia que excluísse do beneficio os agentes estatais que foram autores de crimes de graves violações dos direitos humanos. Os seguintes argumentos foram utilizados para justificar a recusa da ação: a lei da anistia abrangeu crimes praticados com motivação política; a anistia foi bilateral, logo, não houve autoanistia; a Lei de Anistia teve efeitos instantâneos, não sendo possível sua revisão após 30 anos; deve ser privilegiada uma interpretação compatível com o momento histórico, que leve em consideração a intenção do legislador na época; e, por fim, a edição e a aplicação da Lei da Anistia não se sujeitavam à Corte Interamericana, pois eram anteriores ao reconhecimento pelo Brasil de sua jurisdição. Marlon Weichert acredita que a decisão do STF tenha sido construída a partir de vários equívocos. Um deles estaria no fato do STF ter feito uma interpretação de constitucionalidade da Lei de Anistia utilizando como parâmetro de constitucionalidade o texto constitucional outorgado pela ditadura militar. Esse é um enorme equívoco, pois o controle de uma lei que trata de direitos fundamentais deve ter como parâmetro de constitucionalidade um conjunto de normas e princípios que seja de um Estado Democrático de Direito. Quanto à tensão existente entre a decisão do STF e a decisão da Corte Interamericana de Direitos humanos, é preciso entender que a adesão do Brasil à Convenção Americana de Direitos Humanos e o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana foram atos soberanos e voluntários do Estado brasileiro. Não há que se falar, portanto, em violação da soberania brasileira. Precisamos estabelecer um diálogo entre as decisões. Concluindo, Weichert afirmou que os valores materiais de um Estado Democrático de Direito são incompatíveis com a impunidade e a tolerância a cri-

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mes de graves violações aos direitos humanos. Não se trata, portanto, de revogar uma autoanistia que já teria produzido efeitos, mas sim reconhecer que ela nunca teve o poder de produzir tais efeitos, uma vez que é originalmente incompatível com preceitos fundamentais do direito brasileiro e do direito internacional. Na sequência, coube à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça tomar assento no mesmo local de realização do congresso para a realização da 3ª Sessão de Turma da 69ª Caravana da Anistia. Tomou posse na Comissão de Anistia o Conselheiro Marlon Weichert. Foram feitos pedidos de desculpas formais a pessoas que já tiveram pedidos de anistia julgados, mas que ainda não haviam recebido um pedido de perdão por parte do Estado. Em seguida, foram julgados os processos de Cecílio Emídio Saturnino, por meio de Sueli Hercília Chaves, e de Wellington Moreira Diniz. Ambos os pedidos foram deferidos, havendo pedido de desculpas formal e reconhecimento da condição de anistiado, nos termos da Lei 10.559/02. Os julgamentos lotaram o Auditório Alberto Deodato da Faculdade de Direito da UFMG, realizando-se uma das sessões com maior público da Caravana da Anistia. Houve nova sessão de apresentação de trabalhos aprovados. Foram apresentados trabalhos ligados à temática “Constitucionalização e responsabilização civil e criminal na América Latina”. Presidiram as atividades os Professores Léo Ferreira Leoncy e Thomas da Rosa Bustamante. Em seguida, foram apresentados os trabalhos relativos à temática das “Reformas institucionais e consolidação do Estado Democrático de Direito”. Os Professores José Carlos Moreira da Silva Filho e Rodrigo Lentz coordenaram a apresentação. Para a temática “Constitucionalização e responsabilização civil e criminal na América Latina” (Parte III), a obra conta com as importantes contribuições que se seguem: “Capítulo XII – Responsabilização civiladministrativa dos agentes públicos na ditadura civilmilitar brasileira”, de Diego Oliveira Murça, Janaína  

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dos Santos Cury e Lucas Costa de Oliveira; “Capítulo XIII – A formação da norma global de responsabilidade individual: mobilização política transnacional, desenvolvimento principiológico e estruturação em regras internacionais e domésticas”, de Marcelo D. Torelly; “Capítulo XIV – El rol de la Constitución en la transición democrática argentina: los argumentos que posibilitaron el proceso de juzgamiento”, de Julia A. Cerdeiro; “Capítulo XV – A cumplicidade em violações aos direitos humanos durante a ditadura civil-militar brasileira”, de Maria Carolina Bissoto; “Capítulo XVI – Proteção penal contra violações aos direitos humanos”, de Marlon Alberto Weichert; “Capítulo XVII – Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação de punir os perpetradores de violações aos direitos humanos: fundamentos e análise de casos”, de Ranieri Lima Resende.

V – Reformas institucionais e consolidação do Estado Democrático de Direito No grande tema “Reformas institucionais e consolidação do Estado Democrático de Direito”, Eduardo Gonzalez-Cueva26 defendeu que a reforma institucional é um dos temas menos discutidos na justiça de transição. Ele está diretamente ligado às garantias de não repetição. Lembrou ele do recente caso sul-africano, exemplo de justiça de transição, que está, na atualidade, recorrendo a leis da época do regime do apartheid 26

Diretor do Programa Verdade e Memória do International Center for Transitional Justice. Professor da New School em Nova Iorque. Participante da organização e execução da Comissão Verdade e Reconciliação peruana. Cf. CUEVA, Eduardo González. Tendencias en la búsqueda de la verdad. Anuario de derechos humanos, 2007, p. 103112. Disponível em < http://www.cdh.uchile.cl/anuario03/6SeccionInternacional/anuario03_sec_internacionalIIIGonzalezCueva.pdf>. Acesso em 12 abr. 2012.

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para tratar de um caso de repressão policial de 2012 a uma revolta de trabalhadores mineiros (com ocorrência de várias mortes). Isto demonstra a dificuldade de implementar reformas. Talvez a troca feita pela CNV sulafricana entre justiça e verdade possa ser uma causa disto. Parece difícil, pois, que as instituições estatais aprendam a lição de ilegalidade das repressões. É preciso refletir, pois, não só sobre a transição, mas sobre a qualidade da democracia que se está buscando. O problema é que a manutenção do pacto político da transição pode deixar heranças não esperadas. É isto que pode deixar insatisfeita a cidadania que, com protagonismo, lutou pela transição. Deve haver, pois, um mínimo a ser garantido nas transições e após elas: direitos humanos. Na sequência, Flávia Piovesan27 abordou o impacto do sistema interamericano num processo de justiça de transição no contexto sul americano, com enfoque na experiência brasileira. Ela afirmou que o Sistema Interamericano tem se legitimado como um eficaz instrumento para a proteção aos direitos humanos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem como preceito que as leis de anistia são um ilícito internacional e a sua revogação é uma forma de reparação não pecuniária para as vítimas. À luz da jurisprudência internacional, os Estados têm deveres para com a justiça de transição, deveres referentes à verdade, à justiça, à reparação, às reformas institucionais e à garantia de 27

Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação. Visiting Fellow do Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford e do Max Planck Institute for Comparative Public Law. A Professora Flávia Piovesan tem inúmeras obras sobre o Direito Internacional dos Direitos Humanos. De modo exemplificativo, cf. SOARES, Inês Virgínia Prado. PIOVESAN, Flávia (org.). Direitos Humanos atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014; PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

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não repetição de crimes de violação de direitos fundamentais. Órgãos da ONU também indicam que as leis de anistia são incompatíveis com o dever dos Estados de investigar tais atos para evitar a sua repetição. Segundo ela, quando se fala em reformas institucionais, deve-se pensar nos seguintes temas: a questão do afastamento daqueles que foram violadores aos direitos humanos, violadores das instituições democráticas; a reforma dos setores de segurança e justiça; a promoção do acesso a uma justiça guiada pela independência e pelo Estado Democrático de Direito, de forma ampla; e, por fim, a garantia de reformas para ampliar a independência do Judiciário. As reformas institucionais no campo da prevenção devem clamar pelas responsabilidades individuais de modo a afastar do serviço público aqueles que se envolveram em sérios e graves abusos e violações aos direitos humanos. Existe na jurisprudência internacional essa ideia de prevenção, que busca construir instituições íntegras e confiáveis por meio do afastamento daqueles agentes públicos que serviram ao arbítrio e que se envolveram em violações a direitos. Vê-se que a doutrina pode ser um instrumento fundamental para doar uma nova legitimação social no campo institucional. Devido ao papel de relevo que o Poder Judiciário desempenhou no arbítrio, é preciso pensar em uma reforma não só das forças de segurança, mas também uma reforma do Poder Judiciário. Por isto, pois, é fundamental a transformação e a consolidação de instituições democráticas que assegurem a paz, a estabilidade democrática e o Estado de Direito. Finalizando, Piovesan afirmou que não podem existir no Estado Democrático de Direito setores imunes a incidência da legalidade, sendo necessária a criação de um Poder Judiciário confiável e independente.

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Gilberto Bercovici28 abordou a questão das heranças institucionais de repressão e a necessidade de reformas nos dias atuais. Segundo ele, a transição para a democracia do Estado brasileiro foi chamada de um pacto, porém foi imposta, controlada pelos militares, sendo que a Lei da Anistia é o maior exemplo disso. A Constituição de 1988 é herdeira de muito do que foi criado e existiu na ditadura de 1964: rompe com várias instituições, porém preserva muitas outras ao mesmo tempo. Um exemplo disso é que ela mantém praticamente intocada a estrutura do Estado estruturado durante a ditadura militar, já que a última grande reforma no Estado brasileiro foi em 1967. Nesse período, realizaram-se uma série de reformas estruturais, que alteraram o sistema tributário, a estrutura financeira e orçamentaria do país. Praticamente, a única legislação do período ditatorial alterada é a Lei de Imprensa, sendo que sua alteração foi feita principalmente para beneficiar as grandes empresas de comunicação. Segundo Bercovici, o regime democrático não se preocupou em lidar com a permanência de legislações que foram feitas no período autoritário, já que, aparentemente, não houve durante a transição democrática institucional a revisão da legislação existente. Muito se fala em reformas e em rupturas, porém são poucas as reformas e rupturas que já realmente aconteceram. “Quais seriam as reformas necessárias há quase 40 anos?” é uma das perguntas lançadas por ele, à qual ele responde citando as reformas agrária, educacional e bancária. Essas seriam as verdadeiras reformas a serem feitas, mas que nunca foram colocadas em prática. 28 Doutor em Direito do Estado e Livre Docente pela USP. Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP. Cf. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente: Atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004.

 

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Atualmente, o Estado Democrático de Direito só chega para uma parcela mínima da população e mais de 70% da população não vive o Estado de Direito. Portanto, ao final, Gilberto Bercovici, afirmou que a impressão geral que essa situação transmite é de estagnação, uma vez que o Estado brasileiro está com 25 anos de democracia clamando por reformas que não se concretizam. Em seguida, ainda dentro das atividades do Congresso, ocorreu uma mostra de filmes que contou com o apoio do Projeto Cinema pela Verdade da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Foi exibido o filme “Eu me lembro” e, em seguida, comentaram a obra e debateram com a plateia os Professores Cristiano Paixão29, Juliana Neueschwander Magalhães30 e Vera Karam de Chueiri31. No que concerne à temática “Reformas institucionais e consolidação do Estado Democrático de Direito” (Parte IV), a presente obra conta com os seguintes capítulos: “Capítulo XVIII – Justiça de transição, re29

Professor Adjunto da UNB; Doutor em Direito pela UFMG; Procurador Regional do Trabalho; Membro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Cf. BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. PAIXÃO, Cristiano. Crise Política e Sistemas de Governo: origens da “solução parlamentarista” para a crise político-constitucional de 1961. Universitas Jus, v. 24, p. 47-61, 2013; PAIXÃO, Cristiano. Direito, política, autoritarismo e democracia no Brasil: da Revolução de 30 à promulgação da Constituição da República de 1988. Araucaria (Madrid), v. 26, p. 146-169, 2011; PAIXÃO, Cristiano. A constituição subtraída. Constituição & Democracia. Nº1. Brasília, janeiro de 2006; PAIXÃO, Cristiano. A constituição em disputa: transição ou ruptura? In: SEELAENDER, Airton (org.) História do Direito e construção do Estado.São Paulo: Quartier Latin, 2012 (no prelo). 30 Doutora em Direito pela UFMG; Doutora em Direito pela Università degli Studi di Lecce; Professora Associada da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Cf. NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. A Formação do Conceito de Direitos Humanos. Curitiba: Juruá Editora, 2013. 31 Doutora em Filosofia pela New School for Social Research; Professora Adjunta de Direito Constitucional da UFPR. CHUEIRI, Vera Karam de. Fundamentos de Direito Constitucional. Curitiba: IESDE Brasil, 2008.

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formas institucionais e consolidação do Estado Democrático de Direito: o caso brasileiro”, de Flávia Piovesan; “Capítulo XIX – Ampliando as lentes: experiências de justiça restaurativa em Minas Gerais”, de Giselle Fernandes Correa da Cruz; “Capítulo XX – Os desafios da justiça de transição ante a consolidação do Estado Democrático de Direito: as dificuldades enfrentadas pelo processo transicional brasileiro expressas nas reformas institucionais para a implementação da democracia”, de Henrique Ratton Monteiro de Andrade e Jessica Holl; “Capítulo XXI – A justiça diante das armas e os mecanismos eleitorais contramajoritários: a experiência do regime de exceção brasileiro”, de Maria Celina Monteiro Gordilho; “Capítulo XXII – Os desafios da justiça de transição no Brasil: o Estado, a legitimidade de suas ações e os reflexos da legalidade autoritária no Poder Executivo e no Poder Judiciário”, de Natália de Souza Lisbôa; e, “Capítulo XXIII – Simbolismo democrático X realidade autoritária: notas sobre a política criminal brasileira”, de Thayara Castelo Branco.

Conclusões As atividades do Congresso tiveram por ato final a inauguração de monumento de homenagem às vítimas da ditadura em frente à antiga sede do DOPS de Belo Horizonte, no cruzamento das Avenidas Afonso Pena e Professor Moraes, na capital mineira. O evento contou com a participação de ouvintes, painelistas e organizadores do Congresso Internacional Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988, além de autoridades como o Prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, o Secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão e o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais – Luís Cláudio da Silva Chaves. Como já mencionado, a partir do trabalho realizado e das discussões que foram feitas, será publicada uma obra contando com textos de diversos dos painelistas,  

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assim como os trabalhos apresentados por alunos de graduação e pós-graduação durante o Congresso. A publicação ocorrerá sob a forma de e-book. Foi construído um site na internet para a divulgação do congresso, o que permitiu a presença maciça de tantos ouvintes e participantes. Neste mesmo site, estão disponibilizadas as falas de cada um dos painelistas.32 Em razão da importância do Congresso, da realização da 69ª Caravana da Anistia e da inauguração de monumento, a repercussão do evento foi grande. Além da divulgação em redes sociais, houve a presença de rádios como a CBN, jornais como Estado de Minas e Folha de São Paulo e emissoras de televisão como TV Globo33. O congresso permitiu a interlocução de pessoas oriundas de diversas partes do mundo: Peru, Argentina e Estados Unidos, principalmente. Além disto, participaram do evento pessoas de diversos Estados da federação: Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Goiás, Distrito Federal, Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Tocantins, entre outros. 32

Disponível em: . 33 Seguem alguns links de reportagem sobre os fatos que se deram durante o evento, todos com acesso em 12 nov. 2013: ; ; ; ; ; .

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A realização do Congresso deveu-se, principalmente, ao árduo trabalho da Comissão Organizadora, que contou com um inestimável apoio de estudantes de graduação e pós-graduação dos cursos de Direito e Ciências do Estado da FD/UFMG. Importantíssimo também foi o apoio do Centro Acadêmico de Ciências do Estado – CACE – e do Centro Acadêmico Afonso Pena – CAAP. Essencial também foi o apoio de servidores da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e do próprio Ministério da Justiça para a realização não só da Caravana da Anistia e da inauguração do monumento, como também de todo o congresso. Todo esse esforço conjunto demonstra como a universidade, ante um Estado Democrático de Direito, pode se constituir em um ambiente propício para a difusão cidadã de ideias e o engajamento em políticas transicionais fundamentais para a confirmação do projeto constitucional estabelecido a partir de 1988. Há muito ainda a se fazer; mas a realização do Congresso Internacional Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988 demonstrou que é possível envolver toda a comunidade acadêmica nessa luta. Nos 50 anos do golpe de 1964, essa publicação é mais um importante esforço de efetivação da justiça de transição no Brasil.

 

As reivindicações por memória e verdade e a Comissão Nacional da Verdade Construindo a memória social sobre o período militar no Brasil

Ana  Paula  Ferreira  de  Brito1   Maria  Letícia  Mazzucchi  Ferreira2  

Resumo: O Brasil viveu, por muitos anos, um “esquecimento coletivo” sobre as violações aos direitos humanos ocorridas durante o período militar (1964-1985). No entanto, após diversas manifestações e reivindicações de organismos da sociedade civil, o poder público criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para que se efetive o esclarecimento de tais fatos e se cumpra o direito à memória e à verdade. Assim, este artigo visa discutir como a sociedade civil tem se portado diante do tema, sua relação com a CNV e como tudo isso tem sido efetivado para a construção da memória social sobre o período. Palavras-chave: Comissão Nacional da Verdade – Memória – Sociedade Civil. 1

Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural na Universidade Federal de Pelotas. Bolsista Capes. Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba e Graduanda em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa. 2 Professora do Programa de Pós Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas.

 

38 Ana Paula Ferreira. de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

Abstract: For many years Brazil has lived a "collective forgetfulness" over human rights violations that occurred during the military government period (19641985). Recently, after several protests and claims of civil society bodies, the Government has created the National Commission of Truth (CNV) to bring such facts to light and fulfill the right to memory and truth. In this manner,this article aims to discuss how civil society has been dealing with the theme and its relationship with the Commission, as well as its impact on the construction of the social memory of that period of Brazilian history. Keywords: National Commission of Truth- Memory Civil society.

Introdução A ditadura civil-militar que foi instaurada no Brasil em 31 de março de 1964 e que vigorou até meados de 1985 registra em sua trajetória repressões políticas, violações aos direitos civis, políticos e humanos dos que não apoiavam o regime militar instaurado. Durante muito tempo o país viveu uma política de esquecimento acerca do tema, na qual se negaram trechos da história política oficial, visando torná-la mais apaziguadora. Alguns agentes atuaram no sentido de promover uma amnésia social acerca de determinados fatos relativos ao tema. Estabelecendo-se um esquecimento-manipulação, que conforme esclarece Michel (2010,18) é imputável aos atores públicos encarregados de elaborar e transmitir a memória pública oficial, apresentando-se como tendência a ser um instrumento próprio às políticas de reunificação nacional dada a necessidade de se regular a memória cívica e “cicatrizar” as feridas coletivas. Consideradas por muitos como memórias que não deveriam ser lembradas por serem dolorosas, o  

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argumento mais significativo dessa percepção centrava-se na necessidade do país “avançar” nas questões sociais e econômicas. De modo que render atenção ao passado e promover “gastos públicos” nesse sentido seria um retrocesso. Um dos posicionamentos oficiais que corroboram este pensamento foi proferido pela Ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie, durante seu voto3 sobre possível descumprimento de preceito fundamental (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 153) presente na Lei nº 6.683/79, lei de anistia, que foi recepcionada com a constituição de 1988. O pedido apresentado junto ao STF pela Ordem dos Advogados do Brasil considera que alguns dos crimes contemplados pela citada lei são de lesa-humanidade, assim imprescritíveis. Ao respaldar seu voto, a ministra afirmou que a anistia foi o preço a ser pago pela sociedade brasileira dada a transição de um regime autoritário a uma democracia plena. Continuou defendendo que não é possível viver retroativamente a história, nem se deve desvirtuá-la para que assuma contornos que nos pareçam mais palatáveis. O que se percebe é que o esquecimento foi implantado na conjuntura social como um dever, ainda que de forma sutil. Sobretudo através do dever de haver concessões recíprocas para uma efetiva reconciliação nacional. Assim, compreende-se que um dos polos ativos em torno deste conflito memorial é a revisão da lei de anistia, uma vez que, através desta, o Estado se posicionaria oficialmente em repúdio às ações outrora cometidas pelos perpetradores dos direitos humanos, tornando-se possível a realização de julgamentos a essas violações, com atribuição das devidas sanções. Por longo tempo, o tema foi silenciado, de modo que a história dos fatos ocorridos no período era retra3

Disponível em: , acessado em 26/01/2013, página 153.

 

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tada com um olhar um tanto quanto singular dos acontecimentos, com efeitos considerados reducionistas, dada a dimensão do debate e a representação desse passado para a sociedade. Não se pode apreender de fato o momento em que alguns grupos da sociedade assumem a busca pelo direito à memória, verdade e justiça pertinente ao período em questão. Mas gradualmente se assiste a um despertar social e político para o tema, principalmente através dos chamados empreendedores da memória. Conceito apresentado por Johan Michel (2010, 19), trata-se de grupos ou indivíduos que tentam impor representações e normas memoriais no interior do espaço público e político. Seja sociedade civil ou os que fazem parte do aparelho de produção de políticas públicas. Destarte, entre esses empreendedores aqui discutidos, evidenciam-se associações, sindicatos, órgãos públicos e privados, estudantes, entre outros grupos que começam a se organizar no sentido de reivindicar o direito à memória e verdade sobre o período em discussão. A confluência desses grupos, e de outros não mencionados em torno do tema, proporcionará um conflito de memória, ou um conflito em torno de uma suposta verdade histórica a ser defendida por esses indivíduos. Esses conflitos ensejam uma tendência e compulsão memorial, assistida sobretudo na era moderna, que Joel Candau classifica como mnetropismo4. Nesse caso, as memórias sobre o período militar no Brasil serão elementos que articularão essa disputa memorial, tendo no epicentro do conflito as memórias ditas dolorosas, especialmente a dos presos e perseguidos políticos do regime em questão.

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Definido por CANDAU (2009, 43) como sendo o movimento contemporâneo em direção à memória, uma compulsão memorial.

 

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Comissões da Verdade no Cone Sul Busca da verdade, reparações, reformas institucionais e reconciliação são as principais palavras que figuram nos conceitos apresentados pelos teóricos acerca da justiça de transição, que por sua vez consiste em esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos (ZYL, 2011, 47). No entanto, é interessante notar que as primeiras ações, respaldadas através das leis de anistia, promulgadas ao longo da América Latina, utilizaram-na com o sentido de anistia vinculada a um esquecimento induzido. Esse esquecimento induzido deu-se, sobretudo, através de estratégias como o não acesso a documentos, impedindo que parte dessa memória fosse restaurada com vistas a pedidos de justiça e indenização. Muitos foram os argumentos em prol da permanência dessa cultura do silêncio, comumente chamado de “esquecimento oficial”, que, como observa SeligmannSilva (2006, 05), nasce da necessidade de promover uma reconciliação da nação, característica que desponta para uma legitimação do sepultamento de partes dessa memória política. O autor aponta ainda a célebre frase do ex-presidente José Sarney que, em defesa da anistia e do esquecimento, afirmou que “... é necessário um esforço nacional para, de uma vez por todas, sepultarmos esses fatos no esquecimento da história. Não remexamos esses infernos, porque não é bom para o Brasil”5. No entanto, o desejo de esquecimento não é coletivo, e rompe a atuação de agentes que requerem e exigem a preservação dessas memórias, bem como outras visões sobre o passado. 5

SELIGMANN – SILVA, Márcio. Anistia e (in) justiça no Brasil: o dever de justiça e a impunidade. Literatura e Autoritarismo, Memórias da Repressão, n.9, 2006. p. 04.

 

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Esse esquecimento planejado é visto nas leis de anistia nos países do Cone Sul. Essas legislações primaram por cancelar as condutas tipificadas como crimes, anulando, portanto, a possibilidade de serem realizados processos criminais e investigações. Como se pôde perceber, as leis de anistia da região latino-americana não cumpriram com os requisitos do DIH e do direito internacional relativo aos direitos humanos. Geralmente, foram dadas em benefício do próprio governo que as outorgava e durante o período de seu mandato. Contudo, cabe ressaltar que nos últimos anos começou-se a gerar uma corrente que pretende reverter tal situação (SALMÓN, 2011, 238).

Em países como Argentina e Uruguai, os movimentos para alteração das leis de anistia tiveram seu início no final dos anos 1990. Na Argentina, a Suprema Corte anulou as duas leis de anistia existentes em 2005, no Uruguai a lei recebeu uma anulação tácita após recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por violar os acordos de Direitos Humanos e por não seguir o procedimento constitucional. No Chile não houve derrogação da norma, mas a qualificação de alguns delitos como continuados, que viabiliza a compreensão de que o agente, mediante mais de uma conduta, realiza mais de um crime da mesma espécie. Outros países ainda persistem na mudança da norma, a exemplo do Brasil no qual foi impugnado pelo Supremo Tribunal Federal o pedido de revisão da citada lei através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153/2010, requerida pela Ordem dos Advogados do Brasil. A busca por alterações nas leis de anistia dá-se, sobretudo, pela necessidade de julgar as graves violações aos Direitos Humanos cometidas por agentes do Estado e que permanecem, em muitos países, sem esclarecimentos e devidas punições. As entidades de Direitos Humanos reafirmam o perigo causado pela im  

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punidade a estes crimes, e os efeitos perniciosos à sociedade presente e futura. Nesse sentido, as sociedades, apesar de disporem de um direito à memória, se deparam com um passado de impunidade e negligência a seus direitos que permanecem. Assim sendo, tem sido recorrente nas sociedades pós-conflito e que estão em processo de transição para regimes democráticos o estabelecimento de Comissões da Verdade. Trata-se de “órgãos de investigação criados para ajudar as sociedades que têm enfrentado graves situações de violência política ou guerra interna, a confrontar criticamente seu passado, a fim de superar as profundas crises e traumas gerados pela violência e evitar que tais fatos se repitam em um futuro próximo” (CUYA, 2011, 47). A ONU em agosto de 2009 divulgou um estudo apresentando medidas a serem consideradas pelos países nas ações de direito à memória e à verdade. Destacando ainda que “a atuação das chamadas comissões da verdade, no interior de diferentes sociedades, tem sido uma das formas mais populares e eficazes da busca de informações individuais sobre os desaparecimentos ainda não plenamente esclarecidos” (BRASIL, 2010, 22). En varios países de América Latina se constituyeron comisiones de la verdad oficiales y, en otros, grupos de la sociedad civil se organizaron para investigar las violaciones a los derechos humanos. La composición de las comisiones como la chilena, la salvadoreña, la guatemalteca y la peruana, y el contenido de sus informes, fueron diversos productos de la disímil relación de fuerzas políticas de cada transición. (CRENZEL, 2011, 62)

As comissões da verdade passaram por três fases históricas. A primeira é marcada pelo Tribunal de Nuremberg, a partir da década de 1970 até meados de 1989 com a queda do muro de Berlim. A segunda fase é marcada pela instituição da Comissão da Verdade na África do Sul em 1995, na qual vigorava a concepção de  

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que o arrependimento dos violadores dos direitos humanos seria considerado no processo de reconciliação nacional. Assim, os processos penais e as punições eram evitados. A terceira fase, no entanto, preocupa-se mais com a devolução dos restos mortais das vítimas dos regimes militares às famílias, bem como a responsabilização penal dos perpetradores. Essa característica da terceira fase se deve, sobretudo, ao “ressurgimento normativo do direito internacional para a proteção dos direitos humanos” (BRASIL, 2010, 23). As organizações de Direitos Humanos, grupos de familiares de vítimas das ditaduras, clérigos, entre outros, compuseram parte fundamental ao estabelecimento das comissões no sentido de reivindicá-las. Nesse sentido, cabe destacar a atuação do projeto Nunca Mais na América Latina. Trata-se de informes e/ou relatórios que denunciavam as atrocidades ocorridas nos países em que vigorou a repressão militar, na maioria das vezes, foram propostos por organismos de Direitos Humanos vinculados à Igreja Católica. Uruguai (em 1989), Paraguai (1990), Bolívia (1993), Colômbia (1995) e Brasil (1985) foram alguns dos países que denunciaram os atos da ditadura através do projeto, cujo nome tem sido o grande slogan dos que militam pela causa das violações aos Direitos Humanos vinculados aos regimes de repressão militar. Os processos de transição para a democracia na América Latina foram marcados por reivindicações, como disposto, de entidades como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, bem como da sociedade civil, que cobravam dos Estados uma resposta frente aos crimes do passado. Os esforços empreendidos eram para que os danos individuais e/ou coletivos fossem reparados, bem como que houvesse uma prevenção da repetição dos erros no futuro. Nesse sentido, o principal “instrumento” para o estabelecimento da “verdade histórica” era a criação de Comissões da Verdade. De acordo com Nash (2011, 41), “en todas estas comisiones la meta há sido determinar los alcances de  

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las violaciones de derechos humanos en el período que cubre el mandato de la comisión, para establecer uma verdad histórica compartida al interior de la sociedad”. O apoio de entidades e órgãos de Direitos Humanos é imprescindível antes mesmo da instalação da comissão. Para um processo frutífero das investigações de uma comissão da verdade, esta deve dispor de um apoio internacional, que inclui entre outros o acesso a documentos de arquivos oficiais e estrangeiros, assistência técnica e de política, em geral prestada por ONGs internacionais, investigadores internacionais às vezes “emprestados” à comissão por governos estrangeiros, e acesso a peritos de comissões anteriores (ARBOUR, 2006, 298). A ONU, em documento6 divulgado em 2006, esclarece que as comissões da verdade podem atuar de três maneiras: recomendando a acusação (sendo o modo mais recorrente): nesse caso, as recomendações são em sua maioria entregues junto com o relatório final do mandato da comissão. “A recomendação pode se referir a pessoas específicas ou tratar-se de uma recomendação geral para que sejam realizadas mais investigações e se dê andamento à justiça penal para crimes cometidos no passado”; concedendo ou recomendando anistia, modelo adotado no sentido de conceder anistia em troca de esclarecimento dos fatos. Cabe ressaltar que tal modelo não encontra abrigo no direito internacional, que condena a conseção de anistia em violações dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário. Não obstante, a Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul “concedeu anistias apenas com relação 6 ARBOUR, Louise. Nações Unidas: Gabinete do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos - Instrumentos do Estado de Direito para Sociedades que tenham saído de um conflito - Comissões Da Verdade. Nações Unidas, Nova York e Genebra, 2006. IN: Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça. – N. 5. (jan. / jun. 2011). – Brasília : Ministério da Justiça , 2012. p. 290-327.

 

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aos delitos de motivação política demonstrada e após o solicitante da anistia revelar total e publicamente os detalhes do delito”; e, finalmente, concedendo isenção limitada e condicional de responsabilidade penal, que consiste na anulação da responsabilidade penal e civil referente a delitos não graves, sempre que houvesse um reconhecimento, pedido de desculpas, prestação de serviços comunitários ou um pagamento simbólico acordado para a vítima ou a comunidade. Conforme aponta Arbour (2006, 305), o modelo foi utilizado no Timor Leste, e é compreendido muito mais como “transação negociada” do que uma anistia. As comissões da verdade são instituídas geralmente por meio de legislação nacional ou decreto presidencial. A escolha de seus membros respalda-se sobretudo pela respeitabilidade dos mesmos na sociedade e na neutralidade diante do tema. O que se tem comumente discutido é a importância de se dispor de profissionais de diversas áreas do conhecimento, garantindo uma investigação interdisciplinar. Esse aspecto se destaca em ações como tomada de depoimentos de vítimas e testemunhas dos crimes investigados. Grande parte das informações primárias das comissões é oriunda de depoimentos coletados. Normalmente, uma comissão da verdade recebe entre 7.000 e 20.000 depoimentos de vítimas, testemunhas ou inclusive autores que desejam informar sobre sua própria participação ou de outras pessoas nos fatos investigados (ARBOUR, 2006, 309). Sabe-se que, em sua maioria, essas comissões dispõem de pouco tempo para investigações e esclarecimento dos fatos. Portanto, o que normalmente se assiste é a seleção de um número representativo dos fatos para serem investigados e apresentados no relatório final, que reúne ainda as conclusões e recomendações da comissão. Estas podem sugerir reformas jurídicas, institucionais ou legislativas visando prevenir abusos futuros, reparações às vítimas e/ou familiares, novas investigações para apurar as violações, bem como a  

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promoção de outros programas pertinentes que supram as deficiências indicadas (ARBOUR, 2006, 312). Deste modo, percebe-se que o estabelecimento de uma comissão da verdade, por si só, não cumpre a função total do Estado de esclarecer e reparar a sociedade das ações de violência outrora cometidas, sendo imprescindível que o mesmo, além de criar as comissões, observe e cumpra suas recomendações, favorecendo um processo de transição para a democracia de modo efetivo, e garantindo uma reconciliação nacional através do direito à memória e à verdade.

Comissão da Verdade no Brasil No Brasil, a criação da Comissão Nacional da Verdade está atrelada à mobilização de alguns grupos da sociedade civil, tais como vítimas e familiares dos mortos e desaparecidos políticos, entidades de classe como a Ordem dos Advogados do Brasil e estudantes das mais diversas áreas de formação que, por longo período, reivindicaram a instalação de uma Comissão da Verdade para apurar os fatos ocorridos no período do regime militar e estabelecer as responsabilidades jurídicas pertinentes. Corroborado pela diretriz 23, do eixo 6 do III Plano Nacional de Direitos Humanos de 2009, foi constituído em Brasília um Grupo de Trabalho que teve a missão de elaborar um projeto de lei para a criação da Comissão da Verdade. O PL 7.376 foi concluído em abril de 2010 e então encaminhado para a Sanção Presidencial e para o Congresso Nacional. Com a aprovação, foi transformado em 2011 na Lei nº 12.528/2011, sendo, no entanto, instalada de fato apenas em maio de 2012 (POLITI, 2012, 09). Composto por sete membros indicados pela Presidente da República, identificados pela defesa da democracia e dos direitos humanos, o grupo é majoritariamente formado por juristas, com exceção de um  

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membro da área de Psicologia Social e outro da Ciência Política. Essa predominância de juristas no grupo causou certa inquietação entre alguns setores da sociedade, no que concerne ao resultado final da atuação da comissão, posto que sua função é apurar as violações ocorridas durante o regime militar no Brasil, e não realizar julgamentos. Em nota7 oficial, a Associação Nacional de História (ANPUH), em janeiro de 2012, demonstrou a importância e necessidade da comissão dispor de historiadores, uma vez que o dever de memória e a própria memória do período carecem ser analisados à luz dessa ciência. Profissionais de outras áreas do conhecimento e alguns grupos da sociedade civil estabeleceram críticas pontuais à composição da Comissão. Sobre a composição e escolha dos membros de uma comissão da verdade, instrui a ONU que: Em condições ideais, devem ser membros amplamente respeitados da sociedade (ou personalidades internacionais) cuja neutralidade seja aceita por todas as partes de um conflito prévio (ou o grupo como um todo deve ser considerado representativo de uma gama relativamente ampla de opiniões). Pode incluir profissionais de distintos âmbitos ou trajetórias, como dirigentes religiosos, advogados em exercício ou juízes aposentados, psicólogos, educadores, peritos em violência contra a mulher ou crianças e profissionais dos direitos humanos, entre outros (ONU, 2006, 305).

Outra crítica tem se pautado na função da Comissão, que, de acordo com a lei de criação, restringese a examinar e esclarecer as graves violações de Direitos Humanos a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. Muitas expectativas foram postas em torno da criação 7

Disponível em: , acessado em 20/01/2013.

 

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da CNV, que para alguns, poderia ser o caminho a ser perseguido para possíveis julgamentos dos perpetradores, e como consequência uma nova interpretação da Lei de Anistia. A comissão terá um prazo de dois anos para produzir um relatório circunstanciado com os fatos ocorridos entre 1946 a 1988. Esse relatório constará de conclusões sobre a verdade histórica do ocorrido no período militar, bem como as recomendações. Esta última será o legado mais frutífero e duradouro da comissão instalada. O grupo trabalha a partir de subcomissões, quais sejam: Pesquisa, geração e sistematização de informações; Relações com a sociedade civil e instituições e, finalmente, Comunicação Externa. Os trabalhos da Subcomissão de Relações com a sociedade civil e instituições têm sido de grande ajuda, sobretudo no que tange à identificação de novos documentos, quer sejam materiais ou orais, como testemunhos. Nesse sentido, a CNV tem incentivado a criação de Comissões Estaduais e Comitês pela Memória, Verdade e Justiça. Em julho de 2012, a CNV organizou um encontro em Brasília com representantes dos comitês já criados, para que pudessem dialogar com a comissão nacional e elaborar um documento com sugestões para atuação. Na ocasião, estiveram presentes representantes de 19 estados e Distrito Federal, contabilizando um total de 44 comitês, que além de apresentarem suas considerações e sugestões, entregaram documentos que poderão auxiliar nas investigações da CNV, incluindo um documento final elaborado de modo coletivo com propostas de investigação. O documento elaborado pontua quase 150 reivindicações das entidades ao Estado8. Nele, a preocupação com o passado que tan8

Para maiores informações ver o documento elaborado pelos comitês, disponível em: , acessado em 22/08/2012. 9 Carta dos Comitês à Comissão Nacional da Verdade, elaborada pelos comitês regionais e discussões realizadas na reunião dos coletivos no dia 30/07/12, em Brasília. 10 Disponível em:

 

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gada Rosa Cardoso, membro da CNV, afirmou que “se entendermos que esta é uma obra coletiva, se soubermos buscar e receber a contribuição dos militantes dos direitos humanos e de nossos intelectuais, sim, nós conseguiremos”. Os membros da Comissão Nacional tiveram contato com membros de comissões da verdade de outros países como Peru, Argentina, Guatemala e Paraguai para conhecer os principais desafios e dificuldades de comissões como estas, auxiliando assim na composição de uma metodologia de trabalho. Esse apoio internacional é importante não apenas dada a experiência dos outros países, bem como pela possibilidade de acessar documentos estrangeiros que podem ajudar na resolução de questões como a da Operação Condor, entre outras. Merece ainda destaque a atuação da CNV no acompanhamento e solicitação aos órgãos públicos que transformem lugares que foram centro de detenção e tortura em centros de memória, verdade e justiça. Como exemplo, cabe mencionar o pedido de tombamento da ex-sede11 do DOPS do Rio Grande do Sul, extinto em 1982. Assim sendo, o então coordenador da CNV, Cláudio Fonteles, expediu ofício ao Governador do estado do Rio Grande do Sul, indicando que o tombamento seria o primeiro passo para que o local possa ser utilizado como um lugar de memória. A cada dia novos dados são acrescentados ao tema da Comissão da Verdade no Brasil, uma vez que tem até 2014 para entregar o relatório final de suas atividades.

, acessado em 21/01/2013. 11 O local é popularmente conhecido como DOPINHA, localizado a Rua Santo Antônio, 600, bairro da Independência. O memorial poderá receber o nome de um desaparecido político gaúcho, tendo ocorrido no local manifestações e atos de identificação do espaço por grupos de direitos humanos da região.

 

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O papel da sociedade civil nas reivindicações por memória e verdade Antes mesmo da instauração da Comissão Nacional da Verdade, grupos da sociedade civil como o Tortura Nunca Mais, Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, Núcleo de Preservação da Memória Política, entre outros, vêm se organizando no sentido de reivindicar o direito à memória e à verdade sobre o período em questão. Mais recentemente, tem se registrado a criação de comitês e comissões estaduais para contribuir com o esclarecimento sobre os fatos ocorridos durante o período militar. Os comitês são criados nos mais diversos segmentos, dentro de universidades, associações, sindicatos, municípios e outros. Já as comissões, em sua maioria são vinculadas às assembleias legislativas dos estados ou à Ordem dos Advogados do Brasil em suas seções regionais. De acordo com a Rede Brasil, Memória, Verdade e Justiça, até março de 2013, registra-se um total de 49 comitês, que atuam no sentido de reunir documentos e depoimentos que possam ajudar a construir a história em pauta, e, de algum modo, auxiliar a Comissão Nacional da Verdade em seu relatório final, que deverá ser entregue à sociedade até 2014. Estes grupos têm atuado ainda no sentido de conscientizar politicamente a população e sensibilizá-la para a importância do registro dessas memórias deveras importante para a história da democracia brasileira. Cabe ressaltar que a CNV tem estabelecido periódicos encontros com os grupos supracitados, no intuito de fomentar as atividades dos comitês, bem como permitir um maior diálogo destes representantes da sociedade civil com o trabalho a ser desenvolvido pela comissão. O primeiro encontro ocorreu em julho de 2012; como saldo, os comitês elaboraram juntos um documento com indicações de temas a serem observados pela equipe da CNV e foram entregues documentos atinentes ao regime militar nos estados à CNV para  

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auxílio no relatório final. Esses encontros têm sido de extrema relevância para a construção dos esclarecimentos a que a sociedade tem direito, uma vez que a CNV dispõe de um prazo curto para cumprir com uma demanda considerável de fatos a serem analisados e investigados. Assim, o apoio dos grupos citados possibilita uma maior agilidade nas investigações, apoio e um fator maior, que é a continuidade a esse processo memorial. Espera-se que estes grupos deem continuidade aos trabalhos pertinentes ao direito à memória e verdade, posto que a CNV já tem um prazo final para concluir suas atividades. Igualmente anterior à instalação da CNV, uma mobilização realizada por jovens em vários estados do país se destacou e inovou nas reivindicações por memória e verdade: trata-se dos chamados escrachos/esculachos empreendidos pelos jovens do grupo Levante Popular da Juventude. O LPJ surgiu na cidade de Porto Alegre no ano de 2006 e expandiu-se pelo território nacional em 2010. Nascido da necessidade de criar espaços de debates para além dos muros da universidade, o grupo possui uma relação estreita com a Via Campesina12. Formado em sua maioria por estudantes universitários, não possui um núcleo central e específico para atuação e seus membros são oriundos de várias frentes de lutas e reivindicações. As principais pautas e lutas do grupo são educação, a questão agrária, a questão indígena, e dos afro-descendentes, questões de gênero, violência em comunidade de periferia, entre outros temas. Os escrachos/esculachos foram a forma encontrada por estes jovens para denunciar a história contada sobre alguns agentes que viveram e atuaram no pe12

Para maiores informações, consultar o site do movimento de onde as informações foram obtidas: , acessado em 28/01/2013.

 

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ríodo militar; a exemplo dos primeiros escrachos, os jovens apontaram uma versão para a atuação de alguns médicos como colaboradores de histórias de torturas. O grupo então empreende a chamada “Rodada Nacional do Escracho Popular”, conforme acordado em reunião da Coordenação Nacional do LPJ. Assim, a primeira rodada nacional ocorreu no dia 26 de março de 2012 em seis capitais brasileiras, tendo como intuito pressionar o governo a instaurar a Comissão da Verdade, criada através da lei nº 12.528/2011, mas à época ainda inativa. Em Belo Horizonte – MG, o grupo denunciou Ariovaldo da Hora e Silva; em Porto Alegre – RS, o grupo denunciou Carlos Alberto Ponzi; em São Paulo – SP, o denunciado foi David dos Santos Araújo; em Fortaleza – CE, foi a vez de José Armando Costa, registrando-se ainda manifestações no mesmo dia em Belém – PA e Rio de Janeiro – RJ. Cerca de uma semana após a primeira rodada nacional dos escrachos, o grupo promoveu algumas intervenções em repúdio à comemoração da chamada “Revolução de 64”, anualmente celebrada no dia 31/03 pelos Clubes Militares. Em 2012, a Presidente da República Dilma Rousseff havia proibido a comemoração alusiva ao golpe militar; no entanto, os militares anteciparam a celebração, e em insubordinação à ordem presidencial, comemoraram a data no dia 29 de março de 201213. O LPJ, como resposta à celebração, promoveu atos contra a comemoração do Golpe de 64 em estados como o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, além de estimular uma campanha nacional durante toda a semana que remetia à data do golpe. Assim, a organização solicitou aos jovens que difundissem nas redes sociais a tag #LevantePelaVerdade no Twitter, tirassem uma foto segurando uma folha com a chamada “Le13

Notícia veiculada nos principais sites do país. Disponível em:< http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/48243/>, acessado em 02/02/2013.

 

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vante pela Verdade” e publicassem no Facebook. Também orientou para que enviassem um e-mail para a Presidente da República exigindo a instalação imediata da Comissão Nacional da Verdade e organizassem grupos para colar cartazes pela cidade exigindo a instalação da CNV, conforme demonstra imagem de divulgação feita pelo grupo nas redes sociais. A segunda rodada nacional de escrachos ocorreu no dia 14 de maio de 2012, com manifestações em Pernambuco, no Pará, na Bahia, no Ceará, em Sergipe, na Paraíba, no Rio Grande do Norte, em São Paulo, em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. A ação gerou considerável repercussão nacional e tem se repetido desde então. Por ocasião dos atos realizados pelo LPJ, o Levante Popular da Juventude de São Paulo recebeu no dia 17 de dezembro de 2012, o prêmio de Direitos Humanos da Presidência da República, na categoria Menção Honrosa. O prêmio é uma promoção da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência e premiou o grupo em sua 18ª edição. De acordo com a Presidente Dilma Rousseff, a premiação serve para “reverenciar as bravas e bravos batalhadores na causa dos direitos humanos no Brasil”14. Em entrevista15 sobre a premiação, Tais Carvalho, integrante do LPJ, afirmou que Esse ano, uma das principais lutas do levante, foi a luta por memória, verdade e justiça, através dos escrachos aos torturadores que inclusive justificou a menção honrosa pela Secretaria Nacional de Di14

Disponível em: , acessado em 18/12/2012. 15 Entrevista da representante do grupo, concedida a Rede de Jornal TVT. Disponível em: , acessado em 18/12/2012.

 

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reitos Humanos, e outras lutas que a gente vem tocando, questões relacionadas à educação, aos 10% do PIB, à erradicação do analfabetismo. Pra gente é muito importante que a juventude, que essa geração, resgate uma luta que foi tocada pela geração da juventude da década de 60. Muitos entregaram suas vidas por essa luta, pela liberdade, pelo fim da ditadura militar. E a nossa geração resgata a luta desses jovens, pra dizer que essa é uma ferida que continua aberta, que essa é uma luta que a gente ainda precisa tocar até que a verdade seja revelada, para que a gente possa pensar um futuro livre das marcas da repressão.

As manifestações e atos seguem ocorrendo pelo país, não apenas por pessoas que tenham vinculação direta com o ocorrido no período, como vítimas e familiares, a exemplo dos membros do LPJ. A busca desses agentes apresenta-se entre outros, pela construção de uma memória social sobre o período militar no Brasil que de fato apure as violações aos direitos humanos e as registre na história oficial. O que se percebe sobre estes jovens que reivindicam essas memórias é que os mesmos têm analisado o retorno ao passado, não apenas sob uma perspectiva histórica dos fatos ocorridos, mas com uma relação que tangencia o presente, dado sobretudo através da violência empreendida nas comunidades de periferia, a juventude e a marginalização dos movimentos sociais. Semelhante à relação da memória com o passado e presente proposto por Bergson (s/d,) em seu cone da memória. Bosi (1994,09) defende que a memória interfere no processo ‘atual’ das representações, uma vez que, por dispor de uma função decisiva no processo psicológico, permite a relação do corpo presente com o passado. Compreende-se assim que a memória do período militar no Brasil se apresenta sob a representação de passado e presente para alguns, os que vivenciaram o período, e presente e passado para aqueles que não possuem lembranças desse passado, senão memórias  

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do passado adquiridas no presente. No geral, temos que as memórias do período ressurgem e são reivindicadas não apenas como um dever de memória (RICOUER, 2007), mas como parte da compreensão de que esse passado está interferindo ainda hoje na vida social do Brasil. É uma luta pelo direito de saber o que aconteceu. E pelo julgamento dessas pessoas que ainda estão vivas, e que ainda durante bom tempo foram responsáveis pela formação do exército que a gente tem hoje. Então tipo, quando a gente vê policial, ou você vê as forças armadas, matando, torturando, eles estão repetindo as práticas de quem formou eles. Dos que foram torturadores, que foram opressores do nosso povo. Então a prática se mantém a partir disso, sabe. A prática se mantém porque essas pessoas que representaram tudo isso, não tiveram julgamento. Porque é isso, quem não pune repete (PECHINCHA, 2012).

O que se apresenta nesse contexto são grupos em disputa pela produção de uma memória ainda presente no cenário da história brasileira e que ainda está para ser construída em suas nuances. De um lado, alguns militares e outros agentes que desejam um esquecimento coletivo dos fatos considerados desconformes, defendendo a percepção de que o Brasil deve seguir adiante e esquecer o que passou. Consideram eles que a volta a esses fatos representa um retrocesso para o país, posicionamento este que encontra solidariedade de alguns políticos e agentes públicos do Estado. Em contrapartida, apresentam-se três gerações de memórias que reivindicam documentos, informações sobre os desaparecidos políticos, análises dos processos e reflexões sobre os métodos repressivos utilizados pelo estado durante o período compreendido entre 1964 e 1985.

 

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Considerações finais O objetivo das reivindicações memoriais realizadas em prol do direito à memória e verdade, tais como manifestações e atos públicos, é despertar a sociedade civil para o tema e alcançar a atenção do poder público quanto ao esclarecimento dos fatos ocorridos no período militar. Estas reivindicações têm se apresentado no cenário social de diversas maneiras; as que mais se destacaram nos últimos anos foram a ADPF 153, a (re)nominação de logradouros públicos referenciando desaparecidos e ex-presos políticos, manifestações pela abertura dos arquivos do período militar e os escrachos/esculachos que romperam no ano de 2012. Mas até que ponto essas ações atingiram a sociedade civil? Visando inferir a opinião da sociedade civil acerca destas manifestações, procederam-se as pesquisas junto ao jornal Folha de São Paulo, especificamente, junto aos comentários dos leitores sobre o tema. A escolha deste veículo considerou o alcance e a repercussão nacional de que dispõe. Criada em 1921, a Folha é considerada um dos jornais mais vendidos do país, tendo sido o primeiro jornal a disponibilizar conteúdo on-line para seus leitores, e, nesse sentido, foi o único jornal com grande repercussão encontrado com espaço aberto para os leitores exporem seus comentários16. A pesquisa demonstrou que os leitores/comentadores estabelecem uma relação direta do tema com questões político-partidárias, e, nesse sentido, as políticas públicas envolvendo o tema repercutem de modo significativo nas críticas estabelecidas. O espaço pouco a pouco passou a ser utilizado como palco para debates políticos entre os que apoiavam o governo e os que eram contra. De modo que começaram a 16

Informações obtidas na página do jornal. Disponível em: , acessado em 05/02/2013.

 

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surgir relatos e argumentos mais sólidos de defesa para suas opiniões. Entre eles, merece destaque a do senhor Elton Santos no dia 13 de janeiro de 2010: Sr. Guerra. Meu falecido avô foi um militar muito respeitado em seu tempo, e ele cometeu atos que são proibidos de serem comentados abertamente em casa. Sei que a imagem que tenho de um avô carinhoso mudaria muito depois que fosse tudo relevado e por isso prefiro não saber de nada. Mas tem gente que gostaria sim de saber por que não tem uma imagem de avô carinhoso para lembrar e eu respeito essa vontade. Isso é diferente de revanche, é apenas para acalmar os corações.

A citação em destaque nos ajuda a observar a dualidade que o tema em pauta nos traz, o direito legal da reserva do passado e o direito à memória e à verdade. São diversas considerações a serem apontadas dentro desse contexto, e o acompanhamento dos comentários dos leitores realizado até o presente demonstra pouca percepção e debate sobre o tema em questão: a importância de se esclarecer as violações aos direitos humanos ocorridos durante o regime militar. Há uma vinculação direta das reivindicações empreendidas sobre o tema a questões político-partidárias, dentro do que se convém chamar no Brasil de “direita” versus “esquerda” política. Apresenta-se nesse cenário uma negligência quanto ao mérito do tema, o que sugere tratar-se do reflexo de que a discussão não tem alcançado de fato a sociedade, senão determinados grupos, em sua maioria relacionados às duas primeiras gerações de memória aqui apresentadas. Sobre a repercussão dos escrachos empreendidos pelos jovens do Levante Popular da Juventude, os comentários têm apresentado uma rejeição ao modo de reivindicação utilizado. A condição juvenil dos manifestantes é indicada por muitos leitores como deslegitimadora de suas reivindicações devido ao fato de não terem vivido a época. Para os adeptos dessa compreen  

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são, estes jovens deveriam promover atos de manifestações sobre problemas do presente, ligados ao contexto deles. Todavia, durante as manifestações e nas próprias matérias que veiculam as informações sobre os escrachos, os integrantes do LPJ ressaltam que sua luta está vinculada ao presente, sobretudo no abuso e na violência do estado, que é apresentada como herança das violações aos direitos humanos não investigadas no passado. A vinculação político-partidária aparece nesse cenário vinculando os manifestantes ao governo do PT, apesar do grupo expor que não possui filiação partidária. A relação é sugerida devido à proximidade do LPJ com o MST e a Via Campesina, grupos que possuem uma identidade ideológica com o partido do governo. De modo geral, o que se pode apreender é que, com os escrachos, a ação tem chamado a atenção da sociedade, mas, por consequência da mídia, não tem conseguido promover uma reflexão social sobre as violações ocorridas durante o regime militar.

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Entrevistas PECHINCHA, Dieymes Freixo. O Levante Popular da Juventude e os escrachos. Instituto de Filosofias e Ciências Sociais, Rio de Janeiro. 06 de junho de 2012. Entrevista concedida a Ana Paula Brito. POLITI, Maurice. Políticas Públicas de Memória sobre o período militar no Brasil. Núcleo de Preservação da Memória Política, São Paulo. 14 de junho de 2012. Entrevista concedida a Ana Paula Brito.

 

Memória com verdade Memória coletiva e formação da identidade nacional

Isabela  Camila  da  Cunha1  

Resumo: No presente artigo faz-se o uso de um breve relato de como se deu a transição política brasileira, os mecanismos disponíveis, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, para a implantação da Justiça de Transição no Brasil, especialmente em relação ao pilar “direito à memória e à verdade”. Discorre-se sobre o que é o direito à memória e o direito à verdade, bem como a junção desses dois direitos e a sua importância para a formação de uma memória coletiva que contribua para a identidade nacional. Além disso, relata-se uma parte do que já foi feito no Brasil sobre o assunto e alguns empecilhos para a efetivação do direito à memória e à verdade. Dá importância à fase atual com um relato sobre a Comissão Nacional da Verdade, assim como alguns casos tratados por ela. Por fim, trata-se de algumas análises sobre que ainda precisa ser feito para que a justiça de transição no Brasil seja executada plenamente.

1 Estudante de Graduação em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisa financiada pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) – Programa Jovens Talentos para a Ciência – 2012.

 

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Palavras-chave: Direito à Memória e à Verdade; Memória Coletiva; Justiça de Transição. Abstract: The present article approaches briefly the implementation of Transitional Justice in Brazil, according to the Brazilian legal system, especially in relation to the pillar “the right to truth and memory”. The concept of right to memory and truth are discussed, as well as their dynamics and their importance for the formation of a collective memory that contributes to national identity. In addition, the progress on this subject is debated along with some obstacles to guarantee the right to truth and memory. Moreover, the topics addressed by the National Commission of Truth are evaluated, as much as what needs to be done for transitional justice in Brazil to become fully executed. Keywords: Right to truth and memory; Collective Memory. Transitional Justice.

Introdução: A história brasileira, tal qual se encontra nos livros didáticos, é contada de forma estritamente parcial. Pouco se fala sobre as violações aos direitos humanos ocorridas durante o período ditatorial. No entanto, essa ocultação da verdade atrapalha na formação da memória individual e coletiva do povo brasileiro. As novas gerações possuem o direito de conhecer a verdade sobre as violações aos direitos humanos ocorridas durante o regime ditatorial. Faz-se necessário não tão somente para conhecer o que passou, mas também para servir de lição para que novas violações não venham a acontecer. Ter acesso aos relatos das injustiças ocorridas, bem como o acesso às informações e aos bens culturais que explicitam o passado, é de extrema importância para a formação da identidade dos brasileiros.  

Memória com verdade

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1. A transição política brasileira A transição do regime ditatorial em direção à democracia, no caso brasileiro, não foi liderada pelos setores mais radicais da sociedade e do segmento político, mas por uma coalizão formada entre as forças moderadas, que davam suporte ao governo militar, e os setores também moderados da oposição. Tratou-se de modelo conhecido como “transição com transação” em que as mudanças foram negociadas, não havendo rupturas violentas de início com o regime anterior. (SARMENTO, 2009 p.8) No processo político que se desenvolveu no país, o início da transição decorreu de iniciativa de elementos do próprio regime autoritário, que, durante a sua fase inicial, ditaram o seu ritmo e impuseram os seus limites.

2. A Constituição de 1988 e a Justiça de Transição A Constituição de 1988 representa o marco da transição do regime ditatorial para uma democracia. Possui ampla gama direitos fundamentais, bem como a preocupação com a mudança das relações políticas, sociais e econômicas, no sentido da construção de uma sociedade mais inclusiva, fundada na dignidade da pessoa humana. Além disso, ela dispõe de instrumentos, no art. 8º do ADCT, que permitem a efetivação da justiça de transição.

3. Justiça de Transição: o que é? Segundo   Paul Van Zyl2·, “o objetivo da justiça transicional implica em processar os perpetradores, 2

 

VAN ZYL, 2009. p.32

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revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação. ”. A Justiça de Transição corresponde aos mecanismos de passagem de um regime autoritário para um regime democrático3. Entre as normas fundamentais e medidas legais que se incentivam na concretização da Justiça de Transição estão as que devem contribuir para o esclarecimento da verdade e a formação da memória coletiva sobre as violações praticadas durante períodos políticos ditatoriais. Ao mesmo tempo, outros fundamentos da Justiça de Transição devem ajudar na construção de parâmetros para que haja reparação individual e coletiva, na reforma das instituições estatais e de segurança e devem incentivar políticas públicas de educação para a memória, com o objetivo fundamental de que violações aos direitos humanos e à democracia nunca mais aconteçam.4

4. O direito à memória e à verdade A preservação do registro dos fatos e acontecimentos históricos e psicológicos, tanto individuais 3

É possível salientar os quatro pilares da Justiça Transicional, quais sejam: reparação às vítimas, fornecimento da verdade e construção da memória, restabelecimento da igualdade perante a lei e a reforma das instituições perpetradoras dos crimes contra os Direitos Humanos. Esses pilares também servem de base para a redemocratização após o período autoritário.(ABRÃO, TORELLY, 2010.p.10). Os pilares da Justiça de Transição, acima de tudo, visam à recomposição do Estado e da sociedade, chamando cada indivíduo a retomar o controle de sua vida – resgatando uma cidadania consciente, em que cada cidadão é protagonista de sua própria história. (REMIGGIO, 2009.p.194) 4 Justiça de transição pode ser entendida “como o conjunto de esforços jurídicos e políticos para o estabelecimento ou restabelecimento de um sistema de governo democrático fundado em um Estado de Direito, cuja ênfase não recai apenas sobre o passado, mas também numa perspectiva de futuro.” (ALMEIDA, TORELLY, 2010. p.41)

 

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quanto coletivos, se configura como uma evolução para as relações humanas e é a base para redefinir, afirmar e transformar valores e ações. As gerações do presente e do futuro, que não vivenciaram o passado de abusos cometidos, precisam conhecer a verdade dos fatos passados para se conscientizarem e se tornarem responsáveis para que novas violações aos direitos humanos por parte do Estado não voltem a ocorrer. Nesse sentido, Paul Ricoeur (2007) afirma que “os mundos dos predecessores e dos sucessores se estendem nas duas direções do passado e do futuro, da memória e da expectativa, esses traços notáveis do viver juntos decifrados no fenômeno da contemporaneidade”. A apuração e a revelação da verdade estão ligadas a uma consolidação de uma memória democrática. Esta fase é complicada, visto que envolve o Poder público, a sociedade civil, as famílias, as vítimas e seus agressores. A importância se dá em, além de mostrar a violência ocorrida no período ditatorial, destacar, sobretudo a fragilidade da jovem democracia brasileira. É preciso, tanto quanto reparar, que as pessoas e as famílias que tiveram os seus projetos de vida impedidos por força do Estado tenham voz e que relatem o ocorrido para que haja uma valorização e uma crença na importância de se viver em um regime democrático e promover uma cultura de respeito aos direitos humanos. Como assinala o professor James L. Cavallaro: “hoje, na América Latina, os países que mais respeitam os direitos humanos são precisamente aqueles passaram por períodos terríveis de repressão e que gradualmente aprenderam a lidar com o passado de abusos”. (BARBOSA, VANUCCHI, 2009, p.55)

 

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4.1 – O direito à memória O direito à memória é o direito fundamental de acesso, fruição, conservação e transmissão do passado e dos bens culturais que compõem o patrimônio cultural de uma coletividade, tendo em vista que a memória5 – enquanto evocação do passado – apresenta tanto uma dimensão individual, na medida em que cada indivíduo tem suas vivências, experiências e recordações íntimas e pessoais, como uma dimensão coletiva, haja vista que o compartilhamento da historicidade e cultura de um povo pertence a toda sociedade. A preservação da memória, como registro de fato ou acontecimento histórico e psicológico, individual e coletivo, exerce função primordial na evolução das relações humanas: trata-se de um ato político que constitui a base sobre a qual a sociedade pode afirmar, redefinir e 6transformar os seus valores e as suas ações. (BARBOSA, VANUCCHI, 2009 .p.57)

Como bem enfatiza Baggio: A ideia de memória comporta uma série de subjetividades que a colocam em uma posição complexa de constante abertura e transformação. A memória envolve afetividades, emoções, seletividades e também interpretações. Constitui-se como memória social quando compartilhada intersubjetivamente e nem sempre está livre de divergências e versões variadas. (BAGGIO, 2012, p.112)

Na transição política brasileira, a memória foi entendida como sinônimo de esquecimento. Com a 5

A memória,considerada em toda a sua complexidade, é uma condição para o estabelecimento da verdade sobre os fatos ocorridos no passado. (BAGGIO, 2012. p.112).

 

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promulgação da Lei de Anistia7, procurou-se deixar o passado de violações aos direitos humanos intocado. Porém, essa ideia já se encontra ultrapassada. Já de muito foi superada a ideia de que “anistia” significa “esquecimento”, tanto na sociedade civil, que consigna no movimento de luta pela anistia o início do processo de redemocratização brasileira, quanto nos debates legislativos e ações do Executivo, que passaram a tratar a “anistia brasileira” ou como ato de reconciliação (legislativo) ou de pedido de desculpas oficiais do Estado pelos erros que cometeu (executivo). (ABRÃO, TORELLY, 2010, p. 34)

Dessa forma, atualmente, comemorando os 25 anos de promulgação da Constituição Cidadã, faz-se necessário o resgate da memória do que aconteceu no período ditatorial para que as novas gerações conheçam o passado do seu país, para a formação da identidade do povo brasileiro e para que seja instaurada no Brasil uma cultura de respeito aos direitos humanos para que novas violações não voltem a ocorrer.

4.2 – O direito à verdade O direito à verdade é o direito fundamental a ser exercido por todos os cidadãos de receber e acessar as informações que dizem respeito ao interesse público que estejam em poder do Estado ou de instituições privadas. Nos períodos de transição política, esse direito torna-se mais evidente, uma vez que é dever estatal 7

Durante muito tempo preponderou o entendimento de que a Lei de Anistia concedeu anistia aos militares e aos opositores ao regime, assim não foram investigadas e muito menos punidas as violações aos direitos humanos cometidas por aqueles ao longo de seu regime totalitário, nem os crimes políticos e eleitorais cometidos por estes. (BAGGIO, 2012, p.113)

 

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revelar e esclarecer às vítimas, aos familiares e à sociedade as informações de interesse coletivo sobre os fatos históricos e as circunstâncias relativas às graves violações aos direitos humanos praticadas nos regimes de exceção.8 Para Hannah Arendt, a verdade é “o que não se pode modificar, é o solo sob o qual nos colocamos de pé e o céu que se estende acima de nós”.9 O Direito de acesso à informação e a comunicação da verdade contribui para a diminuição da ignorância em relação ao passado. Através da informação, o povo se torna consciente do ocorrido. Isso evita a crença em promessas milagrosas e a descrença na democracia. Todo governo democrático deve assegurar o livre acesso à informação, prestando conta de seus atos à cidadania. Um povo democrático tem de ser bem informado e, para isso, há a necessidade de uma imprensa livre. No entanto, no Brasil há uma resistência por parte de alguns organismos estatais em abrir os arquivos. Essa negação da verdade viola direitos fundamentais, além de ignorar os anseios da cidadania e atrapalhar o acesso às informações basilares para a estruturação de vidas individuais. A ditadura suprimiu e ignorou a verdade. Houve “pactos de silêncio e concessões mútuas”10. Permaneceu “intocável o ajuste de contas”11 e a ignorância dos fatos pretéritos entre os jovens. Dessa forma, buscou-se a perda da memória. Assim, 8

SANTOS, 2012. p. 69 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2006. 10 BARBOSA, VANUCCHI, 2009. P.58 11 Ibid. 9

 

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Nenhum governante tem o direito de ocultar a verdade dos fatos. A negação injustificada do amplo e livre acesso aos arquivos viola preceitos básicos de direitos fundamentais, além de ignorar os anseios da cidadania pela construção de uma memória coletiva e pelo acesso às informações estruturais para as vidas individuais de milhares de brasileiros. A reconstituição da memória, fundada na verdade, é, consequentemente, um passo histórico necessário e imprescindível à consolidação democrática. (BARBOSA, VANUCCHI, 2009. P. 59-60)

4.3 – Direito à memória com verdade: direito à memória coletiva e formação da identidade nacional O direito à memória e à verdade, ainda que implícito no texto constitucional, constitui-se um direito fundamental do povo brasileiro.12 O acesso à memória e à verdade contribui para a formação da identidade de um povo e o modo como esse lida com o seu passado, contribuindo, assim, para a tomada de decisões futuras. A memória passa a ser um elemento que ajuda a compreender o modo como a sociedade e o Estado lidam com seu passado de graves violações de direitos humanos. Mais: evidenciar a opção política pelo esquecimento ou pela lembrança, bem como colocar às claras a legitimidade de certos grupos para o exercício da memória, são peças que integram esse processo de formação de uma memória coletiva.(SOARES, QUINALHA, 2011 p. 254)

12

Para mais informações sobre o assunto: SANTOS, Claiz Maria Pereira Gunça dos. O reconhecimento do direito à verdade como um direito fundamental implícito no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: Acesso em 15 abril 2013.

 

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E ainda: A memória coletiva que remete justamente a fatos históricos que transcendem as intimidades individuais, a despeito de também influenciá-las. Por interessar a um grupo de indivíduos, que pode ser uma pequena família, uma sociedade nacional ou até mesmo a comunidade humana em seu conjunto, a memória de determinado acontecimento, tal qual este próprio, assume dimensão coletiva, sendo sal elaboração impossível nos estreitos limites da individualidade. (SOARES, QUINALHA, 2011 p. 256)

5. O que já foi feito 5.1 A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos A Lei n° 9.140/95 reconheceu como mortos, para efeitos legais, os desaparecidos políticos que participaram das atividades políticas entre 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, permitindo a emissão do atestado de óbito e a indenização aos familiares, e instaurou a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.13 13

COMISSÃO ESPECIAL (Mortos e Desaparecidos Políticos) foi instituída pela Lei 9.140/95 e instalada no Ministério da Justiça (Decreto nº 18, de dezembro de 1995, Seção I pág. 21426). A Lei nº 10.536/02, publicada no Diário Oficial da União do dia 15.08.2002, alterou dispositivos constantes da Lei nº 9.140/95, estabelecendo a responsabilidade do Estado por mortes e desaparecimentos de pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação em atividades políticas, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 05 de outubro de 1988. A Lei 9.140/95 previa a possibilidade de reconhecimento da responsabilidade estatal por mortes e desaparecimentos, por motivação política, ocorridos no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. A Lei 10.536/02, portanto, ampliou o período de abrangência. A Lei 10.536/02 estabeleceu o prazo de 120 dias para o protocolo dos requerimentos, a contar da data da publicação da lei. Disponível em

 

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Durante onze anos de trabalho da comissão, foram julgados 475 processos. Destes, 136 casos que já constavam no Anexo I da Lei nº 9.140/95, obtiveram imediatamente o reconhecimento da responsabilidade por parte do Estado pelas mortes ou desaparecimentos. Os outros 339 casos foram objeto de análise e debate pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Resultando dessa análise, 118 indeferimentos e 221 deferimentos. (VANUCCHI, 2007. p 48.)

O resultado do trabalho da Comissão foi divulgado no relatório “Direito à Memória e à Verdade”. Dentre os casos acolhidos pela Comissão estão o de Carlos Marighella e Carlos Lamarca. A Comissão deu atenção especial ao esclarecimento de fatos decorrentes da Guerrilha do Araguaia. Carlos Marighella, resistente que por 40 anos lutou pela democracia no Brasil, foi morto por policiais enquanto atravessava a rua rumo ao encontro de Frei Ivo e Frei Fernando, que ele não sabia que já estavam torturados e mortos dentro de um Volkswagen. O guerrilheiro foi fuzilado, sem chances de defesa, quando em seu atestado de óbito constava a morte em razão de um tiroteio. Mesmo portando uma arma, Marighella não disparou um tiro sequer. Em uma reunião da Comissão, por 5x2 seu caso foi acolhido e houve a responsabilização do Estado por sua morte.14 Carlos Lamarca, ex-oficial do Exército Brasileiro, deixou a carreira militar para participar da Guerrilha Armada. Passou pela ALN, VPR até finalmente ingressar no Mr-8. Lamarca foi surpreendido por opressores da ditadura militar enquanto dormia, ao lado do companheiro de luta Zequinha. Ao tentar fugir, foi baleado e posteriormente morto. Na mesma reunião da Comishttp://portal.mj.gov.br/sedh/ct/desaparecidos/abert_desaparecidos. htm> Acesso em 15 abril 2013 14 Mais informações sobre o caso em: MIRANDA, TIBURCIO, 2008. Dos Filhos deste Solo. P. 96-103.

 

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são, e coincidentemente com o mesmo placar, 5x2, o caso de Lamarca foi acolhido e o Estado Brasileiro responsabilizado por sua morte.

5.1.1 A Guerrilha do Araguaia Desde o final de 1966, o PC do B dedicou-se à implantação de quadros partidários na região do Rio Araguaia, no sul do Pará, escolhida como área mais adequada para o surgimento de um futuro ‘Exército Popular’. Com a escalada repressiva desencadeada pelo regime militar após o AI-5, o PC do B acelerou o deslocamento de militantes para essa ‘área estratégica’, contando, para tanto, principalmente com lideranças estudantis obrigadas a viver na clandestinidade por força da perseguição policial. Em abril de 1972, os órgãos de segurança detectaram a presença do PC do B no sul do Pará e deslocaram enormes contingentes do Exército para sucessivas operações de cerco que prosseguiram até 1974. Iniciados os combates na região, o partido constituiu as ‘Forças Guerrilheiras do Araguaia’, que obtiveram algumas vitórias políticas. O desfecho final dos combates foi, entretanto, claramente favorável às tropas governamentais, do ponto de vista militar, resultando mortos mais de 50 militantes do PC do B, após cruel repressão que se abateu sobre a população de toda a região. (MIRANDA, TIBÚRCIO,2008.p.232.)

5.2 A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça A lei 10.559 de 2002, no artigo 1º instaurou a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, regulando o que estava previsto no art. 8° do ADCT. A partir dela foi possível reconhecer a condição de anistiado político e obter uma reparação econômica indenizatória.  

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A partir de 2007, com a instituição da “Caravana de Anistia”, houve uma grande contribuição para a superação do conceito de anistia como política do esquecimento.15 A Caravana visita diversos locais no país, onde realiza os seus trabalhos, explicita as violações aos direitos humanos ocorridas através de depoimentos de pessoas que tiveram a sua dignidade violada pelo regime ditatorial. Assim, torna possível uma reparação simbólica e um pedido oficial de desculpas do Estado brasileiro, que reconhece as violações.16 Em 2005 foram transferidos os documentos relativos ao período ditatorial da ABIn (Agência Brasileira de Inteligência) para o Arquivo Público Nacional, comandado pela Casa Civil da Presidência da República. Por meio do Decreto n° 7. 430/2011, o Arquivo Nacional foi transferido ao Ministério da Justiça. O Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, denominado “Memórias Reveladas”, foi institucionalizado pela Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo Nacional com a finalidade de reunir informações sobre os fatos da história política recente do País.17 15

O conceito de anistia que vem sendo trabalhado pela Comissão de Anistia é, portanto, muito diferente da anistia tradicional. Em primeiro lugar, ele não implica no perdão do Estado a um criminoso, mas sim no inverso, no pedido de desculpa do Estado por ter agido como um criminoso, na possibilidade de um perdão concedido pela vítima em relação ao ato criminoso do Estado. (MOREIRA FILHO, 2009. p.54). 16 A Comissão de Anistia – nascida de um dos principais marcos legais do sistema de reparações brasileiro, a Lei 10.559/02 – no sentido de complementar sua atuação na seara reparatória, instituiu uma política pública que, para além dos tradicionais julgamentos dos requerimentos de anistia que analisam individualmente a caracterização ou não da perseguição política por parte do Estado brasileiro, passa a estabelecer parcerias com a sociedade civil com o intuito de incentivar a ampliação das práticas de acesso à memória e à verdade no Brasil, buscando atingir, assim, uma dimensão coletiva da reparação. (BAGGIO, 2012.p.115) 17 Disponível em:

 

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5.3 A Lei de Acesso à Informação A lei n° 12.527/2011 tem por objetivo garantir a todos os cidadãos o acesso à informação pública.Ela estabelece a obrigatoriedade de os órgãos e entidades públicas divulgarem, independente de solicitação, informações de interesse geral ou coletivo.18 Tal lei revogou a lei Lei nº. 11.111, que autorizava a manutenção do sigilo dos documentos e arquivos da ditadura por um período indeterminado e violava, portanto, o Direito à memória e à verdade.

5.4 A Comissão Nacional da Verdade: Com a lei n° 12.528/2011, que instaura a Comissão Nacional da Verdade, foram obtidos mais avanços em relação à efetivação da Justiça de Transição Brasileira. De acordo com o diploma legal, são objetivos da Comissão: Art. 3 São objetivos da Comissão Nacional da Verdade: I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1 ; II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1 e suas eventuais o

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18 Disponível e: < http://www.pgr.mpf.gov.br/acesso-a-informacao>

 

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ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade; IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1 da Lei n 9.140, de 4 de dezembro de 1995. V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos; VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações. o

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Art. 4 Para execução dos objetivos previstos no art. 3 , a Comissão Nacional da Verdade poderá: I - receber testemunhos, informações, dados e documentos que lhe forem encaminhados voluntariamente, assegurada a não identificação do detentor ou depoente, quando solicitada; II - requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo; III - convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam guardar qualquer relação com os fatos e circunstâncias examinados; IV - determinar a realização de perícias e diligências para coleta ou recuperação de informações, documentos e dados; V - promover audiências públicas; VI - requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontre em situação de ameaça em razão de sua colaboração com a Comissão Nacional da Verdade; VII - promover parcerias com órgãos e entidades, públicos ou privados, nacionais ou internacionais, o

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para o intercâmbio de informações, dados e documentos; e VIII - requisitar o auxílio de entidades e órgãos públicos.

Dentre os casos esclarecidos pela Comissão estão o de Vladmir Herzog, Rubens Paiva e Alexandre Vanucchi Leme. Vladimir Herzog foi jornalista, dramaturgo e militante do Partido Comunista Brasileiro. Foi torturado e morto nas dependências do DOI-CODI após ser interrogado sobre as suas atividades supostamente “ilegais”. A família Herzog recebeu das mãos de Rosa Cardoso, coordenadora substituta da CNV o novo atestado de óbito de Vladimir Herzog, que altera a causa da morte de asfixia mecânica para "lesões e maus tratos sofridos durante o interrogatório em dependência do 2º Exército (DOI-CODI)", acabando de vez com a farsa do suicídio do jornalista, montada pela ditadura após a sua morte, em 1975.19 O ex-deputado Rubens Paiva foi torturado e morto nas dependências do DOI-CODI-RJ. Documentos do Arquivo Nacional e aqueles entregues à polícia do RS pela família do coronel Júlio Miguel Molinas Dias, assassinado em Porto Alegre, em novembro, desmontam a versão oficial montada pelo Exército de que Paiva foi sequestrado enquanto estava sob custódia dessa força militar e indicam que o ex-deputado foi assassinado, sob tortura, nas dependências do DOICODI do RJ.20 19

Disponível em: Acesso 15 abril 2013 20 Documento disponível em:

 

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Alexandre Vannucchi Leme cursava o quarto ano de geologia na USP, militava na Ação Libertadora Nacional (ALN) e tinha 22 anos. Foi preso em 16 de março de 1973 por agentes do DOI-CODI-SP e barbaramente torturado. No dia seguinte, segundo nove presos testemunharam, o corpo de Alexandre foi encontrado na cela onde estava preso e arrastado para o lado de fora. As testemunhas viram que ele sangrava abundantemente na região do abdome. Dias depois, em 23 de março, a repressão divulgou a falsa versão de que Vannucchi Leme havia sido atropelado na rua Bresser, na Mooca, ao tentar fugir da prisão.21 Alexandre Vannucchi Leme foi reconhecido como anistiado político e foi promovido um julgamento simbólico do caso do estudante, seguido de um pedido oficial de desculpas do Estado. A Comissão, que ainda está em vigor, terá publicado o seu relatório final em maio de 2014.

6. O que ainda precisa ser feito: No entanto, parte da legislação infraconstitucional ainda constitui um empecilho à efetivação da Justiça Transicional. A Lei nº 6.683/79, que serve de marco da transição política brasileira, foi assinada no governo de João Baptista Figueiredo, após um período conturbado, com exigência de diversos setores sociais, onde políticos, pensadores e jovens envolvidos na política tiveram seus projetos e sonhos abortados. A Lei de Anistia de 1979 acabou concedendo a todos que tivessem cometidos crimes políticos e aos que tiveram seus direitos políticos suspensos, uma 21

Disponível em: Acesso em 15 abril 2013

 

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anistia ampla, geral e irrestrita. No entanto a referida lei foi uma lei pela “metade”, pois não anistiou todos os presos, cassados, banidos, exilados e perseguidos políticos, tendo em vista que não anistiou os “condenados por atentados e sequestros políticos, deixou os cassados ainda inelegíveis, subordinou a reintegração dos funcionários à decisão das autoridades de cada setor envolvido” 22. Não se pode esquecer que a promulgação desta lei ocorreu com os militares ainda no poder. A lei foi o marco para a redemocratização, contudo ela representou uma política de esquecimento. Todavia, em 05 de maio de 2005, com a promulgação da Lei nº. 11.111, operou-se um grave retrocesso na lenta transição política brasileira, vez que o referido diploma legal autorizou a manutenção do sigilo dos documentos e arquivos da ditadura por um período indeterminado, violando ferozmente o direito à verdade e à memória, além de fomentar o esquecimento e impedir o conhecimento dos fatos. Nota-se, desse modo, que até 2005, a justiça de transição brasileira foi marcada pelo formato do esquecimento, sendo cumprido apenas o pilar da reparação, através da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP e da Comissão da Anistia.

Conclusão A revelação da verdade é fundamental para uma democracia, para que esta, lidando com o ocorrido, tenha um aprendizado para modificar o presente e garantir um futuro de paz. No contexto histórico político do Brasil no século XXI, portanto, a plenitude da vigência dos direitos 22

Disponível em: Acesso em 15 abril 2013

 

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humanos, incluindo-se aí o direito à memória e à verdade, deve ser considerada como instrumento primordial da realização e da promoção da condição humana. E tal plenitude deve ser permanente, entendida como poderosa ferramenta de transformação social, com o objetivo de construir uma sociedade mais justa, e como um instrumento de respeito integral aos valores democráticos.(BARBOSA, VANUCCHI, 2009.p.66)

Nestes 25 anos da Constituição da República e 65 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos é de extrema importância que se lute para preservar a memória dos que lutaram pela democracia e responsabilizar os que praticaram crimes contra a humanidade. A reconstrução da memória, fundada na verdade, promove o sentimento de justiça, um elo de continuidade e coerência de uma pessoa ou de um grupo. Resgatar a memória, com verdade, é elucidar o inconsciente e irracional trazendo para o nível da consciência racional. Dessa forma, o resgate da memória e da verdade liberta e condiciona a reconciliação. Além disso, cabe ressaltar a importância da conscientização para evitar a crença em promessas milagrosas e a descrença na democracia. Conhecer o passado é fundamental para que se construa o futuro. Por fim, vale ressaltar que na história brasileira, o período da ditadura militar não foi o único em que se teve enorme violação de direitos humanos. Outras épocas, como o genocídio indígena do período colonial, a escravidão, bem como o Estado Novo foram outras épocas em que houve abuso de poder por parte de quem deveria promover os direitos humanos. Assim, faz-se necessária a identificação, a preservação e a difusão da memória para que novas violações não voltem a ocorrer. Ninguém pode ocultar os fatos, “a proibição trata-se de negação dos acontecimentos históricos e de arbitrariedade, por trás da qual se escondem a medio  

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cridade e os obstáculos para vencer a força das ideias”. (BARBOSA, VANUCCHI, 2009. P.59-60) O povo não pode ser refém desse sistema montado com pretensões de acerto, mas que está contaminado com o vício pelo erro. A soberania é do povo e não dos ocupantes do poder, nem dos detentores das armas, e muito menos dos grupos criminosos. (REBELO, 2013 p. 232)

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BRASIL. Lei N° 12.527/11. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5 , no inciso II do § 3 do art. 37 e no § 2 do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei n 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei n 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei n 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. o

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BRASIL. Lei Nº 12.528/11. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República.

 

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Justiça de Transição no Brasil Um estudo sobre a transição democrática brasileira ante o direito internacional dos direitos humanos

Ramon  de  Sousa  Nunes1  

Resumo: A ideia de justiça transicional está intimamente ligada aos direitos à memória, à verdade, à reparação e à justiça, os quais exsurgem da ideia de nãorepetição de violações de direitos e liberdades, da reconstrução da Democracia em um país, e da tutela dos direitos das violadas vítimas, conceitos estes alinhados com o Sistema Global de proteção aos direitos humanos e recomendações da Organização das Nações Unidas, com a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Estado brasileiro selecionou somente mecanismos e processos ligados aos direitos à reparação, que atendem de modo insuficiente os direitos à memória e à verdade. Não obstante, no que se refere à responsabilização (direito à justiça) dos agentes públicos que violaram direitos humanos no período ditatorial, à revelia das regras de Direito Internacional, foi-lhes concedida a anistia, o que demonstra claramente que a transição democrática tem sido insatisfatória.

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Advogado. Universidade Federal do Maranhão.

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Palavras-chave: Direito Internacional dos Direitos Humanos. Justiça de transição. Transição democrática brasileira. Abstract: The idea of Transitional justice is closely linked to the right to social memory, truth, restoration and justice, which emerge from the notion of nonrepetition of violations of rights and freedoms and the need for rebuilding democracy and protecting the rights of rape victims – all in line with the United Nations Global System for protecting human rights, the American Convention on Human rights, and the jurisprudence of the Inter-American Court of Human Rights. Notwithstanding, in order to achieve these goals, the Brazilian government selected only tort mechanisms and procedures, which do not meet the rights of memory and truth. Furthermore, amnesty was granted to public officials who violated human rights during the dictatorial government, with complete disregard of rules of international law, evincing that the transition to democracy has been clearly unsatisfactory. Keywords: International Human Rights Law . Transitional justice. Brazilian democratic transition .

Introdução A justiça de transição é o conjunto de processos e mecanismos ligados a uma transformação segura de um Estado violador dos direitos humanos para um Estado democrático, na qual destacam-se os seguintes aspectos: a garantia aos direitos à memória, à reparação e à justiça, bem como a reforma das instituições democráticas (SIKKINK; WALLING, 2007). Neste estudo, intenta-se verificar a extensão da justiça que marca a transição brasileira da ditadura militar para o período democrático e sua contribuição para o processo democrático e os direitos humanos,  

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por meio da perspectiva da proteção internacional dos direitos humanos, dos caminhos trilhados pelo governo brasileiro e da opinião dos doutrinadores sobre o que representa uma justiça de transição de qualidade.

1. A Justiça de Transição brasileira Conforme Piovesan (2010b), o período que marcou a ditadura militar no Brasil (1964 a 1985) acarretou o desaparecimento forçado de 150 pessoas, a morte de 100, além de denúncias que superam a soma de 30.000 casos de tortura, de autoria de agentes públicos orientados pela doutrina da Segurança Nacional. Anote-se que o Brasil não foi o único país a passar por uma ditadura na segunda metade do século passado na América Latina, ao que se somam, por exemplo, as ditaduras chilena, argentina e peruana. Outrossim, a ditadura militar brasileira foi a menos agressiva, apesar de, igualmente, ter provocado crimes contra a humanidade e implicado nas mais variadas violações a direitos humanos. Não obstante, o Brasil paulatinamente avançou para a Democracia, utilizando os militares a Lei de Anistia (Lei n. 6.683/79) – que anistiou tanto rebeldes como agentes públicos - como um meio para se desvincularem do poder, sem que se perdesse o controle sobre esse processo (PAYNE et alii, 2011, p. 28) Tal processo, de grande repercussão, inclusive internacional, é denominado transição democrática, da qual decorre a justiça de transição. A importância de uma justiça de transição aparece na necessidade de recomposição dos direitos humanos violados e de reconstrução do processo democrático desconstituído por um Estado autoritário. Assim, a comunidade científica jurídica e também das disciplinas que marcam o estudo da sociedade ao redor do mundo, têm destinado parte de sua aten  

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ção a essa específica justiça, voltada aos Estados que passaram por um período de exceção (a Democracia). Observe-se que a própria discussão acerca da justiça de transição, ou seja, sobre as ações ou omissões tomadas por um Estado para sanar graves violações de direitos humanos cometidas no passado, frutos de um regime de força, é relevante, porquanto atualmente os direitos humanos estão protegidos internacionalmente, o que indica a priori que a justiça de transição não é somente um problema de direito interno. A internacionalização dos direitos humanos se iniciou na segunda metade do século XIX, perdurando até a 2ª Grande Guerra. Nessa primeira fase, restringiuse a influenciar o direito humanitário, a luta contra a escravidão e a regulação dos direitos do trabalhador assalariado (COMPARATO, 2011, p-67-68). Assim, o Direito Internacional voltava-se apenas de modo setorial para a proteção dos direitos humanos. Entretanto, após as atrocidades e constantes violações de direitos humanos decorrentes da Segunda Guerra Mundial, tornou-se insuficiente a proteção internacional dos indivíduos limitada a certas condições ou situação determinadas. Daí estes acontecimentos culminarem no advento das Declarações Universal e Americana dos Direitos Humanos, de 1948, ao que teve início o processo de generalização dos direitos humanos (TRINDADE, 2000, p.23). Na mesma esteira, Ian Brownlie informa que: Os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e a preocupação em prevenir a repetição de catástrofes associadas às políticas internas das Potências do Eixo levaram a preocupação crescente pela proteção jurídica e social dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais. Um pioneiro notável neste campo foi Hersch Lauterpacht, que salientou a necessidade duma Declaração Internacional dos Direitos do Homem. As disposições da Carta das Nações Unidas fornecem também uma base dinâ-

 

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mica para o desenvolvimento do Direito. (1997, p. 587-588)

Isso ocorreu pois houve, em verdade, um deslocamento da discussão doutrinária – entre os autores modernos: Alexy (2011), Perez Luño (2001) e Vargas Ramírez (1997) - acerca da origem, ou seja, do fundamento dos direitos humanos, para o problema da eficácia. É que a Declaração Universal dos Direitos do Homem solucionou o problema do fundamento, sendo prova de fato de que um sistema de valores pode ser humanamente fundado e reconhecido, uma vez que foi o primeiro a ser aceito pelo consenso da maioria dos homens, por meio de seus governos (BOBBIO, 2004, p. 25-45). Assim, Norberto Bobbio destaca que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político.” (2004, p. 23). Retomando o processo de generalização dos direitos humanos, este se caracterizou precisamente pela preocupação política com relação à tutela internacional dos direitos humanos. Desse modo, diversos e inúmeros instrumentos jurídicos de proteção começariam a existir e ser construídos. Esses instrumentos passariam a se caracterizar pela diversidade de meios e identidades de propósito, tendo em vista que, apesar de se diferenciarem quanto a suas origens, naturezas, efeitos jurídicos, âmbitos de aplicação, destinatários, beneficiários, exercícios de funções e seus mecanismos de controle e supervisão, possuiriam uma convergência direcionada à manutenção da pessoa humana de acordo com esta qualidade (TRINDADE, 2000, p. 24-25). Entre esses instrumentos, a professora Danielle Annoni elenca os seguintes:  

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(...) a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948); a Convenção Europeia para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Conselho de Europa, 1950); o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966); o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU, 1966); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ONU, 1968); a Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA, 1969); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU, 1979); a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes (ONU, 1984); a Convenção sobre os Direitos das Crianças (ONU, 1989), dentre inúmeros outros de alcance regional, como as Convenções aprovadas pela OEA e válidas para o sistema americano, as Convenções Africanas e da Liga Árabe (2009, p. 26-27).

Ademais, agregou-se a este fenômeno a superação das objeções clássicas: à intervenção internacional, a qual impossibilitou aos Estados utilizarem o conceito de soberania como argumento contra a ação internacional; a cristalização e o reconhecimento da capacidade processual internacional dos indivíduos; a limitação do princípio da reciprocidade diante de questões de ordem pública, na qual se inclui a proteção aos direitos humanos; e, por fim, a progressiva atribuição ou asserção da capacidade de agir dos órgãos internacionais fundamentada nos instrumentos jurídicos (TRINDADE, 1991, p.3-12). Formou-se, ao final de cinco décadas, um complexo corpo de regras jurídicas que mantiveram a unidade conceitual dos direitos humanos atrelada à inerência dos direitos ao ser humano. A este complexo deu-se o nome de Direito Internacional dos Direitos Humanos (TRINDADE, 2000, p. 24-25). Cabe observar que os tratados internacionais que, com o auxílio das declarações – especialmente as  

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provindas da ONU - compõem a fonte do Direito Internacional dos Direitos Humanos estão submetidas ao regime objetivo das normas de direitos humanos2. Tal regime implica que esses tratados, ao revés do costumeiro, não sintetizarão apenas obrigações recíprocas entre os Estados, mas indicarão um dever com a própria sociedade internacional de atenderem a um objetivo último, qual seja, a proteção do ser humano (ANNONI, 2009, p.32-33). Destarte, em síntese, demonstrou-se que os Direitos Humanos estão hoje garantidos sob a unidade conceitual da proteção ao homem enquanto ser humano em inúmeros tratados. Assim sendo, considerando que a justiça de transição busca reparar os direitos humanos violados por um regime autoritário, confirma-se a primeira afirmação: a justiça de transição, especialmente quando insuficiente, é também uma questão de Direito Internacional. Além disso, cabe comentar que a própria internacionalização dos direitos humanos só se deu de modo efetivo no momento em que o próprio mundo passava por uma transição entre uma época extremamente violenta para outra em que se prometia um mundo de respeito aos direitos do homem. Assim, a justiça de transição está na raiz da internacionalização dos direitos, sendo o Tribunal de Nuremberg uma das origens dessa justiça. Por outro lado, o problema da responsabilização internacional por violação de direitos humanos, decorrente da proteção internacional aos direitos humanos, desenvolveu-se, uma vez que funciona como método para se chegar à reparação, como uma resposta dos organismos internacionais contra o responsável pela injúria ao direito humano internacionalmente tutelado. 2

Registre-se que “o regime objetivo dos direitos humanos já foi reconhecido no âmbito das instâncias especializadas em direitos humanos” (ANNONI, 2009, p. 33)

 

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Apesar de ter havido algumas tentativas de se codificar internacionalmente as regras sobre a responsabilidade internacional, vale ressaltar que este instituto é eminentemente consuetudinário (ANNONI, 2009, p. 39). De qualquer modo, não se pode olvidar que: (...) o Estado tem o dever jurídico internacional de prevenir razoavelmente as violações dos Direitos Humanos, investigando seriamente as que são cometidas no âmbito de sua jurisdição, identificando os culpados e assegurando, assim, para a vítima, uma reparação equitativa (PEREIRA, 2000, p. 164).

E o descumprimento desse dever jurídico, tanto por ação como por omissão3, ensejará a responsabilização internacional, para que se garanta a hegemonia dos direitos humanos. Nessa esteira, o art. 63, par. 1º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, afirma que quando a violação de direito ou liberdade for procedente, a Corte Interamericana determinará a reparação da violação, bem como o pagamento de indenização à vítima. Comentando esse dispositivo, os professores Luiz Flávio Gomes e Valerio Mazzuoli explicam: Assim, nos casos constatados de violação de direitos humanos, a Corte determinará [sic] sejam reparadas, as consequências da medida ou situação que haja configurado a violação de direitos e determinará uma indenização justa (de caráter compensatório) à parte lesada. (...). Daí se entender que o sistema interamericano é um sistema eminentemente reparador. (2011, p. 329-330) 3

“Essa responsabilidade, contudo, não se manifesta apenas de modo comissivo. A omissão também gera responsabilidade, quando o indivíduo ou o Estado tinham o dever legal de prestar, de atuar, de impedir a lesão ou dano causado. E o Estado é assim responsável também no foro internacional”. (ANNONI, 2009, p. 39)

 

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Repise-se que em tema de direitos humanos os próprios indivíduos terão capacidade postulatória frente aos organismos internacionais4, ainda que contra o seu próprio país de origem. No entanto, tirante o âmbito da Convenção Americana, essa capacidade constituise dentro dos tratados internacionais cláusula facultativa, o que a torna sem efeito contra os Estados que não expressem seu consentimento prévio. Sobre o tema, o professor Cançado Trindade demonstrando a importância deste, ao afirmar: With the consolidation of the right of individual petition before international tribunals of human rights, international protection has attained its maturity. The human being nowadays occupies the central position which he merits, as subject of both domestic and international law, amidst the process of humanization of international law, which is becoming more directly attentive to the identification and realization of common superior values and goals.5 (2011, p. 49)

Interessa ainda notar uma segunda particularidade da responsabilidade internacional por violação de direitos humanos. É que há uma certa rejeição ao clássico mecanismo unilateral dos tratados bilaterais, no qual dado Estado combate a violação individualmente, 4

“O mais interessante é que como o respeito aos Direitos Humanos constitui uma obrigação de Direito Internacional o súdito afetado por um evento danoso, pode e deve aparelhar contra o Estado causador de tal evento, sem necessariamente utilizar seu Estado como intermediário, através do endosso diplomático”. (PEREIRA, 2000, p. 159) 5 “Com a consolidação do direito individual de petição frente aos tribunais internacionais de direitos humanos, a proteção internacional alcançou sua maturidade. O ser humano atualmente ocupa a posição central que ele merece, como assunto do direito interno e internacional, por meio do processo de humanização do Direito Internacional, que vem se tornando mais diretamente atencioso à identificação e realização de valores e objetivos comuns e superiores” (Tradução livre).

 

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oferecendo sanções a outro que tenha violado direitos humanos. A rejeição ocorre porque esse mecanismo poderia servir como instrumento de pressão política e econômica, por meio de um Estado mais desenvolvido que pressionasse outro menos desenvolvido, acarretando a dilapidação da soberania dos países mais frágeis. Diante disso, adotou-se o mecanismo coletivo, que implica na adoção do devido processo legal. Daí que o julgamento relativo à responsabilização dos Estados que violem direitos humanos se dará através de mecanismos similares aos jurisdicionais, por meio de órgãos especializados6. Anote-se que apesar do processo de generalização dos direitos humanos ter sido aqui desenvolvido de forma linear, é preciso destacar, conforme Sikkink (2011b), que a denominada “Era da Responsabilização”, na qual se vive hodiernamente, foi alcançada não através de um processo histórico único, mas múltiplo, em que os acontecimentos convergiram. A partir disso, verifica-se que uma justiça de transição de má qualidade, que não revele uma efetiva reparação por parte de um Estado em reconstrução democrática, poderá ensejar a sua consequente responsabilização7. Mas então, o que se entende por justiça de transição? O professor José Carlos Moreira da Silva Filho a conceituou da seguinte forma: Justiça de transição é um termo de origem recente, mas que pretende indicar aspectos que passaram a ser cruciais a partir das grandes guerras mundiais deflagradas no século XX: o direito à verdade, à

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Sem que se julgue a justiça e a qualidade jurídica da decisão, vale ressaltar que no caso denominado “Guerrilha de Araguaia”, procedeuse pela Corte Interamericana a responsabilização do Estado brasileiro por violação de direitos humanos relativa à qualidade da justiça de transição brasileira.

 

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memória, à reparação e à justiça e o fortalecimento das instituições democráticas. O foco preferencial da justiça de transição recai sobre sociedades políticas que emergiram de um regime de força para um regime democrático (SILVA FILHO, 2011, p. 280).

Depreende-se desse conceito que a justiça de transição é composta: do direito à verdade, que significa a revelação da história escondida; do direito à memória, do qual decorre que as violações de direitos humanos não devem ser esquecidas; do direito à reparação, que visa devolver às vítimas a situação anterior à violação de seus direitos e liberdades, bem como no pagamento de indenização, quando os danos forem irreversíveis; do fortalecimento das instituições democráticas, que é voltado para a democratização de instituições afetadas pelo regime antidemocrático anterior; e, por fim, do direito à justiça, que revela a necessidade de punição aos agentes públicos que dilapidaram direitos humanos. Esses direitos que a compõem, deve-se ressaltar, são métodos e mecanismos, que possuem o fim de reconstruir a Democracia em um país outrora autoritário, para que se alcance o efetivo respeito aos direitos humanos. Descrevendo este contexto, Kathryn Sikkink leciona: Desde a década de 1980, os Estados não estão apenas iniciando os processos, mas também estão, cada vez mais, usando diversos mecanismos alternativos de justiça transicional, incluindo as comissões da verdade, reparações, anistias parciais, depuração, museus e outros ‘locais de memória’, arquivos e projetos de história oral, para tratar de violações dos direitos humanos cometidos no passado. (2011b, p. 43)

Desse modo, é a partir desse contexto da crescente proteção aos direitos humanos aliada a um uso  

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frequente pelos Estados de mecanismos de transição, que se analisará o caso brasileiro. O estudo do caso brasileiro nesse contexto possui peculiar significado. É que a evolução da justiça transicional se desenvolveu com ineditismo e amplitude de um lado, especialmente no que concerne ao programa de reparação, embora com ausência persistente de julgamentos de outro, e atuação insuficiente quanto ao direito à memória e à verdade. A justiça de transição é ainda importante no Brasil, porquanto o Estado brasileiro tenha vivenciado um período de ditadura militar (após 1964 e até o período próximo da Constituição de 1998) caracterizado pela restrição de direitos fundamentais, com seu respectivo declínio decorrente do retorno do movimento democrático ao país. Na contramão da decisão do STF, a justiça de transição até então praticada no Brasil vem sofrendo novos desafios, especialmente no âmbito internacional, no qual se destaca recente sentença da Corte Interamericana no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha de Araguaia”) vs. Brasil, condenando a este investigar, punir e reparar as violações de direitos humanos perpetradas. Nesse compasso, merece ser posta em relevo a criação da Comissão Nacional da Verdade, pela Lei n.12.528 de novembro de 2011, com o objetivo de esclarecer as violações de direitos humanos pertinentes ao período entre 1946 e 1988, o que vem a trazer nova tônica no que diz respeito ao direito à verdade e à memória histórica. Como o Estado brasileiro não adotou, dentre os mecanismos transicionais estudados, apenas os julgamentos, adotando ainda que de forma mínima os demais mecanismos (a reparação, a reforma das instituições democráticas, a memória e a verdade) e diante da completa ausência de julgamentos, o tópico em seguimento abordará especialmente essa linha específica.  

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Assim, as perguntas a serem respondidas serão: (1) a escolha do Estado brasileiro pela ausência de julgamentos está em conformidade com as prescrições do Direito Internacional dos Direitos Humanos?; (2) a ausência de julgamentos torna o modelo de transição brasileiro efetivo? Em relação ao primeiro questionamento, algumas considerações preliminares devem ser feitas. Primeiramente, o Brasil é parte hoje nos principais tratados sobre direitos humanos no âmbito global e no âmbito do sistema interamericano, portanto a pergunta será respondida com relação a estes âmbitos. Em segundo, deve ser frisado que a Lei de Anistia brasileira abrangeu tanto violadores como opositores do regime e, outrossim, que foi fruto de um processo de transição negociada e controlada pelo regime militar. Adicionalmente, anote-se, no que tange a este segundo ponto, que Borges (2012, p. 92-94) e Bastos (2009, p. 195-198) entendem que, por conta de ter impedido julgamento contra ambas as partes (agentes públicos e opositores), a anistia brasileira deve ser classificada como “autoanistia” ou anistia de via dupla8, que tem como característica fazer esquecer as graves violações de direitos humanos cometidas pelos agentes do Estado durante o período de exceção9.

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Bastos também classifica a anistia brasileira como anistia em branco, sendo que esta classificação tem o significado muito próximo ao de “autoanistia”, significando que: “é normalmente concedida por influência de ditadores que estão se retirando do poder, sem que haja qualquer legitimidade nacional ou internacional” (2009, p. 118). 9 “O processo de transição democrática brasileira, assim como o de outras nações latino-americanas, partiu do pressuposto de que os direitos das vítimas eram variáveis menores do processo de transição e que, se fossem sobrelevadas, poderiam colocar em risco a própria reconciliação. As leis de anistia, entendidas por Elizabeth Salmon como ‘mecanismos exculpatórios que nem sempre buscam a reconciliação da nação’, constituíram uma solução unilateral dos governos, com o claro objetivo de promover o esquecimento dos

 

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Desta feita, conforme visto, a anistia como possível mecanismo da justiça de transição é geralmente incompatível com o Direito Internacional, sendo que as leis “autoanistias” são veementemente confrontadas pela jurisprudência interamericana e que o sistema global ainda não possui uma posição uniforme sobre o tema, apesar de existir uma tendência para considerálas incompatíveis10. Logo, a princípio, chega-se à conclusão de que a anistia brasileira é incompatível, em primeiro lugar, com o sistema interamericano de direitos humanos, por se tratar de uma “autoanistia”, e provavelmente incompatível, a depender da interpretação casuística da própria ONU, frente ao sistema global11. Nessa esteira, a Lei de Anistia brasileira, como elemento impeditivo da realização do dever dos Estados (do brasileiro, no caso) de perseguir e punir violadores de direitos humanos, não se insere na lógica da atual jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e se encontra em desconformidade com o Relatório S/2004/616 do Secretário-Geral do Conselho de Segurança das Nações Unidas e com a Recomendação Geral n. 20, de abril de 1992, adotada pelo Comitê de Direitos Humanos. crimes cometidos por seus próprios membros e funcionários.” (PETRUS, 2010, p. 277). 10 No mesmo sentido, concluem Gomes e Mazzuoli: “A Lei de Anistia brasileira viola vários tratados internacionais (especialmente a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969) e não possui nenhum valor jurídico, sobretudo o efeito de acobertar os abusos cometidos pelos agentes do Estado durante a ditadura militar.” (2011, p. 159). E também Borges, que comentando a decisão brasileira sobre a ADPF n.º 153, afirma: “Enfim, o Brasil, sob a vertente do direito internacional e dos tratados internacionais, como, por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos, Declaração Universal de Direitos Humanos, a Convenção contra a Tortura, parece ter o dever de fornecer um remédio eficaz para as vítimas de graves violações dos direitos humanos.” (2012, p 105).

 

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Diante deste panorama de incompatibilidade com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, no âmbito interno, tentou-se, por via da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153/2008, ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, a reinterpretação do parágrafo único da Lei de Anistia, em conformidade com a Constituição Federal 1988, de modo que a expressão “crimes políticos ou conexos” não abrangeria os crimes comuns cometidos pelos agentes da repressão (RAMOS, 2011, p.180). A ADPF nº 153 também marcou a ocorrência de um fato inédito, porquanto pela primeira vez, ao mesmo tempo em que a ADPF – ação com efeito vinculante e erga omnes - era julgada no Supremo Tribunal Federal, estava sendo processada perante a Corte Interamericana uma causa com objetivo semelhante (caso Brasil vs. Gomes Lund e outros) (RAMOS, 2011, p. 182). Entretanto, no dia 2 de abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de seus membros, julgou improcedente a ação, decidindo pela extensão dos efeitos da lei aos agentes da repressão (BORGES, 2012, p. 102-103). No voto do relator, restou rechaçado o tratamento dos delitos em questão como crimes contra a humanidade, afirmada a ausência da obrigação internacional do Estado brasileiro de investigar e punir tais crimes, além da impossibilidade de punir tais crimes por força do princípio constitucional da prescrição (VENTURA, 2011, p. 326). Registre-se que a repercussão internacional, em relação à decisão, foi bastante negativa, tendo recebido críticas da ONU, através de sua Alta Comissária para Direitos Humanos, Navi Pillay, e da ONG International Center for Transitional Justice, por via de seu presidente, David Tolbert (BORGES, 2012, p. 104-105). Parte da doutrina, da mesma forma, posicionouse contrária à decisão do STF. Neste sentido, por exemplo, Deisy Ventura afirma que:

 

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Perenizou-se uma equação conjuntural do Poder Legislativo brasileiro, aliás, reconhecida em muitos trechos do acórdão: a anistia possível, em 1979, foi aquela. Mas isso não significa que ela seja lícita. Sacrificar os direitos de muitos, e inclusive princípios universais, para proteger o privilégio de alguns poucos faz parte desse provincianismo [que significa desconhecimento da jurisdição internacional]. (2011, p. 342).

E também Flávia Piovesan, para quem: Com esta decisão, o Supremo Tribunal Federal denegou às vítimas o direito à justiça – ainda que tenha antecipado seu endosso ao direito à verdade. Não apenas denegou o direito à justiça, como também reescreveu a história brasileira mediante uma lente específica, ao atribuir legitimidade políticosocial à lei de anistia em nome de um acordo político e de uma reconciliação nacional. (2010a, p. 466)

Desse modo, o que resta constatado é que o Estado brasileiro, através do Poder Judiciário, escolheu manter a interpretação da Lei de Anistia brasileira, por meio do argumento político de que esta foi fruto de um acordo político e é uma forma de promover a reconciliação nacional, o que, como visto, é uma noção inexata, tendo em vista que a transição brasileira, apesar de poder ser classificada como negociada, foi controlada desde o seu início pelo regime militar. Em relação aos argumentos jurídicos, estes se mostram contrários ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, porquanto, no momento em que o Estado brasileiro aderiu à Convenção Interamericana de Direitos Humanos e à Convenção contra a Tortura, ambos tratados sobre direitos humanos, e à Declaração Universal dos Direitos Humanos, passou a ser obrigado perante a comunidade internacional a proteger os direitos humanos, obrigação esta que não é bilateral,

 

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como são as obrigações ordinárias originárias de tratados, mas de ordem pública. E entre tais obrigações, como se viu, está o dever de perseguir e punir as violações de direitos humanos, as quais ocorreram em série durante o período de exceção, notavelmente, através de exílios, desaparecimentos forçados, prisões perpétuas, execuções extrajudiciais e torturas. Neste caso, quando se está diante de crimes contra a humanidade, não há como se aplicar a prescrição12, uma vez que o próprio período de exceção é um óbice à persecução penal. De fato, entre as violações ocorridas, pode ser que existam violações que não se tratem de crime contra a humanidade ou grave violação de direitos humanos e, portanto, possa prescrever normalmente, porém tais casos deveriam ser analisados concretamente e não de forma abstrata (VENTURA, 2011, p. 334). Internacionalmente, entretanto, o descumprimento brasileiro reiterado da obrigação de perseguir e punir teve consequência em termos de responsabilidade internacional. 12

Sem que se entre com profundidade no tema, veja-se: “(...) comento que me causa certa graça supor que o princípio da imprescritibilidade dos contra a humanidade estaria condicionado a assinatura, ratificação e incorporação de uma convenção internacional por uma junta militar, em pleno ano de 1969, a mesma que, no ano seguinte, o de 1969, como já mencionei, emendou arbitrariamente a Constituição para instituir as penas de morte, prisão perpétua, banimento e confisco” (VENTURA, 2011, p. 327) E mais à frente: “Os crimes contra a humanidade são imprescritíveis, sobretudo porque, amiúde, há, nos Estados em que são praticados, a impossibilidade material de processo de grandes violadores, antes que a remoção do entulho ditatorial opere-se no ordenamento jurídico nacional, critério temporal que não é passível de medição. No caso brasileiro, em particular, é notoriamente inacabada. E acrescento: a prescrição só pode ser arguida caso a caso, no seio do processo individualizado, não podendo a Corte Suprema fundar interpretação de uma lei de anistia no aventureiro pressuposto de que todos os crimes por ela abarcados prescreveram.” (VENTURA, 2011, p. 334).

 

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Assim, em 26 de março de 2009, com base em violações dos arts. 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (garantias judiciais), 13 (liberdade de pensamento e de expressão) e 25 (proteção) da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, combinados com as obrigações previstas nos arts. 1.1 (obrigação geral de respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) do mesmo tratado, a Comissão Interamericana apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos demanda contra o Estado brasileiro, originada de petição apresentada pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela Human Rights Watch/Americas, em representação de pessoas vítimas de desaparecimento forçado no contexto da Guerrilha de Araguaia, com fim de forçar o Estado brasileiro a adotar medidas de reparação13 (OEA, 2010, p.3-4). Tal demanda foi originada da responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas (entre elas, membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região), além da execução extrajudicial de M. L. P. S., resultado de operações do Exército brasileiro, empreendidas entre 1972 e 1975, com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, durante o período de exceção (OEA, 2010, p. 3-4). Consequentemente, conforme Ramos (2011, p. 199-202) e a Organização dos Estados Americanos (2010, p. 114) em 24 de novembro de 2010, alguns meses após sentença do STF que decretou a improcedência da ADPF n.º 153, a Corte Interamericana condenou 13

Registre-se que anteriormente, em 31 do 10 de 2008, a Comissão já havia elaborado o Relatório de Mérito 91 de 2008, o qual, responsabilizando o Estado brasileiro recomendou ao Brasil que adotasse medidas de reparação (OEA, 2010, p. 3).

 

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a República Federativa do Brasil, afirmando que: a Lei de Anistia brasileira é incompatível com a Convenção Americana; o Brasil é responsável de forma permanente pelos desaparecimentos forçados; o direito à verdade foi violado; houve violação ao direito à integridade pessoal dos familiares das vítimas14; e, por fim, as alegações de prescrição e falta de tipificação penal prévia não podem ser utilizadas como obstáculos à persecução penal. Demais disso, há ainda dois aspectos que merecem ser ressaltados. O primeiro (já mencionado) é o de que a própria Corte Interamericana concluiu diretamente que a Lei de Anistia brasileira (classificada como “autoanistia”) não é compatível com a Convenção Interamericana. O segundo aspecto é o de que, entre as reparações impostas pela sentença da Corte, esta exortou a iniciativa brasileira de criar a Comissão Nacional da Verdade (até então não criada), desde que em conformidade com os critérios de independência, idoneidade e transparência, e que a Comissão não substituísse a obrigação brasileira de responsabilizar individualmente os agentes da repressão (OEA, 2010, p. 107). Constada a ilegalidade do Estado brasileiro frente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, especialmente em relação à Convenção Interamericana, resta uma questão a ser solucionada. É que, se o modelo atual brasileiro fosse o mais capaz (ou seja, um mo14

Gomes e Mazzuoli, enfatizando alguns aspectos da sentença, afirmam: “Aliás, como bem enfatizou a sentença de 24.11.2010 da Corte Interamericana, nem sequer a decisão do STF, que validou a Lei de Anistia em abril de 2010 possui qualquer tipo de relevância (ou obrigatoriedade/eficácia) no plano jurídico internacional. A Corte não revogou a decisão do STF, porque não é essa sua função. Ela simplesmente analisou a decisão do STF no plano do controle de convencionalidade. E concluiu que o STF não levou em conta os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificado pelo Brasil (Convenção Americana sobre direitos Humanos [sic] de 1969) na sua decisão.” (2011, p. 160).

 

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delo efetivo) de dar continuidade à transição democrática, haveria como argumentar, frente aos organismos internacionais, se tratar a situação brasileira de uma exceção, na qual a anistia seria admissível. No capítulo passado, chegou-se à conclusão de que a melhor abordagem para tornar uma justiça de transição efetiva é a holística, na qual se percebe que existem situações nas quais as anistias são admissíveis, porquanto mecanismos eficientes na efetivação de uma transição democrática, sendo que a justiça deve ser implementada tanto quanto possível, tendo em vista, além das exigências do Estado de Direito, a ampliação do respeito aos direitos humanos. Desta dicotomia, extraiu-se, com fulcro na pesquisa de Olsen et alii (2009, p. 157-158), a conclusão de que quando a transição for negociada (como no caso brasileiro), a melhor resposta seria uma anistia seguida de julgamentos, devendo os julgamentos ser realizados assim que possível e desde que possível, do ponto de vista econômico e da possibilidade de conflito interno. Rememore-se, nesse sentido, que a pesquisa de Sikkink e Walling (2007), constatou que não há relação entre conflitos e julgamentos, e, ainda, que há indícios de que os julgamentos são capazes de melhorar os índices de proteção aos direitos humanos no Brasil. A situação brasileira, conforme estudado acima, é de uma transição controlada pela ditadura militar, na qual a Lei de Anistia - promulgada no início da abertura política em 1979 e irradiando efeitos até o presente momento - abrange, na interpretação que lhe vem sendo dada, de forma irrestrita os agentes da repressão. Por outro lado, também não há expectativa imediata de que essa situação se transforme, tendo em vista que a decisão mais recente do STF foi no sentido de manter a anistia aos agentes públicos e que não se observa nos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo qualquer tendência de buscar o fim da situação. Dito isso, não há como reconhecer que a anistia tenha alguma função atual na transição democrática  

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brasileira, sendo o modelo transicional brasileiro sem efetividade, porquanto não lança mão de todos os mecanismos necessários e possíveis (especificamente julgamentos), ainda quando coagido pela ordem internacional, para efetivar a transição. Nesse caso, a conduta brasileira adequada, do ponto de vista dos parâmetros de efetividade da justiça de transição, seria, após a concessão de anistias, iniciar os julgamentos, assim que possível, ou seja, assim que o regime político estivesse a salvo do controle ou de um revés militar. Demais disso, além da ausência de julgamentos, o primeiro tópico deste capítulo revelou que ainda há alguma deficiência na prestação dos outros mecanismos da justiça de transição, como a reforma das instituições, a qual até o momento ainda não se realizou com firmeza no âmbito do sistema de segurança pública e das Forças Armadas, e prestação de verdade e memória, que, conquanto possua expectativa de melhora com a Lei de Acesso à Informação e a criação da Comissão da Verdade, ainda vive sob a pressão e ausência de prestação de informações por parte dos agentes militares. Nesse sentido, Bruno Barbosa Borges entende que: (...) percebe-se que o Brasil, apesar de ter avançado na superação do seu passado ditatorial, principalmente no que tange às reparações às vítimas e seus familiares, ainda não cumpriu seus deveres com relação à verdade, à justiça, e, muito menos, conseguiu realizar todas as reformas institucionais. (2012, p. 162)

Assim, embora tais mecanismos não tenham sido o alvo principal deste tópico, é forçado reconhecêlos ao menos como motivo concorrencial para considerar a justiça de transição brasileira um modelo sem efetividade.  

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Desse modo, conclui-se que, além da Lei de Anistia brasileira ser incompatível com o Direito Internacional dos Direitos Humanos (na forma explicada acima), o modelo transicional brasileiro não corresponde a um modelo que siga as tendências, demonstradas por pesquisas atuais, acerca da forma efetiva de se realizar uma transição democrática, isto é, o modelo transicional brasileiro não é um modelo efetivo.

1.1 O potencial da Comissão da Verdade na efetivação da transição democrática brasileira A Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei n. 12.578/2011, possui a finalidade, conforme o art. 1º da citada lei, de examinar e esclarecer as violações praticadas durante o regime de exceção, com o fim de efetivar os direitos à memória e à verdade, além de promover a reconciliação nacional. Note-se que não há nela qualquer finalidade de promover julgamentos quanto aos agentes da repressão15. De fato, ela não possui o fim de sanar a mora no adimplemento da obrigação internacional do Estado brasileiro relativa ao direito à justiça, mas tão somente o de ampliar a prestação do direito à verdade e à memória histórica. Atualmente, tendo em vista que a Comissão só foi efetivamente instalada em 16 de maio de 2012, ainda não se pode traçar uma linha de atuação (JINKING e LOURENÇO, 2012). Não obstante, já existem indícios de que ela adotará uma postura autônoma, porquanto recentemente, mesmo sob pressão de setores das Forças Armadas para abranger em sua atuação os crimes supostamente cometidos pelos opositores, decidiu, através de Resolução publicada no Diário Oficial da 15

 

Tal fim é inclusive vedado pelo art. 4º, § 4 , da Lei 12.578/11. o

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União, restringir a apuração aos agentes da repressão (COMISSÃO, 2012). Diante desse panorama, afigura-se mais proveitoso tratar acerca do potencial impacto que a Comissão Nacional da Verdade pode ter no modelo transicional brasileiro e, assim, na efetivação da transição democrática brasileira, isto é, acerca dos resultados que se podem esperar da Comissão. Para este fim, brevemente serão analisados quatro estudos, sendo três deles específicos sobre a Comissão da Verdade brasileira e o outro de âmbito mais geral. Os quatro estudos são os seguintes: WiebelhausBram (2009), Coelho Filho (2012) e Ghione (2012), os específicos; e Reiter et alii (2010), o geral. Reiter et alii (2010, p. 475-476), após afirmarem que os dados estatísticos indicam uma tendência das Comissões da Verdade a piorarem a situação dos direitos humanos, quando não utilizadas em combinação com a interação entre a estabilidade proporcionada pela anistia e a accountability provinda dos julgamentos, chegam à conclusão de que: As descobertas neste artigo demonstram o valor de tanto de isolar os mecanismos de justiça transicional como de estudar as interações para determinar quando, como e por que eles alcançam objetivos importantes da justiça social. Nós concluímos que o sucesso na ampliação da proteção dos direitos humanos apresenta melhores resultados quando parte da interação entre a função de accountability provinda dos julgamentos ou a estabilidade proporcionada pelas anistias. Nossa análise qualitativa e quantitativa sugere que comissões da verdade podem possuir um papel importante na melhora do equilíbrio da justiça e na promoção dos direitos humanos.16 (2010, p. 476).

16

“The findings of this article demonstrate the value of both isolating transitional justice mechanisms and studying their interactions to

 

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Desse modo, se o uso isolado da Comissão da Verdade poderia ter um impacto negativo, a análise de Reiter et alii (2010) conclui que ela pode ter um impacto positivo, desde que combinada com anistia e julgamentos17. Neste caso, a perspectiva para o caso brasileiro, no qual se adotaram unicamente julgamentos, é a de que a Comissão Nacional da Verdade pode ter impactos negativos em relação aos direitos humanos18, caso o Estado brasileiro não passe a adotar julgamentos, no que completaria a interação entre a anistia e os julgamentos. Interessante notar, nessa esteira, que a opinião de Ghione (2012) é a de que a Comissão da Verdade brasileira pode ser um primeiro passo na adoção da justiça retributiva e, assim, de julgamentos, porquanto, a depender do impacto dos seus relatórios, é possível que a sociedade brasileira passe a pressionar as instâncias públicas pela revogação da Lei de Anistia. Ainda em relação à Comissão da Verdade, Ghione (2012) entende que ela está bem equipada para criar uma memória histórica, especialmente pelo poder determine when, how and why the achieve important social justice goals. We conclude that success in improving human rights protection most likely results from the interaction of trials’ accountability function and amnesties’ stability function. Our quantitative and qualitative analysis suggests that truth commissions can play a valuable role in enhancing that justice balance and in promoting human rights.” (original em inglês). 17 Vale lembrar que esta interação pode se dar nas seguintes formas: anistia restrita a alguns casos e julgamentos dos principais violadores dos direitos humanos, no caso do regime ter entrado em colapso; anistia seguida de julgamentos posteriores, quando a transição for negociada. 18 Como Reiter et alii (2010, p. 475-476) frisam, os resultados só valem em relação ao objetivo de fortalecer os direitos humanos, não existindo dados para afirmar que a Comissão da Verdade usada sem julgamentos e anistia não possa ter um efeito positivo para outros fins, como produzir verdade oficial que possibilite a sociedade se mover em frente ou dar voz às vítimas.

 

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de acesso a informações fornecido pela lei que a criou. Outrossim, tendo em vista a quantidade pequena de seus membros, pode ser que enfrente alguns problemas práticos. De qualquer forma, Ghione aduz que: “A comissão pode contribuir consideravelmente para a reconciliação nacional se for bem sucedida em trazer o conflito em torno de abusos dos direitos humanos para a atenção do público amplo”19. Wiebelhaus-Bram (2009, p. 22), na mesma linha, entende que o Brasil tem muito a ganhar com a Comissão da Verdade, uma vez que desvelar a verdade pode ser uma forma de muitos sobreviventes e familiares de vítimas passem a se beneficiar de reparações. Além disso, o autor afirma que, mesmo que a Comissão não proporcione nenhuma sanção contra os agentes da repressão, ainda assim ela pode oferecer alguma forma de accountability, fazendo com que sua reputação pública seja desconstruída. Em relação aos obstáculos que a Comissão pode enfrentar, Wiebelhaus-Bram (2009, p.23) aponta dois principais: O primeiro é que os programas de reparações existentes já trouxeram algumas informações. Para conseguir informações além destas, a Comissão da Verdade terá que negociar com os agentes da repressão, pois os documentos podem estar escondidos ou ter sido destruídos, sendo que, sem um meio de incentivo20, será uma tarefa muito difícil cumprir os seus objetivos.

19

“The commission may contribute considerably to national reconciliation if it succeeds in bringing the conflict surrounding past human rights abuses to broad public attention.” (original em inglês). 20 Wiebelhaus-Bram (2009, p. 23) cita o oferecimento de imunidade ou anistia mais segura que a atual, como um poder da Comissão, para extrair informações dos agentes da repressão.

 

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Nessa mesma esteira, merece destaque a conclusão de Coelho Filho (2012), na qual este afirma que o melhor caminho seria a revogação da Lei de Anistia de 1979, de acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana, seguida de anistias individuais para aqueles que cooperassem com a investigação da Comissão Nacional. Assim, termina sugerindo a existência de um compromisso entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana, no qual o Estado brasileiro passaria a respeitar o Direito Internacional. Outrossim, o segundo obstáculo é o de que as violações de direitos humanos atuais podem retirar a atenção da sociedade da memória revelada de 30 anos atrás, assim Wiebelhaus-Bram (2009, p.23) destaca que uma investigação mais ampla, abrangendo também as violações ocorridas desde 1985, pode possuir mais relevância social e melhorar os efeitos da Comissão sobre os direitos humanos no Brasil. Desse modo, conclui-se que a Comissão Nacional da Verdade possui um grande potencial para construir a memória histórica e conscientizar a sociedade acerca das violações cometidas, apesar de ter ainda muitos obstáculos para enfrentar. Por outro lado, caso não se adote julgamentos, existe a possibilidade de que a ela implique um impacto negativo ou impacto nenhum na cultura dos direitos humanos21. 21

“A criação de uma Comissão da Verdade, assim como o processamento internacional do Estado brasileiro, pode produzir desdobramentos positivos ou negativos para o modelo transicional brasileiro. Seu sucesso poderia permitir a localização de arquivos fundamentais para a compreensão do período de repressão, ampliar o processo de reconciliação estatal com as vítimas e, sobremaneira, formular uma narrativa concorrente àquela que vem sendo remasterizada desde a ditadura e que é amplamente incorporada na memória institucional do país. O êxito neste último aspecto singular já seria suficiente para justificar a existência de uma Comissão da Verdade. Inobstante, o fracasso da empresa poderia deslegitimar de modo fatal os movimentos que afirmam a existência de arquivos secretos em mãos particulares e, mais especificamente, a ausência de

 

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Quantos aos julgamentos, é de esperar que os relatórios da Comissão causem impacto suficiente na sociedade para que esta passe a cobrar pelo menos a reinterpretação da Lei de Anistia, com o fim de excluir os agentes da repressão de sua incidência, e assim inclusive cumprir o conteúdo da sentença da Corte Interamericana, retirando o Brasil da mora em relação a suas obrigações internacionais.

Conclusão Por tudo, observa-se um processo transicional que se desenvolveu bastante pelo lado da reparação, tendo atualmente melhorado o sistema de implementação da verdade e memória histórica com o advento da Comissão Nacional da Verdade, mas que desafia o Direito Internacional moderno sobre o tema, baseado na ideia de que a falta de responsabilização pode ocasionar a caracterização de justiça transicional como de má qualidade. Daí emerge a principal característica do caso brasileiro, uma vez que este possui um regime transicional contraditório e que vem sofrendo desafios na seara internacional e interna, além de ser em parte diverso daquele de outros países da América Latina.

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O arcabouço jurídico da Justiça de Transição Comparações teórico-práticas entre Brasil e Argentina

Aécio  Filipe  Coelho  Fraga  Oliveira1   Maria  Gabriela  Freitas  Cruz2   Mariana  Rezende  Oliveira3  

Resumo: A transição entre regimes ditatoriais e o Estado Democrático de Direito não se resume à documentação de relatos sobre as arbitrariedades cometidas pelos agentes da ditadura, mas se expande até as formas de responsabilização criminal e civil do próprio Estado e seus funcionários. Neste estudo, buscamos analisar as divergências, e seus motivos, na maneira de efetivação dessa Justiça de Transição no Brasil e na Argentina, Palavras-chave: Justiça de Transição – Brasil - Argentina Abstract: The transition between dictatorships and a democratic rule-of-law State is not limited to the documentation of reports on the arbitrariness perpetrated 1

Acadêmico do curso de direito da Universidade Federal de Minas Gerais. 2 Acadêmica do curso de direito da Universidade Federal de Minas Gerais. 3 Acadêmica do curso de direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

 

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by public agents. It it also encompasses criminal and civil accountability of the State itself and of those representing it. In this study we analyze the differences between in the execution of Transitional Justice both in Brazil and Argentina. Keywords: Transitional Justice – Brazil – Argentina

1. Introdução Com a comemoração dos 25 anos da atual Constituição Brasileira, verifica-se a necessidade de rever, discutir e analisar o regime militar brasileiro. Nota-se que os crimes cometidos nesse contexto não receberam, de fato, o tratamento correspondente. Justificados pela Lei da Anistia, adotada em 1979, os responsáveis pelas atrocidades cometidas estão, até hoje, impunes. Vale ressaltar, porém, que a permanência dessa lei se configura como um movimento contracorrente ao realizado pelo restante do mundo. Ainda sobre esta, a Lei de 1979 foi fator de condenação do país pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos, em dezembro de 2010, visto que foi considerada uma ferramenta para a perpetuação da impunidade em relação às graves violações cometidas durante a ditadura. Pela Convenção de San José da Costa Rica, considerou-se nulo qualquer efeito da Lei de Anistia1, assim como qualquer efeito limitador que possa ter na investigação e no processamento de qualquer outro crime de Estado. Entende-se, assim, que a atual situação brasileira frente ao seu passado militar se configura como um obstáculo para a norma geral de responsabilização individual. Com essa condenação, verifica-se o ascendente papel do Direito Internacional de exigir dos Estados a proteção real dos direitos humanos, por considerar que tais crimes afetam a comunidade internacional como um todo. Nesse sentido, o art.8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe:  

O arcabouço jurídico da Justiça de Transição

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Toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei. Diante disso, propomos uma análise comparada das reações pós-ditadura no Brasil na Argentina, no intuito de fomentar uma discussão mais rica sobre uma observação analítica dos seguintes aspectos: o contexto histórico, as mudanças legais pós-ditadura e a responsabilização criminal e civil. Antes, porém, é importante abordar o significado de Justiça de Transição, a sua aplicabilidade atual e as críticas que foram feitas a esse estado legal da Justiça nas duas realidades analisadas. O estado de transição, que se verifica entre regimes autoritários e o de democratização, exige um processo de adequação do regime e da sociedade a fim de possibilitar a real inserção da democracia e todos os princípios que, com ela, são absorvidos nesse novo momento. Assim, é necessário que o país afronte o seu passado de desrespeito com os direitos humanos, criando as leis, executando os processos necessários para a reparação das vítimas e a responsabilização dos culpados. Como já definido, justiça de transição seria “(...) como o conjunto de esforços jurídicos e políticos para o estabelecimento ou restabelecimento de um sistema de governo democrático fundado em um Estado de Direito, cuja ênfase não recai apenas sobre o passado, mas também numa perspectiva de futuro4” e tem por objetivo “investigar a maneira pela qual sociedades, marcadas por passados de abusos de direitos humanos, 4

ALMEIDA, Eneá de Stutz e. TORELLY, Marcelo. Justiça de Transição, Estado de direito e Democracia Constitucional: Estudo preliminar sobre o papel dos direitos decorrentes da transição política para a efetivação do estado democrático de direito. Volume 2. Número 2. Porto Alegre. Julho/dezembro 2010.

 

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atrocidades maciças ou diferentes formas de traumas sociais, (...) buscam trilhar um caminho de mais democracia ou apenas de mais paz5.” De fato, a Justiça de Transição foi e é fortemente influenciada pelo cenário nacional e internacional. Iniciou-se pela execução de processos referentes à violação dos direitos humanos, pelos Estados individuais da América Latina6. Em seguida, houve a criação de novas leis internacionais de direitos humanos e leis penais internacionais, culminando em 1988, no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Instituições como a Corte Interamericana de Direitos Humanos atuaram e atuam fortemente nesse apoio na busca de uma configuração sólida de Justiça de Transição. O próximo estágio foi a criação de instituições internacionais ad-hoc específicas, como o Tribunal Ad-Hoc para a Antiga Iugoslávia (ICTY, em inglês)7. Assim, em alguns casos, passou-se a utilizar da jurisprudência internacional como apoio na penalização dos autores de crimes contra os direitos humanos. A Justiça de Transição se consolida em quatro bases: reparação às vítimas, fornecimento da verdade e construção da memória, restabelecimento da igualdade perante a lei e a reforma das instituições perpetradoras dos crimes contra os Direitos Humanos, sendo que essas quatro vertentes serão aqui analisadas na realidade brasileira e argentina. 5

SANTOS, Roberto Lima. Crimes da Ditadura Militar. Responsabilidade Internacional do Estado Brasileiro por Violações aos Direitos Humanos. Porto Alegre. Núria Fabris Ed. 2010. p. 43. 6 PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D.. A anistia na era da responsabilização:contexto global, comparativo e introdução ao caso brasileiro. Brasil: Oxford: Brasília: University Of Oxford; Ministério da Justiça, Comissão de Anistia, 2011. p.156. 7 PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D.. A anistia na era da responsabilização: contexto global, comparativo e introdução ao caso brasileiro. Brasil: Oxford: Brasília: University Of Oxford; Ministério da Justiça, Comissão de Anistia, 2011. p.156.

 

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2. Elementos teóricos sobre o contexto histórico do período ditatorial brasileiro Antes de comentar sobre a responsabilização civil dos agentes dos regimes militares brasileiro e argentino, deve-se abordar o que levou à ditadura no Brasil em 1964. De fato, as origens desse acontecimento encontram-se nos anos 54/558. Em 1954, em consequência de uma oposição política insustentável ao seu governo, agravada pelo “atentado da Rua Toneleros”, o até então presidente Getúlio Vargas abala a sociedade com o seu suicídio abrindo espaço para uma nova fase de governo. A linha adotada pelo ex-presidente era a implementação de um projeto desenvolvimentista baseado na forte intervenção do Estado em áreas ditas como “estratégicas”. Exemplo disso foi a campanha populista e nacionalista, chamada “O petróleo é nosso”9, com a qual se adquiriu apoio da população. Além disso, Vargas atuava contrariamente às tendências de utilização do capital externo10. Porém, a adoção de tal manejo político promovia a oposição internacional. Com a morte de Vargas, inicia-se um período de internacionalização da economia, que demonstra sua fragilidade ao final do governo de JK, devido a um processo inflacionário e à desnacionalização econômica, além da dependência externa11. A insatisfação popu8 ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira. O processo político no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. P.183 9 FREIRE, Américo. Entre dois governos: 1945-1950 > redemocratização e eleições de 1945. 2012. Artigo retirado do site da fundação Getúlio Vargas. Disponível em: . Acesso em: 21 mar. 2013. 10 FREIRE, op. cit. 11 FERREIRA, Marieta de Moraes. Cem anos de JK., 2012. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2013.

 

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lar com as dificuldades econômicas fortalece as exigências de trabalhadores e as greves, em confluência com a antiga política varguista. Iniciam-se intensos movimentos políticos em que trabalhadores se recusavam a sofrer os prejuízos de ocasionados pelas medidas do governo12. Compreende-se, desse modo, o que de fato estava em jogo no contexto do golpe militar. Em 1961, após a renúncia do sucessor de JK, Jânio Quadros, assumiu seu vice, João Goulart, mais conhecido como “Jango”13. O perfil de João Goulart logo chamou atenção das elites, mais precisamente no momento de sua posse. Quando Jânio Quadros renunciou, Jango estava na China comunista em uma visita. Setores da sociedade tentaram evitar sua posse, já que era visto como um governador de tendências de esquerda. Iniciou-se, então, a Campanha Legalista, no intuito de garanti-la, cumprindo a Constituição14. Para dar fim a esse impasse, instaurou-se um governo parlamentar, reduzindo os poderes do presidente. Além da desconfiança causada por seu plano de governo, o real estopim para a instauração do Regime Militar de 64 foi um discurso inflamado no Rio de Janeiro, no qual Jango defendia a promoção da reforma agrária e a nacionalização das refinarias estrangeiras de petróleo15. Logo, no intuito de manter uma realidade alinhada ao capital externo, no dia 31 de Março de 1964, 12

FERREIRA, op. cit. CANCIAN, Renato. Governo João Goulart (1961-1964): polarização conduz ao golpe. , 2006. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2013. 14 CANCIAN, op. cit. 15 MENDONÇA, Sonia Regina. Dez anos da economia brasileira: Historia e Historiografia (1954- 1956). Revista Brasileira de História, SP, v. 24, n.3, p. 87-97, 1994. 13

 

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tropas militares lideradas pelos generais Luís Carlos Guedes e Olímpio Mourão Filho desencadeiam o movimento golpista16. Em pouco tempo, comandantes militares de outras regiões aderiram ao movimento de deposição de Jango. Em 1º de abril, João Goulart abandonou a presidência, e se exilou no Uruguai, instaurando-se o regime militar17. Verifica-se, então, como pronunciado pela doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo em 1990, Sonia Regina de Mendonça: O golpe de 1964 não veio a representar nenhum marco na redefinição do padrão de acumulação brasileiro. Ele sobreveio com o objetivo tácito de garantir a consolidação definitiva do “modelo” implantado em meados dos anos 50, sofisticando-o e aprofundando-o. (MENDONÇA, Sonia Regina. Dez anos da economia brasileira: Historia e Historiografia (1954- 1956). Revista Brasileira de História, SP, v. 24, n.3, p. 87-97, 1994.)

Assim, compreende-se o processo do golpe como consequência de uma política governamental empregada por Jango. Fatores como alta inflação, decréscimo no ritmo de crescimento econômico, além do baixo investimento na área industrial, foram problemas que Jango tentou solucionar, mas seu aparente alinhamento com a esquerda gerou desconfianças que fomentaram o golpe como modo de manter o capitalismo. No Brasil, não foi só por meio de armas, mas por artefatos jurídicos que se criou um ambiente legal à prática de torturas, assassinatos, censuras, perseguições, exílios e muitas outras ações. O intuito era que todos aqueles que discordavam do regime pudessem admitir suas culpas de atuação contra a ordem do estado ou seu alinhamento com o comunismo. 16 17

 

MENDONÇA, op. cit MENDONÇA, op. cit

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Sobre esses mecanismos jurídicos, deve-se atentar mais profundamente sobre o AI n°5. Ele foi baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, vigorando até dezembro de 1978, possibilitando uma série de ações de caráter de exceção do governo18. O ano de 1968 foi considerado o “ano que não acabou”, pois junto com um movimento mais organizado e atuante da ação estudantil contra o regime, a “linha dura” respondeu, utilizando instrumentos mais árduos para a sua repressão. Ao mesmo tempo em que se instalavam esses atos institucionais, criavam-se também órgãos para vigiar e controlar setores da população. Exemplo desses órgãos foi o Serviço Nacional de Informações (SNI), criado em 14 de Junho de 1964. Ele contava com outros órgãos de repressão, diretamente subordinados, como o CIEX (Centro de Informação do Exército) e o CENIMAR (Centro de Informação da Marinha)19. Já em 1974, inicia-se o processo de abertura política como governo do General Ernesto Geisel. De fato, os militares já estavam sendo questionados pela população que, inicialmente, havia apoiado o golpe20. Após os inúmeros casos de torturas, mortes de estudantes e operários, começa-se a entender o porquê do projeto assumido, caracterizado por uma “distensão lenta, segura e gradual21”. Somado à oposição dos estudantes, dessa nova parcela que começava a questionar a eficácia do governo militar, houve, também, um contexto de grave crise econômica iniciada nesse momento, chamada, posteriormente, de “Década Perdida”. 18 Tortura no regime militar. Brasil, 2010. Disponível em: . Acesso em: 21 mar. 2013. 19 op. Cit. 20 SADDI, Fabiana Da Cunha. Política e economia no federalismo do governo Geisel. São Paulo, Revista de Economia Política, 2003. 21 SADDI, op. Cit.

 

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Dando continuação ao processo, Geisel pune os militares que tinham relação com o assassinato do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho, vítimas de tortura pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)22. Extinguiu o ato institucional n°5 e, em seguida, aprovou o Pacote de Abril, visto como o caminho orientador para o processo de abertura política23. Já em 1979, quando João Batista Figueiredo assumiu a Presidência, utilizou como campanha política o seu posicionamento enfático sobre a democratização brasileira. Como medidas tomadas verificam-se a concessão de anistia ampla e geral, abrangendo não só os presos políticos, mas também os agentes da repressão, além da extinção do bipartidarismo, instalando o pluripartidarismo no contexto político nacional.

3. Elementos teóricos sobre o contexto histórico do período ditatorial argentino Embora o objeto de estudo desse trabalho seja o período posterior ao golpe de 1976, faz-se necessário ressaltar que a Argentina passou por seis golpes militares durante o século XX. Em grande parte, essa instabilidade estava diretamente ligada à conjectura da “Grande Depressão”. Sabe-se que houve demissões, redução das divisas e das exportações, principalmente na venda de carne para a Inglaterra, além do decréscimo nível de investimento e de importação24. 22

SADDI, Fabiana Da Cunha. Política e economia no federalismo do governo Geisel. São Paulo, Revista de Economia Política, 2003. 23 SADDI, op. cit 24 CATELA, Ludmila da Silva. Argentina: do autoritarismo à democracia, da repressão ao mal-estar castrense 1976-1989. Texto Cpdoc n° 28. , 1998. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2013.p 02

 

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Ainda assim, a elite agrária conseguiu conservar o seu domínio até 1940, momento em que o país voltou a sofrer efeitos parecidos com o anterior, mas decorrentes da Segunda Guerra Mundial25. Nesse contexto, a Argentina se voltava para dentro, se posicionando de maneira diferenciada em relação ao restante do mundo capitalista, levando a massa a questionar o porquê da permanência do poder oligárquico. Os governos anteriores, perpetuados pela corrupção e pela fraude, não atendiam aos desejos e interesses da classe média, dos pequenos proprietários, comerciantes e profissionais liberais26. As Forças Armadas eram vistas como as únicas que ficavam longe das ações corruptas encontradas na política, obtendo apoio para aplicar um golpe retirando essa oligarquia do poder e, sob organização do Coronel Perón, unificar o exército no intuito de moralizar a sociedade. Verificou-se aceitação da população; porém, durante a Segunda Guerra, internamente, o exército se dividiu entre aqueles que apoiavam a ruptura com o Eixo, liderada por Perón, e aqueles que buscavam a permanência da neutralidade27. Com essa divisão, verifica-se a guinada de Perón, já que a população, confortável com as ações tomadas, entre elas a regulação política da atividade sindical, passa a apoiá-lo. No entanto, esse contato do Coronel Perón com os trabalhadores criou uma atmosfera de desconfiança por parte dos outros militares, culminando na sua renúncia. Ainda assim, em 1946, Perón 25

RODRÍGUEZ, Margarita Victoria. Peronismo: movimento popular democrático, ou populismo autoritário? (1945-1955). , 1998. Disponível em: . Acesso em: 21 mar. 2013. 26 RODRÍGUEZ, Margarita Victoria. Peronismo: movimento popular democrático, ou populismo autoritário? (1945-1955). , 1998. Disponível em: . Acesso em: 21 mar. 2013. p.04 27 RODRIGUEZ, op. cit p.05

 

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obteve pelo Partido Laborista a vitória eleitoral com, aproximadamente, 49 por cento dos votos28. Esse novo período foi caracterizado por relevantes transformações sociais, em que os trabalhadores passaram a ser novos atores e as organizações sindicais formaram-se como novo canal de participação. No segundo governo peronista, de 1952 a 1955, por outro lado, se destaca uma Argentina em crise. O governo desse período enfrentou greves e repressão. Em 1954, o momento de instabilidade havia passado, mas surge uma oposição que, até então, era forte aliada do governo de Perón29. A Igreja rompe a aliança que era mantida até aquele momento, já que viam na atual governança uma atuação autoritária e repressiva em que a igreja não podia ficar acrítica. A falta de apoio em outros grupos sociais levou Perón a sair do governo, por meio de outro golpe aplicado em 195530. Devem-se ressaltar as semelhanças entre Vargas e Perón: em ambos os discursos aparece a ideia de “independência econômica”, verificada um meio de acumulação de capital, baseada no fechamento econômico ao estrangeiro. Também no ponto em que o exército teve papel de destaque na retirada dos dois governantes, ambos praticavam políticas de cunho nacionalista e populista. As suas bases de apoio eram, inegavelmente, o setor operariado, classe esta que obteve inúmeros benefícios legais com os seus governos. Ambos passaram por um momento em que o povo clamava pelo seu retorno, assim como um período de crise no qual culminou em certa oposição por parte da sociedade.

28

RODRIGUEZ, op. cit p.05-07 RODRIGUEZ, op. cit p.17 30 ETULEIN, Carlos R.. Juventude, política e peronismo nos anos 60 e 70”. Revista de Ciências Humanas. (EDUFSC), nº 40 29

 

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Os anos seguintes foram de sucessivos golpes31. Verifica-se uma corrente troca de presidentes, que todas as vezes se deparavam com a questão do peronismo32. Esse momento se dividiu entre os que estavam dispostos a fazer alianças para conseguir se eleger legalmente, tendo, para isso, que se eleger em partidos independentes de Perón, e do outro lado, aqueles que mantinham o partido e a ideologia desse governante, exigindo que se pudesse agir na política sob influência de Perón, abertamente. A sociedade, cada vez mais, sentia a repressão do governo, e as massas se alimentavam sempre pelo sonho da volta de Perón. Contribuiu-se, assim, para um sentimento de luta popular e protestos, reunindo diferentes setores da sociedade, pela primeira vez nesse contexto. Nesse ponto, vale destacar a esquerda peronista formada. O grupo Montoneros, em pleno contexto de ditadura, sequestrou o general Aramburu, o responsável pelo golpe que derrubou Perón em 195633. Esse grupo era formado por jovens, principalmente, que buscavam a realização de uma revolução socialista nacional, sendo Perón o líder34. O general Aramburu foi condenado à morte pelo grupo, sendo fuzilado em uma casa de campo. Esse conjunto de oposições e movimentos próPerón levaram a uma situação insustentável do governo militar, já que evidenciaria o vazio de poder que o exército representava para o povo35. Em 1960, as Forças 31 RAIMUNDO, Marcelo. La política armada en el peronismo: 19551966. , 1998. Disponível em: . Acesso em: 21 mar. 2013. P.320 32 RAIMUNDO, op.cit 33 ETULEIN, Carlos R.. Juventude, política e peronismo nos anos 60 e 70”. Revista de Ciências Humanas. (EDUFSC), nº 40 p.320 34 ETULEIN, op.cit p.326 35 ETULEIN, op. cit. p.330

 

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Armadas retiraram o apoio ao então presidente, general Ongania. Em conjunto com o grupo os Montoneros, o Exército Revolucionário do Povo (ERP) havia redefinido a esquerda tradicional36. Esses grupos de resistência formados viam em Perón o autentico líder de uma revolução que deveria ser aplicada na Argentina. Houve mais uma sucessão de golpes, passando a circular a ideia de que apenas Perón poderia solucionar a tensão entre os partidos políticos e os governos das Forças Armadas. Depois de pressões entre peronistas, antiperonistas e grupos armados, e consequência da violência em que o governo era contestado, a forma de governar da elite não mais convencia a sociedade. Assim, o último governante desse período ditatorial, Lanusse, em 1973, declarou aberto o processo político e as eleições de março de 197337. Criou-se uma grande expectativa quanto à volta de Perón. Operários, setores populares e estudantes, o setor da sociedade o aguardava como solução para o estado em que se encontrava a sociedade. O seu retorno, porém, não conseguiu unir novamente a sociedade, em razão da sua morte em 1974. Em 24 de março de 1976, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica derrubaram o governo eleito, prenderam a presidente Isabel Perón e intitularam o golpe de Processo de Reorganização Nacional38, já que o único modo, para eles, de reestruturar a sociedade era através de outro golpe chefiado por eles próprios, os militares. O golpe de 1976 não se configurou como mais uma intervenção militar na sociedade argentina. Observando-o atentamente, percebe-se que foi realizado no intuito de mudar drasticamente a economia, a estru36

ETULEIN, op.cit p.330-332 ETULEIN, Carlos R.. Juventude, política e peronismo nos anos 60 e 70”. Revista de Ciências Humanas. (EDUFSC), nº 40 p.320 38 ETULEIN, op.cit p.336 37

 

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tura educacional, social, partidária e sindical. Esse momento na história da Argentina é visto como o mais sangrento e cruel, localizado em um contexto de crise em que o país estava com a economia estagnada, o preço do petróleo extremamente alto e o dos alimentos relativamente baixo, gerando um grave desequilíbrio na balança comercial. No início do golpe, os militares tentaram dar uma imagem de legalidade e racionalidade ao ato, ao tentar agir em conformidade com a lei e a moralidade vigentes. Porém, depois de iniciado o golpe, delegados sindicais, militantes peronistas e de esquerda, ou foram presos ou passaram a fazer parte de uma extensa lista de desaparecidos. Essa estratégia, somada à intervenção aos sindicatos, com proibição de greves, das negociações coletivas, mostrava que as Forças Militares agiam no intuito de orientar uma sociedade dividida em ideologias, colocando-as em um só caminho39. Houve uma aceitação impressionante por parte da população, devido à situação precária vivida durante o governo civil a partir de 1974. Observa-se, a partir de 1974, a repressão dada ao ERP, após a sua tentativa de criar uma guerrilha rural em Tucumán40. Em fevereiro de 1975, iniciou-se a “Operação Independência” no intuito de eliminar a fonte de resistência ao governo, operando detenções, sequestros, torturas e assassinatos de militantes políticos, sindicais e universitários do ERP. Os militares re39

NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. A ditadura militar argentina 1976-1983: Do Golpe do Estado à Restauração Democrática. São Paulo: Edusp, 2007. Disponível em: . Acesso em: 21 mar. 2013. p.23-67 40 NOVARO, op.cit.p.23-67

 

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conheciam que a capacidade dos guerrilheiros de representar uma ameaça se reduziu à esfera policial, demonstrando que um ano depois do golpe instalado, o papel dos militares de extinguir a ação das guerrilhas estava chegando ao objetivo. Porém, mesmo após a eliminação dessa organização, as práticas citadas continuaram a ser mantidas até o final de 1975. Há um percentual de mortes da ação militar muito maior quando comparado à da guerrilha41. Em 1976, os guerrilheiros produziram 167 mortes, enquanto policiais e militares produziram 1.18742. Deve-se somar, também, as pessoas sequestradas das quais não se possui registro. Segundo o dado da Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), esse número totalizou, nesse ano, 3.500 casos43. Em 1977 há o relato de 4.500 baixas, incluindo pessoas que estavam ligadas indiretamente à guerrilha, ou que não possuíam nenhuma ligação explícita. Assim, desde 1950, o regime militar criou um inimigo comum, a esquerda radical, ao qual deveria ser aplicada a doutrina de segurança nacional. Este, porém, se mostrou não um agente determinado, mas com várias formas e traços. Assim, tal perigo estava permeado em toda a sociedade, mostrando que a ação militar atingiu muito mais do que apenas os envolvidos nesse conflito, mas inocentes também, utilizando os mais baixos instrumentos para garantir a permanência no poder.

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NOVARO, op.cit.p. 23-67

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NOVARO, op.cit.p.23-67

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NOVARO, op.cit.p.23-67

 

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4. As mudanças legais no Brasil: o arcabouço jurídico das políticas de Justiça de Transição A transição entre um regime ditatorial e o Estado Democrático de Direito se baseia em cinco aspectos: (i) reparar o dano causado pelo delito ou pela violação dos direitos humanos; (ii) priorizar a exposição da vítima sobre suas experiências, concedendo-a o direito à verdade e à memória; (iii) responsabilizar os agentes que cometeram violações; (iv) permitir a reintegração da vítima à sociedade, livrando-a da estigmatização social e (v) criar comissões de verdade e reconciliação para que a história não seja construída somente pelas versões de profissionais e técnicos do direito44. No Brasil, a passagem do período ditatorial para o regime democrático se deu de forma “lenta, gradual e segura”. Em 1974, com a desaceleração da economia, houve o crescimento do oposicionista MDB nas eleições. Assume então Geisel, que dá início à transição. Esta, entretanto, se concretiza quase 10 anos depois, em 1985, com a eleição do civil Tancredo Neves, que vem a falecer antes de sua posse. Em 1985, quando José Sarney, primeiro presidente civil a tomar posse após a ditadura, assumiu, não foram tomadas medidas em busca da responsabilização dos agentes da repressão, e mantiveram-se até mesmo certos aparatos do outro regime, como a censura, que apenas foi proibida com a Constituição de 198845. A Lei da Anistia, número 6.683, conforme fora aprovada ainda sob o comando do General Figueiredo,

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BASTOS, Lucia; As reparações por violações de direitos humanos em regimes de transição In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 01; p. 242. 45 Art. 5º, IX. Art. 220, para 1º e 2º. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

 

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em 1979, não sofreu nenhuma forma de contestação pelo Executivo. Diferentemente do que aconteceu na Argentina, essa extinção da responsabilidade penal não foi fruto apenas de uma imposição do regime contra a sociedade (autoanistia), mas também da reivindicação social em prol dos presos políticos perseguidos pelo regime ditatorial. Ressalta-se que a concessão de anistia aos agentes torturadores do Estado é uma deturpação dos interesses populares para a aprovação da Lei de Anistia. Outro ponto interessante a respeito da promulgação dessa lei está vinculado à união da classe proletária aos resistentes políticos tradicionais, visto que estavam insatisfeitos com a impossibilidade legal de promover greves mesmo nos casos em que as condições laborais não respeitavam a dignidade humana. Nesse contexto, as paralisações que ocorreram foram violentamente reprimidas, gerando perseguições aos líderes sindicais e demissões em massa, sendo alguns trabalhadores, inclusive, presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Justamente por isso, nas medidas transicionais de reparação tem-se expressa a fixação de indenizações trabalhistas, restabelecendo direitos laborais e previdenciários46. Cabe ressaltar que uma comissão da verdade oficial não foi criada imediatamente, mas em relação à dimensão do fornecimento da verdade e construção da memória, deve-se mencionar o Projeto “Brasil: nunca mais”, dirigido pelo cardeal paulista Paulo Evaristo Arns, através do qual se identificaram diversos desaparecidos políticos a partir de investigações sobre a dinâmica de repressão da ditadura. Na prática, observa-

46

ABRÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo; Justiça de Transição no Brasil: a dimensão da reparação. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 03; p. 113.

 

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ram-se várias reminiscências da repressão nos anos que se seguiram à eleição de um presidente civil47. Somente em 1995, com a aprovação da Lei 9.140, são reconhecidas como mortas as pessoas que tenham participado de atividades políticas no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, e que em decorrência disso tenham sido detidas por oficiais do governo. Em 2002, pela Lei 10.536, amplia-se esse período para até 5 de outubro de 1988. Vale lembrar que essas leis geram direito à reparação material não inferior a R$ 100.000,00 (cem mil reais), segundo § 1º do art. 11. A partir de 2004, as mortes decorrentes de repressão policial e os suicídios cometidos na iminência de prisão ou em decorrência de sequelas psicológicas advindas do sofrimento causado pela tortura também passaram a ensejar indenização, conforme Lei no 10.875. Ante a necessidade de julgar o pleito das indenizações, sancionou-se a Lei nº 9.140/1995, alterada, posteriormente, pelas leis 10.536/2002 e 10.875/2004. Este dispositivo estabeleceu a constituição da Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que inicialmente foi instalada no Ministério da Justiça e, em 2004, deslocada para a Secretaria Especial de Direitos Humanos. Tal Comissão exerce três funções principais: “reconhecimento público da morte ou desaparecimento dos perseguidos políticos; apreciação dos pedidos de indenização, bem como sua quantificação, quando devidos; sistematização de informações, inclusive genéticas (via banco de DNA), para o

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MARTINS, Luciano. A “liberalização” do regime autoritário no Brasil. In: O’DONNELL, Guillermo; SCHMITTER, Philippe; WHITEHEAD, Laurence (Orgs.). Transições do regime autoritário: América Latina. São Paulo: Vértice, 1988.

 

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fim de futura localização e identificação dos restos mortais dos desaparecidos”48. No aspecto da responsabilização criminal dos agentes da repressão, apenas em 2008 o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propôs a arguição de descumprimento de direito fundamental (ADPF) 153, questionando a Lei 6.638/79. Ainda assim, a ação foi infrutífera, tendo sido vencida por sete votos a dois, perpetuando a impunidade dos violadores de direitos humanos.

4.1. Memória e reparação no Brasil Ainda que atrasados em relação à Argentina, nos anos 2000 foram iniciados vários projetos oficiais com vistas ao resgate da memória brasileira do período ditatorial e no sentido de reparar as vítimas e seus familiares. Entre eles:

4.1.1. Memorial “Anistia Política do Brasil” Um projeto firmado entre o Ministério da Justiça, a Universidade Federal de Minas Gerais, a Prefeitura de Belo Horizonte e a Secretaria de Patrimônio da União, criou o Memorial denominado “Anistia Política do Brasil”. Em tal acervo tem-se a versão histórica da ditadura sob a perspectiva dos próprios perseguidos do regime, mediante documentos, fotos e depoimentos gravados. Salienta-se que ainda há o memorial oficial do Estado, chamado Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas. Este, por sua vez, é responsabilidade do Arquivo Nacional e compõe-se de registros ideológicos que simulam 48

PINHEIRO, Douglas; Blow up – Depois daquele golpe: a fotografia na reconstrução da memória da ditadura. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 02, p. 94

 

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versões justificadoras das violações de direito cometidas pelo regime.

4.1.2 . “Direito à memória e à verdade” O livro-relatório “Direito à verdade e à memória”, publicado em 2007, é uma síntese do trabalho realizado pela Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), na qual são detalhados 357 casos de reparação, sendo cada um introduzido por uma breve ficha biográfica, em que constam o nome completo do militante, filiação, data e local de nascimento, data e local da morte ou do desaparecimento e organização política à qual se vinculara. Visualiza-se, portanto, que este livro não tem somente cunho de transparência administrativa, mas de reconstrução da própria memória dos mortos e desaparecidos. Ao realizar uma comparação entre o livro e o relatório argentino “Nunca más” (1984) percebe-se que este último não abarcou questões importantes como a identificação dos métodos de tortura sofridas, visto que havia possibilidade de ajuizamento de ações penais dos violadores dos direitos humanos49. Para além do livro, há uma exposição fotográfica de mesmo nome, mantida pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, que agora também conta com a mostra dos trabalhos “Lutas pelo Feminino” e “História de Meninas e Meninos Marcados pela Ditadura”. A respeito das fotografias captadas pelos militares que comprovariam o óbito dos perseguidos políticos por suicídio ou tiroteio, verifica-se que as recentes análises realizadas pela CEMDP apontam para a artificialidade das cenas retratadas. Como exemplo: 49

PINHEIRO, Douglas; Blow up – Depois daquele golpe: a fotografia na reconstrução da memória da ditadura. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 02, p. 94.

 

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Ismael Silva de Jesus: membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), teria praticado suicídio no 10º Batalhão de Caçadores em Goiânia/GO. Todavia, fotos de perícia localizadas em 1991 desautorizaram tal hipótese. Ismael encontrava-se sentado junto à parede, com uma fina corda de persiana amarrada, por um lado, ao redor do pescoço e, por outro, em um porta-toalhas de louça, preso à parede. A persiana e o pequeno porta-toalhas encontravam-se intactos. Além disso, eram perceptíveis, no corpo do militante, sinais evidentes de espancamento: um grande hematoma no olho e sangue pelo corpo50.

Entretanto, o caso mais emblemático é o do jornalista Vladimir Herzog, o qual, de acordo com a versão oficial, teria se enforcado utilizando o cinto do macacão de presidiário. Porém, a foto divulgada mostra que Herzog tinha os pés apoiados no chão e estava em suspensão incompleta, o que desconfiguraria a alegação do suicídio. Somente recentemente a família do jornalista conseguiu que o governo modificasse o atestado de óbito, no qual, agora, consta como causa da morte a tortura a ele impetrada51.

4.1.3. Reparação O direito à reparação dos perseguidos políticos ampara-se no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual assevera: 8º - É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da 50

PINHEIRO, op. Cit. p. 99. Notícia jornalística “Família de Vladimir Herzog recebe novo atestado de óbito”. Disponível em: Acesso em 13 de abril de 2013. 51

 

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Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.

Posteriormente, o referido dispositivo foi regulamentado pela Lei nº 10.559/2002. Conforme se vê, essa lei distingue dois grupos de perseguidos políticos: os que tiveram violado sua integridade física e liberdades públicas e aqueles que perderam seu vínculo empregatício. A reparação pelos danos causados a essas vítimas do regime pode ser pecuniária ou moral.

4.1.4. Caravanas da anistia A Comissão de Anistia, visando descentralizar as sessões regulares que só ocorriam em Brasília, no Palácio da Justiça, criou as Caravanas da Anistia, as quais passariam a realizar sessões itinerantes pelo Brasil. Essas caravanas seriam responsáveis tanto por apreciar os pleitos de Anistia Política quanto por organizar atividades educativas e culturais com vista a conscientizar as novas gerações sobre a importância da democracia e do respeito aos direitos humanos. Além disso, a partir dos testemunhos públicos sobre os atos cometidos no estado de exceção, objetivase resgatar, preservar e divulgar a memória política brasileira, fomentando debates junto à sociedade civil acerca da justiça de transição. Ainda sobre essa finalidade de incitar a reflexão e discussão do tema, as Ca  

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ravanas exibem durante a “Sessão de Memória” vídeos institucionais que narram o período autoritário e que homenageiam figuras que lutaram pelo processo de redemocratização. Por fim, é nítido que sob o aspecto da atitude pedagógica, é dado um relevo diferenciado aos jovens, sobretudo porque os relatos dos ex-perseguidos, que no primeiro momento causam comoção, em seguida motivam uma tomada de postura mais crítica frente à realidade atual, de maneira a assegurar a não repetição da ditadura. Ou seja, a mensagem prioritária é de que “a democracia não é um processo acabado, mas aberto e, portanto, permanentemente sujeito a avanços e retrocessos52” e, consequentemente, cada cidadão tem papel protagonista no processo de redemocratização.

5. As mudanças legais na Argentina: ruptura O golpe que instaurou a ditadura militar na Argentina – o sexto no país no século XX – ocorreu em 1976 e instaurou um regime que perdurou até 1983. Assim como no Brasil, o regime argentino se deu sob a Operação Condor, uma cooperação entre os regimes ditatoriais do Cone Sul, sob os auspícios do governo estadunidense, que visava facilitar a repressão aos movimentos de esquerda53. Assim, são de fácil entendimento as semelhanças entre as práticas repressoras nos dois Estados em estudo. Com a derrota na Guerra das Malvinas, fortalece-se a oposição ao regime militar, e em 1983 os argen52 ABRÃO, Paulo et alli. Justiça de Transição no Brasil: O Papel da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 01, p.18. 53 BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e à verdade. Brasil, DF, 2007. P.357. Disponível em: . Acesso em 17 de abr. 2013.

 

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tinos vivem a recuperação da democracia, com a eleição de Raúl Alfonsín. Estima-se que a repressão na Argentina tenha como saldo cerca de 30 mil desaparecidos e mortos54. Na Argentina, ao contrário do que ocorreu no Brasil, a eleição de um presidente civil significou uma verdadeira ruptura com o regime ditatorial. Primeiramente, é importante mencionar a Lei 22.924/83, conhecida como Lei de Pacificação Nacional, implementada pelo próprio regime militar. Tal ato normativo dispunha sobre a autoanistia e previa: ARTICULO 1º — Decláranse extinguidas las acciones penales emergentes de los delitos cometidos con motivación o finalidad terrorista o subversiva, desde el 25 de mayo de 1973 hasta el 17 de junio de 1982. Los beneficios otorgados por esta ley se extienden, asimismo, a todos los hechos de naturaleza penal realizados en ocasión o con motivo del desarrollo de acciones dirigidas a prevenir, conjurar o poner fin a las referidas actividades terroristas o subversivas, cualquiera hubiere sido su naturaleza o el bien jurídico lesionado. Los efectos de esta ley alcanzan a los autores, partícipes, instigadores, cómplices o encubridores y comprende a los delitos comunes conexos y a los delitos militares conexos.

Entretanto, o Congresso, ainda em 1983, revogou esta norma por intermédio da Lei 23.040, em decorrência de sua inconstitucionalidade. Com o fim da ditadura militar, a partir da eleição direta do presidente Raúl Alfonsín, iniciou-se um regime de transição que demonstra perfeitamente esse processo de reparação descontínuo. Isso se justifica quando se analisa, por exemplo, que o novo presidente sancionou os decretos 157 e 158. O primeiro ordenava o processo dos chefes das organizações guerrilheiras ERP e Motoneiros. O segundo ordenava o processo contra 54

 

BRASIL, op. cit., p.20.

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as três juntas militares que dirigiram o país durante o golpe, mas a apuração seria realizada pelo próprio Conselho Supremo das Forças Armadas. O decreto 157, tratando da acusação de líderes da resistência, trouxe certo descontentamento da sociedade civil. Em sua redação, entretanto, explicita-se como motivo para sua acusação o fato de que as atitudes terroristas dos grupos ERP e Motorneiros, além de submeterem a sociedade à violência e à insegurança, serviram de pretexto para o golpe que instaurou a ditadura em 1976. Finalmente, em um excerto, coloca-se a necessidade de reafirmar a justiça e julgar todos aqueles responsáveis pela instauração da ordem ditatorial. Que la restauración de la vida democrática debe atender, como una de sus primeras medidas, a la reafirmación de un valor ético fundamental: Afianzar la justicia; con este fin, corresponde procurar que sea promovida la persecución penal que corresponda contra los máximos responsables de la instauración de formas violentas de acción política, cuya presencia perturbó la vida argentina, con particular referencia al período posterior al 25 de mayo de 197355.

Alfonsín cria nesse mesmo dia a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), com a função de documentar as violações de Direitos Humanos e fundamentar a acusação contra as juntas militares. Vale lembrar que a CONADEP tinha como objetivo “esclarecer os fatos relacionados com o desaparecimento de pessoas ocorridos no país56”, sendo vetado que a Comissão emitisse julgamentos sobre fatos e circunstâncias que constituíssem matéria exclusiva do Poder Judicial. Esse esclare55 La tesis denominada “la de lós demônios”. Em . Acesso em 17 de abril de 2013. 56 ARGENTINA. Decreto 187, de 19 de dezembro de 1983.

 

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cimento foi realizado no relatório denominado “Nunca Más”57, no qual constam denúncias sobre desaparecimentos, sequestros e torturas acontecidos entre 1976 e 1983. A criação de uma “comissão da verdade” é considerada um passo primordial para o estabelecimento de uma justiça de transição. Embora tais comissões não tenham por objetivo julgar criminalmente os possíveis violadores de direitos humanos, sua função é corrigir um déficit de memória, ocasionado pela ocultação de violações cometidas pelos militares, é manter viva a memória daqueles crimes que, hediondos, não podem ser esquecidos. Ainda que reviver crimes possa ser polêmico e, em certos casos, arriscado58, essas comissões têm um papel fundamental de consolidar a democracia, enfrentando criticamente o passado, trazendo à tona experiências traumáticas, silenciadas pela repressão, ajudando as vítimas, promovendo a responsabilização e evitando futuros abusos. Assim como os demais aspectos da Justiça de Transição, o direito à verdade e à memória é essencial para fortalecer a nova ordem normativa que está se estabelecendo, mantendoa próxima da realidade à qual deve servir59. Em 1985, a Câmara federal, o tribunal civil, que passou a analisar a questão, independentemente do Conselho Supremo das Forças Armadas, promulgou as sentenças, condenando Jorge Videla e Eduardo Massera à prisão perpétua; Roberto Viola a dezessete anos de prisão; Armando Lambruschini a oito anos de prisão e Orlando Ramón Agosti a quatro anos de reclusão.

57

Disponível em: . Acesso em 11 de abril de 2013. 58 DALY, Erin. Truth skepticism: An Inquiry into the Value of Truth in Times of Transition. International journal 59 TEITEL, Ruti. Editorial Note, ibidem.

 

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As forças armadas argentinas, entretanto, não aceitavam as acusações, e durante o governo de Alfonsín o país viveu uma constante de insurreições militares e grande instabilidade. Para frear o descontentamento desse setor, Alfonsín negociou com os líderes militares medidas que evitassem novos julgamentos. Dessa negociação, são concretizadas duas leis: A Lei Ponto Final, número 23.492, que estabelecia a paralisação dos processos contra a participação nos atos de violência de ação política, e a Lei da Obediência Devida, número 23.521, que estabelecia a presunção de iure que os feitos cometidos durante a ditadura por membros das forças armadas com patente menor que a de coronel não eram puníveis, em virtude da obediência devida hierarquicamente. Em seguida, durante o governo de Carlos Menem, foi decretada uma série de indultos que concediam anistia àqueles agentes do Estado que não haviam sido beneficiados pelas leis sancionadas por Alfonsín. Estes indultos poderiam eximir de penas e até mesmo findar investigações que ainda estavam em trâmite, abrangendo, assim, tanto as pessoas condenadas como processadas. Exemplo disto são os decretos 2745/90 e 2746/90. As sucessivas normas de impunidade paralisaram as averiguações judiciais e determinaram encerramento de inúmeros processos. Em virtude disso, começaram a aparecer reclamações a fim de que se retornassem as investigações. Ainda depois que a lei de anistia impediu os julgamentos para a maior parte dos violadores de direitos humanos, familiares de vítimas persistiram na tentativa de obter seu direito à verdade e à memória. Criou-se assim um mecanismo inédito, os “julgamentos da verdade”, que misturavam aspectos das comissões da verdade com aspectos da justiça penal. O objetivo era obter a verdade sobre os desaparecimentos, por meio de um processo judicial, no qual as cortes avaliavam  

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informações e testemunhos de envolvidos, mas sem consequências criminais60. Em 1992, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIADH) concluiu que as Leis Ponto Final e Obediência Devida, além dos perdões dados por Menem, eram incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1978. Essa mesma Corte, ao julgar as leis peruanas de autoanistia incompatíveis com a Convenção, colocou como dever do Estado indagar o sucedido com as pessoas desaparecidas em períodos de estado de exceção. Esse precedente foi essencial na luta argentina para declaração de inconstitucionalidade das leis de anistia em seu país, levando à denúncia da Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina (CSJN) à CIDH. Firmou-se então um acordo, em 15 de novembro de 1999, no qual o governo argentino se comprometeu a garantir o direito à verdade, estabelecendo a competência exclusiva das Câmaras Federais nos casos relativos à ditadura, e implementar perante o Ministério Público a designação de fiscais especiais que atuariam nos processos de busca pela verdade61. O Centro para Estudos Legais e Sociais (CELS) argentino foi o principal responsável por liderar a batalha contra as Leis de Anistia da Argentina62. Em 2001, em um julgamento da causa nº 8.686/2000 de subtração de menores de 10 anos, argumentou-se que as leis de anistia violavam tratados regionais e internacionais de direitos humanos dos quais a Argentina era parte e que eram incorporados diretamente na lei desse país, em status constitucional, de acordo com sua Constitui60 SIKKINK, Kathryn. From Pariah State to Global Protagonist; Argentina and the Struggle for International Human Rights. Disponível em: < http://www.highbeam.com/doc/1P31470033421.html>. Acesso em 15 de abril de 2013. 61 Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Informe Nº 21/00, caso 12.059, 29/02/2000, no qual se reproduz o texto do acordo. 62 SIKKINK,op.cit.

 

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ção. Na sentença ditada pelo juiz Gabriel Cavallo, observa-se a aceitação dos argumentos relativos aos instrumentos internacionais de Direito Humanos: “(...) a possibilidade de os afetados terem acesso à justiça, para que se investiguem delitos cometidos por integrantes das Forças Armadas ou de segurança do Estado, se encontra pulverizada pelas disposições das leis 23.492 e 23.521. Nesse sentido, suprime-se a possibilidade de que um tribunal independente e imparcial tenha competência sobre um caso de violação de direitos humanos, o que converte as ditas leis em ilícitos para o direito derivado da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. (...) Em consequência, a promulgação e a vigência das leis 23.492 e 23.521, uma vez que impedem de levar adiante as investigações necessárias para identificar os autores e partícipes das violações aos direitos humanos perpetradas durante o governo de fato (1976-1983) e de aplicarlhes as sanções penais correspondentes, violam a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Constatado, então, que a promulgação e a vigência das leis 23.492 e 23.521 são incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e com a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, se impõe declarar inválidas as leis de 'Ponto Final' e de 'Obediência Devida'.”.

Em 2003, pela lei 25.779, o Congresso argentino, com o apoio do presidente Néstor Kirchner, aprovou uma lei que determinava a nulidade das leis de anistia, mas não anulava as decisões judiciais pretéritas. Finalmente, em 2005, a CSJN, ratificando o precedente, declarou inconstitucionais as leis de anistia, permitindo a reabertura de centenas de casos de violações de direitos.

 

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6. As diferentes posturas frente à internacionalização dos direitos humanos O Judiciário da Argentina amparou sua interpretação das Leis de Anistia no reconhecimento da internacionalização das leis de direitos humanos, fundamentando-se principalmente na Convenção Americana, interpretada pela Corte Interamericana. Isso foi possível devido à previsão da Constituição argentina de que tratados de direitos humanos têm hierarquia constitucional63, conforme o art. 75, 22 da Constituição Nacional, o qual expõe que: [...] La Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre; la Declaración Universal de Derechos Humanos; la Convención Americana sobre Derechos Humanos [...] en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquía constitucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y deben entenderse complementarios de los derechos y garantías por ella reconocidos. Sólo podrán ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo nacional, previa aprobación de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara.

Em relação à Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade, a adesão da Argentina se deu por meio do decreto 579/2003. Prova dessa ilimitação de tempo para extinção do processo foi a condenação, noticiada

63 SIKKINK, Kathryn. From Pariah State to Global Protagonist; Argentina and the Struggle for International Human Rights. Disponível em: < http://www.highbeam.com/doc/1P31470033421.html>. Acesso em 15 de abril de 2013.

 

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em jornais do mundo inteiro, do ex- ditador Jorge Videla em dezembro de 201064. Observa-se que a aproximação argentina com a internacionalização dos direitos humanos, em concordância com os instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos aos quais subscreve, é o eixo que tem guiado suas medidas de justiça de transição. O judiciário brasileiro, ao contrário, não aplicou tais previsões em seu julgamento sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia brasileira, a ADPF 153. No julgamento de 2010, por sete votos a dois, o Supremo Tribunal Federal validou a referida lei. O Ministro Ricardo Lewandowski foi o único que mencionou instrumentos internacionais como fonte de obrigação para a apuração dos crimes contra a humanidade cometidos pelos agentes da ditadura65. Em especial, ele ressaltou em seu voto o entendimento da Corte Interamericana – o mesmo utilizado como precedente na Argentina – de que os Estados-partes do Pacto de San José da Costa Rica têm a obrigação de averiguar as lesões aos direitos humanos66. Cabe ressaltar que em 2004, por meio da Emenda Constitucional 45, o legislador estabeleceu a paridade hierárquica de tratados internacionais de direitos humanos, mediante aprovação pelo Congresso, em 64

Notícia jornalística: “Ex- ditador argentino Jorge Videla é condenado a prisão perpétua”. Disponível em: Acesso em: 15 de abril de 2013. 65 FERNANDES, Pádua. Ditadura Militar na América Latina e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos: (In)Justiça de transição no Brasil e na Argentina. Disponível em: . Acesso em 15 de abril de 2013. 66 PIOVESAN, Flávia. Lei de Anistia, Direito à Verdade e à Justiça: o Caso Brasileiro. Disponível em < http://interessenacional.uol.com.br/2012/04/lei-de-anistia-direito-averdade-e-a-justica-o-caso-brasileiro/>, acesso em 17 de abril de 2013.

 

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dois turnos, por três quintos dos votos de seus membros. Tal emenda representaria um retrocesso67, uma vez que a Constituição brasileira, em seu art.5º,§ 2º, expressava: “Os direitos e garantias expressos nessa Constituição, não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, de modo que, conforme defendido por Mazzuoli (2011, p.28), todos os tratados internacionais de direitos humanos, ao serem ratificados pelo Brasil, têm índole e níveis constitucionais, sendo desnecessária a aprovação do Congresso para garantir essa hierarquia. Em 2008, entretanto, em debate no STF, prevaleceram as posições da EC 45 e a do Ministro Gilmar Mendes, sustentando apenas o valor supralegal dos tratados de Direitos Humanos. Por fim, cabe abordar, ainda nesse quesito, a condenação pela Corte Interamericana do Brasil, no Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. A Corte acusou o país de não ter controlado a convencionalidade da Lei de Anistia em relação à Convenção Interamericana – ao contrário da Suprema Corte argentina. Utilizando o princípio do pacta sunt servanda, a Corte ressaltou que as “obrigações convencionais dos Estados-partes vinculam todos seus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano de seu direito interno68”. 67 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Desafios e conquistas do direito internacional dos direitos humanos no início do século XXI, in CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo (org.). Desafios do direito internacional contemporâneo. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, p.209, nota n.6. 68 CIDH. Caso Gomes lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) VS Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 24 de novembro de 2010, Série C, n.219, parágrafo 177.

 

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Conclusão Sikkink (2008) enumera uma série de razões para explicar o protagonismo argentino em inovações na área de direitos humanos e justiça de transição. Como causas primárias, o nível e o tipo de repressão e o modo de transição para a democracia; além dessas, são citadas as oportunidades políticas, a mobilização de recursos e fatores históricos e culturais. Enquanto diferenças substanciais na constituição de um Estado, em termos de fatores históricos e sociais são esperadas e dispensam explicações delongadas no presente estudo, é imprescindível ressaltar como as diferenças no modo de transição das ditaduras para governos democráticos, no Brasil e Argentina, resultaram em implementações (ou na não implementação) tão divergentes dos institutos de Justiça de Transição. O caráter pactuado da transição no Brasil limita a chances de julgamentos dos violadores, uma vez que os militares, durante o processo, buscam garantir proteções contra processos pelas transgressões aos direitos humanos, conforme se percebe pela delonga na aprovação de leis que instituíssem mecanismos de Justiça de Transição. Transições de ruptura, como a argentina, por outro lado, permitem maior demanda pela responsabilização dos agentes da repressão69. O colapso das Forças Armadas argentinas devido à derrota na Guerra das Malvinas impediu a negociação das condições da saída do poder, tendo sido imediatamente instituídas as medidas para sua responsabilização. 69 SIKKINK, Kathryn. From Pariah State to Global Protagonist; Argentina and the Struggle for International Human Rights. Disponível em: < http://www.highbeam.com/doc/1P3-1470033421.html>. Acesso em 15 de abril de 2013.

 

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Somados a isso, a amplitude, a organização e os recursos financeiros, sociais e culturais dos movimentos pelos direitos humanos na Argentina imprimiramlhes força e capacidade efetiva de influenciar na política e ter respostas estatais às suas demandas. Ao contrário, os movimentos brasileiros não partilharam dessa eficiência organizacional, o que somado à falta de mobilização de grande parte da população, enfraquece as demandas e a capacidade de influência desses movimentos na política e no judiciário brasileiro. Finalmente, para além dos motivos históricos que levaram as transições argentina e brasileira por caminhos distintos, observa-se que ambos os percursos sofreram com retrocessos e avanços, com certa descontinuidade. Enquanto o modelo argentino já se encontra em estágio avançado de implementação, no Brasil apenas se iniciaram os trabalhos de implantação de mecanismos de direito à verdade, à memória e à reparação. A ADPF 153, embora rejeitada, traz à tona a rediscussão da Lei da Anistia. Conforme podemos aprender com o exemplo argentino, a capacidade de realizar mudanças no ordenamento advém de condições internas ao país e, até mesmo a utilização de instrumentos de pressão internacional, deve-se, em última instância, à disposição interna para tal. A tese de controle de convencionalidade, por exemplo, permite vislumbrar caminhos para a responsabilização criminal dos violadores de direitos humanos e a concretização, enfim, da Justiça de Transição, no Brasil.

Referências De livros MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle Jurisdicional da Convencionalidade das Leis. 2ª.ed. SP: Revista dos Tribunais, 2011.  

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A lenta democratização do Itamaraty O caso do acesso à informação sobre a reforma do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Natália  Araújo1   Deisy  Ventura2  

O presente artigo tem por objetivo analisar o grau de adesão do Ministério das Relações Exteriores (MRE ou Itamaraty) à Lei de Acesso à Informação (LAI), por meio de um estudo de caso3. Trata-se do pedido de informação apresentado pela Organização Não Governamental (ONG) Conectas Direitos Humanos4, 1

Aluna do Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. 2 Professora de Direito Internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. 3 O estudo de caso caracteriza-se pelo estudo exaustivo de poucos objetos, de forma a permitir conhecimento amplo e específico sobre eles, partindo do pressuposto de que a análise de uma unidade de determinado universo possibilita o estabelecimento de bases para uma investigação posterior, mais sistemática e precisa” (GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1991). Ele cabe especialmente quando as fronteiras entre o fenômeno e o seu contexto não estão claramente estabelecidas (YIN, Robert. Estudo de caso. Planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005). 4 “Conectas Direitos Humanos é uma organização não governamental internacional, sem fins lucrativos, fundada em setembro de 2001 em São Paulo – Brasil. Sua missão é promover a efetivação dos direitos

 

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relativo aos telegramas e outros suportes de informação sobre a atuação da Delegação do Brasil Junto à União Panamericana (DELBRASUPA)5 nas discussões sobre o fortalecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)6. A hipótese a ser aferida por este artigo é a de que o problema específico do cumprimento da LAI está vinculado à cultura política do MRE, que ofereceria resistência ao processo de democratização da instituição. No âmbito desta pesquisa de iniciação científica, a expressão democracia refere-se ao processo pelo qual os cidadãos colocam-se em posição de desfrutar de um conjunto de direitos, não apenas em tese, mas também na prática, especialmente o da participação política, que ultrapassa largamente o direito ao voto, abarcando, entre outros, o direito à “compreensão bem informada” dos problemas e a influência sobre a agenda humanos e do Estado Democrático de Direito, no Sul Global - África, América Latina e Ásia.” Disponível em: Acesso em: 20/11/2013. 5 A DELBRASUPA é a Missão Permanente do Brasil junto à Organização dos Estados Americanos, que tem por responsabilidade representar os interesses do Brasil junto à OEA e aos demais órgãos que compõem o sistema interamericano, segundo informação do seu sítio oficial. Disponível em: . Acesso em: 20/11/2013. 6 Trata-se da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 1969, que arrola obrigações precisas em matéria de direitos humanos, voluntariamente aceitas pelos Estados, dotada de duas guardiãs: uma Comissão, como órgão político, encarregado do controle do comportamento dos Estados, aos quais pode endereçar recomendações; e uma Corte, como órgão jurisdicional, a quem a Comissão encaminha casos persistentes de violação da Convenção pelos Estados, que também responde a consultas dos Estados sobre a interpretação do direito interamericano (VENTURA, Deisy; CETRA, Raísa. O Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos de Maria da Penha a Belo Monte. In: Justiça de Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. 1 ed. Belo Horizonte: Forum, 2013, pp. 343-402).

 

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política7. Assim, para os fins deste texto, a democratização de um órgão do Estado significa que ele passa a contribuir para que essa concepção de democracia seja implementada. Cultura política, por sua vez, designa o conjunto de atividades, normas e crenças sobre os fenômenos políticos que são partilhados pelos membros de uma determinada unidade social8. Os critérios utilizados para escolha do caso referente ao cumprimento da LAI pelo MRE foram: a importância do tema questionado, que pode ser aferida não apenas por sua presença no debate público nacional, mas igualmente porque diz respeito aos compromissos com os direitos e garantias individuais, que conformam uma das cláusulas pétreas da Constituição Federal em vigor9; a facilidade de acesso às fontes primárias (texto integral de pedidos, respostas e recursos) que foram disponibilizadas em rede pela Conectas10; a disposição da ONG de fornecer entrevista, na qual foi aplicado um questionário semi-estruturado11. Na primeira parte do texto, será feito um panorama sobre os elementos da cultura política do MRE 7

HELD, David. Modelos de Democracia. 3 ed. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p.390. 8 BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. V.1. 11 ed. Brasília: Ed. UNB, 1998, p.306. 9 Art. 60 IV. 10

Ver . Acesso em: 20/11/2013. 11 “É uma característica dessas entrevistas que questões mais ou menos abertas sejam levadas à situação de entrevista na forma de um guia. Espera-se que essas questões sejam livremente respondidas pelo entrevistado. (...) o uso consistente de um guia da entrevista aumenta a comparabilidade dos dados, e sua estruturação é intensificada como resultado das questões do guia” (FLICK, Uwe. “Entrevistas semiestruturadas”. In: Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2 ed. Porto Alegre: Bookman, 2004, p.106-7).

 

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Natália Araújo & Deisy Ventura

que poderiam interferir em sua resistência ao processo de democratização, além de uma breve referência à literatura sobre a democracia e o Itamaraty. Na segunda parte do texto, será apresentado o caso. Por fim, será empreendida sua análise crítica à luz da hipótese já descrita.

1. Elementos da cultura política do Itamaraty e democracia O prestígio do Itamaraty afirma-se no início do século XX12, especialmente por obra de seu patrono, o Barão do Rio Branco13. Após a Segunda Guerra Mundial, o MRE tornou-se “uma agência estatal progressivamente insulada, sob a guarda de uma corporação profissional altamente especializada”, que “praticamente monopolizou no país a expertise nos assuntos internacionais, gozando de grande prestígio no interior da má-

12 FONSECA JR., Gelson. Política externa brasileira: padrões e descontinuidades no período republicano. Relações Internacionais. 2011, n.29, pp.15-32. 13 “... o que realmente sobressai é o agigantamento diante da opinião pública brasileira, que o trouxe de volta ao Brasil como Ministro de Estado das Relações Exteriores [1902 a 1912]. A gestão Rio Branco à frente do Itamaraty é de fato um divisor de águas, tanto do ponto de vista administrativo, no que toca à modernização de procedimentos da Secretaria de Estado, quanto político. A consolidação dos limites – com a conclusão das negociações com todos os vizinhos de então –, a engenharia política para a América do Sul, a rivalidade com a Argentina e o comando inspirado pela noção fundamental de prestígio, entre outros marcos, compõem um alentado compêndio da história do Brasil, no qual Rio Branco desponta como um traço de união, ligando as tradições da inserção internacional do Império ao modus operandi titubeante da República nascente” [grifo nosso], LESSA, Antônio Carlos. O Barão do Rio Branco e a inserção internacional do Brasil. Rev. bras. polít. int. 2012, vol.55, n.1, pp. 5-8.

 

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quina pública, na sociedade de uma maneira geral e também no exterior14”. Fundamental na atuação internacional dos Estados15, a busca de prestígio traduz-se diretamente no comportamento do MRE no plano interno. Segundo Dawisson Belém Lopes, autor de um estudo de referência sobre a democracia e a política externa brasileira16, o processo de democratização do Estado não conseguiu arrefecer o “republicanismo aristocrático” que permeia nossa política externa desde sua origem. Assim, baseado na ideia de que a “coisa pública” deve ficar nas mãos dos “mais preparados”, o Itamaraty reflete no sistema de recrutamento de seus quadros os critérios supostamente meritocráticos propostos pela elite brasileira; este “viés aristocrático tem consequências muito práticas17”. Nesse sentido, duas críticas recentes ao MRE alcançaram grande repercussão no Brasil. A primeira delas é uma acusação de racismo. Na opinião do atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Joaquim Barbosa, “o Itamaraty é uma

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DE FARIA, Carlos Aurélio Pimenta. O Itamaraty e a política externa brasileira: do insulamento à busca de coordenação dos atores governamentais e de cooperação com os agentes societários. Contexto int. 2012, vol.34, n.1, pp. 311-355. 15 “A diplomacia atual se caracteriza pela incessante busca de oportunidades de acumular prestígio. O prestígio é um dos elementos componentes do poder, do que hoje se denomina soft ou smart power, o poder suave, brando, o poder inteligente, a capacidade de persuadir pelo exemplo e os argumentos, em contraposição ao poder contundente dos armamentos ou da coerção econômica”, RICUPERO, Rubens. À sombra de Charles de Gaulle: uma diplomacia carismática e intransferível. A política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Novos estud. - CEBRAP 2010, n.87, pp. 35-58 . 16 Política externa e democracia no Brasil: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Unesp, 2013. 17 ARAÚJO, Ana Rita. Diplomacia de aristocratas - Em ensaio, professor da UFMG analisa viés elitista da política externa brasileira. Boletim UFMG n.1833, Ano 39, 26/08/2013.

 

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das instituições mais discriminatórias do Brasil”18. A segunda emergiu da auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), relativa a um contrato firmado pelo MRE, em 2009, e diz respeito ao fausto dos banquetes oferecidos pela instituição, a custo muito superior ao gasto correlato de outros órgãos do Estado. A explicação do Itamaraty foi a de que serviços referentes a refeições “requerem cardápios” que contemplem ingredientes “da mais alta qualidade” e que obedeçam às peculiaridades culturais das delegações homenageadas, justamente por serem organizados para altas autoridades estrangeiras19. Outra característica marcante do Itamaraty é o “apreço por hierarquias e cadeias de comando”, razão pela qual “os diplomatas são conhecidos como os militares de terno e gravata”; quando a orientação da chefia não é seguida à risca, “fabrica-se a fórceps a obediência”20. Este traço de sua cultura institucional provavelmente contribuiu para que o MRE desempenhasse importante papel durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), recentemente resgatado pela literatura: 18

Entrevista concedida a Miriam Leitão, Joaquim Barbosa: Brasil não está preparado para um presidente negro, O Globo, 28/07/2013. O Ministro explica: “Passei nas provas escritas, fui eliminado numa entrevista, algo que existia para eliminar indesejados. Sim, fui discriminado”, ibid. 19 MATOSO, Filipe, “TCU identifica ‘sobrepreço’ em banquetes oferecidos pelo Itamaraty”, G1, Brasília, 01/11/2013. Segundo o Relator do processo, Ministro Benjamin Zymler, “enquanto atualmente o Cerimonial [do Itamaraty] desembolsa em cada café da manhã de até quatorze pessoas o valor unitário de R$ 159,09, o Senado [Federal] registrou o valor de R$ 30,00 por pessoa. Para o item almoço ou jantar à francesa para até quatorze pessoas, o Senado registrou o valor de R$ 120,00 por pessoa, enquanto no MRE esse item custa o valor de R$ 237,00. Diferenças significativas como essas ocorrem em vários outros itens”, ibid. 20 LOPES, Dawisson Belém. Itamaraty sofre processo de esvaziamento no atual governo. Folha de S.Paulo, 27/08/2013.

 

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“Até pouco tempo atrás, era comum representantes da diplomacia brasileira, e mesmo alguns acadêmicos, afirmarem que o Ministério das Relações Exteriores havia “sobrevivido” ao regime de exceção mais ou menos incólume, ou seja, que não havia colaborado diretamente com a repressão. Tal fato, efetivamente, não ocorreu. Houve uma intensa atividade de espionagem e monitoramento das atividades até mesmo da vida pessoal de muitos brasileiros que se encontravam exilados após o Golpe de Estado de 1964 em diversos países, fato que contou, inclusive, com a colaboração de outros governos. Os próprios funcionários do Itamaraty passaram pelo calvário dos expurgos no período inicial do Golpe de Estado. Vários Memorandos internos comprovam o comportamento bastante agressivo que alguns diplomatas adotaram frente a colegas e outros funcionários que eram simpatizantes do pensamento de esquerda. Uma vez instituído, o CIEX [Centro de Informações do Exterior21] também passou a exercer a função de ‘dedo duro’, elaborando dossiês e agindo como um tentáculo do SNI dentro do Itamaraty”22.

O fato da colaboração com o regime militar ter “passado despercebida por tantas décadas” denota não apenas que pouco se sabia sobre o Itamaraty, mas também a “postura de autoproteção da corporação diplomática do país”, notavelmente empenhada “não somente na produção da política externa, mas também na sua divulgação e na reflexão sobre a sua prática profissional”23. A propósito, estudos sobre a íntima conexão 21

Criado no âmbito do MRE e vinculado ao Serviço Nacional de Informações (SNI), funcionou entre 1966 e 1988. 22 PENNA FILHO, P. Os Arquivos do Centro de Informações do Exterior (CIEX): O elo perdido da repressão. Revista Acervo, n.21, nov. 2011, pp.79-92. 23 DE FARIA, Carlos Aurélio Pimenta. O Itamaraty e a política externa brasileira: do insulamento à busca de coordenação dos atores governamentais e de cooperação com os agentes societários. Contexto int. 2012, vol.34, n.1, pp. 311-355.

 

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entre a produção intelectual de diplomatas e a produção de acadêmicos atuantes no campo da política externa têm perscrutado a origem do reconhecimento do diplomata como intelectual, fenômeno que é tido como legítimo e estimulado pela sociedade brasileira24. Por outro lado, a extraordinária influência do Itamaraty resulta igualmente de um grande problema conceitual. A política internacional sempre foi considerada como “externa” ao Estado, e distinta de toda e qualquer política doméstica: “apenas as políticas domésticas seriam consideradas ‘políticas públicas’, ou seja, respostas do Estado a situações socialmente problematizadas”, numa estratégica recusa ao reconhecimento de que “as políticas interna, externa e internacional compõem um continuum de processo decisório”25. Porém, parece haver progresso, nos últimos anos, no que tange à horizontalização do processo decisório em matéria de relações internacionais no seio do Poder Executivo brasileiro. Recente pesquisa sobre as normas relativas às competências dos diferentes órgãos do Poder Executivo revelou que cerca de 50% deles 24

“Ao diplomata, funcionário de carreira e membro de uma forte burocracia de Estado, as distinções entre sua atuação política e sua produção intelectual nem sempre são claras ou mesmo possíveis de serem delineadas. (...) Nós acadêmicos somos em grande parte os responsáveis por desconsiderar esses não ditos ao alimentarmos o reconhecimento de um estatuto de igualdade perante as obras analíticas de diplomatas. E da mesma forma seremos os responsáveis por contribuir para o enfraquecimento das características que, justamente, concedem legitimidade e potencial relevância à nossa produção: o espírito crítico, a capacidade de superação de regimes de verdade e a criatividade essencial para a renovação do saber”, PINHEIRO, Leticia; VEDOVELI, Paula. Caminhos Cruzados: diplomatas e acadêmicos na construção do campo de estudos de Política Externa Brasileira. Revista Política Hoje. Vol. 21, No 1 (2012): Dossiê "Política e Corrupção", pp. 211-254. 25 RATTON SANCHEZ, Michelle; SILVA, Elaini C. G. da; CARDOSO, Evorah L. and SPECIE, Priscila. Política externa como política pública: uma análise pela regulamentação constitucional brasileira (1967-1988). Rev. Sociol. Polit. 2006, n.27, pp. 125-143.

 

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podem agir nesta seara, alguns deles dispondo inclusive de funções de representação do Brasil no exterior, sem que fique claro, contudo, como tais organismos articulam-se com o MRE, entre si e com a sociedade26. Além da concorrência de outros órgãos do Poder Executivo, desde a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em 2003, “tornaramse frequentes as manifestações públicas, principalmente por parte de diplomatas aposentados, de repúdio aos métodos, objetivos e prioridades da cúpula do MRE”, questionando especialmente a suposta “ideologização e/ou partidarização da política externa do país”: a visibilidade do dissenso intracorporativo se deve não apenas ao não compartilhamento de políticas e estratégias, mas também àquilo que a Análise de Política Externa denomina de "política da burocracia". Cabe recordarmos que vários dos mais importantes cargos do serviço exterior brasileiro foram ocupados, na gestão Lula da Silva, por diplomatas que amargaram certo escanteamento durante o governo anterior. (...) a perda da coesão interna do Itamaraty pode ser vista tanto como fruto da politização da política externa, hoje inevitável, quanto como elemento central neste processo, ainda ambíguo, de desencapsulamento do Ministério das Relações Exteriores”27.

No entanto, a mudança mais importante, considerando o objetivo deste artigo, é que, com o advento da democracia, cresceram também as exigências de maior participação da sociedade no debate da política 26

FRANÇA, Cassio; SANCHEZ-BADIN, Michelle Ratton. A inserção internacional do Poder Executivo federal brasileiro. Análises e propostas ; n.40. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2010. 27 DE FARIA, Carlos Aurélio Pimenta. O Itamaraty e a política externa brasileira: do insulamento à busca de coordenação dos atores governamentais e de cooperação com os agentes societários. Contexto int. 2012, vol.34, n.1, pp. 311-355.

 

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internacional: “a sua palavra passa a contar na legitimação da atuação internacional do Brasil – não só para se beneficiar dos proveitos, mas, acima de tudo, para se conscientizar dos custos do protagonismo internacional”28. Embora o Brasil não possua um mecanismo institucional de consulta e participação social para a elaboração da política externa, a partir dos governos de Lula algumas iniciativas foram tomadas em setores específicos, como o Programa Mercosul Social e Participativo, o Foro Consultivo Econômico-Social do Mercosul e Conselho Consultivo do Setor Privado da Câmara de Comércio Exterior, que são âmbitos de diálogo com a sociedade, desprovidos de poder decisório. Teria havido melhora, ainda, na “disposição do Itamaraty para informar sobre diversos assuntos da política externa em resposta à requisição de organizações e movimentos sociais e para incluir representantes destas entidades em delegações oficiais do Brasil no exterior”29. É difícil precisar os fatores determinantes desta relativa abertura em relação à sociedade. No que se refere a temas de política internacional, “os povos, os grupos sociais, os indivíduos em geral são tratados, tradicionalmente, como intrusos”, mas, a depender de sua legitimidade, o custo político de ignorá-los é muito alto: À medida que um espaço público internacional se vai consolidando, a diplomacia passa a ser perturbada pelos agentes da sociedade - mesmo quando os atores sociais não se dão conta, ao fazerem de28

FONSECA, Carmen. A política externa brasileira da democracia: O paradoxo da mudança na continuidade? Relações Internacionais 2011, n.29, pp. 33-43. 29 Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais, Pela criação de um órgão institucional permanente de consulta, participação e diálogo sobre a Política Externa Brasileira - Carta ao Ministro das Relações Exteriores, Conferência Nacional “2003-2013 – uma nova política externa”, São Bernardo do Campo, 16/07/2013.

 

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mandas que se anunciam como domésticas, mas que remetem a processos de negociação travados para além das fronteiras nacionais. O saldo da operação é uma política externa não monolítica, não unânime, repleta de dissensos internos quanto a suas ênfases e métodos, resultante da agregação assimétrica de interesses de atores sociais e institucionais bastante diversos entre si30.

Neste diapasão, a produção acadêmica brasileira recente está voltada sobretudo ao estudo ou da política externa brasileira após o advento da democracia (desde 1985), ou da democratização do processo de elaboração da política externa, sendo raras as abordagens de aspectos específicos da estrutura ou da cultura política do MRE. Na base de dados acadêmica Scielo, por exemplo, as pesquisas com os descritores “Itamaraty” e “democracia” não indicam resultados; o descritor “Ministério das Relações Exteriores” oferece 12 resultados, dos quais apenas um é pertinente ao tema; com os descritores “política externa” e “democracia”, foram obtidos 6 resultados, dos quais 4 foram relevantes para a pesquisa e são citados neste texto; com os descritores “Itamaraty” e “transparência”, um resultado foi encontrado, mas irrelevante para a pesquisa; finalmente, não houve resultado para buscas com os descritores “política externa brasileira”, “acesso” e “informação”, tampouco com os descritores “Itamaraty”, “acesso” e “informação”. A revisão da literatura vai no sentido de que o crescente aumento da participação de novos atores nas 30

LOPES, Dawisson Belém. A política externa brasileira e a ‘circunstância democrática’: do silêncio respeitoso à politização ruidosa. Rev. bras. polít. int. 2011, vol.54, n.1, pp. 67-86. Quanto ao uso da expressão “intruso” para referir o papel da sociedade civil na política externa, o autor faz referência à obra de Bertrand Badie, Le diplomate et l’intrus, Paris: Fayard, 2008.

 

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questões de política externa vem levando a uma mudança no padrão decisório brasileiro. Porém, “... embora esses espaços de diálogo venham sendo abertos em relação a outros atores estatais e mesmo atores não-estatais, no que se refere à estrutura interna do Ministério das Relações Exteriores, o que se observa é a manutenção do status quo organizacional, ou seja, preservando-se a estrutura decisória altamente centralizada e hierarquizada na cúpula, sendo os aspectos da funcionalidade da carreira, dos cargos e dos despachos mantidos”31.

Assim, estudos consistentes sobre o padrão decisório do Itamaraty apontam a existência de duas lógicas administrativas distintas em seu seio: “em primeiro lugar, o aumento da porosidade pressupõe diminuição do insulamento burocrático com a incorporação de preceitos gerenciais, que visam a atender os interesses dos cidadãos (cliente); por outro lado, a hierarquização e a rigidez funcional pressupõem centralização administrativa, princípio este amplamente criticado pela nova proposta de gestão pública. Portanto, verifica-se um processo de mudança ainda incipiente, onde há sobreposições de lógicas administrativas distintas, uma em direção à mudança, outra em direção à resistência e à manutenção do status quo. Quais dessas tendências prevalecerão na dinâmica decisória em política externa no Brasil dependerá sem dúvida da resposta do MRE a uma fase que requer mudança e adaptação institucional” [grifo nosso]32.

Não há dúvidas de que a maneira como a política externa é formulada pelo Itamaraty está diretamente 31

FIGUEIRA, Ariane Roder. Rupturas e continuidades no padrão organizacional e decisório do Ministério das Relações Exteriores. Rev. bras. polít. int. 2010, vol.53, n.2, pp. 5-22. 32 Ibid.

 

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relacionada ao grau de democratização de suas estruturas. No entanto, o presente artigo busca um recorte que foi pouco estudado na literatura sobre a democratização da política externa: a participação informada. Em outras palavras, o conceito de democracia aqui adotado pressupõe, mais do que a proliferação de espaços de consulta e diálogo, uma significativa ênfase na qualidade da informação que é disponível aos que atuam nos novos âmbitos de participação relativos à política externa. Neste particular, o MRE é considerado “uma corporação opaca, sem transparência, que está começando a se repensar, mas em marcha muito lenta”33.

2. O pedido de informações sobre a posição do Brasil em relação ao SIDH O direito de acesso à informação é constitucionalmente garantido desde 1988. O artigo 5º da Constituição Federal em seu inciso XIV, afirma que “é garantido a todos o acesso à informação”. De acordo com o artigo 37, a publicidade é um dos princípios da Administração Pública. Tal princípio é reforçado no artigo 216 §2º, em virtude do qual “cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem”. A Lei nº 12.527 (LAI), de 18 de novembro de 2011, tem por finalidade regulamentar o direito constitucional de acesso dos cidadãos às informações públicas e seus dispositivos são aplicáveis aos três Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

33

LOPES, Dawisson. In: ARAÚJO, Ana Rita. Diplomacia de aristocratas - Em ensaio, professor da UFMG analisa viés elitista da política externa brasileira. Boletim UFMG n.1833, Ano 39, 26/08/2013.

 

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Sob o prisma do Senado Federal, a importância desta lei se deve ao fato de que “as instituições, na atual quadra da história, ampliam a sua legitimidade na medida em que democratizam as suas informações junto à sociedade organizada e à própria cidadania. Esse processo ocorre justamente porque o acesso à informação facilita a ação das pessoas, reduz tempo e custos, aumenta a eficiência, tudo isso em favor da credibilidade institucional”34.

Todos os órgãos públicos têm o dever da transparência passiva mas também ativa, o que significa que, somando-se à obrigação de fornecer informações sempre que elas forem solicitadas, todas as instituições devem, de maneira espontânea, divulgar dados e fatos que possam ser do interesse geral da sociedade. Essa divulgação deve ser feita da maneira acessível à população, para que não se depreenda grande esforço para obter a informação procurada. O parágrafo 2º do artigo 8º da LAI dispõe que “os órgãos e entidades públicas deverão utilizar todos os meios e instrumentos legítimos de que dispuserem, sendo obrigatória a divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet)”. A LAI previu exíguos seis meses para que os órgãos públicos se adaptassem aos seus dispositivos. Porém, “o projeto de lei que originou a Lei de Acesso à Informação foi enviado ao Congresso nos idos de 2009, e aprovado no fim de 2011. Logo, é evidente que o tema já vem sendo debatido há anos e nada impedia que as instituições se antecipassem, na 34

Prefácio, Cartilha Lei de Acesso à Informação no Brasil – O que você Precisa Saber. Disponível em: < http://www.interlegis.leg.br/produtos_servicos/informacao/bibliote ca-virtual-do-programa-interlegis/cartilha-lei-de-acesso-ainformacao> Acesso em: 20/11/2013.

 

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medida do possível, em relação ao objeto das propostas. Infelizmente, a cultura da opacidade é quase onipresente no País e muitas de nossas instituições ainda querem lutar em sentido contrário ao ideal republicano da transparência que fundamenta e orienta a formação do nosso Estado”35.

No primeiro dia de vigência da LAI, em maio de 2012, a Conectas apresentou ao então Ministro das Relações Exteriores, Antônio de Aguiar Patriota, o requerimento de “todos os despachos telegráficos, telegramas e outras formas de comunicação que contenham instruções existentes entre Brasília e a Missão Permanente do Brasil Junto à Organização dos Estados Americanos (OEA)” relacionadas “às posições adotadas pelo Brasil no processo de fortalecimento do SIDH” do órgão, que foi levado a cabo entre 29 de maio de 2011 e 25 de janeiro de 201236. A referida atuação da missão brasileira ocorreu no âmbito do “Grupo de Trabalho e Reflexão sobre o Funcionamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CmIDH) com vistas a Fortalecer o Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, criado pelo Conselho Permanente da OEA. Esse Grupo de Trabalho despertou, desde a sua criação, suspeitas por parte da sociedade civil, da academia e da própria Comissão de que, ao contrário do que indica seu nome, o escopo fosse o enfraquecimento do Sistema. Com efeito, a princípio, na agenda de trabalho do Grupo, “somente foram incluídos os temas que evidentemente representam um incômodo para os Estados e não outros que são prioritários para o fortalecimento do SIDH, como o cumprimento e a implementação das 35

CUSTÓDIO, Rafael; CHARLEAUX, João Paulo. Contra a opacidade. O Estado de São Paulo, 13/05/2012. 36 Pedido de Acesso à Informação n° 09200.000058/2012-13 - Resposta ao recurso impetrado em 28 de junho de 2012. Disponível em: . Acesso em: 20/11/2013.

 

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decisões, a eleição de autoridades e integrantes tanto da CmIH como da CrIDH (Corte Interamericana), ou o acesso das vítimas ao sistema, entre outros”37. Em 18 de junho de 2012, excedendo por um dia o prazo máximo para envio de resposta ao pedido de acesso à informação, o MRE alegou, por meio do Serviço de Informação ao Cidadão, que a quase totalidade dos expedientes solicitados havia recebido a classificação de “reservados, em razão das implicações que poderiam advir sobre a participação do Brasil no processo negociador e divulgação, antes de sua conclusão, de posições ou comentários sobre posições de outros países a respeito”38. A Conectas contra-argumenta que “o informe final do Grupo de Trabalho já foi adotado pelo Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos no dia 25 de janeiro de 2012, concluindo o processo iniciado em junho (de 2011) com a criação do Grupo de Trabalho e colocando fim ao seu mandato”39. Nas regras procedimentais adotadas, em 11 de agosto de 2011, para o funcionamento do GT, é expressa a determinação de que o grupo seria “um processo limitado no conteúdo e no tempo, diferente do regular e contínuo ‘processo de reflexão sobre o Sistema Interamericano para a promoção dos direitos humanos’ que tem sido desenvolvido pela Comissão dos Assuntos Jurídicos e Políticos (CAJP) com a CmIDH e CrIDH”40. Fica evidente, portanto, que nenhum processo negociador em curso poderia ser prejudicado. 37

AMATO, Victoria. Una mirada al proceso de reflexión sobre el funcionamiento de la CIDH, Aportes DPLf 2012, n.16, p.5. Disponível em . Acesso em: 20/11/2013. 38 Pedido de Acesso à Informação n° 09200.000058/2012-13 - Resposta ao recurso impetrado em 28 de junho de 2012. Disponível em: . Acesso em: 20/11/2013. 39 Ibid. 40 Sem título. Disponível em: . Acesso em: 20/11/2013.

 

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Ainda que se alegue a continuidade dos debates sobre o fortalecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, seria possível amparar-se na LAI, que em seu artigo 24 § 3º determina: “alternativamente aos prazos previstos no § 1º, poderá ser estabelecida como termo final de restrição de acesso a ocorrência de determinado evento, desde que este ocorra antes do transcurso do prazo máximo de classificação.” A apresentação das recomendações do Grupo de Trabalho deveria ocorrer até a primeira sessão regular do Conselho Permanente, em dezembro de 201141. O Itamaraty afirma que a solicitação de informação poderia ser considerada atendida, uma vez que a divulgação em rede de internet das posições finais do GT cumpriria este papel. Finalizando a carta de correspondência, o Ministério oferece dois telegramas, dentre noventa e oito que não foram considerados reservados ou secretos42, dos quais um dizia respeito à própria ONG, e outro aprovava a agenda para um evento em Washington, nos Estados Unidos, não dizendo respeito às informações requeridas43. Diante da negativa de acesso aos telegramas solicitados, a Conectas impetrou um recurso, em 28 de junho de 2012, sob o argumento de que o pedido fora totalmente ignorado, uma vez que dizia respeito ao “acesso às informações acerca dos debates ocorridos no âmbito do Grupo de Trabalho” e que, apesar da disponibilidade dos documentos relativos ao posicionamento do Brasil no GT em site eletrônico, o material não

41

Sem título. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013. 42 Itamaraty nega acesso a telegramas sobre direitos humanos. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013. 43 Sem título. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013.

 

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abordava as posições que estavam sendo solicitadas, a saber: as posições do Brasil diante do mecanismo de critérios para a construção do capítulo IV do informe anual da CIDH; as posições do Brasil com relação a propostas apresentadas durante o processo pelos demais Estados da OEA; e o fluxograma dos processos de tomada de decisão envolvendo diferentes órgãos do Estado brasileiro, como a Presidência da República, o Ministério das Relações Exteriores e a Delbrasupa e a Secretaria de Direitos Humanos. A ONG considerou que a negativa de acesso omitiu-se por prescindir de fundamentação legal que justificasse a classificação de documentos como “reservados”, além de ter deixado de apresentar a identidade da autoridade classificadora e o “código de indexação do documento classificado44”. A ausência de justificativa colide com o artigo 23 da LAI, que explicita as situações que levam à classificação de informações “consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado”. No expediente em apreço, o Itamaraty não fez, todavia, menção à segurança da sociedade ou do Estado. Confronta igualmente o artigo 28 da LAI, em virtude do qual a “classificação de informação em qualquer grau de sigilo deverá ser formalizada em decisão que conterá, no mínimo, os seguintes elementos: I - assunto sobre o qual versa a informação; II - fundamento da classificação, observados os critérios estabelecidos no art. 24; III - indicação do prazo de sigilo, contado em anos, meses ou dias, ou do evento que defina o seu termo final, conforme limites previstos no art. 24; e IV - identificação da autoridade que a classificou”. No mesmo sentido, o Decreto nº 7.724/2012, que regula44

Sem título. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013.

 

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menta a LAI, dispõe que “as razões de negativa de acesso à informação classificada indicarão o fundamento legal da classificação, a autoridade que a classificou e o código de indexação do documento classificado” (artigo 19§1º). A partir da resposta do Itamaraty, seguiu-se uma troca de correspondências entre esse órgão e a Conectas, e entre ela e a Controladoria-Geral da União, para quem os recursos foram encaminhados, diante das sucessivas recusas aos pedidos de acesso à informação, sem fundamentação idônea, por parte do MRE. Até a finalização do presente artigo, havia registro de dez correspondências enviadas pela Conectas, entre pedidos de informação, recursos e reenvio de e-mail devido à ausência de resposta; 5 correspondências do Itamaraty, entre respostas e despacho à Controladoria Geral da União; 4 respostas da CGU, que primeiro admite o recurso da ONG para depois negá-lo, encaminhando-o à Comissão Mista de Reavaliação de Informações do próprio órgão, e enfim 6 respostas dessa Comissão. Esse processo transcorreu entre 16 de maio de 2012 e 21 de maio de 2013. Em resposta ao recurso de 28 de junho, impetrado pela ONG, o Ministério das Relações Exteriores apresentou uma correspondência, em 3 de julho45, quando expirava o prazo legal correspondente, informando que a resposta definitiva ao recurso só seria enviada no dia 5 de julho, devido a circunstâncias internas46. Fica evidente, portanto, que o Itamaraty lida com prazos de maneira discricionária, apresentando respostas na data que lhes é conveniente, a exemplo de 45

Pedido de Acesso à Informação no. 09200.000058/2012-13 - Resposta ao recurso impetrado em 28 de junho de 2012. Disponível em: < http://www.conectas.org/arquivossite/RESPOSTA%20AO%20RECURSO%20MRE1.pdf> Acesso em: 20/11/2013. 46 Sem título. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013.

 

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outras duas respostas à Conectas (sobre quatro) que foram apresentadas fora do prazo47. Por outro lado, o MRE alegou “que o sigilo seria necessário ‘para preservar a credibilidade e a confiabilidade do país como parceiro em negociações internacionais’”48. O Itamaraty afirmou também que parte das informações em questão teria sido fornecida sigilosamente por outros países. Entretanto, não apresentou quaisquer provas de que isto realmente tenha acontecido. Na resposta ao recurso impetrado pela ONG, o Itamaraty informou que as autoridades classificadoras dos documentos solicitados foram, no caso de comunicações recebidas da Delbrasupa, o Chefe ou o Encarregado de Negócios daquela Missão e, no caso das comunicações expedidas pela sede diplomática em Brasília, os titulares da Divisão de Direitos humanos e/ou do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais. Os documentos solicitados foram classificados antes da entrada em vigor da LAI, razão pela qual não se pode exigir a apresentação do Termo de Classificação de Informação49, já que este foi criado pela nova

47

Resposta do MRE em 18/06/2012 ao pedido inicial da Conectas, apresentada com um dia de atraso e resposta do MRE ao primeiro recurso da Conectas, em 28/06/2102, dois dias depois do encerramento do prazo. 48 Disponível em: Acesso em: 20/11/2013. 49 “De acordo com o Decreto nº 7.724, ao classificar uma informação, a autoridade competente deverá formalizar sua decisão no Termo de Classificação de Informação (TCI), informando, entre outros dados, o grau de sigilo, a categoria na qual se enquadra a informação, o tipo de documento, as razões da classificação, o prazo de sigilo ou evento que definirá o seu término, o fundamento da classificação e a identificação da autoridade classificadora. O TCI deve ser anexado à informação classificada.” Disponível em:

 

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legislação. Entretanto, eles devem conter ao menos o que é estipulado nos incisos do artigo 28, supracitado. Além de que, “segundo a redação do artigo 31 do Decreto, nenhum desses elementos deve ser mantido sob o mesmo grau de sigilo da informação classificada”50. Os dois telegramas que foram liberados por meio da resposta do Itamaraty ao primeiro pedido de informação pela Conectas eram os únicos ostensivos, enquanto os outros expedientes “em sua quase totalidade, foram classificados como reservados”51. No entanto, na segunda negativa de acesso, o MRE fez referência a documentos classificados como “secretos” e “ultrassecretos”, cuja existência não havia sido, até então, mencionada. Questiona-se, portanto, o motivo dessa documentação não ter sido de antemão mencionada pelo órgão. Ademais, assim como em outras correspondências, o Itamaraty não fornece nenhuma informação básica sobre estes documentos: quais são, quantos são, o que justifica a classificação e qual foi a autoridade responsável. Considerando que “a existência de um recurso (um ‘segundo olhar’ sobre o mesmo fato) obviamente pressupõe que aquele que profere a primeira decisão não irá analisar novamente, ele mesmo, em sede de recurso, o mesmo pedido”52, a ONG sustentou que o Itamaraty não garantiu uma instância recursal fidedigna, uma vez que o despacho de 27 de julho foi assinado pelo mesmo funcionário do MRE que já havia assinado a resposta do órgão ao primeiro recurso da Conectas, . Acesso em: 20/11/2013. 50 Sem título. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013. 51 Ibid. 52 Sem título. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013.

 

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em 5 de julho. Ambos os documentos mantinham a decisão de negar o acesso às informações solicitadas. Também é importante considerar que o artigo 27 do Decreto 7.724/2012 determina que, para a classificação das informações, deverá ser observado o interesse público e utilizado o critério menos restritivo possível. É do interesse público o acesso às informações em posse do governo53, somando-se a isso o fato de que a nova legislação tem por objetivo justamente por termo à cultura de opacidade e de ocultamento do Estado brasileiro54. Além disso, não parece haver obediência ao critério menos restritivo possível quando, em uma correspondência, o Itamaraty faz menção a documentos ostensivos e reservados e, em outra, coloca a existência de documentação secreta e ultrassecreta, que não havia sido anteriormente explicitada. Por meio da análise das correspondências trocadas entre a Conectas e o MRE, é possível tecer também algumas considerações a respeito da maneira como o Ministério lida com a natureza de suas funções. Em 16 de agosto de 2012, o Itamaraty envia um documento à Conectas com referência às informações passíveis de classificação sobre as quais trata o artigo 25 do Decreto55. Nele, afirma que as informações sob custódia 53

ASANO, Camila. Entrevista concedida a Natália Lima de Araújo [gravação em celular], São Paulo, outubro de 2013. Segundo a entrevistada, “ninguém usa a linguagem ‘eu tenho direito a acesso à informação como um direito humano’. Ainda é em outras chaves: a chave da não corrupção, da boa governança, de contas abertas. Mas acho que existe sim uma pressão que está e crescendo porque claro, não é? A democracia vai se fortalecendo e as pessoas vão querendo mais”, ibid. 54 CUSTÓDIO, Rafael; CHARLEAUX, João Paulo. Contra a opacidade. O Estado de São Paulo, 13/05/2012. 55 Resposta do Ministério das Relações Exteriores aos recursos interpostos pela Conectas Direitos Humanos. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013.

 

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do Estado concernentes ao dever de ofício do Ministério das Relações Exteriores são, “como regra, informações que devem ser classificadas por se enquadrarem em categoria de informações cuja divulgação ou acesso irrestrito causaria prejuízo aos próprios objetivos que o Estado almeja concretizar”. Este argumento esbarra frontalmente com a ideia já referida de que a política externa do Brasil é uma política pública tal como as outras. Se as informações são secretas, não haverá controle pelo cidadão das decisões do Estado em determinadas temáticas; e se elas não são passíveis de divulgação por dificultarem a concretização dos objetivos do Estado, questiona-se, então, como a sociedade terá conhecimento de tais objetivos. O Itamaraty afirma que a troca de informações que envolvem as negociações diplomáticas é feita de forma sigilosa. Porém, a ideia de que a atividade diplomática deve ser mantida sob sigilo já foi questionada em 1918, quando o então presidente estadunidense Woodrow Wilson apresenta seus Catorze Pontos, cuja cláusula primeira defende acordos que sejam negociados publicamente56. O Brasil encontra-se na contramão de práticas que têm se tornado comuns desde o início do século XX, quando sequer existiam organismos nos quais se desenvolve a diplomacia, como a Organização das Nações Unidas. Por outro lado, em diversos documentos, o Itamaraty exalta a necessidade de preservar a reputação e a imagem do Brasil no cenário internacional. Primeiramente, o faz na resposta ao recurso impetrado em 28 de junho de 2012, sustentando que “a manutenção do sigilo das comunicações solicitadas revela-se essencial não somente para evitar por em risco a posição negociadora brasileira sobre 56

MELLO, Valérie de Campos. Globalização, regionalismo e ordem internacional. Rev. bras. polít. int. 1999, vol.42, n.1, pp. 157-181

 

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o tema - com reflexos evidentes sobre a condução das negociações -, mas também para preservar a credibilidade e a confiabilidade do país como parceiro em negociações internacionais”57.

No documento endereçado à Conectas em 16 de agosto, essa ideia é novamente explicitada ao se comentar sobre a “função que o órgão responsável pela atividade diplomática tem como condutor e formulador de estratégias de inserção, projeção e consolidação da imagem e dos interesses de um Estado soberano em território estrangeiro”58. Em se tratando de direitos humanos, que deveriam ser considerados valores universais e não interesses suscetíveis à barganha do Estado59, parece deslocada a justificativa do Itamaraty. No mesmo documento, o MRE continua referindo assuntos que não parecem pertinentes ao pedido de informações da ONG. Em outro trecho, o órgão menciona a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1961, cujos artigos 24 e 27 tratam do sigilo e da inviolabilidade da comunicação diplomática. Essa referência, porém, é inócua, visto que não se trata de violação de correspondência devido à má fé ou executada com uso da força física, mas se trata do direito democrático do acesso à informação, como respondeu a Conectas em outra correspondência. Para sustentar sua posição no que toca ao sigilo das informações solicitadas, o Itamaraty utiliza também o costume e a normativa internacional (dessa vez, 57

Pedido de Acesso à Informação no. 09200.000058/2012-13 Resposta ao recurso impetrado em 28 de junho de 2012. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013. 58 Disponível em: Acesso em: 20/11/2013. 59 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Os direitos humanos como valor universal. Lua Nova 1994, n.34, pp. 179-188.

 

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sem referência concreta a tratados) para afirmar que os resultados das negociações devem ser públicos. Tal publicidade não deveria servir de pretexto para a não divulgação dos documentos concernentes ao processo de negociação, uma vez que, terminados os trâmites e apresentados os resultados, a chance de incidência e participação da sociedade civil na decisão torna-se praticamente nula. O Itamaraty sustenta que a posição negociadora do Brasil pode ter sua confiabilidade abalada se forem divulgadas informações classificadas. Entretanto, a Conectas não requer a divulgação de informações adequadamente classificadas. Ao contrário, ela requer a desclassificação e, por conseguinte, a divulgação de informações cujo sigilo é injustificável à luz da ordem jurídica vigente, de tão difícil assimilação pelo MRE. É importante ressaltar que a confiabilidade alegada é uma questão política, como afirmou o próprio Ministério60. Mas essa cultura política afronta os princípios constitucionais que regem a Administração Pública, arrolados no artigo 37 da Constituição Federal, especialmente o da publicidade. Sendo um princípio, a publicidade “é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”61.

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Resposta do Ministério das Relações Exteriores aos recursos interpostos pela Conectas Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 20/11/2013. 61 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 771-772.

 

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A confiabilidade do MRE deveria ser gerada, então, pela transparência da gestão pública, que é requisito imprescindível para que se garanta o controle do cumprimento dos demais princípios constitucionais, em particular a legalidade, a impessoalidade e a moralidade, e não por meio do sigilo. O MRE afirma, sem oferecer fontes, que a produção de informações classificadas não ultrapassa 7,5% do total da documentação produzida anualmente pelo Itamaraty, e que a transparência é, portanto, a regra e não a exceção62. Entretanto, no início do mesmo documento, o MRE declara que informações que fizerem referência ao seu dever de ofício devem ser, como regra, classificadas. Três meses depois do início da troca de correspondências com a Conectas, o Itamaraty disponibilizou algum tipo de informação relevante ao caso, mas que ainda assim não corresponde ao pedido formulado. O órgão divulgou, em obediência ao artigo 19 do decreto 7.724/2012, uma lista com “a data do expediente, seu tipo (telegrama, despacho telegráfico ou circular telegráfica), seu número sequencial no sistema interno de comunicações do MRE, o grau de sigilo, a distribuição, os descritos, o destinatário, o remetente e a autoridade classificadora”. Dos 93 documentos da lista, sete eram classificados como secretos, apenas dois como ostensivos e os outros 84 como reservados63.

62

Ibid. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013. 63

 

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3. Conclusões preliminares e desdobramentos futuros Neste relato dos primeiros resultados da pesquisa, foi abordado o problema específico do cumprimento da LAI pelo Itamaraty, a fim de perscrutar sua eventual vinculação à cultura política daquela instituição, que ofereceria resistência ao processo de democratização. É importante considerar que, graças à nova ordem jurídica brasileira, a publicidade é a regra, e o sigilo é a exceção, sendo a segurança da sociedade e do Estado o único fator que pode justificar a não divulgação de informações. Segurança, porém, é um conceito de grande complexidade: “Em todas as áreas científicas, a definição conceitual é central, e por isso ocupa espaço nobre na produção científica. Porque, por um lado, a precisão conceitual fornece a univocidade que permite a comunicação compreensiva da atividade científica e, por outro, porque o conceito bem definido deve garantir o acesso instrumental àquela parte da realidade que se pretende analisar. Todavia, na área específica da segurança, essas normas se tornam dramáticas, pois às considerações epistemológicas anteriores soma-se o fato de que esses conceitos se tornaram operativos no discurso político com consequências políticas e sociais pelas quais os acadêmicos nem sempre se responsabilizam. Alguns dos autores de livros de Relações Internacionais, que nestas latitudes são tomados como científicos e universais e cujos discursos são reproduzidos sem crítica, são funcionários do Departamento de Estado ou assessores do Departamento de Defesa dos Estados Unidos e, como tais,

 

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comprometidos com as formulações políticas desses organismos” [grifo nosso]64.

Ora, a concepção de segurança dos Estados Unidos, absolutamente vinculada aos seus próprios interesses políticos, já teve profundas consequências no território brasileiro. Ela faz parte do nefasto acervo autoritário que nos foi legado pelo regime militar, instaurado em 1964 com estreita colaboração de Washington, como demonstra a nossa historiografia. Uma das necessidades de aprofundamento desta pesquisa está, portanto, relacionada à compreensão de qual conceito de segurança seria compatível com a perspectiva de um direito humano no âmbito da aplicação da LAI, eis que o acesso à informação é, com razão, assim classificado. Ao não disponibilizar os expedientes requisitados pela Conectas, o Ministério das Relações Exteriores viola este direito. O caso analisado é ainda mais emblemático por tratar de documentos referentes às orientações de Brasília para o labor de seus diplomatas no processo de fortalecimento do SIDH. A elaboração da política externa brasileira passa por um processo de crescente democratização, tendo as organizações da sociedade civil a possibilidade de influir sobre seus rumos e lutar para que seus interesses sejam contemplados. Entretanto, a estrutura de funcionamento do Itamaraty ainda necessita lograr avanços, já que não condiz com o Estado democrático no qual está inserido. Por considerar a atividade diplomática 64

SAINT-PIERRE, Héctor Luis. “Defesa” ou “segurança”?: reflexões em torno de conceitos e ideologias. Contexto int. 2011, vol.33, n.2, pp. 407-433. O autor acrescenta: “para uma ciência que pretenda reconhecimento no diálogo científico internacional, não bastará estudar os conceitos, empregar as teorias e repetir os princípios dos cientistas das metrópoles; deverá reconhecer seus próprios problemas, formular suas perguntas, burilar seus conceitos, ensaiar seus métodos e construir suas teorias com a precisão de quem não teme discutir com autonomia e universalidade seus resultados”, ibid.

 

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como secreta e sustentar, portanto, que a publicização dos documentos referentes a negociações e acordos não deva ocorrer, o MRE alija a população brasileira do controle de grande parte da atuação externa brasileira. Desse modo, não há garantia de que a política externa se mantenha conforme aos princípios constitucionais que orientam as relações exteriores do Brasil65, que incluem a prevalência dos direitos humanos como norte para a atuação do Estado no plano mundial, tampouco quaisquer outras diretrizes que possam resultar da participação social, ou mesmo de coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, ou de recomendação do Congresso Nacional. Finalmente, o caso estudado indica que o Itamaraty não tem implementado a LAI de maneira plena. Essa constatação é corroborada pelo Relatório de pedidos de acesso à informação do Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão66. Os dados foram gerados para o período que se estende de maio de 2012, mês de implementação da LAI, a outubro de 2013. De um total de 1.123 pedidos formulados junto ao MRE – com uma média mensal de 62,39 –, 1.117 foram respondidos, 3 estavam tramitando dentro do prazo e 3 fora do prazo. O Itamaraty classificou os pedidos

65

Em virtude do artigo 4º da Constituição Federal, “a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - nãointervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. 66 Disponível em: . Acesso em: 20/11/2013.

 

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em dez categorias principais67, segundo a natureza da informação. As duas categorias com maior quantidade de ocorrências foram Governo e política – Administração pública, e Relações Internacionais – política externa com 622 e 271 pedidos, respectivamente. Não havia dados a respeito de quantos desses pedidos foram recusados e quantos foram aceitos por categoria. Do volume total de pedidos, 399 tiveram acesso negado, e 51 parcialmente cedidos; ou seja, 40,07% das informações solicitadas não foram plenamente liberadas. Dentre os pedidos que não foram atendidos, 336 não o foram por exigirem tratamento adicional de dados; porém, o site não especifica o que seria o tratamento adicional de dados. É preciso apurar, ainda, que critérios o Itamaraty utiliza para considerar atendido um pedido de informações baseado na LAI. O caso aqui descrito revela que as informações fornecidas podem não ser exatamente as solicitadas. Por outro lado, o modo pelo qual se apresentam documentos, especialmente os dados estatísticos, pode torná-los imprestáveis à finalidade pretendida, caso sejam imprecisos, ambíguos ou lacunosos. Outro campo a explorar, que requer pesquisa qualitativa específica, é a questão de saber o quanto esta sucessão de pedidos de informação influenciou a mudança da posição do Brasil sobre a reforma do SIDH. Esta pesquisa sobre acesso à informação com foco na aplicação da LAI pelo Itamaraty é ainda incipiente, mas já evidencia a necessidade de aperfeiçoamento, e não apenas de procedimentos relativos à implemen67

Governo e Política – administração pública; Relações Internacionais – Política Externa; Relações Internacionais – serviços consulares; Relações Internacionais – relações diplomáticas; Relações Internacionais – organizações internacionais; Relações Internacionais – proteção comercial internacional; Governo e política – fiscalização do Estado; Governo e Política – política; Justiça e Legislação - Legislação e jurisprudência; Transportes e trânsito – Trânsito.

 

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tação da lei. Trata-se de “uma mudança de paradigma. A partir do momento que a sociedade tem acesso à informação, não é mais uma questão só de governo, pois surge o questionamento de qual providência iremos tomar a partir da abertura daquele dado”68. No campo da atuação internacional do Brasil, essa evolução cultural pode representar o sonhado ocaso de uma época em que “se concebe o interesse público a partir de referenciais de uma elite diminuta”69.

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BEZERRA, Daniela [representante da organização Transparência Hacker, no Seminário de comemoração de um ano da LAI]. CGU debate avanços do primeiro ano da Lei de Acesso, desafios futuros e impactos no Executivo Federal, 20/05/2013. Disponível em: Acesso em: 20/11/2013. 69 LOPES, Dawisson. In ARAÚJO, Ana Rita. Diplomacia de aristocratas - Em ensaio, professor da UFMG analisa viés elitista da política externa brasileira. Boletim UFMG n.1833, Ano 39, 26/08/2013

 

A dimensão da "justiça" na Justiça de Transição Uma aproximação com o caso brasileiro

Ricardo  Silveira  Castro1  

Resumo: Com o objetivo de contribuir para a delimitação dos contornos do que se pretende buscar com a aplicação das medidas de responsabilização dentro do marco teórico da justiça de transição, o presente estudo analisará os principais paradigmas transicionais vivenciados no século XX para identificar o espaço do eixo da "justiça". Em seguida, pretende-se averiguar o sentido e as possíveis respostas ao fenômeno do crime de Estado. Palavras-chave: Justiça de Transição - Crime de Estado - Responsabilidade Criminal Resumen: Con el objetivo de contribuir a la definición de los contornos de lo que se pretende proseguir con la aplicación de las medidas rendición en el marco teórico de la justicia transicional, este estudio examinará los principales paradigmas de transición experimentados en el siglo XX para identificar lo espacio de lo eje de la "justicia". Sucesivamente, se investigará el significado y 1 Acadêmico do 8º período do curso de Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPQ. Membro do Grupo de Pesquisa "Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição".

 

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las posibles respuestas al fenómeno del crimen de Estado. Palabras-clave: Justicia Transicional - Crimen de Estado - Responsabilidad Penal

1. Introdução No cenário político latino-americano modelado pela redemocratização de Estados que passaram por períodos de autoritarismo nas décadas de 1960 e 1970 surge a problematização a respeito do binômio utilidade-necessidade envolvendo o julgamento dos crimes cometidos pelos agentes públicos no momento da repressão política promovida pelo Estado contra os seus cidadãos. A análise a respeito da validade de anistias e indultos interpretados extensivamente aos agentes estatais recoloca no planejamento de ações democratizantes a questão sobre a possibilidade jurídica dos processos de responsabilização por esses crimes. Diante da emergência dessa demanda por justiça, faz-se necessário enfrentar quais os modelos teóricos que lhe dão suporte, principalmente para que seja possível vislumbrar o alcance dessas medidas de responsabilização propostas. É nessa direção que a primeira parte do presente trabalho busca delimitar historicamente o conteúdo da expressão "justiça de transição", para logo em seguida descrever as propostas do paradigma preponderante na atualidade, com destaque às proposições que envolvem a responsabilização criminal dos agentes públicos que cometeram crimes de Estado. Em um segundo momento, analisar-se-á os contornos do que se entende por "crime de Estado", procedendo-se à reflexões básicas sobre as razões que impõem a punição criminal dessas condutas criminosas - com destaque ao caso brasileiro - e sobre o modelo de punição que deve prevalecer durante os processos de responsabilização.  

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2. Justiça de Transição: um conceito Para explorar o tema da justiça de transição, é preciso que o pesquisador manuseie ferramentas de diversas áreas do saber (ou ao menos se proponha a fazê-lo), tendo em vista a interdisciplinaridade do assunto. Nesse sentido, mesmo uma abordagem voltada ao campo jurídico não dispensa uma avaliação a partir da perspectiva da sociologia, da filosofia, da história, da ciência política, da psicologia, e de tantos outros prismas. A busca por uma análise multifocal, assim, é imprescindível para a compreensão do objeto em análise no presente trabalho, qual seja, o modo de tratamento do legado deixado pelo complexo fenômeno do "crime de Estado"2. O termo “justiça de transição” refere-se a uma série de medidas que precisam ser adotadas pelo Estado que sai de um período de conflito e de instabilidades para que se possa criar condições reais de implantação de um regime democrático. A expressão foi utilizada em um dos relatórios do Secretário-Geral da ONU3 em 2004 e desde então tem representado uma 2

"State crime is increasingly recognized as a sub-discipline of criminology, but while our own intellectual background is un this field, many of the most significant contribuitions to state crime scholarship have come from anthropologists, psychologists, political scientists, and writers on international relations and foreign policity." (GREEN, Penny. The advance of state crime scholarship. In: Journal Of The International State Crime Iniciative, vol.1, n.1, 2012. p.5) 3 "A noção de 'justiça de transição' discutida no presente relatório compreende o conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais ou extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a destruição de um cargo ou a combinação de todos

 

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pauta constante nas discussões sobre democracia, Estado de Direito e direitos humanos. A “justiça transicional”, nessa perspectiva, propõe alterações - e em certos pontos até mesmo a ruptura - da lógica do Estado moldado pelas circunstâncias características desses momentos de conflito, como o desprezo pelos direitos humanos, a fragilidade das instituições e a violação de garantias penais e processuais penais. Tais mudanças estão relacionadas aos mais variados eixos estruturantes, que são bem representados pelas dimensões da justiça de transição (dimensão da verdade e da memória, dimensão da reparação, dimensão da reforma das instituições e dimensão da justiça), às quais retornaremos posteriormente. O fato é que, após o término de um conflito no qual o Estado esteve diretamente envolvido, perseguindo e reprimindo os seus “inimigos” por meio de ações de seus agentes (soldados, policiais, delegados, promotores de justiça, juízes, parlamentares, ministros de Estado, chefes de Estado e tantos outros que compunham o quadro pessoal da administração pública), é indispensável que se concretizem planos de reconciliação e de restauração do regime democrático. Enfatize-se que o período de conflito a ser superado pelas políticas propostas pela “justiça de transição” não necessariamente está relacionado a uma guerra entre dois Estados, sendo mais frequente a situação de crise interna referente às guerras civis ou às perseguições promovidas pelo Estado contra grupos minoritários, muito comuns em regimes autoritários. Historicamente, é possível identificar três principais paradigmas4 de modelos transicionais: o pósesses procedimentos" (NAÇÕES UNIDAS, Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretário Geral S/2004/616. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p.320-351, jan.-jun., 2009.p.325) 4 A professora Ruti Teitel divide a construção realizada em sua obra a respeito da genealogia da justiça de transição em três "fases". No

 

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Segunda Guerra Mundial, o pós-Guerra Fria e o atual. Embora a história apresente casos de transições de regimes políticos desde a Antiguidade, são os acontecimentos marcantes do século XX - mais precisamente as duas Grandes Guerras - que atraíram o olhar de estudiosos especificamente sobre esse assunto. Após a experiência do trauma do Holocausto, ficou evidenciada a vulnerabilidade do indivíduo perante a máquina estatal, que lhe despojou da condição de sujeito de direitos. O estado totalitário nazista, durante a barbárie da perseguição promovida contra seus opositores – simbolizada pelo aprisionamento dos judeus nos campos de concentração - demonstrou que o crime que apresenta a maior gravidade (sobretudo em função das consequências geradas) é justamente aquele cometido pelo próprio Estado, quando o ser humano é considerado um elemento supérfluo5. A maneira como presente trabalho, em vez disso, utilizamos a expressão "paradigma" na busca de evidenciar que os elementos que caracterizam cada "fase" influenciaram significativamente na elaboração do "paradigma" seguinte. Além disso, a proposta de divisão em "fases" pode dar a noção equivocada de uma linearidade que inexiste, já que o predomínio dos elementos caracterizadores de um paradigma não impede a ocorrência de elementos característicos de outro. 5 “A estas alturas del tempo no se puede pensar de cualquier manera. El pensar contemporâneo está condicionado por Auschwitz que tiene um valor epocal y por eso hay um antes y um después, também para la filosofia.(...) Auschwitz es um acontecimento singular porque há puesto de manifiesto uma capacidade humana de mal hasta ahora desconocida. Esa capacidade de mal no há quedado amortizada em esse acontecimento. Hannah Arendt la há definido como ‘banalidad del mal’ para dar a entender que esse horror se produjo por la extraña proximidade del hombre criminal al hombre normal. Su singularidade pone de manifesto que es posible activar la capacidad criminal del hombre normal y eso abre el caminho a um processo de deshumanización que puede acabar com el ser humano física e metafisicamente” (MATE, Reyes. Tratado de la injusticia. Barcelona: Anthropos Editorial, 2011. p.39-40). Ressaltando o marco construído pelo Holocausto, Reyes Mate assinala que “Adorno expressou o momento inaugural de Auschwitz com a proposta de um novo imperativo categórico que reza assim: ‘Hitler impôs aos homens um novo imperativo categórico para seu atual estado de escravidão: o de

 

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se realizou a transição política pós Terceiro Reich - via responsabilização penal internacional dos agentes do Estado - figurou como um primeiro paradigma transicional a ser considerado: o da “justiça retributiva”6. Com a derrota do Estado alemão, foi possível proceder à identificação, ao julgamento e à punição daqueles que seriam os responsáveis pela deflagração da guerra. Interessante perceber que esse modelo adotado pósSegunda Guerra Mundial é bastante diferente daquele seguido no pós-Primeira Guerra Mundial, em diversos pontos, a saber: enquanto a responsabilização dos agentes do Estado alemão ocorrida pós-Primeira Guerra ocorreu via tribunais nacionais por meio de sanções coletivas, no pós-Segunda Guerra a responsabilização se deu por tribunais internacionais com o foco nas sanções individuais7. O acordo que constituiu o Tribunal Internacional Militar dos Grandes Criminosos de Guerorientar seu pensamento e sua ação de modo que Auschwitz não se repita, que não volte a ocorrer nada semelhante’” (MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005. p.124) 6 TEITEL, Ruti. Genealogia da justiça transicional. In: REÁTEGUI, Félix (org.). Justiça de Transição: manual para a América Latina. Brasília: Ministério da Justiça, 2011.p.147. 7 Conforme apontado por Ruti Teitel, "a administração do modelo de justiça transicional punitiva do período pós-Primeira Guerra Mundial, caracterizado por tribunais nacionais falidos, foi deixada na mão da Alemanha. Vista sob uma perspectiva histórica, parecia bastante claro que os tribunais nacionais do período pós-Primeira Guerra Mundial não serviriam para evitar a futura matança ocorrida na Segunda Guerra Mundial. Em uma evidente reação crítica ao passado, a justiça transicional do período pós-Segunda Guerra Mundial começou por evitar os processos em nível nacional. Ao contrário, buscou a responsabilidade criminal da liderança do Reich em âmbito internacional". Ainda, sobre as sanções coletivas impostas aos alemães no pós-Primeira Guerra Mundial, adverte que "estas respostas transicionais claramente fracassaram e foram identificadas como a base para o surgimento de um senso de frustração econômica e ressentimento que impulsionou o papel da Alemanha da Segunda Guerra Mundial". Genealogia da justiça transicional. In: REÁTEGUI, Félix (org.). Justiça de Transição: manual para a América Latina. Brasília: Ministério da Justiça, 2011. p.140.

 

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ra foi assinado em 1945 por representantes da GrãBretanha, Estados Unidos, França e União Soviética (os “Aliados” vencedores), e a suas atividades duraram de 14 de novembro de 1945 até 1º de outubro de 1946. Em suas atividades, o Tribunal de Nuremberg absolveu três das principais autoridades do Terceiro Reich e condenou outras dezenove8, consolidando alguns entendimentos importantes na seara do Direito Internacional Público – como a fixação da noção de crime contra a humanidade, por exemplo - e dando contornos a um novo ramo de estudo do direito: o Direito Internacional Penal9. As questões emergentes da bipolaridade que marcou as décadas posteriores a Segunda Grande Guerra, entre capitalismo e socialismo, caracterizada pela disputa entre Estados Unidos e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e as críticas ao modelo paradigmático proposto pelo Tribunal de Nuremberg desfocou a discussão a respeito da responsabilização penal individual dos agentes do Estado que come8 Para os condenados foram atribuídas penas que variaram de 10 anos de prisão até a pena capital. Nesse sentido, ver: GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg (1945-1946): a gênese de uma nova ordem no direito internacional. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 9 “Os princípios de Nuremberg foram oficialmente sistematizados pela Comissão de Direito Internacional da ONU, por solicitação da Assembleia Geral em resolução de 1947. A formulação destes princípios, na forma de sete artigos, data de 1950. Os dois primeiros princípios desta sistematização afirmam a existência de um Direito Internacional Penal. Os princípios 3 e 4 excluem a alegação de ato de Estado e da ordem superior como justificativas a elidir a responsabilidade criminal. Esta deveria, consoante o princípio n.5, ser apurada num fair trial a que se veriam submetidos os acusados das três infrações internacionais cominadas no princípio 6: crimes contra a paz, crimes de guerra, crimes contra a humanidade. Finalmente, o sétimo princípio considera crime internacional o conluio no cometimento de crimes previstos no princípio anterior” (LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.169).

 

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teram crimes internacionais. Como se sabe, os reflexos da guerra fria na América Latina puderam ser sentidos com a intervenção de ditaduras civil-militares que, apoiadas pelos Estados Unidos, anunciavam a luta contra o comunismo. A derrota do projeto soviético na década de 1980, seguida pela posterior onda de liberalização dos regimes militares do Cone Sul, da América Central e do Leste Europeu10 criou as condições para o estabelecimento de um novo paradigma transicional, o do “modelo restaurativo”. Nesse paradigma, a punição deixa de ser o pilar central da justiça transicional, e nessa posição entram as políticas de memória e busca pela verdade11. Nessa construção, as comissões da ver10

“Durante os anos 1970 e 1980, profundas transformações ocorreram nos Estados do Sul da Europa e na América Latina. Diversos regimes autoritários, que há décadas governavam a maior parte dos Estados dessas duas regiões, deram sinais definitivos de crise e de esgotamento em um curto período, que não superou 15 anos. (...) Um rico espectro de modalidades de mudanças ocorreu nesse curto período histórico. Independentemente do tipo de mudança política operada, importantes traços comuns podem ser notados em meio a essa diversidade. Em primeiro lugar, não há dúvidas de que a contemporaneidade desses acontecimentos (...) induziu a uma aproximação entre os rumos tomados por esses processos. Um horizonte de tempo recorta e limita as possíveis alternativas em um momento de transição política, conferindo-lhes certa identidade de época. Não à toa, tornar-se-á comum a referência a uma ‘terceira onda’ da democratização, cujo epicentro estará no Sul da Europa, na América Latina e na Europa do Leste, conforme descrição de Samuel Huntington.” (QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões, 2013. p.31-32). 11 "Os dilemas transicionais em jogo na Fase II estruturam-se em termos mais abrangentes que a simples prática de confrontar e demandar responsabilidades ao regime anterior, e incluíram questões sobre como curar feridas de uma sociedade inteira e como incorporar diversos valores de um Estado de Direito, tal como a paz e a reconciliação - o que, em grande medida, havia sido tratado anteriormente como externo ao projeto de justiça transicional. Consequentemente, pôr de lado os julgamentos associados à justiça internacional, refletiu em uma mudança na compreensão da justiça transicional, que se associou com as mais complexas e diversas condições políticas de reconstrução da nação" (TEITEL, Ruti.

 

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dade passam a figurar como importantes instrumentos de transição para a superação do regime autoritário12. Conforme se pode identificar na leitura de alguns autores que defenderam esse modelo, o objetivo da justiça transicional deveria ser a preservação da paz, a ser alcançada via pacto político entre as partes envolvidas no conflito. A partir disso, as anistias passam a representar – para a questão da responsabilidade criminal – a escolha defendida por esses teóricos13. O paradigma transicional mais recente, que passou a ser construído na década de 1990 - com a consolidação dos regimes democráticos que sucederam as ditaduras derrotadas na América Latina, na América Central e na Europa - tem como característica marcante a estabilidade, isto é, a normalização da justiça transicional. As bases principiológicas inerentes ao projeto transicional proposto por este paradigma o aproxima do parâmetro do Estado de Direito14 pretendido por Genealogia da justiça transicional. In: REÁTEGUI, Félix (org.). Justiça de Transição: manual para a América Latina. Brasília: Ministério da Justiça, 2011. p.147). 12 “O atrativo deste modelo deriva de sua capacidade para oferecer uma perspectiva histórica mais ampla, no lugar de meros julgamentos” (TEITEL, Ruti. Genealogia da justiça transicional. In: REÁTEGUI, Félix (org.). Justiça de Transição: manual para a América Latina. Brasília: Ministério da Justiça, 2011.p.149) 13 Samuel P. Huntington, por exemplo, posiciona-se no sentido de que é preciso reconhecer, na questão “processar e punir vs. perdoar e esquecer”, que “cada alternativa apresenta graves problemas, e que o caminho menos insatisfatório será: não processe, não puna, não perdoe e, acima de tudo, não esqueça” (HUNTINGTON, Samuel P. A terceira onda: a democratização no final do século XX. São Paulo: Editora Ática, 1994. p.228). 14 Por "Estado de Direito" entendemos aquele no qual "todas as pessoas, instituições e entidades, públicas e privadas, incluindo o próprio Estado, estão submetidas às leis que se promulgam publicamente, sendo igualmente impostas e independentemente aplicadas, e que são compatíveis com as normas e princípios internacionais de direitos humanos" (NAÇÕES UNIDAS, Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades

 

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um regime democrático. As alterações que ocorrem nessa concepção retiram da justiça de transição a limitação presente nos paradigmas anteriores: os mecanismos transicionais passam a ser compreendidos como ferramentas imprescindíveis ao próprio regime democrático, e a noção de justiça própria de períodos excepcionais ("extraordinários") é superada15. Para além de uma preocupação específica com a transição política, o campo da justiça transicional passa a representar uma proposta de reformulação político-social, de afirmação de direitos e garantias contra os abusos perpetrados pelo Estado e de consolidação do Estado de Direito. No atual paradigma transicional ocorre a sistematização das políticas em quatro principais focos de estruturação: a busca pela verdade e a recuperação da memória, a reparação das vítimas do regime autoritário, a reforma das instituições envolvidas durante o conflito e a responsabilização dos agentes estatais que atuaram na repressão promovida durante o estado de exceção. Há, igualmente, a reformulação do pensamento estruturado no segundo paradigma, de que os pactos políticos supostamente firmados durante a transição política possuem núcleos rígidos imutáveis que, frequentemente, inviabilizam a investigação dos crimes em conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretário Geral S/2004/616. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p.320351, jan.-jun., 2009. p.324-325). 15 A noção de justiça de transição presente nos dois primeiros paradigmas apresentados está ligada à excepcionalidade da justiça em tempos de instabilidade que regem as transições políticas. Conforme esse entendimento "é possível sustentar que a associação entre ambas palavras ["justiça" e "transição"] acaba, em alguma medida, delimitando um pouco a multiplicidade de sentidos possíveis que cada uma encerra. Conjugados entre si, os dois vocábulos indicam não exatamente que se trata de um tipo diferente de justiça, mas do fenômeno da justiça em um período histórico determinado, qual seja, durante uma mudança entre regimes" (QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões, 2013. p.135).

 

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cometidos pelo Estado por meio de seus agentes. Nesse ponto peculiar, ressurge a preocupação a respeito das possibilidades, e principalmente, de como realizar a responsabilização desses agentes. A discussão sobre a validade e eficácia de atos normativos formulados pelos governos das autocracias para afastar a responsabilidade criminal de seus agentes (as "autoanistias"16, como são denominadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos) apontou como uma questão jurídico-política que precisou ser realizada pelos poderes legislativo, judiciário e executivo sucessores. Antes de ingressar no debate específico sobre os crimes de Estado, voltaremos às dimensões da justiça de transição proposta pelo atual paradigma, com o fim de demonstrar a inter-relação entre elas e os efeitos que a incompletude de uma pode acarretar na outra.

3. As dimensões da justiça de transição e o lugar da responsabilização criminal Conforme se pode constatar a partir do que foi exposto, a noção de responsabilização dos agentes do Estado que cometeram crimes internacionais preenchia o próprio conceito de "justiça de transição" durante a preponderância do primeiro paradigma transicional. A predominância da preocupação com julgamentos criminais (via Tribunais Internacionais) que aplicaram sanções individuais marcou a dinâmica da justiça de transição em um primeiro momento. Quando houve a decadência das ditaduras da América (Central e Latina) e da Europa no final dos anos 1970, o conceito de justiça de transição foi alargado para se moldar às de16

A consolidação da noção de autoanistia ocorre na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos de graves violações dos direitos humanos relativos ao Peru (Caso Barrios Altos e La Cantuta), Chile (Caso Almonacid Arellano e outros) e Brasil (Caso Araguaia).

 

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terminações daqueles que deixavam o poder tomado por meio de golpe de Estado: em vez de julgamento, buscou-se uma política de apaziguamento. Desse modo, o embate entre as forças políticas (pró-abertura vs pró-manutenção) em disputa nesse período, e a ameaça de uma contraofensiva golpista que impedisse a liberalização dos regimes ditatoriais causaram a expansão do termo "justiça de transição", no sentido de representar uma justiça capaz de permitir a democratização dos países de maneira segura, sem os riscos de um acirramento do estado de exceção que se buscava superar. Nesse ponto, inclusive, fica evidenciada a proximidade da justiça de transição com a política: no primeiro paradigma, os agentes políticos com maior força eram exatamente aqueles que propuseram os julgamentos criminais, enquanto que os agentes políticos processados não apresentavam força suficiente para resistir ou para contestá-los; já no segundo paradigma, os agentes políticos que haviam tomado o poder via golpe de Estado (e seriam os processados, portanto) criaram condições de um jogo político mais complexo, com a conservação de grande poder na execução de transições políticas controladas. É justamente após a diminuição das forças desses agentes políticos que promoveram as transições controladas que o terceiro paradigma transicional surge para afirmar que, de fato, a justiça de transição diz com muitos assuntos além da responsabilização criminal dos agentes do Estado - mas que essa esfera da transição (os julgamentos criminais) é ponto crucial na superação de regimes autoritários. De uma maneira geral, a doutrina aponta que o atual paradigma transicional pode ser sistematizado em quatro principais pilares ou dimensões: a verdade, a reparação, a reforma das instituições e a justiça. Na dimensão da verdade, reflete-se a necessidade de se promover a publicitação de informações de interesse coletivo. Como as experiências históricas têm demonstrado, os governos ditatoriais adotam uma po  

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lítica de sigilo que mina a sociedade de terror. A elaboração de maneiras de manipulação dos fatos, é preciso destacar, dificulta o esclarecimento da verdade: é bastante comum, por exemplo, que as instituições envolvidas na repressão política apresentem versões contraditórias sobre a mesma situação, ou neguem que seus agentes tenham violado direitos humanos fundamentais. A importância desse pilar está na preservação da memória individual e coletiva dos traumas vivenciados, que é imprescindível para a prevenção de novas experiências traumáticas17. A busca pela efetivação do direito à verdade e à memória, legitimado pelo atual paradigma transicional como base do processo de transição, foi realizada por uma espécie de mecanismo de transição que nasceu na América Latina, as comissões da verdade18. A relevância das atividades dessas co17 Nesse sentido, afirma-se que "o luto pode ser tanto privado como público, assim como também a compulsão de repetição, e que existem perdas coletivas traumáticas a pesarem sobre a história de um povo ou nação. Esses fatos traumáticos estão nas guerras, nas ditaduras, nos confrontos civis, nas grandes tragédias naturais, nas revoluções, nas políticas discriminatórias e excludentes. A compulsão da repetição evidencia-se na grande dificuldade que se tem, logo após a ocorrência dessas tragédias coletivas, em se confrontar o passado violento e traumático. Essa dificuldade se projeta tanto no instituto da anistia compreendido de maneira tradicional, como até mesmo na repetição acrítica de rituais e na veneração mecânica de monumentos históricos" (SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In: SANTOS, Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília Macdowell; TORELLY, Marcelo(orgs). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.202). 18 "As comissões da verdade são mecanismos oficiais de apuração de graves violações aos direitos humanos, normalmente aplicados em países emergentes de períodos de exceção ou de guerras civis. O propósito é saber o que ocorreu, para satisfazer o direito das vítimas e da sociedade ao conhecimento da verdade e, por outro lado, aperfeiçoar o funcionamento das instituições públicas e contribuir com o objetivo da não repetição. O pressuposto é que a exposição pública

 

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missões está no incentivo à pluralidade de narrativas, que contribuem para a aproximação da verdade. Não se trata, portanto, de um órgão que se propõe a reescrever os fatos para expor, em um relatório, uma espécie de "verdade oficial"19. Quando se fala em reparação das vítimas do Estado de Exceção, trata-se do sentido mais amplo da palavra "reparação". Evidentemente que, por um imperativo de justiça, aqueles que tiveram o seu patrimônio afetado por algum ato arbitrário durante o regime de força deve ser reparado. Durante a perseguição política promovida pelos regimes de exceção, é bastante comum que as vítimas sejam surpreendidas por atos ilegais de apreensão de bens, despedidas injustificadas ou perda de benefícios20. A investigação e o processamento dos acontecimentos, suas circunstâncias, causas e consequências, permitirá compreender o ocorrido e adotar posturas de prevenção. Fortalece-se o princípio da transparência com ganhos significativos para a democracia. O produto final é um relatório que, além de relatar os fatos apurados, deve apresentar recomendações para o aprimoramento dos organismos públicos e outras medidas pertinentes" (WEICHERT, Marlon Alberto. A comissão nacional da verdade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.) Justiça de Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p.165-166). 19 Cabe salientar que "a possibilidade de uma memória coletiva pode ser vista tanto como uma conquista, como também um objeto de poder e manipulação. Daí o apelo de Le Goff para que o esforço científico (e acrescentaria também o político comprometido com a defesa da pluralidade democrática) seja no sentido de permitir a pluralidade de memória, narrativas e interpretações, evitando a imposição de epopeias e descrições amarradas, assépticas e homogêneas" (SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In: SANTOS, Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília Macdowell; TORELLY, Marcelo(org.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.203). 20 Assim, tem-se que “a amplitude do significado do termo 'reparações' neste contexto pode ser vista quando consideramos as diversas

 

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dos pedidos protocolados pelas vítimas desses atos são comumente analisados por comissões de reparação criadas pelos governos de transição para tal fim. Mas além disso, é necessária a reparação simbólica, o reconhecimento da vítima enquanto sujeito de direitos a quem se negou tal condição. Nessa seara, o pedido oficial de desculpas por parte do Estado pelos atos persecutórios empreendidos, a construção de museus dedicados à memória das vítimas, a mudança de nome de espaços públicos e a criação de datas comemorativas revelam-se como meios relevantes de reparação simbólica. É impensável que a superação de um regime ditatorial possa efetivamente ocorrer sem que haja uma profunda transformação de suas instituições. Essa reforma se mostra particularmente importante porque é por meio de suas instituições - e com base nos valores e princípios adotados por elas - que o Estado se move na busca pelos seus objetivos. Como pode, por exemplo, o maneiras em que se utiliza o termo 'reparações' de acordo com o Direito Internacional. Elas incluem: I – restituição, que se refere àquelas medidas que procuram restabelecer o status quo ante da vítima. Essas medidas vão da restauração de direitos tais como a cidadania e a liberdade, a restituição do emprego e outros benefícios, até a restituição de propriedades; II – compensação, que se refere àquelas medidas que procuram compensar os danos sofridos por meio da quantificação desses danos, em que o dano se entende como algo que vai muito além da mera perda econômica e inclui a lesão física e mental e, em alguns casos, também a lesão moral; III – reabilitação, que se refere a medidas que fornecem atenção social, médica e psicológica, assim como serviços legais; e IV – satisfação e garantias de não repetição, que constituem categorias especialmente amplas, pois incluem medidas tão distintas como afastamento das violações, verificação dos fatos, desculpas oficiais, sentenças judiciais que restabelecem a dignidade e a reputação das vítimas, plena revelação pública da verdade, busca, identificação e entrega dos restos mortais de pessoas falecidas ou desparecidas, junto com a aplicação de sanções judiciais ou administrativas aos autores dos crimes, e reformas institucionais” (GREIFF, Pablo de. Justiça e reparações. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.3, p.42-71, jan.-jun., 2010. p.43-44).

 

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Estado pretender assegurar o direito à segurança ao cidadão se suas instituições responsáveis pela segurança pública estão dirigidas por preconcepções de violência e desigualdade? As instituições representam a face estrutural do Estado, que precisa de reformulação capaz de lhe permitir alcançar seus fins. Desse modo, a transformação (e em alguns casos até mesmo a dissolução) de determinadas instituições, bem como a reorganização do quadro funcional de agentes que prestam serviço à Administração pública precisa estar na pauta das políticas dos governos que tomam a frente no processo de (re)democratização. Por fim, afirma-se que a realização da justiça é elemento indispensável para a implementação do regime democrático. Por "justiça" se compreende o processamento, o julgamento e a eventual responsabilização daqueles agentes do Estado que efetivamente forem considerados culpados, conforme o devido processo legal. Nesse momento, faz-se necessário esclarecer que o projeto de justiça proposto no atual paradigma, embora iluminado pelos princípios basilares do primeiro modelo transicional (do pós-Segunda Guerra Mundial), com ele não se confunde. Não há como afastar o fato de que ambos os paradigmas defendem a responsabilização criminal dos agentes do Estado por violações aos direitos humanos como alicerce fundamental para o êxito da política transicional a ser adotada. Entretanto, a própria compreensão do fenômeno do crime de Estado e o modo de como promover a aludida responsabilização se alterou de forma significativa durante a metade de século que separa o primeiro do terceiro modelo de transição, sobretudo no que diz respeito aos limites da punição - como se verificará posteriormente. É a partir do espaço que a "responsabilização" possui dentro do atual paradigma transicional - isto é, de complementaridade ao projeto de transição democrática - que trataremos especificamente de uma de suas faces: a responsabilização criminal. Nesse sentido, não se pretende defender que a investigação e o pro  

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cessamento de crimes cometidos pelas ditaduras latinoamericanas representam a única resposta que, sozinha, conseguirá lidar com o legado deixado pelos regimes autoritários. Como se pode perceber, há uma interdependência entre as dimensões propostas pelo terceiro paradigma transicional, de modo que a ausência de mecanismos que atentem para uma delas, representará – irremediavelmente – a incompletude das demais. Os trabalhos desenvolvidos por uma comissão da verdade, por exemplo, não terão grande relevância se outras medidas reparatórias (mesmo que voltadas ao campo simbólico) sejam adotadas para resinificar . De igual modo, a reforma de instituições que atuaram durante a repressão política restará inconclusa se os seus agentes que violaram normas de direitos humanos continuarem compondo o quadro geral de servidores públicos, sem que haja qualquer espécie de responsabilização. Assim, verdade, reparação, justiça e reforma das instituições estão intimamente relacionados, de um modo que a proposição do atual paradigma transicional se distingue dos demais justamente pela defesa de uma política multifocal que seja capaz de construir ferramentas efetivas na construção desses quatro pilares essenciais. O que foi dito anteriormente não deve implicar na compreensão da justiça de transição como uma fórmula geral preestabelecida que deve ser seguida do mesmo modo em todas as transições políticas. Os processos transicionais são marcados por peculiaridades próprias, a depender de uma série de fatores que coexistem em uma sociedade em período de pós-conflito. A complexidade desses fenômenos e a pluralidade de possibilidades que existe para a abertura de um regime autoritário não permite que se pense em um caminho universal infalível. O objetivo do atual paradigma transicional ao defender a efetivação de quatro dimensões é motivar a criação um planejamento de políticas de transição que perpassem por pontos básicos estratégi  

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cos, que representam um mínimo imprescindível para a afirmação de um estado de direito que garanta os direitos fundamentais dos cidadãos. Nesse sentido, ao propor que sejam criados instrumentos para a busca da verdade, por exemplo, não se pretende engessar que tal meta seja atingida por uma comissão com tais ou quais características. Assim, o número de envolvidos nos trabalhos dessas comissões, o período de investigação dos fatos, a estrutura desse instrumento e a maneira pela qual ele será criado (seja por decreto do poder executivo, seja por ato normativo do poder legislativo) são exemplos de escolhas que ficarão a cargo dos atores políticos que atuarão durante a transição, e que invariavelmente sofrerão a pressão das influências políticas que interagem naquela sociedade em particular.

4. Crime de Estado: definindo os contornos do problema Para que seja possível avançar na discussão a respeito da responsabilização dos crimes cometidos por agentes do Estado, é preciso compreender o que se entende por criminalidade estatal. A expressão “crime de Estado”, para o presente estudo, está relacionada a condutas penalmente tipificadas pelo ordenamento jurídico e que são praticadas por agentes integrantes da estrutura estatal no exercício de suas atividades funcionais em detrimento de direitos humanos. De fato, o Estado comete crimes por meio de seus agentes, por meio daqueles que agem em seu nome, violando direitos fundamentais. A compreensão de que o Estado pode ser responsável pela prática de delitos, embora hoje esteja consolidada, permaneceu por bastante tempo como uma alternativa insustentável. Nesse sentido, é importante perceber que até o período que antecede os acontecimentos marcantes da Segunda Guerra Mundial  

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prevaleceu um modelo de impunidade, no qual o Estado (e seus agentes) permanecem imunes a processos de responsabilização21. A maior dificuldade, para esse modelo de impunidade, é justamente compreender como o Estado – que criminaliza, processa, julga, condena e executa as penas – pode ser, concomitantemente, autor e réu na persecução criminal. De outro lado, é preciso mencionar o entendimento de alguns autores que tomam a noção de Estado por um viés formalista, isto é, vinculam a figura do Estado ao direito. Segundo essa perspectiva, se o próprio Estado é o criador do direito, esse Estado não pode ser sujeito de uma conduta que viole uma regra pertencente ao seu ordenamento jurídico. Com isso, aquele agente público que ao agir descumpre a lei, está agindo por conta própria enquanto indivíduo, e não como 21

“Antes da Segunda Guerra Mundial, a 'ortodoxia reinante' foi o modelo de impunidade, ditando que nem os Estados nem as autoridades estatais deveriam ou poderiam ser responsabilizados por violações aos direitos humanos do passado. Houve exemplos isolados de responsabilização na Grécia antiga e na França revolucionária, mas nenhuma tentativa sustentada em processos nacionais de direitos até após a Segunda Guerra Mundial. No nível internacional, várias tentativas pré-Segunda Guerra Mundial de responsabilização por crimes de guerra e atrocidades em massa ficaram aquém da criação das instituições necessárias. O modelo de impunidade depende de uma doutrina qual o próprio Estado e os agentes do Estado devem permanecer indefinidamente imunes a processos, tanto nos tribunais nacionais quanto, sobretudo, em tribunais estrangeiros. A história intelectual da doutrina da imunidade soberana busca amparo para tal modelo em várias fontes. Alguns dizem que ela deriva do princípio dos ingleses de que o monarca não erra, outros do poder inerente do Estado para evitar o processo judicial. (...) Seja qual for a explicação para a doutrina da imunidade, antes da Segunda Guerra Mundial era tido como certo que os agentes do Estado deveriam estar livres da acusação de violações aos direitos humanos, tanto em seus próprios tribunais quanto em tribunais estrangeiros ou internacionais” (SIKKINK, Kathryn. A Era da Responsabilização: a ascensão da responsabilização penal individual. In: ABRÃO, Paulo; PAYNE, Leigh A.; TORELLY, Marcelo D. A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.40-41).

 

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agente público. Em outras palavras, a atuação de um agente público em desconformidade com a legislação vigente, de fato, constituiria um ilícito a ser atribuído ao indivíduo e nunca ao Estado, de modo que não haveria elementos suficientes para afirmar a existência de uma criminalidade estatal22. Tal entendimento apresenta algumas incongruências que, salvo melhor juízo, dificultam a sua defesa. Primeiramente, essa noção normativa do Estado (é estatal aquele ato que esteja conforme a norma vigente) não dá conta da complexidade existente na esfera de interação de poder existente na dinâmica da estrutura Estado. A rigor, o problema aparece já na própria premissa que sustenta essa compreensão: qual ato está em conformidade com a norma vigente? Como a norma vigente durante a prática do ato pode ser interpretada? Qual o nível de compromisso do Estado, durante a prática do ato, com a efetivação da norma vigente? Nesse sentido, como demonstra a história, a grande maioria dos regimes autoritários de que temos notícias buscou legitimar a sua atuação com a construção de uma estrutura jurídica que lhe desse amparo, mas que pudesse ser violada a qualquer sinal de ameaça à ordem estabelecida. Não raras vezes a criação de um ordenamento jurídico de faixada pretendeu escon22

Em resumo, afirma-se que não se pode “afirmar que o Estado pratica crimes através das condutas criminosas de seus agentes. Isso porque os agentes estatais nunca podem, na condição de agentes estatais, cometer crimes. Se considerarmos como agente estatal apenas os indivíduos segundo o princípio da divisão do trabalho, designados através de um processo determinado pelo ordenamento jurídico e que se conduzem conforme as normas jurídicas que prescrevem os atos e funções de que são competentes, quando esses indivíduos agem contra o direito, eles não atuam mais na condição de agentes estatais. Ao praticarem algum crime, eles agem em nome próprio e por isso respondem pessoalmente pela sua conduta, e não como agentes estatais” (SWENSSON JUNIOR, Lauro Joppert. Anistia penal: problema de validade da lei de anistia brasileira (Lei 6.683/79). Curitiba: Juruá, 2011. p.69).

 

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der a real forma de atuação do próprio Estado que, por meio de seus agentes, submeteu seus opositores a tratamentos desumanos. Desse modo, embora reconheçamos a relação entre Estado e Direito (na medida em que o segundo propõe limites à atuação do primeiro), negamos essa caráter normativo que alguns atribuem como indispensável para a qualificação de “estatal” de um ato. Até porque essa noção normativista positivista não é capaz de lidar com a efetiva influência que a política exerce nesse processo que envolve o direito e sua legitimidade23. O Estado é; o Direito deve ser. Confundir essas duas esferas é negar que o Estado pode – por meio de políticas de repressão, de “defesa social” ou mesmo de extermínio – cometer massacres contra inimigos de forma deliberada, inclusive. Por outro lado, é interessante perceber que, no âmbito da responsabilidade cível (ilícito civil), tal entendimento não encontra guarida. Se um agente público que se encontra no exercício de suas funções causa um dano a um particular administrado, a Administração Pública será objetivamente responsável (independentemente da comprovação de culpa daquele que efetivamente causou o dano, portanto) pela respectiva 23

“De fato, não é possível estabelecer-se a nítida separação entre o jurídico e o político, sendo inaceitável, neste ponto, a proposição de Kelsen, que pretendeu limitar a Teoria Geral do Estado ao estudo do Estado 'como é', sem indagar se ele deve existir, por que, ou como, sendo-lhe vedado também preocupar-se com a busca do 'melhor Estado'. Ora, como é evidente, o Estado é necessariamente dinâmico, e toda a sua atividade está ligada a justificativas e objetivos, em função dos quais se estabelecem os meios. Como bem acentuou Harold Laski, o poder do Estado não é exercido num vácuo, nem se reduz a um simples jogo de normas existentes por si. Bem longe disso, é usado para atingir certas finalidades e suas regras são alteradas, em sua substância, para assegurar as finalidades consideradas boas, em determinada época, pelos que detêm o direito de exercer o poder estatal” (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p.108).

 

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indenização. Aquele que sofrer o prejuízo pelo ato do agente público, para ser ressarcido, acionará diretamente o Estado que, por sua vez, poderá ter garantido o direito de regresso contra o agente causador do dano, desde que seja comprovada a sua culpa24. Em última análise, defender que o Estado não se responsabiliza (seja civil, seja criminalmente) pelos atos de seus agentes que agem à margem da legalidade é uma forma de negar-lhe o reconhecimento da condição de sujeito de direitos e obrigações, além de ser uma maneira de corroborar o modelo de impunidade. O marco histórico para a corrosão do modelo de impunidade certamente foi o Holocausto. Com a negação de direitos fundamentais e a sistemática violação de garantias mínimas do cidadão, demonstrou-se que os agentes do Estado, sobretudo aqueles que atuam dentro das agências penais, com o consequente manuseio da violência "legítima" – dada a sua posição privilegiada de agir com o respaldo de todo um aparato estruturado e organizado – podem facilmente extrapolar seus poderes25, e que, portanto, precisam de limites 24 "Esses fundamentos vieram à tona na medida em que se tornou plenamente perceptível que o Estado tem maior poder e mais sensíveis prerrogativas do que o administrado. É realmente o sujeito jurídica, política e economicamente mais poderoso. O indivíduo, ao contrário, tem posição de subordinação, mesmo que protegido por inúmeras normas do ordenamento jurídico" (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011. p.504). 25 “Precisamente por deter o monopólio da violência, o Estado é aquele que possui as maiores probabilidades de utilizá-lo de modo inadequado, assim como é o que pode propiciar os resultados mais funestos, tanto em qualidade como em quantidade. Ao serviço do Estado estão aparelhos repressivos fortemente treinados e armados, como as polícias e as forças militares. Na estruturação destes aparelhos se apresenta uma organização burocrática com várias e complexas ramificações, um conjunto ideológico que justifica suas ações, um forte sentimento corporativo e uma racionalidade instrumental que perpassa todas as instâncias. Nenhuma quadrilha ou bando de criminosos de um país consegue igualar tal poderio (...)” SILVA

 

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reais e de processos estáveis que avaliem sua responsabilidade no desempenho de suas atividades funcionais. Importa salientar que, a partir da violação sistemática de direitos fundamentais assistida durante a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional concluiu que, em função da peculiaridade desse crime (sobretudo no que diz respeito ao fato de ser praticado por agentes políticos com significativo poder e que não possuem interesse em colaborar para o esclarecimento das circunstâncias em que os fatos ocorreram), é preciso fazer incidir sobre eles algumas regras diferenciadas – a fim de que a dignidade e a condição de sujeito de direitos de cada cidadão não seja facilmente violada pelo aparato estatal. Essas regras diferenciadas dizem respeito a questões penais e processuais penais que não podem figurar como obstáculo ao processo de investigação, como a prescrição, por exemplo. Dessa maneira, os tratados, as convenções e as declarações sobre direitos humanos que aparecem ao final da segunda grande guerra serviram para qualificar os crimes já existentes (tipificados, na linguajem dos penalistas) – tais como homicídio, estupro, lesões corporais, sequestro e ocultação de cadáveres – em crimes de Estado26, quando praticados por seus agentes em perseguições a determinados grupos da população civil com base em sexo, cor, raça, credo, consciência FILHO, José Carlos Moreira da. Crimes de Estado e Justiça de Transição. In: Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, n.2, p.22-35, jul.-dez., 2010.p.22-23). 26 A doutrina também os identifica como como "crimes internacionais" e como "crimes de massa". Nesse sentido, Zaffaroni esclarece que, "fuera de toda duda, también es verificable que cuando el poder punitivo del Estado se descontrola, desaparece el Estado de derecho y su lugar lo ocupa el de policía. Además, los crímenes de masa son cometidos por este mismo poder punitivo descontrolado, o sea, que las proprias agencias del poder punitivo cometem los crímenes más graves cuando operan sin contención" (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crímenes de masa. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2010. p.33).

 

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política ou qualquer outro meio discriminatório que represente um meio de violação aos direitos humanos. Logo após o término do conflito da Segunda Guerra Mundial, o próprio estatuto de Nuremberg traduziu a categoria dos crimes de Estado em uma nova expressão: crimes contra a humanidade. Evidentemente que, em função do contexto em que surgiu, a delimitação do conceito de crimes contra a humanidade não estava bastante clara, sobretudo no que diz respeito aos pontos que o distinguia dos crimes de guerra. Durante os julgamentos internacionais promovidos em Nuremberg e Tóquio e no transcorrer da segunda metade do século XX, essa delimitação ficou mais compreensível: é toda espécie de ataque promovido pelo Estado a um grupo da população civil que não apresenta condições de defesa e que não representa uma ofensividade. Distingue-se dos crimes de guerra por não estar necessariamente vinculado a essa situação bélica entre dois Estados. Ainda, é importante salientar o fato de a concepção de crime contra a humanidade estar fortemente relacionada à ideia de que o Estado pode figurar como criminoso a partir da atuação de seus agentes públicos, sobretudo quando esses promovem a sistematização de uma política de perseguição27. Na década de 1990, com 27

"A novidade do crime contra a humanidade não está na materialidade das violências (mesmo depois do aparecimento de novos meios científicos, postos a serviço do extermínio dos judeus europeus por parte dos nazis), mas no facto de elas serem cometidas em nome de uma política. Por conseguinte, não são tanto as infrações em si mesmas, muitas vezes já puníveis pelos direitos internos, que devem ser tidas em consideração, mas sim o contexto em que são perpetradas. Diferentemente do delito de direito comum, que só respeita a homens normais, e das infrações políticas, que só são imputáveis aos militantes de uma causa, o crime contra a humanidade é próprio do poder do Estado ou de uma organização militante. A incriminação não visa proteger o rebanho das ovelhas ronhosas nem do lobo, mas antes do mau pastor. O crime contra a humanidade decorre menos da ação de um homem que da acção de toda uma organização que pode ser oficial. Antes de ser uma criminalidade de indivíduos, representa uma 'criminalidade do sistema'" (GARAPON,

 

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a instalação dos tribunais internacionais para a responsabilização dos agentes públicos que violaram normas de direitos humanos durante os conflitos que ocorreram na Ex-Iugoslávia e em Ruanda – já durante a predominância do terceiro paradigma transicional, portanto – consolidaram o entendimento de que a existência de um conflito armado não é elemento imprescindível para a configuração do crime contra a humanidade. A partir de 1998, o tratamento jurídico dado aos crimes de Estado se altera. Isso porque, com a criação do Tribunal Penal Internacional (uma Corte Internacional permanente que possui a competência para julgar os crimes de Estado), o conceito de crime contra a humanidade deixa de ser definido por um critério material (mais amplo), para seguir a definição formal (mais específica) registrada no Estatuto de Roma. O crime contra a humanidade, assim, passa a ser uma espécie (um tipo penal) de crime de Estado. Importa ressaltar que, nos termos do art. 11 do Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional só terá competência para julgar os crimes cometidos após a entrada em vigor do instrumento normativo internacional que o instituiu. Diante dessa realidade, uma questão se coloca: se o Tribunal Penal Internacional tem competência para julgar apenas os crimes de Estado (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão) cometidos após a sua criação, em 1998, então aqueles crimes cometidos pelo Estado antes dessa data, como é o caso – por exemplo – dos crimes cometidos pelos agentes estatais durante a ditadura civil-militar brasileira, devem ficar impunes? Embora seja possível encontrar autores defendendo tanto uma quanto outra posição, parece mais plausível a resposta negativa. Não há como negar o fato de que o Tribunal Penal Internacional organiza uma estrutura sem preceAntoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p.123-124).

 

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dentes na busca pelo combate ao crime de Estado, basta verificar que dentre os seus artigos estão presentes normas de procedimento com algo grau de detalhamento. Entretanto, como foi exposto, o Estatuto de Roma não é o marco inicial referente aos crimes de Estado na legislação internacional. Partindo do pressuposto de que condutas cometidas pelos agentes públicos estavam tipificadas no ordenamento jurídico interno, e que instrumentos internacionais pós-Segunda Guerra Mundial trouxeram regras diferenciadas no tratamento dos crimes de Estado, reconhecemos que é dever dos tribunais nacionais promoverem a investigação e o julgamento desses fatos, com a atribuição de responsabilidade criminal, se for o caso. Nesse ponto em particular, há uma grande discussão a respeito da efetividade dos julgamentos desses crimes, principalmente no que diz com a sua real utilidade para a democracia. Por isso, buscaremos tecer algumas considerações sobre o papel dos julgamentos criminais na superação do legado deixado pelo crime de Estado.

4.1. Por que não esquecer? O debate envolvendo as vantagens e as desvantagens dos processos de responsabilização criminal referente a violações aos direitos humanos por agentes do Estado não é recente. Principalmente após a abertura controlada promovida pelos regimes ditatoriais da América Latina, predominou o entendimento de que o processo de responsabilização criminal representava um risco à democracia. Nesse cenário das transições controladas e negociadas, as leis de anistia surgem no horizonte como uma ferramenta transicional importante a ser utilizada, já que cria um obstáculo imediato aos julgamentos e permite que as lideranças dos regimes golpistas se sintam menos vulneráveis ao deixar o poder. A efetividade das anistias conferidas nessa conjuntura - entretanto - se dá no campo político e não no ju  

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rídico. O papel desses instrumentos, assim, é justamente aliviar a tensão de forças durante a abertura e permitir a ocorrência da transição para um estado de direito estável. No campo jurídico, de outro lado, em função das regras diferenciadas que incidem sobre os crimes de Estado criadas pelo direito internacional a partir do pós-Segunda Guerra Mundial, as anistias simplesmente não apresentam efetividade. Dentre tantos pontos negativos, destaca-se que a adoção de uma política de esquecimento por meio de concessão de anistias é incapaz de romper com o potencial mimético da violência gerada pelo crime de Estado, principalmente porque desconsidera o fato de que a violência provocada por esse fenômeno se projeta para o futuro e não deixa de existir com o simples passar do tempo. Por mimese da violência, nesse contexto, compreende-se tanto a perpetuação de práticas violentas por meio das instituições estatais que lidam diretamente com o controle social, quanto a continuidade da violência por meio de atos das vítimas que tendem a reproduzi-la28. Desse modo, fica claro que as leis de anistia desse contexto deverão ser reanalisadas pelo Estado quando ocorrer a estabilização das institui-

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"A violência não se apaga ao finalizar o ato violento e seus efeitos atuam na forma de eco contaminante das relações sociais, deixando sequelas indeléveis na vítimas e nos violadores. O caráter inconcluso de toda violência costura uma linha de continuidade entre violência do passado e nossa violência presente. Embora nos pareça imperceptível, essa linha alimenta muitas das condutas violentas que atualmente nos apavoram. Ela tem um poder contagiante nas condutas e contaminante das instituições. É a potência mimética da violência que induz os sujeitos e as instituições a repeti-la como algo impulsivo, natural, normalizando os comportamentos violentos como naturais" (RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. (In)Justiça, Violência e Memória - o que se oculta pelo esquecimento tornará a repetir-se pela impunidade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.) Justiça de Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p.85-86).

 

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ções democráticas responsáveis pela aplicação da justiça29. Como já foi apontado, durante a preponderância do segundo paradigma transicional, a investigação e a punição dos crimes de Estado contrariava frontalmente os interesses de forças políticas que ainda concentravam significativa parcela de poder durante a transição política, e portanto, representariam um afronte à estabilidade social e institucional necessária para a redemocratização. É preciso destacar, no entanto, que ao se tratar especificamente do caso dos processos transicionais ocorridos a partir dos anos 1980 na América Latina, diferentemente do que se supunha, a grande maioria dos países que efetuaram a responsabilização criminal dos agentes do Estado por violações aos direitos humanos mantiveram-se estáveis no processo de democratização. De um modo geral, a região latino americana tem experimentado, pós julgamentos criminais, um aprofundamento democrático sem precedentes30. A partir dessa constatação empírica, salientamos a 29

Dessa maneira, afirma-se que "em alguns casos, anistias fornecem a estabilidade que mais tarde permite que democracias fortes processem os perpetradores e estabeleçam a proteção dos direitos humanos. Tal sequência pode ocorrer em caso de uma transição negociada. Os perpetradores podem ser bem-sucedidos em negociar sua retirada da acusação com uma anistia, mas essas anistias provavelmente enfrentarão importantes desafios posteriores por parte de comunidades de direitos humanos mais fortes, sistemas judiciários mais independentes e governos mais responsáveis. Nesse cenário, o equilíbrio envolve dar sequência à responsabilização após a anistia ter favorecido a estabilidade política. O poder da anistia continua a ser crucial para o resultado da democracia e dos direitos humanos por meio da criação de estabilidade num contexto particularmente vulnerável" (OLSEN, Tricia D.; PAYNE, Leigh A.; REITER, Andrew G. As implicações políticas dos processos de anistia. In: ABRÃO, Paulo; PAYNE, Leigh A.; TORELLY, Marcelo D. A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.562). 30 “If we compare regions that have made extensive use of trials, we find that Latin America, which has made the most extensive use of

 

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insustentabilidade dos argumentos que relacionam os processos de responsabilização com a alta probabilidade de contraofensivas golpistas dos regimes ditatoriais em superação. Na esteira da discussão aventada é indispensável uma reflexão que enfoque a utilidade e a necessidade da atração do direito penal como resposta ao fenômeno "crime de Estado". A primeira consideração a ser firmada é a de que o processo de responsabilização nos períodos de transição política constitui elemento complementar do movimento de enfrentamento do legado autoritário, isto é, a responsabilização não dispensa uma política transicional que dê conta dos outros pilares fundamentais da verdade, da reparação e da reforma das instituições. Não se pode esperar do direito penal mais do que ele efetivamente pode oferecer. O fenômeno do crime de Estado acarreta um sério envolvimento da estrutura institucional, de modo que a responsabilização criminal dos agentes públicos, por si só, seria inútil para a superação do regime de exceção. A respeito da utilidade da incidência do direito penal nos casos dos crimes de Estado, surge no horizonte o debate entre as correntes doutrinárias que justificam a aplicação da pena, sendo as mais comuns aquelas que enfocam ou a retribuição ou a prevenção como seu fundamento. Para os retribucionistas, a pena é a consequência direta imposta pelo Estado quando ocorre uma violação às normas vigentes. Já para a corrente human rights trials of any region, has made the most complete democratic transition of any transitional region. In the 20 century, political instability and military coups were endemic in Latin America. Since 1980, however, the region has experienced the most profound transition to democracy in its history, and there have been very few reversals of democratic regimes” (SIKKINK, Kathryn; WALLING, Carrie Booth. The Impact of Human Rights Trials in Latin America. In: Journal of Peace Research, vol.44, n.4, 2007. p.434). Disponível em: http://jpr.sagepub.com/content/44/4/427. Acesso em 10 de Janeiro de 2014. th

 

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da prevenção, os objetivos da pena não estão direcionados ao passado - na busca de uma retribuição ao ato ilícito cometido (como prescrevem as teorias retribucionistas) - mas se projetam para o futuro, com o fim de impedir que novos atos ilícitos se repitam31. No ordenamento jurídico brasileiro, as duas correntes aparecem conjuntamente (adere-se à doutrina unificadora) com o propósito de garantir uma resposta efetiva ao ato desviante, conforme se pode depreender do disposto no estatuto penal que impõe ao juiz a ponderação de uma pena suficientemente capaz de reprovar e prevenir a infração em análise32. Quando se trata de crime de Estado, a utilidade da aplicação direito penal está indissociavelmente conectada a sua capacidade de contribuir na alteração do modelo de atuação das forças de segurança pública consolidado pelo regime autoritário em superação. Nesse sentido, a atribuição de responsabilidade rompe com o paradigma de impunidade em relação aos abusos cometidos pelos agente públicos. Conforme é possível constatar, nos países latino-americanos onde houve a persecução criminal dos crimes de Estado, com a efetiva responsabilização dos culpados, os índices de violação aos direitos humanos pelas forças de seguran-

31 Para um aprofundamento a respeito das teorias sobre as funções da pena, ver: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Parte Geral. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 32 Art. 59 do Código Penal brasileiro: "O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas ; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível"(grifo nosso). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DecretoLei/Del2848.htm#art1. Acesso em 12 de Janeiro de 2014.

 

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ça pública diminuíram consideravelmente33. A punição revela-se significativamente útil porque invariavelmente afasta o agente público de suas atividades funcionais, provocando a perda do cargo, inclusive. Esse afastamento assume um papel fundamental já que a violência causada pelo crime de Estado também atinge o agente estatal, a ponto de retirar-lhe a capacidade de reconhecer no outro - sua(s) vítima(s) - um traço de semelhança humana34. É por essa razão que, não raramente, o modo de agir daquele agente público que permanecer impune na estrutura institucional no Estado pós-transição continuará sendo o mesmo, de desrespeito aos direitos humanos. 33

"We show that, at least in Latin America, there is not a single case of a country where democracy has been undermined because of the choice to use trials. Nor is there evidence that trials lead to worsening human rights situations. Rather, in 14 of the 17 cases of Latin America countries that have chosen trials, human rights seem to have improved" (SIKKINK, Kathryn; WALLING, Carrie Booth. The Impact of Human Rights Trials in Latin America. In: Journal of Peace Research, vol.44, n.4, 2007. p.442). Disponível em: http://jpr.sagepub.com/content/44/4/427. Acesso em 10 de Janeiro de 2014. 34"A potência mimética naturaliza a violência tornando-a, para o violador, um ato normal. A normalização da violência replica uma progressiva desumanização do violador de modo que, a cada ato violento, este tende a perder a sensibilidade humana sobre o sofrimento do outro. A prática mimética da violência desumaniza o violento a ponto de ele perder a capacidade de ver no outro um semelhante. O violador, a cada ato violento, apaga na vítima as feições de um ser humano, de um semelhante, tornando-a um objeto vazio de sentido. A vítima, para o violador, não tem rosto. A mimese corrói, no violador, o seu reconhecimento da alteridade humana do outro. A mimese da violência embrutece, a cada ato violento, a consciência do violador ao extremo de poder transformar o sadismo em prazer. O embrutecimento mimético da violência pode transformar o sofrimento do outro vitimado num prazer sádico" (RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. In)Justiça, Violência e Memória - o que se oculta pelo esquecimento tornará a repetir-se pela impunidade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.) Justiça de Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p.93-94).

 

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Por outro lado, partindo do pressuposto que o papel do direito penal é estabelecer punição para certas condutas que põem em risco os bens jurídicos de maior valia para determinada sociedade, é forçoso reconhecer - por uma questão de proporcionalidade - que a atração do direito penal como resposta à criminalidade estatal se faz necessária. Se é verdade que o Estado de Direito deve reservar para o direito penal aquelas situações mais graves e críticas dada a agressividade das respostas formuladas pelo poder punitivo (representadas pela aplicação de uma pena), não é possível afastar a sua incidência no tratamento do crime que mais perigosamente atinge os direitos fundamentais, o crime de Estado35. Nenhum crime tipificado no ordenamento jurídico interno é capaz de superar, em termos de gravidade, aqueles cometidos pelo próprio Estado, que é no final das contas - justamente quem deveria zelar pela garantia dos direitos das vítimas. Assim, ao tratarmos da necessidade da atração do direito penal como resposta ao crime de Estado, é preciso ter claro que tal incidência está diretamente relacionada com a própria coerência do sistema punitivo, que não poderia estabelecer respostas penais a determinados atos e deixar de prevê-las para outros atos mais devastadores aos bens jurídicos protegidos. A punição dos crimes de Estado, portanto, não está em atrito com um modelo garantista - ao contrário disso, é elemento que dá integridade e coerência ao sistema penal. É justamente para o esclarecimento dessa relação entre punição dos crimes de Estado e garantismo que partiremos no tópi35

"Sea cual sea el paradigma científico en que cada quien se apoye, lo cierto es que sería despreciable un saber criminológico que ignore el crimen que más vidas humanas sacrifica, porque esa omisión importa indiferencia y aceptación. El científico no puede alejarse de la ética más elemental de los derechos humanos" (ZAFFARONI, Eugênio Raul. El crimen de Estado como objeto de la criminología, 2006.p.21). Disponível em: http://www.bibliojuridica.org/libros/6/2506/4.pdf. Acesso em 12 de Janeiro de 2014.

 

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co a seguir, na busca pela construção de uma resposta substancialmente coerente ao problema: como punir esses crimes?

4.2. Como punir? Os autores que contestam a punição aos crimes de Estado apontam como uma grande falha dos processos de responsabilização a violação a direitos fundamentais dos sujeitos acusados por um poder punitivo ilimitado que é cooptado a aplicar sanções desproporcionais36. Dessa maneira, esses processos assumiriam a feição de uma “caça às bruxas”, onde os fins justificariam os meios – e como os fins são extremamente importantes (construção e preservação de uma cultura de proteção aos direitos humanos), os meios poderiam extravasar os limites previstos legal e constitucionalmente37. 36 Ao questionar a necessidade dos processos de responsabilização para os crimes de Estado, Daniel Pastor pondera que “organismos internacionales de protección y organizaciones de activistas consideran, de modo sorprendente por lo menos, que la reparación de la violación de los derechos humanos se logra primordialmente por medio del castigo penal y que ello es algo tan loable y ventajoso que debe ser conseguido sin controles e ilimitadamente con desprecio por los derechos fundamentales que como acusado debería tener quien es enfrentado al poder penal público por cometer dichas violaciones. Se cree, de este modo, en un poder penal absoluto” (PASTOR, Daniel R. La deriva neopunitivista de organismos y activistas como causa del desprestigio actual de los derechos humanos, 2006). Disponível em: http://www.juragentium.org/topics/latina/es/pastor.htm. Acesso em 13 de Janeiro de 2014. 37 "É precisamente aí que reside o paradoxo: por ser maciço e generalizado, o crime contra a humanidade exige, mais do que qualquer outro crime, uma sanção. Mas, pelas mesmas razões, é mais difícil, senão mesmo impossível, de julgar. É aí que está o trágico da própria justiça dos crimes contra a humanidade que, sob o pretexto de querer distanciar-se do mal radical, arrisca-se a alimentá-lo involuntariamente. Nesses crimes que excedem o direito comum, a justiça não pode ser proferida sem incorrer no risco de negar os seus

 

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Data vênia, o processo de responsabilização proposto pelo atual paradigma da justiça de transição não defende essa punição descontrolada aos agentes públicos que cometeram crimes de Estado. A aproximação dos princípios da justiça transicional ao modelo do Estado Constitucional impõe limites objetivos inafastáveis aos processos criminais, de maneira que as garantias penais e processuais devem ser asseguradas aos acusados. Diferentemente do que apresentam alguns críticos, para a justiça transicional, os agentes públicos que violaram normas de direitos humanos não devem ser encarados como “monstros” ou “inimigos”, mas como cidadãos que merecem ter respeitados seus direitos durante os processos judiciais, como impõe a norma constitucional. O julgamento, a propósito, é uma ocasião onde o foco da valoração é a conduta praticada pelo sujeito, e não o sujeito por seu modo de ser. Cabe salientar, ainda, que a opção de agregar processos de responsabilização criminal como um passo da transição não ocorre de forma ingênua a negar o caráter político das decisões judiciais. Por outro lado, entretanto, qual decisão judicial não é política? A imparcialidade do julgador que alguns autores afirmam ser impossível no caso dos crimes de Estado é a imparcialidade política - mas, tal imparcialidade, de fato, sequer existe quando da análise dos crimes comuns: qual pessoa é capaz de se sentir minimamente indiferente diante de homicídios, estupros, abuso de menores, utilização de trabalho escravo, e tantos outros? Somos seres naturalmente políticos, e utilizaremos nossos valores guias no momento de valorar os fatos que ocorrem ao nosso redor. Do julgador dos processos judiciais, cabe-nos exigir a imparcialidade jurídica, isto próprios princípios fundadores, ou seja, a legalidade dos delitos e das penas, a imparcialidade do juiz, a igualdade perante a lei e o tratamento igual" (GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p.233).

 

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é, o desenvolvimento de suas atividades conforme as regras do jogo - que nos Estados de Direito - estão presentes nas constituições. É relevante enfatizar, de igual modo, que ao afirmarem a impossibilidade de julgamentos neutros (que sejam capazes de obedecer às regras do jogo) para investigar os crimes de Estado cometidos pelas ditaduras latino-americanas, esses autores não estão negando vigência às normas penais que tipificavam esses crimes à época dos fatos, mas as regras de tratamento especial a esses crimes (imprescritibilidade, impossibilidade de serem anistiados, etc.) que foram construídas pelo direito internacional dos direitos humanos. A própria decisão do intérprete que nega vigência a essas normas não pode ser compreendida como imparcial, aliás. Na apuração desses fatos que constituem crimes de Estado, discute-se qual a melhor opção: tribunais nacionais ou internacionais? A doutrina aponta vantagens e desvantagens de um e de outro. Especificamente no caso do Brasil – considerando que o Tribunal Penal Internacional só tem competência para julgar os crimes ocorridos após a sua criação (em 1998) – parece que tal debate não tem espaço. O próprio Poder Judiciário nacional seria o órgão competente para a realização do processamento desses fatos. Antes de avaliar a questão da proporcionalidade das penas, é preciso esclarecer que a dimensão da “responsabilização” na justiça de transição - mais especificamente no que diz respeito à responsabilização criminal – não pressupõe, necessariamente, a punição (aplicação de pena). A punição é a consequência direta que o ordenamento impõe a uma pessoa após o devido processamento no qual se averiguou – com base nos procedimentos previstos pela lei – a existência de responsabilidade criminal. Nesse sentido, importa ressaltar que todas as garantias previstas pelos ordenamentos jurídicos modernos – tais como a ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência – devem ser assegurados durante esses processos judiciais. Logo, no  

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caso de um processo criminal no qual não sejam juntadas provas suficientes que apontem para a culpa do acusado, impõe-se a sua absolvição independentemente de o fato em análise constituir – em tese – um crime de Estado. Em relação à proporcionalidade das penas que devem ser aplicadas, uma série de questões precisam ser enfrentadas. Se partirmos do pressuposto de que o crime de Estado gera a violência mais grave em relação a todos os demais atos delituosos, por um imperativo de coesão argumentativa, é preciso admitir que a resposta penal a esses crimes deve contribuir para a construção de um sistema minimamente coerente e proporcional. De uma perspectiva diferente daquela na qual o primeiro paradigma da justiça de transição partiu – corroborando, inclusive, a pena de morte nos casos dos condenados pelos crimes de Estado – o atual paradigma da justiça de transição está fundado na compreensão de que a pena precisa obedecer ao princípio da humanização das penas próprio do Estado Constitucional de Direito. A partir do recorte a que proposto pelo presente trabalho, é importante destacar quais as penas que o sistema penal brasileiro disporia para responder aos crimes de Estado praticados durante o regime ditatorial eventualmente comprovados em um julgamento criminal que ocorresse na atualidade. Em função da retroatividade da norma penal mais benéfica, é preciso reconhecer que os limites intransponíveis ao poder punitivo estão na Constituição Federal de 1988. Não que as constituições anteriores vigentes durante o regime de exceção brasileiro - que foram três, a de 1946, a de 1967 e a de 1969 – estejam aquém nos quesitos de proteção de direitos e de afirmação de garantias penais e processuais penais38. Entretanto, o grau de detalhamen38 A Constituição Federal de 1946 estabelecia, no seu art. 141, § 31, que “não haverá pena de morte, de banimento, de confisco, nem de caráter

 

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to das garantias existente no texto constitucional vigente torna a utilização de outras balizas prejudicial ao acusado. Como resposta aos crimes de Estado, a Constituição Federal de 1988 admitiria a privação ou restrição da liberdade, a perda de bens, a multa, a prestação social alternativa e a suspensão ou interdição de direitos. Por sua vez restam vedadas as penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis39. Como se pode perceber, na proposta da justiça de transição, ao defender a dimensão da “justiça”, não está uma demanda por vingança, mas de um estabelecimento de igualdade perante a lei, de modo que mais significante do que o cumprimento da pena é o processo que lhe antecede.

Conclusão A delimitação do que se pretende dizer quando se afirma que as medidas de responsabilização, no caso dos crimes comedidos pelos agentes estatais durante regimes de exceção, são imprescindíveis para a viabilização de democracias é extremamente importante para que não se confunda a demanda por justiça (proposta como uma das quatro dimensões no atual paradigma transicional) com procedimentos revanchistas. Assumindo a premissa de que os agentes públicos - no desempenho de suas funções - podem cometer infrações perpétuo”. Por sua vez a Constituição de 1967, no art. 150,§ 11, impunha que “não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar” texto que foi integralmente repetido pela Emenda Constitucional n.1 de 1969 no seu art.153, § 11. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacaohistorica/constituicoes-anteriores-1#content. Acesso em 14 de Janeiro de 2014. 39 Art. 5º, incisos XLVI e XLVII da Constituição Federal de 1988.

 

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penais gravíssimas, o atual modelo da justiça de transição propõe a criação de ferramentas que impeçam a propagação de uma cultura de impunidade que fomente a violação de direitos humanos fundamentais. Nesse sentido, é indispensável que as Constituições dos Estados - enquanto normas hierarquicamente superiores estejam em sintonia com a construção realizada no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Como se pode observar, a responsabilização dos agentes do Estado que violaram direitos humanos durante a ditadura militar brasileira não dispensa a observância às garantias penais e processuais penais nem representa um afronte aos princípios constitucionalmente previstos. Ao contrário disso, inclusive, a investigação e o processamento de tais condutas são condição de coerência ao próprio sistema punitivo pátrio (de ontem e de hoje) já que - se violações a bens jurídicos de menor importância têm merecido a tutela penal e a atribuição de uma pena - as violações a bens como a vida e a integridade física não podem ficar impunes.

Referências BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Parte Geral. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1993. GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg (1945-1946): a gênese de uma nova ordem no direito internacional. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.  

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Justiça Transicional e a repressão no campesinato nordestino brasileiro

Eduardo  Fernandes  de  Araújo1   Eduardo  Soares  Bonfim2   Igor  Leon  Benício  Almeida3   Wyllck  Jadyson  Santos  Paulo  da  Silva4  

1 Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) no curso de Direito (Santa Rita), mestre em Ciências Jurídicas pelo PPGCJ/UFPB. Especialista em Direitos Humanos pelo CCHLA/UFPB. Colaborador do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB e fundador do Núcleo de Estudos Afro brasileiros e Indígenas da UFPB, exerce a coordenação colegiada do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB. Pesquisador do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais. Coordenador da linha de pesquisa: Justiça e Violência Institucional - Ymyrapytã: As ligas da Memória, Verdade e Justiça. 2 Graduando em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas – Departamento de Ciências Jurídicas (DCJ/UFPB) Santa Rita, extensionista do Projeto Ymyrapytã: Povos Tradicionais e Meio Ambiente, estagiário do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB (CRDH/UFPB). Pesquisador da linha de pesquisa: Justiça e Violência Institucional - Ymyrapytã: As ligas da Memória, Verdade e Justiça. 3 Graduando em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas – Departamento de Ciências Jurídicas (DCJ/UFPB) Santa Rita, estagiário da Dignitatis – Assessoria Técnica Popular. Pesquisador da linha de pesquisa: Justiça e Violência Institucional - Ymyrapytã: As ligas da Memória, Verdade e Justiça. 4 Graduando em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas – Departamento de Ciências Jurídicas (DCJ/UFPB) Santa Rita, extensionista do Projeto Ymyrapytã : Povos Tradicionais e Meio Ambiente, estagiário do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB (CRDH/UFPB). Pesquisador da linha de pesquisa: Justiça e Violência Institucional - Ymyrapytã: As ligas da Memória, Verdade e Justiça. Monitor da disciplina Sociologia Geral e Jurídica.

 

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Resumo: O presente trabalho tem por finalidade estabelecer uma breve leitura e análise da Justiça de Transição no Brasil com foco nos casos de violações de direitos humanos ocorridos no campesinato do Nordeste brasileiro entre os anos de 1964 e 1985, especificamente nos Estados da Paraíba e Pernambuco. As temáticas que envolvem o tema da Justiça de Transição (Memória, Verdade e Justiça) têm ganhado espaço nos debates midiáticos, filosóficos, históricos, políticos e jurídicos em todo o mundo; na América Latina especialmente, sendo relevante, no contexto brasileiro/nordestino, a ampliação da interlocução entre a academia, Comissão Nacional da Verdade, Comissões Estaduais, grupos de pesquisa/extensão, mídia, instituições do Estado, movimentos sociais e sociedade civil organizada, proporcionando que os contornos conceituais e práticos cheguem/retornem na/da população em geral. A Justiça de Transição cumpre papel fundamental na formação de um Estado Democrático de Direito, visto que possibilita o diálogo entre passados/presentes/futuros enquanto mediadores entre o Estado e sociedade em um processo cuja finalidade precípua é a de (re)pensar o funcionamento das instituições, projetando novas formas de ação/reflexão. Palavras chave: Justiça de Transição; Ditadura Militar; Campesinato Nordestino. Abstract: This article aims to establish a brief overview and analysis about Transitional Justice in Brazil, focusing on cases of human rights violation occurred in Brazil’s Northeast between the years 1964 and 1985, especially in Paraíba e Pernambuco. Themes involving Transitional Justice (memory, truth and justice) has gained ground on media, philosophical, political and legal debates in the world – especially in Latin America and Brazil’s Northeast, where there is an increasing interaction among Universities, National Commission of Truth, State Commissions, research and extension groups, media, State institutions, social movements  

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and the organized civil society, which has bringing conceptual and practical contours to the whole population. Transitional Justice performs a fundamental role in building a Democratic Rule-of-Law State, enabling dialogue between past/present/future, as mediators between State and Society, in a process which aims to (re)think the functioning of institutions, projecting new forms of action/reflection. Keywords: Transitional Justice; military dictatorship; Northeastern peasantry.

1. Introdução Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa [...] “Cálice” – Chico Buarque e Gilberto Gil 1973.

O período do regime da ditadura civil-militar (1964-1985) consistiu numa época de extremas e sistemáticas violações de direitos humanos (dignidade, integridade física e psicológica, liberdade de expressão, direito de ir e vir, livre associação, liberdade de expressão e outros), conforme a carta-denúncia de Frei Tito de Alencar recuperada pelo Comitê Brasileiro pela Anistia: Fui levado do Presídio Tiradentes para a Operação Bandeirantes (OB, polícia do Exército) no dia 17 de fevereiro, terça-feira, às 14h. caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço,

 

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apontavam-me seus revólveres CAVALCANTI e RAMOS, 1976/78. p. 3475

[...].

Ainda no período do regime civil-militar, foi criada a Lei de Anistia (Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979), fruto de um processo que vinha sendo trabalhado desde 1975 pela sociedade civil articulada no plano nacional e internacional, buscando alternativas momentâneas para o fim da supressão de direitos em face das medidas governamentais que estavam em curso, principalmente os Atos Institucionais que consolidavam a perpetuação dos militares no poder; também é preciso vislumbrar nessa dimensão legislativa promulgação a Lei de Segurança Nacional, Lei n. 6.620, de 17 de dezembro de 1978, pelo Presidente Ernesto Geisel. A campanha pela anistia iniciara-se há alguns anos, com a formação de comitês por todo o país, destacando-se o Movimento Feminino pela Anistia, fundado em 1975, e o Comitê Brasileiro de Anistia, em 1978, com núcleos em Porto Alegre, Rio de Janeiro, Fortaleza, Bahia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Esses dois grupos assimilaram as demandas de familiares mortos e desaparecidos políticos, como as Mães de São Paulo e a União Brasileira de Mães, incorporando-as às suas manifestações pela anistia.6

Nesse contexto de oscilações políticas, violações de direitos humanos, mudanças comportamentais e políticas, assim como a pressão nacional/internacional, a Justiça de Transição entrou de forma perpendicular 5

TITO, Frei. O testemunho de Frei Tito. Carta denúncia de um preso político, frei Tito de Alencar Lima, 24 anos, dominicano. In: CAVALCANTI, Pedro Celso Uchôa e RAMOS, Jovelino Ramos. Memórias do exílio, Brasil, 1964 – 19??. São Paulo: Editora e Livraria Livramento Ltda, 1978. p. 347 – 351. 6 BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre: Editora Medianiz, 2012. p. 143

 

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na agenda brasileira, em um primeiro momento relacionando o campo político-jurídico às questões vinculadas à produção normativa, anistia política, justiça penal, justiça de reparação e reforma das instituições de segurança pública, perfazendo ligações entre passados e presente, modo contínuo em que se apresentava enquanto alternativa conceitual e mediadora para a (re)democratização. O conceito de Justiça de Transição não é uno, alguns entendem como um passo rumo à (re)democratização, outros entendem como acerto de contas com as subversões sufocadas, visto que abrem relações/contradições entre as narrativas oficiais e não oficiais enquanto fontes de investigação histórica. Nesse sentido, a vinculação entre os pontos principais da Justiça de Transição, passando pelo recorte temático que o artigo pretende expor em face das situações vivenciadas pelo campesinato nordestino (Paraíba e Pernambuco), pode estabelecer uma das vias para a construção de uma política reconstrutiva da memória permanente nas lutas camponesas.

2 - (Re?)construção democrática: uma memória de várias memórias. João Goulart, Presidente do Brasil, vinha de um processo bastante conturbado de eleições/renúncia de Jânio Quadros, o seu governo enfrentava resistência ferrenha das elites brasileiras, principalmente em face das pautas ligadas às chamadas Reformas de Base, entre elas a Reforma Agrária. O fato é que, entre grandes parcelas das classes dominantes, militares conservadores e alguns setores médios do Brasil, há muito se acreditava que João Goulart era, no mínimo, um simpatizante dos comunistas. Afinal, “Jango era o líder da ala esquerda do PTB e um dos principais responsáveis pela transformação do partido getulista, concebido

 

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originalmente como dique contra o comunismo, em aliado do PCB” (MOTTA, 2002, p. 234)7

Em outro campo político havia o temor por parte dos Estados Unidos8 de que o Brasil, no governo de “Jango”, se tornasse uma ditadura socialista; nesse sentido as pressões aumentavam de todos os lados: o Presidente era minado por interesses empresariais nacionais e internacionais; grupos de latifundiários se articulavam em várias regiões do país temerosos com a Reforma Agrária; ao mesmo tempo no cenário internacional era visível o desgaste do Brasil – e a necessidade de posicionamento - diante da formação dos blocos econômico-políticos no ocidente. Essa repercussão internacional tinha influência direta na política internacional do continente latinoamericano que, por outro lado, passava por processo de solidificação das bases populares (sindicatos, associações e outros) em processo de (re)organização política e construção de pautas que exigiam mais do que reformas legais e institucionais. Nesse sentindo, o governo de “Jango” e de seus aliados internos em alguns Estados, assim como dentro do próprio partido, foi sendo levado a um isolamento político e de representatividade que criou o momento oportuno para a tomada de poder através de uma Ditadura Civil-Militar, destacando-se a Marcha da Família com Deus, pela liberdade em São Paulo, onde aproximadamente 500 mil pessoas se mobilizaram em repúdio 7 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2002. 8 A importância dada ao caso brasileiro pelo governo Kennedy pode ser constatada pelo fato de que a administração Goulart virou tema de apreciação do Comitê Executivo do Conselho de Segurança Nacional (National Security Council, NSC) em reunião do dia 11 de dezembro de 1962. Texto disponível em: http://anpec.org.br/encontro/2011/inscricao/arquivos/000dee84bec a059ff4b73fb482757a9b9bc.pdf (acesso em 09 abr. 2013).

 

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ao comunismo, e em defesa do Regime e da Constituição9, e as mobilizações de mulheres em todo país.10 Finalmente, na madrugada do dia 31 de março, o gal. Mourão Filho, comandante da IV Região Militar de Minas Gerais, ordenou que sua tropas se movimentassem de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro, com o apoio do governador de Minas, Magalhães Pinto e de São Paulo, Adhemar de Barros e recebeu o apoio do gal. Amaury Kruel, do Rio de Janeiro, que ainda tentou um acordo com João Goulart, para que este se afastasse do CGT e da UNE e de outras entidades “subversivas” que poderiam manter poder. Jango recusa, e o golpe é desencadeado. João Goulart resolve não resistir, apesar do apelo de vários de seus aliados, para evitar uma guerra civil no país e se exila no Uruguai. A direita no Congresso aprova a declaração de vacância do cargo de Presidente da República e o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, foi empossado no cargo11.

Com o golpe militar instalado no país e a dificuldade de reação dos grupos contrários a ele – no Rio 9 São Paulo pára em defesa do regime e da Constituição: “Ontem, São Paulo parou. E foi à praça publica - porque "a praça é do povo" - numa mobilização que envolveu meio milhão de homens, mulheres e jovens, também de outros Estados: a "Marcha da Família com Deus, pela Liberdade". Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm (acesso em 07 abr. 2013). 10 Nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Guanabara, Minas Gerais, Ceará e Pernambuco, as mulheres atuaram de forma institucionalmente organizada em entidades como a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), a Liga da Mulher Democrata (LIMDE) e a União Cívica Feminina (UCF)(Cf. FICO, 2004b; SIMÕES, 1985).Texto disponível em: http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/ufba_ditadura_milita r_na_bahia_1.pdf (acesso em 09/04/2013). 11 TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. 5ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 103 e ss.

 

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Grande do Sul, Rio de Janeiro e Pernambuco houve uma resistência mais articulada12 -, o governo militar aumentou seus poderes administrativos, jurídicos e políticos através dos Atos Institucionais13. Entre os referidos documentos, o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), de 13 de Dezembro de 1969, promulgado no governo do General Artur da Costa e Silva, foi o mais contundente no campo das violações de direitos fundamentais. O AI-5 aumentava o poder do Presidente da República de tal forma que ele poderia intervir nos estados e municípios, sem respeitar as limitações constitucionais; Suspender os direitos políticos, pelo período de 10 anos, de qualquer cidadão brasileiro; Cassar mandatos de deputados federais, estaduais e vereadores; Proibir manifestações populares de caráter político; Suspender o direito de habeas corpus. Há de se destacar que as violações de direitos presentes em tal ato não se limitavam ao âmbito constitucional, mas também alcançou marcos declaratórios e imperativos consagrados internacionalmente, como foi o caso do artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 12

Registre-se que a Guanabara ainda era a caixa de ressonância do Brasil, embora desde 1960 não fosse mais a capital da República. Por isso, as tropas marcharam sobre a Guanabara. Jango, sem clima em Brasília e no Rio, vai para o Rio Grande do Sul, onde Brizola estava preparado para resistir, com apoio do III Exército, sob o comando do general legalista Ladário Telles. Bastava uma ordem de João Goulart para a resistência. Jango, porém, temendo uma guerra civil e sabedor do apoio armado dos EUA ao golpe, preferiu evitar “derramamento de sangue”. Até a sua decisão, Brizola, baseado na Prefeitura de Porto Alegre, governada pelo trabalhista Sereno Chaise e usando a Rádio Farroupilha, como em 1961, tenta reeditar a Cadeia da Legalidade. RIO DE JANEIRO. Silvio Tendler. Jango. 1984, 117 min., cor 13 Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Ato Institucional nº 3, de 5 de fevereiro de 1966. Ato Institucional nº 8, de 2 de abril de 1969. Ato Institucional nº 13, de 5 de setembro de 1969. Demais Atos Institucionais em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/atosinstitucionais (acesso em 08 abr. 2013).

 

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Diante deste e de outros abusos cometidos pelo regime militar, parte da população brasileira começou a partir em várias frentes de mobilização (institucionais ou revolucionárias), entre eles trabalhadores, estudantes e militantes de partidos políticos colocados na clandestinidade14. Em 1979, o então presidente João Figueiredo assinou o projeto de lei de Anistia e o enviou ao Congresso Nacional para a promulgação15 da Lei de Anistia (ver nota adiante), trouxe alguns avanços políticos, beneficiando milhares de brasileiros, contando com pessoas atingidas pelos Atos Institucionais, exilados, presos políticos, entre outros. Em 1982, ainda no governo de João Figueiredo, são anunciadas eleições diretas para governadores dos estados. Mais um avanço no campo da democratização. 14

A Guerrilha do Araguaia - movimento de resistência ao regime militar integrado por alguns membros do novo Partido Comunista do Brasil. Esse movimento se propôs a lutar contra o regime, “mediante a construção de um exército popular de libertação”. No final de 1974, não havia mais guerrilheiros no Araguaia, e há informação de que seus corpos foram desenterrados e queimados ou atirados nos rios da região. Trechos da sentença em que o Brasil foi responsabilizado pelo caso perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf (acesso em: 09 abr. 2013). 15 A luta em torno da Anistia desenvolveu-se inicialmente a partir do surgimento do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), em 1975, formado por mães e familiares de presos políticos, exilados e desaparecidos. Neste mesmo ano, foi fundada uma “seção” no Rio Grande do Sul, liderada pela socióloga Lícia Peres, então militante do MDB (...). Criaram-se em seguida os Comitês Brasileiros pela Anistia em várias cidades do país, exigindo uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. O primeiro deles foi fundado no Rio de Janeiro, em 1978; neste mesmo ano foi fundado o Comitê Unitário pela Anistia no Rio Grande do Sul. Tais comitês passaram a investigar o assassinato de presos políticos e a divulgar os nomes dos desaparecidos, editavam jornais e panfletos, organizavam manifestações e denunciavam a tortura e a violência da ditadura. PADRÓS, Enrique Serra. GASPAROTTO, Alessandra. Gente de menos – Nos caminhos e descaminhos da abertura do Brasil (1974 -1985).

 

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Dois anos depois, a Campanha das Diretas tomou as ruas, reunindo no palanque políticos e militantes de diferentes partidos e tendências. Exibindo o slogan “eu quero votar pra Presidente” milhares de pessoas tomaram as ruas, nos inúmeros comícios realizados em diferentes pontos do país. Em Porto Alegre, calcula-se que aproximadamente duzentas mil pessoas tenham participado dos comícios pró-diretas. Em janeiro de 1984 foi realizada uma “Caminhada Democrática” em direção ao centro da capital, na qual estavam presentes lideranças como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e Pedro Simon. Alguns artistas também acompanharam o trajeto, como os cantores Martinho da Vila, Kleiton e Kledir e os atores Raul Cortez e Ruth Escobar.16

Em 1985, foi eleito o último presidente de maneira indireta, “o último general”, Tancredo Neves, que veio a falecer, assumindo a presidência, em seu lugar, José Sarney, civil que apoiou a ditadura militar. O processo de nascimento da “Nova República”, ou período de (re)democratização, também passa necessariamente pela redação da nova Carta Magna, que se deu através da convocação de gerais para Deputados e Senadores, ou seja, desempenhariam um duplo papel, seriam a Assembleia Constituinte e ao mesmo tempo cumpririam suas atividades rotineiras com base na Constituição anterior; “sob o clima de intensos debates que permeavam a sociedade brasileira sobre o seu futuro, ao final de 1986 foi eleita a Assembleia Na-

16 PADRÓS, Enrique Serra. GASPAROTTO, Alessandra. Gente de menos – Nos caminhos e descaminhos da abertura do Brasil (19741985). In: PADRÓS, Enrique Serra, BARBOSA, Vania M., LOPEZ, Vanessa Albertinence, FERNANDES, Ananda Simões (org.). Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. Porto Alegre: Corag, 2009. – v. 4. p. 44

 

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cional Constituinte, segundo o formato da Constituinte Congressual”17. Em 1988, após um ano e sete meses de trabalhos da Assembleia Constituinte, o projeto constitucional foi finalmente levado para uma primeira votação em plenário. Após intensos debates, uma segunda votação ocorreu e a nova Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988. Consolidação do processo de (re)democratização e de uma nova forma à ordem política brasileira18, a chamada “Constituição Cidadã” representou naquele momento a Certidão de Nascimento do Brasil ou marco simbólico que (re)inventa a nossa cidadania, possibilitando, dentre outros direitos e garantias fundamentais, que em 1989 a população brasileira tivesse novamente o direito ao voto, escolhendo livremente o presidente do Brasil, no pleito; o vencedor Fernando Collor de Melo veio a ser alvo de um impeachment logo em seguida por envolvimento em corrupção em todos os níveis/escalões do governo federal. Entre avanços e retrocessos, não podemos esquecer os erros do passado, as memórias que formam a história de uma nação não podem ser sufocadas ou para sempre quedar silentes; a cada momento foram surgindo movimentações e articulações que pudessem resgatar/construir a memória em face dos atos de crueldade cometidos pelo regime militar, e, junto com estes atos, estabelecer perante a sociedade brasileira e o Estado uma memória daqueles que morreram ou fo-

17

PERLATTO, Fernando. A Constituição de 1988: um marco para a História da Nova República brasileira. Revista de Artes e Humanidades, N.3, Nov-Abr- 2009. p. 9 18 SOUZA, Amaury de. & LAMOUNIER, Bolívar. A feitura da nova Constituição: um reexame da cultura política. In: LAMOUNIER, Bolívar (org.). De Geisel a Collor: o balanço da transição. São Paulo: Sumaré, 1990.

 

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ram desaparecidos lutando por seus direitos legítimos19. O direito à memória se constitui, pois, em um direito fundamental, Hannah Arendt   aponta que “o presente não esquece nem domestica o passado, isto porque a relação entre estes períodos de tempo é de transversalidade e circularidade”: Assim, é que, se a verdade se afigura como necessária na elucidação dos temas em discussão, a reconciliação do Estado e da República para com este tempo passado que se conecta com o presente e futuro de sua gente demanda mais passos e avanços, evitando que esta verdade se transforme, tão somente, em resultado mercantil de ressarcimentos legítimos, mas afiance a função racionalizadora da história comprometida com o desvelamento das fissuras perpetradas à Democracia20.

Nota-se que é muito importante expurgar todo esse passado marcado por graves violações de direitos humanos, e isso só será possível através do resgate de fatos reais. Todavia, como realmente buscar esse passado na sua integridade, senão constituindo elementos individuais e coletivos, objetivos e subjetivos, factuais e 19 Comissão de Anistia: foi instalada pelo Ministério da Justiça, no dia 28 de agosto de 2001. Criada pela Medida Provisória n.º 2.151, a Comissão está analisando os pedidos de indenização formulados pelas pessoas que foram impedidas de exercer atividades econômicas por motivação exclusivamente política desde 18 de setembro de 1946 até cinco de outubro de 1988. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJABFF735EITEMID48C923D22 C804143AB475A47E582E1D8PTBRIE.htm (acesso em 09/ abril 2013). Comissão Especial Mortos e Desaparecidos Políticos: A Lei nº 9140, de 4 de dezembro de 1995, reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Disponível em: http://www.sedh.gov.br/mortosedesap (acesso em 09 abr. 2013. 20 LEAL, Rogério Gesta. Verdade, memória e Justiça: um debate necessário. Santa cruz do Sul: Edunisc, 2012. p. 12

 

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sensoriais e/ou científicos/documentais que constituam memórias permanentes em uma aproximada relação com uma memória institucional e pessoal que apontem significados?

3. Justiça de Transição: um breve trânsito globallocal. O período ditatorial, por ser um tempo vinculado diretamente às torturas, privação ao direito de liberdade (todo tipo), entre tantas outras violações de direitos humanos, permite na atualidade (re)pensar os enfrentamentos no campo democrático, especialmente quando tratamos de segurança pública e acesso à justiça e memória, sendo a liga entre esses elementos os aspectos históricos da justiça de transição. A necessidade de punir abusos passados tem sido registrada desde a punição dos Trinta Tiranos com o retorno dos democratas à Atenas 403 AC, porém foi só na era pós-Nuremberg que tais políticas, e políticas de memória em geral se tornaram aspecto crucial para a mudança de regime. Certamente, o interesse na política da culpa e reparação alcançou tais níveis, sem precedentes, que Soyinka se refere “febre de reparação do fim do milênio”.21

Cabe destacar, nesse contexto, que a ditadura militar prevaleceu em nosso país em um momento de acomodações das forças políticas e ideológicas que disputavam os discursos, territórios e práticas em meados do século XX, principalmente no campo internacional (socialismo/comunismo/anarquismo versus liberalismo/capitalismo, mesmo com as alianças contra 21 BRITO, Alexandra Barahona de. Justiça Transicional e a política de memória: uma versão global. In Revista Anistia Política e Justiça de Transição. - N.1 (jan./ jun). Ministério da Justiça – Brasília: Ministério da Justiça, 2009 p. 57

 

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o totalitarismo nazista ou fascista na II Guerra Mundial ou com variações conceituais, programáticas e pragmáticas entre e dentre os próprios campos de ação política). A discussão sobre Justiça de Transição tem ganhado proporções cada vez maiores nos últimos anos22, no campo jurídico principalmente a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia23, na dinâmica social e institucional através do Programa Nacional de Direitos Humanos III24, e na dimensão política a partir da criação das Comissões da verdade (Nacional e Estaduais adiante), entre outros aspectos relevantes.

22 Governo manda liberar arquivos da ditadura retidos em ministérios. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/1240567-governo-mandaliberar-arquivos-da-ditadura-retidos-em-ministerios.shtml acesso em 19 de mar. 2013. 23 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) que versa sobre a revisão da lei de anistia. O Supremo Tribunal Federal não acolheu os argumentos instados pela Ordem dos Advogados do Brasil mantendo a constitucionalidade da lei, especificamente ao que tange o alcance dos crimes (e sujeitos) anistiados conforme previsto no Artigo 1; parágrafo 1. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF1 53.pdf> acesso em 24 de mar. 2013. 24 BRASIL. DECRETO Nº 7.037 DE 21 DE DEZEMBRO DE 2009 / Nº7.177 DE 12 DE MAIO DE 2010. Aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH 03 e dá outras providências. Eixo Orientador VI: Direito à Memória e à Verdade. Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com a promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia. Objetivo Estratégico I: Suprimir do ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de períodos de exceção que afrontem os compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre Direitos Humanos. (Grifo nosso).

 

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A partir desse histórico, surge a Justiça de Transição, que como bem salienta Gabriela da Rosa Bidniuk25, tem por base quatro características primordiais, quais sejam, a reparação das vítimas daquele período, a busca pela verdade e construção da memória, a reforma de instituições do Estado e, por fim, o restabelecimento da igualdade dos indivíduos perante a lei. Foi para a efetivação desses ideais da Justiça de Transição que diversos mecanismos foram implementados.

É verdade que essa discussão vem ganhando força tardiamente, são mais de 20 anos para se ter uma atenção especial sobre a questão da Justiça de Transição, mesmo que seja um aspecto do cotidiano de várias instituições e debates midiáticos; porém, a própria temática dos direitos humanos e das violações contra esses direitos é vista com certo distanciamento e preconceito por parte da população brasileira26. Não seria estranho considerar que os períodos de ditadura recente no país sejam um dado que nem todos os brasileiros vislumbram enquanto período de extrema relevância para o conhecimento da formação das nossas instituições, da sociedade civil e dos movimentos sociais. No Brasil, pôde-se observar há pouco dois exemplos contundentes dessa realidade: as reações virulentas de parcelas de uma opinião pública ao lan25 BIDNUIK, Gabriela Rosa. Justiça de transição no Brasil. disponível em: Acesso em 19 de março de 2013 26 VENTURINI, Gustavo. O potencial emancipatório e a irreversibilidade dos direitos humanos in Brasil. Presidência da República. Direitos humanos: percepções da opinião pública: análises de pesquisa nacional / organização Gustavo Venturi. – Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010

 

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çamento do terceiro Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3) – parcelas claramente minoritárias, mas que souberam se articular e fazer barulho em torno da defesa de privilégios diversificados (latifundiários, militares saudosos da ditadura, empresários de comunicação e igrejas cristãs, todos portadores de interesses não universalizáveis), gerando a impressão de que a maioria da opinião pública se opunha ao PNDH-3, quando na realidade estava alheia a essa discussão. E logo a seguir tivemos a decisão do Supremo Tribunal Federal julgando improcedente a ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que questionava a anistia aos crimes contra os direitos humanos praticados por agentes do Estado durante a ditadura militar – decisão que contraria preceitos de convenções internacionais de que o Brasil é signatário (nas quais a tortura, entre outros, é crime contra a humanidade e, assim, imprescritível e não anistiável), isolando o país entre as nações do Cone Sul que também enfrentaram ditaduras e hoje revisam seus processos de anistia e puniram militares criminosos.27

As reflexões sobre o tema dos direitos humanos e Justiça de Transição não se esgotam neste texto, abrem interlocuções também no campo jurídico através das análises de Pactos, Convenções, Tratados Internacionais e a elaboração de novas Constituições nos Estados Latino-americanos entre os anos de 1980 e 2010. Posicionar o Estado perante uma demanda jurídico-política, em que o impacto do arcabouço internacional positivado fosse repercutido nas Constituições nacionais no período democrático, é o caminho para que outras leituras dentro de um Estado democrático

27

 

Idem. p. 15

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de direito ocorram, apontando novos futuros, como destacado por Flávia Piovesan28: Importa ressaltar que as Constituições da Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, na qualidade de marcos jurídicos da transição democrática nesses países, fortalecem extraordinariamente a gramática dos direitos humanos, ao consagrarem o primado do respeito a esses direitos como paradigma propugnado para a ordem internacional.

Na América Latina, assim como no Brasil, as releituras de momentos históricos e políticos poderão constituir caminhos alinhavados com a Justiça de Transição que possibilitem a problematização entre os avanços no campo normativo, a lenta transformação estrutural, cultural e social. As contradições e as conquistas analisadas por leituras interdisciplinares constituem um vasto e complexo campo de análise; portanto, buscar e considerar suportes que auxiliem a problematizar as questões pendentes de aproximação com a perspectiva globallocal remete às configurações dos direitos humanos na América Latina nos passados, presentes e futuros. Neste sentido, subverter as conceituações e reforçar o caráter emancipatório das lutas pela implementação dos direitos humanos coaduna-se como um desafio para a construção do significado de dignidade humana e de justiça social29.

28 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad. 2002. p. 58 29 ARAÚJO. E.F. AGOSTINHA – POR TRÊS LÉGUAS EM QUADRA: A temática quilombola na perspectiva globallocal. 2008. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Centro de Ciências Jurídicas, Direito, UFPB – Campus I, para obtenção de título de mestre em ciências jurídicas)

 

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4. Comissão Nacional da Verdade: as variáveis que a envolvem e seus contornos O trânsito de um sistema ditatorial para um ‘democrático’ cria a pressuposição de que os atos do passado (políticos, jurídicos ou institucionais) foram totalmente superados no presente; porém, será que esse passado não reflete no presente? Será mesmo que superamos o regime civil-militar? Mais de 30 anos se passaram, há dúvidas em diversas famílias que tiveram entes mortos pela ditadura, assim como o sentimento de injustiça, impunidade e impotência naqueles que vivenciaram violações de direitos que transcendem a ruptura com governo militar. O governo brasileiro por muito tempo permaneceu inerte no que diz respeito às vítimas de seus agentes no período ditatorial, e não consegue conjugar o passado com elementos atuais de repressão, violação de direitos humanos, preconceito, racismo e violência simbólica e estrutural. Passaram a chamar essa indenização de “bolsa ditadura, adotando um flagrante tom depreciativo. Militantes políticos eram e são chamados de “terroristas”, torturadores eram e são chamados de “patriotas” (…) a sociedade brasileira continua, visivelmente, a colocar em prática o rótulo do inimigo objetivo a outros setores da população, como é o caso dos jovens da periferia que passam a ser rotulados de “traficantes” atraindo para si toda sorte de procedimentos policialescos que desconhecem olimpicamente qualquer garantia de proteção à pessoa humana, no que são, inclusive, apoiados por setores expressivos da população, sequiosa em responder o problema da segurança com mais violência e preconceito. Isto sem mencionar o problema da criminalização dos movimentos sociais e do desrespeito às culturas indígenas. Antes de se questionar a “violência” das manifestações dos movimentos sociais, é preciso questionar a violência, que para grande parte das pessoas parece algo

 

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natural, em relegar milhares e milhares de pessoas à fome, à ausência de moradia, ao desemprego e à ação preconceituosa das forças policiais do país.30

Imprescindível apontar o avanço da Lei n. 10.559/2002, que versa sobre a indenização aos perseguidos políticos e a atribuição da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em analisar e decidir sobre os casos, assim como a realização das Caravanas da Anistia, criação do Memorial da Anistia e a centralização dos documentos da ditadura militar no Arquivo Nacional (Decreto 5.584/2005); de toda sorte as resistências através de setores da mídia, da sociedade e de instituições do Estado são notórias e cresceram quando a estruturação de uma Comissão Nacional da Verdade (e das Comissões Estaduais) começou a se concretizar, apesar das críticas dos movimentos sociais, militantes políticos e acadêmicos estudiosos da temática sobre suas limitações, envolvendo, por exemplo, a impossibilidade de acionar mecanismos jurídicos como ocorre em outras experiências similares. A criação da Comissão Nacional da Verdade31 (CNV) pela Lei 12.528/2011, instalada desde maio de 2012, surge contornada por críticas, mas enquanto finalidade cumpre um papel importante em nossa história recente, pois tem por escopo apurar graves violações de Direitos Humanos, praticadas por agentes públicos, ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. As Comissões da Verdade são mecanismos oficiais de apuração de abusos e violações dos Direitos 30

SILVA, José Carlos Moreira Filho. O anjo da história e a memória das vítimas: O caso da ditadura militar no Brasil. In RUIZ, Bartolomé Castor (org.). Justiça e Memória: para uma crítica ética da violência. São Leopoldo Editora Unisinos. p. 121 – 158 31 Site oficial Comissão Nacional da Verdade (CNV): http://www.cnv.gov.br/

 

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Humanos e vêm sendo amplamente utilizadas no mundo32 como uma forma de evidenciar o passado; a prioridade é escutar as vítimas de arbitrariedades, ao mesmo tempo em que dá lugar a que se conheça o padrão dos abusos cometidos, através da versão dos perpetradores dessas violências ou da revelação de arquivos ainda desconhecidos.33 32 Alguns resultados de outras comissões da verdade pelo mundo: África do Sul - A CV ouviu 21.000 testemunhos, a CV recebeu 7.112 pedidos de anistia, concedeu 849 e recusou 5.392, os relatórios foram sistematicamente destruídos entre 1990 e 1994, o relatório final nomeava cada perpetrador individualmente, recomendou reparações financeiras, cada vítima ou família receberia $3.500 anualmente durante 6 anos, aqueles que não foram anistiados deveriam ser julgados e os relatórios da Comissão deveriam ser preservados, o governo estabeleceu um órgão para executar as recomendações da Comissão; Argentina - O relatório da Comissão registrou 9.000 desaparecimentos entre 1976 e 1983. Contudo, o medo das vítimas e parentes destas de dar seus testemunhos levou a Comissão a estimar um número 10.000 a 30.000 desaparecimentos. A Comissão recomendou um programa de reparação às vítimas e reformas judiciais e educacionais quanto aos DH. Em 1992, foi criada a Comissão Nacional para o Direito à Identidade. Em 1994, Argentina reformou a sua constituição para reforçar a democracia. As informações coletadas pela comissão foram cruciais para o julgamento da junta militar, e cinco generais acabaram presos. No entanto, a legislação no final de 1980 suspendeu processos contra outros perpetradores. A Lei da Anistia revogada em 2003 resultou no processo de 700 pessoas e 500 foram condenadas. Em 2004 foram previstos $ 3 bilhões de dólares para reparações às vítimas; Chile - A Comissão identificou em seu relatório as violações de direitos humanos; sugeriu reparações que se estendiam desde declarações públicas a reformas nos âmbitos jurídico, administrativo e educacional; e fez um resumo biográfico das 2.279 pessoas que morreram ou desapareceram por causa das violações. A criação da Corporação Nacional de Reconciliação e Reparação pelo governo chileno em janeiro de 1992. As atividades posteriores da Comissão com familiares e organismos levaram à descoberta de provas sobre ações dos agentes da DINA e a prisão de seu chefe, Manuel Contreras. Fonte: Documento enviado pela Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara Estado de Pernambuco. 33 Extraído de “A Comissão da Verdade no Brasil – Por quê? O que é? O que temos de fazer?”. Cartilha elaborada pelo Núcleo de Preservação da Memória Política – São Paulo, p. 8.

 

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O direito à memória e à verdade e as ações da CNV juntamente com as Comissões Estaduais34, são instrumentos de extrema importância, mesmo 30 anos após a Lei da Anistia; de toda sorte, como salienta Eduardo González Cueva (2011)35, três décadas depois do trabalho da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), na Argentina, parece evidente que as comissões de verdade, apesar de surgirem como uma resposta ad hoc a situações de transição, são vistas crescentemente como um novo instrumento de justiça. Sua validade é independente dos momentos de transição política, e não se trata nem de uma reposição, nem de uma alternativa a justiça penal. A Comissão Nacional da Verdade brasileira foi pautada no governo Lula, que cedeu à pressão de militares e deixou o projeto apenas no papel36. No governo Dilma Rousseff37 é que a Comissão Nacional da Verda-

34

As Comissões Estaduais foram criadas para auxiliar no resgate das memórias das vítimas da ditadura, segue abaixo a relação de algumas delas: Paraíba: Comitê pela Verdade, Memória e Justiça da Paraíba; Pernambuco: Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara; São Paulo: Comitê Paulista Pela Memória, Verdade e Justiça; Bahia: Comitê Baiano Pela Verdade, Memória e Justiça; Rio Grande do Sul: Comitê à Memória, Verdade e Justiça do Rio Grande do Sul. Ver relação completa: http://www.dhnet.org.br/verdade/estados/index.htm#paraiba (acesso em 10 abr. 2013) 35 Justiça de Transição: manual para a América Latina. Até onde vão as Comissões da Verdade? 36 Após reação de militares, Lula vai amenizar proposta sobre Comissão da Verdade. Disponível em: http://noticias.r7.com/brasil/noticias/apos-reacao-de-militares-lulavai-amenizar-proposta-sobre-comissao-da-verdade-20091230.html (acesso em 10 abr. 2013). 37 Dilma revela detalhes das torturas que sofreu nos porões da ditadura:Disponível em: http://www.vcartigosenoticias.com/2012/06/dilma-revela-detalhesdas-torturas-que.html (acesso em: 10 abr. 2013).

 

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de se concretizou38, com sete integrantes39 nomeados pela própria presidente. A Comissão Nacional da Verdade aparentemente traz novas perspectivas, porém é limitada em face da Lei de Anistia, pois não tem poder para responsabilizar e punir ninguém.

5. Graves violações de direitos humanos no campesinato nordestino (1962 – 1985) e uma síntese dos relatos de líderes rurais A análise dos movimentos sociais no campo, considerando-se o período de 1962 a 1985 e todo o processo de desenvolvimento econômico característico da realidade brasileira, leva à reflexão sobre a diversidade quanto às suas formas de organização e de expressão, sendo imprescindível destacar as graves violações de direitos humanos ocorridas no campesinato nordestino brasileiro. O Nordeste rural brasileiro presenciou um desenvolvimento capitalista desigual e contraditório, no entanto toda conjuntura de pesquisa torna-se apenas um esboço provisório de uma realidade muito mais complexa, extensiva e multifacetada. As fundamentações utilizadas no artigo, ainda que de forma inacabada, objetivam evidenciar um mapeamento inicial a partir de relatos dos líderes rurais, 38

Dilma instala Comissão da Verdade e diz que não haverá ressentimento, ódio nem perdão: Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimasnoticias/2012/05/16/dilma-chora-ao-instalar-comissao-daverdade.htm (acesso em 10 abr. 2013). 39 Comissão Nacional da Verdade: Cláudio Fonteles. Gilson Dipp. José Carlos Dias. José Paulo Filho. Maria Kehl. Paulo Pinheiro. Rosa Cardoso Disponível em: http://www.cnv.gov.br/index.php/institucional-acessoinformacao/quem-e-quem (acesso em 10 abr. 2013).

 

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especificamente nos estados de Pernambuco e Paraíba, onde o estudo da violência política e social ocorrida no campo entre 1962 e 1985 é certamente provisório, pois resgatar a memória do que ocorreu no campo durante o regime militar é contar uma história que, pelas características próprias à área rural, foi construída em grande medida no anonimato, em geral ignorada pelos documentos oficiais, não apenas devido às experiências de clandestinidade política, como ocorreu na área urbana, mas, sobretudo, porque foi ocultada sob o cotidiano de uma histórica relação de opressão e humilhação dos representantes do latifúndio contra os lavradores, os posseiros e os trabalhadores da terra. O campesinato nordestino brasileiro carece de uma reconstituição, seja no aspecto reparatório, investigativo-histórico, punitivo e até mesmo uma sistemática revisão nos quadros das Instituições Estatais frente às agressões que iniciaram essencialmente por parte do Estado juntamente aos latifundiários, evidenciando assim o compromisso democrático adotado por um país que possui nos seus princípios constitucionais a dignidade da pessoa humana. As estratégias da justiça transicional devem ser consideradas como parte importante da construção da paz, na medida em que abordam as necessidades e as reclamações das vítimas, promovem a reconciliação, reformam as instituições estatais e restabelecem o Estado de Direito.40 (ZYL, 2009)

O livro Retrato da Repressão Política no campo – Brasil 1962 – 1985 – Camponeses torturados, mortos e desa-

40 ZYL, Paul Van. Promovendo a justiça transacional em sociedades pós-conflitos. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, n. 01, 1.º semestre de 2009, p. 32

 

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parecidos41 representa um marco na atual conjuntura de uma Justiça de Transicional Campesina. Resulta de uma pesquisa do Núcleo de Estudos Agrários (MDA) e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), de autoria de Marta Cioccari e Ana Carneiro, no qual objetivam expor relatos de trabalhadores rurais que sofreram violações durante o período do regime militar no Brasil. A partir da delimitação do Nordeste brasileiro enquanto uma das principais regiões afetadas pela repressão militar no campo42, podemos analisar a soma de forças existentes na época entre o Estado e as oligarquias centradas na exploração do trabalho, desrespeito às legislações trabalhistas e nos vultosos lucros. A dimensão do direito à memória e à verdade, nos debates sobre o tema da justiça de transição, ocupa sempre um lugar de centralidade não só por sua pressuposição necessária à execução de outras dimensões, mas também por seu caráter desconstrutivo que permeia toda a sociedade. “A ditadura instalada no País elegeu o nordeste como uma região particularmente

41

CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da repressão política no campo – Brasil 1962-1985: camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Ed. revista e ampliada. Brasília: MDA, 2011. 42 Ditadura matou 1.196 camponeses, mas Estado só reconhece 29. Financiada pelo latifúndio, a ditadura “terceirizou” mortes e desaparecimentos forçados de camponeses. O resultado disso é uma enorme dificuldade de se comprovar a responsabilidade do Estado pelos crimes. Estudo inédito da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência revela que 97,6% dos 1.196 camponeses vítimas do regime foram alijados do direito à memória, à verdade e à reparação. Os dados serão apresentados à Comissão Nacional da Verdade para embasar investigações que possam alterar este quadro de exclusão. Disponível http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?mate ria_id=20975&boletim_id=1391&componente_id=23197. Acesso em 11abr. 2013.

 

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importante, perigosa, na qual desencadeou uma repressão política selvagem”43. Antes do golpe de 1964, o cenário no campo caminhava em passos lentos para uma maior abertura política, de direitos e garantias fundamentais que aos poucos iam tomando corpo. Cumpre destacar nesse período o crescimento vertiginoso e o agrupamento de forças das Ligas Camponesas44, que pouco a pouco nutriam sentimentos raivosos aos latifundiários45. A opressão das oligarquias nordestinas, juntamente com milícias privadas, demonstravam o tamanho poder frente às lideranças rurais e os demais agricultores; no entanto, figuras como Gregório Bezerra46 e Francisco Julião47, que marcaram de maneira impres43 44

Ver Octávio Ianni e a questão Nordeste, In: Bernardes, 2005, p. 40-41.

As Ligas Camponesas foram associações de trabalhadores rurais criadas inicialmente no estado de Pernambuco, posteriormente na Paraíba, no estado do Rio de Janeiro, Goiás e em outras regiões do Brasil, que exerceram intensa atividade no período que se estendeu de 1955 até a queda de João Goulart em 1964. Disponível em: http://www.ligascamponesas.org.br/?page_id=99. Acesso em 10 mar. 2013. 45 As Ligas Camponesas mobilizaram dezenas de milhares de camponeses em defesa dos direitos do homem do campo e da Reforma Agrária nos anos 1950 e 1960, seguindo iniciativa embrionária conduzida pelo PCB entre 1945 e 1947. Lideradas pelo advogado Francisco Julião, as Ligas formaram-se a partir da desapropriação do Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão (PE), e se estenderam a vários outros estados até o golpe de 1964. Deputado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), Julião encampou a luta dos camponeses no campo e nas tribunas. Mais informações, ver Julião (1962, 2009), Santiago (2004) e Carneiro e Cioccari (2010, 2011). 46 "Memórias" de Gregório Bezerra traz à tona a vida assombrosa de líder comunista. Gregório Bezerra (1900-1983) Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/955413-memorias-degregorio-bezerra-traz-a-tona-vida-assombrosa-de-lidercomunista.shtml. Acesso em 11/04/2013. 47 Francisco Julião Arruda de Paula nasceu em 16 de fevereiro de 1915, no município de Bom Jardim, em Pernambuco (...). Em 1954, foi eleito Deputado Estadual pelo Partido Socialista Brasileiro. (...) Os primeiros sindicatos foram organizados pelas Ligas, e Francisco Julião preparou

 

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cindível as lutas, desmitificam toda a construção legitimada em torno unicamente de uma só voz.

5.1 – Mortes, torturas, desaparecimentos e perseguições no campesinato pernambucano O governo de Miguel Arraes (Pernambuco) proporcionou maior participação e efetivação nas políticas agrárias, bem como em âmbito nacional com o governo de Jango. “Em Pernambuco, o povo vai-se integrando paulatinamente no poder. Arraes e os homens que compõem seu governo fazem questão de trilhar por normas diferentes no trato com as coisas públicas. Trata-se de uma administração de um novo tipo. O povo participa ativamente da elaboração dos planos governamentais...”48 (BRASIL: 1980, 99).

Devendo, pois, também ser local de resistências sociais, culturais e políticas com elevado grau de casos de torturas, desaparecimentos e silenciamentos. Apesar de toda repressão campesina não possuir documentos oficiais até o momento, relatos de agressões às garantias fundamentais evidenciam a necessidade da reconstrução com as devidas ações reparatórias, investigativas, bem como julgamento dos perpetradores. O agricultor Marcos Martins Silva foi obrigado a renunciar à presidência do Sindicato dos Lavradores e Agricultores do município de Escada/PE, sendo vítima diversos processos, possibilitando a fundação de inúmeros sindicatos. Em 1962, elegeu-se Deputado Federal. Após o golpe de 1964, permaneceu três meses na clandestinidade, antes de ser preso perto de Brasília. Esteve preso durante 18 meses. Disponível em http://www.ufpe.br/ccj/index.php?option=com_content&view=artic le&id=216&Itemid=160. Acesso em 11 mar. 2013. 48 BRASIL, Jocelyn. Arraes, um ano de governo popular. Rio de Janeiro: Edições Opção, 1980. 107 p.

 

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de inúmeras atrocidades por parte das milícias privadas a mando dos latifundiários. Marcos Silva reivindicava direitos trabalhistas (décimo terceiro salário, férias) devidos conforme legislação trabalhista vigente à época; de acordo com depoimentos, os usineiros ordenavam aos jagunços calarem e reprimirem a voz do agricultor que relata de forma detalhada no livro Retrato da Repressão Política no Campo: “Me botaram num quarto incomunicável. Toda usina tinha uma cadeia escondida chamada ‘Benedita’ – um quartinho pequeno, bem fechado, como uma catacumba de defunto, que só tinha um buraquinho pra tomar fôlego. (...) Eles me dizendo: ‘No outro dia, nós viemos pra te levar para a mata do Espinho’...”

Eram considerados como “subversivos” os camponeses que se levantaram contra o sistema local ou regime instalado, como o caso do “Massacre de Matapiruma”49, quando um grupo de agricultores foi surpreendido e fuzilado por agentes do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco, em face de ações na Justiça do Trabalho, onde obtiveram êxito frente aos usineiros para o recebimento de todas verbas rescisórias e indenizatórias. A partir do trecho abaixo, extraído do livro Retrato da Repressão Política no campo – Brasil 1962 – 1985 – Camponeses torturados, mortos e desaparecidos, percebe-se 49 Filhos de um camponês, os irmãos José, Luiz e João Inocêncio Barreto cortavam cana no Engenho Matapiruma, em Escada (PE), quando, em 5 de outubro de 1972, ocorreu o chamado “Massacre de Matapiruma”. Na ocasião, um grupo de lavradores trabalhava no canavial quando chegaram três viaturas policiais, com oito homens armados que passaram a fuzilar os camponeses. Eram agentes do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS/PE). Cinco trabalhadores reagiram, defendendo-se com foices e facões, enquanto a maioria do grupo fugia. O conflito deixou dois mortos e vários feridos. Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962-1985 – Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. MDA, 2011. Pg. 51.

 

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tamanha dimensão da repressão que existiu nos campos nordestinos. Em 2004, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), com base na Lei da Anistia, deferiu o requerimento apresentado pela família de José Inocêncio Barreto para o reconhecimento da responsabilidade do Estado na sua morte. O relatório da Comissão menciona que o nome de José Inocêncio e do vigia Severino Fernandes da Silva constam dos livros escritos pelo ex-comandante do DOI-CODI/SP, o conhecido torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, como tendo sido mortos em 06/10/1972 por “terroristas durante agitação no meio rural.” (Grifo nosso)50

É evidente a complexidade e imbricação do sistema em que se encontravam os camponeses, e a partir da ligação do conhecido torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra com os crimes e desaparecimentos existentes na época, percebe-se como os latifundiários conseguiram proteção.

5.2 Mortes, torturas, desaparecimentos e perseguições no campesinato paraibano Cenário de inúmeras lutas sociais e políticas camponesas, onde se buscavam melhorias nos direitos trabalhistas, um dos ícones foi o paraibano João Pedro Teixeira51, responsável pela criação da Liga Camponesa 50 CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da repressão política no campo – Brasil 1962-1985: camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Ed. revista e ampliada. Brasília: MDA, 2011. Pg. 56. 51 Fundador e vice-presidente da Liga Camponesa de Sapé (PB), uma das mais combativas e atuantes do país, o líder João Pedro Teixeira foi assassinado a tiros por pistoleiros, a mando de latifundiários da região, em 2 de abril de 1962. Desde criança, João Pedro – nascido em 1918 (…) depois de trabalhar na agricultura, na juventude, João Pedro tornou-se operário, empregando-se em

 

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de Sapé/PB, considerada uma das mais atuantes no cenário de lutas em âmbito nordestino e brasileiro. João Pedro Teixeira resistiu à pressão da polícia atrelada aos latifundiários da região, mas sempre temeu a perda de uma liderança na luta, apontando à sua esposa Elizabeth Teixeira a posição política diante de uma possível morte, conforme transcrito no livro “Eu marcharei na tua luta – A vida de Elizabeth Teixeira”: “Vão tirar a minha vida, minha filha, mas a reforma agrária vai ser implantada em nosso país para que a vida do homem do campo melhore, para que eles tenham o direito de criar seus filhos”52. João Pedro Teixeira foi vítima (1962), antes mesmo do desfecho do golpe civil-militar, de uma emboscada arquitetada por fazendeiros e políticos da região, sendo Elizabeth Teixeira sua herdeira política; porém, a morte de uma de suas filhas serviu como fato memorável a ser refletido para continuidade. Com o golpe militar, Elizabeth foi presa, passando alguns dias no Agrupamento de Engenharia53. De acordo com o livro Retrato da Repressão Política no campo – Brasil 1962 – 1985 – Camponeses torturados, mortos e desaparecidos, uma passagem de Elizabeth no pedreiras na Paraíba e, depois, em Jaboatão (PE). Nessa época, já estava casado com Elizabeth Teixeira. Retrato da Repressão Política no campo – Brasil 1962 – 1985 – Camponeses torturados, mortos e desaparecidos” 2011. Pg. 84. 52 BANDEIRA, L.M.; SILVEIRA, R.M.G.; MIELE, N. (Orgs.). Eu marcharei na tua luta: A vida de Elizabeth Teixeira. João Pessoa: editora universitária/UFPB, 1997. 53 Memórias da luta camponesa: Elizabeth Teixeira – [...] De lá, fugimos para dentro das matas e no dia seguinte, conseguimos chegar até Recife. Depois, em João Pessoa, procurei notícias dos meus filhos, mas acabei sendo presa. Passei três meses e 24 dias na prisão, no Agrupamento de Engenharia." Liberada, ela fugiu para a cidade de São Rafael, interior do Rio Grande do Norte, onde viveu por 16 anos com o nome de Marta Maria da Costa. Disponível http://www.anovademocracia.com.br/no-10/1134-memorias-da-lutacamponesa-elizabeth-teixeira. Acesso em 10 de mar. 2013.

 

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seminário Memória Campesina em 2006 ganha destaque54: “Hoje eu estou tão cansada. Eu sofri tanto, tanto, que eu imagino até assim, como é que eu estou viva ainda hoje, pelo sofrimento que eu passei na vida. Não foi fácil ficar sem João Pedro Teixeira, com meus filhos. Depois, ficar sem meus filhos. Deixar tudo abandonado na ditadura militar. Foi muito triste.”

Outra mulher considerada importante na representação dos agricultores na Paraíba foi Margarida Maria Alves, que enfrentou os atos arbitrários praticados pelos latifundiários (autodenominados de Grupo da Várzea). Na pauta de reivindicação estavam: carteira assinada, décimo terceiro salário, redução da jornada de trabalho e férias. O assassinato de Margarida ficou impune, não tendo efetivamente julgado e condenado nenhum acusado, sendo assim arquivados os autos55.

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CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da repressão política no campo – Brasil 1962-1985: camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Ed. revista e ampliada. Brasília: MDA, 2011. 55 Margarida Maria Alves - A personalidade, que significou estímulo de luta, motivação para a defesa dos direitos trabalhistas e considerada uma das principais representantes de liderança feminina no Brasil (…), nasceu em 5 de agosto de 1943, em Alagoa Grande, na Paraíba (…). O contato permanente com o setor latifundiário, que começou desde muito cedo, devido à necessidade da manutenção da família, estimulou seus desejos para lutar pelo trabalho rural. Disponível em http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=8388. Acesso em 11 mar. 2013.

 

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6. Considerações finais: Justiça de Transição enquanto política reconstrutiva no movimento camponês As violações de direitos humanos ocorridas não foram cometidas apenas pelo Estado, mas também por usineiros e fazendeiros que financiavam e recebiam amparo institucional para os seus atos. O retrato conjuntural da introdução deste artigo projeta algo interessante: a Lei de Anistia desloca-se e produz efeitos sobre aqueles que se colocam como agentes públicos, pois efetivamente seriam apenas aqueles públicos que praticavam essas violações institucionalizadas; tal projeção de realidade traz consigo um simbolismo intenso: primeiro, a promulgação em 1979 é uma ruptura ou projeção desta para a sociedade, entretanto, tal fato não traz somente implicações político-institucionais, mas também na história, isto é, na memória social, pois, ao fazer isso, a imagem que se produz é que a violência institucional violadora se reduz ao Estado e seus agentes e se secundariza, esconde que outras relações compunham a sistemática de violações de direitos humanos. A violência institucional não é apenas aquela praticada pelo Estado, mas aquela naturalizada por ele materialmente, mesmo quando vedada, não permitida juridicamente. Por exemplo, o caso das milícias dos usineiros e fazendeiros utilizadas nos conflitos agrários; em segundo lugar, essa transferência de responsabilidade para o Estado faz com que se desloque daqueles que promoveram institucionalmente a tortura, assassinatos, prisões arbitrárias - dentro ou fora do espaço estatal -, isto é, quem é responsabilizado é um ente abstrato, de caráter político, mas com o qual historicamente a sociedade não tem identificação. Esta interpessoalidade está imbricada de tal forma na sensibilidade para o espaço público que acaba por se tornar uma condicionante para os processos de  

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democratização deste, e particularmente aqueles que retomam uma história-passado: reflexo da condicionante é o estranhamento do espaço público, não há uma identidade entre o espaço público e o cidadão; a falta de identidade aponta para uma individualização do público, uma espécie de personalização da instituição em certos agentes públicos, trazendo consigo uma eticidade imperativa, isto é, a ética individual é imprescindível e de preservação superior para um Estado eficiente no cumprimento de seus fins; logo, a anomalia do Poder Público é essencialmente um problema ético de não execução devida e adequada das políticas públicas. Essa dimensão acaba por se colocar como retórica contra movimentos institucionais de fazer a históriapassado útil para o presente, pois tal é reduzida a processos revanchistas e de deslegitimação. O próprio tencionamento para reformulação do eixo do PNDH III referente ao Direito à Memória e à Verdade retrata isso. O retrato memorial acima traz outra dimensão que nos aponta56: o processo de democratização - e não redemocratização - são os processos de construção de uma nova institucionalidade: afastando-se daquele que se construía sobre e sob relações interpessoais, e que esquizofrenicamente se colocava também como ordem institucional. Na composição da Comissão Nacional da Verdade, foi criado um eixo com relatoria de casos temáticos sobre a questão agrária e toda a problemática política em suas múltiplas dimensões, para além do institucional; é importante fazer das comissões de memória e verdade como aquelas que conseguem produzir nas subjetividades uma situação de conflito, de percepção de uma condição de existência comum, pois não se re56 PIOVESAN, Flavia. Direito internacional dos direitos humanos e a lei de anistia: o caso brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da FMP. N 4. Porto Alegre. FMP. 2007. p 113.

 

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toma apenas a história de quem foi violado, mas a conjuntura e o sentido da violação. Não é apenas o assassinato de um camponês, mas de um camponês que se associava para a garantia de direitos trabalhistas, direitos da seguridade social, direito do acesso à terra; porém, daqueles que se inserem em questões agrárias e historicamente foram colocados em situação de vulnerabilidade, tanto por latifundiários quanto pela própria omissão do Estado. Essa percepção não é só do sujeitado quanto ao passado, mas o reconhecimento dessa identidade entre passados e presentes, para que se localiza e aja estratégica e politicamente com o outro que compartilha a condição, redimensionando a instrumentalidade institucional e do direito, administrando também sua vulnerabilidade. O processo de autorreconhecimento não se reduz ao sujeitado, mas também diz respeito aos que se inserem nas relações de poder que produzem essa sujeição para que seja desconstruída. O papel que cabe agora, além de participar desse processo de democratização pela memória e verdade, é fazer com que se articule isso com políticas institucionais e políticas públicas, coordenando processos de construção de memória social e reformulação institucional no sentido de controle e para o nunca mais, fazendo com que se tenha uma nova sensibilidade para a questão agrária no país, tanto para a necessidade da reforma agrária quanto para as violências acopladas a esses conflitos.

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______. Cabra marcado para morrer: entre a memória e a história. [S./d.]. Disponível em:

Legislação BRASIL. Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. ________. Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. ________. Ato Institucional nº 3, de 5 de fevereiro de 1966. ________. Ato Institucional Nº 5 de 13 de Dezembro de 1969 ________. Ato Institucional nº 8, de 2 de abril de 1969. ________. Ato Institucional nº 13, de 5 de setembro de 1969 BRASIL. Constituição Federal de 1964. BRASIL. Decreto Nº 7.177 DE 12 DE MAIO DE 2010. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3). Brasília: Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República BRASIL. Lei Nº 6683, de 28 de Agosto de 1979. BRASIL. Lei Nº 12.528, de 18 de Novembro de 2011.

 

Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 A Justiça de Transição como descontinuidade da exceção

Tayara  Talita  Lemos1   Maria  Clara  Oliveira  Santos2  

Resumo: Diante da não efetivação de direitos e da sonegação de tantos outros por parte do Estado, busca-se investigar se há um contínuo e permanente estado de exceção, escondido sob o véu da democracia legitimada pela representação, no Brasil atual. Assim, por meio de uma democracia construída sobre marcos autoritários, legatários de um passado de ditaduras civis e militares, não seria possível a construção de uma democracia real e concreta, senão as marcas constantes da exce1 Mestre em Direito e Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (bolsista CAPES/REUNI), Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (bolsista da FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), especialista em Direito Público (Universidade de Franca). Professora de Direito Constitucional e Introdução ao Estudo do Direito da FESP-UEMG (Fundação de Ensino Superior de Passos- Universidade do Estado de Minas Gerais). 2 Mestre em Direito em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (bolsista CAPES), Graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professora de Direito Administrativo , Antropologia e Direitos Culturais e Metodologia da Pesquisa em Direito da FCJ-UEMG (Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina- Universidade do Estado de Minas Gerais).

 

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ção. A fim de descontinuar essa política, coloca-se uma justiça de transição que busca a reparação das exceções, o reconhecimento dos erros históricos do passado, a promoção de pedidos públicos de desculpas pelos equívocos praticados; para além das interlocuções teóricas que tentam, por meio do resgate da memória e do reconhecimento, apontar para uma séria interpretação do que a permanência do estado de exceção pode ocasionar em um Estado que se pretende democrático, no que se refere à sua vida política, jurídica e social. Palavras-chave: justiça de transição, estado de exceção, democracia. Résumé: Compte tenu de la non-réalisation des droits et de l'évasion tant d'autres par l'Etat, chercher à déterminer si il ya un état continu et permanent d'exception, caché la démocratie légitimée par la représentation au Brésil aujourd'hui. Ainsi, par l'intermédiaire d'un regime démocratique construit sous autoritarisme, légataire d'un passé de dictatures civiles et militaires. ne serait pas possible de construire une démocratie réelle et concrète. Pour supprimer cette politique, une justice transitionnelle aspire à réparer les exceptions, reconnaissance des erreurs historiques, la promotion de la demande des excuses publiques pour les erreurs commises, au-delà dialogues théoriques qui tentent, en sauvant la mémoire et la reconnaissance, indiquer à une interprétation sérieuse de la permanence de l'état d'exception peut entraîner un état qui doit être démocratique, à l'égard de sa politique, juridique et social. Mots-clés: justice transitionnelle, état d'exception, démocratie.

 

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Introdução: há um Estado de Exceção permanente? As experiências políticas violentas e sombrias do século XX geraram uma política de reparação, desenvolvida especialmente após a década de 1940, que buscou privilegiar a centralidade do discurso dos direitos humanos, internacionalmente por meio dos tratados e internamente por meio das Constituições do póssegunda guerra. Ao lado da efetivação de direitos por parte de diversos Estados ocidentais, caminhou o uso da violência de maneira muitas vezes indiscriminada ou mesmo legitimada, uma vez que proveniente de órgãos estatais e do poder soberano, pela força de lei.3 Isso é facilmente demonstrado pelos regimes totalitários que se instalaram na Europa do século XX, ou ainda pelos regimes ditatoriais que se estenderam para além do continente europeu, em terras latinas e na África. Valendo-nos do exemplo brasileiro, nos seus cerca de vinte anos de ditadura civil-militar, é evidente que, ainda hoje, convive-se com uma espécie de bloqueio da política, entendida como espaço público de tomada de decisões,4 e com os resquícios da ditadura. 3 Sobre o termo vide DERRIDA, Jacques. Força de lei.Trad.: Lyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007. E também AGAMBEN. Giorgio. Estado de exceção. homo sacer II. Trad.: Iraci D. Poleti Belo Horizonte: Boitempo, 2004, p. 52ss. A força de lei segue uma tradição no direito romano e medieval e tem o sentido geral de capacidade e eficácia de obrigar e também a impossibilidade de anulação ou modificação da lei. Também compreende a ideia de força de lei a possibilidade de exceder o direito sem dele sair, a vigência da lei sem sua aplicação. Cf. TELES, Edson. Entre justiça e violência: Estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. In: SAFATLE, Vladimir, TELES, Edson (Orgs.).O que resta da ditadura?, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 300. 4 Vide ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, Rev. Adriano Correia. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. LINDAHL, Hans. El

 

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Diante de tantos direitos sonegados, bem como das inúmeras dificuldades de acesso aos direitos, entre tantos outros problemas de efetivação da democracia, há quem afirme que estamos vivendo em um contínuo e permanente estado de exceção, escondido sob o véu da democracia legitimada pela representação. À suspensão dos direitos permitida pelas próprias Constituições, a fim de estabelecer a ordem que supostamente ou verdadeiramente tivera sido rompida, convencionou-se chamar estado de exceção. Konrad Hesse já enunciava: Um estado de exceção verdadeiro ou, como hoje soa a designação predominantemente empregada, ‘situação de emergência estatal’, nasce em todos os perigos sérios para a existência do Estado ou a segurança e ordem pública, que não podem ser eliminados pelos caminhos normais previstos pela Constituição, senão cujo rechaço ou eliminação somente com meios excepcionais é possível.5

A excepcionalidade e finalidade da declaração de um estado de exceção mostram-se evidentes não apenas em Hesse, mas em tantos outros constitucionalistas contemporâneos, entre os quais, vale citar Canotilho. O autor português elabora um rol de possibilidades e restrições para a declaração do estado de exceção, denominando-o como estado de necessidade constitucional, englobando aí os estados de sítio e de emergência, tal como faz a Constituição Brasileira de 1988.6 Além de prever as medidas adequadas para o que chama de pueblo soberano: el régimen simbólico del poder político en la democracia. In: Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), n. 94, pp. 47-72, 1996. 5 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 526. 6 A previsão se dá na Constituição portuguesa de 1976, no art. 19 e na brasileira nos arts. 136 e 137.

 

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restabelecimento da normalidade constitucional, incluindo a forma e o conteúdo, exige que tais medidas não firam a proibição do excesso. Assim, para o autor, deveria haver a proibição absoluta da suspensão de alguns direitos – os diktaturfeste Grundrechte, ou direitos fundamentais garantidos ou firmados contra a ditadura, ou ainda os direitos invioláveis – a especificação dos direitos restringidos e a temporalidade mínina da duração da medida, em no máximo 15 dias renováveis por mais 15.7 Entretanto, a maneira como o estado de exceção vem se apresentando atualmente não corresponde fielmente aos pressupostos imaginados pela teoria clássica do Estado e da Constituição, nem pela maioria das Constituições atuais. Convive-se – e o Brasil é um exemplo claro do que se afirma – com uma violência (real ou simbólica) legitimada pelo Poder Executivo, com uma desagregação normativa, gerada pela nãoaplicação de dispositivos legais por parte do Poder Judiciário, mesmo quando tais dispositivos são necessários para levar os direitos a sério e com o conseqüente ativismo judicial   8. Além disso, nas esferas legislativas, percebe-se cada vez mais a invasão de interesses privados em um espaço que, por essência, é eminentemente público. O Direito toma um lugar simbólico, sagrado e inatingível ou quando alcançável, é fragilizado e fragmentado. 7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 1105-1106. 8 Sobre a importante questão do papel do Judiciário e seus limites vide DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. 3.ed. São Paulo, Martins Fontes, 2010. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 2003. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. Salvador-BA: Juspodivm, 2012.

 

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O grande paradigma utilizado pelos autores que estudaram ou estudam o estado de exceção é a Constituição de Weimar de 1919, seja no que diz respeito a esse seu conceito tradicional apresentado ou ainda no que se refere à concepção atualmente discutida, e que aqui mais ainda nos interessa: a afirmação da existência de um estado de exceção permanente e não declarado. A teoria do estado de exceção de Carl Schmitt9 tem muito a dizer sobre sua origem e significado, bem como sobre de que maneira o soberano e o Direito foram elevados à categoria de mitos e passaram a ser considerados sagrados. Walter Benjamin10, contra Schmitt, afirma a necessidade de profanação11 do Direito e de destruição do estado de exceção, que é regra, bem como da violência que o acompanha, por meio de outro tipo de violência, a violência pura e sem finalidade. Giorgio Agamben12, atualmente, ao encontro do que 9

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 10 BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Org., apresentação e notas Jeanne Marie Gagnebin. Trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2011. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: O anjo da história. Trad.: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. 11 O conceito de profanação remete-nos à obra de Walter Benjamin, apropriada por Agamben, que retoma o sentido do Direito Romano, segundo o qual aquilo que havia sido separado na esfera do religioso e sagrado, era restituído ao uso livre e comum do homem. Segundo Agamben “profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” In: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 65. 12 Apesar das muitas críticas feitas à desconstrução propostas por Agamben promove uma séria investigação acerca do estado de exceção no mundo atual em seu projeto homo sacer, já composto por sete obras: Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2.ed. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010. Estado de exceção: homo sacer II. Trad.: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (homo sacer III).Trad.: Selvino Assman. São Paulo: Boitempo, 2008. O reino e a glória: uma

 

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Benjamin constrói, tem investigado a fundo a exceção, a biopolítica (antes enunciada por Michel Foucault), o totalitarismo a ela vinculado e a condição de homo sacer13 a que o ser humano é submetido, pelo soberano, no estado de exceção permanente em que vivemos. Agamben teoriza, partindo principalmente das análises de Foucault14 sobre a biopolítica, aliando-as aos estudos sobre o totalitarismo, de Hannah Arendt.15 A partir do reconhecimento de que há permanência da exceção no Estado Democrático de Direito, ainda que não se manifeste a todo instante, a democracia instituída deve confrontar-se com o significado jurídico de uma esfera pública de ação que deve ser ampliada e desbloqueada. Mas mais que isso, a prática da democracia deve reconhecer que há problemas no constitucionalismo que se é praticado, em inúmeras esferas, o que pode ser demonstrado a partir da percepção de quão distante está a ordem jurídica do ser vivente.

genealogia teológica da economia e do governo (homo sacer II, 2). Trad.: Selvino Assman. São Paulo: Boitempo, 2011. O sacramento da linguagem:arqueologia do juramento (homo sacer II,3). Trad.: Selvino Assman. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. Opus Dei: archeologia dell’ufficio, 2012 (sem tradução para o português). Medios sin fin: notas sobre la politica. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Madrid: PreTextos, 2010 (sem tradução para o português). 13 Homo sacer é a figura do Direito Romano apropriada por Agamben para se referir ao indivíduo que vive na zona de indistinção entre o fato e o direito, que é colocada para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina. É aquela que não pode ser imolado, mas que não merece viver, aquele a quem se deve ser indiferente. Vide: AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, cit., p. 84 ss. 14 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica.Trad.: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 15 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad.: Robert Raposo. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

 

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Giorgio Agamben percebe essa continuidade do estado de exceção das democracias atuais e sinaliza para o problema: O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, através do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado em sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos que são chamados democráticos.16

A exceção, declarada ou velada, não é apenas perniciosa para o desenvolvimento de qualquer espécie de movimento democrático, seja ele em direção às instâncias de poder institucionalizadas, ou do tipo que brota espontaneamente no seio das comunidades. É, na verdade, um impeditivo da institucionalização da democracia por completo, um esvaziamento do político propriamente dito, um incentivo a simulacros de democracia popular, com escassos mecanismos de participação. Entretanto, com tal afirmação não se quer dizer que a democracia é inexistente, pois, sem espera, ela muitas vezes irrompe a exceção, que embora permanente, não se manifesta em todos os instantes, e instaura, por meio das várias formas de tomada do espaço público, a ação comunicativa, visando reconstruir os direitos humanos.17 Ainda assim (e mesmo com essas esparsas manifestações que nadam contra a maré de ilegitimidades, 16 17

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção, cit., p. 12-13

HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad.: George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p.153 ss.

 

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ou talvez exatamente por elas e em nome delas), há que se entender o fenômeno do estado de exceção que se perpetua nos Estados Democráticos ocidentais, resguardados pela suposta legitimidade de uma democracia. É a exceção que se esconde na previsão constitucional, tal como aconteceu em Weimar, ou ainda, que se esconde na previsão densa de direitos, que podem nunca ser efetivados. Nesse contexto, localiza-se o óbvio problema da transição brasileira – e de uma justiça de transição – de um regime autoritário, herdeiro de toda a tradição de exceções do mundo ocidental do século XX, para um regime democrático, pós Constituição de 1988 e os resquícios da ditadura não são poucos na paradoxal tradição política brasileira.

1. O Estado de Exceção na história do Século XX Mas afinal o que seria essa exceção? Seria qualquer arbitrariedade do Estado e dos poderes públicos? Poderíamos transportá-lo para países que não viveram regimes totalitários, tais como os da América latina? O estado de exceção é tema que ganha relevo após a primeira guerra mundial, quando a Alemanha encontrava-se submetida ao Tratado de Versalhes, devendo fazer reparações a diversas nações em decorrência da responsabilidade assumida no pacto. Sua situação econômica não era das mais prósperas. Apesar de a Constituição então em vigor (Constituição de Weimar) ter sido modelo de consagração de direitos fundamentais desde então e ainda ter sido estudada no âmbito da internacionalização de direitos humanos (e o é até os dias de hoje), esses direitos não eram efetivados. Havia a previsão de amplo rol de direitos individuais e sociais, entretanto faltavam mecanismos suficientes de efe-

 

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tivação.18 O fenômeno se agravara com a quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929, o que contribuiu para que o presidente, Paul von Hindenburg, se valesse da previsão do art. 48 da Constituição de Weimar e nomeasse Adolf Hitler como Chanceler19. O art. 4820 contemplava a suspensão do sistema de direitos fundamentais previstos constitucionalmen-

18 Alexandre Franco de Sá afirma, além disso, que essa Constituição inaugura o Estado liberal de Direito, com extensa enumeração de direitos individuais, além de consagrar o indivíduo como cidadão ao assinalar o povo como origem de toda a potência estatal (art.1º). SÁ, Alexandre Franco de. O poder pelo poder: ficção e ordem no combate de Carl Schmitt em torno do poder. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009, p. 268. 19 Sá explica, com base em Schmitt, que a Constituição de Weimar, por prever a figura do Presidente e do Chanceler (dois líderes políticos), legalizaria facilmente um golpe de Estado, caso ambos estivessem de acordo. Para Schmitt, numa situação como essa,“surge uma concentração política de poder como quase não seria possível numa monarquia constitucional, surge uma ditadura conforme à constituição.” SCHMITT, Carl apud SÁ, Alexandre Franco de. O poder pelo poder, cit.,p. 274. Em 1930, foi necessária a edição de uma lei que regulamentasse as relações jurídicas entre o Chanceler, os Ministros e Presidente do Reich. A lei representou um fortalecimento do presidencialismo e um enfraquecimento do parlamento, que já passara por um processo de degenerescência, tendo sido transformados em palcos de lutas partidárias e de manipulação de massas, ao invés de fóruns de discussão pública, como assinala Franco de Sá, em leitura a Carl Schmitt. Além disso, o autor afirma que, naquele contexto, um presidente eleito por todo o povo teria mais autoridade do que um parlamento eleito pelo mesmo povo, já que no presidente une-se a confiança do povo numa única pessoa, enquanto no parlamento ela estaria dividida em diversos parlamentares. (SÁ, Alexandre Franco de. O poder pelo poder, cit., p.276-277). 20 Art. 48: Se um país não cumpre os deveres que lhe impõe a Constituição ou as leis do Reich, o seu presidente poderá lhes obrigar, com a ajuda das forças armadas. §1ºQuando se tenha alterado gravemente ou estiverem em perigo a seguridade e a ordem públicas no Reich, o presidente pode adotar as medidas indispensáveis para seu restabelecimento, incluindo, se necessário, a ajuda das forças armadas.

 

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te, a fim de resguardar a ordem. Desse modo, o presidente do Reich poderia se valer das forças armadas para obrigar os estados alemães ao cumprimento de seus deveres e colocar fora de vigor, parcial ou inteiramente, os direitos fundamentais, em especial as várias espécies de liberdade. Embora o Reichstag pudesse exigir a suspensão das medidas de exceção tomadas pelo presidente, este detinha sempre a possibilidade de dissolver o parlamento.21 O mencionado dispositivo foi utilizado mais de 250 vezes durante os mais de 12 anos da República de Weimar, o que foi um passo decisivo rumo ao totalitarismo que se instalava e a todas as suas atrozes conseqüências. Carl Schmitt, um dos teóricos que mais trabalhou e defendeu o estado de exceção vincula-o necessariamente ao soberano e inicia o seu Teologia Política, ressaltando que “soberano é quem decide sobre o estado de exceção.”22 Desse modo, Schmitt encaminha seus apontamentos para a função indispensável da soberania em firmar a ordem e para a relação indissociável entre soberano e exceção. Afirma também o autor que “o soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente, porém a ela pertence, pois ele é compe-

§2º Para este fim, pode suspender temporariamente, no todo ou em parte, os direitos fundamentais fixados nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153 §3º O Presidente do Reich dará conhecimento imediatamente ao Reichstag de todas as medidas que adotar com base nos parágrafos 1º e 2º deste artigo. As medidas devem ser suspensas imediatamente se o Reichstag assim o demandar. §4º Se houver perigo iminente, o governo do Estado poderá aplicar provisoriamente em seu território, as medidas expressas no parágrafo 2º deste artigo.Essas medidas devem ser suspensas se assim o exigir o Presidente do Reich ou o Reichstag . Mais detalhes serão regulados pela lei do Reich. 21 SÁ, Alexandre Franco de. O poder pelo poder, cit.,p.279-280. 22

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.8.

 

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tente para a decisão sobre se a Constituição pode ser suspensa in toto.”23 Segundo Gilberto Bercovici, “a necessidade do soberano era por ele [Schmitt] interpretada na inafastabilidade da exceção, na normalidade da exceção,”24 sendo a soberania referente à própria origem do direito e não ao seu término, como talvez pudesse sugerir a suspensão da ordem jurídica. Nessa linha, prossegue Bercovici em sua leitura schmittiana, elucidando que o ordenamento fica à disposição do soberano: A soberania é a afirmação da ordem e, ao mesmo tempo, a sua negação. Isto significa dizer que o ordenamento está à disposição de quem decide. O soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico, pois ao utilizar o seu poder de suspender a validade do direito, coloca-se legalmente fora da lei. O estado de exceção se justifica pela situação de ameaça à unidade política, portanto, não pode ser limitado, a não ser que esta unidade deixe de existir. A exceção não poderia se manifestar no limite do direito, pois só ela, exceção, permite, para Schmitt, que se chegue à essência do direito.25

Dessa maneira, fica demonstrado como, para Schmitt, a exceção deveria se manifestar em ilimitação do poder a fim de se chegar à essência do direito, à normatividade e ao fundamento da ordem jurídica. Para ele, a tentativa do direito em descrever ao máximo e pormenorizadamente o estado de exceção e como ele

24 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente. atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 65. 25 BERCOVICI, Gilberto. O Estado de Exceção Econômico e a Periferia do capitalismo. E-premissas: Revista de Estudos Estratégicos, n.2,. jan/jun 2007, p 61-69.

 

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se daria seria somente uma tentativa de descrever o caso em que o direito suspende a si mesmo.26 O soberano seria aquele que se identifica com Deus, que, na realidade terrena, age de modo incontestável e que na modernidade ocupa o lugar em que na Idade Média ocupava o Deus da religião.27 Por decorrência, emerge o papel simbólico do soberano e a importância de, por meio do estudo do conceito de símbolo, investigar as continuidades e descontinuidades da transição do significado do poder político (e da juridicidade que o evoca) na Idade Média até a contemporaneidade. Isso tudo sem desprezar o papel da modernidade, mas analisando de modo a relativizar, com Hans Lindhal e Claude Lefort, a sua autodescrição enquanto começo absoluto e incondicionado. Com elaborações sobre a exceção, mas em sentido oposto ao de Schmitt, pronuncia-se Walter Benjamin, partindo da Gewalt, a violência (violência-comopoder), que tem caráter conservador, de poder legítimo e é sacralizado por Schmitt (que a entende enquanto poder-como-violência). Benjamin profana o termo e o coloca no uso comum.28 Assim, nota que, por mais que o Direito se coloque fora da violência, isento e apartado

26

SCHMITT, Carl. Teologia Política, cit., p.14.

27

LINDAHL, Hans. El pueblo soberano,cit..

28

BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2011. Walter Benjamin possui bases sólidas acerca da violência e da própria exceção que ela ronda no pensamento de Georges Sorel. Para um aprofundamento vide: SOREL,Georges. Reflexões sobre a violência. Petrópolis: Vozes, 1993. O texto Para uma crítica da violência, não trata de um ensaio pacifista, mas de uma abordagem acerca dos limites da Gewalt e acerca da oposição entre o “poder-como-violência”, do Direito e do Estado, e a “violência-como-poder, da greve revolucionária.” (Vide segunda nota de rodapé do editor da obra citada).

 

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dela, ele apenas se coloca e obriga, por meio dela, o que demonstra a violência como fim na obra do autor.29 No texto em que Benjamin elabora dezoito teses sobre o conceito da história, o autor esboça a ideia de estado de exceção permanente, como regra, e sobre como seria possível combatê-lo: A tradição dos oprimidos ensina-nos que o "estado de exceção" em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a essa ideia. Só então, se perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar um verdadeiro estado de exceção; e, assim, a nossa posição na luta contra o fascismo melhorará. A hipótese de ele se afirmar reside em grande parte no fato de seus opositores o verem como uma norma histórica, em nome do progresso. O espanto por as coisas a que assistimos “ainda” poderem ser assim no século vinte não é um espanto filosófico. Ele não está no início de um processo de conhecimento, a não ser o de que a ideia de história de onde provém não é sustentável.30

Teria Benjamin sugerido que para combater o fascismo e os totalitarismos seria preciso instaurar um verdadeiro estado de exceção? Ao apontar a violência enquanto possuidora de fins, estaria ele propondo outra violência, a violência sem fins, a violência dita pura, a única que conseguiria combater o estado de exceção com propriedade. A proposta desconstrutiva de Benjamin, em ver a violência como esfera mediatizante para compor o Direito, impõe a ideia de que se o Estado monopoliza a violência, pela via do Direito, os movimentos que combatem essa violência precisam estar

29 30

BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência, cit., p. 122.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: O anjo da história. Trad.: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p.13.

 

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fora do Direito, precisam ser ilegais. Essa instauração da violência pura abriria caminhos. Numa linha muito semelhante à de Benjamin, contemporaneamente, Giorgio Agamben se debruça sobre o estudo acerca do estado de exceção. Para o autor, estado de exceção é “a resposta imediata do poder estatal aos conflitos internos mais extremos.”31 “O estado de exceção não é um direito especial (como o direito da guerra), mas enquanto suspensão da própria ordem jurídica, define seu patamar ou seu conceito-limite.”32 Ainda completa: A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora da relação com a norma; a contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede à ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão.33

Intenta a exceção fazer com que o soberano possa decidir não apenas entre lícito e ilícito, mas a implicação originária do ser vivente na esfera do Direito, decidir quem pode viver e quem pode morrer, ou qual vida é indiferente (vida nua, homo sacer).34 A partir da constatação da existência da exceção como regra, também se pode concluir que entre bios, um modo de ser próprio de cada indivíduo e zoé, a vida que é comum a

31

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p.12 32 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção, cit., p.15. 33 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2.ed. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p.24. 34 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, cit., p.32.

 

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todos os seres vivos,35 direito e fato há uma zona de indistinção, de modo que a exceção pode ser perpetuada. Foi o que ocorreu com o totalitarismo e também o que continua nos estados de exceção que persistem no interior das democracias atuais. O ser vivente, nessa zona de indistinção, permanece incluído, mas como elemento a ser descartado, completamente incapacitado para a ação política ou mesmo inapto para si, enquanto indivíduo. Zoé e bios já não se distinguem, direito e fato são uma e mesma coisa.36 Materializa-se a biopolítica. O termo biopolítica – embora venha sendo empregado com significados diversos e em diferentes áreas do conhecimento–, na obra de Michel Foucault, importa em governar o conjunto dos viventes constituídos em população; em outras palavras, constitui-se no poder que se concentra na figura do Estado ao administrar a vida e o corpo da população. Pode ser entendido enquanto exercício do poder estatal, como fenômeno global e transnacional, que investe na multiplica-

35 Agamben muito bem explica a diferença entre zoé e bios:“Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. Quando Platão, no Filebo, menciona três gêneros de vida e Aristóteles, na Ethica nicomachea, distingue a vida contemplativa do filósofo (bíos theoreticós) da vida de prazer (bíos apolausticós) e da vida política (bíos politicós), eles jamais poderiam ter empregado o termo zoé, (que, significativamente, em grego, carece de plural) pelo simples fato de que para ambos não estava em questão de modo algum a simples vida natural, mas uma vida qualificada, um modo particular de vida.” AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, cit.,p.9. 36 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer, cit., p.17.

 

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ção da vida, aniquilando-a.37 Embora tardiamente, a biopolítica foucaultiana “tornou-se uma importante ferramenta conceitual para compreendermos e diagnosticarmos as crises políticas do presente”38 Se a abrangente constatação de Foucault na década de 1970 foi inovadora, pois permitiu avaliar criticamente o gerenciamento padronizado que o Estado pretendia fazer com a vida da população, agora, essa constatação permite ao século XXI compreender as tentativas de gestão da vida do corpo social por parte do poder instituído e por parte do que Foucault chama de mercado.39 Seria ele também uma parte difusa do novo soberano?40 O diagnóstico feito por Foucault, em relação ao biopoder e à biopolítica do século XX, partindo de um percurso histórico que se inicia no fim do século XVIII, permite-nos compreender o deslocamento do poder soberano em gerir a vida. Dessa maneira, é possível compreender o saneamento realizado pelos regimes políticos do século XX, no sentido de purificar raças, depurar as doenças da população. Inicia-se, então, a indiferenciação entre gerir /incrementar a vida e matar a vida, a fim de protegê-la (uma violência com finalidade, para estabelecer o elo com Benjamin). Descreve Foucault: As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça 37

FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica.Trad.: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 38 DUARTE, André. Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI. Revista Cinética, ensaios críticos. p.1. 39 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica,cit.,, p. 397 ss. 40 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente, cit. 51 ss, 61 ss.

 

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que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens. E, por uma reviravolta que permite fechar o círculo, quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a destruição exaustiva, tanto mais decisões que as iniciam e encerram se ordenaram em função da questão nua e Crua da sobrevivência. (...) Se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque o poder se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços da população.41

Assim, o autor explica ainda que “São mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros”42 O direito de matar em nome da preservação da vida e de sua purificação pertence ao soberano, que pode, além disso, transformar determinados grupos em inimigos, momento em que passam a ser considerados entidades biológicas. A biopolítica transforma-se em tanatopolítica e o soberano, seja quem quer que seja, tem o direito sobre a vida e a morte. Giorgio Agamben apropria-se do termo para traçar sua teoria do estado de exceção, no projeto homo sacer. Mas além de se aprofundar nas teorias de Foucault acerca da bio/tanatopolítica, o italiano alia tais teorias ao totalitarismo investigado por Hannah Arendt. Segundo a autora o ser vivente está incluído no ordenamento como elemento a ser descartado, já que deixa de gozar de qualquer capacidade para a ação política. Aos poucos, o ser vivente é incorporado à sociedade de massas, que no pensamento de Hannah 41 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, A Vontade de Saber, v.1. 13. ed. Trad.: Maria Thereza Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 129. 42 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, A Vontade de Saber, cit., p. 129.

 

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Arendt, é um conjunto de pessoas que não se une por interesses ou objetivos comuns, pessoas que são incapazes de fazer política, de agir concertadamente (ação em concerto). Elas permanecem agregadas por alguma espécie de sentimento ou intenção que foge às aspirações comuns, à capacidade de agir e de fazer política. Desse tipo de sociedade não há como esperar que haja geração de poder, já que este apenas acontece quando há ação. Não há também a característica da pluralidade. Embora a massa seja formada por muitos, a quantidade numérica distancia-se do que Arendt chama de pluralidade, já que esta é uma união de interesses comuns e de ação em concerto. Ao explicar a sociedade de massas, Arendt assim define o termo: “pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores.”43 Um sistema totalitário, despótico, absolutista ou tirano subtrai a capacidade da pluralidade e da multiplicidade, aniquila, juntamente com isso, a individualidade da vida contemplativa. A liberdade se insere nesse contexto como causadora de rupturas nesses sistemas, com a capacidade de desmantelar a redução provocada por eles. Os governos totalitários e absolutos, em sua tentativa de segregar o homem, impondo-lhe a desolação e o isolamento, podem ser considerados uma ficção44, uma abstração tendente a ruir, já que, nessa tentativa, reificam qualquer espécie de liberdade e se absolutiza o poder, que só se dá na partilha com os outros. Os regimes totalitários valeram-se da supressão da liberdade por meio da desolação e do isolamento, a 43

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, cit., 1989, p. 361.

44

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, cit., p. 519.

 

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fim de impedir que qualquer indivíduo pudesse gozar minimamente do espaço público ou pudesse desfrutar da menor porção do que chamamos pluralidade. A ação comunicativa extirpa qualquer possibilidade, por mais ínfima que seja, de liberdade e inaugura o governo burocrático e o automatismo, que corroboram ainda mais para o triunfo de um governo totalitário e para a extinção de direitos. Segundo a autora, “já se observou muitas vezes que o terror só pode reinar absolutamente sobre homens que se isolam uns contra os outros que, portanto, uma das preocupações fundamentais de todo governo tirânico é provocar esse isolamento.”45 Diante da genealogia do totalitarismo, aliada à biopolítica e projetada na atualidade por Agamben na construção da ideia do estado de exceção permanente, já enunciado antes por Benjamin, percebe-se que há uma extensão desse estado de exceção para os países que passaram por regimes ditatoriais, tais como o Brasil. Como já demonstrado, essa exceção se manifesta em uma infinidade de instituições e relações políticojurídicas que, legatárias do autoritarismo, não conseguiram se democratizar adequadamente. As democracias construídas a partir do fim oficial dos regimes autoritários não foram totalmente bem sucedidas na construção de instituições mais participativas e mais isentas e imparciais, ou ainda na promoção de instâncias mais transparentes e menos burocratizadas. Tudo isso a gerar certa instabilidade e abrir caminho certo a exceções dentro de um regime democrático. Seria mais uma vez o estado de exceção mostrando sua perenidade na trajetória da história do Ocidente.

45

 

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, cit., p.526.

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2. Estado de Exceção no Brasil Pós-1988 e Justiça de Transição como descontinuidade da exceção Diante desse panorama de certo modo pessimista de inviabilidade de instituição da democracia concretamente, pergunta-se se algo poderia romper essa fatalidade anunciada no sistema democrático brasileiro. Não há dúvida de que a afirmação de Benjamin acerca do estado de exceção como regra é atual e a cada instante se renova. Entretanto, diante (e dentro) de um Estado Democrático de Direito legitimado pelas vias representativas, o desafio fundamental da comunitas é encontrar alternativas, dentro do próprio Direito, para essa violência, para o mito, para o símbolo e para o papel simbólico do Estado. A incomensurabilidade do Direito, a sensação que recorrentemente toma o indivíduo de se estar diante da lei46, impõe a necessidade de trazer o Direito para a esfera do comum, para a esfera pública de tomada de decisões. Benjamin inicialmente teria sugerido o combate ao estado de exceção pela via da violência pura , mas o que se pretende é defender, em sentido oposto, a necessidade de conduzir o Direito para o centro da esfera pública e, por meio da argumentação, da discursividade, criar mecanismos de efetivação e de proteção aos direitos humanos, apontando, inclusive, o que seriam esses direitos, uma vez que eles não podem ser qualquer coisa e nem uma coisa a cada momento. Ao lado dessa tarefa, impõe-se às democracias atuais – que surgem como herdeiras de regimes autoritários e totalitários – o dever de memória e justiça. 46 Franz Kafka trata da figura de um camponês que se depara com a porta da lei, pela qual o acesso não é possível ou, ao menos, não lhe parece possível, dado o universo simbólico que revolve a situação. KAFKA, Franz. Diante da lei. In: Um médico rural. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 27-29.

 

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Nos países da America Latina que vivenciaram ditaduras no século XX, ou na África do apartheid, ou ainda nos países que sofreram os regimes totalitários europeus, o Estado, em suas três esferas de poder, precisa contemplar uma justiça de transição que refaça por meio do resgate da memória, um caminho de reconstrução dos direitos perdidos e esquecidos. A continuidade do autoritarismo nas relações formalmente democráticas impõe um sério questionamento sobre o nível de democraticidade ou a sua ausência nessas relações. É primordial lembrar para esquecer: promover a política da justa memória das exceções é fazer com que elas sejam esquecidas, sem que sejam apagadas; lembradas, para que não sejam repetidas. Percebemos que a transição realizada até então no Brasil foi negociada.47 Edson Teles a denomina de transição do consenso48 e chama a nossa democracia de exceção democrática49, para levar ao extremo a tradição de esquecimento cultivada pelas instâncias políticas brasileiras. Percebemos que a criação de uma Comissão da Verdade, ao lado da proposição de ações visando desvelar os mitos, tenta romper com essa tradição e pode ser considerada, até mesmo, um começo do que se pretende criar como justiça de transição. Entretanto ainda vivemos um “sintoma discreto de uma profunda tendência totalitária da qual nossa sociedade nunca conseguiu se livrar – a verdadeira causa do caráter deformado e bloqueado de nossa de47

Para Vladimir Safatle o Brasil teria realizado a pior das profecias dos

carrascos nazistas: “a profecia da violência sem trauma.   47 SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o estado ilegal. In: TELES, Edson, SAFATLE, Vadimir. (Orgs.). O que resta da ditadura? São Paulo: Boitempo, 2010, p.240 48 TELES. Edson. Entre justiça e violência: Estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. In: SAFATLE, Vladimir, TELES, Edson (Orgs.).O que resta da ditadura?, cit., p. 307. 49 TELES. Edson. Entre justiça e violência, cit., p.315.

 

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mocracia.”50 Por mais extremista que possa parecer o argumento, não é outra coisa que se vê quando se observa o bloqueio da democracia participativa, os símbolos que revestem o Direito e a política, tornando-os inacessíveis, a arbitrariedade e a ausência de limites às três esferas de poder. Por meio dessas esferas, legitimadas democraticamente, há que se estimular uma justiça de transição eficaz: a efetivação de direitos fundamentais vertical e horizontalmente, políticas públicas que ultrapassem o discurso demagógico, além de debates nas casas legislativas que combatam a mitigação do espaço públicopolítico, ampliando as instâncias de democracia participativa. A memória da violência precisa ser levada em conta na construção de uma nova democracia e na reconstrução de direitos perdidos, para que seja possível assumir o compromisso de responder aos atos de violência e exceção dos dias atuais. “Resta algo da ditadura em nossa democracia que surge na forma do estado de exceção e expõe uma indistinção entre o democrático e o autoritário no Estado de direito.”51 Se se acredita na democracia por vir, há que se promover a retomada do espaço público esquecido e a reconstrução dos direitos humanos em seu centro. Tal tarefa pode e deve ser desenvolvida a fim de se construir uma democracia ainda não efetivada, embora pensada e idealizada pela Constituição de 1988, a partir da realidade de exceções que se deu até então. A partir do reconhecimento e da memória do passado de terror, buscando reparações, construindo políticas de restituição da verdade, por meio de uma justiça de transição eficaz, sem deixar de 50 SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o estado ilegal, cit., p.240. 51 TELES. Edson. Entre justiça e violência: Estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. In: SAFATLE, Vladimir, TELES, Edson (Orgs.).O que resta da ditadura?, cit., p. 316.

 

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revolver a questão do estado de exceção, pode descontinuar essa política até então elaborada. Os debates em torno do estado de exceção e dos efeitos das experiências políticas do século XX, no mundo ocidental em particular, constituem hoje uma das questões mais pertinentes e de maior impacto no Direito e na política. Por um lado, isso se deve às inúmeras discussões em sede de Jurisdição Constitucional a fim de reparar os erros históricos de um passado de contínuas exceções – discussões que se refletem no que se denomina justiça de transição – e promover pedidos públicos de desculpas pelos equívocos praticados; por outro, tais debates são motivados pelas interlocuções teóricas que tentam, por meio do resgate da memória e do reconhecimento, apontar para uma séria interpretação do que a permanência do estado de exceção pode ocasionar em um Estado que se pretende democrático, no que se refere à sua vida política, jurídica e social. Nesse contexto, não se pode desprezar o papel das variadas interpretações de uma justiça de transição interessada em reparar os erros desse passado de violências ou em (re)construir os direitos humanos, pela via da argumentação e do discurso públicos, além de deliberar o que pode e deve ser desculpado. Entendese, para tanto, o significado de justiça de transição ao lado de Paulo Abrão e Marcelo Torelly, que a definem como uma promoção da reparação às vítimas; fornecimento da verdade e construção da memória; regularização das funções da justiça e restabelecimento da igualdade perante a lei e, por fim, reforma das instituições perpetradoras de violações contra os direitos humanos – de modo a verificar como

 

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tais dimensões constituem-se em verdadeiras obrigações jurídicas no sistema de direitos pátrio.52

Portanto, por justiça de transição ou transicional entende-se um conjunto de abordagens judiciais ou políticas, consagrado na comunidade internacional na década de 1980, que visa atender a necessidade de reparação das vítimas e dos acontecimentos de regimes totalitários ou ditatoriais, exigindo efetividade de direitos humanos em momento de passagem desses regimes para regimes democráticos, a curto e longo prazo, desconstruindo o paradigma de negação do Estado repressivo, que se preocupava em fazer desaparecer a história. Também está compreendido nesse conceito o resgate da memória e da história, o reconhecimento das técnicas atrozes praticadas e a busca de mecanismos institucionais de reparação, compreendendo por mecanismos institucionais aqueles provenientes do Estado e os não estatais, uma vez que esse resgate se dá no interior de uma democracia em construção, que se constitui no espaço entre os homens, no diálogo, na partilha, no discurso, nos debates. Romper com a ideia de culpabilização coletiva e responsabilizar os verdadeiros culpados faz parte do resgate da memória e da necessidade de relembrar para reparar, quebrar o silêncio e a ideologização de perdão coletivo e de pacificidade do povo demonstram que construir a democracia depende da afirmação do não dito e é mais que meramente sobreviver. Nesse contexto, inserem-se as Comissões da Verdade na América Latina – na Argentina em 1983 e no Chile em 1990 –, imediatamente após a queda dos regimes ditatoriais. Apesar de não terem atingido to52 ABRÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo. Justiça de transição no Brasil: a dimensão da reparação. In: Revista Anistia, Política e Justiça de Transição. n.3. jan/jun/2010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010.

 

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dos os objetivos nos primeiros anos de instalação, as primeiras Comissões visavam estabelecer uma jurisdição eficaz contra os crimes cometidos durante o regime e políticas de reparação, através de ações penais, indenizações às vítimas e suas famílias, amplas reformas institucionais, resgate da memória e da verdade obscurecida e mentida por parte do Estado, além de uma série de mecanismos de afirmação de direitos humanos, como forma de blindar o Estado Democrático a possibilidades de novos golpes. Vera Vital Brasil, em profunda análise sobre o papel do testemunho nas comissões da verdade que foram criadas na América Latina, mormente no Brasil, explica o importante papel de resgate da memória e dos fatos exercido por essas comissões: Uma vez levantados alguns elementos/fatores que marcaram o cenário de silêncio e esquecimento ativo que predominou em nosso país, uma Comissão da Verdade - que tenha como finalidade investigar e esclarecer os crimes de lesa-humanidade ocorridos no contexto da ditadura civil militar, além de apontar os métodos repressivos utilizados e os responsáveis por esses atos – será, em princípio, uma contribuição para ampliar o conhecimento sobre esses fatos. Podendo ser um instrumento na construção do “nunca mais”.53

Não obstante a política da justa memória criada nos países vizinhos em momento concomitante à instalação da democracia, o Brasil tardiamente acompanhou esse movimento com a criação da Comissão Nacional da Verdade apenas em 2011, vinte e seis anos após a queda do regime militar ditatorial, por meio da lei 12.528/2011. A Comissão da Verdade brasileira, apesar de encontrar uma série de obstáculos no resgate da 53 BRASIL, Vera Vital. Dano e reparação no contexto da comissão da verdade: a questão do testemunho. In: Revista Anistia, Política e Justiça de Transição. n.6. jul/dez. 2011. Brasília: Ministério da Justiça, 2012.

 

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memória, dada a distância temporal entre a ditadura e a sua criação, fora instalada em 16 de maio de 2012 e, por essa lei, é responsável por apurar as violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, esclarecendo e identificando os fatos e apresentando propostas de políticas e medidas públicas para prevenir violação de direitos humanos. Ademais, cumpre assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional, além de colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações, por meio de amplos procedimentos contemplados pela lei. A Comissão da Verdade, mas também outros mecanismos, tais como reformas institucionais, debates teóricos, releituras de acontecimentos podem corroborar a atuação de uma justiça de transição nesse contexto de democratização do país e de tentativa de construção de uma ordem mais coerente com o que se pretende ser, desde Constituição de 1988. Para tal fim, é preciso, sobretudo reconhecer que não é possível a construção dessa justiça de transição eficaz sobre os marcos institucionais legatários do autoritarismo, mas construir novos marcos institucionais, uma nova história, através da política da justa memória. Uma justiça de transição eficaz é possibilidade de rememorar a injustiça a fim de, por meio da reparação, promover a justiça. É ela possibilitadora da interrupção de uma lógica produtora de violências, por meio do resgate da memória e da verdade, não negando dos fatos, o real. Concentrar o problema da exceção na esfera de uma justiça de transição eficaz, como modo de enfrentamento do estado de exceção permanente no Brasil, é tarefa que deve nortear as políticas e os procedimentos institucionais e não institucionais de combate à exceção e de reparação aos direitos humanos ofendidos durante e após os regimes ditatoriais.

 

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Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional O lugar do testemunho na transição pós-ditadura civil-militar brasileira1

Roberta  Cunha  de  Oliveira2   José  Carlos  Moreira  da  Silva  Filho3  

1 Este artigo é resultado de pesquisas apoiadas pelo CNPq e pela CAPES. O artigo está também publicado em: Renata Conde e Costa Vescovi. (Org.). Psicanálise e Direito: uma abordagem interdisciplinar sobre ética, direito e responsabilidade. 1ed.Rio de Janeiro;Vitória-ES: Companhia de Freud;ELPV, 2013, v. , p. 131-162. 2 Mestra em Ciências Criminais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Professora de Direito da Universidade Federal de Rio Grande (FURG); Membro do Grupo de Estudos CNPq Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição; Membro do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST. 3 Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná - UFPR; Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB; Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais – Mestrado e Doutorado - e Graduação em Direito); Bolsista Produtividade Nível 2 do CNPq; Conselheiro e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Coordenador do Grupo de Estudos CNPq Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição; MembroFundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST.

 

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Introdução A nossa capacidade para narrar histórias, foi o que permitiu que tivéssemos uma memória dos acontecimentos passados. Neste sentido, os efeitos das narrativas, por sua oralidade e transmissão da experiência tendem a perpetuarem-se no tempo, atravessando gerações4. Ou seja, já em sua visão mais ampla, a narrativa contribui originária e significativamente para a construção de memórias em uma coletividade. Entretanto, há situações limites, que dificultam a transmissão da experiência apenas pela fala, necessitando que se abra mão da linguagem em toda sua riqueza de manifestações para que ocorra a conexão entre quem envia e quem recebe a mensagem. São tem4

Em seu texto "O narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov", Walter Benjamin associa a memória à narração e enaltece esta última, lamentando que no mundo da informação instantânea há cada vez menos espaço para os verdadeiros narradores. "A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores(...). Tal é a memória épica e a musa da narração. (...) Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria - a vida humana - não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência - a sua e a dos outros - trasnformando-a num produto sólido, útil e único? (...) Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira" (grifos do autor) (BENJAMIN, Walter. O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura – Obras escolhidas I. 7.ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet . São Paulo: Brasiliense, 1994. [Obras Escolhidas; v.1]. p.211 e 221).

 

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pos históricos de catástrofes sociais que atravessam o indivíduo por retirarem-lhe sua condição plena de sujeito, submetendo-o à condição de objeto; são rupturas no ser que geram rupturas nos grupos, estendem o trauma, para além da esfera psíquica particular e com isso, afetam não apenas as vítimas das violações, mas também o entorno e as gerações seguintes5. Portanto, na tentativa de trazer algumas inter relações entre o direito e a psicanálise, nossa opção foi a de tratar dos efeitos traumáticos em uma coletividade após períodos de violações massivas de direitos humanos, pelo viés de construção social das subjetividades, com base na dificuldade de se fornecer espaços de escuta amplos para as narrativas do trauma. Para tal fim, analisaremos o momento brasileiro de políticas públicas de memória e verdade, com a recente abertura de escuta oficial das vítimas da ditadura civil militar (que assolou o país entre os anos de 19641985), cujos efeitos perversos da falta de simbolização da violência estatal instaurada, ainda persistem criando abismos na democracia. Importa ressaltar que as políticas de memória e verdade, situam-se dentro de um conceito de justiça de transição, a qual busca criar mecanismos democráticos eficazes para reparação de abusos autoritários e também para a consolidação de uma cultura de respeito e educação em direitos humanos, com o objetivo de neutralizar a produção cíclica de violência. 5

Em tal aspecto nos embasaremos na construção psicanalítica acerca do trauma como um acontecimento imprevisto que coloca em perigo a “real” estrutura psíquica do sujeito, pela “pulsão de morte” diante da morte súbita (como nos casos de guerra) ou então pela falta de elaboração do duelo em relação a perda inesperada de um ser querido e próximo. Um dos trabalhos que utilizamos como referência é o do trauma como elemento transobjetivo fraturado pela quebra do “pacto denegativo”, desenvolvido por René Kaes. KAES, René; PUGET, Janine (org.). Violencia de Estado y psicoanálisis. Buenos Aires: Lumen,2006, p.161.

 

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Neste aspecto, entende-se a justiça de transição não apenas como um conjunto de mecanismos passageiros de restabelecimento dos regimes democráticos, mas também como um leque de alternativas para o aprofundamento permanente da democracia. A tensão instalada pelos testemunhos é também uma tensão na busca pela justiça material, por um postulado de justiça que nasce a partir das injustiças e desta forma, já se consolida com a consciência da carga de responsabilidade pelo “outro”, da geração que foi, das vítimas que ficaram, das vozes que foram sufocadas. Ou seja, a justiça transicional, se encarada como uma forma reconstrutiva dos laços políticos e instauradora de um conceito de justiça capaz também de cuidar, ao invés de tão só punir, é uma alternativa para a criação de espaços de alteridade, antecessores das análises políticas e jurídicas sobre a violência, porque para a vítima, “toda violência é uma violência ética"6.

6

RUIZ, Castor M.M. Bartolomé. A justiça perante uma crítica ética da violência. In: RUIZ, Castor M.M. Bartolomé (org.). Justiça e Memória, para uma crítica ética da violência. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009. p.87. De forma que o referido autor, ao pautar a crítica da violência a partir da questão ética, da alteridade e da responsabilidade diante do “outro”, também se refere às formas cíclicas de violências como exemplos de sua produção “mimética”. Tal como nos estudos de Walter Benjamin sobre a mimese enquanto constituição dos indivíduos como ser sociais, Ruiz nos chama a atenção para o seu efeito inverso: o da reprodução de atos violentos, que são intencionais, e, por conseguinte, sua “normalização” no tempo como se fossem efeitos naturais, fora do alcance da decisão humana. Pois ao instrumentalizar a vítima, o direito acaba retirando sua condição de sujeito político da ação. Tal fato reforça o esquecimento da violência e comete, segundo Castor Bartolomé Ruiz, uma segunda injustiça: a morte da vítima da memória coletiva. “Estas são violentadas uma segunda vez pelo esquecimento que as apaga de forma definitiva da memória da história, tornando-as insignificantes para o presente”. RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Os paradoxos da memória na crítica da violência. In: RUIZ, Castor M. M. Bartolomé (org.) Justiça e memória. Direito à justiça, memória e reparação: a condição humana nos estados de exceção. São Leopoldo: casa leiria, Passo Fundo: IFIBE, 2012, p.50.

 

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Pois bem, estamos situados em um referencial teórico sobre a memória, a justiça e a história que carece da linguagem dos “vencidos” para se realizar. Sendo assim, adotando-se a noção de memória dos vencidos usada por Reyes Mate7, o testemunho, ou seja, o momento em que a linguagem permanece sendo traduz a práxis libertária daqueles que tiveram sua dignidade negada, ao serem considerados “subumanos”: os que ficaram como o “resto” da história, desconsiderados, olvidados. A memória ou a visão dos vencidos pode ajudar a estabelecer uma cadeia de responsabilidades para com a carga de violência retida no passado e perpetrada como “natural”, pois a testemunha é o concreto da violação, está além do tempo histórico, pois sua temporalidade é aquela do “entre”, do que não foi reconhecido, daquilo criticado apenas por seu “excesso”; a exceção moderna, que nada mais foi do que seu próprio projeto civilizatório. Ademais, a importância do testemunho se dá na tensão que o “não encaixe”, nos parâmetros universais da história, desnuda diante do sofrimento, do negativo que foi devorado pelo “espírito de superação”, significante do esquecimento e que de uma maneira ou de outra, mesmo em suas visões mais críticas, admite o sacrifício de alguns, em prol do objetivo final a ser conquistado. Ao final, o testemunho nos mostra que não há vencedores, pois a humanidade perde algo de sua essência, quando possibilita os massacres, violações massivas dos direitos humanos.

7

MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz - atualidade e política. Tradução de Antonio Sidekum. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.

 

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1. Os efeitos transubjetivos do trauma e o dano transgeracional da violência autoritária O testemunho advém de uma necessidade de narrar diante da grandiosidade nefasta do horror para a vítima, momento em que se colocam em questão os fardos que a testemunha carrega e sua influência para o contexto em que ocorrem. Sobretudo, o testemunho é uma modalidade da memória, mas também da política de memória, ainda que, muitas vezes, faltem espaços para o testemunho: os espaços de escuta. Dessa forma, constata-se a capacidade da linguagem para tangenciar o simbólico, mesmo restando em cada objeto, algo que não conseguimos simbolizar. Ademais o testemunho em seu sentido amplo tem a capacidade crítica de questionar o tempo histórico, pois é atravessado pela narrativa do trauma, que coloca em pauta o tempo psíquico, da ausência na presença, de um futuro que não se realizará enquanto não for possível falar acerca do passado. Embora o século XX tenha sido a época da produção massiva de corpos, não se pode desconsiderar que as grandes tragédias - como os totalitarismos ou o terrorismo de Estado implantado nas ditaduras de segurança nacional da América Latina - acabaram produzindo no vazio deixado, um novo lugar ou status para o testemunho dos sobreviventes. Não obstante, as catástrofes sociais, justamente pela intencionalidade de crimes que buscam não deixar marcas ou vestígios, instituíram as vítimas de uma autoridade portada na linguagem, do corpo que sofre para o corpo que acusa. Logo, a dimensão de julgar do testemunho, vai além do aspecto jurídico, conforme pontua Márcio Seligmman Silva: ...é entender o testemunho na sua complexidade enquanto um misto entre visão, oralidade narrativa e a capacidade de julgar: um elemento complementa o outro, mas eles relacionam-se também

 

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de modo conflituoso. O testemunho revela a linguagem e a lei como constructos dinâmicos, que carregam a marca de uma passagem constante, necessária e impossível entre o “real” e o simbólico, entre o “passado” e o “presente”8.

Por conseguinte, as perguntas que a testemunha traz, e o que ela não consegue revelar, produzem uma dialética entre a palavra e suas reticências, propondo uma ponte com o interlocutor, nas “zonas não negociáveis do silêncio”. Mas a dificuldade de se representar ou apresentar a catástrofe pode ter efeitos diversos: o primeiro é positivo, quando se transforma em solidariedade e consegue fazer do ouvinte9, uma nova teste8

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. In: RUIZ, Castor M.M. Bartolomé (org.). Justiça e Memória. Direito à justiça, memória e reparação: a condição humana nos estados de exceção. São Leopoldo: Casa Leiria. Passo Fundo: IFIBE, 2012, p.59. Mais adiante, o autor postula a era pós-catástrofe como um espaço de possibilidades que necessita ser disputado: “mas existe a possibilidade desta comunidade sair da posição de vítima. Justamente o testemunho pode servir de caminho para a construção de uma nova identidade pós-catástrofe. A uma era de violência e acúmulo de crimes contra a humanidade corresponde também uma nova cultura do testemunho. O testemunho tanto artístico/ literário como o jurídico pode servir para fazer um novo espaço político para além dos traumas que serviram tanto para esfacelar a sociedade como para construir novos laços políticos.” Ob. cit.p.70. 9 Neste artigo utilizamos o termo "ouvinte" para designar aquele que se mantém receptivo ao testemunho e se abre à sua mensagem, por mais irrepresentável que ela seja, que mantém uma abertura para que possa ser tocado pelo testemunho e transformar-se ele mesmo em testemunha também. É o testemunhar do testemunho, chave fundamental do diálogo transgeracional, experiência à qual se contrapõe a figura do "espectador", que se comporta como uma escuta amortecida e inerte. Tratando do significado paradigmático do holocausto, Reyes Mate afirma que nele a "inumanidade alcançou a vítima, o carrasco e contaminou o espectador porque esse crime em massa teria sido impossível sem a cumplicidade do espectador. Essa cumplicidade é um fato, mas o que é muito mais grave, já estava antecipado nas chaves da nossa cultura. A filosofia se havia, com efeito, instalado na confiança de que a essência da humanidade era uma idéia inatingível pela barbárie. Desde o momento em que o lugar

 

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munha, realizando o sujeito o “trabalho de luto” em relação à perda10, elaborando o trauma; além de transmitir a experiência sofrida, como um alerta de conscientização para o coletivo que presencia o testemunho. Já o segundo modo, pode recair no “impedimento da memória”, aquele que faz da palavra ou do silêncio, absolutos; que não permite um “trabalho de memória”, pois sempre retorna ao passado, mas de uma forma que este não passa, o que em psicanálise se denomina de “recalque”. Tal impedimento da memória, sobretudo, é provocado pelos conjuntos externos que cercam o sujeito violado; seja o das instituições públicas, pelo não reconhecimento ou esclarecimento dos abusos do passado; seja o da sociedade, que ao não encontrar o respaldo oficial da versão das vítimas, acaba por optar pela “desmemoria”, a tortura como algo “normal” ou o “mal necessário” e também, por legitimar a criação constante de “bodes expiatórios”, ou novos “inimigos sociais”. Trata-se de caminhos possíveis: o primeiro terapêutico e o segundo, patológico. da ciência da humanidade era a abstração, os atentados concretos contra a humanidade do homem tornaram-se insignificantes. Essa humanidade está adornada, certamente, com todos os atributos da bondade e da verdade, mas ao preço, isso sim, da humanidade concreta, isto é, da irrelavância humana do inumano concreto"(MATE, ob.cit., p. 224). Essa acomodação abstrata do pensamento ocidental ajuda a explicar porque o tema da memória é relegado, muitas vezes, ao segundo plano. 10 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. pág. 249-263. [Vol.XIV]; RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007. p.70 e ss.; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do Direito à Memória e à Verdade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRAO, Paulo; MacDowell, Cecília; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro - Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra; Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.185-227.

 

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Contudo, a opção de trazer a análise do trauma como elemento transubjetivo, situa-nos na falta de respostas que apenas o tratamento clínico pode acarretar. Em outras palavras, assim como o lugar dos testemunhos das catástrofes sociais transcende os tribunais, também o faz em relação ao consultório psicanalítico. Portanto, o objetivo de reparar as vítimas dos crimes contra a humanidade, deve ser, antes de tudo, uma opção política de desenvolvimento de mecanismos terapêuticos, pedagógicos e culturais que consigam aliar os procedimentos e práticas destas diferentes áreas de atuação. Além disso, a catástrofe social11, por se caracterizar pelo estabelecimento de pactos “perversos” com os sistemas institucionais, com o simbólico dentro da coletividade, gera efeitos não apenas nas vítimas diretas ou nos seus familiares, mas também, nas gerações posteriores, que embora não tenham vivenciado a experiência traumática, são receptores dos efeitos não elaborados, os quais acabam produzindo transtornos psíquicos e muitas vezes, dificuldades de reconhecimento com o seu grupo de referência12. Por tais motivos, é que se 11

Neste sentido, qualificamos o período autoritário da ditadura civilmilitar brasileira (1964-1985) como uma catástrofe social, não apenas pelo uso arbitrário do poder, com a mudança de normas, com o exercício da governabilidade por decretos ou atos institucionais, com a cassação de mandatos parlamentares, com a violação do direito à privacidade pela vigilância e pelo controle da população e dos meios de comunicação; mas também, pelas práticas de um estado de exceção, vigentes em espaços de anomia, com a instalação de centros clandestinos de detenção, da tortura como prática de interrogatório, do sequestro e arresto de perseguidos políticos dentro de suas casas, com o desaparecimento forçado de muitos militantes. Fatores que ao serem somados, geraram um ambiente político –social de obediência à autoridade não pela confiança nas instituições ou crença na legitimidade do sistema político, mas sim, pelo medo. 12 É neste aspecto que se corrobora a interpretação que o terrorismo de Estado das ditaduras civis militares na América do Sul, como catástrofe social, gerou danos transgeracionais, verificados atualmente nos Estados que promoveram políticas de reparação ou intentos similares.

 

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pode falar de danos transgeracionais nas situações de graves violações aos direitos humanos, tema estudado primeiramente com relação aos efeitos do holocausto para os filhos dos sobreviventes dos campos de concentração, porém, atualmente aprofundado de acordo com as peculiaridades de cada lugar que sofreu abusos por parte do poder. Em tal aspecto, o dano transgeracional incide sobre aquilo que já não está, a “ausência presente”, o “não dito”, a violência silenciada e perpetuada de diferentes maneiras. Conforme definição de René Kaes, o dano transgeracional se configura como “aquello cuya inscripción no ha sido posible, ha sido negada, reprimida o forcluida: al precio de un asesinato silencioso, al precio de un blanco, de un agujero, de un eclipse del ser" 13. Na América Latina, que é o nosso foco de estudo no presente ensaio, desde os anos 1970, grupos de psicanalistas começaram a se reunir para criar formas de tratar do medo generalizado pelo terrorismo de Estado - por meio das grupoterapias14 - assim como, trocar experiências com especialistas que atendiam o grande número de exilados na Europa. Mais tarde, com as reaberturas políticas a partir da década de 80, novos Segundo René Kaes, as catástrofes sociais têm o condão de desagregar e dividir o corpo social, enquanto que as catástrofes naturais geram efeitos de solidariedade, pois as primeiras provocam rupturas na crença psíquica na representação e articulação do entorno: “el pensamiento está coartado por la dificultad de representarnos la violencia asociada a la ruptura catastrófica”. Ob. cit. p.167. 13 KAES, ob.cit.p.162. 14 Importa lembrar, que as atividades dos grupos terapêuticos também sofreram repressão nos anos das ditaduras. Conforme Kaes, estes grupos foram: “perseguidos, prohibidos o disueltos, pues eran sospechosos por ser considerados lugares de subversión social. En los hospitales, el desmantelamiento de los servicios que tenían en su seno tales encuadres fue silencioso, o racionalizado de una manera auto represiva. La práctica privada subsistió, no sin dificultades, pues había que vivir y mantener en la medida de lo posible un lugar para la palabra y el trabajo psíquico contra el silencio y el terror”. Ob. cit.p.172.

 

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temas surgiram, entre eles, o problema da transmissão do trauma para as gerações já nascidas sob a égide democrática, além da complexidade das muitas gerações afetadas15 diretamente pelas ditaduras de segurança nacional, especialmente no estabelecimento de frágeis vínculos políticos e comunitários. Quando a análise se volta para o terrorismo de Estado como tática de enfraquecimento dos grupos, percebe-se que a violência psicológica instaurada pelo pânico e terror durante as ditaduras civis militares no Cone Sul, continua a produzir seus efeitos, mesmo cessado o período político de amedrontamento. Isto porque, ao falarmos das memórias que são afetadas pela catástrofe social, importa salientar, que se está a referir a diferentes modalidades de memórias fraturadas: a do indivíduo como ser com uma história; a da espécie humana; e as dos conjuntos transubejtivos que influenciam na construção da subjetividade, pelo estabelecimento de relações com os grupos de pertencimento e de referência do sujeito16. 15

Um estudo publicado pelo CINTRAS/Chile; EATIP/AR, Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e Sersoc/ Uruguai, aborda os diversos trabalhos desenvolvidos nos países sul – americanos, acerca da transmissão do trauma destas catástrofes sociais para as gerações múltiplas, afetadas direta ou indiretamente pela violência sofrida por seus antecessores. Dita reflexão sobre a complexidade do tratar do dano transgeracional, foi referida pela equipe do CINTRAS, ao analisar o estudo com adolescentes chilenos, nascidos já nos anos 90, cujos pais sofreram perseguição política da ditadura de Pinochet: “Coincidimos con los investigadores de otros equipos que estudian la transgeneracionalidad del trauma cuando señalan que el daño producido por las experiencias traumáticas fue multigeneracional, al ser afectadas simultáneamente varias generaciones; intergeneracional, en tanto se tradujo en conflictos entre generaciones y transgeneracional, pues sus efectos reaparecen de diversos modos en las generaciones siguientes”. CINTRAS. Daño transgeneracional en descendientes de sobrevivientes de tortura. In BRINKMANN, Beatriz (org.). Daño Transgeneracional: consecuencias de la represión política en el Cono Sur.Santiago/ Chile: Gráfica LOM. 2009, p.51. 16 KAES.Ob.cit.174. Segundo este autor: “no tenemos sólo una memoria individual, sino varias: la del fantasma, memoria de lo que nunca fue; la de la verdad, memoria de lo que fue; la del cuerpo, memoria de lo que ha sido vivido

 

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Neste aspecto, o ato do testemunho instaura uma tensão para quem narra, mas principalmente para o ouvinte, sobre qual o modo de constituição de subjetividades e qual reflexo de sociedade que se quer. Conforme os estudos de Félix Guattari17, a subjetividade não diz respeito apenas ao indivíduo, mas também às influências externas, tanto de maneira positiva, com o estímulo da autonomia; quanto de forma negativa, com a imposição de barreiras ao inconsciente como a submissão e a produção de modos de vida massificados. É no sentido de constituição da subjetividade livre, apropriada pelos indivíduos por meio de processos de singularização que se postula a função política do desejo. Portanto, a tensão positiva do testemunho é um meio de “transmissão das sensibilidades”, contra o desperdício da experiência vivenciado pelo silencio e pelo medo. De maneira que, tanto o terapeuta, durante a clínica psicanalítica, quanto as autoridades investidas na responsabilidade de acolher a linguagem das testemunhas em procedimentos públicos de escuta; além da sociedade que vivencia e presencia estes atos do testemunho, acabam transformando-se em memória daquele que narra o trauma, para que seja possível reconstruir ou elaborar o que se encontrava nas zonas cinzas do silêncio18. con demasiada intensidad para ser suficientemente elaborado; y memoria de lo que no ha sido vivido para dejarse olvidar. Todas estas memorias también se combinan e interfieren constantemente, o prevalecen la una sobre la otra.”. Ob. cit.p.175. 17 GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do Desejo. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1996. 18 De acordo com René Kaes, nas situações pós-catástrofes sociais o trabalho de duelo, e de elaboração dos efeitos traumáticos na inscrição social precisam ser tratados também como uma inscrição política, que enfrenta diferentes resistências conforme o tempo em que avançam ou ficam impedidas: “las diferentes figuras de la muerte, el asesinato, la desaparición, a escala de un genocidio ( habría que decir también socio-cidio) no pueden ser tratadas por la psique como un duelo normal. (...) No hay grupo ni

 

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Ademais, a narrativa do trauma, que circula entre o privado e coletivo, pode ser um processo de singularização se respeitados tais espaços de escuta, daqueles constantemente esquecidos, as vítimas, os que tiveram sua dignidade negada. Não obstante, também cabe ressalvar uma das críticas ao impedimento do trabalho de memória no Brasil, durante quase três décadas passadas do fim dos governos militares. Como aponta Márcio Seligmann-Silva, um fato negativo da transição controlada brasileira, foi o de que as vítimas não encontraram espaços públicos para sair da condição de vítimas e se transformarem em acusadores. Os abusos e as violações da ditadura não foram tomados pelo Estado como “fatos”, pelo menos até o giro de sentido e significado das políticas de reparação, ocorrido a partir dos anos 2000, com a publicação do relatório “Direito à verdade e à memória” (elaborado pela Comissão Especial de Mortos e Desparecidos Políticos) e com a atuação da Comissão de Anistia. Sendo assim, a desmentida e a desmemoria continuaram vigendo na passagem do regime autoritário para o regime democrático, tal como a palavra dos agentes da repressão - com meios de forjar a negativa dos seus crimes ou justificar a violência massiva empreendida obteve mais êxito e crédito que a palavra dos sobreviventes, ao denunciarem seus algozes. Conforme o autor supracitado, no nosso país houve um “sequestro de provas e dos testemunhos”: O debate político não conseguiu pôr em movimento a vítima no sentido dela se transformar em um sujeito que acusa. A sociedade negou às vítimas o direito à acusação. A vítima foi tratada como alinstitución ni sociedad sin memoria, sin trabajo de historización. Las sociedades que sostienen la utopías mortíferas rechazan la memoria y la historicidad. El “no recuerdes” no está aquí ordenado por la represión del horror, sino por la anulación de la historia y de la experiencia.” KAES, ob.cit.p.185.

 

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guém alheio à esfera do direito, como um menor a ser tutelado e tratado com migalhas de justiça e de verbas.19

Mas a clausura dos testemunhos não se deu apenas no âmbito oficial. Foi uma consequência exitosa da política de terror do Estado brasileiro, a qual instrumentalizou a tortura como técnica capilar de implantação do medo e do pânico e de rompimento dos vínculos coletivos. Em tal aspecto, refere-se o estudo do Grupo Tortura Nunca Mais, sobre a transmissão transgeracional do dano no nosso país, a partir de uma política criminosa que teve como eixo estruturante as práticas de tortura para fazer silenciar a resistência. De acordo com este estudo, quando os afetados pela tortura não encontram espaços coletivos e sociais para simbolizar o trauma, o silenciamento aparece também como mecanismo de defesa, isto é, as marcas psíquicas da violência ficam encapsuladas e dissociadas dos antigos pontos de referência, não conseguindo uma reintegração com os demais20. Além disso, para a segunda e terceira geração - filhos (as), netos (as) de perseguidos políticos - também não há uma clareza de que seus assuntos mal resolvidos psiquicamente estão relacionados com o trauma não elaborado de seus antecessores, com o silêncio que tornou a história de vida des19

SELIGMANN-SILVA. O local do testemunho, p.75. “Para evitar el contacto con la experiencia de dolor y de desamparo, las marcas psíquicas de la violencia se encapsulan y disocian y, en vez de la vivencia traumática, lo que subsiste son burbujas de tiempo, zonas de silencio, fragmentos de vida que no se pueden integrar a los demás.” KOLKER, Tania. Problematizaciones Clínico-Políticas Acerca de la Permanencia y Transmisión Transgeneracional de los Daños Causados por el Terrorismo de Estado. In BRINKMANN, Beatriz (org.). Daño Transgeneracional: consecuencias de la represión política en el Cono Sur. Santiago/ Chile: Gráfica LOM. 2009,p.266. A experiência relatada pelo GTNM foi analisada a partir das sessões de grupoterapias realizadas com jovens, filhos de ex-perseguidos políticos que foram vítimas da tortura e de outras violações pela ditadura civil militar brasileira.

20

 

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tas pessoas em dramas particulares, pois, conforme o estudo acima citado, muitos jovens procuraram o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, sem associar seu sofrimento aos efeitos da violência de Estado. Segundo explicação da autora, são jovens que muitas vezes, não conheceram seus pais, tendo apenas fotos ou lembranças relatadas por outros familiares sobre eles; ou então: ...crianças que nasceram na prisão ou no meio das famílias submetidas à violência da tortura psicológica pela morte ou desaparecimento forçado de algum de seus entes queridos, sem poder dar nenhum sentido a isso; ou que estavam com os seus pais no momento da prisão, sendo abruptamente separados deles e entregues a desconhecidos, ou ainda presenciando e participando dos fatos sem poder entender a situação de sequestro e tortura21.

21

KOLKER, Tania, ob. cit. p. 268. Neste último aspecto importa relembrar as muitas histórias de ameaças de tortura aos filhos, para se conseguir informações dos pais. Há casos singulares das crianças torturadas antes mesmo do nascimento, como o de João Carlos Grabois – o Joca – quem conheceu a tortura no ventre da mãe, Criméia Schmidt de Almeida, nascido na cadeia durante o sequestro de sua progenitora. Não esquecendo que tanto o pai quanto o avô de João Carlos (André e Maurício Grabois) são desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia. Na mesma família, os tios do Joca, Maria Amélia Teles e César Teles foram sequestrados e torturados, seus filhos Janaína e Edson muitas vezes deram seu testemunho recordando as ameaças de sofrerem torturas na frente dos pais e de terem visto seus pais nos intervalos das sessões de tortura, além dos vários dias que estiveram sequestrados/ detidos, ambos com idade entre 04 a 08 anos. A trajetória da família Teles ficou nacionalmente reconhecida pela ação civil movida em São Paulo, na qual, eles conseguiram declarar em primeira e segunda instância o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra como Torturador. Conforme relatado no livro Direito à Memória e à Verdade, histórias de meninas e meninos marcados pela ditadura: “a mãe de João Carlos, Criméia, estava com oito meses de gravidez ao ser presa na Operação Bandeirante (OBAN) em São Paulo, um dos mais temidos centros de interrogatórios do regime, mantido inclusive por empresários brasileiros. Ela foi espancada e recebeu choques elétricos no seio e órgãos genitais. Depois do parto, permaneceu com o bebê por 52 dias

 

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Não obstante, cabe fazer a ressalva de que o caso brasileiro de inibição do testemunho durante a reabertura democrática não foi o único na América do Sul. Pelo contrário, mesmo nos países que tiveram uma transição política sob a forma da ruptura, com forte protagonismo dos movimentos dos familiares das vítimas da ditadura - como na Argentina - nota-se que a etapa inicial da busca pela verdade, teve características mais investigativas do que de escuta dos testemunhos. Tanto que a CONADEP (Comissão Nacional sobre o Desparecimento de Pessoas) é criticada pelos na cela. Com a irmã de Criméia, Maria Amélia, a situação se repetiu. Ela e o marido César estavam tão feridos que os próprios filhos Janaína e Edson – presos um dia depois – custaram a reconhecê-los”. Brasil. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Direito à Memória e à Verdade: histórias de meninas e meninos marcados pela ditadura / Secretaria Especial dos Direitos Humanos. – Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2009. p.66. Rose Nogueira também teve seu filho, Carlos Guilherme Clauset ameaçado com poucos dias de vida, quando da invasão da sua casa, por ser ativista da Ação Libertadora Nacional (ALN). “Mas nenhuma tortura ou doença superou o pavor de ver o filho ameaçado. Um dia, uma companheira que voltava do interrogatório lhe perguntou: “Por acaso o seu bebê é bem clarinho e tem um moisés azul?” Sim, tinha. Era ele. Rose gritou, perguntando pelo filho. A resposta que ouviu do torturador foi: “Pergunta quem faz aqui sou eu. E vamos ver se o nenê chora mais do que você quando a gente for buscar ele de novo”. Ob.cit.p.69. Há ainda, os casos de diversas crianças, filhos do exílio, nascidos durante a fuga forçada de seus pais, como Eduarda Crispim Leite e Christopher Goulart. Há o caso singular de André e Priscila que contavam com apenas 3 e 4 anos quando foram presos em Alagoas junto com seus pais Aldo Arantes e Dodora, militantes do PCdoB, assim permanecendo por mais de 4 meses. Além disso, há inúmeros casos de crianças separadas de suas famílias e enviadas a reformatórios ou “juizados de menores”, de crianças traumatizadas por presenciar a brutalidade dos arrestos e por vezes dos assassinatos de seus pais, marcas que as constituíram como sujeitos, traumas que precisam ser tidos como públicos, como parte de nossa história, não relegados a dramas intrafamiliares. A consequencia mais trágica da ocorrência desse tipo de trauma infelizmente aconteceu com Carlos Alexandre Azevedo, filho de Dermi Azevedo, que no dia 17 de Fevereiro de 2013 se suicidou com 40 anos de idade, por não mais suportar as consequencias advindas do fato de ter sido torturado com apenas 1 ano e oito meses de idade.

 

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movimentos de direitos humanos argentinos22 por não haver desenvolvido um papel de Comissão da Verdade. No Chile, as críticas também são acentuadas em relação ao trabalho da Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação e da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura: El mecanismo fundamental para imponer esta situación ha sido el silenciamiento o la tergiversación desde el poder de lo que realmente ocurrió durante la dictadura: a quién le ocurrió, cómo ocurrió, por qué ocurrió y con qué propósito. En lugar de una elaboración social, desentrañando toda la verdad histórica -sin duda dolorosa, contradictoria y conflictiva- se han ido entregando sólo fragmentos de los hechos represivos, como los contenidos en los Informes de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación y la Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura, desconectados de la finalidad política que les subyace y les da sentido.23

Ainda que com procedimentos diferenciados de reparação às vítimas e seus familiares, percebe-se que na nossa região ocorreu a tendência da privatização de memórias, isto é, do tratamento do trauma como algo integrante somente da esfera privada. Dita prática gerou a privatização da “psicologização” da violência social, como se a coletividade não fora vítima dos anos nefastos de terrorismo de Estado, como se a violência da democracia não fosse carregada com uma herança autoritária. Portanto, a opção política de preferir o silêncio público sobre os crimes da ditadura, mas especificamente, de não permitir a linguagem do testemunho em seu caráter mais amplo de “dar voz aos que já não têm voz”, transformou o sofrimento, o martírio dos centros 22

Especialmente a organização com seccionais em todo o país, H.I.J.O.S. 23 CINTRAS, ob. cit. p.44-45.

 

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clandestinos de detenção, das perseguições, do medo e da paranoia social instalados, em um segredo, que muitas vezes transbordou a capacidade de quem tinha o fardo de guardá-lo. Conforme o estudo chileno acima referido, este segredo (fruto do silenciamento) foi transmitido para a geração seguinte na forma do fantasma, visto evoluir do indizível para aquilo que não tinha mais lugar de ser verbalizado: o inominável. Tal patologia, para a “geração que vem”, pode se configurar como o “impensável24”, se não houver a elaboração do trauma, a simbolização da violência, a conexão entre autores, mandantes, lugares, estrutura política e social e os fatos que possibilitaram regimes ditatoriais com ápices do terror estatal25.

24

“El secreto inconfesable, habitante de la cripta, es transmisible a otra generación, en la cual reaparece como fantasma en la forma de actos, signos, síntomas incomprensibles por el sujeto, que no está en condiciones de desencriptar el secreto. El contenido de la cripta constituye para el sujeto un indecible, por cuanto, a pesar de estar presente psíquicamente en quien lo ha vivido, no puede hablar de ello. Al ser transmitido a la generación siguiente en forma de fantasma, por no ser susceptible de ser objeto de representación verbal, se convierte en innombrable, sus contenidos son ignorados, pero su existencia puede ser generadora de disturbios psíquicos. En la generación de los nietos ocasionará impensables, pues ésta ignora la existencia misma de un secreto que pesa sobre un trauma no superado, pudiendo generar síntomas, sensaciones y emociones bizarras, que se presentan sin correlato aparente con la vida psíquica familiar”. CINTRAS, ob. cit.p.49. 25 Esta linha de pensamento vai ao encontro dos argumentos sobre os efeitos perversos da negação dos crimes da ditadura brasileira, elencados por Márcio Seligmann-Silva: “mas o negacionismo também é perverso, porque toca no sentimento de irrealidade da situação vivida. O teor da irrealidade é sabidamente característico quando se trata da percepção da memória do trauma. Mas, para o sobrevivente, esta “irrealidade” da cena encriptada desconstrói o próprio teor de realidade do restante do mundo. E mais, o negacionista parece coincidir com o sentimento comum que afirma a impossibilidade de algo tão excepcional”. SELIGMANN-SILVA. O local do testemunho, p.67. Resta também observar que na Argentina, estes procedimentos ganharam força com os “juízos pela verdade”, durante a década de 1990 e posteriormente, com a nulidade das leis do perdão e dos indultos, têm fundamental importância na condução dos julgamentos por crimes contra a humanidade, ocorridos desde 2006.

 

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A esta transmissão do dano como o “impensável”, René Kaes qualifica como “agenciamentos catastróficos” que atacam tanto as condições intermediárias de vida dos indivíduos, quanto as condições sociais e culturais de um povo. A perpetuação das injustiças da catástrofe social tende a inverter o pacto firmado, que passa a ser constituído basicamente de sua função negativa, do apagamento dos sofrimentos, do sacrifício de uns para a continuação da comunidade, o que em longo prazo afasta o sujeito de sua historicidade. He puesto el acento de esta manera sobre las dos polaridades del pacto denegativo: una organizadora del vínculo y del conjunto transubjetivo, la otra defensiva. (…) El pacto denegativo contribuye a esta doble organización. Crea en el conjunto del no-significante, del no-transformable, zona de silencio, bolsas de intoxicación, espacios residuales o líneas de escape que mantienen al sujeto extraño a su propia historia. Detectamos los efectos en las parejas, en las familias, en los grupos y en las instituciones26.

Ou seja, se a política do testemunho não se traduzir efetivamente em uma política de escuta das vítimas, há caminhos ainda mais perversos que o do silêncio, entre eles, o esquecimento dado pelo “impensado” não elaborado, e com este, o risco de revitimizar as vítimas, deixando-as no pólo passivo, sem reconhecer sua importância social pela resistência; criando novos estigmas para elas e seus descendentes. Urge que a ressalva coletiva acompanhe a política do testemunho, caso contrário, os grupos permanecerão esquecidos, desarticulados; visto que, pensar o terrorismo de Estado, exigenos pensar acerca de uma política organizada de combate a uma cultura de resistência; de uma violência que mais do que aniquilar o sujeito, intentou desarticular os 26

 

KAES, ob.cit.p170.

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vínculos que mantinham o particular; por isto, a perspectiva precisa ser coletiva e tais questões, encaradas como problemas ou desafios sociais. Sobretudo, quando nos referimos aos testemunhos e seu papel para a simbolização da violência, estamos tratando de uma reparação política, necessariamente coletiva, de reconstrução ou instauração de novas relações sociais com o poder. Eis o porquê da necessidade de tais testemunhos serem públicos, para que existam ouvintes, para que se tenha a possibilidade de contar: “foi assim que aconteceu”, “isso me fizeram” e também de silenciar, deixando nas entrelinhas o que já não pode mais ser verbalizado, mas que ainda poder ser vivido de outra forma; sentido com a cumplicidade coletiva de compartilhar histórias e memórias, para além da cumplicidade “perversa” de desconfiança e medo, instaurada pelo terrorismo de Estado. Todavia, não se desconsidera o aspecto privado da memória do trauma, o qual Paul Ricoeur27 equaciona como: a) singular, “minhas lembranças não são as suas”; b) vinculado com o passado; c) transverso, pois memória e orientação se relacionam com a passagem do tempo não linear. Importa ressaltar que tal dimensão particular da memória, involucra-se com a sua dimensão coletiva e ambas trazem as dúvidas: como narrar o trauma e conjuntamente representar a catástrofe vivida? Há que se ter o cuidado, em diferenciar o lugar do testemunho nos espaços públicos de escuta das vítimas, mas sem deixar para segundo plano, o acompanhamento e o acolhimento terapêutico das testemunhas, visto que existem situações de invasão da intimidade, da sexualidade, de outras formas de tortura, que precisam ser elaboradas fora do âmbito coletivo. Por outro lado, para a construção permanente das subjetividades, a teoria psicanalítica - desde os 27

 

RICOEUR, Paul. ob.cit.p.141.

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tempos de Freud e Lacan - reconhece as marcas externas dos traumas individuais, sendo que em momentos de barbárie, como o são as catástrofes sociais, a violência do entorno passa a ser “aceita” pelo indivíduo. Seja para defesa da “nação” contra um “inimigo” confuso, obscuro e permeável, seja para o “progresso e desenvolvimento”, ainda que a custas de muitas vidas, ou então, numa guerra insana que produz territórios de ninguém, sem lei, nem amparo coletivo, mesmo em eras “democráticas”. No aspecto de inscrição social do trauma, o símbolo máximo de tal transgressão feita pelo terrorismo de Estado é a figura do desaparecido28. Em uma situação de normalidade, quando ocorre a perda, acabam surgindo relações de angústia e reconciliação com o objeto perdido, simbolizadas através das grandes celebrações, a exemplo dos rituais funerários. Já nos períodos de catástrofes sociais, dita simbolização não é feita, nem o luto, nem o duelo são realizados. Devido ao fato de optar-se por tratar dos efeitos do trauma que transcendem o indivíduo, torna-se preciso entender dita ruptura do inconsciente, que transforma o corpo violado em corpo que acusa e que julga, provocando no âmbito coletivo que assiste e escuta, uma reação imediata; seja de choque diante do testemunho, seja de cumplicidade com o sofrimento alheio ou de responsabilidade diante das injustiças cometidas. Quando se dá tal assunção de responsabilidade diante do 28

“Podemos dizer que o paradigma da negação da responsabilidade do Estado repressivo foi o desaparecimento forçado de pessoas, como inscrição simbólica desse trágico acontecimento. As respostas das autoridades, na época, aos familiares – com repercussões até os dias atuais – foram não somente evasivas; elas sugeriam uma variada gama de possibilidades sobre o destino dos desaparecidos: o autoexílio, o autodesaparecimento, a clandestinidade, o extermínio cometido pelos próprios companheiros de luta”. BRASIL, Vera Vital. Dano e Reparação no Contexto da Comissão Da Verdade: a questão do testemunho. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.6, jul./dez 2012. p.247.

 

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outro, pode-se dizer que ocorre o “despertar traumático”, como ação e não como mero acidente, desenvolvido por Lacan, ao realizar uma releitura da “Interpretação dos Sonhos” de Freud29. Enquanto a pergunta de Freud girava em torno de porquê dormir, Lacan expandiu o conceito de trauma freudiano, pois estendeu o sentido do confronto com a morte ao ato de acordar: “o acordar na leitura que Lacan faz do sonho, é em si mesmo o lugar do trauma, do trauma provocado pela necessidade e pela impossibilidade de responder à morte de um outro30”. Lacan pontuou a necessidade de cuidar o “intervalo que constitui o acordar”, visto que, o sonho é um instante diário entre a vida e a morte, entre o que não mais está e a reação do sujeito com suas perdas. Para o autor, o acordar é endereçado através da narrativa, constituindo uma forma de transmitir a experiência do sonho31. Ao deslocar o foco da análise para o 29

Uma das maiores estudiosas do conceito de trauma em Freud e Lacan e suas relações com a memória e com a ética é a inglesa Cathy Caruth, por isto nos utilizamos a sua análise neste artigo, como referência cruzada acerca do trabalho de Lacan. A autora nos ensina que “ao relacionar, portanto, o trauma à própria identidade do eu e à própria relação com os outros, a leitura de Lacan nos mostra que o choque de visão traumática revela, no coração da subjetividade humana, não tanto uma relação epistemológica, mas antes uma relação que pode ser definida como ética, com o real”. CARUTH, Cathy. Modalidades do Despertar Traumático (Freud, Lacan e a ética da memória). Tradução de Claúdia Valladão de Mattos. In: NESTROVSKI, Artur. SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000, p.112. 30 CARUTH, Cathy, ob. cit. p.120. A autora analisa as interpretações realizadas por Freud e Lacan, em relação ao sonho de um pai que vê sua filha queimando, diante da morte que não consegue suportar. Enquanto que para Freud, o sonho seria uma rota de fuga para o sofrimento do pai, pois “mantém o pai dormindo”, para Lacan, o sonho deixa de ser uma função do sono para ser um imperativo do acordar, para narrar a morte presenciada aos demais. pp.118-119. 31 “Explorando, portanto, implicitamente a consciência tal como ela aparece ao sobrevivente, cuja vida está intrinsecamente vinculada à morte que ele testemunha Lacan resitua a relação da psique com o real, compreendendo-a não apenas como uma questão de ver ou saber a natureza dos eventos empíri-

 

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despertar, Lacan transformou o fardo pela morte do outro, em uma responsabilidade absoluta, quase um imperativo do acordar. E esta responsabilidade urgente, numa relação ética com o real é, em outros termos, uma expressão da alteridade, pois reflete a “consciência de uma culpabilidade” devido à falta de justiça32. Enquanto para Levinas o imperativo ético se realiza ao se olhar e acolher o “rosto do outro33” – a parte mais vulnerável para o assassinato e ao mesmo cos, não como aquilo que pode ser conhecido ou não sobre a realidade, mas como a história de uma responsabilidade urgente, ou como aquilo que Lacan define nessa conjuntura, como uma relação ética com a realidade”. CARUTH, Cathy, ob.cit.p.124. 32 Levinas aponta para uma precedência da ética em relação à ontologia, demarcando a infinitude do Outro diante dos esforços de sua assimilação ao Mesmo, tão presentes no pensamento ocidental e cuja expressão extrema é o assassinato. Diante do Outro fulgura nossa responsabilidade e diante da sua negação impõem-se a justiça, vinculando a linguagem a uma dimensão não totalmente representativa e marcadamente ética. "O elo entre a expressão e a responsabilidade - condição ou essência ética da linguagem - essa função da linguagem anterior a todo o desvelamento do ser e ao seu frio esplendor permitem subtrair a linguagem à sua sujeição relativamente a um pensamento preexistente, cujos movimentos interiores ela teria unicamente a servil função de traduzir cá para fora ou de universalizar. (...) O pretenso escândalo da alteridade supõe a identidade tranquila do Mesmo, uma liberdade segura de si própria, que se exerce sem escrúpulos e à qual o estranho apenas traz incômodo e limitação. A identidade sem falha, liberta de toda a participação, independente no eu, pode no entanto perder a sua tranquilidade se o outro, em vez de chocar com ela ao surgir no mesmo plano que ela, lhe fala, ou seja, se mostra na expressão, no rosto, e vem de cima. A liberdade inibe-se então, não porque chocada por uma resistência, mas como arbitrária, culpada e tímida que é; mas na sua culpabilidade eleva-se à responsabilidade" (LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1988. págs.179 e 182). 33 Fábio Landa traça uma reflexão do trabalho do trauma pela psicanálise e do “estatuto ético do terceiro” a partir da filosofia da alteridade de E. Levinas. LANDA, Fábio. E. Lévinas e N. Abraham: um encadeamento a partir da Shoah. O estatuto ético do terceiro na constituição do símbolo em psicanálise. IN SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória e literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. p.113-124.

 

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tempo sua impossibilidade absoluta- para Lacan, o imperativo acontece no acordar, com a transmissão do horror “que se coloca entre uma repetição traumática e o fardo ético da sobrevivência34”. Ou seja, um acordar que ainda está “por acontecer” no tempo que resta, e que encontra como momento de acontecer, aquele em que se dá lugar ao testemunho. Se as técnicas subterrâneas de desvaler a vida, praticadas pelo terror de Estado das ditaduras de segurança nacional do Cone Sul, acabaram por fundir o limite entre a vida e a morte, com a tentativa de minar a pluralidade e de matar simbolicamente o outro; o despertar traumático é o momento de ruptura com este horror. Isto porque o despertar como ação (que gera seus reflexos) acontece quando os excluídos, as vítimas da violência histórica expressam a linguagem de sua dor, de seu sofrimento: A transmissão de Lacan do futuro do texto de Freud sobre a repetição, e de uma forma geral, a transmissão da escrita psicanalítica, não consiste no conhecimento de uma morte que pode simplesmente ser vista, mas, precisamente, na transmissão do ato de acordar. Abrindo os olhos outro, o acordar consiste não apenas em ver, mas em passar a outro (e outro futuro) o ver que ele não contém e nem pode conter35. (grifo nosso).

Destarte, o trabalho terapêutico precisa ser compreendido dentro do “dever de memória” e do resgate dos testemunhos e das narrativas do trauma, visto que os espaços de escuta destas narrativas são os momentos de se assumir a responsabilidade compartilhada pelo outro violado. E aqui, terapêutico adquire um sentido para além da clínica, pois é preciso haver a terapia

34 35

 

CARUTH, Cathy, ob. cit.p.131. CARUTH, Cathy, ob.cit.p.135.

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social, capaz de cicatrizar as “feridas na memória coletiva36”. Portanto, para que ocorra uma reparação integral – claro que dentro daquilo que ainda é possível reparar – torna-se necessário o estabelecimento de políticas públicas de memória, verdade e justiça que abram espaços e tempos para o testemunho, com o desejo político de escutar suas narrativas. Neste sentido, se o analista, na sessão analítica, é o fiador de um tempo em que a violência não é autorizada, realização, ao longo de todo o tratamento, da prescrição ética 'Não matarás'37; no âmbito coletivo, nós somos os analistas e fiadores deste tempo.

2. O processo transicional brasileiro e a escuta das vítimas Partindo dos delineamentos teóricos feitos na primeira parte deste artigo, bem como das referências ao cenário transicional latino-americano, vamos agora tratar mais de perto do contexto específico da transição política brasileira em relação à ditadura civil-militar. Cabe, antes de tudo, indagar se no processo de transição política brasileira o indispensável espaço de acolhimento público do testemunho ocorreu e em que medida. O marco jurídico e político da transição brasileira foi a Lei N° 6683/1979, a Lei de Anistia. A partir dela, iniciou-se de modo irreversível e paulatino a transição política rumo à democracia. Muito embora a Lei tenha surgido como uma espécie de concessão do governo militar, ela só foi possível porque a forte mobilização popular em torno da Anistia, que já vinha se 36

Expressão utilizada por Paul Ricoeur, na obra já citada, “A memória, a história, o esquecimento”. 37 LANDA, ob.bit., p.24.

 

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desenrolando desde alguns anos, criou um ambiente político e social propício para que a ala ditatorial favorável ao abrandamento do regime ganhasse a queda de braço com a chamada linha dura. A Lei N° 6683/79 foi fruto de uma batalha política que instantaneamente beneficiou milhares de pessoas, permitindo o retorno dos exilados e a progressiva libertação dos presos políticos. Paradoxalmente, e apesar de tudo isto, a Lei de Anistia foi também o passaporte dos agentes da ditadura para uma transição na qual nenhum dos seus crimes viria a ser investigado e punido. Foi uma anistia abstrata, sem individualizações38, sem espaço para que se conhecesse os fatos e as narrativas da violência sofrida e praticada. Aqui a anistia assumiu o seu sentido clássico de esquecimento, alimentando o negacionismo dos crimes praticados pela ditadura e dos atos de resistência e militância política, protagonizados pelas vítimas do regime de força. Em um cenário como este, a insistência da vítima em abrir espaço para o seu testemunho exige um esforço colossal e uma enorme capacidade de superação, e figura aos olhares incrédulos e à escuta indiferente como um ato de ressentimento, ou, para usar o termo mais comumente adotado pelos que defenderam e defendem a ditadura, de "revanchismo". Quando a memória do horror vivido em um contexto de violência massiva não encontra espaço para ser narrada na sociedade ainda traumatizada e seduzida pela falsa ideia de que é "civilizada" e não tem nenhuma conta a prestar, o ressentimento das vítimas pode se transformar em uma barreira para o esquecimento do trauma social, assumindo no plano político uma atitude de interpelação das autoridades inertes e 38

Com exceção dos que já estavam condenados pelos chamados "crimes de sangue", que foram explicitamente excluídos da anistia, todos dos movimentos de resistência armada à ditadura e nenhum dos agentes da repressão que praticaram terrorismo de Estado, já que estes não foram investigados até hoje.

 

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amortecidas e da sociedade incrédula. Em situações assim, as manifestações de ressentimento podem não ser um abuso de memória, mas sim, um último recurso que resta às vítimas dessas violências para recolocar a necessária questão do reconhecimento da gravidade do que ocorreu e do papel de resistência política exercido39. De todo modo, o puro ressentimento, assim como o próprio trauma não enfrentado terapeuticamente pela memória, não são capazes de desarmar a violência e sua reprodução mimética40. O lugar do testemunho é aquele que possibilita a reconstrução simbólica da estima perdida. A luta pela sua abertura e conquista jamais pode ser confundida depreciativamente como vingança, "revanchismo" ou ressentimento. Designar de "ressentido" o sobrevivente que luta para abrir este espaço em uma sociedade amortecida pela amnésia e pelo negacionismo é cometer uma segunda violência, não só com a vítima, mas com toda a sociedade. 39

É o que anota Reyes Mate: "O ressentimento como atitude moral nasce quando os sobreviventes constatam que a história se vai construir como sempre, de costas para os vencidos. (...) O ressentimento pessoal protesta contra essa cicatrização do tempo que converte o esquecimento numa segunda natureza, como se a sociedade amnésica fosse o natural e o recordar uma agressão á natureza." (MATE, op.cit.,p.222223). Também Maria Rita Kehl indica que a pecha de "ressentidos" atinge muitas vezes aqueles que simplesmente procuram lutar pelo reconhecimento das violências que sofreram mas que não são bemvindos em sua luta. "O expediente corriqueiro - por má-fé ou malentendido? - de chamar de 'ressentidos'aqueles que não desistiram de lutar por seus direitos e pela reparação das injustiças sofridas não passa de uma forma de desqualificar a luta política em nome de uma paz social imposta de cima para baixo" (KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir [orgs.]. O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p.123). 40 RUIZ, Castor Bartolomé. (In)justiça, violência e memória: o que se oculta pelo esquecimento, tornará a repetir-se pela impunidade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRAO, Paulo (Orgs.). Justiça de Transição nas Américas - olhares interdiscilinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Forum, 2013. prelo

 

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O apelo pela narração da memória traumática não é apenas uma necessidade terapêutica para as pessoas que sofreram a violência diretamente, mas também o é para a sociedade e suas instituições, que ainda não estão conscientes do que se passou e consequentemente não puderam regenerar a perversão do espaço comunitário, desviado para o apoio e a prática de crimes contra a humanidade. É, em verdade, uma questão de princípios. É não achar normal que o espaço público, mediante as suas instituições e grupos, possa tratar pessoas como coisas, adotando a tortura, o extermínio e a censura como práticas e políticas sistemáticas contra os próprios cidadãos. É não achar normal que o sistema político e as leis que dele emanam possam se dar às espaldas da participação popular. Em uma sociedade ainda refém do negacionismo a tendência é estigmatizar o reclamo da vítima e, ainda pior, torná-la culpada pela sua própria desventura, afinal a sociedade não teria nenhuma culpa a reconhecer. É em situações sociais como essa que se torna tão fácil, por exemplo, dizer que os frades dominicanos torturados pela "equipe" de Sérgio Fleury foram culpados pela morte de Carlos Marighella; ou de afirmar que a culpa pelo incremento da brutalidade das ações da polícia política da ditadura adveio do sequestro do Embaixador estadunidense operado por um consórcio de organizações clandestinas de combate à ditadura em 1969. O que se oculta na primeira afirmação é que "a fala na tortura é obra do torturador, não do torturado"41. A tortura consiste justamente em retirar do torturado a sua autonomia e em obrigá-lo a uma espécie de fratura moral, na qual o alívio do suplício físico pode se tornar justamente uma fratura moral perene. A informação extraída a fórceps não é obra da vontade da 41

MAGALHÃES, Mário. Marighella - o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.564.

 

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vítima, e por ela não deveria sentir-se culpada. O negacionismo ou a normalização da tortura e da violência fazem, contudo, que só reste a própria vítima como responsável pela prisão, tortura ou morte dos seus próprios companheiros, e que a já torturada consciência da vítima some-se o coro do senso comum da sociedade e até dos seus próprios camaradas. Isto leva a identificar o que fica oculto na segunda afirmação, o fato de que não foram os grupos de resistência que instauraram a ditadura, que depuseram um Presidente eleito pelo voto popular, que rasgaram uma Constituição construída por uma autêntica Assembleia Nacional Constituinte e que colocaram em ação um governo que assume como política sistemática a violação de direitos básicos da população. Quem fez isto foram os militares golpistas e os grupos sociais que os apoiaram. O culpado pela resistência não é quem resiste, mas sim o agressor que viola os seus legítimos e fundamentais direitos, ainda mais quando o faz a partir do assalto das estruturas e aparelhos do Estado. Não se pode culpar os jovens que aderiram à luta armada pela opção que fizeram, uma escolha dificílima e abnegada, mas antes disto, deve-se identificar a responsabilidade na instauração de uma ditadura que impedia de modo brutal a manifestação de qualquer ação política que lhe fosse contrária. Em suma, o aumento da brutalidade da ditadura deve-se a ela própria e aos agentes públicos e civis que a apoiaram. Até a Constituição de 1988, o cenário da transição brasileira quanto ao reconhecimento das vítimas da ditadura era o do negacionismo pleno. Até mesmo as reparações profissionais presentes na Lei N° 6683/1979 e na EC N° 26/1985 eram submergidas na ideia de apagamento da violência praticada pelo Estado e do sofrimento experimentado pelas vítimas. Muito embora a Constituinte tenha reacendido a ação política dos movimentos sociais e tenha gerado uma Constituição que trouxe muito mais direitos e princípios democráticos e de respeito aos direitos humanos que o controle  

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ditatorial da transição estivesse disposto a tolerar, o fato é que não foram içadas à luz as contas não pagas da ditadura. Este cenário começa a experimentar alguma mudança com a constituição, em 1991 de uma Comissão de Representação Externa da Câmara dos Deputados para acompanhar as buscas no cemitério de Perus em São Paulo e apoiar as famílias dos desaparecidos. Iniciativa do Deputado Nilmário Miranda esta Comissão funcionou por três anos e construiu um importante acúmulo para que surgisse em 1995, também por obra de Nilmário Miranda a Comissão Permanente de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que assumiu como primeira questão o reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pelos crimes da ditadura. Diante deste cenário e a partir da pressão feita sobre o então Presidente Fernando Henrique Cardoso, foi editada a Lei N° 9.140/1995, que reconhece a responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento de 136 pessoas e institui a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos para averiguar outros casos de desaparecimento e também de mortes, chegando-se ao montante, até agora, de 396 mortos e desaparecidos políticos. No ano de 2007 a CEMDP publicou o seu relatório no formato de um livro, intitulado "Direito à Memória e à Verdade"42, e que se tornou a primeira grande publicação estatal de reconhecimento dos crimes praticados pela ditadura. Muito embora, a Comissão tenha contado com comissionados que foram vítimas da ditadura e em suas investigações tenha contado também com o depoimento de tantas outras, ela não constituiu um espaço público de escuta das vítimas. Houve uma prioriza-

42

BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.

 

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ção do perfil investigativo da Comissão para elucidar as circunstâncias dos assassinatos e desaparecimentos. No ano de 2001, passada mais de uma década da promulgação da Constituição de 1988, é que finalmente veio a regulamentação do Art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Tal previsão constitucional é o marco jurídico-legal de um novo conceito de anistia no processo transicional brasileiro. Em primeiro lugar, é preciso registrar que ali o constituinte firmou, com clareza inequívoca, que a anistia era devida aos que “foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares”. Ou seja, nenhuma palavra aqui nem no resto do texto constitucional sobre anistia a crimes conexos ou aos que tenham promovido a repressão. Portanto, ao contrário do que foi argumentado no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 153 no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a anistia aos agentes da ditadura não foi recebida pelo texto constitucional de 198843. Por outro lado, também não foi expressamente repudiada. De todo modo, ao não mencionar o tema e ao assinalar o forte repúdio à tortura, considerada crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia44, a partir dos seus 43

Nesta altura, nos servimos dos apontamentos realizados em: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. A ambiguidade da anistia no Brasil: memória e esquecimento na transição inacabada. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (orgs.). Direito à verdade e à justiça. Belo Horizonte: Forum, 2013. prelo. 44 No Art. 5º, XLIII a Constituição estabelece esta condição, complementada pela Lei 9.455/97. Importa mencionar, além disso, o Art. 5º, §4º que reconhece a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional. O Tratado de Roma penetra a ordem jurídica interna brasileira por força do Decreto Legislativo Nº 4.388/2002, estabelecendo explicitamente que a tortura praticada de forma sistemática a parcelas da população civil, ou seja, como prática de um crime contra a humanidade é imprescritível. Por fim, a Constituição demarca no Art. 5º, XLIV que "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos arma-

 

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princípios e direitos fundamentais, a Constituição revela-se um local muito pouco confortável para abrigar a anistia aos crimes conexos, entendida como a anistia aos crimes dos agentes da ditadura. Há uma evidente contradição principiológica e valorativa no argumento de que a Constituição brasileira de 1988 endossa a anistia a tais crimes. Além de excluir da sua apreciação a anistia aos crimes da ditadura, o Artigo 8º do ADCT lançou as bases de uma verdadeira política de reparação aos experseguidos políticos. Porém, como era de se esperar naquele ambiente ainda mutilado politicamente, contaminado pelo esquecimento forçado e seguido de perto pelo autoritarismo, a lei regulamentadora dessa política de reparação sinalizada pelo texto constitucional só viria à luz mais de 20 anos depois, mais precisamente em 2001. Os anistiandos brasileiros, organizados em Associações representativas, finalmente conseguiram se articular o suficiente para pressionar o governo Fernando Henrique Cardoso a regulamentar o Art.8° do ADCT via Medida Provisória, a MP N° 2.151 de 2001, com a participação do então Ministro da Justiça José Gregori. Registre-se que o mesmo governo já tinha o mérito da instauração da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e do reconhecimento oficial da prática do desaparecimento forçado por parte do Estado brasileiro na Lei N° 9.140 de 1995, o que também foi o resultado da decisiva mobilização dos amigos e familiares de mortos e desaparecidos políticos45.

dos, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático". Ora não foi exatamente isto que fizeram os militares golpistas de 1964, com o apoio de grupos civis? 45 Importante também mencionar os esforços de diversas Comissões especiais formadas nos diferentes Estados da Federação com o intuito de fornecer reparações civis aos que sofreram sevícias e maus tratos nas mãos dos agentes da ditadura.

 

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Posteriormente, a MP N° 2.151/2001 foi convertida na Lei N° 10.559/2002. A nova lei de anistia, além de prever direitos como a declaração de anistiado político, a reparação econômica, a contagem do tempo e a continuação de curso superior interrompido ou reconhecimento de diploma obtido no exterior, institui a Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério da Justiça, e que fica responsável pela apreciação e julgamento dos requerimentos de anistia46. Observando a atuação da Comissão de Anistia, desde a sua criação, e, especialmente, durante o segundo mandato do Presidente Lula, a condução do Ministério da Justiça por Tarso Genro e a presidência da Comissão por Paulo Abrão Pires Junior, percebe-se uma radical mudança na concepção da anistia como política de esquecimento. Em primeiro lugar, ao exigir a verificação e comprovação da perseguição política sofrida47, a lei de anistia acaba suscitando a apresentação de documentos e narrativas que trazem de volta do esquecimento os fatos que haviam sido desprezados pela anistia de 1979. Passa a ser condição para a anistia a comprovação e detalhamento das violências sofridas pelos perseguidos políticos. 46

A Comissão é composta hoje por 25 Conselheiros e Conselheiras escolhidos e nomeados pelo Ministro da Justiça, e liderados pelo Presidente da Comissão de Anistia, também escolhido pelo Ministro. Dos membros da Comissão um necessariamente representa o Ministério da Defesa e outro representa os anistiandos. Os membros da Comissão possuem, quase todos, formação jurídica, e, de um modo geral, atuam na área dos direitos humanos. Os Conselheiros não recebem pagamento pelo seu trabalho, considerado, de acordo com a lei, de relevante interesse público. O conselho funciona como um tribunal administrativo, mas a responsabilidade final da decisão é do Ministro da Justiça, completando-se o processo de anistia apenas após a assinatura e publicação da Portaria Ministerial. 47 Em seu art. 2º, a Lei 10.559/2002 prevê ao todo 17 situações de perseguição por motivação exclusivamente política que justificam o reconhecimento da condição de anistiado político e os direitos dela decorrentes. Aqui estão prisões, perda de emprego, ser compelido ao exílio, ser atingido por atos institucionais, entre outras situações.

 

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Nas sessões de julgamento da Comissão de Anistia, os requerentes que estão presentes são convidados a se manifestarem, proporcionando em muitos casos importantes testemunhos, que são devidamente registrados. Os autos dos processos contêm uma narrativa muito diferente daquela que está registrada nos arquivos oficiais. Os processos da Comissão de Anistia fornecem a versão daqueles que foram perseguidos políticos pela ditadura militar, contrastando com a visão, normalmente pejorativa que sobre eles recai a partir dos documentos produzidos pelos órgãos de informação do período. Durante a gestão de Tarso Genro no Ministério da Justiça e de Paulo Abrão Pires Junior como Presidente da Comissão de Anistia, a Comissão passou a implementar políticas de memória. Umas das mais expressivas e que vem alcançando grande repercussão nacional são as Caravanas da Anistia. Nelas, a Comissão se desaloja das instalações do Palácio da Justiça em Brasília e percorre os diferentes Estados brasileiros para julgar requerimentos de anistia emblemáticos nos locais onde as perseguições aconteceram, realizando os julgamentos em ambientes educativos como Universidades e espaços públicos e comunitários48. 48

Até março de 2013, 66 Caravanas foram realizadas em todo o Brasil. Em recente publicação, apoiada pelo Projeto Marcas da Memória, está o detalhamento das primeiras 50 Caravanas realizadas acompanhado de textos escritos sobre o significado das Caravanas, de autoria de diversas personalidades dentre artistas, intelectuais, pesquisadores, ex-perseguidos políticos, juristas, jornalistas, entre outros. Ver: COELHO, Maria José H.; ROTTA, Vera (orgs.). Caravanas da Anistia: o Brasil pede perdão. Brasília: Ministério da Justiça; Florianópolis: Comunicação, Estudos e Consultoria, 2012. Uma descrição mais sucinta de todas as Caravanas realizadas de 2007 a 2010 pode ser vista em: Ações Educativas da Comissão de Anistia - relatório de gestão 20072010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. Para as Caravanas mais recentes, inclusive com vídeos, entrevistas e transcrição de depoimentos, ver o Blog do Ministério da Justiça no site: http://blog.justica.gov.br.

 

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Durante esses julgamentos, todos os procedimentos, inclusive os debates e as divergências entre os Conselheiros e as Conselheiras, são realizados às claras, diante de todos os presentes e contando sempre com o testemunho emocionado de muitos anistiandos e anistiandas. Esses testemunhos expressam de modo cristalino as características do testemunho como ligação entre memória e história. A experiência das Caravanas da Anistia permite que se vivencie algo insubstituível: testemunhar o testemunho. A narrativa do sofrimento é quase impossível, mas, como disse Adorno, é a condição de toda verdade49. É a possibilidade de recolocar no plano simbólico a violência negada e repetitiva50. Os efeitos multiplicadores e educadores das Caravanas são visíveis. Elas dialogam com públicos de jovens, adultos e idosos provenientes dos mais diferentes grupos sociais, projetando-se igualmente em inúmeros registros da mídia impressa51 e televisiva. 49

ADORNO, Theodor W. Dialectica negativa. Tradução de Alfredo Brotons Muñoz. Madrid: Akal, 2005. p.28. 50 Em 2012, em meio ao Festival de Cinema do Rio de Janeiro, ocorreu o lançamento do documentário "Eu me lembro", de Luiz Fernando Lobo, que faz um registro das Caravanas da Anistia a partir das filmagens feitas em todas as Caravanas ocorridas e contando com entrevistas das pessoas que foram anistiadas nessas Caravanas. O filme foi financiado com verba do Edital Marcas da Memória. Divulgado anualmente desde 2010 o Edital Marcas da Memória faz parte das políticas de memória executadas pela Comissão de Anistia e tem por objetivo destinar verba pública a projetos culturais, artísticos e científicos voltados ao resgate da memória política brasileira. Ver: BAGGIO, Roberta Camineiro. Marcas da Memória: a atuação da Comissão de Anistia no campo das políticas públicas de transição no Brasil. In: Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, Vol. 48, N. 2, p. 111-118, mai/ago 2012. 51 Ver: SILVA FILHO, José Carlos. A Comissão de Anistia e a Concretização da Justiça de Transição no Brasil - Repercussão na Mídia Impressa Brasileira - Jornal O Globo - 2001 a 2010. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRAO, Paulo (Orgs.). Justiça de Transição nas Américas - olhares interdiscilinares,

 

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O momento alto das Caravanas e de todas as sessões de apreciação de requerimentos de anistia é, sem dúvida alguma, a realização dos testemunhos sempre que os requerentes ou seus conhecidos e familiares encontram-se presentes. Significativo também, o que já indica a mudança de sentido da anistia a partir das práticas da Comissão e do que estabelece o texto constitucional, é o pedido formal de desculpas em nome do Estado brasileiro aos que por ele foram perseguidos no passado52. fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Forum, 2013. prelo. 52 Diante disto e de tantas outras ações que vem sendo desenvolvidas pela Comissão de Anistia soa no mínimo incompreensível a crítica feita por Glenda Mezarobba de que o fato de a Comissão ser chamada de Comissão de "Anistia" seja o suficiente para desacreditar as suas ações. A autora parece não perceber o aspecto libertário e memorialístico presente na palavra "anistia" e o seu caráter historicamente ambíguo no Brasil. Ela ainda afirma o seguinte: "Como se pode conceber que tais perseguidos precisem, ainda hoje, ingressar no órgão instalado no Ministério da Justiça com um pedido de anistia política e, em caso de tal pedido ser aceito, aguardar pela publicação da 'concessão do benefício' no Diário Oficial da União, exatamente como era no governo do general João Baptista Figueiredo, depois da aprovação da anistia? Por que as vítimas, e não o Estado, têm de pedir perdão pelos sofrimentos que lhes foram impingidos? Isso sem mencionar as recémcriadas Caravanas da Anistia, parte integrante de um projeto de educação em direitos humanos da comissão, cuja proposta é percorrer todos os estados do país, difundindo 'conhecimento histórico' e buscando mobilizar a sociedade para o tema, inclusive com o julgamento de casos, algumas vezes na presença do próprio ministro da Justiça. Se em sentido amplo o significado da anistia é esquecimento, o que seria isso, senão a permanência da lógica do arbítrio, da falta de memória, da omissão, ainda que em sua concepção os objetivos a serem realizados possam ser outros?" (MEZAROBBA, Glenda. O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson [Orgs.]. O que resta da ditadura - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p.117). Ora, pressupõe-se que todo o pesquisador quando se debruça sobre um fato da realidade que estuda busque fazê-lo aproximando-se deste fato. Diante das observações feitas pela autora, é possível deduzir que não ocorreu, no seu caso e com relação às Caravanas da Anistia, tal aproximação. Para começar, quem pede perdão, como já foi mencionado, não são as vítimas e sim o Estado. Em segundo lugar, a anistia da qual trata a Lei N° 10.559/2002 e a Constituição

 

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Tal pedido é formulado de viva voz pelo Presidente da sessão ao comunicar o resultado de deferimento do pedido e integra o texto do voto vencedor53. em seu Art. 8° do ADCT não é a anistia penal, volta-se para o aspecto da reparação. Tanto a Lei N° 6683/1979 como a EC N° 26/1985, além de tratarem da anistia penal, também estabeleceram, ainda que de modo restrito, o direito à reparação, o que ajuda a explicar porque o tema da reparação ficou vinculado ao tema da anistia. Porém, a Constituição de 1988 desvincula a reparação da idéia de "crime político" e a aproxima do conceito de "perseguição política", mudando radicalmente o sinal. O fato de esta reparação, que não é só econômica, mas é também moral, ser chamada de "anistia" não a torna algo arbitrário e tampouco a vincula à noção de esquecimento. O significante anistia comporta outros significados, especialmente em um país como o Brasil, no qual o termo tem experimentado flagrante ambiguidade, já que expressa igualmente uma conquista obtida por impressionante mobilização popular e estabelece o marco da redemocratização brasileira (Ver: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. A ambiguidade da anistia no Brasil: memória e esquecimento na transição inacabada. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado [orgs.]. Direito à verdade e à justiça. Belo Horizonte: Fórum, 2013. prelo). Quanto ao reclamo de Mezarobba de que o procedimento da concessão da reparação seja igual ao da época de Figueiredo, importa dizer que o Estado não deve mesmo conceder de ofício tal reparação. É um direito do experseguido político querê-la ou não, havendo até mesmo os que a repudiam. E é claro que o pedido deverá ser analisado e, caso concedido, que a decisão seja publicada mesmo no Diário Oficial da União, como o devem ser todos os atos públicos. Basta lembrar que cerca de 34% dos pedidos feitos à Comissão foram indeferidos, e que muitos não guardavam qualquer relação com a perseguição política praticada na ditadura. Por fim, as aspas que a autora coloca na expressão "conhecimento histórico", atribui uma conotação pejorativa às Caravanas da Anistia, o que é grave caso nos lembremos de que nelas o ponto alto é justamente o testemunho dos que foram perseguidos politicamente. Figuras como Clara Scharf, Teodomiro Romeiro dos Santos, Gilney Vianna, João Vicente Goulart Filho, Joseph Comblin, Rose Nogueira, Alípio Freire, Maurice Politti, Perly Cipriano, Suzana Lisboa, Iara Xavier Pereira, Raul Pont, Hildegard Angel, Carlos Eugênio da Paz, Denise Crispim, e tantos outros já deram seu testemunho em Caravanas que reunem jovens, adultos e idosos em locais públicos e espaços educativos. Afirmar que estes e tantos outros testemunhos não contribuem para divulgar conhecimento histórico sobre a ditadura é no mínimo estranho. 53 Reforçando o reconhecimento do dano transgeracional, a Comissão de Anistia, tanto em meio às Caravanas como em meio às suas

 

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Ampliando a reparação e evidenciando o cuidado e a preocupação com o olhar das vítimas da repressão ditatorial, a Comissão de Anistia lançou em março de 2013 o Projeto Clínicas do Testemunho, que pretende fornecer assistência psicológica aos que foram atingidos pela repressão política. O projeto contou em sua preparação com o auxílio de especialistas da área e será executado em parceria com instituições aprovadas audiências regulares em Brasília já promoveu sessões de apreciação de requerimentos de filhos de perseguidos políticos, que reivindicavam prejuízos próprios pela perseguição que seus pais sofreram, seja por terem sido diretamente atingidos pela brutalidade dos agentes da repressão, seja por terem sido forçados a viver no exílio ou na clandestinidade ou serem estigmatizados como filhos de terroristas e subversivos. Alguns dos casos mais marcantes são os de Eduarda Crispim Leite e Carlos Alexandre Azevedo. Eduarda Crispim Leit teve o seu requerimento de anistia apreciado e deferido no dia 06/03/2009. Emocionada, em seu testemunho narrou sobre o drama de nunca ter conhecido pessoalmente o seu pai, Eduardo Leite, o Bacuri, morto após intermináveis torturas praticadas pelos agentes da repressão quando ela ainda estava no ventre materno, e do seu pai não ter quase nenhum registro ou objeto pessoal, já que ele vivia mergulhado na clandestinidade. O caso de Eduarda e também de Denise Crispim, sua mãe, é contado de modo profundo e delicado no filme "Repare Bem", dirigido pela atriz portuguesa Maria de Medeiros e financiado por verba oriunda do Edital Marcas da Memória. O filme "Repare Bem" foi lançado em meio à 55a. Caravana da Anistia, feita na Cinemateca em São Paulo no dia 08/03/2012 em homenagem ao dia da mulher. Já o caso de Carlos Alexandre Azevedo foi apreciado e deferido no dia 13/01/2010, e em seu testemunho ele afirmou o quanto era importante poder falar do que passou e se sentir compreendido pelo Estado ali representado pela Comissão. Em matéria publicada na Revista Isto É em janeiro de 2010 afirmou: “Muita gente ainda acha que não houve ditadura nem tortura no Brasil. No julgamento, em Brasília, me senti compreendido. As pessoas sabiam que o que eu vivi foi verdade. A indenização não vai apagar nada do que aconteceu na minha vida. Mas a anistia é o reconhecimento oficial de que o Estado falhou comigo. Para mim, a ditadura não acabou. Até hoje sofro os seus efeitos. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social” (AZEVEDO, Solange. "A ditadura não acabou". In: Isto É independente, n.2099, 29 janeiro de 2010. Disponível em: http://www.istoe.com.br/reportagens/46424_A+DITADURA+NAO +ACABOU+. Acesso em 19/04/2013). Como já foi destacado acima, infelizmente Carlos Alexandre não resistiu às sequelas nele deixadas pela brutalidade da ditadura e veio a se suicidar em fevereriro de 2013.

 

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em Edital público que receberão verba, apoio e estrutura para dar conta de prover essa assistência54. Na prática, portanto, a Comissão de Anistia tem se revelado o único espaço público de escuta das vítimas da ditadura civil-militar no conjunto dos mecanismos transicionais implementados no Brasil. Mas não deveria ser assim. Em nosso entendimento, a Comissão Nacional da Verdade, instalada no início de 2012 a partir da Lei N° 12.528/2011 deveria igualmente se transformar em um espaço público do testemunho dos perseguidos pela ditadura. Uma das principais razões é a alta visibilidade e mobilização social das quais se revestiu o processo de discussão, criação e constituição da CNV. Seria a ocasião perfeita para ampliar os importantes e necessários efeitos da escuta pública do testemunho, o que poderia ser feito até mesmo mediante convênios com canais públicos de televisão para amplificar o impacto dos testemunhos, lembrando, por exemplo, o que ocorreu na Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul. Todavia, passado já um ano da constituição da CNV, o que se percebe é a eleição de uma estratégia eminentemente investigativa, o que traz dois graves problemas: o testemunho vira depoimento, e as audiências são secretas55. Membros da CNV tem repetido 54

O projeto será executado primeiramente nas cidades de São Paulo, Porto Alegre, Recife e Rio de Janeiro, com a expectativa de ampliação para outras cidades em uma segunda fase. Para maiores informações ver: http://blog.justica.gov.br/inicio/tag/clinicas-do-testemunho/ (Acesso em 14.04.2013). Outro aspecto digno de nota é que a experiência das Clínicas do Testemunho poderá ser aproveitada para que se efetive um projeto semelhante para o tratamento de vítimas das atuais práticas criminosas de agentes públicos, especialmente, da tortura, ainda numerosa no país. 55 Compartilham dessa avaliação Marcelo Cattoni e Emilio Peluso: "(...) há uma série de razões para que uma comissão estabeleça audiências públicas. Elas podem permitir um envolvimento maior da sociedade na questão de revolver devidamente seu passado em prol de um dever consciente de memória; encorajam o conhecimento do sofrimento de

 

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que o produto principal da Comissão será o relatório final e que, portanto, os depoimentos das vítimas, assim como o dos perpetradores deverá ser secreto, pois do contrário as investigações seriam prejudicadas. Cremos, porém, que o tom investigativo deveria se concentrar mais em relação às falas dos perpetradores, estas sim entendidas como depoimentos. Não vemos razão para fazer o mesmo com os testemunhos das vítimas. Os testemunhos se traduzem em práticas terapêuticas para as vítimas; ao mesmo tempo em que são momentos pedagógicos para o conjunto social, pois este passa ao menos, a discutir a eleição dos “bodes expiatórios” e rever os rótulos de “inimigos sociais” impostos por quem usurpara o poder. Neste aspecto, o caso brasileiro, tão repleto de singularidades, ainda que pesem os longos anos de política do esquecimento, de impedimento dos testemunhos, de instrumentalização com a posterior “banalização” da tortura; pode apresentar soluções diferenciadas e mais integradas para uma política pública de reparação das vítimas. Em outras palavras, uma das grandes vantagens de se fazer uma Comissão da Verdade muitos anos depois da reabertura democrática, é que já não será preciso ou justificável, que tal Comissão se curve aos vícios do poder (como aconteceu nos países vizinhos). vítimas que pode cooperar para a diminuição da negação da verdade por amplos setores da sociedade; e, também, tornam o próprio trabalho da comissão mais suscetível de ser compreendido por toda a esfera pública. Isto torna possível mudar o foco para unicamente a produção do relatório final, deslocando-o para o próprio processo de desenvolvimento da busca pela verdade. O exemplo sul-africano, neste ponto, é marcante: horas de relatos eram transmitidos ao vivo pelas rádios, assim como um programa semanal de resumo dos depoimentos alcançou um dos maiores índices de audiência da televisão local (OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; MEYER, Emilio Peluso Neder. Comissão Nacional da Verdade e sigilo: direito à memória e à verdade? Revista Internacional Direito e Cidadania, São Paulo, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves: A verdade e o acesso à informação como direitos humanos, 2013).

 

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Outro fator importante, é que a Comissão da Verdade brasileira, pode aprender com os erros cometidos pelas Comissões da Verdade anteriores, no continente56; neste caso, sendo de suma importância o espaço dado ao testemunho como espaço de escuta das vítimas. Neste sentido, há uma brutal diferença no tratamento dado à palavra das vítimas, dentro do âmbito do testemunho e na maneira de se acolher a palavra dos seus algozes, esta última sob a forma de depoimento. Enquanto a primeira possibilita a narrativa do trauma, com a aceitação da linguagem no sentido mais amplo, com a publicização dos testemunhos para que mais pessoas possam ser ouvintes da história revivida; a segunda tem a necessidade de buscar informações que até hoje foram negadas, constituindo-se do aspecto investigativo, assim como se faz em qualquer produção de inquérito. Tal decisão não é uma tarefa fácil, porém, é o que diferencia uma Comissão comprometida com o direito à verdade, de outras constituídas apenas formalmente pelo Estado. Contudo, a Comissão brasileira se aproxima de quase 01 ano de funcionamento, sem estabelecer vínculos de transparência com a sociedade sobre o trabalho 56

Um dos estudos recentes sobre as Comissões da verdade foi o de Eduardo González Cuevas, no qual o autor disserta acerca da evolução das Comissões conforme os Estados e as situações de violência massiva, em que surgiam, inclusive refere que, hoje em dia, as Comissões da verdade tem se desenrolado de uma maneira mais complexa e com a tendência a tratar de temas de violência massiva que se perpetuam também nos Estados com regimes democráticos: “assim, por exemplo, hoje seria provavelmente inaceitável que o mandato de uma comissão não mencionasse explicitamente a violência contra as mulheres, contra as crianças e outros setores especialmente vulneráveis ou marginalizados. Ao mesmo tempo, este compromisso com as diversidades resulta em uma ampliação das capacidades técnicas desejadas às pessoas das comissões.” CUEVA, Eduardo González. Até onde vão as comissões da verdade? In: REÁTEGUI, Félix (org.). Justiça de transição: manual para a América Latina. Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição , 2011.p.348.

 

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até então desenvolvido. Apesar do site da Comissão ter ganhado muito em qualidade nos últimos meses57, tornando-se mais acessível ao cidadão, ainda falta o estabelecimento da comunicação direta com os grupos sociais e a prestação de contas das atividades desenvolvidas, por meio de relatórios periódicos, para que seja possível haver certa ciência de qual caminho será traçado até o relatório final58. Por outro lado, ressalta-se a importância da atuação das Comissões Estaduais da Verdade, criadas via decreto dos governadores ou via procedimento legislativo (como por exemplo, a Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva” de São Paulo). O trabalho destas Comissões pode auxiliar qualitativa e quantitativamente as investigações da Comissão Nacional. Mas para isto, é necessário em primeiro lugar o aparelhamento de suas estruturas físicas - pois seus membros também são poucos – que pode ocorrer com a cessão de funcionários públicos pelos poderes que as instituíram. Contudo, mais além de um corpo de funcionários é preciso também que tais Comissões estejam dispostas a traba57

Ver: http://www.cnv.gov.br (Acesso em 19/04/2013). Em matéria vinculada no dia 31 de janeiro de 2013, o jornal Brasil de Fato, trouxe as análises parciais do observatório da Comissão da Verdade, realizado por três pesquisadoras do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Segundo a reportagem “Um dos pontos destacados pelo relatório é a ausência de divulgação sistemática dos trabalhos da CNV, algo que poderia ser aprimorado para viabilizar uma mobilização mais intensa da sociedade. A publicação de relatórios parciais seria o caminho adequado, porém essa prestação de contas tem acontecido apenas por meio de notícias no site que são replicadas nas redes sociais Facebook e Twitter. “Essa prestação de contas com notícias é vaga em vários sentidos e essa é a transparência que tem se delineado”, aponta Moniza. Segundo o relatório, não é possível identificar nem mesmo quantas pessoas foram ouvidas pelos comissionados até agora, tampouco todos os assuntos abordados nas oitivas” (VIRISSIMO, Vivian. Métodos da Comissão da Verdade dificultam monitoramento. In: Brasil de Fato, 30 jan. 2013. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/11780 . Acesso em 19/04/2013). 58

 

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lhar em rede, por meio de Convênios de pesquisa com Universidades e também com outros órgãos ou organizações que tratem dos demais aspectos envolvidos na reparação às vítimas.

Considerações Finais O que é necessário compreender é que o testemunho não se esgota e nem se inicia com o ato performativo diante das Comissões da Verdade, pois necessita de um acolhimento anterior, prestado pelas redes e de um acompanhamento profissional posterior, dado por especialistas no tratamento de traumas sociais, a fim de que a vítima não seja “torturada” novamente pelas lembranças traumáticas. As ações empreendidas pela Comissão de Anistia tem servido de importante contraponto a esta tendência, mas é preciso que elas sejam ampliadas nas práticas das instituições e da sociedade. Ressaltamos a intermitência do testemunho, porque a incipiente experiência brasileira tem demonstrado dificuldades em atuar de maneira transdisciplinar no tratamento do trauma, o que pode gerar sérios danos futuros, como o de transformar o que deveriam ser espaços do testemunho, em lugares de inquisição das vítimas, sem sua escuta, verticalizados, construídos sem a participação social ou sem o objetivo de instaurar novos vínculos políticos. O risco que se corre é o de transformar os testemunhos, ora experiência, linguagem performativa e sentimentos de histórias particulares e coletivas, em letras mortas consignadas no relatório final, sem o caráter imprescindível da cumplicidade popular. Como as Caravanas da Anistia têm mostrado plenamente, o essencial nesta batalha pela memória é a promoção de um processo de educação em Direitos Humanos e sensibilização de jovens, adultos e idosos, que tem a oportunidade de presenciar o testemunho  

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dos ex-perseguidos políticos. Tratar o testemunho apenas como depoimento é desperdiçar uma grande chance. No momento em que se escreve este artigo resta ainda mais um ano de trabalho para a CNV, com alguma possibilidade de que haja uma ampliação do prazo de funcionamento, dadas as pressões que já se iniciam a partir de movimentos sociais organizados. Esperamos que ainda seja possível reverter a tendência até aqui esboçada de deixar em segundo plano o testemunho. De todo modo, independentemente dos rumos que a CNV venha a tomar até a conclusão dos seus trabalhos, são promissores os resultados a serem colhidos pelas ações de acolhimento dos testemunhos das vítimas que vem sendo praticadas pela Comissão de Anistia. E, certamente, a apresentação do relatório final da CNV não encerrará o processo transicional brasileiro, ainda carente de muitos avanços e etapas, como nos mostra a pendência de uma condenação internacional do país diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja sentença ainda está longe de ser plenamente cumprida, e como nos mostra a timidez do Brasil em promover a necessária reforma das suas instituições de segurança pública. A simbolização da violência sofrida pode e deve ser promovida e incentivada por políticas públicas, mas não se esgota nas medidas oficiais, pelo contrário, adquire força e significado pela participação do povo que sofreu tamanhas injustiças, quando se colore a rua, de memórias e de esperanças.

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Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/11780 . Acesso em 19/04/2013.

 

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Naomi  Roht-­‐Arriaza1  

Em suas duas primeiras décadas, a agendada justiça transicional focalizou-se centralmente em violações de direitos básicos à integridade física. Os programas iniciais de reparações também responderam a esse restrito conjunto de violações: reparações foram pagas por conta dos mortos, mas apenas mais relutantemente aos vivos, em lugares como Chile ou Argentina. Reparações, tanto por meio das cortes, quanto por meio de programas administrativos dos governos, eram geralmente limitadas, quando sequer providas, a compensações pecuniárias por mortes, desaparecimentos, tortura, detenções arbitrárias ou exílios injustificados, e na forma de serviços de saúde e educação aos sobreviventes e às famílias de vítimas de tais violações. Em 2012, mais e mais vozes estão conclamando às autoridades políticas para que deem atenção a um conjunto mais amplo de violações de direitos, no que

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Professora de Direito, Universidade da Califórnia, Hastings College of Law. Esse artigo foi publicado originalmente em SHARP, Dustin (editor). Transitional justice and economic violence. Springer Books, 2013 e gentilmente cedida pela autora a tradução e publicação em português aos organizadores do livro. Tradução: Lucas de Oliveira Gelape, Mariana Rezende Oliveira e Jessica Holl. Revisão da tradução: Emilio Peluso Neder Meyer.

 

Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais

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tange à justiça transicional2. Isso se deve, em parte, à contínua fragilidade dos países pós-conflitos e pósditaduras, nos quais a marginalização econômica e social estimula a violência contínua e desencoraja o entusiasmo pela reforma democrática. As esperanças iniciais de que julgamentos e comissões da verdade focadas em crimes centrais e violações de direitos civis e políticos conduziriam a democracias robustas e inclusivas têm se mostrado, não surpreendentemente, mais complicadas. Críticos, incluindo muitos de países que implementaram uma ou mais medidas de justiça transicional, começaram a notar que, apesar da abundância de medidas dessa natureza, a vida cotidiana da maioria havia pouco mudado ou mesmo se tornado pior. A crítica à justiça transicional como demasiadamente “de cima para baixo”, por demais conduzida pela elite e muito suscetível a doadores ao invés de prioridades locais, fundiu-se com um sentido de que a ênfase nos direitos civis e políticos na justiça transicional reflete os privilégios que esses recebem no discurso ocidental de direitos. Há agora um reconhecimento de que a justiça é mais ampla do que apenas a justiça criminal e que analisar a raiz das causas dos conflitos é componente chave da busca pela verdade. A visão predominante insiste que direitos econômicos e sociais devem ser devidamente considerados tanto no que tange às violações, quanto em suas reparações. Ampliar a agenda da justi2 Houve algumas defesas iniciais de uma visão mais ampla da justiça transicional para incluir direitos econômicos, sociais e culturais (ESC). Um trabalho seminal sobre a necessidade de distribuição ao longo da justiça reparatória foi MANI, Rama. Beyond Retribution: seeking justice in the shadows of war. Cambridge: Polity Press, 2002. Outro esforço inicial para conectar impunidade e reparação para direitos ESC, embora não explicitamente no contexto da justiça transicional, está em UNITED NATIONS SUB-COMMISSION ON THE PROMOTION AND PROTECTION OF HUMAN RIGHTS. Final Report on the Question of the Impunity of Perpetrators of Human Rights Violations (Economic, Social and Cultural rights). (E/CN.4/Sub.2/1997/8). 1997.

 

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Naomi Roth-Arriaza

ça transicional para que esta considere a violência econômica apresenta desafios específicos para a teoria e a prática das reparações. Os Estados onde as reparações são necessárias são, geralmente, pobres, com muitos desafios simultâneos e poucos recursos. Eles enfrentam a falta de infraestrutura adequada e oportunidades de emprego, oferta intermitente ou não existente de serviços básicos e sistemas políticos caracterizados por clientelismo/apadrinhamento, tensões étnicas e/ou frágeis acordos pós-conflito. O número de vítimas/sobreviventes chega a dezenas ou mesmo centenas de milhares, com necessidades agudas e variadas. Vários desses Estados recebem quantidades significativas de ajuda externa, mas tais ajudas tendem a ser por curto prazo e inconstantes. As causas subjacentes de conflitos armados tendem a ser tanto estruturais e relacionadas a recursos pecuniários quanto ideológicas. Ainda que haja considerável apoio à ideia de que a justiça transicional precisa, de forma geral, lidar mais centralmente com direitos econômicos, sociais e culturais (direitos ESC), não está claro como as reparações encaixam-se nesse cenário. Por um lado, se direitos ESC devem ser assunto de investigações, relatórios e recomendações de comissões da verdade3 e promotores devem promover ações penais ao menos pelas violações de direitos ESC que também violam o Direito Humanitário4, então seguir adiante com algum tipo de reparação seria necessário para dar uma expressão concreta à busca pela verdade e ao reconhecimento de 3

Ver o capítulo de Sharp na obra SHARP, Dustin (ed.). Transitional justice and economic violence. New York: Springer Books, 2013, para uma discussão de como recentes comissões da verdade, incluindo aquelas da Libéria, Serra Leoa, Timor Leste e de outros países têm lidado com violações de direitos ESC. 4 SCHMID, Evelyne. “War Crimes Related to Violations of Economic, Social and Cultural Rights.” Heidelberg Journal of International Law, v. 71, n. 3, 2011. p. 540.

 

Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais

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injustiças, especialmente aquelas julgadas graves o suficiente para serem punidas. Ultrapassar a compreensão de direitos ESC apenas como condições de pano de fundo para lidar com o que as “garantias de não repetição”5 de tais violações podem implicar, requererá atenção minuciosa para as retificações e reparações. Violações de direitos ESC podem ter um efeito devastador, frequentemente estendendo-se por várias gerações, uma vez que às vítimas são negados serviços educacionais e médicos, proteção social e oportunidades de trabalho. Em situações de conflitos armados, privações de terra, comida, água e cuidados médicos podem matar um grande número de pessoas, e mesmo aqueles que sobrevivem podem sofrer danos a longo prazo que afetam a qualidade e duração de suas vidas. Expandir o foco das violações de direitos ESC para incluir crimes econômicos, como corrupção e usurpação, também poderia proporcionar fundos para programas de reparações6. Por outro lado, algumas precauções devem ser tomadas. Reparações para violações do direito são necessariamente limitadas, direcionadas e incompletas. Como muitos estudiosos têm destacado: “em casos nos quais a exploração econômica tem sido sistemática e institucionalizada, reparações individuais são inadequadas. De fato, reparações, ao individualizar a compensação, podem impedir mudanças sistêmicas ao

5

UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Basic Principles and Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross Violations of International Human Rights Law and Serious Violations of International Humanitarian Law. A/RES60/147, 16 dez. 2005. 6 Ver, mais amplamente, CARRANZA, Ruben. Plunder and Pain: Should Transitional Justice Engage with Corruption and Economic Crimes? International Journal of Transitional Justice, v. 2, no. 3, p. 310330, 2008.

 

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substituir a redistribuição”7. Logo, se o objetivo é obter direitos ESC para todos, reparações são, no melhor dos casos, um paliativo e, no pior dos casos, uma distração. Elas também podem gerar novos conflitos entre recursos destinados aos pobres e aqueles reservados para um subconjunto dos pobres conhecidos como “vítimas” — muitos dos quais podem não ser os mais necessitados8. Ademais, usar um programa de reparações para tentar alcançar mais profundamente desigualdades estruturais é algo repleto de dificuldades, desde as somas astronômicas necessárias até a inabilidade de determinar adequadamente a classe a ser beneficiada9. E, reciprocamente, tentar proporcionar reparações para uma categoria demasiadamente ampla de violações não será apenas proibitivamente caro, mas gerará o risco de transformar as reparações em uma “teoria abrangente” com vistas a criar uma grande mudança social — uma carga que nenhum esforço de reparações pode suportar. Este artigo desenvolve-se da seguinte maneira: uma breve compilação de definições e descrição de tipos de reparações e suas potenciais contribuições pa7

MUVINGI, Ismael. Sitting on Powder Kegs: Socioeconomic Rights in Transitional Societies. International Journal of Transitional Justice, v. 3, n. 2, 2009. p. 180. 8 Esse é o argumento usado pelo Presidente Mbeki da África do Sul contra reparações para vítimas de violações de direitos da era apartheid. Ver também MILLER, Zinaida. Effects of Invisibility: In Search of the ‘Economic’ in Transitional Justice. International Journal of Transitional Justice, v. 2, n. 3, 2008. p. 285 (declarando que “apenas certas vítimas se tornam completamente parte da narrativa da reconciliação. Ao sofrimento de muitas vítimas vivas é negado reconhecimento ou é ele relegado a um nível inferior de significado, porque seu sofrimento é visto como politicamente problemático ou ambíguo”). 9 Para uma consideração da evolução do programa de reparações do Peru à luz dessas preocupações, ver GARCIA-GODOS, Jemima. Victims Participation in the Peruvian Truth Commission and the Challenge of Historical Interpretation. International Journal of Transitional Justice, v. 2, no. 1, p. 63-82, 2008.

 

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ra a proteção e garantia de direitos ESC, seguida por uma verificação de como programas administrativos de reparações já existentes têm lidado com direitos como educação, saúde e habitação no contexto de “reparações integrais” para outros tipos de violações. Em seguida, o artigo desvia seus esforços para lidar diretamente com violações de direitos ESC, especialmente advindos de deslocamentos forçados e expropriação de terras e propriedades. Finalmente, reflete sobre como programas de reparações poderiam ser mais efetivamente usados para lidar com violações de direitos socioeconômicos, especialmente onde tais violações derivam de discriminação e exclusão sistemáticas.

Histórico e definições A. Direitos econômicos, sociais e culturais Direitos econômicos, sociais e culturais têm uma longa genealogia em teorias de justiça social, mas foram claramente definidos como “direitos humanos” desde 1948. A Declaração Universal dos Direitos Humanos enumera o direito a um padrão de vida adequado, incluindo alimentação e abrigo, o direito à educação, à saúde física e mental, à seguridade social, a condições dignas de trabalho, à proteção a crianças e à maternidade, aos benefícios da cultura e à propriedade. O subsequente Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais esclareceu muitos destes direitos, ainda que, devido à sua origem na Guerra Fria, tenha excluído o direito à propriedade. Convenções regionais de direitos humanos, incluindo a Europeia, a Interamericana e a Africana incluem o direito à propriedade, embora variem na extensão na qual os direitos

 

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ESC são judicializáveis10. Uma série de instrumentos subsequentes de “soft law”11 e casos de cortes nacionais12 têm delineado também os contornos destes direitos. Em particular, de acordo com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, direitos ESC são progressivos de modo que os Estados “comprometem-se a adotar medidas [...] até o máximo de seus recursos disponíveis, visando assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno

10 A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais não inclui explicitamente direitos ESC per se, embora eles sempre lidem com tais direitos em termos de direitos de propriedade, garantias contra discriminação ou sobre o devido processo. Uma Carta Social Europeia em separado, na Europa, e o Protocolo em Direitos ESC (Protocolo de San Salvador), nas Américas, contêm tais direitos, mas apenas alguns daqueles direitos são judicializáveis por meio das cortes regionais de direitos humanos. Adicionalmente, o Comitê Internacional sobre Direitos ESC, o comitê especial que monitora a implementação do Pacto Internacional de Direitos ESC, terá competência para apreciar comunicações individuais assim que o Protocolo Facultativo que permite tais comunicações entrar em vigor. 11 Exemplos de tais fontes de “soft law” incluem os vários “comentários gerais” publicados pelo Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas; “The Maastricht Guidelines on Violations of Economic, Social and Cultural Rights” [N.T.: optou-se por manter em inglês o nome de publicações oficiais como essa, em vista da indisponibilidade de tradução oficial. Uma possível tradução seria “As Diretrizes de Maastricht sobre Violações de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”], um conjunto de princípios a respeito da natureza e propósito de violações de direitos ESC desenvolvido por um grupo da sociedade civil e por experts em direitos humanos, adotado em 22 e 26 de janeiro de 1997; e, “The Right to Food Guidelines” [N.T.: Diretrizes do Direito à Alimentação], desenvolvido pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. 12 Ver os casos da Corte Constitucional Sul-Africana sobre o direito à habitação [SOUTH AFRICA. South African Constitutional Court. Government of the RSA v Grootboom. 2000 (1) SA 46 (CC).] e à saúde [SOUTH AFRICA. South African Constitutional Court. Minister of Health v Treatment Action Campaign. 2002 (5) SA 703 (CC).]; ver também os casos da Corte Constitucional Colombiana sobre direitos de deslocados forçosamente, discutidos abaixo.

 

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exercício dos direitos [...]”13. Entretanto, ainda que as obrigações sejam progressivas, elas são reais, e Estados devem planejar-se, programar-se e movimentar-se para aumentar a observância destes direitos com o passar do tempo, enquanto evitam retrocessos. As obrigações de não discriminação do Pacto são também imediatas14. A falta de direitos ESC, ou sua distribuição extremamente desigual, está no centro de muitos conflitos armados. Além disso, muitas vezes o desejo de reprimir demandas por uma distribuição mais equitativa de oportunidades e recursos dá início e sustenta a manutenção de ditaduras. Durante conflitos armados ou ditaduras, a provisão de direitos ESC geralmente piora. Instalações educacionais e médicas são destruídas ou danificadas, seu pessoal é ameaçado ou dispersado. Deslocamentos generalizados e expropriação forçada de terra, casas, rebanhos e colheitas afetam direitos básicos à comida e à moradia. Poços de água, colheitas e outras formas de sustento são, com frequência, destruídos deliberadamente, e o acesso à comida, impedido. É difícil, senão impossível, para muitas pessoas, prover seu sustento ou frequentar aulas em situações de constante insegurança e deslocamento. Fontes de água podem ser contaminadas ou se tornar de acesso muito perigoso; frequentar escolas torna-se uma memória distante. A guerra exacerba negações de todos os direitos ESC. Após o conflito, a população que carregou o fardo da luta geralmente busca uma melhoria nos direitos ESC como um marco de mudança positiva que distingue a nova distribuição da antiga. Aqueles que foram vítimas do conflito não buscarão, necessariamente, ser recolocados na situação em que estavam antes que suas perdas ocorressem; pelo contrário, eles 13

UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 3 jan. 1976. 993 U.N.T.S. 3. Parte II, art. 2º, item I. 14 Ibid., art. 2º, item 2.

 

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buscarão a transformação de relações sociais desiguais como a forma mais apropriada de reparar suas perdas. Frequentemente, mudanças no acesso a oportunidades e recursos serão o que fazem o conflito e os sacrifícios “valerem a pena” para os sobreviventes. Isso representa uma tarefa enorme para governos transicionais, quase sempre sobrecarregados simultaneamente com enormes expectativas, pouca capacidade, poucos recursos, e um grande número de desafios econômicos e de segurança. Um novo governo também será medido externamente por quão bem responde a demandas por direitos ESC básicos. O Índice de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento tem, desde os anos 1990, ranqueado países em termos de medidas como mortalidade e morbidade infantil, nível educacional, direitos das mulheres e também crescimento do PIB. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio estipulam padrões de limpeza da água, saneamento, saúde, educação e seguridade social, os quais governos devem buscar alcançar. Os modelos de desenvolvimento econômico têm evoluído consideravelmente em um caminho que é, na melhor das circunstâncias, “sustentável” – participativo, sensível a necessidades de gênero e de minorias, ambientalmente sadio e equitativo. É nesta visão de um regime respeitador de direitos, especialmente em como ele considera as condições de vida e chances de setores excluídos ou marginalizados, que a mais clara sobreposição com reparações ocorre.

B. Reparações Reparações, antes de 1945, eram em geral um assunto de Estado para Estado. Esforços subsequentes focaram em tentar, na medida do possível, desfazer os efeitos dos danos às vítimas individuais, com ênfase em corrigir violações de direitos à integridade física. O  

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Direito Internacional evoluiu para reconhecer o direito da vítima de ser reparada por graves danos que tenha sofrido15. De acordo com os “Princípios e Diretrizes Básicas sobre o Direito a uma Solução e Reparação para Vítimas de Violações Flagrantes das Normas Internacionais de Direitos Humanos e de Violações Graves do Direito Internacional Humanitário”, de 2005, uma vítima de tais violações tem o direito, sob o Direito Internacional, a (a) igualitário e efetivo acesso à justiça; (b) reparação adequada, efetiva e rápida pelo dano sofrido; e (c) acesso à informação relevante concernente a violações e a mecanismos de reparação16. Tal reparação “deve ser proporcional à gravidade das violações e ao dano sofrido”17, mas pode tomar a forma de restituição, compensação, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição18. O direito a uma solução ou a reparações está também previsto nos instrumentos básicos de direitos humanos, convenções especializadas, instru-

15 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Basic Principles and Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross Violations of International Human Rights Law and Serious Violations of International Humanitarian Law. A/RES60/147, 16 dez. 2005. [N.T.: “Princípios Básicos e Diretrizes sobre o Direito a uma Solução”. Optou-se pela tradução de “right to remedy” como “direito a uma solução”.]. Para um exame completo dos princípios básicos da ONU, e outras fontes do direito à reparação no Direito Internacional, ver SHELTON, Dinah. The United Nations Principles and Guidelines on Reparations: Context and Contents. In: DE FEYTER, Koen. et. al (eds.). Out of the Ashes: Reparation for Victims of Gross and Systematic Human Rights Violations. Holmes Beach, FL: Intersentia, 2006. p. 1133. 16 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Basic Principles and Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross Violations of International Human Rights Law and Serious Violations of International Humanitarian Law. A/RES60/147, 16 dez. 2005. [N.T.: “Princípios Básicos e Diretrizes sobre o Direito a um Recurso”], art. 11. 17 Ibid., art. 15. 18

 

Ibid., arts. 19-23.

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mentos não vinculantes, e no Estatuto de Roma da Corte Internacional de Justiça19. Reparações são distintas de reconstrução e de assistência à vítima, primeiro por suas raízes em um direito baseado em uma obrigação de reparar dano, e segundo por um elemento de reconhecimento de transgressão, de compensação, ou “de tornar as coisas certas”. Reparações são, portanto, uma categoria limitada de respostas a dano. Ainda que reparações possam ser concedidas por cortes ou processos administrativos, essa discussão concentra-se principalmente no último caso. Reparações são classificadas em três eixos diferentes: as categorias de restituição, reabilitação, compensação e garantias de não repetição dos “Princípios e Diretrizes Básicas”; a distinção entre reparações simbólicas e materiais; e a distinção entre reparações individuais e coletivas. Dado o objetivo desse artigo, focarei no eixo individual e coletivo, abordando as outras dimensões de cada uma. Em sua maioria, reparações foram dadas por violações flagrantes do direito à integridade física: assassinatos, desaparecimentos forçados, tortura e prisões. Alguns programas administrativos de reparação incluem exílio ou deslocamento forçado como danos, mas poucos proporcionam retificações individuais apenas para deslocamentos.

i. Reparações individuais Reparações individuais podem tomar a forma de compensação pecuniária, em um pagamento único ou uma pensão periódica. Elas também podem tomar a forma de restituição – de terras, outras propriedades, 19

ROHT-ARRIAZA, Naomi. Reparations Decisions and Dilemmas. Hastings International and Comparative Law Review, v. 27, 2004. p. 160-65.

 

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empregos, pensões, direitos civis, ou boa reputação – e reabilitação, a qual pode ser física, mental e sóciojurídica. Reverter publicamente uma condenação criminal injusta, por exemplo, pode constituir uma reabilitação sócio-jurídica. Reparações individuais também podem ser simbólicas assim como materiais: por exemplo, a entrega, pelo governo chileno, de uma cópia personalizada do relatório da Comissão da Verdade e Reconciliação, com uma carta indicando onde o nome de cada vítima individual poderia ser encontrado, teve um profundo valor reparatório para os indivíduos envolvidos. Outras reparações individuais podem incluir a exumação e novo enterro daqueles assassinados, desculpas individuais a sobreviventes ou familiares, ou a publicação dos fatos de um caso individual. Reparações individuais também podem tomar a forma de pacotes de serviços do governo: inclusão em planos de saúde governamentais, ou acesso preferencial a serviços médicos, bolsas de estudo e similares.

ii. Reparações coletivas O conceito de reparações coletivas, por outro lado, é mais complexo e pode ter diferentes significados em diferentes contextos. Assim como nas reparações individuais, podem incluir tanto medidas materiais quanto simbólicas; restituição, reabilitação e satisfação, assim como compensação. “Coletiva” pode se referir aos beneficiários da reparação, como nos casos de comunidades religiosas, étnicas, ou geograficamente definidas que sofreram danos a suas instituições, propriedade ou ao seu tecido e coesão social na qualidade de grupos e, logo, precisam ser reparados enquanto tal. O exemplo mais fácil desse significado é a restituição ou compensação por lugares de adoração danificados durante o período em questão, mas também poderia envolver restituição de terras de propriedades coletivas ou medidas para se acabar a discriminação com base  

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na língua. O significado de reparações coletivas também tem se referido ao tipo de reparação ao invés do beneficiário. Assim, bens públicos concedidos a uma comunidade específica, mas abertos a todos, constituiriam esse tipo de reparação coletiva. Enquanto acesso individual ou familiar a bolsas de estudo ou a privilégios hospitalares constituiriam reparação individual, a construção de escolas ou clínicas de saúde em comunidades afetadas, abertas a todos os habitantes, seria reparação coletiva. Isto, claro, levanta a dificuldade de lidar com a atribuição da condição de vítimas a grupos ou a comunidades para propósitos de reparação, um problema ampliado por mudanças demográficas e sociais durante o curso de um conflito armado. Algumas das dificuldades específicas das reparações coletivas são exploradas abaixo.

C. Reparações materiais e o direito a um padrão de vida adequado Reparações cruzam com direitos ESC, primeiro porque as reparações materiais oferecidas— compensação, restituição e reabilitação — olham tanto para o passado quanto para o futuro, objetivando retificar tanto danos passados, quanto transformar vidas para o futuro. Em sua maioria, essas não são reparações por violações de direitos ESC, apesar de haver reconhecimento de que direitos ESC foram violados concomitantemente com os direitos civis básicos que estão sendo compensados. Assim, os membros das famílias daqueles que foram mortos ou que desapareceram forçadamente sofrem, além do dano incomensurável de perder um ente querido e do sofrimento psicológico envolvido, a perda de um provedor, a necessidade de fugir, a perda de oportunidades de educação e similares. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, compensa sobreviventes por estas oportunidades perdidas através do conceito de  

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mudanças em seus “projetos de vida” (proyecto de vida)20. Entretanto, estes danos raramente são divididos e compensados separadamente em programas administrativos de reparação. A pedra fundamental dos primeiros programas administrativos de reparação relacionados à justiça transicional era a concessão de indenizações individuais aos sobreviventes ou às famílias daqueles mortos ou desaparecidos. Estas tomavam duas formas: montantes fixos em pagamentos únicos e pensões periódicas. Pagamentos únicos têm sido muito mais comuns. Em alguns locais, os pagamentos foram especificamente para deslocamentos forçados ou exílio, com atenção à mudança nas perspectivas de vida, mas geralmente todos os danos foram agregados. O pagamento único tem a vantagem da relativa rapidez e simplicidade – requer apenas uma alocação temporária de orçamento e uma burocracia temporária para administrar o pagamento. Para vítimas que têm necessidades imediatas ou são idosas ou necessitadas, dinheiro rápido pode ser uma dádiva. Onde comunidades estão em conflito ou discordam de outras formas de reparação, uma compensação única pode também ser a única opção realista. Pagamentos únicos também mais se parecem com as indenizações disponíveis em cortes por danos pessoais. Entretanto, a quantidade de dinheiro envolvida é quase sempre inferior ao que uma corte concederia por danos equivalentes. Raramente é grande o suficiente para mudar uma vida e, em geral, é concedida muito tempo depois dos danos ocorrerem. 20 Esse conceito foi introduzido pela primeira vez no caso Loayza Tamayo [INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Loayza Tamayo case, Reparations, Judgment. Inter-Am. Ct. H.R. (ser. C), No. 42 (Nov. 27, 1998).] e desenvolvido em casos subsequentes. Ver, em geral, BURGORGUE-LARSEN, Laurence; ÚBEDA DE TORRES, Amaya. The Inter-American Court of Human Rights: Case-Law and Commentary. Tradução de Rosalind Greenstein. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 229-230.

 

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Estudos têm mostrado que a maioria dos pagamentos únicos é usada para quitar dívidas, despesas médicas ou taxas escolares, ou é simplesmente consumida sem criar nenhuma mudança de longo prazo no padrão de vida do beneficiado21. Eles são muito pequenos para criar um grande impacto nos mercados locais ou para permitir às pessoas criar microempresas, especialmente sem nenhum treinamento adicional em finanças, transações bancárias ou em administração de negócios. Reparações individuais na forma de pagamentos únicos podem criar outros tipos de dificuldades. Conceder tais pagamentos requer a criação de registros de vítimas, o que pode consumir muito tempo e ser difícil em locais onde as pessoas não têm identificação pessoal ou certidões de óbito de seus entes queridos22. Pagamentos podem provocar desarticulações na comunidade: famílias divididas, cidades invadidas por golpistas prometendo dinheiro rápido, membros familiares há muito esquecidos ou desconhecidos reaparecendo subitamente e alguns beneficiários agredidos ou ameaçados para entregar os valores de seus cheques23. 21 VIAENE, Liselotte. Voices From the Shadows: The Role of Cultural Contexts in Transitional Justice Processes. Dissertação (Doutorado em Direito). Universiteit Gent, 2010. GREADY, Paul. The Era of Transitional Justice: The Aftermath of the Truth and Reconciliation Commission in South Africa and Beyond.London: Routledge, 2011. 22 A criação do registro do Peru tem levado, aproximadamente, sete anos e, a partir disto, a inscrição de pagamentos individuais está ainda pendente. 23 MERSKY, Marcie; ROTH-ARRIAZA, Naomi. “Guatemala.” In: Victims Unsilenced:The Inter-American Human Rights System and Transitional Justice in Latin America.. Washington, DC: Due Process of Law Foundation, 2007. p. 7-32. Elisabeth Lira nota um resultado semelhante nas áreas Mapuche do Chile, onde “em comunidades muito pobres, as reparações econômicas alteraram relações familiares de solidariedade e negativamente afetaram redes de famílias e comunidades”. LIRA, Elizabeth. The Reparations Policy for Human Rights Violations in Chile. In: DE GREIFF, Pablo (ed.). The Handbook of Reparations. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 63.

 

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A dinâmica intrafamiliar também pode ser impactada: enquanto em alguns casos mulheres podem ser empoderadas ao receber dinheiro disponível em seu nome, em outros, familiares homens rapidamente reivindicarão a compensação paga a suas esposas e mães, que poderá então não servir a seus objetivos almejados24. Em sua pior face, tais programas de pagamentos individuais são propensos a clientelismo, políticas de apadrinhamento e corrupção. Eles podem se tornar a antítese da reparação. Há também uma tensão, presente em todos os programas de reparação, mas especialmente aguda naqueles que envolvem compensação individual, entre direcionar-se pelo dano ou direcionar-se pela necessidade. Isto é, os programas de reparação deveriam focar-se nas vítimas mais necessitadas – os deficientes, os idosos, crianças e viúvas– ou nas vítimas que têm o direito à reparação por terem sofrido as piores violações? Claro, em alguns casos as categorias irão sobrepor-se, mas não em todos. A maioria dos programas tenta utilizar reparações provisórias para lidar com os casos mais urgentes, e/ou priorizar com base em uma combinação de fatores, incluindo necessidade, o tipo de violação, a área geográfica e (extraoficialmente) a afiliação política ou importância das vítimas. Pensões ou pagamentos periódicos podem ser melhores. Tais pagamentos podem atuar como um tipo de seguridade social e podem prover uma subsistência econômica mínima. No Chile, por exemplo, as reparações incluíam um pagamento único equivalente a um ano de pensão (aproximadamente US$530, em cotação de 1996) e uma pensão mensal, baseada no salário médio, para esposos, parentes e crianças daqueles mortos ou desaparecidos, a ser pago de acordo com uma por24

VIAENE.Voices From the Shadows; RUBIO-MARIN, Ruth. The Gender of Reparations. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. Ver também MERSKY; ROHT-ARRIAZA. Guatemala.

 

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centagem fixa do total, para cada tipo de relação. As pensões devem estar atreladas à inflação, e requerem uma burocracia nova ou preexistente (por exemplo, uma que já lida com pensões para os idosos ou para os veteranos) para desembolsar os fundos. Em locais onde o Estado não tem estruturas preexistentes para distribuição periódica de fundos, especialmente em áreas remotas, um sistema de pensão demorará mais tempo para ser estabelecido. Provisão de serviços — para cuidados com saúde, educação ou moradia — é comumente uma parte de projetos de reparação. Tal provisão requer acordos de coordenação e financiamento entre vários ministérios governamentais e vários níveis do governo (central, estadual e municipal) e pode não atingir suas metas sem uma mudança no modo como o governo existente lida com populações pobres e marginalizadas de forma geral. Onde os serviços em geral são carentes, garantir acesso a eles pode ser apenas um lembrete da indiferença e ineficácia do governo. Assistência médica e educação são os serviços mais comuns oferecidos como parte de pacotes de reparação. Como notado acima, esses podem tomar a forma de um direito individual a serviços médicos ou bolsas de estudo. Muitos programas de reparação têm focado em serviços psicossociais para permitir aos sobreviventes lidar com os danos mentais causados pelas violações. Tais serviços têm se provado bem sucedidos onde são ajustados para as necessidades específicas de, por exemplo, vítimas de tortura; um exemplo é o Programa de Reparação e Serviços Integrais de Saúde (conhecido por sua sigla em espanhol, PRAIS), que usou terapeutas especificamente treinados25. Na Guatemala, ONGs especializadas foram contratadas para oferecer esses serviços depois que se tornou claro que os psicó25

LIRA. The Reparations Policy for Human Rights Violations in Chile. p. 68.

 

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logos do governo não tinham nem o treinamento especializado, nem a empatia necessária com as vítimas, amplamente indígenas, para serem bem sucedidos. Cuidados médicos têm sido uma parte de “pacotes” de reparação no Chile, no Peru, em Serra Leoa e em outros locais. Usualmente, isto exige acesso para as vítimas e seus familiares a serviços médicos estatais a baixos ou sem custos. O problema tem sido que essas clínicas oferecem cuidados indiferentes ou de baixa qualidade e, com frequência, não têm os serviços especializados requeridos. Em Serra Leoa, por exemplo, a cirurgia de fístulas em vítimas da guerra tem sido feitas por ONGs internacionais porque o sistema médico local não tem a capacidade. Às vezes, atitudes racistas ou sexistas da equipe médica para com as vítimas podem desencorajá-las a usar os serviços existentes. Em pesquisas com vítimas pelo mundo, a educação de crianças é colocada no topo da lista do que as pessoas querem de um programa de reparações. Educação pode ser uma forma especialmente importante de reparação porque aqueles que passaram a infância correndo e se escondendo terão perdido a oportunidade de uma educação formal; adultos podem ser analfabetos e a educação de adultos pode ser uma componente importante de melhorias econômicas. Ademais, uma vez que programas de reparação tendem a levar um longo tempo para serem estabelecidos e custeados, a educação torna-se uma meta multigeracional, capaz de responder aos aspectos intergeracionais do dano. Programas de reparações têm frequentemente disponibilizado bolsas de estudo, dinheiro para taxas escolares e similares. Por exemplo, no Chile, o órgão de reparações ofereceu formação gratuita para vítimas e seus descendentes de até 35 anos, incluindo educação universitária. Planos na Guatemala para reparações integrais incluíam o foco na educação bilíngue e estudos da herança Maia, ainda que nenhum dos dois tenha sido amplamente posto em prática. Em Serra Leoa, suporte educacional também foi oferecido, embora, uma vez  

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que as reparações tenham demorado um longo período para ser implementadas, um grande número de beneficiários em potencial saiu agora da faixa etária beneficiada26. Certo número de programas de reparações incluiu pequenos projetos de treinamento vocacional, mas esses têm sido apenas modestamente bem sucedidos em levar a empregos permanentes. Atualmente, atividades produtivas correspondem a apenas uma pequena parte dos planos dos programas de reparação. Na Guatemala, o Programa de Compensação Nacional (PNR) disponibilizou um pequeno fundo para atividades produtivas e anunciou que o programa subsidiaria investimento em, por exemplo, energia solar. Também propôs um fundo para mulheres, estruturado conforme o modelo de um banco comunitário. Mulheres receberiam pequenas quantias (de US$300 a US$350) para atividades produtivas, junto com aulas de alfabetização. Esse programa ainda não está em funcionamento, embora vários outros projetos (privados) de microcrédito estejam operando nas áreas mais duramente atingidas. Vários projetos comunitários peruanos aprovados sob o programa de reparações coletivas descrito abaixo envolvem atividades produtivas, desde plantar pasto e comprar animais de pastagem a um centro de artesanato, apesar de a maioria concentrar-se na infraestrutura básica necessária para a agricultura e para a vida rural. Na África do Sul, o órgão privado Business Trust, em colaboração com os governos locais, ofereceu treinamento de habilidades e cofinanciamento para turismo e outros projetos produtivos em comunidades fortemente afetadas pelo apartheid, incluindo diversas que recentemente tinham recuperado terras. Entretanto, ainda que as metas incluam reconciliação e reconstrução, o pro26

SUMA, Mohamad; CORREA, Cristián. Report and Proposals for the Implementation of Reparations in Sierra Leone. New York: International Center for Transitional Justice, 2009.

 

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grama é visto mais como uma iniciativa antipobreza do que de reparação27.

Reparações Coletivas Reparações coletivas, como definidas acima, incluem uma variedade de bens públicos oferecidos a uma comunidade como um todo, incluindo prédios de escolas, centros comunitários, clínicas, estradas, projetos de irrigação e eletricidade, mercados e similares. Elas são pensadas para compensar os danos à viabilidade e à solidariedade comunitária criados pelas violações em questão. Governos frequentemente preferem reparações coletivas a individuais porque são vistas como menos dispendiosas para custear e administrar e porque os beneficiários tendem a entendê-las como uma forma de generosidade governamental. Pela última razão, defensores de direitos humanos tendem a desconfiar de reparações coletivas, enxergando-as como uma tentativa de fazer passar desenvolvimentos de infraestrutura, que já são parte da responsabilidade do governo, como reparações, assim, de fato, “matando dois coelhos com uma cajadada só”. Esse dilema é facilmente resolvido ao fazer de reparações coletivas um suplemento, ao invés de substitutas, de responsabilidades do governo na área de educação, saúde ou desenvolvimento de infraestrutura. Por exemplo, programas de saúde podem focar-se em orientação, apoiar a medicina tradicional ou treinar novos profissionais da saúde baseados na comunidade. Também é importante considerar a sustentabilidade de tais projetos a longo prazo, especialmente projetos de 27 Ver a discussão do Programa de Investimento Comunitário do Trust em BUSINESS TRUST. Community Investment. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2012.

 

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infraestrutura. Quem os manterá ao longo do tempo? Serão garantidos fundos suficientes para suprimentos e para operação? Se o fundo de reparações é de curto prazo, como a manutenção e a operação serão inseridas em orçamentos regulares de ministérios ou agências? Essas considerações práticas podem fazer ou destruir um esforço de reparações. Reparações coletivas prometem beneficiar todos os membros de uma comunidade, não apenas as vítimas. Em áreas onde comunidades inteiras foram vitimadas isso pode ser apropriado, mas em outras, tais reparações serão demasiadamente amplas e, logo, precisarão ser combinadas com componentes individuais. Mesmo se reparações coletivas tiverem as características de bens públicos, elas ainda podem servir a um propósito reparatório caso esteja claro que foi a atuação das vítimas, não apenas sua condição, que as fez acontecer. Logo, reparações coletivas devem responder a um processo no qual a comunidade é envolvida para escolher prioridades e as vítimas desempenham um papel preponderante. Isso permite às vítimas enfatizar seu valor como cidadãs produtivas e garante que qualquer reparação oferecida responda às necessidades percebidas como sendo as dos supostos beneficiários. Tais reparações também devem ser combinadas com aspectos simbólicos e comemorativos para diferenciálas de outros projetos de desenvolvimento. A Guatemala fez previsões de reparações coletivas, mas, como discutido anteriormente, concentrou-se quase exclusivamente em compensação individual. Após vários anos, o programa de reparações tentou mudar seu foco para reparações coletivas em comunidades fortemente atingidas na forma de habitações. Enquanto alguns projetos piloto foram construídos, o programa foi cooptado por clientelismo político e nunca chegou a muitos resultados. No Marrocos, reparações coletivas se davam em bases geográficas, incluindo a reabilitação de cidades que tinham sido antigos locais de prisões ou tinham sofrido devido à percepção  

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de um sentimento antirregime, e complementavam a alocação individual de pagamentos de montantes únicos. No Peru, o foco inicial era em reparações a comunidades. As regulamentações originais estipulavam quatro componentes: fortalecimento jurídico, incluindo as autoridades locais, treinamento em resoluções de disputas e em direitos humanos; suporte à infraestrutura produtiva e econômica; projetos concentrados no retorno dos deslocados e dos expropriados; e suporte para projetos de apoio educacional, de saúde, de água e de herança cultural. Apesar disso, o governo tomou uma decisão executiva de focar apenas nos componentes de infraestrutura econômica e de oferta de serviços. O componente de reparações coletivas foi descentralizado para o nível municipal, com fundos designados para aquelas regiões mais afetadas pela violência, assim como para comunidades formadas por aqueles forçadamente deslocados de seus lares originais. Até hoje, diferentes localidades têm respondido diferentemente ao desafio de implementar um programa de reparações. Alguns rapidamente terminaram de construir seu registro de vítimas e familiares, enquanto outras áreas ficaram para trás. Aos governos locais foram dados fundos para implementar pequenos (até US$30.000) projetos coletivos, de acordo com prioridades que foram negociadas entre comunidades e o Estado, através da criação de conselhos locais de implementação28 . Uma avaliação inicial mostrou que as comunidades escolhem mais frequentemente construir com 28 INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE (ICTJ); ASOCIACIÓN PRO DERECHOS HUMANOS (APRODEH). Perú: ¿Cuánto se ha Reparado en Nuestras Comunidades: Avances, Percepciones y Recomendaciones sobre Reparaciones Colectivas en Peru 2007-2011. 2011. Disponível em: .

 

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seus fundos um centro comunitário, seguidos de projetos de irrigação e escolas. Com o passar do tempo, as prioridade mudaram, com maior ênfase em água e saneamento, pecuária e projetos de treinamento em gestão, nos últimos dois anos. Mulheres eram subrepresentadas no processo de tomada de decisão. Mesmo onde as comunidades colocaram um alto valor em memoriais e outros tipos de reparações simbólicas, governos locais têm sido relutantes em usar os fundos para esse propósito, preferindo projetos de infraestrutura29. Apesar da inclusão de comunidades urbanas compostas por grandes números de camponeses deslocados na definição dos beneficiários do programa, até 2011, nenhum projeto nessas comunidades havia começado30. Uma pesquisa de 2011 mostrou que quase metade dos beneficiários entendia que os projetos eram reparações coletivas devido à violência política, mas poucos pensavam que eles eram reparação suficiente. As cerimônias de inauguração parecem ter tido um papel importante nessa conscientização31.

Reparações por Violações de Direitos ESC Até a presente data, esforços para reparar as violações de direitos ESC concentraram-se principalmente em casos de expropriação de terras ou outras propriedades, o que levou à negação dos meios de subsistência, educação, saúde e outros direitos. Dentro do contexto da justiça transicional, estes têm quase sempre exigido uma demonstração de que a expropriação foi deliberadamente induzida por razões políticas ou dis29 30

Ibid.

Ibid. De acordo com este relatório, os projetos de até 2011 estavam a caminho ou completos em quase 1.500 localidades, com um orçamento total de US$ 52 million. Ibid., p. 15. 31 Ibid., p. 36-37.

 

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criminatórias.32 Apenas recentemente têm ocorrido esforços para compensar ou restituir terras tomadas por razões táticas ou econômicas dentro do contexto de um conflito armado.33 Roger Duthie sugere que uma contribuição da teoria da justiça transicional sobre o deslocamento pode ser o reforço de uma estrutura baseada em direitos, e não simplesmente em uma preocupação humanitária, ao lidar com populações deslocadas34. Essa seção traça um breve histórico dessas reivindicações, para em seguida focar em um número de casos emblemáticos: a restituição de terras sul-africanas, o esquema de restituição de terras colombianas, o caso do Quênia e o esforço dos povos guatemaltecos Achi Maia para obter compensação por perdas em que incorreram quando foram expulsos de suas terras para facilitar a construção de uma barragem, dentro de um

32

Há também casos de expropriação de terras e restituição que não se encaixam facilmente dentro de uma estrutura de justiça transicional. Por exemplo, um número de países, incluindo Canadá, Nova Zelândia, Austrália e alguns Estados latino-americanos, restituíram terras para povos indígenas que foram tomadas por administrações coloniais. Ver LENZERINI, Federico. (ed.). Reparations for Indigenous Peoples: International and Comparative Perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2008. Uma linha de decisões da ONU e de comissões e cortes regionais de direitos humanos estabeleceu os direitos de povos indígenas às suas terras e ao controle do que acontece nessas terras. Exemplos incluídos: AFRICAN COMMISSION ON HUMAN AND PEOPLES’ RIGHTS. Centre for Minority Rights Development (Kenya) and Minority Rights Group International on behalf of Endorois Welfare Council v Kenya. Case 276 / 2003, 2009 (recomendando restituição e direitos sobre terras comunitárias); UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS COMMITTEE (HRC). Chief Bernard Ominayak and Lubicon Lake Band v. Canada. CCPR/C/38/D/167/1984, 1990 (direito à subsistência de grupos indígenas é parte de direitos de minorias); INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS.Case of the Yakye Axa Indigenous Community v. Paraguay. Case 12.313, 2005 (demarcação e direitos sobre terras indígenas previamente expropriadas). 33 DUTHIE, Roger. Transitional Justice and Displacement. International Journal of Transitional Justice, v. 5, no. 2, p. 241-261, 2011. 34 Ibid., 260.

 

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contexto de repressão governamental e conflito armado. Existe uma extensa literatura sobre restituição de propriedade surgida primeiramente do confisco nazista de propriedades dos judeus nos anos de 1940 e, em segundo lugar, da onda de privatizações e restituições que acompanharam a queda de governos comunistas da Europa Oriental e Central no pós-1989. As reivindicações de restituição de propriedade da era do Holocausto incluem litígios encabeçados pela Conferência de Reivindicações Materiais de Judeus contra a Alemanha, e acordos, de reivindicações que envolvem apólices de seguros e arte roubada. Houve também uma ampla restituição de propriedade real, sendo que a última grande reivindicação contra a Alemanha foi acordada em 200735. Ao passo em que tal literatura é muito volumosa para ser resumida aqui36, alguns temas gerais surgem desses esforços. Em todos os casos póscomunistas, as questões em torno da restituição de propriedade foram complicadas por diversas ondas de expropriações e por difíceis problemas em provar a cadeia de títulos e em negociar com os atuais donos que compraram a propriedade de boa-fé. Onde a propriedade esteve nas mãos de proprietários de boa-fé ou foi usada para o interesse público, a compensação foi 35

LANDLER, Mark. German company pays Jewish family for Nazi-era confiscation. TheNew York Times, 30 Mar. 2007. Disponível em: . Acesso em: 26 dez. 2012. 36 Ver, e.g., GELPERN, Anna. The Laws and Politics of Reprivatization in East-Central Europe: A Comparison. University of Pennsylvania Journal of International Business Law v. 14, n. 3, p. 315-372, 1993; FOSTER, Frances H. Restitution of Expropriated Property: Post-Soviet Lessons for Cuba. Columbia Journal of Transnational Law, v. 34, no. 3, p. 621-656, 1996. Com referência a populações indígenas, ver, em geral, LENZERINI, Federico. (ed.). Reparations for Indigenous Peoples: International and Comparative Perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2008.

 

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paga ao invés de se restituir a propriedade. Muito pouco da compensação foi paga em dinheiro; a maior parte foi paga em vouchers ou em títulos da dívida pública, criando um mercado paralelo de tais garantias. Houve grandes problemas administrativos quando da identificação e inventário da propriedade, devido à falta de fundos para o pagamento das compensações e dos efeitos que uma ampla restituição causaria em aluguéis e custos de habitação. Mais recentemente, a Comissão de Reivindicações de Propriedades Reais da Bósnia-Herzegovina investigou a possibilidade de restituição e compensação por perda de terras e propriedades durante a guerra de 1992-1995. O Acordo de Paz de Dayton incluiu disposições que tornam ilegais as transferências de propriedades feitas sob ameaça ou coação ou que estejam de outra maneira relacionadas à limpeza étnica, e determinou a restituição daquelas propriedades depois que a Comissão recebesse provas, antes de determinado prazo, da propriedade válida. As provas poderiam advir de livros de propriedade municipal de 1991, de registros fiscais ou de documentos sucessórios. A Comissão também poderia, em teoria, prever a compensação pecuniária pela propriedade quando indivíduos optassem por não retornar para a sua residência préguerra (porque eles constituiriam uma minoria daquele local e/ou por motivos de segurança), mas, na prática, pouco dinheiro para compensação esteve disponível37. Na realidade, muitas das pessoas que tiveram sua propriedade restituída optaram por alugá-las ou vendê-las para evitar viver como uma minoria nas áreas de suas antigas residências. A restituição da propriedade não 37

UNITED NATIONS. Commission for Real Property Claims of Displaced Persons and Refugees. Dayton Agreement. Annex 7. Disponível em:. Ver, em geral, HASTINGS, Lynn. Implementation of the Property Legislation in Bosnia Herzegovina. Stanford Journal of International Law, v. 37, n. 2, p. 221-254, 2001.

 

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está necessariamente ligada ao retorno para o lugar de residência anterior. Todavia, a restituição envolveu mais de 200.000 (duzentas mil) casas reivindicadas e sustentou o retorno de aproximadamente metade das pessoas deslocadas pelo conflito38.

África do Sul Na África do Sul, uma série de leis progressivamente destituiu a propriedade de milhões de pessoas. A Lei de Terras Nativas de 1913 proibiu negros sulafricanos de serem proprietários ou arrendatários de terras fora de pequenas áreas já designadas, posteriormente conhecidas como “homelands” ou “Bantustans”. A Lei de Áreas de Grupos, de 1950, segregou áreas urbanas e conduziu à remoção de “não-brancos” para os distritos ou para os subúrbios. Em 1990, milhões de pessoas haviam sido desapropriadas e somente 13% da terra eram reservados para a ocupação por negros39. Quando o governo pós-apartheid chegou ao poder, logo fez aprovar a Lei de Restituição de Direitos à Terra nº 22 de 1994. O partido do governo, o Congresso Nacional Africano (ANC, em sua sigla em inglês), enfrentou a necessidade de respeitar os direitos de propriedade (os quais eram uma demanda chave do Partido Nacional em suas negociações com a ANC), enquanto ao mesmo tempo respondia às demandas generalizadas por retificações, e a necessidade de começar a 38 DUTHIE, Transitional Justice and Displacement; WILLIAMS, Rhodri. Post-Conflict Property Restitution and Refugee Return in Bosnia and Herzegovina: Implications for International StandardSetting and Practice. New York University Journal of International Law and Politics, v. 37, n. 3, 2005. p. 489. 39 HALL, Ruth. “Reconciling the Past, Present, and Future: The Parameters and Practices of Land Restitution in South Africa.” In: WALKER, Cherryl. et. al. (eds.). Land, Memory, Reconstruction, and Justice: Perspectives on Land Claims in South Africa.. Athens, OH: Ohio University Press, 2010. p. 18-19.

 

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“desracialização” da paisagem espacial do país. A lei refletia esse compromisso: limita a reivindicação a pessoas ou comunidades ou seus descendentes que tiveram propriedades expropriadas após a Lei de Terras de 1913, “como resultado de práticas e leis de discriminação racial”, e que não foram compensadas adequadamente40. A expropriação pré-1913, ou seja, da era colonial, foi excluída. Os requerentes poderiam ser tanto os donos da terra e arrendatários como outros ocupantes, dada a ausência de títulos formais para a maior parte da terra mantidas por negros. As reivindicações deveriam ser apresentadas até 1998. A lei criou a Comissão de Restituição do Direito à Terra (CRLR, em sua sigla na língua inglesa), para auxiliar os requerentes, investigar as reivindicações e prepará-los para assentamento ou adjudicação, e uma Corte de Reivindicação de Terras para conceder ordens de ressarcimento e para dirimir litígios; posteriormente, a CRLR foi habilitada para resolver as reivindicações. As dificuldades em se provar direitos à terra que datam de gerações anteriores, onde a terra era frequentemente mantida em comunidade e sem um título escrito, são terríveis, e as Cortes de Reivindicação de Terras usaram testemunhos de historiadores e antropólogos, assim como de anciãos locais, para provar as reivindicações. As Cortes de Reivindicação tentariam chegar a um acordo por mediação entre os atuais ocupantes e os requerentes do passado, mas se não conseguissem, um painel de juízes decidiria a reivindicação. As soluções poderiam incluir a propriedade plena, direitos parciais a terra, direitos a terras equivalentes ou compensação. Os atuais proprietários são compensa40

SOUTH AFRICA. South Africa Restitution of Lands Act of 1994, as amended by Land Restitution and Reform Laws Amendment Act 63 of 1997. Disponível em: . Acesso em: 5 out. 2012.

 

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dos pelo Estado em valor de mercado, embora o Estado raramente tenha expropriado terra e tenha contado com vendedores sedutoramente espontâneos; onde os vendedores não estavam dispostos, outras terras ou dinheiro eram as únicas soluções. O processo finalmente resultou em cerca de 80.000 reivindicações. A CRLR relatou, em 2007, que 1,5 milhão de hectares de terra tinham sido devolvidos, 562 milhões de dólares tinham sido gastos na compra de outras terras e 475 milhões de dólares tinham sido gastos em compensações pecuniárias41. A grande maioria das reivindicações foram urbanas e estas foram em grande parte decididas com pagamentos em dinheiro. As reivindicações rurais tenderam a ser maiores e mais concentradas no norte e leste, envolvendo comunidades ao invés de indivíduos, assim como a negociação sobre a terra ao invés de dinheiro. A experiência de restituição de terras sulafricana exemplifica um número de problemas e a esperança inerentes a exercícios de restituição de terras em larga escala. Primeiramente, existiram desafios de definição. O que constituiria uma “comunidade” qualificada para uma restituição de grupo sob a lei, quando as pessoas foram destituídas e se dispersaram há mais de cem anos? As cortes sul-africanas inicialmente concentraram-se em regras compartilhadas em torno do uso da terra, não sobre a coesão ou continuidade de existência da comunidade. Entretanto, no caso Richtersveld, envolvendo uma grande reivindicação comunitária por povos indígenas, as Cortes também buscaram línguas, cultura e normas de uso da terra em comum. Um caso subsequente descobriu que a existência de formas comunitárias de propriedade de terras no passado, mesmo quando o título formal já era mantido por outros, era suficiente para provar a existência de 41

 

HALL. Reconciling the Past, Present, and Future. p. 30.

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uma comunidade42. Assim, “comunidade” não exigia a continuidade ou a atual existência, ou a propriedade formal da terra. A lei sul-africana impõe um nexo de causalidade entre a expropriação e as leis e práticas discriminatórias. Mas um nexo quão próximo? Provavelmente, qualquer coisa feita por um governo regida por um ânimo racista poderia se encaixar dentro da exigência. Por exemplo, no caso Richtersveld citado acima, a terra da comunidade foi retirada sob a Lei de Pedras Preciosas, pois minerais estavam localizados ali, e não a fim de aplicar a segregação racial. No entanto, a Corte de Apelações, e posteriormente a Corte Constitucional, concordaram que a terra tinha sido perdida sob um ânimo discriminatório, em que o efeito de uma lei de minerais, à primeira vista neutra, era discriminatório. Decisões subsequentes descobriram que a expropriação não teve que acontecer toda de uma vez e não teve sequer que ser baseada no uso da força, contanto que a saída tenha sido involuntária43. Os problemas mais difíceis em torno do projeto de restituição de terras envolveram o tipo e o significado da solução específica concedida. Muitos requerentes tinham memórias carinhosas, e até mesmo nostálgicas, de crescer ou viver nas suas residências anteriores, especialmente em vizinhanças multiétnicas que foram destruídas pelas remoções. Para eles, a restituição não era somente sobre dinheiro; eles queriam reivindicar a sua casa específica e recriar aquelas comunidades cheias de vida. Isto criou tensões não só entre os atuais proprietários como entre os governos locais; enquanto 42 MOSTERT, Hanri. Change Through Jurisprudence: The Role of the Courts in Broadening the Scope of Restitution. In: WALKER, Cherryl. et. al. (eds.). Land, Memory, Reconstructio n, and Justice: Perspectives on Land Claims in South Africa. Athens, OH: Ohio University Press, 2010. p. 64-68. 43 Ibid., p. 65-74.

 

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comunidades como o Distrito Seis na Cidade do Cabo desejavam recriar um intangível senso de lugar e comunidade, o governo da cidade desejava usar o projeto de restituição para trazer pessoas de baixa renda de outras áreas e tratou do projeto como apenas outro esforço para resolver o problema habitacional da cidade. Também para requerentes rurais, a terra esteve amarrada à identidade, especialmente quando esta foi desafiada ou ameaçada por meio da perda da terra tribal. As perdas foram emocionalmente dolorosas assim como financeiramente desastrosas. E, ainda, houve pouco reconhecimento dos aspectos não-pecuniários do processo. Ao contrário da resposta às violações de direitos à integridade física, não existiram audiências semelhantes às da Comissão Verdade e Reconciliação, onde os requerentes de restituição pudessem falar publicamente sobre o que a perda de uma casa, terra ou comunidade significou. Somente em uma província as indenizações incluíram, em alguns casos, dinheiro para danos morais ou sofrimento44. Os atrasos intermináveis e as disputas burocráticas tornaram difícil para os grupos requerentes insistirem na restituição. Inicialmente, em muitas áreas urbanas, os requerentes começaram pedindo suas casas antigas de volta, ou, se aquilo não fosse possível, outras terras onde a comunidade pudesse ser recriada. Ao longo do tempo, as pessoas ficaram desgastadas e desencorajadas pelo processo e optaram, ao invés, por aceitar o dinheiro45. Isto se adequava bem ao governo, já que o pagamento em dinheiro era muito mais simples e permitia que ele mostrasse quão bem o programa avançava. Os valores recebidos não tinham qual44

HALL. Reconciling the Past, Present, and Future. p. 25. BOHLIN, Anna. Choosing Cash over Land in Kalk Bay and Knysna. In: WALKER, Cherryl. et. al. (eds.). Land, Memory, Reconstruction, and Justice: Perspectives on Land Claims in South Africa. Athens, OH: Ohio University Press, 2010. p. 116-130. 45

 

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quer relação lógica seja com o que a propriedade valia no tempo da destituição ou quanto ela valeria agora. Além disso, na maioria dos casos o dinheiro deveria ser dividido entre descendentes, deixando apenas uma pequena quantidade para cada indivíduo. Um dos poucos estudos sobre como o dinheiro foi gasto46 descobriu que, coerentemente com as outras experiências de países com pagamentos únicos, o montante era muito pequeno para ser transformador, e foi usado para pagar dívidas e atender a despesas imediatas. Um dos objetivos do programa de restituição de terras tinha sido começar a contribuir para causar um efeito na natureza altamente segregada dos espaços residenciais e agrícolas. No geral, o objetivo governamental de redistribuir para negros 30% das terras agrícolas cujos proprietários são brancos não foi alcançado. Relutante em expulsar os proprietários brancos, restou ao governo negociar a venda das terras, mas poucos brancos estavam dispostos a vender pelos preços oferecidos. Nas áreas urbanas, os governos locais e municipais relutaram em usar os escassos recursos para terras com o objetivo de restituição, quando esses eram os últimos espaços livres para reordenamento urbano. Enfrentando intensas pressões para criar habitações de baixa renda, muitos gestores governamentais ressentiram-se com as reivindicações concorrentes de antigos proprietários, que frequentemente eram de classe média baixa, e não pobres. Em áreas rurais, a data de corte de 1913 significou que a maior parte das reivindicações de restituições se concentrariam no norte árido do país, dificultando para que as comunidades restituídas tivessem sucesso como agricultoras. Pior ainda, dado o tempo que as comunidades estavam dispersas, não havia ga46

BOHLIN, Anna. A Price on the Past: Cash as Compensation in South African Land Restitution. Canadian Journal of African Studies, v. 38, n. 3, p. 672-687, 2004.

 

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rantia de que reestabelecer a terra significaria que as pessoas teriam as habilidades para cultivá-la. Evidências preliminares indicaram que a maioria das fazendas reestabelecidas não estava produzindo. O governo começou a incentivar as pessoas a entrarem em “parcerias estratégicas” com os antigos proprietários de terras de agronegócio, nas quais as comunidades arrendariam a terra de volta aos antigos proprietários em troca de parte dos lucros, sendo que, na verdade, não viveriam ou trabalhariam na terra. Enquanto isso evitou que as terras recentemente restituídas se tornassem improdutivas, não foi exatamente o resultado “transformador” pretendido originalmente47.

Colômbia O conflito armado estabelecido há décadas na Colômbia já contou com a expulsão violenta dos agricultores locais de grandes áreas do país, que foram assumidas por guerrilheiros de esquerda, paramilitares de direita, produtores e traficantes de drogas, ou uma combinação destes. Comunidades indígenas e afrocolombianas foram particularmente atingidas pelo deslocamento forçado, bem como por assassinatos e outras violações de direitos48. A Colômbia tem cerca de 3,6 milhões de pessoas deslocadas internamente, um dos níveis mais altos do mundo. Apesar da diminuição da violência em algumas áreas, em 2010, mais de 100.000

47

DERMAN, Bill; LAHIFF, Edward; SJAASTAD, Espen. Strategic Questions About Strategic Partners. In: WALKER, Cherryl. et. al. (eds.). Land, Memory, Reconstruction, and Justice: Perspectives on Land Claims in South Africa. Athens, OH: Ohio University Press, 2010. p. 306-324. 48 KIRK, Robin. More Terrible Than Death: Drugs, Violence, and America's War in Colombia. Jackson, TN: Public Affairs, 2004.

 

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pessoas foram deslocadas à força e os atores armados continuam a operar com impunidade.49 O governo colombiano iniciou um ambicioso programa de restituição e reparação, destinado a promover uma “reparação integral” que envolve o deslocamento forçado, bem como violações da integridade física. Tem havido várias tentativas coordenadas para fornecer reparações ao longo da última década. Os regulamentos50 de implementação da Lei de Justiça e Paz da Colômbia, a Lei 975 de 2005, visando à desmobilização de grupos paramilitares, criaram penas alternativas mínimas para os condenados por violações do Direito Humanitário. A fim de obter as sentenças reduzidas, indivíduos desmobilizados deveriam devolver ganhos ilícitos, incluindo de propriedade, ao Estado, para fins de restituição; enquanto algumas fazendas e áreas cultivadas foram devolvidas, muitas outras estavam registradas sob nomes falsos ou de intermediários. A Lei da Justiça e Paz resultou apenas em um punhado de penas alternativas.51 A Lei 975 também criou a Comissão Nacional de Reparação e Reconciliação, que desenvolveu um sistema de reparações administrativas que forneceu reparações financeiras, relativamente pequenas, a centenas de milhares de vítimas, mas foi amplamente vista como insuficiente. Além disso, os tribunais ordenaram reparações em uma série de casos emblemáticos. O sistema administrativo foi debatido, modificado e, finalmente, transformado em lei, como parte da Lei das Vítimas, nº 49

UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES. 2012 UNHCR country operations profile – Colombia. Disponível em: . Acesso em: 5 out. 2012. 50 COLOMBIA. Decreto 3391 de 2006. 29 set. 2006. Disponível em: . Acesso em: 6 out. 2012. 51 Durante a escrita desse artigo, a lei estava em processo de revisão.

 

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1.448 de 2011. A nova Lei das Vítimas tenta lidar com algumas das deficiências dos esforços anteriores. Seu amplo escopo inclui princípios gerais sobre compensações e reparações, a participação da vítima em processos penais e, em geral, medidas que visam à criação de um ambiente de segurança e proteção para as vítimas e requerentes; outro que detalha os serviços e assistência às vítimas, um capítulo separado sobre as reparações, que inclui a restituição das terras (detalhada abaixo); um dos arranjos institucionais que irão implementar a lei; e uma seção especial sobre os programas para os jovens desmobilizados. A Lei das Vítimas é um esforço ambicioso para abordar uma ampla gama de violações. Ela define como vítimas as pessoas, ou os familiares próximos de pessoas, que individualmente ou coletivamente sofreram danos devido aos eventos que acontecem depois de 1º de janeiro de 1985 que constituíam graves violações dos direitos humanos ou do Direito Humanitário Internacional, no contexto do conflito armado interno52. Ela contém princípios gerais sobre o respeito às vítimas, a presunção de boa-fé e um foco diferenciado em grupos particularmente vulneráveis. Ela afirma que o objetivo da indenização é contribuir para o reposicionamento [recuperação] das vítimas como cidadãos no pleno exercício dos seus direitos e deveres53, e de “contribuir para a eliminação da discriminação e da margi52

COLOMBIA. Lei 1448 de 2011 (“Ley de Víctimas y Restitución de Tierras”). 10 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 6 out. 2012. De acordo com o estatuto, a definição de família inclui o cônjuge, companheiro permanente ou membro de um casal do mesmo sexo, bem como parentes imediatos. Populações indígenas e afro-colombianas não são cobertas pela lei, devido ao maior espaço de tempo necessário para realizar consultas adequadas com as comunidades e com suas autoridades a fim de decidir sobre as medidas de reparação adequadas. 53 Ibid., art. 4.

 

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nalização, que poderiam ter sido a causa dos eventos vitimizadores”.54 Em resposta às críticas da sociedade civil aos projetos, a lei lida com a combinação das reparações com outras formas de assistência. Embora reconhecendo que as medidas de assistência humanitária e social podem complementar e aumentar o impacto das reparações, elas não seriam um substituto, e, portanto, as quantias gastas com estas medidas não devem ser contadas no orçamento destinado à reparação55. Ela também lida com a interação entre as reparações e os processos contra os supostos autores. A lei prevê reparações a serem financiadas pelos perpetradores, bem como, quando necessário, pelo Estado. Ela cria unidades especializadas da polícia para rastrear ativos ocultos dos perpetradores, e cria a obrigação de repassar para o Gabinete do Promotor informações que envolvam indivíduos, empresas ou funcionários públicos na prática de crimes pelos quais reparações são pleiteadas. Se a entidade for considerada culpada, o valor que for averiguado como tendo sido usado para financiar organizações ilegais deverá ser destinado ao Fundo de Indenizações em favor das vítimas56. Ela tem componentes similares aos de outros programas de reparação, incluindo um pagamento fixo (que varia entre 17 e 40 salários mínimos, ou entre US$ 5.000 e US$ 11.800), dependendo do tipo de infração. O valor é maior se o beneficiário se comprometer a não processar o Estado por danos. Ela prevê serviços funerários gratuitos ou o seu reembolso e ajuda emergencial, se necessário, para custear alimentos, bens domésticos básicos e abrigo. O acesso à educação deve ser livre através da escola secundária às vítimas que não podem 54

Ibid., art. 13. Ibid., art. 25. 56 Ibid., art. 46. 55

 

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pagar, e a educação universitária deve ser acessível através de requisitos de admissão especiais, bem como de empréstimos e subsídios, incluindo a garantia de acesso a programas de formação estatais. Acesso à assistência médica é contemplado através de seguro de saúde gratuito do governo, cabendo ao governo o pagamento de quaisquer taxas extras; as vítimas devem usar os mesmos mecanismos utilizados pelas vítimas de acidentes de trânsito e de desastres naturais, sendo que eles ainda recebem acesso gratuito ao atendimento privado, caso o sistema público seja insuficiente. Também prevê subsídios de habitação, assistência psicossocial especializada, isenção do serviço militar, benefícios fiscais e medidas simbólicas, incluindo um dia de lembrança às vítimas. O ponto central da Lei das Vítimas é a estruturação do sistema de restituição de terras. Ele é aplicado às terras perdidas depois de 1 de janeiro de 1991 (e não a partir de 1985, como nas outras formas de reparação). A lei estabelece, em seu artigo 72, que o retorno legal e real das terras que foram expropriadas, juntamente com o suporte pós-restituição, é o objetivo central; apenas quando esse objetivo não puder ser atendido (por causa da contínua falta de segurança, por exemplo), então deverão ser fornecidas terras equivalentes ou compensação57. As terras devem ser devolvidas aos proprietários, moradores ou possuidores, mesmo que eles não tenham título formal; arrendatários, no entanto, são excluídos. A definição de expropriação é: “uma ação pela qual, aproveitando-se da situação de violência, uma pessoa é arbitrariamente privada de sua propriedade, posse ou ocupação, seja por meio de contratos, atos administrativos, decisões judiciais, ou pelo cometimento de crimes relacionados com a situação de o

57

 

Ibid., art. 72.

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violência”58. A lei também se aplica àqueles que foram obrigados a abandonar suas terras. Ela só se aplica às terras, não envolvendo benfeitorias, gado, colheitas ou direitos de subsolo. A lei cria um registro de Terras Expropriadas ou Forçadamente Abandonadas e daqueles que afirmam terem sido despojados. Uma vez que tanto o reclamante como a terra são registrados, dá-se prosseguimento a um processo administrativo. Um dos aspectos mais interessantes da lei colombiana é a forma como ela estabelece o nexo de causalidade necessário para a expropriação. Ao invés de exigir que o requerente prove que ele se enquadra na definição acima, a lei inverte o ônus da prova através do uso de presunções59. Uma vez que o requerente demonstre que perdeu suas terras durante o período de tempo em questão, há uma presunção de que qualquer contrato, transferência de título ou outro documento, assinado pelo requerente ou por sua família, com aqueles que foram condenados por pertencer ou por financiar grupos armados ilegais ou traficantes de drogas ou pessoas extraditadas sob a acusação de tráfico — diretamente ou através de intermediários —, foi concluído sob coação e, portanto, é nulo ab initio. Isso também é verdade quando a transação, mesmo se ratificada por ato administrativo ou pelos tribunais, ocorreu em uma área onde, no momento da expropriação ou abandono, houve atos generalizados de violência, deslocamentos forçados coletivos ou graves violações de direitos humanos, ou onde os envolvidos pediram proteção ao Estado. Uma presunção de ilegalidade similar aplica-se às terras que fazem fronteira com aquelas em que, na sequência de atos de violência, houve uma concentração da propriedade ou uma mudança na estruturação de uma cooperativa 58 59

 

Ibid., art. 74. Ibid., art. 78

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agrícola, ou houve mudanças substanciais no uso da terra, por exemplo, da agricultura de subsistência passou-se à monocultura, ao pastoreio extensivo de gado ou à mineração industrial. Um terceiro conjunto de circunstâncias que leva à mesma presunção refere-se às terras que foram vendidas por menos de metade do seu valor real. Qualquer ação judicial posterior também é nula e sem efeito e, portanto, os tribunais são livres para reabrir a venda60. Assim, os legisladores tentaram levar em consideração os padrões vigentes de ilegalidade, tenham sido ou não posteriormente formalizados. A lei permite que sejam concedidas terras alternativas, ao invés da restituição, onde o terreno em questão esteja a caminho de um desastre natural, onde a casa tenha sido destruída, onde tenham ocorrido vários deslocamentos e a terra em questão já tenha sido dada de volta a outra pessoa, ou onde seja muito perigoso para o requerente voltar. A compensação também poderá ser paga; compensação, tanto para as vítimas como para os subsequentes compradores de boa-fé, a ser paga pelo governo. Uma das disposições mais controversas da lei diz respeito às áreas onde as terras expropriadas foram transformadas em projetos do agronegócio. Assim como acontece com as “parcerias estratégicas” dos sulafricanos, a meta tem sido aliar os direitos dos requerentes com o desejo de manter o valor econômico dos projetos. O artigo 99 da lei permite que o magistrado decida reconhecer os direitos legais dos requerentes, mas também autoriza o atual proprietário a arrendar a terra pelo prazo do projeto, contanto que ele ou ela tenha sido um comprador de boa-fé e não tenha sido considerado responsável pela expropriação. Se o atual proprietário for responsável, o terreno é revertido para 60

 

Ibid., art. 77.

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o órgão estatal, com vistas a ser utilizado em reparações coletivas na área ou para ser dado a outros afetados. Em uma tentativa de evitar que as terras recentemente devolvidas sejam vendidas sob novas pressões econômicas ou de segurança, a lei proíbe a venda das terras recentemente restituídas por dois anos e requer uma aprovação judicial para locações durante esse período. Para evitar invasões, os requerentes em potencial que voltam para suas terras antes de possuírem uma ordem judicial que lhes concede esse direito podem ser expulsos e perder seus direitos à restituição61. Um grande problema potencial surge da necessidade de julgar esses casos perante magistrados especializados dos tribunais civis locais; onde esses não existam, juízes municipais ou outros juízes locais poderão decidir. Isso envolverá muita preparação e treinamento para os novos juízes, o que demandará algum tempo. Encontrar o pessoal adequado competente será difícil, dada a persistente insegurança no interior do país, que já deu origem a ameaças contra juízes, bem como contra os requerentes iniciais, dos quais mais de cinquenta já foram mortos62. Onde os juízes não são ameaçados, eles são suscetíveis a integrarem parte das elites locais que passivamente apoiaram o trabalho dos grupos paramilitares. Além disso, é possível que o trabalho de levantamento e definição dos limites exatos 61

Ibid., art. 207. Nesse sentido, há um paralelo com a Lei 975, em que parte da razão de existirem tão poucas convicções é que o grupo de funcionários de investigação necessário para a confirmação das alegações de desmobilização de paramilitares não foi posto em serviço. GUEMBE, Maria José; OLEA, Helena. No Justice, No Peace: Discussion of a Legal Framework Regarding the Demobilization of Non-State Armed Groups. In: ROTH-ARRIAZA, Naomi; MARIEZCURRENA, Javier. (eds.). Transitional Justice in the Twenty-First Century: Beyond Truth versus Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 120142. 62

 

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das propriedades seja demorado e contestado em muitas áreas. O programa de restituição de terras é uma tentativa ambiciosa de resolver uma das causas subjacentes, bem como as consequências, do longo conflito. Ela deveria se encaixar em uma lei de desenvolvimento rural que forneceria o suporte pós-restituição para os pequenos agricultores – incluindo crédito, sementes melhoradas e assistência técnica – que será necessário para que a restituição tenha chance de proporcionar um padrão de vida adequado. No entanto, seu maior desafio vem da contínua insegurança e dos conflitos armados. Ao contrário da África do Sul, a Colômbia ainda enfrenta desafios vindos do grupo armado de esquerda, as FARC, de grupos paramilitares recémreconstituídos (conhecidos como Bacrim) e das redes de tráfico de drogas. As forças armadas e autoridades locais também cometeram abusos contra camponeses, comunidades indígenas e afro-colombianas, especialmente onde a exploração mineral está em jogo63. Algumas áreas são seguras para a restituição, enquanto outras claramente não o são. A lei inclui elaboradas disposições de segurança e amarra a restituição ao precoce sistema colombiano de alerta por violações aos direitos humanos. Ela reconhece os direitos de participação e processuais das vítimas, e “o direito de retornar ao lugar dele ou dela de origem ou de mudar de forma voluntária, com segurança e dignidade no âmbito da segurança nacional”64. Mas se muitos líderes de comunidades que retornaram forem ameaçados ou mortos, o processo pode chegar a um impasse. Pior ainda, dada a precária situação de segurança ao lado do longo período de tempo passado desde a ocorrência dos deslocamentos forçados, muitas pessoas podem ter se estabe63 HUMAN RIGHTS WATCH. Columbia. In:________.World Report 2012. New York: Human Rights Watch, 2012. 64 Ley de Víctimas y Restitución de Tierras, art. 28, 8.

 

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lecido em outros lugares ou estar assustadas demais para voltarem, e podem, portanto, optar por aceitarem terras alternativas ou uma compensação. A experiência sul-africana mostra que, conforme o tempo passa sem que haja uma solução clara, mais pessoas tenderão a desistir das terras e aceitar o dinheiro da compensação. Se for esse o resultado, o programa de restituição terá servido para legalizar a expropriação violenta, ao mesmo tempo em que deixa os despossuídos com pouco para mostrarem.

A Nova Fronteira Reparações por violações aos direitos ESC enfrentam a particular dificuldade de delimitação dos atores responsáveis pelas violações. As violações à integridade física, que têm sido o foco da maioria dos programas de reparação, também são crimes previstos na ordem jurídica nacional e/ou internacional e, por isso, é possível (embora não seja fácil) perseguir os autores individuais, diretos e indiretos, bem como apontar a responsabilidade do Estado, no mínimo, por sua incapacidade de proteger. Tem sido muito difícil, mesmo nessa esfera, ir além do Estado, para responsabilizar assim os financiadores, fornecedores de armas ou financiadores estrangeiros do conflito por suas contribuições65. No caso de violações aos direitos ESC, 65 Várias comissões da verdade, incluindo de El Salvador e de Serra Leoa, recomendaram que aqueles que armaram e beneficiaram o conflito devem contribuir para a reparação dos danos, mas até agora os alvos dessas recomendações não responderam. Uma exceção é a contribuição do Banco Riggs de Washington, DC, para um fundo para vítimas de Pinochet, no Chile, exigido como parte de uma barganha com os promotores espanhóis sobre as acusações de lavagem de dinheiro e ocultação das contas no exterior de Pinochet. ROTHARRIAZA, Naomi. The Multiple Prosecutions of Augusto Pinochet. In: LUTZ, Ellen; REIGER, Caitlin. (orgs.). Prosecuting Heads of State. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 77-94.

 

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bancos, instituições financeiras internacionais ou multinacionais também podem desempenhar um papel importante na recusa de alimentos ou destruição dos meios de subsistência; contudo, traçar essas conexões é ainda mais difícil. Além disso, a linha entre os conflitos (ou ditaduras) relacionados a violações e o processo de desenvolvimento “normal” é imprecisa. Deslocamentos forçados, com a consequente perda dos meios de subsistência, também ocorrem fora do contexto de um conflito armado; milhões de pessoas foram deslocadas no último quarto de século por barragens, minas, reservas de vida selvagem e parques, plantações para a produção de óleo de palma e outros projetos de “desenvolvimento”. Embora, teoricamente, sejam concedidas terras equivalentes acrescidas da remuneração e dos serviços às pessoas que são forçadas a se deslocar, esse, muitas vezes, não é o caso. Terras “equivalentes” acabam tornando-se disponíveis apenas porque ninguém as quer, as escolas são deixadas parcialmente construídas ou sem pessoal e se prova impossível que as pessoas mantenham seu estilo de vida anterior, que geralmente incluía o uso dos recursos naturais locais. Desintegração social, alcoolismo e outros males, assim como o aumento da marginalização, são os resultados mais frequentes. Esta marginalização, por sua vez, prepara o cenário para violentos protestos, que, por sua vez, levam a um novo ciclo de repressão e violência. É esse o tipo de violência a ser incluído em um paradigma pósconflito ou de transição? Um caso de “sobreposição” envolve a Barragem Chixoy na Guatemala. A barragem, financiada pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, foi construída no início da década de 1980 e deslocou à força mais de 3.500 Achi Maya. Quando os membros da comunidade da vila do Rio Negro protestaram porque as terras alternativas oferecidas eram impróprias e a remuneração inadequada, eles foram massacrados por patrulhas civis paramilitares, que agi  

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ram sob as ordens das forças armadas; 444 pessoas foram mortas. O massacre ocorreu durante o auge da campanha genocida da década de 1980 e ele próprio acabou por ser o tema do Programa Nacional de Reparações descrito acima, bem como de vários processos criminais contra os perpetradores diretos e de um processo contra o governo na Corte Interamericana de Direitos Humanos66. As vítimas trabalharam em prol da reparação nos níveis nacional e interamericano simultaneamente, com uma nova estratégia de concentrar-se nos bancos que financiaram o projeto Chixoy. Elas argumentaram que os bancos, assim como o governo, sabiam que a barragem estava sendo construída por um regime assassino e que seria pouco provável que estabelecesse condições adequadas para as pessoas que estavam sendo deslocadas. Os danos causados pelo projeto eram extensos, e incluíram a perda de terrenos, habitações, gado, plantações, áreas de pesca e locais religiosos. O rio estava poluído e a comunidade dispersa por quatro locais diferentes. A comunidade queria reparação de todas as perdas. Mais de uma década de negociações se seguiu. Em 1996, o Banco Mundial investigou as alegações e descobriu que a empresa de eletricidade, que então era estatal, tinha compensado apenas parcialmente a comunidade. Por exemplo, os títulos das terras alternativas nunca haviam sido concedidos e nem todas as pessoas elegíveis ao recebimento tinham adquirido as terras alternativas, sendo que a terra, quando recebida, era de má qualidade. Nem todas as 66

O caso foi decidido em 4 de setembro de 2012. O Tribunal considerou o governo responsável por violações à Convenção Americana, incluindo o artigo 22 que se refere à liberdade de circulação e residência, como resultado, em parte, do deslocamento forçado da população durante o conflito armado interno e a impossibilidade de retornar às suas terras ancestrais devido à construção da barragem e do reservatório. Caso dos Massacres do Rio Negro v. Guatemala, set. 4, 2012, Série C, nº 250, parágrafos 172-182.

 

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casas prometidas foram construídas e aquelas que foram construídas também eram de má qualidade. Água potável havia sido prometida, mas o fornecimento era caro e pouco frequente. Outros elementos prometidos para o assentamento, como um caminhão para a comunidade, um barco e os pagamentos pelas plantações perdidas, não tinham sido cumpridos. As únicas partes da compensação prometida que tinham realmente se materializado eram a eletricidade gratuita, uma escola e um centro de saúde na vila recém-reassentada67. Tornou-se claro que era impossível processar os bancos diretamente em qualquer órgão administrativo ou judicial devido às imunidades; no entanto, como resultado da pressão de organizações da comunidade e dos parceiros internacionais da sociedade civil, os bancos concordaram em financiar uma solução por parte do governo68. Em 10 de abril de 2010, o Plano de Reparações pelos Danos Sofridos pelas Comunidades Afetadas pela Construção da Barragem Chixoy foi assinado e acordado por todas as partes. O plano inclui disposições para compensar os membros da comunidade em até 154,5 milhões de dólares americanos pelos prejuízos e perdas materiais e imateriais, para construir e reparar as casas e melhorar os sistemas rodoviário e de saneamento de água e esgoto. O governo comprometeu-se com a criação de um plano de gestão da Bacia Chixoy baseado na gestão integrada da bacia hidrográfica, incluindo um fluxo de água adequado. Além disso, o Presidente da Guatemala vai apresentar um pedido de desculpas. As comunidades terão acesso aos documentos no Arquivo Histórico da Polícia Nacional 67

JOHNSTON, Barbara. Reparations and the Right to Remedy. Briefing Paper. World Commission on Dams, 2000. 68 Para a discussão sobre as imunidades do IFI, ver HERZ, Steven. Rethinking International Financial Institution Immunities. In: BRADLOW, Daniel; HUNTER, David . (eds.). International Financial Institutions and International Law. Alphen aan den Rijn: Kluwer, 2010. p. 137-165.

 

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relacionados ao massacre original e ao deslocamento. Apesar do acordo, seu texto ainda espera ser implementado69. Chixoy é um caso “híbrido”, porque as reparações pelas violações à integridade física (massacre), em um cenário de justiça transicional, e aquelas pelas violências econômicas foram sobrepostas. Embora nenhum processo tenha ainda começado, crescentes reivindicações decorrentes de abusos na Birmânia/Mianmar seriam outro caso híbrido, visto que projetos de barragens e de mineração, em grande escala, na região oriental povoada por minorias étnicas, como a Karen, levaram à resistência e à repressão na área. Essas violações podem ser tratadas dentro dos limites dos mecanismos de justiça transicional existentes devido à sobreposição e à intencionalidade evidente, tanto do deslocamento como da violência física. No entanto, a linha é imprecisa: é a expropriação forçada das terras tradicionais dos Endorois no Quênia parte de uma narrativa de justiça transicional ligada à expropriação forçada para ganho político, ou de uma narrativa de privatização dos recursos mais ligada à globalização, ou ambos? Os Endorois são um grupo de pastores indígenas, com cerca de 400 famílias, que pastavam o gado ao redor do Lago Bogoria, que eles consideram ser o centro de seu mundo espiritual. Suas terras eram possuídas comunitariamente como “terras de confiança”, até que o ex-presidente Moi de69

Segundo a Assessoria de Direitos Humanos da Presidência da República, o problema tem sido uma combinação da confusão burocrática sobre os mecanismos de pagamento e as incertezas sobre o que exatamente foi pago no acordo original, incompleto, com a empresa de eletricidade. Em certo momento, o governo tentou conseguir a aprovação da legislação para financiar o acordo, mas foi derrotado. Conversas posteriores ao acordo não foram adiante, com cada lado culpando o outro por mais atrasos. Nota da Comissão Presidencial dos Direitos Humanos (COPREDEH) ao Relator Especial da ONU sobre os Povos Indígenas para explicar os atrasos na liquidação, 2011 (em arquivo com a autora).

 

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signou a área como “reserva de caça”, em 1973. Apesar desta situação, as empresas cujos proprietários eram próximos ao governo obtiveram licença para extrair rubis na área e lojas de luxo surgiram na reserva. A comunidade não foi consultada a respeito de quaisquer dos projetos de turismo ou de mineração, e nem foi, apesar das promessas oficiais, beneficiária de qualquer um deles. Em vez disso, os Endorois foram expulsos de suas terras. Terras alternativas adequadas nunca foram encontradas e “uma comunidade que, até então, era autossuficiente em sua segurança alimentar, foi reduzida a um grupo de pessoas deslocadas internamente, dependente do Estado”70. Finalmente, os Endorois organizaram-se, encontraram aliados e ajuizaram uma ação para recuperarem o acesso ao Lago Bogoria e às terras ao seu redor. Quando os tribunais locais decidiram contrariamente à sua causa, eles levaram o caso à Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, reivindicando a restituição de sua terra ancestral, uma compensação pelo deslocamento ilegal da Reserva para Caça Lago Bogoria e um reconhecimento de que seus direitos à propriedade, à cultura, à religião, aos recursos naturais e ao desenvolvimento tinham sido violados71. A Comissão concordou com os requerentes ao longo de todo o processo e recomendou que os Endorois tinham o direito de serem acomodados dentro da Reserva, e que uma compensação deveria ser paga. Até agora, o governo queniano não cumpriu a decisão.

70 SING’OEI, Korir. The Endorois' Legal Case and Its Impacts on State and Corporate Conduct in Africa. Disponível em: . Acesso em: 6 out. 2012. 71 AFRICAN COMMISSION ON HUMAN AND PEOPLES’ RIGHTS. Centre for Minority Rights Development (Kenya) and Minority Rights Group International on behalf of Endorois Welfare Council v Kenya. Uma discussão completa das implicações do caso está além do escopo desse capítulo. Ver SING’OEI, The Endorois’ Legal Case.

 

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Isso é uma violação “transicional”, que pode ser corrigida usando os mecanismos de justiça transicional? Claramente, ondas sucessivas de expropriação e transferência de terras estão no centro das tensões étnicas e políticas do Quênia e periodicamente explodem em atos de violência, o mais espetacular deles em 200772. A Comissão para Verdade, Justiça e Reconciliação supostamente abordará estas questões em seu relatório e recomendações, já há muito atrasados. Por outro lado, ao contrário dos casos sul-africano, colombiano e guatemalteco, aqui a expropriação não estava a serviço de uma campanha, política ou militar, violenta, mas, simplesmente, era o resultado da política de exclusão, da venalidade, da ganância, e de objetivos de desenvolvimento equivocados. Quão diferente isso torna a questão? Em alguns aspectos, não é diferente em modo algum. O efeito sobre os expropriados é semelhante, assim como a falta de orientação e a denegação da justiça. Por outro lado, o que faz com que os programas de reparação sejam viáveis é seu caráter “transicional”, isto é, excepcional. Para expropriações ou desapropriações de terras, ordinárias, a compensação deve ser paga por uma questão de devido processo legal, pelos Estados ou pelos atores privados que se beneficiaram. É só porque isso não acontece efetivamente — propriedades comunitárias não são reconhecidos pelo direito, a terra “equivalente” nunca acaba por ser equivalente, não há nenhuma negociação em si, mas simplesmente um decreto — que se torna vantajoso para as vítimas de expropriações ordinárias colocarem suas reivindicações

72 Tensões estão aumentando novamente. Ver, e.g. AKWIRI, Joseph; JORGIC, Drazen. Rival Kenyan Tribes Clash Again over Land. Reuters, 11 Sep. 2012. Disponível em: . Acesso em: 26 dez. 2012.

 

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nos termos da transição, transformar o ordinário em extraordinário. Para as reparações serem, nesses casos, significativamente distintas, alguns critérios podem ajudar a resolver os casos de cada lado da imprecisa linha entre “transição” e os “casos relacionados com desenvolvimento”. Um pode ser a direção da causalidade: a violência e expropriação, com a ação governamental, ou com sua falta de proteção, leva à expropriação? Se assim for, isso pode sugerir eventos mais relacionados com a “limpeza étnica” familiar para os processos de justiça transicional. Se for a expropriação que conduz à violência, que então causa uma vasta gama de violações, isso tende a sugerir que serão necessários outros tipos de processos reparatórios. Alternativamente, podem-se distinguir efeitos “primários” e “secundários”: é a expropriação o objetivo, ou é um subproduto infeliz? Nenhum desses testes será satisfatório em alguns casos difíceis, mas eles ajudam a pensar em como expandir o universo de danos indenizáveis, sem esticá-lo além do ponto de ruptura.

Conclusões Este artigo suscita algumas das dificuldades envolvidas no tratamento das violações de direitos ESC dentro dos esquemas de reparação. Vários tópicos gerais podem ser tirados desta narrativa:

Que tipo de reparações? Como se observa, a maioria dos programas de reparação “integrais” incluem o dinheiro, bem como a prestação de serviços e alguma atenção a medidas simbólicas, não-pecuniárias. O dinheiro é geralmente um pagamento fixo. Da mesma forma, os programas de  

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restituição de terras oferecem a opção de pagamento em dinheiro ao invés de terras, e pretendentes frustrados podem escolher o dinheiro, em vez de esperarem um tempo maior pelas terras. Dinheiro também é a forma mais problemática de reparação, especialmente porque raramente há o suficiente, quando dividido entre os membros da família, a fim de proporcionar uma mudança de vida. O impacto das reparações pode, em alguns contextos culturais, ser diferente, dependendo se elas são feitas em espécie ou por meio de pagamentos em dinheiro, e se elas tentam compensar uma perda material, ao invés de uma morte injusta. Especialmente para as violações dos direitos envolvidos em uma subsistência adequada (alimentação, abrigo, água, etc.), a restituição em espécie, incluindo materiais de construção, insumos agrícolas ou animais de pastagem, sementes e instrumentos domésticos e de trabalho, como enxadas e panelas, pode ser mais apropriada. O reconhecimento explícito das violações de direitos ESC pode tornar mais claro que essa restituição em espécie corresponde às perdas materiais sofridas. Também pode ter uma ressonância mais cultural: a resolução de disputas costumeiras em grande parte da África, por exemplo, requer o pagamento dos danos em bovinos, e não em dinheiro. Ao mesmo tempo, a linha entre as perdas pessoais e de propriedades pode não ser a mesma em todas as sociedades. Em alguns lugares, animais domésticos podem ser vistos como seres sensíveis mais semelhantes à família, enquanto em outros, até mesmo plantações e bens domésticos podem ter espíritos. A restituição por meio de bens, ao invés de dinheiro, pode alterar os efeitos baseados no gênero e intrafamiliares do pagamento. A economia doméstica tende a ser a esfera das mulheres, enquanto a economia do dinheiro a dos homens. O controle sobre os recursos, então, tende a depender da esfera a que pertencem, de modo que, quando do fornecimento de bens, será mais provável que eles se mantenham nas mãos das  

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mulheres. Os animais domésticos, em particular, são mais propensos do que o dinheiro a serem utilizados para melhorar a nutrição da família ou para aumentar o fluxo de renda sob o controle das mulheres. Por sua vez, os estudos mostram que a renda controlada pelas mulheres é mais provável de ser gasta na alimentação e na educação dos filhos. Na verdade, a restituição em espécie pode não ser praticável em áreas urbanas, nem tem o mesmo efeito em todas as culturas, mesmo nas rurais. Mas, mesmo lá, cuidados devem ser tomados de modo a se pensar em formas culturalmente apropriadas e economicamente benéficas de pagamentos individuais nãopecuniários, sejam elas, por exemplo, em materiais de construção ou em ferramentas que dão às vítimas os meios para viverem com dignidade. Deve-se pensar também na natureza e dimensão dos mercados disponíveis: se as coisas que as pessoas mais precisam não podem ser compradas no local, os pagamentos em dinheiro podem acabar beneficiando elites urbanas ou estrangeiras, ao invés de criar qualquer tipo de efeito multiplicador a nível local. Eles podem até servir para drenar a economia local de recursos humanos, como quando as pessoas usam seus pagamentos de indenizações para enviar seus jovens ao exterior para trabalharem como operários migrantes.

Processo como chave Como outras medidas da justiça transicional, reparações são, pelo menos, relativas tanto ao processo como quanto ao resultado. Brandon Hamber observa que a genuína reparação e a cura não ocorrem apenas, ou principalmente, através da entrega de um objeto ou de atos de reparação, mas também através do processo

 

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que ocorre ao redor do objeto ou ato73. Para muitos beneficiários, reparações não tiveram o sentimento de reparação, porque não houve nenhuma discussão ou negociação com eles, individualmente ou em comunidades, do que deveria ser reparado, e como. As pessoas são, na maior parte das vezes, simplesmente destinatários passivos de cheques ou de serviços. Lieselotte Viaene tem mostrado como, por exemplo, para as comunidades maias Kek'chi, reparações significativas teriam que envolver negociações coletivas com o governo e decisões coletivas sobre a forma e o conteúdo das medidas reparatórias74. Mesmo no Peru, onde o programa de reparação coletiva envolveu um processo de classificação comunitária de possíveis projetos a serem realizados pelo governo local, muitos destinatários sentiram que suas preferências receberam pouca atenção de municípios com outras prioridades75. A perspectiva processual privilegia o reconhecimento de danos e de ações individuais e da comunidade. Onde as violações aos direitos se originaram a partir da marginalização e da exclusão, um reequilíbrio da dinâmica do poder local em favor dos excluídos e marginalizados será fundamental. É especialmente necessário que seja dada maior atenção para a dinâmica de gênero, tanto intrafamiliar como nas comunidades locais76. Um programa de reparações bem projetado pode ajudar a reequilibrar o poder local. Obviamente, 73 HAMBER, Brandon. Narrowing the Micro and Macro: A Psychological Perspective on Reparations in Societies in Transition. In: DE GREIFF, Pablo (ed.). The Handbook of Reparations. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 580. 74 VIAENE, Voices From the Shadows. 75 INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE (ICTJ); ASOCIACIÓN PRO DERECHOS HUMANOS (APRODEH). Perú: ¿Cuánto se ha Reparado en Nuestras Comunidades. 76 RUBIO-MARIN, Ruth. What Happened to the Women?: Gender and Reparations for Human Rights Violations.Brooklyn, NY: Social Science Research Council, 2006.

 

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ele pode colocar os recursos mais necessários nas mãos dos que não estão no poder, que por sua vez podem destacar e tornar público o reconhecimento do Estado de que aquelas pessoas sofreram de forma desproporcional. Mas, até mesmo serviços como escolas, estradas ou centros de saúde, que irão beneficiar todos os que vivem na área, incluindo os autores, os espectadores e as equipes de resgate, bem como as vítimas77, podem ajudar a reequilibrar o poder em favor das vítimas. Se os serviços necessários para todos vêm para a comunidade por causa das necessidades e, melhor ainda, dos esforços de vítimas e sobreviventes, isso lhes proporciona uma fonte de status e orgulho aos olhos de seus vizinhos. Uma fonte de status em muitas culturas e comunidades é a capacidade de trazer recursos que deem suporte ao bem comum, ou seja, ser um benfeitor78. Deixando claro que as vítimas são o motivo dos serviços chegarem, mesmo que esses serviços beneficiem a todos, reparações coletivas podem começar a resolver um desequilíbrio de poder existente. Isso pode, por sua vez, permitir uma participação mais ampla das vítimas na governança local.

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Essas categorias são, obviamente, fluidas: a mesma pessoa pode cair em mais de uma categoria, por exemplo, resgatando algumas pessoas ao atacar outras; no seio das famílias, muitas vezes há representantes de todos eles. Pode ser impossível beneficiar apenas as vítimas “certas”; o Plano do Peru de Reparação Compreensiva (PIR), e.g., exclui os membros de grupos subversivos, mas esta disposição tem levantado uma série de críticas de que a exclusão é discriminatória e muito ampla. 78 Este fenômeno assume diferentes formas em diferentes culturas. É (pejorativamente) tratado como a capacidade de agir como padrinho, como um grande homem, ou motor e movimentador, mas o mesmo impulso motiva, pelo menos em parte, as grandes festas de casamento e doações pesadas para o ballet ou para a nova ala hospitalar.

 

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Quem paga pelas reparações? Na maior parte, os Estados têm pagado, mesmo quando as violações foram efetivamente cometidas por atores não-estatais, com base na teoria de que o Estado falhou em proteger e garantir os direitos. Essa situação é legalmente correta, mas especialmente quando estão em causa os direitos ESC, uma gama muito maior de atores tem responsabilidade moral e prática. Colocar todo o peso das indenizações no governo, especialmente em um governo que não estava no comando quando as violações aconteceram, solapa o apoio político para quaisquer indenizações e nega a importância simbólica dos malfeitores reconhecerem seus erros. Há alguns precedentes para o financiamento privado das reparações, embora a maioria dos exemplos seja ressaltada pela relutância dos agentes privados em tomar quaisquer ações que possam ser interpretadas como a admissão da culpabilidade pelos danos às vítimas. A Comissão Verdade e Reconciliação sul-africana recomendou que o setor privado pagasse uma taxa única sobre os rendimentos corporativos e uma doação de um por cento da capitalização de mercado das empresas públicas, uma sobretaxa retrospectiva sobre os lucros das empresas e um “imposto sobre a fortuna” para fazer reparos nos lucros excedentes gerados pelos salários da era do apartheid e pelas restrições sobre o trabalho. O setor privado se recusou, apesar do Business Trust ter fornecido fundos para as comunidades mais atingidas, sem nomeá-los como reparações79. O Plano Integral de Reparações Peruano (PIR) é financiado em parte pela “óbolo minero”, uma contribuição voluntária de três por cento do lucro líquido para o governo fornecida pelas empresas de minera79 COLVIN, Christopher J. “Overview of the Reparations Program in South Africa.” In: DE GREIFF, Pablo (ed.). The Handbook of Reparations. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 176-214. p. 209.

 

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ção, mas que não está especificamente ligada à reparação e tem muitos pretendentes; um imposto sobre os lucros inesperados na mineração no Peru foi rejeitado. Os fundos privados também podem vir a partir do rastreamento e do confisco dos bens de criminosos e dos ganhos ilícitos de ex-líderes. Além das leis colombianas descritas acima, o PIR peruano também foi parcialmente financiado por um fundo especial criado para manter as verbas recuperadas de ex-funcionários do governo acusados de peculato por parte do Estado80. Nos casos de corrupção em grande escala ou invasão de recursos públicos, que muitas vezes acompanham outros tipos de violações de direitos, os bens dos responsáveis devem ser usados, pelo menos em parte, para reparar as vítimas. Violações dos direitos ESC envolvem muitas vezes empresas privadas ou financiadores internacionais (multinacionais ou binacionais). No caso das empresas privadas, o cenário internacional emergente invoca essas empresas a utilizarem a devida diligência a fim de evitar a violação de direitos e de fornecer uma solução para as violações que ocorrerem81. Com o desenvolvimento da estrutura de soluções, seria importante garantir que ele seja consistente com a evolução do pensamento sobre as reparações dos Estados, especialmente no que diz respeito à necessidade do reconhecimento e do tratamento dos requerentes. 80

ROHT-ARRIAZA, Naomi; ORLOVSKY, Katharine. A Complementary Relationship: Reparations and Development. In: DE GREIFF, Pablo; DUTHIE, Roger. (eds.). Transitional Justice and Development: Making Connections. Brooklyn, NY: Social Science Research Council, 2009. p. 213. 81 UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS COUNCIL. Human Rights and Transnational Corporations and Other Business Enterprises. A/HRC/17/L.17, 10 jun. 2011. Para mais informações sobre os “Ruggie Principles,” que estão além do escopo desse artigo, ver em geral FLETCHER FORUM. Business and Human Rights: Together at Last? A Conversation with John Ruggie. The Fletcher Forum of World Affairs Journal, v. 35, n. 2, p. 117-122, 2011.

 

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Que tipo de reformas? Finalmente, tratar seriamente as violações dos direitos ESC exige alguma ampliação do que se entende por “garantias de não repetição”, um componentechave no cenário internacional sobre as reparações. Até agora, a maioria dessas medidas foram ligadas às reformas militares e das polícias, bem como da formação de juízes e promotores e das práticas de detenção. Aqui, uma ampliação do quadro para incluir violações de direitos ESC exigiria uma atenção precoce e equivalente às medidas destinadas a reduzir ou superar a marginalização e a negação de serviços. Reforma educacional e programas de proteção social, por exemplo, passariam a fazer parte do planejamento de transição, não sendo algo a ser adiado até que "normalidade" volte. Isso exigiria mudanças nos prazos e mentalidades dos doadores e do IFI, bem como do governo. As reparações podem ser uma fonte de melhoria dos direitos ESC, e violações a estes podem e devem ser corrigidas por meio de estratégias e programas específicos. Como violações maciças aos direitos humanos estão cada vez mais interligadas com as ameaças às terras e aos meios de subsistência, é necessário repensar as reparações por esses danos.

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Um modelo para políticas de reparações Lições do Fundo Fiduciário em Benefício das Vítimas do Tribunal Penal Internacional1

Thomaz  Francisco  Silveira  de  Araujo  Santos2  

Resumo: O artigo trata da estrutura de funcionamento do Fundo Fiduciário em Benefício das Vítimas, instituição voltada a vítimas de crimes internacionais sob a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. A análise tem o objetivo de averiguar se ela pode servir de modelo institucional para políticas de reparação de âmbito nacional ou regional, tendo em vista os processos recentes de justiça de transição em curso no contexto latino-americano.

1 Uma versão estendida deste artigo foi publicada anteriormente como capítulo de livro. Ver SANTOS, Thomaz Francisco Silveira de Araujo. As reparações às vítimas no Tribunal Penal Internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2011. 2 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (2005); Mestre em Relações Internacional pela Universidade de Brasília (UnB) (2008); Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS (2012). Professor do Curso de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing – Sul (ESPM-Sul) e Professor dos Cursos de Direito e Relações Internacionais do Centro Universitário Ritter dos Reis/Porto Alegre (UniRitter/POA).

 

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Palavras-chave: Fundo Fiduciário em Benefício às Vítimas e seus Familiares; Tribunal Penal Internacional; políticas de reparação. Abstract:The article deals with the working structure of the Trust Fund for the Benefit of Victims, an institution directed towards victims of international crimes under the jurisdiction of the International Criminal Court. The goal of the analysis is to ascertain whether it can serve as an institutional model for national or regional reparation policies, bearing in mind the recent processes of transitional justice currently underway in the Latin-American context. Keywords: Trust Fund for the Benefit of Victims; International Criminal Court; Reparation policies

1. Introdução. Este artigo pretende fazer uma breve análise da estrutura e do desenho institucional do Fundo Fiduciário em Benefício das Vítimas e seus Familiares (ou “Fundo”), instituição relacionada ao Tribunal Penal Internacional (“Tribunal” ou “TPI”), mas autônoma na sua administração. A partir de tal exame, objetiva-se averiguar se o Fundo pode servir como modelo institucional para organização de regimes e políticas de reparações a vítimas de graves violações de direitos humanos e de crimes internacionais, tanto no âmbito nacional como regional. Será dada atenção especial para os poderes independentes que o Fundo tem para determinar reparações individuais e coletivas às vítimas, mesmo na ausência de sentenças condenatórias do TPI, por meio do que aqui chamarei de “cláusula do benefício”, conforme previsto no regulamento do Fundo. Uma vez que a análise se concentrará no desenho institucional do Fundo como um modelo para organizações de inciativas e instituições semelhantes, questões recentes rela  

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cionadas ao tema mas não centrais à proposta do presente artigo, como a decisão do TPI estabelecendo os princípios gerais para reparações às vítimas no caso “Thomas Lubanga Dyilo”, serão abordadas de forma tangencial.3 A relevância e a pertinência da análise de uma instituição como o Fundo para modelos nacionais e regionais de políticas de reparação se apoia em alguns motivos centrais. Em primeiro lugar, a consagração de uma justiça de transição do Brasil, particularmente, e na América Latina, como um todo, certamente passará pela questão da reparação devida às vítimas diretas e indiretas de crimes internacionais como a tortura e o desaparecimento forçado e de demais violações massivas de direitos humanos tão comuns aos períodos de ditadura militar na região.4 E, em segundo lugar, dada a dimensão e o alcance social desses crimes, reparações individuais determinadas por ordem judicial, por exemplo, não seriam a resposta institucional ideal. Os danos diretos e os efeitos indiretos decorrentes dos ilícitos cometidos sob a égide das ditaduras militares latino-americanas poderiam ser melhor combatidos por uma instituição que privilegiasse iniciativas coletivas em benefício das vítimas desses crimes.5

3

Para a decisão do TPI, de 7 de agosto de 2012, acessar http://www.icccpi.int/Menus/Go?id=f491ef55-3612-4205-a195-d44a7b90ca0a&lan=en-GB (Acesso em 09/04/2013). Para comentários sobre os efeitos potenciais dessa decisão, ver http://www.vrwg.org/home/home/post/36-lubanga-case---q--aon-icc-landmark-decision-on-reparations-for-victims#_ftn1 (Acesso em 09/04/2013) e http://www.lubangatrial.org/2012/08/10/icc-issues-guidanceon-reparations-for-victims-of-lubangas-crimes/ (Acesso em 09/04/2013). 4 PINTO, Mónica. L’Amérique latine et le traitment des violations massives de droits de l’Homme – Institut des Hautes Etudes Internationales de Paris, Cours e Travaux nº 7. Paris: A. Pedone, 2007, pp. 24-34. 5 PINTO, op. cit., pp. 18-24.

 

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2. A criação do Fundo Fiduciário em Benefício das Vítimas e seus Familiares Após a entrada em vigor do Estatuto de Roma do TPI, em 1º de julho de 2002, foi criado o Tribunal e, com ele, a Assembleia dos Estados-Parte do Tribunal (ou “Assembleia”). E já na primeira sessão da Assembleia, de 3 a 10 de setembro de 2002, duas resoluções foram aprovadas, sendo uma criando oficialmente o Fundo6 e outra estabelecendo o processo de nomeação e eleição dos membros do Conselho de Administração do Fundo.7 Essas resoluções previam como seria a estrutura organizacional do Fundo, quais seriam as suas fontes de recurso e, o mais importante, as suas funções e atividades em benefício das vítimas.8 Além dessas duas resoluções, bem como outras posteriores que serviram para complementar a estrutura organizacional do Fundo, atenção especial será dada ao Regulamento do Fundo, aprovado pela Assembleia em 3 de dezembro de 2005 e documento de fundamental importância, pois detalha e esclarece diversas questões quanto às atribuições do Fundo, notadamente o que se optou por chamar de “cláusula do benefício”, que diz respeito à possibilidade de ajuda emergencial ser conferida pelo Fundo às vítimas de crimes sob a jurisdição do Tribunal mesmo não havendo decisão condenatória de alguma câmara do Tribunal contra um réu.

6

Resolução ICC-ASP/1/Res.6, de 9 de setembro de 2002, disponível em http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso 09/04/2013). 7 Resolução ICC-ASP/1/Res.7, de 9 de setembro de 2002, disponível em http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso em 09/04/2013). 8 FERSTMAN, Carla. “The International Criminal Court’s Trust Fund for Victims: Challenges and Opportunities”, Yearbook of International Humanitarian Law, v. 6, 2003, pp. 425-426.

 

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2.1 Estrutura organizacional do Fundo Fiduciário Tendo sido previsto como uma instituição independente do TPI, com administração e recursos próprios, o Fundo é formado por um Conselho de Administração de cinco membros eleitos pela Assembleia a partir de cinco grupos que buscam representar diferentes culturas e continentes: o Grupo dos Estados Africanos, o Grupo dos Estados da Europa Oriental, o Grupo dos Estados da América Latina e Caribe, o Grupo de Estados Asiáticos e o Grupo da Europa Ocidental e Demais Estados.9 O Conselho de Administração, em que os membros possuem um mandato de três anos, trabalham de forma voluntária e reúnem-se ao menos uma vez por ano, é responsável pela administração do Fundo e dos recursos a ele repassados segundo as regras constantes no Estatuto de Roma e demais regulamentos, e deliberações feitas pela Assembleia. Em 2004, a Assembleia decidiu pela criação de um Secretariado do Fundo para auxiliar o Conselho de Administração no desenvolvimento de suas atividades, notadamente em atividades e projetos relativos à implementação das reparações ordenadas pelo TPI. Uma vez que as reuniões do Conselho são anuais e servem mais para traçar a estratégia a ser aplicada pelo Fundo, um Secretariado presente e participativo é uma ferramenta indispensável para tratar de questões envolvendo, em primeiro lugar, as vítimas dos crimes que estão sendo investigados pelo Tribunal e também as vítimas de todos os crimes sob a jurisdição do Tribunal,10 uma questão que diz respeito ao 9 A composição atual do Conselho de Administração do Fundo, eleito pela Assembleia dos Estados-Parte em novembro de 2012, está disponível em http://www.trustfundforvictims.org/board-directors (Acesso em 07/04/2013) 10 DE BROUWER, Anne-Marie. “Reparation for Victims of Sexual Violence: Possibilities at the International Criminal Court and at the

 

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alcance das atribuições do Fundo e que será tratada a seguir. É importante perceber que a estrutura organizacional do Fundo permite que ele seja independente do Tribunal, ainda que em algumas situações necessite da colaboração do Secretariado do Tribunal, conforme já decidido pela Assembleia. Aliás, foi o Secretariado do Tribunal que possibilitou a realização da primeira reunião do Conselho de Administração do Fundo, em 2004, e também deu apoio na preparação do primeiro relatório do Conselho à Assembleia, também em 2004, o que demonstra que o trabalho conjunto realizado por diferentes órgãos do Tribunal, todos agindo sob a tutela da Assembleia, pode ter impacto ainda maior na área de reparações a vítimas, dada a complexa natureza dessa questão, interdisciplinar e interdepartamental por natureza.11

2.2 Recursos do Fundo: apreensões de bens, reserva de valores para reparações determinadas pelo Tribunal e doações voluntárias. Conforme decidido pela Assembleia, os recursos do Fundo Fiduciário podem ser originados de quatro tipos de fonte: a) contribuições voluntárias de governos, organizações internacionais, indivíduos, corporações e outras entidades, de acordo com os critérios relevantes a serem estabelecidos pela Assembleia; b) somas e demais bens coletados por meio de multas ou sequestros transferidos ao Fundo pelo Tribunal de acordo com o disposto no Artigo 79, parágrafo 2, do Estatuto; c) recursos coletados por meio de títulos de reparação determinados pelo Tribunal, de acordo com a Regra 98 das Regras de Processo e Provas; e d) recurTrust Fund for Victims and Their Families”, Leiden Journal of International Law, n. 20, 2007, pp. 228-234. 11 FERSTMAN, op. cit., pp. 428-429.

 

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sos, além dos já citados, que a Assembleia dos decida alocar ao Fundo.12 Para solucionar as dúvidas existentes em relação ao funcionamento do Fundo, especialmente no tocante ao seu financiamento e à implementação das decisões do TPI em matéria de reparações, a Assembleia adotou, em 3 de dezembro de 2005, o Regulamento do Fundo Fiduciário em Benefício das Vítimas e seus Familiares (ou “Regulamento do Fundo”).13 O Regulamento do Fundo, além de tratar de questões de ordem administrativa como a eleição dos membros do Conselho de Administração, a escolha do Secretariado e a relação entre esses dois órgãos,14 dedica diversos artigos à obtenção de recursos15 e aos projetos e atividades do Fundo.16 No presente artigo, atenção maior será dada neste momento às doações voluntárias ao Fundo, a fonte que, nos primeiros estágio de funcionamento dessa instituição, pode ser de maior importância para o benefício das vítimas.17 No âmbito das doações voluntárias, o Conselho de Administração será responsável por campanhas e missões de arrecadação18 de recursos junto a governos,

12 Resolução de 9 de setembro de 2002, ICC-ASP/1/Res.6, parágrafo 2, disponível em http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso em 09/04/2013). 13 Resolução de 3 de dezembro de 2005, ICC-ASP/4/Res.3, disponível em http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso em 07/04/2013). 14 Parágrafos 1 a 19 do Regulamento do Fundo, disponível em http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso em 09/04/2013). 15 Parágrafos 20 a 41 do Regulamento do Fundo. 16 Parágrafos 42 a 75 do Regulamento do Fundo. 17 INGADOTTIR, Thordis, “The Trust Fund For Victims (Article 79 of the Rome Statute)”, in INGADOTTIR, Thordis (ed.), The International Criminal Court: Recommendations on Policy and Practice, Brill Academic Publishers, 2003, pp. 126-129. 18 FERSTMAN, op. cit., pp. 429-430.

 

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organizações internacionais, corporações, indivíduos19 e demais entidades,20 sendo que é mencionado expressamente que o Conselho deverá adotar uma estratégia específica sobre como obter contribuições financeiras de instituições privadas,21 como bancos e empresas, além de adotar mecanismos de verificação das fontes desses mesmos recursos.22 Interessante notar que, inicialmente, as doações voluntárias de governos não podiam ser destinadas a um projeto ou atividade específica do Fundo (“earmarked”), ou seja, não podia haver por parte de um Estado a determinação prévia do destino final dos recursos doados, pois isso poderia levar a usos políticos do Fundo.23 Tal cenário se modificou com a aprovação de uma resolução durante a Sexta Assembleia, quando foi decidido que doações de governos nacionais e outras entidades poderiam ser destinadas a fins específicos quando o processo de levantamento recursos partisse do Conselho de Administração ou do Diretor Executivo do Fundo.24 Já doações voluntárias de outras entidades podem ser destinadas a atividades ou projetos específicos do Fundo até 1/3 do seu total, e desde que sejam comprovadamente em benefício das vítimas e não resultem em discriminação do indivíduo ou grupo a que se destina.25 As doações voluntárias também podem ser recusadas por diferentes motivos pelo Fundo, como, por exemplo, quando forem consideradas contrárias aos 19

REISMAN, William M.; ARSANJANI, Mahnoush H. “The Law-in-Action of the International Criminal Court”, American Journal of International Law, n. 99, 2005, pp. 401-403. 20 Parágrafo 23, Regulamento do Fundo. 21 Parágrafo 24, Regulamento do Fundo. 22 Parágrafo 26, Regulamento do Fundo. 23 Parágrafo 27, Regulamento do Fundo. 24 Resolução de 14 de dezembro de 2007, ICC-ASP/6/Res.3, disponível em http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso em 09/04/2013). 25 Parágrafo 27 (a) e (b), Regulamento do Fundo.

 

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objetivos e atividades do Fundo,26 quando puderem afetar a independência do Fundo, ou quando sua destinação a um projeto ou atividade específica do Fundo for considerada inadequada.27 É importante aqui mencionar que o Fundo manterá contas separadas dependendo da natureza da Fonte e de sua destinação, havendo, por exemplo, uma Conta Geral em benefício das vítimas onde todas as doações não especificadas são depositadas.28 Segundo dados divulgados pelo próprio Fundo, ele dispõe apenas de recursos arrecadados a partir de doações voluntárias de Estados, organizações e indivíduos, totalizando o montante de aproximadamente €4.500.000,00 atualizado até novembro de 2009,29 sendo que, desse montante, um total de €1.800.000,00 foram alocados para reparações a serem determinadas pelo TPI, conforme decisão do Conselho de Administração do Fundo de 21 de março de 2013.30 Além disso, cerca de €600.000,00 foram alocadas especialmente para implementação de projetos especificamente na República Centro Africana, mas, em razão da instabilidade política recente no país e os riscos existentes em relação às vítimas de crimes internacionais, o Fundo decidiu suspender suas atividades no local até um momento mais propício para sua continuação.31 26 Nesse sentido, uma doação feita por um indivíduo acusado de crimes internacionais ou por Estado que é notório violador de direitos humanos poderiam ser recusadas pelo Fundo. Cf. REISMAN; MARSANJANI, op. cit., pp. 397400. 27 Parágrafo 30, Regulamento do Fundo. 28 Parágrafo 28, Regulamento do Fundo. 29 Dados disponíveis em http://www.trustfundforvictims.org/financial-info (Acesso em 09/04/2013). 30 Informações disponíveis em http://www.trustfundforvictims.org/news/tfv-board-directorsraises-reparations-reserve-18-million-euros (Acesso em 09/04/2013). 31 Informações disponíveis em

 

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Mesmo que, em um primeiro momento, a quantia esteja muito aquém das necessidades pelas quais passam as vítimas, as doações voluntárias são a melhor forma de prover o Fundo com recursos.32 Em primeiro lugar, elas são obtidas e administradas exclusivamente pelo Fundo, possuindo ele um grau de independência grande em relação ao TPI no tocante à utilização dos recursos advindos de doações.33 Em segundo lugar, as doações voluntárias são de mais fácil obtenção que as outras fontes de recursos disponíveis ao Fundo.34 Por exemplo, como obter acesso e congelar os bens de condenados por crimes internacionais quando a maioria desses indivíduos não os declara e inclusive alegam indigência perante tribunais internacionais? Se dependesse muito desse tipo de fonte, o Fundo dificilmente teria condições de elaborar projetos de atividades, porque estaria sempre na dependência do Tribunal conseguir ou não acesso a bens ou valores dos indivíduos acusados e condenados pelos crimes sobre os quais tem jurisdição.35 Finalmente, doações voluntárias, quando existe uma tendência política positiva, têm a possibilidade de serem somas consideráveis, superando em muito o valor de eventuais multas e apreensões de bens impostas pelo Tribunal. Contudo, as doações voluntárias são extremamente voláteis, pois estão ligadas à vontade política dos doadores, geralmente Estados que se sentem na “obrigação moral” de contribuir com vítimas http://www.trustfundforvictims.org/news/trust-fund-victimssuspends-its-activities-central-african-republic (Acesso em 09/04/2013). 32 VILMER, Jean-Baptiste Jeangéne. Réparer l’irréparable: les réparations aux victims devan la Cour Pénale Internationale. Paris: Presses Universitaires de France, 2009, pp. 144-152. 33 FERSTMAN, op. cit., pp. 430-431. 34 INGADOTTIR, op. cit., p. 126. 35 REISMAN; MARSANJANI, op. cit., pp. 402-403.

 

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internacionais, e são muito condicionadas pelo cenário político internacional, pela atenção que a mídia internacional oferece ao problema em questão e pelo seu caráter emergencial. Logo, não se apresenta recomendável que uma instituição como o Fundo dependa em demasia delas para financiar seus projetos e atividades.36 Quanto aos bens e valores apreendidos por ordem do TPI, quando uma Câmara do TPI decidir pela aplicação de multas a um acusado ou ordenar a apreensão de seus bens, o Conselho de Administração deverá ser consultado pela Câmara para emitir opinião oral ou escrita quanto à transferência desses bens e valores ao Fundo.37 Ademais, o Presidente do TPI deverá requisitar ao Conselho de Administração opinião oral ou escrita quanto à utilização e alocação dos bens e valores apreendidos, sempre dando prioridade para a reparação às vítimas do crime em questão.38 Esse mecanismo, contudo, não impede que um indivíduo sob a jurisdição do TPI declare indigência e impeça o acesso a quaisquer bens e valores seus que não tenha declarado. Nesse sentido, a cooperação com os Estadosparte é fundamental, pois muitas vezes as organizações policiais e judiciárias dos países podem obter acesso a bens valores registrados sobre o nome de outras pessoas relacionadas ao acusado, ou então a dinheiro depositado em contas no exterior, como é frequentemente tentado nos casos envolvendo traficantes de drogas que agem internacionalmente. O Regulamento também trata dos recursos advindos de reparações individuais determinadas pelo Tribunal e que devem ser mantidas 36

INGADOTTIR, op. cit., pp. 127-129. Regra 148, Regras de Processo e Provas, e Parágrafo 31, Regulamento do Fundo. 38 Regra 221, Regras de Processo e Provas, e Parágrafo 32, Regulamento do Fundo. 37

 

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separadas dos demais valores depositados39 e recursos alocados pela Assembleia mediante requisição feita pelo Conselho de Administração,40 devendo tais recursos, quando a Assembleia não se pronunciar sobre sua destinação, serem depositados na Conta Geral do Fundo para benefício das vítimas e seus familiares, quando for o caso.41 Além disso, o Regulamento prevê um constante rastreamento dos recursos do Fundo para efetivar sua implementação em benefício das vítimas,42 como, por exemplo, o recebimento por parte dos beneficiários de todos os recursos atribuídos, constando a data da decisão do TPI ordenando a reparação, a data de recebimento do beneficiário e, quando possível, a data de pagamento da entidade doadora.43 Esse procedimento de certificação das doações e demais recursos se justifica pelo fato do processo de benefício às vítimas dever ser o mais transparente possível para evitar fraudes e enriquecimento ilícito com os recursos destinados às vítimas, prevendo inclusive a elaboração de relatórios anuais detalhadas Conselho de Administração para apresentação na Assembleia,44 além de ser feita uma análise das contas do Fundo por um auditor externo indicado pela Comissão de Finanças e Orçamento da própria Assembleia.45

39

Parágrafo 34, Regulamento do Fundo. Parágrafo 35, Regulamento do Fundo. 41 Parágrafo 36, Regulamento do Fundo. 42 Parágrafo 39, Regulamento do Fundo. 43 Parágrafo 39(f), Regulamento do Fundo. 44 Parágrafo 76, Regulamento do Fundo. 45 Parágrafo 77, Regulamento do Fundo. 40

 

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2.3 As atribuições do Fundo: o caráter subsidiário ao TPI em matéria de reparações e a “cláusula do benefício”. O Fundo, ao ser criado com a intenção de salvaguardar os interesses e o bem-estar das vítimas e seus familiares, tem o potencial de se tornar uma instituição modelo no que diz respeito à reparação das vítimas46 e, nesse sentido, ultrapassar o ímpeto meramente punitivo dos tribunais penais internacionais anteriores, sedimentando-se como uma instituição de efetiva proteção internacional dos direitos humanos, ligada a um tribunal independente, permanente e de jurisdição reconhecida por seus Estados-parte, que hoje já somam mais de 122.47 Ou seja, por intermédio do Fundo, o Tribunal poderia trabalhar para a restauração da paz ao aplicar a justiça retributiva aos criminosos e a justiça restaurativa às vítimas.48 Para tanto, é necessário que seus poderes sejam interpretados da forma mais ampla possível,49 pois assim será mais provável que as vítimas vejam atendidas suas necessidades mais prementes ao mesmo tempo em que os responsáveis pelos danos a elas causados sejam levados à justiça.50 Em primeiro lugar, ao analisar os poderes do Fundo, é muito importante ressaltar que ele só pode agir em situações que estejam sob a jurisdição do TPI, ou seja, apenas situações ligadas aos seguintes delitos: 46

FISCHER, Peter G. “The Victims’ Trust Fund of the International Criminal Court – Formation of a Functional Reparations Scheme”, Emory Journal of International Law, v. 17, 2003, pp. 236-239. 47 A Costa do Marfim tornou-se o 122o Estado-parte do Estatuto de Roma em 15 de fevereiro de 2013. Para maiores informações sobre os Estados-parte do Estatuto, ver http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XVI II-10&chapter=18&lang=en (Acesso em 09/04/2013) 48 INGADOTTIR, op. cit., p. 113. 49 FERSTMAN, op. cit., pp. 433-434. 50 DE BROUWER, op. cit., p. 218.

 

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crime de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.51 Ademais, os crimes sob a jurisdição do TPI deverão ser posteriores à data de entrada em vigor do Estatuto, 1º de julho de 2002 (ou depois, caso o Estado em questão tenha ratificado o Estatuto após essa data).52 Por fim, para haver jurisdição, o crime deve ocorrer no território de um Estado-parte ou deve ser cometido pelo nacional de um Estado-parte.53 Não há, contudo, a exigência de que o Fundo aja apenas nas situações específicas que estejam sendo investigadas e julgadas pelo TPI,54 podendo eventualmente atuar em demais situações relacionadas a crimes que ainda não foram investigados e julgados pelo TPI, dessa forma atendendo ao clamor de diversas ONGs que veem o 51 Artigos 5 a 8 do Estatuto de Roma. A Fundo também poderia agir em situações ligadas ao crime de agressão, previsto no Artigo 5(d), mas a sua tipificação ainda não consta no Estatuto, pois a definição do crime de agressão, adotada na Conferência de Revisão do Estatuto de Roma, realizada em Kampala, Uganda, ocorrida de 31 de maio a 11 de junho de 2010, necessita de um mínimo de 30 ratificações para entrar em vigor. Até o momento, 5 Estados ratificaram, sendo o mais recente a Estônia, em 27 de março de 2013, conforme informações disponíveis em http://www.icccpi.int/en_menus/icc/press%20and%20media/press%20releases/Pages/pr893. aspx (Acesso em 09/04/2013). Para maiores informações sobre as emendas quanto ao crime de agressão, consultar http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XVI II-10-b&chapter=18&lang=en (Acesso em 09/04/13). 52 Artigo 11 (1)(2). 53 Artigo 12 (2)(a)(b). 54 Até o presente momento o TPI está investigando e julgando 18 casos ocorridos em 8 situações ocorridos nos seguintes Estados e territórios de Estados: Uganda, República Democrática do Congo, República Centro-Africana, Líbia, Mali, Quênia, Costa do Marfim e Darfur, no Sudão. Dessas situações, Líbia e Darfur foram levado ao TPI por recomendação do Conselho de Segurança da ONU e Quênia e Costa do Marfim foram por iniciativa proprio motu do Procurador, enquanto os outros quatro foram levados pelos respectivos países. Para maiores informações sobre as situações e casos atualmente sendo investigados pela Promotoria e julgados pelo TPI, acessar http://www.icccpi.int/en_menus/icc/situations%20and%20cases/Pages/situations%20and%2 0cases.aspx (Acesso em 09/04/2013).

 

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Fundo como uma instituição capaz de dedicar-se a todas as questões envolvendo vítimas de crimes internacionais.55 A ausência de uma limitação expressa ao campo de ação de Fundo pode servir de instrumento para que seus projetos e atividades atinjam um número muito maior de vítimas, como, por exemplo, no caso de vítimas de crimes sexuais que não estão sendo investigados no momento pelo Tribunal, mas que estão sob sua jurisdição.56 Esse desenho institucional permitindo um amplo raio de ação ao Fundo é um de seus aspectos mais inovadores, mas não se tem exata noção até que ponto ele será exercido na sua plenitude.57 No momento, as atenções devem ser voltadas aos poderes do Fundo de acordo com o Estatuto, as Regras de Processo e Provas e, principalmente, o recentemente aprovado Regulamento. Como visto anteriormente, segundo o artigo 75 do Estatuto de Roma, o TPI poderá determinar em sua sentença, mediante requerimento ou, excepcionalmente, de ofício, o alcance e a magnitude dos danos, perdas ou prejuízos causados às vítimas e qual a melhor forma de determinar a reparação devida.58 Ainda, quando for apropriado, o TPI poderá ordenar que a indenização outorgada a título de reparação seja paga através do Fundo.59 Aqui, o Fundo assume o papel de um intermediário entre o condenado e as vítimas, especialmente naquelas situações em que o Tribunal determinar que a melhor forma de reparação é uma indenização, pois em se tratando de restituição de bens, por exemplo, a Câ55

TOMUSCHAT, Christian, “Reparation for Victims of Grave Human Rights Violations”, Tulane Journal of International and Comparative Law, n. 10, 2002, pp. 183-184. 56 DE BROUWER, op. cit., p. 229. 57 Ibidem, pp. 230-231. 58 Artigo 75(1), Estatuto de Roma. 59 Artigo 75(2), Estatuto de Roma.

 

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mara específica do TPI encarregada do caso pode fazer a transferência direta do bem, sem necessitar da ajuda do Fundo.60 Essa é uma função cujo desempenho faz o Fundo subsidiário do Tribunal, não podendo agir segundo suas próprias convicções e devendo ser acionado antes por alguma ordem do TPI.61 O artigo 79 do Estatuto também prevê que somas e bens recebidos pelo TPI a título de multa ou sequestro sejam transferidos ao Fundo,62 devendo ser mantidos separadamente dos montantes destinados às vítimas mencionados no artigo 75. Ou seja, uma das outras atribuições do Fundo seria a de um depositário encarregado de armazenar bens e valores apreendidos dos acusados e, posteriormente, repassar às vítimas as reparações individuais que lhe são devidas, a partir de um pedido do próprio TPI. No desempenho dessa segunda função, o Fundo também ocupa uma posição subsidiária à do Tribunal, pois será uma Câmara do Tribunal que decidirá a respeito das reparações às vítimas e será também uma Câmara que exigirá multas ou sequestro dos bens do condenado pelo crime em questão, posteriormente repassando o valor para o Fundo. Logo, a função ora analisada não difere em muito daquela já desempenhada por outros fundos e demais entidades encarregadas de repassar recursos a vítimas de violações de direitos humanos por parte de Estados, por exemplo, sempre cumprindo a determinação prévia de um tribunal ou corte.63 No que diz respeito às reparações coletivas, de acordo com a Regra 98 das Regras de Processo e Evidência, quando o número de vítimas e a natureza do dano fazem com que uma reparação coletiva seja mais 60

INGADOTTIR, op. cit., pp. 154-155. FERSTMAN, op. cit., pp. 432-433. 62 Art. 79(2), Estatuto de Roma. 63 INGADOTTIR, op. cit., pp. 111-113. 61

 

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adequada, o TPI pode exigir que tal reparação coletiva seja feita através do Fundo.64 Ademais, o TPI, mediante consulta com os Estados interessados e o próprio Fundo, pode decidir que um montante aferido a título de reparação seja repassado pelo Fundo a uma organização intergovernamental, internacional ou nacional aprovada pelo Fundo65, a fim de que a reparação de fato sirva de benefício às vítimas ou familiares das mesmas em determinada localidade. Logo, uma terceira atribuição do Fundo, de extrema importância para este estudo, diz respeito ao pagamento de reparações coletivas e à avaliação dos melhores métodos disponíveis para que tais reparações se tornem efetivas, o que inclui a participação de organizações internacionais no processo.66 No caso específico das reparações coletivas, alguns argumentos calcados em eficiência e efetividade levam a crer que, quando possível, é melhor prestar auxilio às vítimas coletiva e não individualmente. Em primeiro lugar, como o Fundo provavelmente contará com recursos escassos, o investimento desses recursos no maior número possível de pessoas será muito mais proveitoso do que em alguns casos individuais. Em segundo lugar, o auxílio meramente individual, quando atendendo a diversas demandas, pode levar ao esgotamento dos recursos do Fundo inclusive em razão dos gastos excessivos com operações administrativas de transferência de valores. Finalmente, o auxílio coletivo tem a vantagem de poder atingir vítimas que não foram identificadas e que, muitas vezes em razão da sua própria condição e de eventual preconceito das comunidades das quais fazem parte,

64

Regra 98(3), Regras de Processo e Provas. Regra 98(4), Regras de Processo e Provas. 66 Parágrafos 69 e 70 do Regulamento do Fundo. 65

 

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não têm condições de exigir seu direito a reparações por meio de procedimentos formais.67 Muitas vezes, quando o Fundo não tiver condições ele mesmo de implementar uma reparação coletiva, pode fazer uso do disposto na Regra 98 e pedir a colaboração de alguma organização que tenha experiência na proposta em questão, como, por exemplo, a construção de uma escola na língua nativa da população local ou a construção de um hospital dirigido às doenças mais comuns naquela determinada área.68 Mas talvez o ponto mais importante e inovador do Regulamento seja aquele tocante aos projetos e atividades do Fundo e às situações em que ele pode agir por iniciativa própria, sem necessitar de uma decisão final de uma Câmara do TPI. Em princípio, a única exigência imposta às reparações é que elas sejam sempre em benefício das vítimas, conforme definidas na Regra 85 das Regras de Processo e Prova, consistindo nas pessoas físicas que tenham sofrido dano como resultado de um crime sob a jurisdição do TPI, incluindo suas famílias, e eventualmente também podem ser consideradas vítimas organizações ou instituições dedicadas a fins religiosos, educacionais, artísticos, científicos ou assistenciais que tenham sofrido dano a sua propriedade ou a seus monumentos históricos, hospitais e demais lugares e objetos de propósito humanitário.69 Esse conceito abrangente de “vítima” pode, por exemplo, permitir que um vilarejo diretamente afetado por um conflito sob investigação do TPI seja auxiliado pelo Fundo, quando não houver água potável ou faltarem medicamentos essenciais às vítimas no posto de saúde local, duas possibilidades muito frequentes no âmbito

67

INGADOTTIR, op. cit., pp. 133-134. DE BROUWER, op. cit., pp. 226-228. 69 Regra 85, Regras de Processo e Provas, e Parágrafo 42, Regulamento do Fundo. 68

 

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dos conflitos africanos que geraram os primeiros casos do TPI. Segundo o Regulamento, quando os recursos são advindos de uma decisão do TPI no tocante a reparações, eles devem ser implementados unicamente em benefício das vítimas dos crimes pelos quais o réu foi condenado.70 Contudo, como é possível que o procedimento perante o TPI seja prolongado e muito complexo, dada a natureza e gravidade dos crimes cometidos, a dificuldade na obtenção de documentos e na identificação de testemunhas e vítimas, as vítimas podem nem chegar a ver uma sentença condenatória do indivíduo acusado. Logo, existe uma necessidade grande de ação imediata de auxílio às vítimas, antes mesmo de uma sentença condenatória proferida pelo TPI. É nesse momento que entra em ação o disposto nos parágrafos 47 e 48 do Fundo, nos quais os recursos advindos de outras fontes que não decisões do TPI sobre reparação, multas ou apreensão de bens e valores podem ser implementados em benefício das vítimas de danos físicos, psicológicos e materiais resultantes dos crimes cometidos, bem como seus familiares.71 Além disso, o parágrafo 50(a)(i) define que o Fundo estará ocupado com certa questão quando o Conselho de Administração considerar que é necessário providenciar reabilitação física ou psicológica ou apoio material em benefício das vítimas e suas famílias.72 Esses artigos evidenciam a natureza dupla do Fundo: por um lado, o Fundo deve implementar as reparações determinadas pelo TPI, devendo esperar por uma sentença final desse tribunal para poder agir, tendo, nesses casos, natureza subsidiária ao Tribunal; por outro, os demais recursos disponíveis ao Fundo podem ser implementados “em benefício das vítimas e 70

Parágrafo 46, Regulamento do Fundo. Parágrafos 47 e 48, Regulamento do Fundo. 72 FERSTMAN, op. cit., pp. 432-433. 71

 

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seus familiares” sem depender de uma decisão final do TPI quanto à responsabilidade penal individual do acusado pelo crime em questão.73 Essa “cláusula do benefício”, advinda de uma leitura conjunta dos parágrafos 47, 48 e 50 do Regulamento, expande o âmbito de atuação do Fundo e demonstra ser ele, de fato, uma instituição independente do TPI e que tem real condição de agir segundo sua própria convicção quando entender ser necessário e emergencial adotar determinada conduta e implementar algum projeto específico.74 Ademais, o Regulamento estabelece os princípios gerais para a ação do Fundo, afirmando que o Conselho de Administração pode e deve reunir-se com as vítimas, seus familiares, seus representantes legais e demais especialistas e organizações para identificar quais as melhores formas de conduzir suas atividades e projetos.75 Assim, sempre que o Conselho de Administração considerar necessário providenciar às vítimas e seus familiares reabilitação física ou psicológica ou alguma outra forma de auxílio material, o TPI deverá ser informado dessa decisão e a Câmara que analisa o caso específico deverá se pronunciar sobre o projeto proposto pelo Conselho. Caso a Câmara entenda que as atividades propostas não afetam a jurisdição ou a admissibilidade do caso em questão, a presunção de inocência do acusado e seu direito a um julgamento justo e imparcial, o Conselho pode implementar o referido projeto em benefício das vítimas.76 Logo, ainda que possa agir por iniciativa própria, esse mecanismo do parágrafo 50 existe para impedir que determinadas atividades do Fundo invadam a esfera processual e causem algum prejuízo à defesa do réu, o que, segundo a Anistia Internacional, é 73

FERSTMAN, op. cit., p. 426. DE BROUWER, op. cit., pp. 230-231. 75 Parágrafo 49, Regulamento do Fundo. 76 Parágrafo 50, Regulamento do Fundo. 74

 

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uma decisão perfeitamente de acordo com os princípios do Tribunal, tanto no que diz respeito aos direitos das vítimas quanto aos direitos do acusado, apesar da ONG considerar que os projetos e atividades propostos pelo Fundo dificilmente serão ameaças aos direitos do acusado.77 Por fim, o Regulamento prevê a conduta específica do Fundo no tocante à implementação de reparações individuais78, de acordo com a Regra 98(2), reparações coletivas79, de acordo com a Regra 98(3), e reparações a serem implementadas por intermédio de uma organização intergovernamental, internacional ou nacional80, de acordo com a Regra 98(4). Contudo, uma vez que ainda não houve decisão condenatória do TPI e, consequentemente, não há ordem para pagamento de reparações individuais ou coletivas, o único mecanismo existente para auxiliar as vítimas dos crimes sob jurisdição do TPI é a “cláusula do benefício”, como anteriormente demonstrado, pois a mesma depende apenas da vontade e iniciativa do Conselho de Administração do Fundo e do diálogo entre o mesmo e o TPI para que não haja qualquer desrespeito aos direitos e garantias do acusado em questão.

3. Desafios e Possibilidades para o Fundo: relações com o TPI e implementação de reparações. Alguns problemas já podem ser percebidos quanto ao trabalho do Fundo, notadamente na questão de coordenação das atividades juntamente com o TPI, 77

AMNESTY INTERNATIONAL, International Criminal Court: Comments and recommendations following the fourth session of the Assembly of States Parties. Londres: Amnesty International, 2006, pp. 7-8. 78 Parágrafos 59 a 68, Regulamento do Fundo. 79 Parágrafos 69 a 72, Regulamento do Fundo. 80 Parágrafos 73 a 75, Regulamento do Fundo.

 

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na questão de identificação de vítimas e determinação de reparações coletivas e na questão do levantamento de recursos para financiar as atividades do Fundo. Além disso, há ainda a dificuldade adicional de não haver qualquer precedente no direito internacional de um fundo fiduciário com tantos poderes e atribuições como o do Estatuto de Roma, sendo, portanto, difícil encontrar modelos que possam servir de inspiração e de guia para as atividades futuras a serem desempenhadas pelo Fundo.

3.1 O Fundo Fiduciário frente ao Tribunal Penal Internacional. Um dos primeiros obstáculos que o Fundo deverá superar, contando com a colaboração do próprio Tribunal, é a ideia de que reparações civis não devem ser tratadas em um mesmo ambiente que sanções penais.81 Em primeiro lugar, o TPI, por definição, é uma instituição direcionada ao processo criminal e à responsabilização do indivíduo, enquanto que o Fundo se preocupará exclusivamente com as vítimas, pois foi em virtude delas que ele foi criado. Além disso, a formação dos profissionais que trabalham para o Fundo é principalmente nas áreas de direitos humanos e ajuda humanitária, enquanto que os funcionários do Tribunal são predominantemente de formação criminal.82

81

Há autores que sugerem a criação de um Tribunal Internacional de Responsabilidade Civil para tratar das reparações separadamente do processo criminal, ou até mesmo de uma Comissão Internacional de Reparação. Cf. SAN JOSÉ, Daniel Garcia, “El Derecho a La Justicia de Las Víctimas de Los Crímenes Más Graves de Transcendência Para La Comunidad Internacional”, Revista Española de Derecho Internacional, n. I, v. LVIII, 2006, pp. 139-142 82 HENZELIN, Marc; HEISKANEN, Veijo; METTRAUX, Guénaël, “Reparations to Victims Before The International Criminal Court: Lessons From International Mass Claims Processes”, Criminal Law Forum, n. 17, 2006, pp. 327-341.

 

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Portanto, há a possibilidade de falhas de comunicação entre o Fundo e o Tribunal dificultarem, por exemplo, a determinação de uma reparação coletiva em favor de um determinado grupo de vítimas, pois a reparação será aferida por pessoas que, em princípio, estão menos a par dos problemas das vítimas que os funcionários do Fundo.83 Ademais, eventuais problemas de comunicação na determinação de reparações podem ser ainda mais comuns uma vez que o Estatuto e as Regras de Processo e Provas não mencionam o Fundo como uma das partes a serem consultadas pelo Tribunal, nem mesmo no caso de reparações coletivas.84 Uma eventual solução para esse primeiro impasse entre o Fundo e o TPI pode ser encontrada no próprio Estatuto de Roma, em seu artigo 21, parágrafo 3º, o qual afirma: Artigo 21. Direito Aplicável. (...) 3. A aplicação e a interpretação do direito previsto no presente artigo deverá ser compatível com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, sem distinção alguma baseada em motivos como o gênero, definido no artigo 7º, parágrafo 3º, a idade, a raça, a cor, a religião ou o credo, a opinião política ou de outra natureza, a origem nacional, étnica ou social, a posição econômica, o nascimento ou qualquer outra condição.85

83

Houve críticas de ONGs ao TPI, como a Women’s Initiatives for Gender Justice, pelo fato da maioria da população de Uganda não ter conhecimento do caso frente ao Tribunal, em virtude, principalmente, de uma falta de comunicação do Tribunal com a população e as vítimas locais. Em contrapartida, o Diretor-Executivo do Fundo já realizou viagens para Uganda e para a República Democrática do Congo para Consultar com vítimas. Cf. DE BROUWER, op. cit., pp. 222-224. 84 Artigo 75(3), Estatuto de Roma e Regra 97(2), Regras de Processo e Prova. Cf. FERSTMAN, , op. cit., pp. 675-677. 85 Art. 21(3), Estatuto de Roma.

 

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Ou seja, o Tribunal sempre deverá levar em conta o Direito Internacional dos Direitos Humanos e, no caso específico das reparações, documentos internacionais, como os Princípios Básicos e a jurisprudência de tribunais de direitos humanos, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos (ou “CIDH”).86 Além disso, não havendo precedentes de tribunais penais internacionais outorgando reparação a vítimas, é natural que o TPI busque subsídios para o desempenho de sua função reparatória em instituições voltadas à salvaguarda dos direitos humanos e, consequentemente, dos interesses das vítimas.87 Ainda, a existência de uma Unidade de Vítimas e Testemunhas no próprio TPI tornará necessária a utilização ainda maior de especialistas em direitos humanos e questões relativas a vítimas, sanando, dessa forma, uma eventual falha de comunicação entre os funcionários do Fundo e do TPI. Por fim, o fato de não haver menção expressa ao Fundo no artigo 75(3) do Estatuto e na Regra 97(2) não chega a ser um obstáculo intransponível para a cooperação entre o TPI e o Fundo, mas, de qualquer maneira, essa lacuna poderia ser preenchida com uma eventual emenda aos dois instrumentos legais no sentido de mencionarem expressamente o Fundo como entidade a ser consultada antes da determinação de reparações por parte de uma câmara do Tribunal. Outra dificuldade que pode ser enfrentada pelo Fundo diz respeito a um eventual conflito de compe86

BITTI, Gilbert; RIVAS, Gabriela González, “The Reparations Provisions for Victims Under the Roma Statute of the International Criminal Court”, Redressing Injustices Through Mass Claims Processes: Innovative Responses to Unique Challenges, Oxford University Press, 2006, pp. 302-306. 87 SHELTON, Dinah. “Reparations for Victims of International Crimes”, in SHELTON, Dinah (ed.), International Crimes, Peace, and Human Rights: The Role of the International Criminal Court. New York: Transnational Publishers Inc., 2000, pp. 139-143.

 

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tências entre essa instituição e a Unidade de Vítimas e Testemunhas do TPI, anteriormente mencionada. A Unidade de Vítimas e Testemunhas, prevista pelo Estatuto, foi criada para implementar medidas de proteção, segurança e assistência para testemunhas, vítimas que compareçam perante o Tribunal e outras pessoas que possam estar em risco em razão do depoimento prestado pelas testemunhas.88 Por ser um órgão incorporado ao orçamento do TPI, diferentemente do Fundo, há quem considere a Unidade de Vítimas e Testemunhas a melhor opção para tratar dos interesses das vítimas quando elas se encontrarem em situações de emergência, devendo o Fundo agir em relação a essas vítimas apenas quando a Unidade tiver desempenhado o seu papel,   89 para, dessa forma, evitar um conflito de competências que poderia ser prejudicial às próprias vítimas. Entretanto, esse conflito é apenas aparente, pois diferentemente do Fundo, a Unidade de Vítimas e Testemunhas está encarregada de auxiliar apenas as vítimas que comparecerem perante o Tribunal, ou seja, apenas a vítima na sua dimensão processual,90 enquanto que o Fundo, em princípio, deve tratar de todas as vítimas de crimes sob a jurisdição do Tribunal, independentemente do seu caso ser levado ao TPI ou não. Logo, quando for o caso de o Fundo prestar auxílio emergencial a vítimas, tal assistência pode e deve ser feita em coordenação com a Unidade de Vítimas e Testemunhas,91 pois as funções desempenhadas por esses dois órgãos são, na verdade, complementares, abarcando tanto as vítimas que participam do processo criminal quanto aquelas que não têm essa possibilidade. 88

Artigo 43(6), Estatuto de Roma. INGADOTTIR, op. cit., pp. 131-132. 90 SAN JOSÉ, op. cit., pp. 133-134. 91 DE BROUWER, op. cit., 233-234. 89

 

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Por fim, outro obstáculo possível ao Fundo diz respeito, justamente, à possibilidade de prestar auxílio emergencial às vítimas, pois, como visto, a implementação de um projeto do Fundo segundo o Parágrafo 50 do Regulamento depende de uma decisão prévia do TPI autorizando o início dessa atividade. Ocorre que essa exigência de uma decisão prévia do TPI foi considerada um retrocesso na independência do Fundo. Durante a quarta sessão da Assembleia, em 2005, houve uma discordância entre os Estados presentes sobre qual deveria ser o grau de independência do Fundo na prestação de auxílio emergencial.92 De um lado, países como Bélgica, República Democrática do Congo, Chipre, França, Quênia, Serra Leoa, Tanzânia e Uganda achavam que o Fundo deveria ser o mais independente possível do Tribunal e deveria agir o quanto antes necessário para ajudar as vítimas em situações de emergência; de outro lado, países como a Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Noruega, Peru, Suécia e Reino Unido eram da opinião que o Fundo deveria ser controlado pelo Tribunal para não comprometer o processo criminal. A solução encontrada foi a que consta no Parágrafo 50 do Regulamento, condicionando a uma decisão prévia do TPI a ação do Fundo de providenciar reabilitação física ou psicológica ou auxílio material às vítimas, sendo que o prazo de 45 dias que a Câmara do TPI tem para se pronunciar sobre o projeto do Fundo pode ser estendido em até 30 dias. Dessa forma, vítimas em situações de emergência podem esperar mais de dois meses antes de receber alguma espécie de auxílio por parte do Fundo. Por exemplo, em um caso envolvendo vítimas de crimes sexuais, em que o acesso imediato à saúde é muitas vezes fundamental para evitar maiores danos às víti92

 

BITTI & RIVAS, op. cit., pp. 318-319.

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mas, o prejuízo causado por um tempo de espera prolongado pode ser irreversível.93 Nesse sentido, Simone Veil, antiga Chefe do Conselho de Administração do Fundo, em um pronunciamento à Assembleia, criticou essa solução encontrada, pois ela ainda limitaria o papel do Fundo, e segundo a resolução ICC ASP/3/Res.7, o Fundo deveria ser um órgão complementar ao e independente do Tribunal, o que estaria sendo contrariado pela solução encontrada para a aprovar o Regulamento do Fundo.94 Esse episódio evidencia a existência de uma tensão entre o Fundo e a Assembleia. O problema maior será se essa tensão se estender aos momentos em que o Fundo e o TPI deverão entrar em acordo sobre um eventual auxílio emergencial a vítimas e isso prejudicar a implementação de um projeto do Fundo.95

3.2 A implementação das reparações e o Fundo Fiduciário. Os princípios sobre reparações e as formas de implementação das mesmas devem ser considerados pelo Tribunal ainda que não tenha se deparado com requerimentos das vítimas, até mesmo porque o Fundo pode muito bem iniciar suas atividades uma vez que encontrar vítimas que estejam em situação emergencial e necessitando de ajuda.  96

93

INGADOTTIR, op. cit., p. 131. Pronunciamento de Simone Veil à Quarta Sessão da Assembleia dos Estados-Parte, de 28 de novembro de 2005, disponível no seguinte endereço: http://www.icc-cpi.int/library/vtf/SpeechMme_Veil_2005_EN.pdf (Acesso em 16.11.07) 95 VILMER, op. cit., pp. 166-173. 96 DE GREIFF, Pablo e WIERDA, Marieke, “The Trust Fund For Victims of the International Criminal Court: Between Possibilities and Constraints”. DE FEYTER, K.; PERMENTIER, S.; BOSSUYT, M.; LEMMENS, P. (eds.). Out of The Ashes: Reparation for Victims of Gross 94

 

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Nesse sentido, o TPI desenvolveu seus princípios sobre reparação, não só quanto às modalidades possíveis a serem exigidas de um condenado por crimes internacionais, mas principalmente quanto ao seu alcance individual ou coletivo.97 Do ponto de vista conceitual, reparações só podem ser determinadas por uma sentença de um tribunal condenando um réu a pagar determinado valor ou a cumprir certas obrigações de fazer, sendo que no direito internacional esse réu pode ser um Estado, como no caso da CIDH, ou pode ser um indivíduo, como no caso do TPI. Logo, quando o Fundo agisse em benefício das vítimas sem a condenação anterior de um indivíduo sob a jurisdição do TPI, sua ação não seria propriamente dita de reparação, mas, segundo alguns autores, uma forma de ajuda humanitária que, em princípio, busca muito mais auxiliar um grupo de pessoas do que cada vítima individualmente. Em contrapartida, quando uma Câmara do TPI for exigir de um indivíduo a implementação de reparações pelos crimes cometidos, é de se esperar que, quando não conseguir alegar indigência, o condenado tenha condições apenas de arcar com as reparações para as vítimas apenas na esfera individual. Portanto, casos de restituição de posse ou de propriedade de algum bem apreendido por ocasião de um crime internacional ou do pagamento de uma indenização específica para um indivíduo poderiam ser analisados pelo TPI e ter sua implementação exigida contra um condenado, o que não seria possível no caso de reparações coletivas, envolvendo, por exemplo, a criação de um posto médico para atender as vítimas de um crime ou a reabertura de uma escola fechada por ocasião de um ataque armado a um vilarejo. Para essas reparações de natureza and Systematic Human Rights Violations. Antuérpia: Intersentia, 2005, pp. 225-231. 97 VILMER, op. cit. pp. 162-165.

 

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coletiva seria recomendado que o Fundo agisse, pois, em princípio, terá condições materiais e institucionais mais adequadas para atender às necessidades de um número maior de vítimas.98 Esse entendimento também é compartilhado por membros do TPI e de ONGs, entre outros. Em um evento organizado pela REDRESS em março de 2007, voltado à discussão dos regimes de reparações para vítimas de crimes internacionais, especialmente o do TPI, a Juíza Elizabeth Odio-Benito tratou sobre a questão das reparações individuais e coletivas que podem ser determinadas pelo Tribunal, salientado que, quando se trata de reparações coletivas, o Fundo será um instrumento essencial para sua implementação, ponto também defendido por Fabrício Guariglia, da Promotoria do TPI, defendendo que o Fundo deveria ter mais atribuições na implementação de reparações às vítimas.99 Sobre os pontos positivos da implementação de reparações coletivas, uma representante da REDRESS elogiou o programa do Fundo nessa área, identificando na jurisprudência da CIDH diversas modalidades dessa forma de reparação, incluindo aquela de caráter nãofinanceiro, o que é de extrema relevância uma vez que os recursos do Fundo serão limitados.100 Logo, pelos diversos motivos expostos, talvez seja mais adequado deixar a implementação de reparações coletivas a cargo do Fundo, pela possibilidade de alcançar um número maior de vítimas e por ser mais fácil o Fundo ter recursos de arcar com um programa em benefício de um vilarejo do que um indivíduo condenado pelo TPI.101 98

DE BROUWER, op. cit., pp. 226-227 e 233-234. REDRESS. Reparations for victims of genocide, crimes against humanity and war crimes: systems in place and systems in the making. Londres: REDRESS, setembro de 2007, pp. 14-16. 100 REDRESS, op. cit, pp. 48-52. 101 HENZENLIN; HEISKANEN; METTRAUX, op. cit., pp. 335-338. 99

 

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Um outro ponto interessante diz respeito à identificação e tratamento destinado às vítimas pelo Fundo. Uma das metas das reparações é procurar restaurar a dignidade das vítimas, reforçando, dessa forma, seu caráter de cidadãos que querem tentar contribuir para a sociedade, e não apenas pessoas que necessitam de ajuda e não procuram de alguma forma reconstruir suas próprias vidas e o mundo do qual fazem parte.102 Ainda na questão das vítimas e do Fundo, outro ponto interessante diz respeito ao reconhecimento de quem são as vítimas dos crimes internacionais. No âmbito do TPI, para que uma pessoa seja identificada como vítima e, portanto, possa participar das diversas etapas do processo de investigação e julgamento de um acusado e, mais importante ainda, possa apresentar um pedido individual de reparação por danos sofridos em virtude de um crime cometido pelo indivíduo acusado, a Câmara de Questões Preliminares do Tribunal deve reconhecer o status de vítima depois de a pessoa preencher um formulário disponível no próprio site do TPI e apresentar diversas informações e evidências que comprovem suas alegações, entendimento mantido pelo Tribunal em sua decisão sobre a participação de vítimas durante a etapa de investigação do caso da República Democrática do Congo.103 Logo, do entendimento adotado pela Câmara de Questões Preliminares, pressupõe-se que as vítimas que forem reconhecidas como tal terão o direito a requerer reparações, havendo, inicialmente, um silêncio em relação àquelas vítimas que porventura não tenham acesso à estrutura do Tribunal.104 102

DE GREIFF; WIERDA, op. cit., pp. 233-236. Câmara de Questões Preliminares I, Situation in the Democratic Republic of the Congo: Public Redaction Version, Decision on the Applications for Participation in the Proceedings of VPRS 1, VPRS 2, VPRS 3, VPRS 4, VPRS 5 and VPRS 6, ICC-01/04, de 17 de janeiro de 2006, parágrafos 63 e 72. 104 DE BROUWER, op. cit., pp. 218-224. 103

 

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Tal silêncio foi finalmente interrompido com a decisão do TPI sobre princípios orientadores para reparações a vítimas de crimes internacionais no caso Procurador v. Thomas Lubanga Dyilo, de 7 de agosto de 2012. Nessa decisão, a Câmara do TPI afirmou que seria injusto limitar as reparações apenas ao limitado número de vítimas que efetivamente participou das sessões do julgamento e que apresentou pedidos formais de reparação. Segundo a decisão, os possíveis destinatários das reparações as vítimas diretas dos crime atribuídos a Lubanga Dyilo, ou seja, aqueles que sofreram danos resultantes dos crimes de alistamento e utilização de crianças menores 15 anos na província de Ituri, na República Democrática do Congo, de 1 de setembro de 2002 a 13 de agosto de 2003; as vítimas indiretas desses crimes, incluindo membros da família de vítimas diretas, juntamente com indivíduos que tenham intervindo para ajudar as vítimas ou para prevenir a ocorrência de tais crimes, sendo que as vítimas indiretas devem demonstrar um relacionamento pessoal próximo entre elas e a vítima direta, como, por exemplo, o relacionamento entre uma criança-soldado e seus pais; e, finalmente, pessoas jurídicas, como hospitais e ONGs de auxílio às vítimas desses crimes. Em razão do estado de indigência alegado por Lubanga Dyilo, todas essas reparações serão, portanto, implementadas por meio do Fundo, que usará os critérios analisados ao longo do presente artigo para sua efetivação em benefício das vítimas desses crimes.105 o

105

Informações disponíveis em http://www.icc-cpi.int/Menus/Go?id=f491ef55-3612-4205-a195d44a7b90ca0a&lan=en-GB (Acesso em 09/04/2013).

 

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Considerações Finais. O presente artigo procurou, acima de tudo, apresentar a estrutura do Fundo e explicar o funcionamento do seu regime de reparações, especialmente a previsão da “cláusula de benefício” em seu Regulamento. Em razão da existência de apenas uma sentença condenatória do TPI até o presente momento, não há dados estatísticos ou uma projeção segura com base na qual afirmar a eventual “taxa de sucesso” da política de reparações levada a cabo pelo TPI. No entanto, a existência de uma instituição nesses moldes no âmbito da justiça criminal internacional pode servir como motivação para a criação de órgãos semelhantes em países em continentes que estão passando por momentos de reconstrução da sua história e da sua memória social, como é o caso do Brasil e a tentativa de justiça para as vítimas de crimes cometidos na época da ditadura militar. Por mais que o tempo tenha passado e diversas vítimas diretas dos crimes de tortura e desaparecimento forçado não possam gozar das possibilidades de uma justiça restaurativa, familiares e pessoas diretamente envolvidas com o sofrimento causado por esses crimes poderiam ter atendido o seu clamor por justiça. Nesse sentido, reitera-se mais uma vez que o presente artigo só tem o objetivo de apresentar um dentre diversos modelos possíveis para servir de inspiração a política nacionais e regionais de reparações a vítimas de graves violações de direitos humanos e crimes internacionais. O exame da pertinência do modelo aqui sugerido compete à sociedade e aos governantes dos países interessados em prover às vítimas desses atos abomináveis o que por muitos anos lhes foi negado: justiça, na sua acepção mais clara e universal possível.

 

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Referências AMNESTY INTERNATIONAL, International Criminal Court: Comments and recommendations following the fourth session of the Assembly of States Parties. Londres: Amnesty International, 2006. BITTI, Gilbert; RIVAS, Gabriela González, “The Reparations Provisions for Victims Under the Roma Statute of the International Criminal Court”, Redressing Injustices Through Mass Claims Processes: Innovative Responses to Unique Challenges, Oxford University Press, 2006, pp. 299-322. DE BROUWER, Anne-Marie. “Reparation for Victims of Sexual Violence: Possibilities at the International Criminal Court and at the Trust Fund for Victims and Their Families”, Leiden Journal of International Law, n. 20, 2007, pp. 207-237. DE GREIFF, Pablo e WIERDA, Marieke, “The Trust Fund For Victims of the International Criminal Court: Between Possibilities and Constraints”. DE FEYTER, K.; PERMENTIER, S.; BOSSUYT, M.; LEMMENS, P. (eds.). Out of The Ashes: Reparation for Victims of Gross and Systematic Human Rights Violations. Antuérpia: Intersentia, 2005, pp. 225-243. FERSTMAN, Carla. “The International Criminal Court’s Trust Fund for Victims: Challenges and Opportunities”, Yearbook of International Humanitarian Law, v. 6, 2003, pp. 424-434. FISCHER, Peter G. “The Victims’ Trust Fund of the International Criminal Court – Formation of a Functional Reparations Scheme”, Emory Journal of International Law, v. 17, 2003, pp. 236-260. HENZELIN, Marc; HEISKANEN, Veijo; METTRAUX, Guénaël, “Reparations to Victims Before The International Criminal Court: Lessons From International Mass  

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Claims Processes”, Criminal Law Forum, n. 17, 2006, pp. 317-344. INGADOTTIR, Thordis, “The Trust Fund For Victims (Article 79 of the Rome Statute)”, in INGADOTTIR, Thordis (ed.), The International Criminal Court: Recommendations on Policy and Practice, Brill Academic Publishers, 2003, pp. 111-144. PINTO, Mónica. L’Amérique latine et le traitment des violations massives de droits de l’Homme – Institut des Hautes Etudes Internationales de Paris, Cours e Travaux nº 7. Paris: A. Pedone, 2007. REDRESS. Reparations for victims of genocide, crimes against humanity and war crimes: systems in place and systems in the making. Londres: REDRESS, setembro de 2007. REISMAN, William M.; ARSANJANI, Mahnoush H. “The Law-in-Action of the International Criminal Court”, American Journal of International Law, n. 99, 2005, pp. 385-403. SAN JOSÉ, Daniel Garcia, “El Derecho a La Justicia de Las Víctimas de Los Crímenes Más Graves de Transcendência Para La Comunidad Internacional”, Revista Española de Derecho Internacional, n. I, v. LVIII, 2006, pp. 119-145. SHELTON, Dinah. “Reparations for Victims of International Crimes”, in SHELTON, Dinah (ed.), International Crimes, Peace, and Human Rights: The Role of the International Criminal Court. New York: Transnational Publishers Inc., 2000, pp. 137-147. TOMUSCHAT, Christian, “Reparation for Victims of Grave Human Rights Violations”, Tulane Journal of International and Comparative Law, n. 10, 2002, pp. 157-184. VILMER, Jean-Baptiste Jeangéne. Réparer l’irréparable: les réparations aux victims devan la Cour Pénale Internationale. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.

 

Responsabilização civiladministrativa dos agentes públicos na ditadura militar

Diego  Oliveira  Murça1   Janaína  Santos  Curi2   Lucas  Costa  de  Oliveira3  

Resumo: O presente artigo visa estudar a possibilidade da responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos por crimes cometidos durante o regime militar, entre 1964 e 1985. Para atingir este fim, realiza-se uma análise das ações civis públicas propostas pelo Ministério Público Federal da 3º região, bem como da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, do ordenamento jurídico brasileiro e do Direito Internacional. Palavras-chave: Agentes públicos. Responsabilização civil-administrativa. Ditadura Militar. Abstract: This paper aims to study the possibility of holding public officials accountable, civilly and administratively, for crimes committed during the military 1

Aluno do 5º período de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto. Membro do grupo de estudos de Justiça de Transição. 2 Aluna do 4º período de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto. Membro do grupo de estudos de Justiça de Transição. 3 Aluno do 7º período de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto. Membro do grupo de estudos de Justiça de Transição.

 

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regime between 1964 and 1985. To this end, public civil actions proposed by Federal Prosecutors of the 3rd region are analyzed, as well as the 1998 Constitution of the Federative Republic of Brazil, the Brazilian legal system and International Law. Keywords: Public agents. Civil and administrative accountability. Military Dictatorship.

1. Introdução O presente trabalho busca expor o andamento da responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos da ditadura brasileira por graves violações de direitos humanos e avaliar a possibilidade de concretização dessa responsabilização, utilizando-se de seis ações civis públicas propostas pelo Ministério Público Federal da 3ª região como instrumento de análise. A saber: Caso Policiais Civis no DOI-CODI/SP; Caso Ossadas de Perus; Caso DOI/CODI/SP; Caso Manoel Fiel Filho; Caso Desaparecidos Políticos - IML -DOPS - Prefeitura SP; e, por fim, Caso OBAN. A União figura como ré em todas as ações, uma vez que o Estado, através dos seus agentes, é responsável pelas violações ocorridas no período ditatorial no Estado de São Paulo. Naquelas em que pode ser responsabilizado, o estado de São Paulo também é citado como réu. No Caso Desaparecidos Políticos - IML -DOPS Prefeitura SP, o Município de São Paulo também foi citado, juntamente com Romeu Tuma, chefe do Departamento Estadual de Ordem Política e Social durante o regime militar, Harry Shibata, médico legista do IML na década de 70, Paulo Maluf, prefeito de São Paulo entre 1969 e 1971, Miguel Colasuonno, prefeito de São Paulo de 1973 a 1975, e Fábio Pereira Bueno, responsável pelo Serviço Funerário do Município de São Paulo entre 1970 e 1974. Nesta ação, os réus são acusados de haverem enterrado inúmeros militantes políticos como  

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indigentes no Cemitério Dom Bosco e no Cemitério Vila Formosa. O Cemitério de Dom Bosco teria sido construído para esse fim, durante a gestão de Paulo Maluf e os corpos dos "indigentes" lá chegavam após ter sido lavrada uma certidão de óbito falsa pelo DOPS, que era confirmada pelo IML e trazia um nome - geralmente aquele utilizado na militância - e relato falso sobre a causa da morte. Assim, essas pessoas eram dadas como desaparecidas, enterradas em valas de indigentes e a família permanecia sem nenhuma informação. Homero Cezar Machado, Innocencio Fabrício de Mattos Beltrão e Mauricio Lopes Lima são, hoje, militares reformados e João Thomaz é capitão reformado da Polícia Militar de São Paulo, todos fizeram parte da Operação Bandeirantes e são réus do Caso OBAN. A OBAN foi o primeiro órgão de repressão militar que obteve sucesso e acabou dando origem aos DOI/CODI espalhados pelo país. Todos os quatro teriam conduzido sessões de tortura em seus respectivos destacamentos. Da mesma forma, os réus do Caso DOI/CODI, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, executaram diversas sessões de tortura enquanto comandantes do órgão que dá nome à ação. O Caso Manoel Filho responsabiliza inúmeros agentes públicos pela morte de Manoel Fiel Filho, metalúrgico que foi detido no dia 16 de janeiro de 1976, levado ao DOI/CODI e morto no dia seguinte. Entre os réus citados encontram-se militares, carcereiros, policiais civis, delegados, um perito e um legista e todos teriam colaborado, direta ou indiretamente, para a morte da vítima. Em 1991, a Universidade de Campinas, juntamente com a Universidade Federal de Minas Gerais, se responsabilizou pela identificação das ossadas existentes no Cemitério Dom Bosco, conhecido como Cemitério de Perus, mas não conduziu o trabalho até o fim, demonstrando descaso e irresponsabilidade. Posteriormente, a responsabilidade foi assumida pela Univer  

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sidade e pelo Estado de São Paulo, mas também não obtiveram resultados significativos. Assim, além da responsabilização objetiva destes réus pessoas públicas, o Caso Ossadas de Perus busca a responsabilização subjetiva dos servidores públicos cuja negligência fez com que diversas ossadas permaneçam sem identificação até hoje. No caso Policiais Civis no DOI-CODI/SP, os réus Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araújo e Dirceu Gravina - o último ainda na ativa - eram delegados da Polícia Civil durante a ditadura e, lotados no DOI/CODI, também foram responsáveis por sessões de tortura. Apesar das particularidades de cada caso citado, não detalharemos as ações no desenvolvimento do trabalho, já que todas possuem um tema comum e isso é evidente tanto nos pedidos quanto nos argumentos utilizados para sustentá-los. Nosso objeto de estudo se encontra nos pedidos de cada uma das petições iniciais e os argumentos para defender nosso posicionamento estão presentes em todos os documentos que compõem cada caso. Na análise dessas ações, atentamos aos pedidos feitos pelos representantes do órgão, sendo eles: i) o pedido de responsabilização civil dos acusados, ii) veto ao exercício ou acesso a cargos de função pública, iii) cassação de proventos de aposentadoria, iv) publicização dos fatos ocorridos durante a ditadura e pelos quais os réus eram julgados. Os pedidos feitos pelo Ministério Público são fundamentados em investigações cujos resultados permitiriam que os réus fossem responsabilizados pelos ilícitos descobertos, conforme citado no parágrafo acima. Como constam das ações usadas como fonte de pesquisa e fundamentação, existem elementos que permitem a prova prática das graves violações enumeradas em suas páginas, violações estas, em sua maioria, contra os direitos humanos.  

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Deve ser ressaltado que os presentes pedidos possuem por base apenas a responsabilização civil e administrativa, de modo que não se confundem com a responsabilização criminal, conforme apontado pelo art. 935 do nosso Código Civil vigente. Sendo assim, apontaremos o porquê do pedido de responsabilização civil-administrativa dos réus. Trataremos dos argumentos oriundos da legislação ordinária, utilizados pelo Ministério Público, bem como da limitação da lei de anistia ao âmbito criminal, dando margem à responsabilização civiladministrativa dos agentes públicos beneficiados por ela. Logo em seguida, discutiremos acerca dos princípios constitucionais relevantes, com ênfase no princípio da dignidade da pessoa humana, considerando também as normas de direito internacional. O pedido de responsabilização civil dos réus pode ser justificado, inicialmente, pelos danos causados ao patrimônio público, baseados no art. 37, §5º de nossa Constituição Federal, que aponta que são imprescritíveis as ações de ressarcimento pela prática de atos ilícitos que ocasionaram prejuízos ao erário, cabendo assim aos réus suportarem o ônus das obrigações advindas do ilícito cometido. Prosseguindo, temos os argumentos do Ministério Público para a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade. Apesar da divisão das instâncias do direito brasileiro em civis, criminais e administrativas, a prática de um ilícito que se reconhece como crime de lesa-humanidade impõe-se a todo o sistema de justiça. O resultado será a aplicação de princípios gerais de responsabilização e reparação de danos condizente com a gravidade do ato. No tocante ao veto ao exercício de cargos ou funções públicas, a razão está na contradição entre os ilícitos cometidos e os princípios da administração pública, que exigem, entre outros requisitos, a higidez moral. A cassação de qualquer tipo de proventos de aposentadoria fundamenta-se no mesmo argumento.  

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Acerca da publicização dos crimes cometidos pelos réus contras as vítimas e toda a sociedade brasileira vêm à tona o direito de a sociedade brasileira conhecer a verdade e construir uma memória sobre a sua história – ou seja, um direito a memória e à verdade4. Quanto à proteção constitucional dos direitos humanos, conforme apresentado no interior das ações civis públicas, considera-se que a pauta de valores de nossa Constituição Federal impede que as graves violações aos direitos humanos sejam excluídas de apreciação judicial em função do decurso do tempo. Antes de prosseguirmos com a discussão dos argumentos a favor dos pedidos, há a necessidade de justificar a legitimidade do Ministério Público na propositura de tais ações civis públicas.

2. Legitimidade do Ministério Público Federal e a possibilidade da propositura de ação civil pública Na medida em que o presente artigo visa estudar a possibilidade da responsabilização pessoal, civil e administrativa, dos agentes públicos por decorrências dos crimes cometidos durante a ditadura militar, e partindo da análise das ações civis públicas propostas pelo Ministério Público Federal, faz-se necessária a análise de dois pontos cruciais: o Ministério Público Federal possui legitimidade para a tutela desses interesses? A ação civil pública é o meio adequado para atingir os objetivos pretendidos? Comecemos com a primeira indagação. A Constituição prevê, no art. 127, caput, que cabe ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime demo4 PACHECO, Mariana Pimentel Fischer. Direito à memória como exigência ética – Uma investigação a partir da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. Revista Anistia – Política e Justiça de Transição, nº 1, p.250. 2009.

 

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crático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, e ainda dispõe, no art. 129, IX, que é atribuição ministerial o exercício de outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatível com sua finalidade. A nosso ver, a responsabilização pessoal dos agentes, na atual situação da justiça de transição brasileira, é de interesse difuso, que correspondem aos direitos cujo titular não é uma pessoa, mas sim, uma coletividade de pessoas que não podem ser identificadas ou determinadas5. É difuso, uma vez que com a entrada em vigor de leis reconhecendo a responsabilidade civil do Estado pelos crimes praticados por agentes públicos, ocorreu um dano de extensa dimensão ao erário. Este é composto pelo trabalho e contribuição tributária de toda sociedade brasileira, não podendo ser devastado por atos individuais, em que se sabe o autor. A respeito do sistema de reparação das vítimas pelo Estado se esclarece: O sistema reparatório para os atos dos regimes de exceção do século XX no Brasil é integrado por duas comissões de reparação: a Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos (doravante CEMP) e a Comissão de Anistia. A CEMP, criada pela Lei nº 9.140/1995, alterada pelas leis 10.536/2002 e 10.875/2004, foi instalada no Ministério da Justiça e, em 2004, deslocada para a Secretaria Especial de Direitos Humanos. A legislação instituidora da Comissão já veio acompanhada de um anexo com um reconhecimento automático de 136 casos relacionados que deveriam ser indenizados. O objeto de trabalho da Comissão Especial focou-se primeiro na apreciação das cir5

MOYSÉS, Helena Carvalho. Legitimidade do Ministério Público para propor ação coletiva na defesa de direitos Individuais Homogêneos. De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público de Minas Gerais. V, 10, nº 17. Belo Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2011.

 

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cunstâncias das mortes, para examinar exclusivamente se as pessoas foram ou não mortas pelos agentes do Estado no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988 e como isso aconteceu, afastando-se da apreciação dos atos dos envolvidos na atividade de repressão política. É também responsabilidade da Comissão a localização dos restos mortais dos desaparecidos. Em 2007, a CEMP publicou o mais importante documento oficial sobre o período ditatorial, o já referido livrorelatório denominado Direito à Verdade e à Memória”, que detalha pormenorizadamente a promoção de 357 reparações24. O prazo final para a entrada com requerimentos perante a CEMP foi prorrogado duas vezes, tendo sido encerrado em 2004. (...) Por sua vez, a Comissão de Anistia instalada no Ministério da Justiça foi criada em 2001 por meio de Medida Provisória do Presidente da República26, posteriormente convertida na lei no 10.559/2002, em atenção à necessidade de regulamentação do artigo 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição da República de 1988. (...) Os familiares dos mortos e desaparecidos também podem pleitear junto à Comissão de Anistia pelas perseguições sofridas por seus entes em vida. Até dezembro de 2009, a Comissão recepcionou aproximadamente 65 mil requerimentos, dos quais 58 mil já foram apreciados, tendo indeferido integralmente um terço deles, e deferido os outros dois terços com ou sem cumulação de reparação econômica. (ABRÃO, TORELLY, 2010, p. 121-123).

Ainda na esfera dos direitos difusos, destacamse os danos morais coletivos gerados, que são entendidos pelo STJ como a lesão na esfera moral de uma comunidade, isto é, a violação de valores coletivos, atingidos injustificadamente do ponto de vista jurídico. Podem tratar de dano ambiental, desrespeito aos direitos do consumidor, danos ao patrimônio histórico e  

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artístico e violação à honra de determinada comunidade (negra, judaica, japonesa, indígena) . Vale ressaltar que a concepção de danos morais coletivos vem se ampliando, assim como a sua aplicação, como bem explica a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi: 6

Nosso ordenamento jurídico não exclui a possibilidade de que um grupo de pessoas venha a ter um interesse difuso ou coletivo de natureza não patrimonial lesado, nascendo aí a pretensão de ver tal dano reparado. Nosso sistema jurídico admite, em poucas palavras, a existência de danos extrapatrimoniais coletivos, ou, na denominação mais corriqueira, de danos morais coletivos. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2013)

No caso em questão, apontam, conforme relatos históricos, os danos causados não só às vitimas, mas também à sociedade brasileira em toda sua dignidade e honra, bem como aos valores democráticos de verdade e reparação. O art. 129, III, da CF/88, por sua vez, estabelece que o Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros direitos difusos e coletivos. Ora, não trata o dano ao erário de um efetivo dano ao patrimônio público? Todavia, conforme de depreende das ações civis públicas estudadas, o judiciário vem defendendo os direitos de reparação e responsabilização pessoal dos agentes como direitos individuais homogêneos e disponíveis, por serem de caráter patrimonial. Ainda alegam, em virtude disso, que o Ministério Público não 6

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Dano moral coletivo avança e inova na jurisprudência do STJ. Acesso em: 21/03/2013.

 

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teria legitimidade para a tutela dos interesses individuais homogêneos7. Não obstante, com a entrada em vigor do Código de Defesa ao Consumidor, o Ministério Público passou a ter ainda a função de defesa dos direitos individuais homogêneos, que tem como titulares mais de um sujeito e estes sempre são determinados, possuindo a origem da causa de pedir em comum. Assim, ficou acertado, em que pese toda discussão acerca deste tema, que a atuação na defesa destes direitos, ainda que disponíveis, cabe ao Parquet, na forma de ação civil pública, desde que haja relevante interesse social. A respeito do objeto da ação civil pública ensina Hugo Mazzilli: Embora a ação civil pública de que cuida a Lei n. 7.347/85 objetive apenas adefesa de interesses civis públicas, transindividuais, na verdade, as sob o aspecto doutrinário, podem ter objeto mais amplo. Como bem ensinou Calamandrei, sob o aspecto doutrinário, ação civil pública é a ação de objeto não penal, movida pelo Ministério Público. Neste sentido, podemos referir-nos, por exemplo, às ações civis públicas para defesa de interesse público (como as de nulidade de casamento, movidas pelo Ministério Público), para a defesa de interesse individual indisponível (como as ações de alimentos em defesa de crianças e adolescentes), para a defesa do patrimônio público e social (CF, art. 129, III; Lein. 8.429/92, art. 17; LONMP, art. 25, IV, c.c. LOMPU, art. 6º, VII). (MAZZILLI, 2005, p. 5-6) ações

Nesse mesmo sentido entendem o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal:

7Ação Civil Pública caso DOI-CODI/SP. Sentença. Disponível em Acesso em:19/03/2013.

 

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PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VESTIBULAR. LIMITAÇÃO DO NÚMERO DE CONCESSÕES DE ISENÇÃO DE TAXAS PARA EXAME EM UNIVERSIDADES FEDERAIS. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. 1. A jurisprudência desta Corte vem se sedimentando em favor da legitimidade ministerial para promover ação civil pública visando a defesa de direitos individuais homogêneos, ainda que disponíveis e divisíveis, quando na presença de relevância social objetiva do bem jurídico tutelado (a dignidade da pessoa humana, a qualidade ambiental, a saúde, a educação, apenas para citar alguns exemplos) ou diante da massificação do conflito em si considerado. Precedentes. 2. Oportuno notar que é evidente que a Constituição da República não poderia aludir, no art. 129, inc. II, à categoria dos interesses individuais homogêneos, que só foi criada pela lei consumerista. Contudo, o Supremo Tribunal Federal já enfrentou o tema e, adotando a dicção constitucional em sentido mais amplo, posicionou-se a favor da legitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública para proteção dos mencionados direitos. 3. No presente caso, pelo objeto litigioso deduzido pelo Ministério Público (causa de pedir e pedido), o que se tem é pretensão de tutela de um bem divisível de um grupo: a suposta invalidade da limitação do número de concessões de isenção de taxas para exame vestibular de universidades federais em Pernambuco. Assim, atua o Ministério Público em defesa de típico direito individual homogêneo, por meio da ação civil pública, em contraposição à técnica tradicional de solução atomizada, a qual se justifica não só por dizer respeito à educação, interesse social relevante, mas sobretudo para evitar as inumeráveis demandas judiciais (economia processual), que sobrecarregam o Judiciário, e evitar decisões incongruentes sobre idênticas questões jurídicas.

 

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4. Nesse sentido, é patente a legitimidade ministerial, seja em razão da proteção contra eventual lesão ao interesse social relevante de um grupo de consumidores ou da massificação do conflito. 5. Recurso especial provido. (REsp 1225010/PE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/03/2011, REPDJe 02/09/2011, DJe 15/03/2011)

Postos estes argumentos, entendemos ser legítima a atuação do Ministério Público Federal, através de ação civil pública, para tutelar a responsabilidade dos agentes públicos na forma de regresso pelo que já foi pago pela União em termos de direito à reparação. Novamente, embasamos nossa afirmação no sentido da Justiça de Transição abarcar o direito à reparação e este ter sido efetuado exclusivamente pelo Estado, através da Comissão de Anistia e Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos, causando graves danos aos cofres, devendo assim, ser ressarcido pelos agentes que causaram efetivamente o dano8.

3. Legislação brasileira Para se chegar a um entendimento completo sobre a possibilidade ou não da responsabilização civil e administrativa dos agentes públicos por crimes cometidos durante a ditadura militar, faz-se mister a análise do ordenamento jurídico como um todo. Para tanto, far-se-á um estudo das normas que versam sobre este assunto, partindo da Constituição Federal de 1988, passando pela legislação ordinária e finalizando com as normas de direito internacional.

8 Para mais detalhes sobre o tema conferir: GREIFF, Paulo de. Dossiê Reparação: Justiça e Reparações. Revista Anistia - Política e Justiça de Transição nº 3. P. 42.

 

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Desta sorte, após a análise destes pontos, poderá se chegar à resposta pretendida. No ápice do rol de dispositivos do direito material que servirão de justificação e argumentação para os pedidos de responsabilização se encontram os artigos da Constituição Federal de 1988. Dentre os mais relevantes nessa perspectiva de responsabilização, podemos citar os artigos 1º, II e III; 5º, XIV e XXXIII; 14; 220; e 215 e 216, que tratam da garantia ao direito ao patrimônio histórico e cultural. Todos incidem veementemente como argumento para a publicização dos fatos, trazendo à tona o direito de a sociedade brasileira conhecer a verdade sobre a sua história e de construir a memória em respeito a esta. Atento ao art. 1º da Constituição, devemos considerar os incisos II e III, que protegem a cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana como fundamentos da República Federativa do Brasil, preceitos desrespeitados durante a vigência do período ditatorial com a prática de torturas e ocultação de cadáveres. O parágrafo único deste artigo também é importante , pois a repressão ocorrida durante a ditadura impossibilitou o exercício do poder estatal, que emana do povo. Quanto aos detentores de cargos da função pública, o art.14, §9º aponta a inelegibilidade em função da imoralidade configurada durante o exercício da função. O artigo 220 garante a livre manifestação do pensamento, mas faz ressalva que proíbe o anonimato. Apesar disso, o anonimato - e a não responsabilização - daqueles que fizeram mais do que um cercear a liberdade de expressão ainda é mantido, violando também o disposto nos artigos 215 e 216, impedindo a construção de um patrimônio histórico e cultural, para as vítimas de tortura e para todo o país. Entretanto, ainda que citemos inúmeros outros dispositivos legais do direito material brasileiro que justificam a responsabilização, nenhum deles se assemelhará ao art. 5º de nossa Constituição. O presente  

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dispositivo apresenta um rol de inúmeros direitos e garantias do cidadão brasileiro que, como sabemos, foram violados durante o período ditatorial. Direitos como aqueles que protegem a liberdade, a vida, a segurança, a não submissão à tortura ou a um tratamento desumano e a não inviolabilidade da intimidade e da vida privada, ao livre exercício de trabalho, ofício ou profissão, além de outros tantos, foram por diversas vezes deixados de lado. De forma estrita, e diretamente ligada ao tema de nosso trabalho, podemos citar as violações ocorridas aos direitos contidos nos incisos XIV e XXXIII do art. 5º da Constituição, pois tratam do acesso à informação enquanto direito dos cidadãos, seja em função de interesse particular, geral ou mesmo profissional, direito este reprimido de forma incisiva durante o período abordado. Estabelecendo uma ponte de ligação entre Constituições, deve ser frisado que todos os atos que violaram os direitos, preceitos e princípios já apontados com referência em nossa Constituição atual foram praticados na vigência da Constituição de 1967, que também assegurava a proteção dos mesmos, o que reafirma a inconstitucionalidade dos atos cometidos, pois toda a gama de pressupostos já citados não era estranha à época. A legislação ordinária possui inúmeros dispositivos acerca do tema, mas ressaltaremos somente aqueles mais relevantes e essenciais para o estudo. A começar pela Comissão de Anistia, criada pela lei 10.559/2002, que se incumbiu de analisar os requerimentos de indenização daqueles que foram impedidos de exercer atividade econômica, no período de 18 de setembro de 1946 até cinco de outubro de 1988, por motivação exclusivamente política. As indenizações se limitam a uma parcela única correspondente a até 30 salários mínimos por ano de perseguição política até o valor máximo de 100 mil reais ou prestação mensal que corresponderá ao posto que o anistiado ocuparia, se na  

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ativa estivesse. Esse valor ė devido aos anistiados políticos que puderem comprovar vínculos com a atividade laboral. Outro dispositivo legal importante ė o artigo 134 da lei 8.112/90 que disciplina sobre a perda de aposentadoria para os autores dos atos que são foco em nosso trabalho. Deve ser ressaltado ainda o fato da higidez moral ser discriminada como requisito para a ocupação de cargos públicos, e conforme consta nas ações, seria incompatível a permanência em cargos públicos dos responsáveis por atos que agridem uma série de pressupostos legais e atentam contra o ser humano, visto que o requisito da higidez moral não seria cumprido por tais servidores públicos. Além de atentar contra a atual lei do servidor público, a série de atos perpetrados por agentes públicos no período ditatorial também afrontava os dispositivos da lei 1.711/52, o Estatuto dos Funcionários Públicos civis da União, em vigor na época em que ocorreram os fatos referidos em nosso trabalho. Especialmente no tocante aos artigos 198, 199 e 201, que se referem à responsabilização civil e administrativa dos servidores públicos pelo exercício irregular de suas atribuições, bem como às penas cabíveis diante da prática de tais atos. Aqui também se evidencia uma forma de responsabilização administrativa em função dos atos citados, na qual os agentes executores de atos ilícitos e abusivos durante o período que compreende a ditadura militar têm como sanção a perda da aposentadoria ou proventos de qualquer espécie em função da prática, durante o exercício do cargo, de falta administrativa que, conforme regulamentação cabível, seria punível com a demissão do cargo ou posto ocupado. A Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, mais conhecida como Lei de Anistia, foi promulgada no fim da ditadura militar brasileira, sob um regime de governo autoritário e omisso. Ainda assim, representou um enorme avanço ao estabelecer um diálogo com a oposi  

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ção no momento de transição para um país efetivamente democrático. No primeiro artigo da referida lei, a anistia é concedida nos seguintes termos: É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. (BRASIL, 2013)

A grande discussão acerca desta lei se deve aos crimes conexos. A definição do termo vem no primeiro parágrafo do mesmo artigo, mas é demasiado imprecisa ao dizer que crimes conexos são "os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política". Esta imprecisão levou à impunidade dos agentes públicos defensores da ditadura militar, ainda que o Estado venha tomando medidas para se responsabilizar pelos atos cometidos entre 1961 e 1979, período que compreende os atos anteriores a lei da Anistia. A Lei de Anistia acabou por adquirir um caráter bilateral, anistiando militantes e presos políticos, mas também conciliando os agentes públicos responsáveis pela opressão à democracia futura. Essa interpretação, mantida pelo STF na ADPF 153, é por nós, contudo, rechaçada. Não há que se falar, no contexto da Constituição de 1988, bem como em vista das decisões da corte interamericana de direitos humanos, em anistia bilateral. Sob este aspecto relata Lúcia Bastos: Algumas anistias em branco já foram analisadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como pela Comissão Interamericana de Direitos

 

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Humanos. Essas verificações ocorreram porque muitas dessas anistias, que foram promulgadas durante os anos 70, 80 e 90 originaram-se de Estados Latino-americanos, e, conforme visto anteriormente, essas duas instituições interamericanas são as responsáveis na condução das investigações judiciais nesses casos. O que Serpa possível observar, é que, na grande maioria das vezes, não foi verificada a validade da Lei de Anistia propriamente dita, mas, sim, o direito das vítimas às indenizações pelas graves violações dos direitos humanos. Mesmo assim, nos processo relacionados ao tema, a Corte Interamericana julgou essas leis de anistia em branco inválidas e inaplicáveis, condenou os Estados que as tinham emitido e declarou ser a anistia uma violação fundamental ao direito internacional. (BASTOS, 2007, p.220)

É importante ressaltar que a referida lei não faz menção alguma à anistia civil. Quanto à anistia no âmbito administrativo, ela restringe somente aos perseguidos políticos. Uma vez que as instâncias penal, civil e administrativa são autônomas, fica claro que a anistia ampla e geral no âmbito penal não surte efeitos nas duas últimas esferas jurídicas. Na tentativa de reverter o caráter conciliatório da anistia concedida no Brasil, a OAB propôs, em 2010, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 153, requerendo que a lei fosse interpretada de acordo com os preceitos fundamentais estabelecidos na Constituição da República de 1988. A ADPF em questão foi julgada improcedente, mas os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal são bastante claros quanto à restrição da anistia ao âmbito penal. O Ministério Público recorre, nas petições iniciais, ao teor do voto da Ministra Carmem Lúcia, que ressalta a importância de investigar e esclarecer os desmandos cometidos no período ditatorial, para opor o significado de anistia ao esquecimento.  

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A Ministra é categórica ao afirmar que não se anistiou a responsabilidade do Estado, que responderá de acordo com os princípios jurídicos do sistema vigente, estes previstos na Constituição Federal de 1988, e que este "deverá voltar-se contra os que lhe atingiram os deveres de lealdade aos limites de ação respeitosa das pessoas políticas com os homens e as mulheres cujos direitos fundamentais foram cruamente atingidos9".

4. Normas de direito internacional Nas ações propostas pelo Ministério Público Federal nas quais uma sentença já foi proferida, o que se pode perceber é um total descaso e até mesmo desconhecimento sobre o Direito Internacional. Observa-se uma fundamentação rigorosa e extensa por parte ministerial em suas iniciais, porém, quando proferida a sentença, todos os fundamentos são refutados como se não possuíssem nenhuma aplicabilidade, isto quando são mencionados. Tendo isto em mente, faz-se necessária a realização de uma breve análise sobre a aplicação e posicionamento destas normas no ordenamento brasileiro. Durante um longo período discutiu-se sobre a existência, validade e eficácia das normas de direito internacional dentro do ordenamento interno de cada Estado. Nestes debates, sobressaíram duas correntes para explicar esta relação de Direito Internacional e Direito Interno: a corrente monista e a dualista. Em linhas bastante simples, entende-se a corrente dualista como aquela que entende o Direito Internacional e Interno como dois sistemas distintos e independentes, 9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 153. Voto da Ministra Carmem Lúcia, p. 2. Disponível em: .

 

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sendo necessária a conversão das normas de Direito Internacional para o Direito Interno para a aplicação deste no ordenamento interno de cada Estado. Já a corrente monista, sustenta a existência de uma única ordem jurídica onde prevalece o do Direito Internacional, estando hierarquicamente superior as ordens internas1011. Não obstante, não há um consenso entre os países, cabendo a cada um destes dispor sobre a aplicação destas normas. No caso do Brasil não há menção expressa sobre qual a posição dos tratados de direito internacional, havendo apenas dois dispositivos constitucionais tratando sobre o assunto. O primeiro é o parágrafo segundo do art. 5° da Constituição Federal, que dispõe que os direitos e garantias previstos na Constituição não excluem os tratados de que a República Federativa do Brasil faça parte. Este dispositivo levou muitos estudiosos a entenderem que estes tratados estariam no mesmo nível da Constituição, entendimento que foi refutado pelo Supremo Tribunal Federal, que entendeu que os tratados internacionais entram no ordenamento jurídico brasileiro como normas infraconstitucionais, no mesmo nível das leis federais. O parágrafo terceiro do artigo 5º, por sua vez, determina que:

10 SOARES, Carina de Oliveira. Os tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro: análise das relações entre o Direito Internacional Público e o Direito Interno Estatal. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 88, maio 2011. Disponível em: . Acesso em abr 2013. 11 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Supremo Tribunal Federal e os tratados internacionais. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001 . Disponível em: . Acesso em: 16 abr. 2013.

 

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os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes à emenda constitucional. (BRASIL, 2013)

Desta forma, caso seja aprovado na forma expressa no dispositivo, o tratado ou convenção sobre direitos humanos ganha status de emenda constitucional. Mas e se estes tratados não forem aprovados desta maneira? Entendeu o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 466.343- SP,que nestes casos terão o caráter supra-legal, ou seja, superior a lei federal, mas inferior à Constituição. Ainda acho necessário evidenciar quando os tratados e convenções de Direito Internacional passam a existir no nosso ordenamento. Cabe ao Presidente da República celebrar o tratado, devendo este ser aprovado pelo Congresso Nacional, através de decreto legislativo. Com a devida aprovação do Congresso Nacional, o tratado retorna ao Poder Executivo para que este venha a ser ratificado. Tendo sido ratificado, o tratado internacional deverá ser promulgado internamente através de um decreto de execução presidencial. Isto ocorrido, o tratado passa a existir no ordenamento brasileiro. Ainda que de maneira sucinta, uma vez não ser tema principal do trabalho, resta claramente demonstrado que os tratados e convenções integram o ordenamento jurídico brasileiro. Mas em que isto interfere na responsabilização pessoal dos agentes? Interfere na medida em que o Brasil adota o conceito de crimes contra a humanidade, ou lesa-humanidade, desde 1907, com a Convenção de Haia sobre guerra terrestre, tendo sido ratificado e promulgado pelo Brasil em 1914. Salienta-se que este foi apenas o primeiro documento ratificado e promulgado pelo país, que mais adiante celebrou diversos  

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outros tratados e convenções sobre o assunto, com destaque à Carta das Nações Unidas, em 1945. Crime lesa-humanidade segundo a ONU é qualquer ato desumano cometido contra a população civil, no bojo de uma perseguição por motivos políticos, raciais ou religiosos, estando os crimes praticados no período ditatorial, portanto, dentro deste conceito. A principal decorrência desta conceituação, é que os crimes praticados neste contexto são insuscetíveis de anistia e imprescritíveis. Já que o Brasil ratificou tais tratados, não há de se falar em anistia e prescrição dos ilícitos cometidos durante a ditadura, haja vista a aplicação das normas de Direito Internacional no ordenamento jurídico brasileiro já exposta neste artigo.

5. Andamento dos processos Apesar da argumentação desenvolvida pelo Ministério Público Federal - a qual procuramos esclarecer neste artigo, nenhum dos processos estudados teve sentença proferida no sentido da responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos. Nos casos já julgados em primeira instância, o Ministério Público tem entrado com recursos e apelações na tentativa de rever ou invalidar as decisões. O caso "Desaparecidos Políticos IML-DOPSPrefeitura de São Paulo" se encontra suspenso, aguardando a regularização dos sucessores de réus que vieram a óbito depois do início do processo. A ocorrência da prescrição foi fundamento contra a procedência dos pedidos em dois processos. No caso "OBAN", apesar do requerimento dos réus de não cabimento da ação ter sido rejeitado, a ação foi extinta com base no argumento da prescrição. O juiz do caso "DOI-CODI/SP", por sua vez, extinguiu processo sem resolução de mérito e declarou, também se utilizando da ocorrência de prescrição, a improcedência dos pedi  

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dos (I) de condenação dos réus a repararem os danos apontados, (II) de perda de função pública e (III) de não serem investidos em qualquer nova função pública. Segundo ele, os agentes públicos praticaram danos a particulares e, portanto, a imprescritibilidade de prejuízos ao erário não se aplicaria. Este juiz, entretanto, parece ignorar que as indenizações cabíveis aos particulares vêm sendo pagas pelo Estado, deixando claro o prejuízo causado pelos atos destes agentes. Em ambos os casos, o Ministério Público leva o processo adiante. A primeira decisão proferida no caso "Manoel Filho" extinguiu o processo sem resolução de mérito, sob o argumento da carência de interesse processual pelo MPF, de acordo com o artigo 295 inciso III do Código do Processo Civil, diante da inadequação da via escolhida. O recurso interposto pelo Ministério acabou por remeter os autos Tribunal Regional Federal da 3ª região, que decidiu pelo provimento da ação. Este processo se encontra na fase de citação dos réus. No caso "Ossadas de Perus" o Ministério requereu uma liminar para permitir o início mais breve da busca e identificação dos corpos enterrados como indigentes no Cemitério de Perus na cidade de São Paulo. A liminar foi concedida em primeira instância, mas o TRF a suspendeu devido à potencialidade lesiva à ordem econômica pública de tal ação de busca sem um planejamento orçamentário mais elaborado. Hoje, o processo está na fase de produção de provas. Por fim, no caso "Policiais Civis no DOICODI/SP" a liminar que requeria o afastamento imediato dos réus, pessoa física, de cargos públicos foi indeferida. Ainda que o MPF não tenha explicitado quais são os cargos públicos ocupados pelos réus, o principal argumento utilizado para o indeferimento da liminar foi o julgamento da ADPF 153, na qual, como já foi exposto no presente artigo, os Ministros do STF afirmam explicitamente a necessidade de responsabilizar agentes que tenham cometido desmandos em nome do Estado Brasileiro. Já na sentença, o juiz decide pela extin  

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ção do processo, acolhendo os argumentos que estendem a Lei de Anistia ao âmbito civil e administrativo e a prescrição aos atos cometidos pelos agentes públicos. O Ministério Público opôs embargos de declaração e entrou com recurso requerendo a remissão do processo ao Tribunal Regional Federal da 3ª região.

Conclusão O ponto de partida do presente trabalho se deu na análise das ações civis públicas propostas pelo Ministério Público Federal. Tendo sido dada uma visão geral de cada caso, passou-se aos pontos mais específicos. O primeiro destes foi o estudo da legitimidade do Ministério Público Federal em porpor tais ações e análise da ação civil pública como meio adequado para se atingir o objetivo pretendido. Assim, concluímos que a atuação ministerial é cabível, principalmente na medida de obter o regresso dos agentes que foram identificados, pelas indenizações prestadas pela União às vítimas através da comissões de anistia. Da mesma forma, entendemos ser a a ação civil pública o meio correto, uma vez ser a ação proposta para proteger o patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Em continuidade ao nosso trabalho, perpassamos por todo o ordenamento jurídico brasileiro cabível, atuais e passadas, que de forma direta ou indireta poderia influenciar nos processos de responsabilização civil–administrativa. Apesar da utilização da legislação ordinária de forma relevante, podemos dizer que a Constituição Federal de 1988, foi a principal fonte para a justificação dos pedidos de responsabilidade dos agentes. Quanto à recorrente alegação da Lei de Anistia ser aplicável à responsabilização civil e administrativa,  

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demonstramos, baseados nas ações que fundamentaram grande parte de nosso estudo, que a mesma não se aplicaria a estas esferas, sendo cabível apenas em âmbito criminal, e restringida aos perseguidos políticos na esfera administrativa. Da mesma forma, passamos brevemente pelas normas de Direito Internacional e vimos que estas integram o ordenamento brasileiro. Assim, à época dos crimes já existiam convenções e tratados em que o Brasil era signatário, como a Convenção de Haia e a Carta das Nações Unidas, tornando ilegal a auto-anistia e gerando a imprescritibilidade de tais crimes, por tratarem de crimes lesa-humanidade. Logo, entendemos ser possível a responsabilização pessoal dos agentes por ilícitos civis cometidos durante o período ditatorial brasileiro. Há argumentos sólidos suficientes para que medidas de responsabilização sejam tomadas. Isso é importante tanto para a construção da memória das vítimas e do povo brasileiro quanto para a consolidação do Estado Democrático de Direito brasileiro defendido pelo artigo 1° da Constituição da República. Entretanto, nenhum dos julgamentos proferiu sentença final responsabilizando os agentes públicos. O processo "Desaparecidos Políticos" está suspenso, em fase de citação dos réus. Já o caso "Ossadas de Perus" está em fase de produção de provas e, embora a liminar para acelerar o processo de identificação das ossadas tenha sido concedida em primeira instância, o TRF a suspendeu sob a justificativa de proteger a ordem econômica. Os demais processos analisados foram extintos por causas diversas: ocorrência de prescrição, ampliação dos efeitos da Lei de Anistia à esfera civil e carência de interesse processual e inadequação da via escolhida pelo MPF. Isso demonstra que os juízes não tem aceito os argumentos utilizados pelo Ministério Público e que há um descompasso visível entre os argumentos doutrinários e aqueles acolhidos pelos tribu  

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nais. Apesar disso, o Ministério tem entrado com recurso em todas as ações.

Por fim se destaca que a oportunidade de observar a responsabilização civil e administrativa em nosso país mostrou sua precariedade e limitação, pelo congestionamento e despreparo do judiciário, pelo tempo decorrido da prática dos atos, pelo falecimento das vítimas, além do desconhecimento de fatos que ainda se encontram enterrados no passado Essas e outas tantas situações ainda impedem uma responsabilização civil e administrativa mais imponente e geradora de frutos em nosso país, restando aos estudiosos do Direito apontar a direção a ser seguida.

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A formação da norma global de responsabilidade individual Mobilização política transnacional, desenvolvimento principiológico e estruturação em regras internacionais e domésticas

Marcelo  D.  Torelly1  

Resumo: O presente trabalho investiga o processo de formação da ‘norma global de responsabilidade individual’ especialmente desde a perspectiva da justiça de transição. Para tanto, combina a leitura de teses sobre o ‘ciclo da vida’ das normas globais (Finemore & Sikkink) com as leituras divergentes sobre as regras e princípios em Alexy, Dworkin e Neves. Conclui que a diferenciação entre regras e princípios no direito mundial é de natureza funcional, e não qualitativa, apontando, desde o exemplo da norma global em questão, que 1 Pesquisador visitante no Institute for Global Law and Policy, Harvard Law School (Estados Unidos). Mestre e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília. Foi coordenador-geral de memória histórica da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2007-2013), tendo também dirigido o programa de cooperação internacional e desenvolvimento de políticas de justiça de transição mantido pelo Governo Federal em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Autor do livro Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito, publicado pela coleção Fórum Justiça e Democracia (Belo Horizonte: Fórum, 2012), além de diversos artigos e capítulos sobre justiça transicional, constitucionalismo e direitos humanos disponíveis em português, espanhol, inglês e alemão.

 

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tal diferenciação se dá por meio do desenvolvimento do conteúdo da própria norma em seu processo de formação. Ao operarem os instrumentos jurídicos de maneira persuasiva, demonstrativa ou mecânica, os atores estratégicos gradualmente criam e reduzem complexidades. Neste processo, a capacidade de mobilização social em torno dos atores estratégicos gradualmente altera a percepção de adequação do direito, produzindo mudanças interpretativas e formações de consensos parciais que alteram as decisões, gerando novas formas de consistência, que alteram o modo como dispositivos legais são interpretados no direito internacional e doméstico, transformando expectativas políticas em princípios, dos quais derivam decisões redutoras de complexidade que, finalmente, estabilizam regras capazes de operar de forma consistente no novo contexto social. Palavras-chave: 1. Norma Global de Responsabilidade Individual; 2. Princípios; 3. Regras; 4. Justiça de Transição; 5. Constitucionalismo; 6. Direito Internacional. Abstract: This article analyzes the formation of the ‘global norm of individual accountability’ from the transitional justice perspective. It combines thesis on the norms ‘cycle of life’ (Finemore & Sikkink) with divergent readings on norms nature from Alexy, Dworkin, and Neves. It concludes that the differentiation of rules and principles in global law is functional, not qualitative, pointing that this differentiation happens on the development of the norm itself. Operating legal tools for persuasion, demonstration, or mechanical application, law field players gradually create and reduce complexity. In the process, the capacity of social mobilization around strategic actors of the legal field changes the perception of Law’s adequacy, leading to new interpretations and consensus and, finally, to new forms of Law consistency, reshaping the way legal tools are interpreted and applied domestically and internationally. In the process, political expectations are consolidated into legal principles; principles are applied in  

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decisions that reduce social complexity and, finally; generate stable rules that consistently operates in the new social context. Keywords: 1. Global Norm of Individual Accountability; 2. Principles; 3. Rules; 4. Transitional Justice; 5. Constitutionalism; 6. International Law.

1. Introdução Uma crescente literatura especializada vem apontando o surgimento de uma chamada “norma global de responsabilidade individual” em resposta as graves violações praticadas conta os direitos humanos.2 Os direitos humanos, de muito, são considerados um dos pilares do constitucionalismo moderno, entendidos como uma resposta contra majoritária à vontade da popular, e, neste sentido, a insurgência de tal norma global caracteriza-se por excelência como matéria constitucional em uma perspectiva não necessariamente doméstica ou internacional, mas sim transconstitucional, atravessando tanto o chamado “direito internacional”, quando o “direito doméstico”.3 Os principais debates em teoria constitucional doméstica desde os anos 1970 estruturam-se desde uma perspectiva principiológica, com um vasto conjunto de autores redimensionando a teoria jurídica para comportar não apenas regras estruturadoras de condutas, mas também princípios matizadores que permitem a extração de normas de decisão em casos onde a situação fática submetida à apreciação judicial não se encontra coberta por uma regra, demandando processos de so2

Payne, Leigh A.; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. “A Anistia na Era da Responsabilização: contexto global, comparativo e introdução ao caso brasileiro”. In: Payne, Leigh A.; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. (orgs.). A Anistia na Era da Responsabilização. Brasília/Oxford: Ministério da Justiça/Universidade de Oxford, 2011, pp. 18-31. 3 Neves, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF, 2011.

 

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pesamento de valores para a obtenção de uma decisão “correta”. Tal processo apresenta uma tendência de matematização da realidade, objetivando apresentar problemas constitucionais como questões onde a decisão (seja ela lida como ato político, jurídico ou híbrido) não mais faz do que equacionar interesses para solucionar conflitos dentro de um contexto normativo aprioristicamente pré-determinado.4 A insurgência da norma global de responsabilização torna o processo de sopesamento ainda mais complexo, uma vez que adiciona à suposta equação um novo elemento. Construída originalmente a partir de pressupostos do direito internacional, que se internalizam em distintas medidas (no próprio direito internacional, mas também nos direitos domésticos), a norma global se apresenta como um elemento de interação externo aos ordenamentos quando estes abrem janelas de possibilidade para diálogos transconstitucionais entre direito doméstico, regional e internacional. Diferentes respostas foram dadas nestes processos de interação, constituindo, no âmbito padrões de convergência, articulação ou mesmo resistência.5 Esses padrões de relação permitem questionar, em diversos níveis, a estruturação de processos de governança global que, segundo Kennedy, são cada vez mais presentes, mesmo que não plenamente compreendidos.6 Uma primeira questão bastante simples diz mesmo respeito à legitimidade destes processos, abso4

Síntese bem feita desta pretensão, acompanhada de crítica, encontrase disponível em Aleinikoff, Alexander. “Constitutional Law in the Age of Balancing”. In: Yale Law Journal. Vol. 96, nº 05, 1987, pp.9431005. 5 Jackson, Vicky. Constitutional Engagement in a Transnational Era. Nova Iorque: Oxford University Press, 2009. 6 Kennedy, David. “The mystery of Global Governance”. In: Ruling the World – Constitutionalism, International Law, and Global Governance. New York: Cambridge University Press, 2009, pp. 37-67.

 

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lutamente descolados dos pressupostos clássicos estruturadores de vertentes soberanistas do direito constitucional.7 Um segundo grande questionamento possível, desde uma perspectiva internacionalista, aponta para o próprio papel do direito internacional, a ser lido por alguns como um reflexo de relações de poder e interesses nacionais, com permanentes tendências hegemonizantes,8 por outros como uma forma mais aprimorada do direito, destinada a uma regulação similar àquela proposta pelo direito constitucional doméstico, porém em escala global,9 ou, ainda, numa terceira via, como um conjunto de fragmentos constitucionais amalgamados, cujas interações não são de pleno previsíveis, mas conformam padrões que se aglutinam não mais no próprio binômio doméstico/internacional que estruturou boa parte da disciplina, mas sim por meio de regimes especializados capazes de auto se regularem independente do Estado nacional, num modelo que abandona a ideia de um direito de natureza material em prol de uma ideia de direito procedimentalmente construído.10 Deixando de lado o primeiro conjunto de problemas, da legitimidade dos atuais processos globais, e adotando uma perspectiva empirista, aliando análise concreta com teorias que explicam os processos, não seus fundamentos de legitimação, este estudo propõe a 7 No exemplo europeu, veja-se, por exemplo: Möllers, Christoph. “Multi-Level Democracy”. In” Ratio Juris. Vol. 24, nº 3, Setembro de 2011, pp. 247-266. 8 Koskenniemi, Martii. The Politics of International Law. Oxford: Hart Publishing, 2011. 9 Piovesan, Flavia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2011. 10 Teubner, Gunther. Constitutional Fragments – societal constitutionalism and globalization. Oxford: Oxford Univeristy Press, 2012.

 

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análise do processo de insurgência de normas globais, especialmente conforme lido fora do direito, pela ciência política e pelas relações internacionais (seção 02); o modo como se apresenta atualmente o debate sobre a distinção entre regras e princípios, desde os modelos teóricos de Dworkin, Alexy, bem como sua crítica por Neves (seção 03); descrever o processo de consolidação da norma global de responsabilidade individual e, em menor medida, da norma global alusiva à responsabilidade do Estado, traduzida nos direitos à reparação à verdade, e, finalmente (seção 04); explorar como o processo de estruturação da norma global de responsabilidade individual pode ser lido desde a perspectiva da distinção entre regras e princípios, esboçando propostas de superação para as leituras dogmáticas desenvolvidas pela teoria do direito, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, tendentes a identificar regras e princípios por meio de distinções qualitativas, e apontado para uma perspectiva de diferenciação pela funcionalidade estrutural das normas vinculada a seu momento de desenvolvimento, em um processo que apresenta a distinção entre regras e princípios como, também, parte de tal desenvolvimento (seção 05).

2. Como surgem as normas globais? Como surgem as normas globais? Uma resposta clássica, desde a teoria institucionalista, aponta para a ideia de que tais normas são apenas e tão somente o produto da vontade soberana dos Estados. Desde esta perspectiva o surgimento de uma norma desta natureza ocorreria quando a vontade política de suficientes (e/ou relevantes) Estados se alinhasse, produzindo um instrumento legal, geralmente um tratado, ou um costume consolidado pela repetição e não questionamento, regulando uma determinada questão. Sem deixar de ser verdadeira, essa abordagem ilumina apenas uma parte do problema. No direito  

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doméstico o surgimento de novos instrumentos legais encontra-se articulado desde a perspectiva democrática, sendo os poderes constituídos que, em resposta à vontade popular ou na interpretação do sistema jurídico emanado desta vontade, produzem texto e transformam texto em norma. Muitos autores, não obstante, tem refletido sobre este processo no âmbito internacional, apontando tanto para uma especial legitimidade derivada da delegação estatal para que agências e organizações internacionais produzam direito11 (tema que, como antes dito, não é o objeto central do presente estudo), quanto, e mais especialmente, para o papel que a esfera pública internacional tem em articular pretensões políticas de afirmação de direitos.12 Alguns exemplos deste processo são a ideia de “litígio estratégico” junto ao sistema interamericano de direitos humanos,13 ou mesmo a de mobilização próinstitucionalização de novas cortes e agências reguladoras, como pôde ser visto no processo de mobilização internacional para a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI).14 No primeiro exemplo, temos organizações não governamentais representando interesses de vítimas de violações aos direitos humanos não com o fito exclusivo de proteger direitos singulares, mas de produzir 11 12

Mollers, op.cit.

Veja-se, por exemplo: Santos, Cecilia MacDowell Santos. “Questões de Direitos Humanos: a mobilização dos direitos humanos e a memória da ditadura no Brasil”. In: Santos, Boaventura; Santos, Cecilia MacDowell; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. (orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Americano. Brasília/Coimbra: Ministério da Justiça/Universidade de Coimbra, 2010, pp. 124-151. 13 Cardoso, Evora Lusci Costa. Litígio Estratégico e Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Coleção Fórum Direitos Humanos, vol.04. Belo Horizonte: Fórum, 2012. 14 Cf.: Zilli, Marcos (Org.). “Especial 10 Anos do Tribunal Penal Internacional”. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, vol. 08, Jul./Dez.2012.

 

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processos onde a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por meio da interpretação da Convenção Americana, derive normas protetivas de caráter universal entre os signatários do instrumento internacional em questão. Esse processo de definição de standards pela Corte, batizado como processo de “controle de convencionalidade”15, permite que a pressão social em escala internacional, em alguma medida, emule no plano internacional as lutas domésticas pela efetivação de direitos. Ou seja, emule o uso do exercício da política para a produção de texto a ser interpretado pelo sistema jurídico. Essa questão pode, sempre, gerar a ressalva de que se estaria aqui apenas interpretando a Convenção Americana, e não propriamente produzindo novos direitos, mas os processos em que a Corte julgou casos que podem ser colocados sob o guarda-chuva da norma global de responsabilização individual em alguma medida relativizam este argumento. No mais recente caso em que a questão foi apreciada pela Corte, Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil, a Corte derivou a obrigação de investigar e punir graves violações contra os direitos humanos de um conjunto de outros direitos, estes sim previstos, tais como o direito à vida,16 à integridade17 e à liberdade pessoal,  18 e às garantias e a proteção judicial.19 Nas leituras mais correntes na dogmática tradicional, tais instrumentos poderiam caracterizar tanto regras de aplicação impositiva, quanto princípios a serem otimizados. 15 Bazán, Víctor; Nash, Claudio (orgs.). Justicia Constitucional y derechos fundamentales – el control de convencionalidade. Santiago/Bogotá: Universidad de Chile/Konrad Adenauer Stiftung, 2011. 16 Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 4º. 17

Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 5º.

18

Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 6º.

19

Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 25º.

 

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O caso da mobilização social pela instituição do Tribunal Penal Internacional é, não obstante, ainda mais explícito em demonstrar a utilização da política internacional para produzir o substrato à formação e efetivação de novas normas globais. Antes da criação do TPI construiu-se a Coalizão Internacional para o Tribunal Penal Internacional, associação ainda ativa integrada por mais de 2.500 organizações civis em 150 países, com uma clara agenda orientada a pressionar os estados nacionais para aderirem ao Estatuto de Roma, que constitui a Corte. Observando processos como estes (e poderiam ser citados muitos outros, como o de luta pelo direito de sufrágio feminino, ou dos direitos dos portadores de deficiências físicas, ou mesmo do movimento LGBT), os pesquisadores da ciência política passaram a localizar o primeiro estágio da formação de normas globais não na institucionalização propriamente dita de direitos por meio de tratados, convenções ou costumes (portanto, não na positivação de pretensões políticas que passam a integrar, em dado momento, o sistema jurídico), mas na própria agenda de mobilização por esses direitos. O objeto de estudo desta disciplina é, portanto, anterior àquele a que classicamente dedicam-se os juristas. Por essa razão autores como Finemore e Sikkink se propõem a estudar a influência das normas globais desde seu “ciclo de vida”, iniciando suas considerações não pelo momento em que se institucionaliza o dispositivo legal em forma de texto a ser explorado pelos juristas, mas sim numa fase (de um total de três) que denominam como a “emergência” da norma no contexto social: “[...] o primeiro estágio é a “emergência da norma”; o segundo estágio envolve a ampla aceitação da norma, ao qual

 

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chamamos, seguindo Cass Sunstein, de “cascata da norma”; e o terceiro estágio envolve a internalização”. 20 A ideia aqui presente é que o processo de produção de normas globais depende não apenas da vontade dos Estados, mas de um conjunto mais ampliado de fatores que inclui, especialmente, os processos de convencimento dos agentes que interpretam e aplicam textos legais sobre a existência ou não de dadas prescrições normativas. Assim, processos sociais de reivindicação e luta por direitos, ao tencionarem o sistema político, não impactam apenas a “efetivação” pelos responsáveis por implementar as normas (geralmente atores executivos mais explicitamente sujeitos à pressão política), mas também a formação e interpretação do Direito pelos tribunais e instituições em geral. Sumarizando o argumento, o ciclo da vida de uma norma apresenta-se como segue21. Primeiro estágio – emergência da norma: após mobilização social, os interpretes do direito, por meio de suas plataformas institucionais disponíveis (procuradorias, cortes, escritórios, ongs), motivados por altruísmo com a luta dos interessados, empatia, identidade ou compromisso, procuram persuadir a comunidade legal da existência de uma dada norma, derivada do escopo legal da própria plataforma que ocupam, ou do direito geral. Segundo estágio – cascata normativa: Estados, instituições internacionais e transnacionais, organizações e redes internacionais assumem a existência da norma. Legitimidade e reputação são seus principais móveis 20

Tradução livre, no original: “[…] the first stage is ‘‘norm emergence’’; the second stage involves broad norm acceptance, which we term, following Cass Sunstein, a ‘‘norm cascade’’; and the third stage involves internalization”. Finnemore, Martha; Sikkink, Kathryn. “International Norm Dynamics and Political Change,” International Organization 52, vol. 4, Autumm 1988, p.895. 21 Para o argumento completo: Finnemore, Martha; Sikkink, Kathryn. Op.cit.

 

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de ação. Aqui, passam não mais a buscar persuadir sobre a existência da norma, mas sim a demonstrar sua existência desde exemplos fáticos de concretização tidos na etapa anterior, socializando e institucionalizando seu conteúdo, formando uma “cascata normativa”22 que ganha volume e irradia para os demais atores dos processos institucionais. Terceiro estágio - internalização: Atores jurídicos gerais, especialmente no plano interno e nas burocracias, assumem a existência interna da norma global, que se positiva ou é judicialmente recebida por meio de decisões. Seu principal motivo para aplicar a norma é a conformidade. O hábito se segue à institucionalização. Originalmente, na teoria de Finemore & Sikkink, a internalização diz respeito à migração da norma internacional ao plano doméstico, mas como se pretende aqui demonstrar, igualmente as normas internacionais “puras” passam por um processo de internalização, desde a perspectiva do regime do direito internacional. Portanto, o processo de internalização pode ocorrer anteriormente no direito internacional, mas também de modo simultâneo ou mesmo antecipado nos distintos regimes de direito doméstico. Para fins deste estudo, portanto, a ideia de internalização diz respeito não apenas ao processo de fertilização cruzada entre direito internacional e direitos domésticos,   23 mas 22

O conceito de “justice cascade” foi depois aprofundado por Sikkink em: Sikkink, Kathryn. The Justice Cascade. Nova Iorque: W. W. Norton and Company, 2011. 23 Slaughter define tal processo de fertilização cruzada como aquele no qual “Cortes constitucionais [...] citam precedentes umas das outras em temas que variam da liberdade de expressão aos direitos à privacidade e a pena de morte. [...] Elas citam-se reciprocamente não como precedentes, mas como autoridade persuasiva. Elas também podem distinguir sua visão daquela de outras cortes que consideraram a problemas similares. Como resultado, ao menos em algumas áreas como a pena de morte e os direitos à privacidade, é a emergência de uma jurisprudência global”. Tradução livre, no original: “Constitutional courts are citing each other’s precedents on issues ranging from

 

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sim ao processo de recepção de uma pretensão política por direitos enquanto norma em um determinado regime jurídico (nacional, regional, transnacional ou internacional).24 Desde essa perspectiva a mudança social altera a percepção geral sobre a adequação do direito e, assim, produz a tensão que gera a alteração legal que se inicia focalmente (emergência), se espalha transversalmente (cascata) e, por fim, se institucionaliza em regimes jurídicos distintos daqueles em que surgiu. Nesta teoria sobre o surgimento das normas globais fica patente tanto a relação de tensão existente entre mudança social e mudança legal, quanto a relação entre direito doméstico e direito internacional. Mas resta a dúvida: tal conceito de “norma”, desenvolvido pela ciência política e as relações internacionais, é coerente com aquele de uso comum entre os juristas? Para responder a essa questão passamos a análise do debate sobre princípios e regras e, posteriormente, a sua aplicação à norma global de responsabilidade individual.

3. Antes das normas, princípios e regras A abordagem de Finemome e Sikkink aponta para a existência de um conjunto de conceitos para o que seja uma “norma”, destacando, não obstante, os dois mais comuns: “Acadêmicos de distintas disciplinas reconhecem diferentes tipos ou categorias de normas. A disfree speech to privacy rights to the death penalty. […] They cite each other not as precedent, but as persuasive authority. They may also distinguish their views from views of other courts that have considered similar problems. The result, at least in some areas such as the death penalty and privacy rights, is an emerging global jurisprudence”. Slaughter, Anne-Marie. “A Global Community of Courts”. In: Harvard International Law Journal, vol. 44, no. 01, 2003, pp. 193. 24 Agradeço ao Professor Marcelo Neves por chamar minha atenção e insistir na necessidade deste esclarecimento para o bom entendimento do argumento em desenvolvimento.

 

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tinção mais comum é entre normas reguladoras, que ordenam ou constrangem comportamentos, e normas constitutivas, que criam novos atores, interesses e categorias de ação”.25 Para os fins deste estudo o que interessa desta perspectiva da ciência política é, portanto, que a ideia de “norma reguladora” desenvolvida quando tratamos da “norma global”, pode tratar tanto de um princípio, quanto de uma regra, quanto da combinação entre ambos. Assim, torna-se profícuo explorar como a teoria jurídica tem enfrentado, primeiramente, a própria distinção entre regras e princípios para, então, escrutinar como se desenvolveu a norma global em questão (seção 04) e, em um momento final, buscar-se compreender como tais distinções aplicam-se e reconfiguram-se no caso concreto da norma global de responsabilidade individual (seção 05). Duas abordagens vêm sendo recorrentemente aduzidas quando se discute a diferença entre regras e princípios na teoria jurídica, procurando estabelecer uma distinção qualitativa, vale resgatá-las brevemente: Robert Alexy propõe, em sua teoria dos direitos fundamentais, que tanto regras quanto princípios são espécies de normas, já que constituem “expressões deônticas básicas do dever”.26 Diferencia-os, posteriormente, ao apontar que: “O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas exis25 Tradução livre, no original: “Scholars across disciplines have recognized different types or categories of norms. The most common distinction is between regulative norms, which order and constrain behavior, and constitutive norms, which create new actors, interests, or categories of action”. Finnemore; Sikkink. Op.cit., p.891. 26 Alexy, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p.87.

 

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tentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.”27

Por sua vez, as regras: “[...] são normas que sempre são ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível.”28

Concluindo que “[...] isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.”29 Assim, os princípios detêm mandamentos prima facie, ou seja, “representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas”,30 enquanto as regras possuem um comando que, se válido, determina exatamente aquilo que deve ocorrer. Alexy define que princípios são sempre razões prima facie, enquanto regras são sempre razões definitivas. O autor entende, de forma parcialmente coincidente com Joseph Raz, que princípios e regras são razões para normas, mas que, ao sê-lo, igualmente tornam-se razões para ações. Discorda, não obstante, daqueles que entendem que os princípios são apenas razões para regras, vez que “regras po-

27

Alexy. Op.cit., p.90.

28

Alexy. Op.cit., p.91.

29

Alexy. Op.cit., p.91.

30

Alexy. Op.cit., p.104.

 

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dem ser também razões para outras regras e princípios podem ser razões para decisões concretas”.31 Ronald Dworkin, por sua vez, aponta que as regras possuem uma natureza de “tudo ou nada” em sua aplicação, não sendo possível afirmar que uma dada regra “é mais importante que outra”,32 enquanto os princípios “possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância”.33 É assim que: “Quando princípios se entrecruzam [...] aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou política é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante é.”34

Na teoria de Dworkin “depois que um caso é decido podemos dizer que ele ilustra uma regra particular [...] mas a regra não existe antes de o caso ser decidido; o tribunal usa princípios para justificar a adoção e aplicação de uma nova regra”35. Nessa perspectiva os juristas, quando resolvem casos complexos, abandonam o modelo de regras e passam a se guiar por outros padrões. Entre estes padrões estão as políticas e os princípios. As primeiras são entendidas como “objetivos a serem alcançados”, e os últimos como um “padrão que deve ser observado [...]

31

Alexy. Op.cit., p.104.

32

Dworkin, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: WMF, 2010, p.43. 33 Dworkin. Op.cit., p.42. 34

Dworkin. Op.cit., pp.42.-43

35

Dworkin. Op.cit., p.46.

 

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porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”.36 Desta feita o aplicador do direito pode “criar” direito ou alterar as regras em vigor desde uma perspectiva da moralidade comum a dada comunidade quando satisfeitos dois pressupostos: primeiramente, a mudança em questão deve favorecer a um princípio; em segundo lugar, a mudança só pode ocorrer após o aplicador considerar todos os padrões contrários a alteração doutrinaria e, ainda assim, constatar a vantagem em prol do princípio em questão. Neves criticará a ambas as teorias. Quanto à teoria de Alexy, sobre a otimização, apontará que: “[...] passa por cima do fato de se tratar de uma sociedade complexa, com diversos pontos de observação conforme a esfera social que se parte [...] e de um sistema jurídico que traduz internamente, conforme seus próprios critérios, essa pluralidade de ângulos. O que é otimizante em uma perspectiva não é otimizante em outra.”37

Quanto à tese de Dworkin aponta, primeiramente, que embora os princípios constitucionais sirvam para possibilitar uma maior abertura da argumentação jurídica à complexidade social, não se deve desconhecer que as regras “reduzem a complexidade dos princípios, possibilitando a passagem de um estado de incerteza inicial para a certeza no final do procedimento de solução do caso”.38 Neves propõe uma abordagem distinta, desenvolvida a partir de leituras da teoria dos sistemas, onde lê as regras como produto de uma observação de pri36 37

Dworkin. Op.cit., p.36.

Neves, Marcelo. Entre Hidra e Hercules. São Paulo: WMF, 2013, p.83. A crítica, evidentemente, é mais ampla e complexa, recortando-se aqui apenas aquilo que interessa ao argumento em construção. 38 Neves. Ibidem, p.58.

 

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meira ordem, no nível da estrutura de expectativas, enquanto os princípios seriam produtos de uma observação de segunda ordem, não oferecendo critérios definitivos para a solução do caso. Assim, regras e princípios passam a funcionar como elementos de equilíbrio entre a consistência interna e a adequação social do direito: “Não há norma pronta e previamente acabada, a ser aplicada de maneira diversa como regra ou princípio. Isso pressuporia uma externalização da justificação da norma para uma ordem moral com pretensão de validade pragmática universal. O que se passa é que, na observação de primeira ordem, a diferença entre regras e princípios ainda é irrelevante. Quando, na observação de segunda ordem, instaura-se a controvérsia argumentativa em torno do sentido, da validade e das condições de aplicação das respectivas normas, a diferença entre princípios e regras ganha um significado imprescindível para o desenvolvimento consistente e adequado do direito.”39

No plano da consistência, as regras cumprem a função de estabilizar expectativas, determinando de forma regular e coerente a conduta; no plano da adequação, os princípios permitem a atualização do direito com os desenvolvimentos sociais. Assim, para Neves, o que tratamos ao distinguir regras de princípios é, grosso modo, equilibrar um tipo de argumentação formal (baseada em regras), com um tipo de argumentação substancial (baseada em princípios), ambas necessárias para que o direito seja, a um só tempo, internamente consistente e externamente adequado.40 Tal paradoxo, entre conservação e mudança, encontra-se especialmente presente no direito constitucional, vez que, para Neves, funcionando como acoplamento entre Direito e 39

Neves. Ibidem, p.100.

40

Neves. Ibidem, p.170.

 

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Política, a Constituição “sempre tem duas dimensões: “Constituição como politização do direito” e “Constituição como juridificação da política”.”41 Temos, assim, um panorama dos principais desenvolvimentos e críticas em torno da distinção entre princípios e regras, restando a questão: como tais teorias dialogam com a emergência da norma global de responsabilidade individual?

4. A consolidação da norma global de responsabilidade individual 4.1. A Emergência da Norma A norma global de responsabilidade individual não se encontra expressa de maneira objetiva em nenhum texto legal. Estrutura-se, basicamente, a partir da premissa de que agentes responsáveis por graves violações contra os direitos humanos devem ser responsabilizados por suas condutas, estas sim, tipificadas no direito penal internacional. Tal premissa encontra dois fortes campos de resistência, o primeiro, no âmbito do direito doméstico, o segundo no âmbito do direito internacional. No direito doméstico, a resistência remonta a tensão dentre a vontade da maioria (seja ela fática ou pressuposta) e a garantia dos direitos fundamentais das vítimas. O grande exemplo de tal obstáculo são as leis de anistia, amplamente utilizadas enquanto mecanismos transicionais ao longo do Século XX.42 Tais leis, em prol da ideia de pacificação nacional, perdoam crimes, inclusive graves violações aos direitos humanos. 41 42

Neves. Ibidem, p.195.

Torelly, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito. Coleção Fórum Justiça e Democracia, vol. 02. Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp. 84-90.

 

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No direito internacional, as doutrinas da soberania e da imunidade representam, sem nenhuma dúvida, o maior obstáculo à premissa da necessidade de responsabilização individual. Segundo tais doutrinas os Estados estrangeiros não podem, exceto em situações absolutamente excepcionais, processar e punir agentes públicos envolvidos em graves violações contra os direitos humanos. A própria pressão internacional por julgamentos domésticos, no plano diplomático, pode ser lida como uma intromissão em assuntos internos. A primeira grande quebra de paradigma rumo à afirmação da premissa contida na norma global data dos anos 1940. Mais especificamente, remonta os julgamentos de Nuremberg e Tóquio, após a Segunda Grande Guerra.43 Embora críticos apontem tais julgamentos como “tribunais de vencedores”,44 é relativamente pacífico o entendimento de que tais tribunais não apenas cumpriram um papel efetivamente jurídico no processamento dos crimes dos nazistas e seus aliados, como que igualmente estabeleceram uma série de standards para julgamentos futuros. A partir dos padrões estabelecidos nos julgamentos do pós-guerra, especialmente aqueles alusivos a categoria de delitos contra a humanidade, uma ampla doutrina constituiu-se. Como aponta Teitel, que classifica esta fase do pós-guerra como uma primeira fase da genealogia da ideia de justiça de transição, o período seguinte, portanto, a segunda fase, foi caracterizada menos por julgamentos, e mais por alternativas domésticas, como o estabelecimento de comissões da verdade, 43

Neste sentido: Teitel, Ruti. “Genealogia da Justiça Transicional”. In: Reategui, Felix (org.). Justiça de Transição – Manual para a América Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério da Justiça/ICTJ, 2011, pp. 135170. Bem como: Sikkink. Op.cit., introduction. 44 e.g. Elster, Jon. Closing the Books – transitional justice in historical perspective. New York: Cambridge University Press, 2004.

 

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diagnosticando tal movimento como um resultado direto do encrudescimento da Guerra Fria, produtor de severa redução na capacidade dos estados em alinharem-se de forma homogênea para o estabelecimento de tratados e tribunais de escala efetivamente global.45 Não obstante, seguindo com a categorização de Finemore e Sikkink, fica claro que a mobilização transnacional por responsabilização individual tem, aqui, seu início, sendo o exemplo mais evidente aquele do esforço de agentes da comunidade judaica pelo processamento de criminosos de guerra, entre os quais o caso Eichmann tornou-se o célebre.46 As plataformas disponíveis, no caso, eram os próprios estados nacionais (no caso Eichmann, o estado de Israel), mas também as organizações internacionais, vez que nesta época, tanto no âmbito da Organização das Nações Unidas quanto, localmente, da Organização dos Estados Americanos, diversos tratados internacionais sobre direitos humanos foram estabelecidos, demonstrando o esforço de mobilização transnacional para, num primeiro momento, persuadir a comunidade internacional e os estados nacionais sobre a existência de uma obrigação de investigar e punir as graves violações contra os direitos humanos.

4.2. A Cascata da Norma Seguindo com Sikkink, a cascata da norma inicia nos anos 1970 e 1980, quando são julgados os altos agentes de estado envolvidos em graves violações contra os direitos humanos na Grécia, Portugal e Argenti45 Teitel, Ruti. “Genealogia da Justiça Transicional”. In: Reategui, Felix (org.). Justiça de Transição – Manual para a América Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério da Justiça/ICTJ, 2011, pp. 135-170. 46 Para uma análise: Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

 

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na, seguindo-se, nos anos 1990, um boom de julgamentos por crimes análogos em todas as regiões do mundo.47 No interlúdio entre a Era de Nuremberg e a cascata, não obstante, uma mudança-chave ocorre na genealogia da justiça transição. No período que Teitel identifica como a segunda fase desta genealogia, as alternativas internacionalistas estavam bloqueadas pelo conflito bipolar, produzindo como efeito a necessidade de que os estados nacionais pós-conflito tivessem de lidar domesticamente com seus legados autoritários (naquilo que, metaforicamente, Elster definiu como a necessidade de reconstruir um barco em alto mar)48. Esse processo fortaleceu a ideia de que, mesmo que anistias fossem válidas, bloqueando a responsabilidade individual, era cogente e imperativa a necessidade de alguma forma de responsabilização, mesmo que abstrata, emergindo um novo paradigma, fulcrado no princípio responsabilidade do Estado. Os modelos de responsabilização estatal deram azo a um conjunto de medidas, consolidadas na literatura sobre justiça transicional nos campos da verdade e da reparação. As primeiras comissões da verdade (na acepção odierna), na Argentina (1983) e na África do Sul (1995) trabalharam, em sentidos distintos, para garantir que alguma forma de reconhecimento e responsabilização fosse possível. Na Argentina, partindo de uma plataforma muito mais social que institucional, mesmo com as idas e vindas na luta por responsabilização criminal,49 os atores envolvidos no processo de acerto de contas com o passado foram capazes de reunir um 47 48

Sikkink. Op.cit., p.21; pp.96-127.

Elster, Jon. Rendición de Cuentas – La Justicia Transicional en Perspectiva Histórica. Tradutor: Ezequiel Zaidenwerg, Buenos Aires: Katz, 2006, pp.94-95. 49 Para uma visão geral deste processo, veja-se: Filippini, Leonardo. La persecución penal en la busqueda por la justicia. In: Hacer Justicia. Buenos Aires: Siglo XXI/CELS/ICTJ, 2011, pp. 19-48.

 

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enorme volume de informações capazes de demonstrar não apenas a responsabilidade do Estado, mas também as responsabilidades individuais de diversos agentes públicos e privados nos crimes da ditadura militar (demonstrações estas que, posteriormente, na fase de internalização doméstica da norma, foram – e seguem sendo – úteis aos processos criminais de responsabilização). Já a Comissão de Verdade e Reconciliação sul africana, que igualmente avançou na assunção de responsabilidade estatal, robusteceu uma norma de anistia, consignando o perdão à revelação da verdade,50 dando origem a uma ampla literatura sobre o dilema jurídico-moral entre a busca pela verdade ou pela justiça,51 e sobre o cabimento de anistias no direito internacional.52 É na mesma época que se consolidam os grandes programas de reparações às vítimas. O processo de reparação, por sua natureza mesma, depende do reconhecimento dos crimes. Na América Latina, Argentina, Brasil e Chile foram pioneiros neste processo.53 Aqui, seja partindo do trabalho prévio de comissões da verdade que identificaram fatos e agentes, como na Argentina,54 seja partindo do trabalho de comissões que não individualizaram responsabilidades, como no Chi50

Du Bois-Pedain, Antje. Transitional Amnesty in South Africa. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2007. 51 Por exemplo: Rotberg, Robert; Thompson, Dennis (orgs.). Truth v. Justice. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2000. 52 Pensky, Max. “O status das anistias no direito penal internacional”. In: Payne, Leigh A.; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. (orgs.). A Anistia na Era da Responsabilização. Brasília/Oxford: Ministério da Justiça/Universidade de Oxford, 2011, pp.76-101. 53 Para um marco teórico e estudos de caso, confira-se: Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. (orgs.). Dossiê: Reparação. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, vol. 03, Jan./Jun. 2010, pp.40-172. 54 CONADEP. Nunca Mais – informe de la Comisión Nacional Sobre la Desaparición de Personas. Buenos Aires: EUDEBA, 8ª edição, 2006.

 

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le,55 ou, ainda, sendo os trabalhos das comissões de reparação anterior ao estabelecimento de uma comissão da verdade, como Brasil,56 o fato central é que se consolidou a norma do direito internacional, originalmente identificada como a “obrigação de reparar” que, gradualmente, completando o ciclo de formação das normas globais, internalizou-se como “direito à reparação” das vítimas dos abusos.57 A internalização da norma de responsabilidade estatal alusiva às reparações, terceira etapa da formação de uma norma global (quando os operadores do sistema jurídico passam a aplicar, sem mais questionar), impactará diretamente no processo de desenvolvimento da norma de responsabilidade individual, pois permitirá que aqueles atores que antes procuravam persuadir a obrigação de responsabilizar individualmente os violadores possam, com base no amplo reconhecimento dos fatos, migrar para uma nova estratégia, onde as violações já estão reconhecidas, cabendo instigar o senso de inadequação social quanto ao estado de impunidade individual ante a estas violações. Somando-se a isso a existência de casos prévios isolados de aplicação da norma ao espólio de violações legado da II Grande Guerra, fortaleceu-se o processo 55

Zalaquett, José. “Verdade e Justiça em perspectiva comparada – José Zalaquett responde Marcelo D. Torelly”. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, vol. 04,Jul./Dez. 2010, pp.12-29. 56 Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. “O programa de reparações como eixo estruturador da Justiça de Transição no Brasil”. In: Reategui, Felix (org.). Justiça de Transição – Manual para a América Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério da Justiça/ICTJ, 2011, pp. 473-515. 57 Sobre estre processo de transformação da “obrigação de reparar” dos Estados no direito à reparação das vítimas, veja-se: Parmentier, Stephan. “Out of the Ashes: reparations for victims of gross and systematic human rights violations”. In: Feyter, Koen; Parmentier, Stephan; Bossuyt, Marc; Lemmens, Paul (orgs). The right to reparation for victims of serious human rights violations location. Antuérpia: Intersentia, Antwerpen, 2005.

 

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de demonstração da existência da norma de responsabilidade individual nos planos do direito internacional e comparado. Os fatos estavam reconhecidos e existiam precedentes disponíveis para demonstrar a existência de uma norma sobre eles incidente. A combinação da cascata da norma individual com o contexto de internalização da norma responsabilidade estatal em regras fortalece, assim, o processo social de luta por justiça, na medida em produz (e é produzido por) uma mudança social radical no enfrentamento da questão da violência de estado. De um lado, o conteúdo determinado das regras alusivas à reparação e a busca da verdade estabelece direitos claros às vítimas e estabiliza expectativas quanto à natureza ilícita de fatos vitimadores. De outro, o início do processo de cascata da norma global de responsabilidade individual permite que a se estabilize ainda, não uma regra, mas pelo menos um princípio norteador para a necessidade de diferenciação entre formas abstratas e individuais de responsabilidade, estabelecendo um novo horizonte reflexivo dentro do direito “global”. Dialogando com essa realidade, no contexto latino-americano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos passa a cumprir um papel essencial, tanto na formação de ambas as cascatas (reparações e verdade; responsabilização individual) no âmbito regional, quanto na afirmação de princípios diretores e na internacionalização de regras estáveis no plano internacional. Fez ainda mais ao pressionar, por via de seus mecanismos de monitoramento de implementação de sentenças, pela internalização das normas internacionais no âmbito doméstico dos estados-parte, seja enquanto regras de aplicação direta, seja enquanto princípios orientadores de políticas.58 É a Corte quem, convencida 58 Cf.: Caso Almonacid Arellano e outros VS. Chile; Caso Chumbipuma Aguirre e outros VS. Peru (Barrios Altos); Caso Goiburú e outros vs. Paraguai; Caso Gutierréz Soller vs. Colômbia; Caso La Cantuda vs. Perú;

 

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da existência de dadas regras e princípios, passa a adotar uma estratégia de demonstração da sua existência no âmbito interpretativo da Convenção Americana – cuja redação é bastante geral – apontando regras de cumprimento obrigatórios pelos estados (internalização de regras no regime internacional), e auxilia no processo de convencimento e demonstração, nos planos domésticos, da existência de regras e princípios atinentes à norma global. 4.3. Internalização doméstica da norma É claro que a norma de responsabilidade individual encontra-se internalizada enquanto regra no direito regional dos direitos humanos na América Latina, mas é hoje a norma global uma norma efetivamente internalizada nos demais regimes, especialmente nos domésticos? A resposta pode ser obtida tanto da análise sobre a ratificação de outros tratados internacionais que preveem tal norma, quanto de sua absorção, por mecanismos ordinários, nos sistemas de direito doméstico. Na perspectiva internacional, a aprovação em 1998 do Estatuto de Roma, que estabelece o Tribunal Penal Internacional (TPI) na Haia, pode ser tomada como ponto de referencia. O TPI iniciou suas atividades em 1º de julho de 2002, com poderes para investigar e punir graves violações contra os direitos humanos, e atualmente 122 estados já aderiram à jurisdição da Corte, o que demonstra um substancial nível de internalização por meio de ratificação (mesmo que Estados estratégicos na geopolítica mundial, como Estados Unidos e China, não reconheçam a jurisdição do TPI). Ainda, por meio do direito internacional, dois presidentes no exercício de suas atribuições foram processados por graves violações contra os direitos humanos Caso Masacre de La Rochela vs. Colômbia; Caso Molina Teissen vs. Guatemala; Caso Tibi vs. Equador, Caso Velásquez-Rodríguez vs. Honduras.

 

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(Slobodan Milosevic, da Iugoslávia, e Charles Taylor, da Libéria), demonstrando a capacidade da norma global de insurgir-se contra, e vencer, as doutrinas soberanistas da imunidade. Na perspectiva doméstica, a internalização pode dar-se por dois distintos caminhos: a implementação de sentenças internacionais e a alteração de legislações domésticas. Nos dois casos, os principais obstáculos à internalização da norma global são as anistias domésticas, baseada nas normas e doutrinas de proteção da soberania, e a questão da “retroatividade” penal. Usando, novamente, a América Latina como exemplo, as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos59 auxiliaram na internalização da norma global. Chile e Uruguai processaram graves violações sob influência direta de decisões emanadas do tribunal sediado em San José da Costa Rica.60 Ainda, o Brasil debate formas de implementação da sentença do caso Julia Gomes Lund e outros,61 e a Argentina, mesmo sem ter sido condenada, passou a utilizar, nas cortes ordinárias e na Corte Suprema de Justiça da Nação, os julgados da Corte Interamericana para fundamentar suas decisões.62 59 60

Valendo ainda o exemplo dos referidos na nota anterior.

Para um debate comparado entre a influência não da Corte, mas do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, nas jurisprudências domésticas de Brasil e Argentina veja-se nosso: Torelly, Marcelo D. “Transconstitucionalização do Direito e Justiça de Transição: elementos para a análise de insurgências constitucionais por interações institucionais na Argentina e Brasil”. In: Neves, Marcelo (org.). Fugas e Variações sobre o Transconstitucionalismo. (no prelo) 61 Veja-se, por exemplo, o documento que consolida a mudança de posição do Ministério Público Federal sobre este tema: MPF. 2ª Câmara de Coordenação Criminal. “Documento nº 02/2011”. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, vol. 07, Jan./Jul. 2012, pp.358-371. 62 Parenti, Pablo. “A aplicação do Direito Internacional no julgamento do terrorismo de Estado na Argentina”. In: Revista Anistia Política e

 

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A maioria dos países, no período pós-cascata, estabeleceu mecanismos domésticos que tornam a norma global aplicável, entre eles a tipificação dos crimes contra a humanidade, a vedação e imprescritibilidade da tortura, a tipificação e imprescritibilidade do genocídio, entre outros. O grande debate corrente, não obstante, é quanto à aplicação destes dispositivos para os crimes do passado. A doutrina (assim como a prática judicial) divide-se entre aqueles que entendem que, sopesado o direito internacional, tais normativas não podem ser aplicadas ao passado, sob pena de caracterização de retroatividade penal;63 e aqueles que entendem que, seja por meio da aplicação direta do direito internacional,64 seja por uma aplicação não retroativa, mas sim retrospectiva, do próprio direito constitucional doméstico,65 é possível a aplicação da norma global a fatos que ocorreram antes mesmo do próprio reconhecimento da norma global no regime doméstico. Ou seja, não se discute mais a própria existência da regra, mas sim, primeiramente, seu momento de institucionalização (se aquele do direito internacional, ou aqueles dos direitos domésticos) e, em segundo lugar, debate-se a natureza jurídica da norma durante o período entre a institucionalização das regras internacional Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, vol. 04, Jul./Dez. 2010, pp.32-55. 63 Dimoulis, Dimitri; Martins, Antonio; Swensson Jr., Lauro Joppert (orgs). Justiça de Transição no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010. 64 Ventura, Deisy. “A interpretação judicial da Lei de Anistia no Brasil”. In: Payne, Leigh A.; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. (orgs). A Anistia na Era da Responsabilização. Brasília/Oxford: Ministério da Justiça/Universidade de Oxford, 2011, pp.308-343. Piovesan, Flávia. “Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Lei de Anistia: o caso brasileiro”. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, vol. 02, Jul./Dez. 2009, pp.176-189. 65 Torelly, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito. Coleção Fórum Justiça e Democracia, vol. 02. Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp.210-217.

 

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e domésticas. Deve ser aplicada enquanto regra de direito internacional que colide com regra de direito interno, conforme o fez o Supremo Tribunal Federal brasileiro no julgamento da ADPF n.º 153/2008, priorizando uma argumentação soberanista que conduziu ao afastamento do dispositivo internacional, num modelo de resistência. Como regra de direito internacional que se impõe ante a regra doméstica posterior, num modelo de convergência, como no caso Argentino e seus julgados na Suprema Corte de Justiça da Nação? Ou deve ser aplicada enquanto princípio internacional matizador da leitura do direito doméstico, sendo sopesado com seus dispositivos, num modelo de articulação, como fez a Suprema Corte Chilena em diversos casos alusivos ao regime Pinochet? Apesar deste debate aceso sobre a extensão temporal e as formas de interação entre direito doméstico e internacional, restam claras, hoje, portanto, as evidências da internalização da norma global de responsabilidade individual, mesmo que seus efeitos ainda sejam objetos de disputa política e social. Pende, portanto, no campo da dogmática jurídicoconstitucional, a questão de ser tal norma uma regra ou um princípio. Como exposto, tal questão tem, justamente, implicações quanto ao tipo de aplicabilidade da norma. A tese aqui defendida é que a própria evolução da norma global oferece respostas, relacionadas a desenvolvimento de seu ciclo vital.

 

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5. Conclusões tentativas: a internalização da norma global e o processo de diferenciação funcional das normas em princípios e regras na sociedade mundial 5.1. Superando as abordagens tradicionais da dogmática constitucional A distinção entre regras e princípios foi formulada para pensar a aplicação das normas. Independente de qualquer teorização, tem, portanto, um fito prático. Como se pretendeu demonstrar, especialmente na quarta seção deste estudo, resta inequívoca a existência, hodiernamente, que uma norma global de responsabilidade individual quanto as graves violações contra os direitos humanos. Cabe, portanto, o questionamento: tal norma deriva de uma regra ou de um princípio? Antes de responder, não obstante, não é demais reforçar porque se entende que tal debate figure como um debate de direito constitucional, e não exclusivamente de direito penal internacional, ou de direito penal doméstico. É razoavelmente consensual que questões de direitos humanos são questões constitucionais para qualquer comunidade. Igualmente, é fácil identificar no debate sobre a responsabilização o tratar-se de um debate sobre garantias fundamentais (sejam elas substantivas como o direito a integridade física, sejam processuais, como o direito de recorrer à justiça ante a uma violação). Deste modo, é claro que o problema em questão é um problema constitucional. A indagação pendente é, justamente, a qual comunidade se refere tal problema. Às comunidades nacionais singulares? Aos blocos geopolíticos que se organizam por tratados e estabelecem mecanismos protetivos de direitos fundamentais? À sociedade mundial, implicada na ideia de universalidade dos direitos humanos?  

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Na perspectiva que aqui se entende construir, o problema se apresenta como um problema global, atrelado a um direito da sociedade mundial, heterárquico e organizado em fragmentos constitucionais (para usar o vocabulário de Gunther Teubner,66 ou em “regimes”,67 como mais ao gosto do direito internacional). Trata-se, portanto, daquilo que Neves define como um problema transconstitucional: “Um problema transconstitucional implica uma questão que poderá envolver tribunais estatais, internacionais, supranacionais e transnacionais (arbitrais), assim como instituições jurídicas locais nativas, na busca de uma solução”.68

Assim, a norma global de responsabilidade individual, entendida como uma norma transconstitucional, reintroduz no debate a questão da hipercomplexidade da sociedade mundial, pontuada na crítica de Neves as teorias de Dworkin e Alexy. Como tais teorias nos auxiliam a entender a natureza da norma global em questão? As primeiras formulações sobre a norma global, mais especificamente focadas na obrigação internacional dos Estados em investigar e punir as violações graves contra os direitos humanos tendiam a apontar que tal obrigação deriva de uma regra. A então futura relatora especial das Nações Unidas para o combate à impunidade, Diane Orentlicher, em 1991, defendia que o conjunto de textos legais então existentes (os legados de Nuremberg, a Convenção contra a Tortura, a Convenção contra o Genocídio, o Direito Internacional Consuetudinário, as convenções de Direitos Humanos 66 67

Teubner, Gunther. Op.cit.

Young, Margaret A. (org.). Regime Interaction in International Law. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2012. 68 Neves, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martis Fontes, 2009, p.22.

 

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e, ainda, o Direito Comparado), apontava para a existência de uma norma cuja natureza, para usar a categoria de Alexy, conteria uma determinação.69 Ante a dados crimes, não caberia escolha que não a responsabilização individual. Tal posição não se alterou quando Orentlicher atualizou o Conjunto de Princípios para o Combate à Impunidade, das Nações Unidas.70 Com o passar do tempo – e sem abandonar a perspectiva pró-norma global – Orentlicher reorientou seu pensamento, passando a considerar que o contexto político local (uma dimensão fática, portanto, externa ao sistema do direito), afetaria a própria percepção da adequação da aplicação doméstica da norma global enquanto regra de direito internacional, pontuando, em 2007, que: “Enquanto essas tendências [novos desenvolvimentos da Justiça de Transição] significam uma poderosa afirmação da norma global em favor da responsabilização criminal pro crimes atrozes, os profissionais praticantes da justiça de transição estão mais conscientes do que em qualquer momento anterior de que não pode existir um abordagem do tipo one-size-fits-all para a justiça de transição. Assim também estão os oficiais das Nações Unidas que afirmaram com robustecida convicção ‘a posição de que anistias não podem ser concedidas em relação a crimes internacionais’. Dada a extraordinária extensão das experiências e culturas nacionais, como pode alguém imaginar que exista uma

69

Orentlicher, Diane F. “Settling Accounts: The Duty to Prosecute Human Rights Violations of a Prior Regime”. In: The Yale Law Journal, Vol. 100, No. 8, Jun.1991, pp. 2537-2615. 70 Orentlicher, Diane F. Report of the Independent Expert to Update the Set of Principles to Combat Impunity. UN Doc. E/CN.4/2005/102 Feb. 18, 2005.

 

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formula universal relevante para a justiça de transição?” 71

Tal posição foi revista após uma série de experiências concretas. Primeiro, o êxito (mesmo que não absoluto) da Comissão Nacional da Verdade Sul Africana. Depois, o fracasso de alguns tribunais ad hoc, como o para Ruanda, em estabelecer processos duradouros de paz, não pela desnecessidade da justiça criminal, mas por sua incompletude. Nesta segunda interpretação dada por Orenlitcher, os textos internacionais que sustentam a norma global poderiam ser lidos como regras internacionais, mas também como base funcional para princípios domésticos, que, na linguagem de Alexy, deveriam ser otimizados na medida do possível. Porém tal abordagem segue sendo insatisfatória. “A medida do possível”, em muitos contextos pós-conflito (quando não na maioria), significaria nenhuma justiça. Uma abordagem desde a teoria de Dworkin, considerando a norma global enquanto regra, esbarraria diretamente no problema das anistias, que também teriam natureza de regras. Ter-se-ia, portanto, uma situação de colisão de uma regra nacional com outra internacional e, na impossibilidade de escolher “a melhor”, o único recurso possível seria o de buscar um princípio ponderador. Portanto, aqui também, a norma 71

Tradução livre, no original: “But while these trends [new developments in Transitional Justice] signify powerful affirmation of a global norm in support of criminal accountability for atrocious crimes, professional practitioners of transitional justice are more aware than ever before that there cannot be a one-size-fits-all approach to transitional justice. So, too, are officials of the same United Nations that has affirmed with ever-strengthening conviction ‘the position that amnesties cannot be granted in respect of international crimes.’ Given the extraordinary range of national experiences and cultures, how could anyone imagine there to be a universally relevant formula for transitional justice?”. Orentlicher, Diane F. “‘Settling Accounts’ Revisited: Reconciling Global Normas with Local Agency”. In: The International Journal of Transitional Justice, vol. 01, 2007, p.18.

 

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global teria uma natureza principiológica, vez que sua prevalência se basearia em uma “exigência de justiça ou equidade”. A perspectiva de Dworkin, portanto, melhor soluciona a questão do que aquela de Alexy, porém incide diretamente naquilo que Elster crítica: ao resolver o problema do conflito desde uma perspectiva da moralidade pública, ignora imperativos formais do direito.72 Ao gerar adequação, prejudica fortemente a consistência. Neste sentido, o direito constitucional não funcionaria como mediador entre direito e política. Ele seria política pura e simples. Mais ainda, experiências concretas apontam que a moralidade comunitária poderia não entender a responsabilidade individual como “justiça e equidade”. No caso sul-africano, não ocorreram sequer questionamentos em foro judicial quanto a anistia ofertada em troca da verdade, nem nas cortes domésticas, nem no sistema regional de direitos humanos. Se tivesse ocorrido (ou venha a ocorrer – o que não parece possível, passados quase 20 anos), muito provavelmente o resultado seria a manutenção da anistia. O caso brasileiro, mesmo que ainda em desenvolvimento, aponta na mesma direção. Pesquisas de opinião indicam uma tendência geral da moralidade pública em denegar uma alteração da lei de anistia de 1979,73 e no mesmo sentido manifestou-se (a meu ver equivocadamente)74 o Supremo Tri-

72

Elster, Jon. Rendición de Cuentas – La Justicia Transicional en Perspectiva Histórica. Tradutor: Ezequiel Zaidenwerg, Buenos Aires: Katz, 2006, p.108. 73 “Datafolha: 45% são contra punição a torturadores da ditadura”. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/datafolha-45-saocontra-punicao-a-torturadores-daditadura,915a4bc92690b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html. A mesma pesquisa indica que 40% seriam favoráveis. 74 Uma abrangente crítica a esta decisão encontra-se disponível em: Torelly, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito.

 

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bunal Federal na Ação de Descumprimento Fundamental n.º 153/2008, que questionava a anistia a graves violações contra os direitos humanos alegadamente cobertas pela anistia. 5.2. Entre consistência e adequação – a consolidação da norma global e o problema da mudança de expectativas sociais Enfrentando o problema da hipercomplexidade social, Neves aponta para a constante tensão entre a “justiça interna”, relacionada à consistência do sistema do direito, e a “justiça externa”, relacionada à adequação social do direito: “Não se pode imaginar um equilíbrio perfeito entre consistência jurídica e adequação social do direito, a saber, entre justiça constitucional interna e externa. A justiça do sistema jurídico como fórmula de contingência importa sempre uma orientação motivadora de comportamentos e expectativas que buscam esse equilíbrio, que sempre é imperfeito e se define em cada caso concreto. Por um lado, um modelo de mera consistência constitucional conduz a um formalismo socialmente inadequado. [...] Por outro lado, um modelo de mera adequação social leva a um realismo juridicamente inconsistente.”75

Neste sentido, partindo da formulação de Neves, que aponta para “o paradoxo da relação entre consistência jurídica, associada primariamente à argumentação formal com base em regras, e adequação social do direito, vinculada primariamente à argumentação substantiva com base em princípios”,76 bem como da teoria sobre as fases da formação das normas globais apresentada por Finemore e Sikkink, que demonstra como a mobilização Coleção Fórum Justiça e Democracia, vol.02, Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp.299-360. 75 Neves, Marcelo. Entre Hidra e Hercules. São Paulo: WMF, 2013, p.225. 76

 

Neves. Ibidem, p.170.

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social produz alterações na percepção da adequação do direito, que, depois, tendem a gerar novas regras que redundam em novas formas de consistência, torna-se especialmente interessante refletir sobre essas mudanças sociais, e sua capacidade de alterar o direito, estabelecendo novos padrões de decisão que, por sua vez, estabilizam novas formas de consistência. A combinação destas leituras permite escapar da armadilha de procurar, aprioristicamente, nos textos legais, por regras ou princípios. Na interpretação que aqui se propõe, a norma se faz na prática dos atores do sistema do direito, e sua aplicação, condicionada ao contexto social, é funcionalmente determina por seu estágio de desenvolvimento, ou seja, por seu ciclo de vida, funcionando primeiro como princípio, na fase de persuasão, depois como princípio (passando a ganhar contornos de regra) na fase de demonstração e, finalmente, como regra, doméstica ou internacional, após a internalização definitiva pelos regimes jurídicos, passando a ser aplicada ordinariamente. Após a fase de persuasão sobre a existência das normas globais, com sua gradual institucionalização em diferentes planos (doméstico, regional, internacional) os atores jurídicos determinantes no processo de consolidação atuam em sentido demonstrativo, sendo essa mudança aquela que viabiliza a cascata. Após a cascata, a norma pode ou não se internalizar. Os exemplos apresentados na seção quatro demonstram que a cascata normativa consolidou ao menos dois princípios complementares incorporados pela justiça transicional: o da responsabilidade estatal e o da responsabilidade individual. Esses princípios passaram a integrar a estrutura reflexiva do sistema jurídico em escala mundial, incidindo em conflitos normativos plurais e complexos cujas regras prévias geravam expectativas antagônicas, como aqueles que determinam punir, e aquelas que determinam anistiar. A mobilização social local e transnacional, não obstante, é que permitiu a transformação (ou não) da leitura dos dispositivos legais atre  

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lados à norma global enquanto princípios reflexivos, que matizam a interpretação judicial e as políticas públicas (caso das políticas de responsabilização abstratas, características da segunda fase da justiça transicional), ou regras de aplicação simples nos sistemas jurídicos domésticos (caso dos processos de responsabilização pósatrocidade em inúmeros países), transmutando-os de estrutura normativamente reflexiva à estrutura normativamente determinante. Por que, na Argentina, o princípio da responsabilidade individual foi internalizado, encerrando naquele contexto o ciclo de consolidação da norma,77 e permitindo a solução padronizada em regras daquilo que antes era conflitivo, enquanto, no Brasil, a norma global enfrenta resistência por parte do sistema doméstico?78 Uma possível resposta diz respeito às diferentes formas, tempos e intensidades da mobilização social em torno do tema.79 Foi o processo de mobilização transnacional que permitiu a construção de um senso de inadequação das medidas de impunidade atreladas aos princípios soberanistas e aos princípios democráticos, viabilizando, no plano internacional, a emergência de normas globais que, primeiro, se estabilizaram enquanto princípios, funcionando como mecanismos reflexivos de segunda ordem que forçaram a reinterpretação das regras de impunidade nos planos doméstico e internacional, alterando a própria dinâmica de consistência do direito. A 77 78

Sikkink. Op.cit., pp.87-95.

Sobre esta resistência, veja-se: Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. “Resistance to change: Brazil’s persistente amnesty and its alternatives for Truth and Justice”. In: Lessa, Francesca; Payne, Leigh A. (orgs). Amnesty in the Age of Human Rights Accountability. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2012, pp.152-180. 79 Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. “Mutações no conceito de anistia na Justiça de Transição brasileira: a terceira fase da luta pela anistia”. In: Revista de Direito Brasileira. São Paulo: Conpedi/Thonson Reuters, Ano 02, vol. 03, Jul./Dez. 2012, pp.375-380.

 

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percepção inadequada força uma mudança no padrão decisório que, por sua vez, estabiliza um novo referencial, reconstituindo a consistência formal em um patamar socialmente mais adequado. Um direito internacional socialmente adequado, na chamada Era dos Direitos Humanos, necessariamente é incompatível com a impunidade. Assim, os princípios antiimpunidade constituíram-se em plataforma para a mudança do sistema jurídico, tanto para a constituição de novas políticas de assunção de responsabilidade abstratas, baseadas no princípio da responsabilidade estatal, quanto de regras antiimpunidade individual derivadas do princípio da responsabilidade individual. Na cascata da justiça, primeiro persuade-se sobre a existência dos princípios que, na medida em convencem os atores relevantes sobre sua adequação, institucionalizam-se, e passam a então permitir a demonstração da existência da norma. Os desenvolvimentos peculiares a cada contexto local simplificam, de distintas maneiras e por distintos processos, o conteúdo, ainda complexo e abstrato, dos princípios, passando a constituir regras determinadas. No processo doméstico, para internalização das normas globais, a mesma mobilização é demandada. Focando-se apenas na dimensão da consistência do Direito, a tendência dos tribunais (como de qualquer outra instituição) é contrária à mudança. A mudança próresponsabilização só ocorre se, pelo tencionamento na esfera política, o direito constitucional é pressionado pela mudança social. Novamente, é necessário persuadir sobre a inadequação social das regras de impunidade para que estas possam abrir espaço para a cascata normativa e a afirmação da norma global. Mesmo que não seja perfeita, essa abordagem, que abandona a predeterminação da natureza das regras e princípios, permite maior abertura da teoria do direito para o entendimento do fenômeno da insurgência normativa em escala global, e de suas relações com o direito doméstico. O processo de consolidação das normas globais é, em grande medida, um processo de  

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irradiação do direito comparado, do direito internacional e do direito regional, que contagia o direito doméstico, e igualmente dele se alimenta. Daí Orentlicher estabelecer o necessário link entre o processo de desenvolvimento das normas globais e seu impacto nas estratégias de mobilização (primeiro persuasivas, depois demonstrativas) no plano doméstico, afirmando que “crucialmente, as normas legais internacionais atinentes ao processamento de crimes atrozes desempenharam um papel importante permitindo [...] aos países superar barreiras de outras maneiras instransponíveis para a persecução”·. Abandonando uma perspectiva estritamente doméstica do direito, ou uma perspectiva binomial que antagoniza direito doméstico e direito internacional, é possível entender as normas globais como produto de complexos processos sociais de tencionamento de estruturas jurídicas que, embora fragmentárias, comunicam-se constante e permanentemente, de formas harmoniosas e conflitivas. Os princípios e as regras deste direito global, que produz tanto normas constitucionais, quanto normas ordinárias afasta-se completamente de uma leitura hierarquizante que percebe os princípios enquanto estruturas superiores as regras (a soberania nacional, inclusive, é um princípio); quanto de uma leitura de otimização, vez que os valores da própria sociedade mundial não são homogêneos (punir é melhor investimento que desenvolver a economia, em um contexto de recursos escassos?). No contexto do surgimento de normas globais – que não dizem respeito apenas a direitos humanos – explicita-se a tensão entre a necessidade de adequação e de consistência do direito não apenas no plano doméstico, mas também no de uma sociedade mundial, de normatividades entrecruzadas. Neste sentido, uma abordagem de contingência talvez seja mais apropriada que aquelas que objetivam uma maximização arquimediana, ou uma única decisão correta.

 

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El rol de la constitución en la transición democrática argentina Los argumentos que posibilitaron el proceso de juzgamiento1

Julia  A.  Cerdeiro2  

Introducción El presente trabajo tiene dos objetivos. El primero, describir los puntos más salientes de la transición democrática argentina; el segundo, reseñar los artículos de la Constitución Nacional que mayor influencia tuvieron en el proceso de juzgamiento de violaciones masivas y sistemáticas que tuvieron lugar durante la última dictadura militar en la Argentina.

1

El presente artículo fue expuesto en el panel de Constitucionalización y responsabilidad penal y civil en América latina del Congreso Internacional Justicia de Transición a los 25 años de la Constitución de 1988, que tuvo lugar los días 23, 24 y 25 de mayo de 2013 en la Facultad de Derecho de la Universidad de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. Agradezco la invitación a la Comisión organizadora del Congreso, a la Universidad de Minas Gerais y especialmente a los Profesores Emilio Peluso Neder Meyer y Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira. 2 Abogada de la Universidad de Buenos Aires, secretaria de la Procuraduría de Crímenes contra la Humanidad de la Procuración General de la Nación de la Argentina.

 

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La transición democrática hasta el día de hoy El tratamiento de violaciones masivas y sistemáticas ocurridas en el pasado reciente representa uno de los mayores desafíos para las transiciones democráticas. Este problema no sólo se presentó en América Latina, sino también en el resto mundo. En los años 70, la Argentina, como muchos otros países del cono sur, estuvo sometida una dictadura militar. Luego de ella, nuestro país enfrentó una transición democrática que puede dividirse en tres etapas.3 La primera comenzó en el año 1983 y se extendió hasta el inicio de la década del '90; la segunda se desarrolló durante esa década; y la última comenzó, aunque tímidamente, con la década siguiente y empezó a consolidarse a partir del año 2003. La primera etapa, que puede denominarse la justicia retroactiva limitada, se caracterizó por el juzgamiento a las cúpulas militares. El 10 de diciembre de 1983 asumió la presidencia Raúl Alfonsín. Tres días después mandó a perseguir, primero, a los principales miembros de las organizaciones armadas4, y, segundo, 3 Tomo en parte esta división en tres etapas, aunque con algunas diferencias, de Marcelo Raffin, La experiencia del horror: subjetividad y derechos humanos en las dictaduras y postdictaduras del Cono Sur (Buenos Aires, Del Puerto, 2006), p. 171. 4 El art. 1 del decreto 157/83 disponía: “Declárase la necesidad de promover la persecución penal, con relación a los hechos cometidos con posterioridad al 25 de mayo de 1973, contra Mario Eduardo Firmenich (L.E. 7.794.388); Fernando Vaca Narvaja (L.E. 7.997.198); Ricardo Armando Obregón Cano (L.E. 2.954.758); Rodolfo Gabriel Galimberti (C.I. 5.942.050); Roberto Cirilo Perdía (L.E, 4.399.488); Héctor Pedro Pardo (L.E. 7.797.669); y Enrique Heraldo Gorriarán Merlo (LE. 4.865.510) por los delitos de homicidio, asociación ilícita, instigación pública a cometer delitos, apología del crimen y otros atentados contra el orden público, sin perjuicio de los demás delitos de los que resulten autores inmediatos o mediatos, instigadores o cómplices.” Todos miembros de la agrupación Montoneros, salvo por

 

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a los miembros de las tres primeras juntas militares que ejercieron el poder durante la dictadura.5 Paralelamente, el Poder Ejecutivo envió al Congreso un proyecto de reforma del Código de Justicia Militar, que luego se convertiría en la ley 23.049.6 La reforma se basaba en Gorriarán Merlo que había sido fundador del ERP (Ejército Revolucionario del Pueblo). 5 El art. 1 del decreto 158/83 establecía: “Sométase a juicio sumario ante el Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas a los integrantes de la Junta Militar que usurpó el gobierno de la Nación el 24 de marzo de 1976 y a los integrantes de las dos Juntas Militares subsiguientes, Teniente General Jorge R. Videla, Brigadier General Orlando R. Agosti, Almirante Emilio A. Massera, Teniente General Roberto E. Viola, Brigadier General Omar D. R. Graffigna, Almirante Armando J. Lambruschini, Teniente General Leopoldo F. Galtieri, Brigadier General Basilio Lami Dozo y Almirante Jorge I. Anaya.” 6 El art. 10 de la 23.049 determinaba: “El Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas conocerá mediante el procedimiento sumario en tiempo de paz establecido por los artículos 502 al 504 y concordantes del Código de Justicia Militar, de los delitos cometidos con anterioridad a la vigencia de esta ley siempre que: 1º) Resulten imputables al personal militar de las Fuerzas Armadas, y al personal de las Fuerzas de seguridad, policial y penitenciario bajo control operacional de las Fuerzas Armadas y que actuó desde el 24 de marzo de 1976 hasta el 26 de setiembre de 1983 en las operaciones emprendidas con el motivo alegado de reprimir el terrorismo, y 2º) estuviesen previstos en el Código Penal y las leyes complementarias comprendidas en los inciso. 2, 3, 4 b 5 del artículo 108 del Código de Justicia Militar en su anterior redacción. Para estos casos no será necesaria la orden de proceder a la instrucción del sumario y las actuaciones correspondientes se iniciarán por denuncia o prevención. El fiscal general ejercerá en estas causas la acción pública en forma autónoma, salvo que reciba instrucción en contrario del Presidente de la Nación o del ministro de Defensa. Procederá en estos casos un recurso ante la Cámara Federal de Apelaciones que corresponda, con los mismos requisitos, partes y procedimientos del establecido en el artículo 445 bis. Cumplidos seis meses de la iniciación de las actuaciones, el Consejo Supremo dentro de los cinco días siguientes informará a la Cámara Federal los motivos que hayan impedido su conclusión. Dicho informe será notificado a las partes para que en el término de tres días formulen las observaciones y peticiones que consideren pertinentes, las que se elevarán con aquél. La Cámara Federal podrá ordenar la remisión de proceso y fijar un plazo para la terminación del juicio; si éste fuera excesivamente voluminoso o

 

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una idea de autodepuración de las Fuerzas Armadas.7 Para ello, establecía una primera instancia castrense, a cargo del Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas (CONSUFA). La justicia civil sólo conocería las causas mediante un recurso de apelación o por avocación en aquellos casos que sufriesen demoras injustificadas o negligencia en la tramitación. El 15 de diciembre se creó la Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas (CONADEP). Funcionaría durante 9 meses (el período inicial había sido fijado en 180 días y luego fue prorrogado por 3 meses más8), en los que recibiría denuncias y pruebas y emitiría un informe detallado de los hechos investigados, que luego se titularía “Nunca más”.9 complejo, la Cámara señalará un término para que se informe nuevamente con arreglo a lo dispuesto en el párrafo anterior. Si la Cámara advirtiese una demora injustificada o negligencia en la tramitación del juicio asumirá el conocimiento del proceso cualquiera sea el estado en que se encuentren los autos.” 7 Carlos Santiago Nino, Juicio al mal absoluto. Los fundamentos y las historia del juicio a las juntas del Proceso (Buenos Aires, Emecé, 1997), p. 117. 8 Ídem, p. 129. 9 La CONADEP fue creada por el decreto 187/83: “Art. 1: Constituir una Comisión Nacional que tendrá por objeto esclarecer los hechos relacionados con la desaparición de personas ocurridos en el país. Art. 2: Serán funciones específicas y taxativas de la Comisión las siguientes: a) recibir denuncias y pruebas sobre aquellos hechos y remitirlas inmediatamente a la justicia si ellas están relacionadas con la presunta comisión de delitos; b) averiguar el destino o paradero de las personas desaparecidas, como así también toda otra circunstancia relacionada con su localización; c) determinar la ubicación de niños sustraídos a la tutela de sus padres o guardadores a raíz de acciones emprendidas con el motivo alegado de reprimir al terrorismo, y dar intervención en su caso a los organismos y tribunales de protección de menores; d) denunciar a la justicia cualquier intento de ocultamiento, sustracción o destrucción de elementos probatorios relacionados con los hechos que se pretende esclarecer; e) emitir un informe final, con una explicación detallada de los hechos investigados, a los ciento ochenta (180) días a partir de su constitución. La Comisión no podrá emitir juicio sobre hechos y circunstancias que constituyen materia exc1usiva del Poder Judicial. Art. 3: La Comisión podrá requerir a todos los funcionarios

 

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En marzo de 1984, el Congreso aprobó la Convención Americana de Derechos Humanos (ley 23.054), ratificada ese mismo año por el Poder Ejecutivo10, y en agosto sancionó la ley de defensa de la democracia (23.077), que modificaba algunos artículos del Código Penal. El delito de rebelión pasó a ser denominado atentado al orden constitucional y a la vida democrática, algunas penas fueron agravadas y, por último, se criminalizaron conductas nuevas (como la de “aceptar colaborar con las autoridades de facto continuando en funciones o asumiéndolas en alguno de los tres poderes del Estado”11). Sorprendentemente mientras el Poder Legislativo sancionaba esta ley para el futuro, en el juicio a las cúpulas militares no se utilizó el tipo penal de rebelión.12 En octubre de 1984, luego de que el Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas informara que debía investigar con mayor profundidad, la Cámara Federal de Apelaciones de la Capital Federal se avocó el conocimiento de la causa contra los ex miembros de las tres primeras juntas, marcando así el fracaso de la estratedel Poder Ejecutivo nacional, de sus organismos dependientes, de entidades autárquicas y de las fuerzas armadas y de seguridad que le brinden informes, datos y documentos, como asimismo que le permitan el acceso a los lugares que la Comisión disponga visitar a los fines de su cometido. Los funcionarios y organismos están obligados a proveer esos informes, datos y documentos y a facilitar el acceso pedido.” 10 En agosto de 1984. 11

Marcelo A. Sancinetti, Derechos humanos en la Argentina postdictatorial (Buenos Aires, Lerner, 1988), p. 19. 12 Sobre esto llama la atención Sancinetti: “La agravación de la pena de un delito para su eventual comisión del mañana, cuando el mismo hecho ya cometido no es perseguido hoy, produce en la sociedad, lejos de una mayor confianza en la norma como modelo orientador del contacto social (Jakobs), precisamente el efecto inverso: una profunda desconfianza motivada en la percepción de un obrar fraudulento por parte del Estado, que proclama rigor para el futuro, al tiempo en que demuestra no tener interés alguno en reprimir en el presente el mismo hecho ya cometido.” La cursiva es del original. Ídem, p. 20.

 

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gia de autodepuración. En febrero de 1985 comenzó el “juicio a las juntas” por 670 casos, seleccionados del trabajo de la CONADEP. La causa sería conocida −por su número− como la 13/84. El 9 de diciembre de 1985, la Cámara dió a conocer su decisión: condenó a Videla, Massera, Agosti, Viola y Lambruschini y absolvió a Graffigna, Galtieri, Anaya y Lami Dozo (el Comandante en jefe de la Fuerza Aérea de la segunda junta y los integrantes de la tercera junta militar).13 Las absoluciones se fundaron en que los hechos habían transcurrido fuera del periodo en el que los imputados se desempeñaron como comandantes en jefe de las fuerzas correspondientes. Por otra parte, en algunos casos -como el de Agosti- las penas fueron leves. Esto se debió, por un lado, a que la acción penal referida a algunos hechos fue considerada prescripta14 y, por el otro, a que se utilizó un criterio comparativo para la determinación de la pena. Este criterio sería similar a una regla de tres simple: si Videla había sido condenado a reclusión perpetua por una determinada cantidad de crímenes, Massera, quien había sido responsabilizado por una cantidad más pequeña, debía ser condenado a prisión perpetua. En el punto dispositivo 30 de la parte resolutiva de la sentencia, el tribunal ponía en conocimiento del CONSUFA el contenido de esta última y de las piezas de la causa con el fin de que juzgue a los oficiales superiores que ocuparon los comandos de zona y subzona y de todos aquellos que tuvieron responsabilidad opera13

Videla, Massera y Agosti fueron los miembros de la primera junta, encabezaban el Ejército, la Armada y la Fuerza Aérea, respectivamente. Viola, Lambruschini y Graffigna, la segunda, y Galtieri, Anaya y Lami Dozo, la tercera. 14 El obstáculo de la prescripción se podría haber superado de varias maneras, como, por ejemplo, con la utilización del delito de rebelión, que concursaría de manera ideal con los demás delitos e impediría el comienzo del plazo de prescripción.

 

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tiva en las acciones. Meses después la Corte Suprema de Justicia de la Nación (CSJN) confirmó la sentencia. Paralelamente a la tramitación de esta causa, se instruyó la nº 44/85, conocida como “Causa incoada en virtud del decreto 280/84”. Las confesiones del General Camps dadas en el marco de una entrevista a finales de 1983 habían dado lugar a un decreto que ordenó su detención y enjuiciamiento. En el año 1986, fue condenado por la Cámara Federal. Este primer momento de desarrollo de justicia retroactiva fue seguido por uno de contención del proceso punitivo.15 En un contexto de fuerte tensión generado por las fuerzas armadas se sancionaron dos leyes. La primera fue la ley de punto final (23.492), que estableció una fecha límite para la citación a indagatoria de quienes aún no se encontraban imputados. Cumplidos los 60 días que disponía la ley, no se podrían citar a indagatoria a nuevos imputados, la acción penal quedaría extinguida.16 La única excepción contemplada en la ley eran los casos de apropiación de menores.17 La ley fue sancionada el 23 de diciembre de 1986. Ello determinó a las cámaras federales a habilitar la feria de verano −que se prolonga durante todo el mes de enero− para alcanzar a citar a todos los imputados. 15 16

Carlos Santiago Nino, ob. cit., p. 143.

El artículo 1 de la ley disponía: “Se extinguirá la acción penal respecto de toda persona por su presunta participación en cualquier grado, en los delitos del artículo 10 de la Ley Nº 23.049, que no estuviere prófugo, o declarado en rebeldía, o que no haya sido ordenada su citación a prestar declaración indagatoria, por tribunal competente, antes de los sesenta días corridos a partir de la fecha de promulgación de la presente ley. En las mismas condiciones se extinguirá la acción penal contra toda persona que hubiere cometido delitos vinculados a la instauración de formas violentas de acción política hasta el 10 de diciembre de 1983.” 17 El artículo 5 de la ley establecía: “La presente ley no extingue las acciones penales en los casos de delitos de sustitución de estado civil y de sustracción y ocultación de menores.” Esta excepción no había estado contemplada en el proyecto enviado por el Poder Ejecutivo.

 

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Las presiones militares se mantuvieron y dieron lugar a una segunda ley que buscó limitar aún más el proceso de enjuiciamiento, la ley de obediencia debida (23.521). Ésta determinaba que a partir de cierto grado los miembros de las fuerzas habían actuado siguiendo órdenes de sus superiores y, como consecuencia de ello, no podían ser responsabilizados por los crímenes cometidos.18 Esta presunción no regía en relación con algunos delitos: los de violación, apropiación de menores y apropiación extorsiva de inmuebles.19 Esta segunda etapa finalizó con los indultos de los años 1989 y 1990, que abarcaron tanto a los condenados en el juicio a las juntas como a otros miembros de las fuerzas armadas.20 18 Artículo 1: “Se presume sin admitir prueba en contrario que quienes a la fecha de comisión del hecho revistaban como oficiales jefes, oficiales subalternos, suboficiales y personal de tropa de las Fuerzas Armadas, de seguridad, policiales y penitenciarias, no son punibles por los delitos a que se refiere el artículo 10 punto 1 de la ley Nº 23.049 por haber obrado en virtud de obediencia debida. La misma presunción será aplicada a los oficiales superiores que no hubieran revistado como comandante en jefe, jefe de zona, jefe de subzona o jefe de fuerza de seguridad, policial o penitenciaria si no se resuelve judicialmente, antes de los treinta días de promulgación de esta ley, que tuvieron capacidad decisoria o participaron en la elaboración de las órdenes. En tales casos se considerará de pleno derecho que las personas mencionadas obraron en estado de coerción bajo subordinación a la autoridad superior y en cumplimiento de órdenes, sin facultad o posibilidad de inspección, oposición o resistencia a ellas en cuanto a su oportunidad y legitimidad.” 19 Artículo 2: “La presunción establecida en el artículo anterior no será aplicable respecto de los delitos de violación, sustracción y ocultación de menores o sustitución de su estado civil y apropiación extorsiva de inmuebles.” 20 El 6 de octubre de 1989 el Poder Ejecutivo sancionó tres decretos que indultaron a casi 400 personas que se hallaban bajo proceso. Estos indultos eran de dudosa constitucionalidad, teniendo en cuenta que el art. 86 de la CN prevé la facultad del presidente de indultar sólo en la medida en que sea coherente con el 95 que le prohíbe interferir en juicios aún pendientes. El 29 de diciembre de 1990 Menem firmó otro grupo de indultos, en favor de quienes ya estaban condenados. Carlos Santiago Nino, ob. cit., p. 162.

 

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Tanto las leyes como los indultos fueron convalidados por la CSJN. El proceso de juzgamiento quedó paralizado casi por completo y la determinación de responsabilidad por los hechos cometidos en el pasado reciente, inconclusa. La segunda etapa puede ser denominada una alternativa a la justicia retroactiva. En 1995, el periodista Horacio Verbistky entrevistó al capitán de corbeta Adolfo Scilingo. La entrevista fue posteriormente plasmada en el libro El vuelo.21 Fue la primera vez que un miembro de las fuerzas armadas reveló el destino de muchos detenidos desaparecidos: eran subidos inconscientes a aviones y lanzados al río. Este fue el puntapié para ubicar nuevamente al tema en el centro del debate público. Ante la imposibilidad de impulsar acciones penales, se buscó, en vez, la determinación de lo ocurrido. Carmen Aguiar de Lapacó y Emilio Mignone, fundadores del Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS)22, se presentaron ante la Cámara Criminal y Correccional Federal de la Capital Federal, el tribunal que había llevado adelante el juicio a las juntas, exigiendo la determinación de lo ocurrido con sus hijos. Este fue el inicio de los Juicios por la verdad, tanto los familiares y como la sociedad en su conjunto tenían derecho a la verdad, a conocer lo que había pasado

21 22

(Buenos Aires, Editorial Planeta, 1995).

El CELS fue una de las organizaciones no gubernamentales fundadas por padres con hijos desaparecidos, que se unieron con el fin de reclamar justicia.

 

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durante esos años.23 Los juicios se llevaron adelante en varios puntos del país y aún hoy muchos continúan.24 La tercera etapa comenzó cerca del año 2000 y se prolonga hasta la actualidad; ésta puede llamarse la justicia retroactiva ampliada. Por aquellos años, algunos tribunales declararon la inconstitucionalidad de las leyes de punto final y de obediencia debida y, de esta manera, reabrieron algunas investigaciones. Como ejemplos de ello podemos mencionar los casos Simón en Capital Federal y la Masacre de Margarita Belén en la ciudad de Resistencia. En 2003 durante la presidencia de Néstor Kirchner, el Poder Legislativo anuló las leyes (25.779)25, que habían sido derogadas en 1998 por el Congreso en un acto simbólico. A partir de ahí, las Cámaras Federales, donde habían quedado paralizadas las causas de los años 80, mandaron a reabrirlas. La anulación fue confirmada por la CSJN y fue seguida de la anulación de los indultos. El proceso de juzgamiento se puso nuevamente en marcha, esta vez, con un alcance mucho más amplio. Actualmente ya se han juzgado a más de 400 imputados. De ellos, sólo unos pocos son ajenos a las fuerzas armadas o de seguridad. Éste es el gran desafío que actualmente presenta el último tramo de esta etapa: la determinación de la responsabilidad de los civiles. 23 Si bien la primera respuesta de los tribunales fue sólo pedir informes a las fuerzas armadas sobre las víctimas y ante la respuesta negativa de ellas no hacer nada más, el reclamo fue llevado ante la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH) que determinó -en el marco de una solución amistosa- al Estado a reconocer el derecho a la verdad y a implementar una política que acompañara este reclamo. 24 Como, por ejemplo, el de la Plata. 25

Artículo 1: “Declárense insanablemente nulas las Leyes 23.492 y 23.521.”

 

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Al momento se están llevando adelante 10 juicios orales en todo el país, estos involucran a más de 200 imputados y los casos de más de 1700 víctimas.26 Teniendo en cuenta que ya han pasado 10 años desde la reapertura de las causas, estos números podrían no resultar satisfactorios. Sin embargo, no se debe perder de vista que, aun en el contexto político actual, el avance de estas causas requiere un inmenso esfuerzo por parte de varios actores. Este avance aún se encuentra repleto de obstáculos. Entre ellos, se puede mencionar la complejidad de las causas, no sólo por la cantidad de casos que hay que llevar adelante y la problemática que ellos encierran, sino también porque las imputaciones requieren el manejo de herramientas técnicas específicas y más elaboradas.

Los argumentos constitucionales Hay dos artículos de la Constitución Nacional que tuvieron un rol determinante en la tercera parte del proceso de juzgamiento, posibilitaron una justicia retroactiva ampliada. Estos son el artículo 118 y el 29. El primero fue señalado por los tribunales desde el comienzo de la tercera etapa como aquel que receptaba el Derecho Penal Internacional en el orden interno. Por su parte, el artículo 29 fue utilizado tanto por los primeros jueces que declararon la inconstitucionalidad de las leyes como por los legisladores a la hora de sancionar la ley que anuló las leyes.

26 Esta información corresponde a agosto de 2013 y se toma del informe de la Procuraduría de Crímenes contra la Humanidad de la Procuración General de la Nación, disponible en: http://fiscales.gob.ar/lesa-humanidad/wpcontent/uploads/sites/4/2013/08/Cuadro-juicios-en-curso-29agosto-2013.pdf.

 

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El artículo 118 de la Constitución Nacional El artículo 118 de la Constitución Nacional establece: “Todos los juicios criminales ordinarios, que no se deriven del derecho de acusación concedido a la Cámara de Diputados se terminarán por jurados, luego que se establezca en la República esta institución. La actuación de estos juicios se hará en la misma provincia donde se hubiere cometido el delito; pero cuando éste se cometa fuera de los límites de la Nación, contra el derecho de gentes, el Congreso determinará por una ley especial el lugar en que haya de seguirse el juicio.” A primera vista, el artículo fija tan sólo reglas de competencia, una territorial (los juicios se realizarán en la provincia donde haya sido cometido el delito) y otra extraterritorial (los delitos cometidos contra el derecho de gentes serán juzgados conforme una ley especial). Sin embargo, esta cláusula constitucional fue entendida como la puerta de entrada para el Derecho Internacional. Tanto la doctrina como la jurisprudencia sostienen, sobre la base de este artículo, que nuestro derecho interno recepta el derecho internacional consuetudinario. Como antecedente de una aplicación similar a la que se hizo desde el comienzo de la tercera etapa de la transición del 118 se debe citar el caso Priebke.27 Allí, la CSJN hizo lugar a la extradición solicitada por Italia del criminal de guerra Erich Priebke. Para resolver de esta manera, sostuvo que los principios de ius cogens del Derecho Internacional formaban parte del orden interno, dado que la aplicación del derecho de gentes se encontraba reconocida por el ordenamiento jurídico argentino. En resumidas cuentas la CSJN resolvió: “3º) Que, frente a la índole de tal calificación, resulta obvio que el país requirente haya procedido a solicitar la ex27

CSJN, Priebke, Erich s/ solicitud de extradición — causa Nº 16.063/94, del 2/11/1995, Fallos: 318:2148.

 

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tradición sin perjuicio del juzgamiento definitivo incluso sobre la naturaleza del delito por los tribunales del lugar en donde se ha cometido (arts. 75 incs. 22 y 118 de la Constitución Nacional y arts. II, III, V, VI y VII de la Convención para la Prevención y la Sanción del Delito de Genocidio). 4º) Que la calificación de los delitos contra la humanidad no depende de la voluntad de los estados requirente o requerido en el proceso de extradición sino de los principios del ius cogens del Derecho Internacional. 5º) Que, en tales condiciones, no hay prescripción de los delitos de esa laya y corresponde hacer lugar sin más a la extradición solicitada.” En los casos de que aquí nos interesan el artículo 118 fue utilizado −como señalé− desde el comienzo de la tercera etapa. Cuando algunos jueces de distintos puntos del país declararon la inconstitucionalidad de las leyes de punto final y obediencia debida se fundaron no sólo en el artículo 29 de la Constitución, sino también en el artículo 118. Como ejemplo podemos citar la decisión del ex−juez Cavallo en el caso Simón.28 Siguiendo la línea de la CSJN en Priebke, Cavallo afirmó que, de acuerdo al artículo 118, el ordenamiento jurídico interno receptaba el derecho internacional. Ello implicaba que los delitos contra el derecho de gentes formaban parte de nuestro ordenamiento jurídico. Entre ellos se encontraban −evidentemente− los crímenes contra la humanidad, de los que, de acuerdo al derecho consuetudinario internacional, surgían acciones imprescriptibles. En el debate legislativo por la nulidad de las leyes varios legisladores también hicieron referencia a este artículo.29 28

Juzgado Nacional en lo Criminal y Correccional Federal Nº 4, causa Nº 8686/2000, Simón, Julio, Del Cerro, Juan Antonio s/sustracción de menores de 10 años, del registro de la Secretaría Nº 7, del 6/03/2001. 29 A modo de ejemplo menciono a la diputada Elisa Carrió, entre muchos. Ver: Diarios de sesiones de la Cámara de Diputados de la

 

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Esta línea fue seguida por la CSJN30: el artículo 118 de la Constitución receptaba el ius cogens, que al momento de los hechos ya establecía la imprescriptibilidad de los crímenes contra la humanidad. Es por ello que, si bien la prescripción para nuestro sistema forma parte de lo que llamamos “tipo garantía” (es decir, las reglas de prescripción se encuentran abarcadas por el principio de legalidad, a diferencia de lo que ocurre en otros sistemas jurídicos)31, la aplicación de la consecuencia jurídica de la imprescriptibilidad para las acciones que surgen de los crímenes contra la humanidad cometidos en los '70 no viola el principio de legalidad (nullum crimen sine lege).

El artículo 29 de la Constitución Nacional El artículo 29 de la Constitución Nacional argentina señala: “El Congreso no puede conceder al Ejecutivo nacional, ni las Legislaturas provinciales a los goNación, 12ª reunión, 4° sesión ordinaria (especial) del 12 de agosto de 2003, y de la Cámara de Senadores de la Nación, 17ª reunión, 11º sesión ordinaria, del 20 y 21 de agosto de 2003. 30 Entre otros, Arancibia Clavel, Enrique Lautaro s/ homicidio calificado y asociación ilícita y otros, causa Nº 259, del 24/08/2004, Fallos: 327:3312; Simón, Julio Héctor y otros s/ privación ilegítima de la libertad, etc., causa Nº 17.768, del 14/06/2005, Fallos: 328:2056; Mazzeo, Julio Lilo y otros s/ rec. de casación e inconstitucionalidad — Riveros, del 13/07/2007, Fallos: 330:3248. 31 A modo de ejemplo se puede citar el caso alemán. Para ese sistema el principio de legalidad no comprende las reglas de prescripción. Así, pudieron ser modificadas ex post facto en varias oportunidades. Esto ocurrió no sólo con los crímenes del nazismo (los plazos de prescripción de las acciones fueron modificados en varias ocasiones hasta ser declaradas imprescriptibles), sino también con los crímenes de la Alemania oriental. Pastor, Daniel R., El plazo razonable en el proceso del estado de derecho. Una investigación acerca del problema de la excesiva duración del proceso penal y sus posibles soluciones (Buenos Aires, Ad Hoc, 2002), p. 453; y Knut Amelung, Die strafrechtliche Bewältigung des DDRUnrechts durch die deutsche Justiz, Dresdner Juristische Beiträge (I), (Dresden, Dresden University Press, 1996).

 

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bernadores de provincia, facultades extraordinarias, ni la suma del poder público, ni otorgarles sumisiones o supremacías por las que la vida, el honor o las fortunas de los argentinos queden a merced de gobiernos o persona alguna. Actos de esta naturaleza llevan consigo una nulidad insanable, y sujetarán a los que los formulen, consientan o firmen, a la responsabilidad y pena de los infames traidores a la patria.” Este artículo prohíbe al Congreso conceder facultades extraordinarias o la suma del poder público, ya que hacerlo (esto es, consentirlo o firmarlo) implica la comisión de un delito constitucional. Como señalé arriba, este artículo fue también utilizado por la doctrina y la jurisprudencia para invalidar las leyes de punto final y obediencia debida. Si bien a primera vista el mandato parece estar dirigido sólo al Poder Legislativo, la prohibición también abarca la asunción de la suma del poder público.32 En este sentido se pronunció, entre otros, la CSJN en causa 13.33 Allí la CSJN afirmó: “... el art. 29 de la Constitución Nacional sanciona con una nulidad insanable aquellos actos que constituyan una concentración de funciones, por un lado, y un avasallamiento de las garantías individuales que nuestra Carta Magna tutela, por otro.” En relación con este artículo el el Prof. Sancinetti en “Derechos humanos en la Argentina postdictatorial” sostenía: “En apariencia, la amnistía posterior de esa misma conducta, por parte de los legisladores -por ejemplo, por los mismos que hubieran concedido las facultades, o por otros- no está conceptualmente incluida en el art. 29 de la Constitución. Desde el punto de vista estrictamente lógico, la prohibición de 32

Juzgado Nacional en lo Criminal y Correccional Federal Nº 4, Simón, ya citado (v. nota 26). 33 Fallos: 309:1689.

 

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realizar cierta conducta no implica necesariamente la falta de facultades para amnistiarla, una vez ya cometida. Sin embargo […] la Corte Suprema, en su integración de facto de 1955, afirmó −al fallar la causa 'Juan Carlos García y otros, in re Juan Domingo Perón y otros', que se registra en 'Fallos C.S.', t. 234, p. 16− lo siguiente: 'Que los términos enfáticos en que está concebida, los antecedentes históricos que la determinaron y la circunstancia de habérsela incorporado a la ley fundamental de la República, revelan sin lugar a dudas que la disposición citada constituye un límite no susceptible de franquear por los poderes legislativos comunes, […] en consecuencia, la amnistía que expresamente comprendiera en sus disposiciones el delito definido por dicho precepto constitucional, carecería enteramente de validez como contraria a la voluntad superior de la Constitución'...”34 Siguiendo esta línea dada por la CSJN, Sancinetti concluía: “Si, en verdad, conceder un poder que esté más allá del bien y del mal es no amnistiable, el ejercicio del poder tampoco puede serlo. Creer lo contrario implicaría afirmar que los legisladores, responsables por otorgar el poder -y, por tanto, partícipes de él- son inamnistiables, pero que no lo son los autores mismos de los hechos que impliquen el ejercicio de un poder que ponga bajo merced de persona alguna la vida de los argentinos.”35 La línea anteriormente fijada por la CSJN en causa 13 fue seguida al comienzo de la tercera etapa de la transición36, en contraposición a lo que había ocurrido luego de que se sancionaron las leyes de punto final y obediencia debida.37 34

Marcelo A. Sancinetti, ob. cit., pp. 82 y 83. La cursiva es del original.

35

Ídem, p. 83. La cursiva es del original.

36

Arancibia Clavel, ya citado (v. nota 28); y Simón, ya citado (v. nota 28).

37

Al analizar la constitucionalidad de la ley de obediencia debida, en el marco de la causa Camps, la mayoría se pronunció en favor de la

 

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También durante la discusión parlamentaria previa a la sanción de la ley 25-779 se recurrió a este artículo. Elisa Carrió fue una de las diputadas que lo utilizó en su exposición. Tradicionalmente se entiende que el control de constitucionalidad de nuestro sistema es difuso, es decir que puede ser ejercido por cualquier juez en el caso concreto y que sólo tendrá efectos para las partes. Sin embargo, ello no quiere decir que −siguiendo la exposición de Carrió− los otros poderes no ejerzan un control de constitucionalidad. El Poder Legislativo, por ejemplo, revisa la constitucionalidad de un proyecto de ley al momento de discutir su sanción. Ahora bien, ello no implica sin más que el Poder Legislativo tenga atribuciones para declarar la nulidad de las leyes sólo porque violen la Constitución: “En principio no lo puede hacer, es cierto, salvo que la norma con la cual se confronta sancione bajo pena de nulidad. Si la violación constitucional de las normas que está analizando el Congreso, en este caso, las leyes de punto final y de obediencia debida, se refiere al artículo 29 de la Constitución, y es el propio artículo 29 el que sanciona con nulidad absoluta e insanable todos los actos que se opongan […] la nulidad corresponde.” El Poder Legislativo de ese momento no tenía facultades para sancionar este tipo de leyes por ser violatorias del artículo 29 de la Constitución y, por esa razón, el Legislativo que lo precedió podía tomar a su cargo la declaración de nulidad de aquellas leyes. Finalmente, al margen de si el Congreso efectivamente tenía facultades para anular o no las leyes en cuestión, lo cierto es que la ratificación por parte del Poder Judicial de la nulidad de las leyes tornaba abstracta la discusión. Las leyes fueron siempre nulas, in-

constitucionalidad de la ley. Petracchi y Bacqué votaron en disidencia. Causa incoada en virtud del decreto 280/84 del Poder Ejecutivo Nacional. Camps, Ramón Juan Alberto y otros; del 22/06/1987, Fallos: 310:1162.

 

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dependientemente de cuál fuese el poder del Estado que así lo afirme.

A modo de conclusión Durante estos minutos repasamos brevemente la transición democrática argentina, que fue desde una justicia retroactiva limitada hasta llegar a una ampliada, en la que hoy vivimos: en la que existen una gran cantidad de procesos que, a grandes rasgos, avanzan a pesar de numerosas dificultades. En este camino se ha utilizado la Constitución Nacional en varias ocasiones: para fundar la imprescriptibilidad de las acciones que surgen de los crímenes contra la humanidad que tuvieron lugar en los '70 y la imposibilidad de oponer frente a estas acciones cualquier otro tipo de obstáculo, como amnistías o indultos. El proceso vivido hasta el día de hoy en la Argentina parecería mostrar, en primer lugar, que la justicia retroactiva requiere de una voluntad política clara y decidida, que ubique en el centro de la agenda la necesidad de llevar adelante la persecución penal por las violaciones masivas y sistemáticas a los derechos humanos. Afrontar este tipo de procesos implica enormes esfuerzos por parte de los poderes del Estado. Por eso, es necesario que la persecución penal se encuadre en una verdadera política estatal. Puedo mencionar algunos sucesos, además de los ya referidos en el apartado sobre la última etapa de la transición democrática, que dan cuenta de esta política. En el marco del Ministerio Público Fiscal (MPF), se creó en 2007 la Unidad Fiscal de Coordinación y Seguimiento de causas por violaciones a los Derechos Humanos, hoy denominada Procuraduría de Crímenes contra la Humanidad, que se encuentra abocada a revisar los obstáculos existentes en cada jurisdicción para superarlos y a diseñar la política criminal en estas causas. También, dentro del MPF, se han destinado nuevos recursos humanos para llevar adelante las causas en  

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varios puntos del país. Otros esfuerzos han ocurrido en el marco del Poder Judicial, que también ha provisto de personal nuevo a los distintos tribunales. Además, desde el Poder Legislativo, se ha reformado el proceso penal en las instancias recursivas, para imprimir celeridad e impedir que los procesos se paralicen en virtud de recursos pendientes de resolución. En segundo lugar, parecería evidente que frente a violaciones masivas y sistemáticas a los derechos humanos el Estado no puede permanecer inconmovible. Frente a estas violaciones varios son los caminos posibles: comisiones por la verdad, reparaciones pecuniarias, simbólicas (como, por ejemplo, la indicación de un sitio como centro clandestino de detención, la admisión de responsabilidad por parte de las fuerzas armadas, la realización de documentales o películas, etc.), enjuiciamientos penales. En la Argentina actual la justicia retroactiva es la que prevalece.

 

A cumplicidade em violações aos direitos humanos durante a ditadura civil-militar brasileira

Maria  Carolina  Bissoto1  

Resumo: O artigo trata da questão da cumplicidade em violações aos direitos humanos por parte de empresários durante a ditadura civil-militar brasileira. Para isso, discute-se a construção internacional acerca da responsabilização de empresas como cúmplices em violações a direitos humanos desde o Tribunal de Nuremberg, bem como os estudos feitos na Comissão de Direitos Humanos da ONU e na Comissão Internacional de Juristas, utilizando-se deste último estudo para verificar se há a presença dos critérios causalidade, conhecimento e proximidade no caso concreto da Operação Bandeirantes (OBAN). Palavras-chaves: cumplicidade em violações a direitos humanos – ditadura militar - OBAN Abstract: The article discusses the question of complicity in human rights violations by businessmen during the Brazilian civil-military dictatorship. For that, it approaches the international construction about the ac1 Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Consultora PNUD - Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

 

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countability of companies as accomplices in human rights violations since the Nuremberg Tribunal, as well as works done by the Human Rights Commission of the United Nations (UN) and the International Commission of Jurists , using the latest study to check for the presence of causality criterion, knowledge and proximity in case of the Bandeirantes Operation (OBAN). Keywords: complicity in human rights violations - military dictatorship - OBAN

Introdução Ao tratar do relacionamento de empresas com os sistemas repressivos é possível se remeter a duas facetas. A primeira é a contribuição de empresários e empresas a órgãos repressivos contribuindo para seu funcionamento; a segunda remete a empresas e empresários que foram perseguidos pelo regime ditatorial, causando algumas vezes o seu fechamento, como o caso da companhia áerea PANAIR2 que perdeu sua licença de voo em 10 de fevereiro de 1965 e foi extinta pelo regime militar somente tendo sua reabilitação em 1995, recentemente discutido em uma audiência pública pela Comissão Nacional da Verdade. 2

Em reportagem sobre a audiência pública da Comissão Nacional da Verdade que foi realizada em 23 de março de 2013 no Rio de Janeiro: “O jornalista e escritor Daniel Leb Sasaki, autor do livro Pouso Forçado, sobre a história da Panair, lembra que a empresa era a maior companhia aérea do Brasil na época, concessionária da maior parte dos voos internacionais e uma rede nacional muito grande, além de ter uma estrutura em terra que nenhuma companhia alcançou até hoje, com aeroportos e uma área de telecomunicações aeronáuticas privada”. In: NITAHARA, Akemi. Caso Panair abre debate sobre perseguição a empresas durante o regime militar. Disponível em: . Acesso em 13 de abril de 2013.

 

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Este artigo foca-se na primeira faceta, ou seja, procuraremos discutir a respeito da contribuição feita por empresas e empresários a órgãos repressivos e suas implicações jurídicas e possíveis formas de responsabilização.

1. A questão da cumplicidade em violações a direitos humanos Como aponta Marlon Weichert desde o final da Segunda Guerra Mundial se discute a responsabilidade de empresas pela colaboração com agentes estatais à violações dos direitos humanos, focando neste primeiro período as contribuições realizadas por empresas alemãs, que utilizavam-se de prisioneiros de campos de concentração como mão de obra e sobre as relações comerciais mantidas por bancos dos países neutros com o governo nazista3. Após o Tribunal de Nuremberg a ONU aprovou uma série de princípios relacionados a crimes de guerra e crimes contra a humanidade, sendo que em um deles foi declarado expressamente que “a cumplicidade no cometimento de crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade conforme o estabelecido no princípio VI é um crime perante o direito internacional4”. Esse princípio foi reafirmado nos estatutos dos Tribunais Internacionais para a ex-Iuguslávia 3

WEICHERT, Marlon Alberto. O financiamento de atos de violação de direitos humanos por empresas durante a ditadura brasileira. Acervo: revista do Arquivo Nacional. —v. 21 n. 2(jul./dez. 2008). — Rio de Janeiro:Arquivo Nacional, 2008, p. 183 e 184. 4 VII Principles of the Nuremberg Tribunal. Principles of International Law Recognized in the Charter of the Nuremberg Tribunal and in the Judgment of the Tribunal. Adopted by the International Law Commission of the United Nations, 1950. Disponível em: . Acesso em 13 de abril de 2013. Tradução da autora.

 

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e de Ruanda e no Estatuto de Roma que instituiu o Tribunal Penal Internacional. Em 2003 a Comissão de Direitos Humanos da ONU elaborou um estudo sobre o tema, sendo importante destacar duas recomendações: 1. que as empresas devem sempre procurar não desenvolver atividades que apoiem, solicitem ou encorajam aos Estados ou qualquer outra entidade a abusar dos direitos humanos, e devem procurar garantir que seus bens ou serviços fornecidos não sejam utilizados para o abuso dos direitos humanos. 2. outra recomendação é que as empresas não devem se envolver e nem se beneficiar de crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio, tortura, desaparecimento forçado e outras violações dos direitos humanos5. Em 2006 foi realizado um painel pela Comissão Internacional de Juristas publicado em 2008. Segundo a Comissão para verificar se uma empresa ou seus gerentes e diretores possuem responsabilidade civil e penal por cumplicidade em violações a direitos humanos há três critérios a serem observados. O primeiro critério é o da causalidade. É necessário verificar se a empresa contribuiu para a prática de violações dos direitos humanos por meio de atitudes práticas que tornaram essa violação possível. Essa contribuição pode ser material, por exemplo empréstimo de carros, combustível, armas ou pode ser feita por meio de delação de empregados que tenham posições políticas contrárias ao regime vigente. Nos casos em que a empresa contribuiu por meio dessas práticas é possível a sua responsabilização como cúmplice em violações dos direitos humanos. 5

Norms on the Responsibilities of Transnational Corporations and Other Business Enterprises with Regard to Human Rights, U.N. Doc. E/CN.4/Sub.2/2003/12/Rev.2 (2003). Disponível em: < http://www1.umn.edu/humanrts/links/norms-Aug2003.html>. Acesso em 13 de abril de 2013. Tradução da autora.

 

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O segundo critério é o conhecimento. O que deve-se verificar é se a empresa possuia conhecimento ou tinha como saber sobre as violações dos direitos humanos praticadas. Se ela assumiu o risco de estar contribuindo com essas violações sua responsabilidade pode ser caracterizada. O terceiro critério é a proximidade da empresa aos agentes da repressão, qual era a influência da empresa sobre estes, sendo que quanto maior proximidade maior responsabilidade é possível de ser caracterizada. Passaremos a analisar a seguir o caso brasileiro no órgão repressivo onde esta cumplicidade em violações dos direitos humanos é mais destacada: a Operação Bandeirantes (OBAN) em São Paulo.

2. A participação de empresários na OBAN Devido a preocupação com o aumento das ações armadas, e visando maior repressão e combate às organizações, foi oficializada em 01 de julho de 19696 em São Paulo a Operação Bandeirantes (OBAN). Era composta por elementos vindos das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), da Polícia Federal e da Polícia Estadual. Antônio Carlos Fon descreve o lançamento do órgão: “escondida nas páginas internas dos jornais editados na cidade de São Paulo no dia dois de julho de 1969, a notícia passou quase despercebida. No dia anterior, com a presença do governador do Estado, Roberto Costa de Abreu Sodré, do secretário de Segurança Pública paulista – professor Hely Lopes Meirelles – e dos comandantes do VI Naval e da 4ª Zona Aérea, o general José Canavarro Pereira, co6

Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI menciona em seu livro que a data de instalação da OBAN teria sido 27 de junho de 1969.

 

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mandante do II Exército, havia lançado oficialmente uma certa ‘Operação Bandeirantes’. Sem maiores detalhes, os jornais informaram apenas que o novo organismo teria como função coordenar as atividades dos diversos órgãos encarregados da repressão à subversão e ao terrorismo. O general Canavarro Pereira não disse – em seu discurso ele limitou-se a falar da necessidade de que todos os setores da sociedade se unissem às forças armadas no esforço pela defesa da segurança interna – mas aquele era um momento histórico”7.

A ideia da união de esforços no combate a repressão das Forças Armadas com policiais civis surgiu bem antes. Hely Lopes Meirelles, secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo de abril de 1968 a agosto de 1969, afirmou que o entrosamento entre as Forças Armadas e a Secretaria de Segurança Pública aumentou nos fins de 1968, e que este entrosamento resultou na formação da Operação Bandeirantes8. Mariana Joffily relata que em fevereiro de 1969 realizou-se em Brasília o I Seminário de Segurança Interna, reunindo todos os secretários de Segurança Pública, os comandantes das Polícias Militares e os superintendentes regionais da Polícia Federal, com a orientação do ministro da Justiça Gama e Silva e do chefe da Inspetoria Geral das Polícias Militares, general Carlos de Meira Mattos9. Manoel Rodrigues de Carvalho Lisboa, comandante do II Exército no início de 1969, era contrário a instalação de um órgão como a OBAN, já que 7

FON, Antonio Carlos. . Tortura – a história da repressão política no Brasil. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda., 1979, p. 15. 8 Idem, p. 25. 9 JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem. Os interrogatórios na Operação Bandeirantes e no DOI de São Paulo (1969 – 1975). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), 2008, p. 32.

 

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alegava que o contato com os bens e dinheiros apreendidos nas operações poderia facilitar a corrupção, o que futuramente veio a se comprovar10. Entretanto, com a posse do general José Canavarro Pereira como comandante do II Exército, este obstáculo estava superado. Em maio de 1969, no seu discurso de posse, o general José Canavarro Pereira afirmou crer num entendimento maior entre civis e militares e que para ele esta união não seria imposta e sim decorreria da percepção de que a Pátria não poderia viver sem a garantia da manutenção da paz e da segurança11. No Jornal da Tarde de 28 de junho de 1969 há uma nota afirmando que estaria em execução um plano sigiloso de uma ação conjunta das Forças Armadas e da polícia para o combate ao terrorismo. Conforme o jornal a proposta teria sido apresentada pelo secretário de Segurança Pública, Hely Lopes Meirelles, aos comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica do Estado de São Paulo12. Dois dias depois, no mesmo jornal é mencionada que na reunião do Conselho de Segurança Nacional (CSN), marcada para o dia seguinte, seria discutido o esquema de segurança que uniria as Forças Armadas à polícia no combate ao terrorismo13. 10

A informação de que Manoel Rodrigues de Carvalho Lisboa era contra a instalação da OBAN está em: FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 115. Ver também sobre o mesmo tema o depoimento de Adyr Fiúza de Castro in D’ARAUJO, Maria Celina, SOARES, Glaucio Ary Dillon e CASTRO, Celso (org.). Os anos de chumbo: a memória miitar sobre a repressão. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1994, p. 154. 11 Diário Oficial do Estado de São Paulo de 03 de maio de 1969, p. 1 e 2. “Creio num entendimento ainda maior entre civis e militares”. 12 Jornal da Tarde de 28 de junho de 1969, p. 2. Arquivo do Estado de São Paulo. 13 Jornal da Tarde de 30 de junho de 1969, p. 2. Arquivo do Estado de São Paulo. Apesar de estar disponível no site do Arquivo Nacional, não consegui localizar nenhuma referência a OBAN na pauta da

 

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O motivo da instalação da OBAN na cidade de São Paulo, segundo Ottoni Fernandes Júnior foi o fato dos suportes políticos das organizações de luta armada se encontrarem nas cidades, tendo São Paulo como sua base mais importante. A OBAN, em sua opinião, teria sido uma experiência piloto e tornou a tortura uma prática sistemática. Em 1970, os militares já reuniam informações que possibilitavam a catalogação de todas as organizações de luta armada14. Para Carlos Alberto Brilhante Ustra, este órgão é chamado de forma errônea por Operação Bandeirantes, pois esta era, na verdade, um Centro de Coordenação, subordinado ao comandante do II Exército, composta pela Central de Informações e pela Central de Operações, com a missão específica de combater a subversão e o terrorismo, havendo internamente divisões de funções, sendo que o entrosamento desses órgãos que levou ao sucesso da OBAN e a uma série de prisões de militantes15. A OBAN não era um órgão institucionalizado, assim não havia previsão orçamentária para seu funcionamento. Mas ao contrário do que se pode pensar o governo paulista assumiu a sua existência. Uma prova disso está no Diário Oficial do Estado de São Paulo do dia 08 de novembro de 1969. Nele há menção a uma fala do governador Roberto Costa de Abreu Sodré em uma palestra realizada no Palácio Bandeirantes no dia anterior. Ele afirma que naquele momento havia em São Paulo um perfeito entrosamento entre a polícia civil e militar e as Forças Armadas, o que garantia uma unidade de ação, de informação e contrainformação, reunião do Conselho de Segurança Nacional do dia primeiro de julho de 1969. 14 FERNANDES JÚNIOR, Ottoni. O Baú do Guerrilheiro. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 129. 15 USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça. 4ª edição. Brasília: Editora Ser, 2007, p. 224.

 

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visando a defesa e segurança internas. Exemplificando essa união de esforços ele citou o sucesso da Operação Bandeirantes, idealizada pelo General Canavarro Pereira, que em poucos dias teria eliminado vários focos de subversão16.

2.1 Os motivos alegados para a instalação e os funcionários A Operação Bandeirantes surgiu com o intuito de destruir ou ao menos neutralizar as organizações de esquerda, principalmente aquelas que se dedicavam a uma oposição armada à ditadura. Havia duas novidades nesse órgão: a primeira era conjugar atividades de segurança ou repressão com operações de informações; a segunda era reunir em suas fileiras agentes de diversas forças policiais e das forças armadas. Muitos desses agentes vinham da Divisão Estadual de Investigação Criminal (DEIC), esta era famosa por seus métodos de atuação, que envolvia a tortura como meio de obtenção de informação. Antonio Carlos Fon afirma que: “Inexperientes em investigações de caráter policial, os oficiais destacados para a ‘Operação Bandeirantes’ tiveram, em seus primeiros tempos, de valer-se quase exclusivamente da experiência de delegados e investigadores da Polícia Civil. Quase sem o público tomar conhecimento, por se tratar de medida administrativa interna da Secretaria de Segurança Pública, um grande contingente de policiais da Divisão de Crimes contra o Patrimônio, foi transferido, em meados de 1969, para o DOPS

16

Diário Oficial do Estado de São Paulo de 8 de novembro de 1969, p. 1 e 2. “Estamos governando com os olhos voltados para o desenvolvimento do país”.

 

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paulista17 e, em seguida, uma parte deles, para a ‘Operação Bandeirantes’18”.

Entre esses agentes, o mais célebre foi o delegado Sergio Paranhos Fleury. Conhecido por ser acusado de participar do Esquadrão da Morte, o delegado passou a história como um dos maiores torturadores da ditadura brasileira.

2.2 A colaboração dos empresários Quando se lê sobre a OBAN, na maioria das vezes é dito que, como este órgão não possuia verbas orçamentárias previstas, os empresários brasileiros e de multinacionais foram chamados a contribuir para seu aparelhamento. Teria sido realizada uma reunião com vários empresários na qual foi dito que o governo não possuía recursos e equipamentos para o combate aos opositores e que os empresários teriam assumido o compromisso de financiar o órgão. Elio Gaspari, em seu livro “A Ditadura Escancarada” cita que o governador Abreu Sodré cedeu o terreno da 36ª Delegacia de Polícia localizada na Rua Tutoia na Vila Mariana para instalação da OBAN e que o prefeito Paulo Maluf mandou que fossem instalados postes de iluminação e que se asfaltasse a área19. Cita ainda que o ministro Antonio Delfim Netto e um grupo de empresários teriam se reunido no palacete do Clube São Paulo. O ministro apresentou o problema aos em17

No Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOE) de 17 de setembro de 1969 encontrei as portarias de transferência de vários delegados para o DOPS. Entre esses estão: Sergio Paranhos Fleury, Edsel Magnotti, Celso Telles, Silvio Moraes Bartoletti, Edson Venicio Charnilot, Antonio Fasoli e Firmino Pacheco Netto. DOE, p. 10 e 11. 18 FON, Antonio Carlos. Obra citada, p. 20. 19 GASPARI, ELIO. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 61.

 

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presários e estes assumiram o compromisso de pagar esses gastos. As reuniões para a coleta das verbas ocorriam na Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), sendo que ao final dessas reuniões era passado o quepe. A Ford e a Volkswagen forneceriam os carros, a Ultragás emprestaria caminhões e a Supergel forneceria refeições congeladas20. O difícil é encontrar empresários que não colaboraram materialmente com a OBAN. Todas as empresas automobilísticas forneceram carros que eram usados na captura dos militantes. Entre essas podem ser citadas: General Motors, Ford, Willys, Mercedes Benz, Volkswagen, Toyota e Chrysler. Nas páginas do Diário Oficial do Estado de São Paulo do ano de 1969 é frequente ver listas e mais listas de carros sendo fornecidos à polícia paulista, sendo constante a troca de veículos. A ajuda em espécie também era frequente, mas apesar disso em muitos processos da Auditoria Militar os militantes alegaram que quantias que estavam em seu poder foram apreendidas pela OBAN. Derlei Catarina de Luca narra que durante sua prisão na OBAN lhe foi servida comida congelada, sendo que esta era fornecida gratuitamente ao órgão. Ela afirma ainda que na OBAN lhe foi dito que a empresa de cigarros Souza Cruz fornecia cigarros aos funcionários21. Assim como é difícil encontrar empresários que de alguma forma não colaboraram com a OBAN, provas escritas dessa colaboração não são encontradas facilmente. Entretanto, as muitas fotografias e notas do caderno social da Folha de São Paulo, registrando as homenagens, coquetéis e banquetes oferecidos por empresários e banqueiros aos militares demonstra que 20

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada, p. 62. LUCA, Derlei Catarina. No corpo e na alma. Criciúma: Editora do Autor, 2002, p. 99. 21

 

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havia um vínculo entre eles. Também não é difícil encontrar empresários condecorados com medalhas pelo Exército. Instituída em 1953, após 1955 a Medalha do Pacificador passou a ser oferecida a militares e a civis que tivessem prestado um relevante serviço ao Exército. Em 1973, Geraldo Alonso (presidente da Northon Publicidade) e José Papa Junior (presidente da Federação do Comércio de São Paulo) foram agraciados com a Medalha do Pacificador. Qual seria o motivo para um empresário receber uma medalha pelos bons serviços prestados à Nação? E que bons serviços seriam esses? Mas eles não foram os únicos condecorados. Em 1987, o então tenente-coronel Erasmo Dias, comandante da invasão da PUC de São Paulo em 1977, foi condecorado com esta Medalha em virtude dos serviços prestados ao Exército22. Muitos militares acusados de serem torturadores foram condecorados com a Medalha do Pacificador. Entre esses pode-se citar: Carlos Alberto Brilhante Ustra (condecorado em 1972); Alberto dos Santos Lima Fajardo, comandante do DOI-CODI do Rio de Janeiro em 1975 (condecorado em 1973); Amilton Nonato Borges, que atuou no DOI-CODI de Salvador (condecorado em 1972); Freddie Perdigão Pereira, Major da Cavalaria do Exército no DOI-CODI do Rio de Janeiro (19691971), conhecido como Doutor Nagib e Doutor e que também atuou na Casa da Morte, em Petrópolis (condecorado em 1970); José Canavarro Pereira, comandante do II Exército em 1969, condecorado em 1954; Maurício Lopes Lima, um dos torturadores da OBAN, recebeu a medalha em 1981. 22

As informações sobre os condecorados com a Medalha do Pacificador estão disponíveis no site da Secretaria Geral do Exército. Disponível em: . Acesso em 17 de abril de 2013.

 

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Dalmo Lúcio Muniz Cyrillo, que também integrava a equipe de torturadores da OBAN, recebeu a Medalha do Pacificador duas vezes (1969 e 1972). Outro que recebeu a comenda foi o juiz da 2ª Circunscrição Militar, Nelson Machado Guimarães (condecorado em 1972), acusado de participar de torturas dos presos, suas sentenças eram pródigas nas acusações, sendo muitas vezes conivente com a repressão militar ao não permitir a menção às torturas alegadas pelos presos. Além da Medalha do Pacificador, havia também outras condecorações que poderiam ser concedidas àqueles que se distinguissem por relevantes serviços prestados ao país, ou seja, que colaborassem com a ditadura. No estado de São Paulo, o governador Abreu Sodré instituiu a Ordem do Ipiranga, visando premiar os que auxiliassem a repressão, as condecorações eram publicadas no Diário Oficial do Estado que sempre exaltava os serviços prestados por aqueles cidadãos. Há ainda casos de empresários que teriam colaborado com a tortura. O mais famoso é o de Henning Albert Boilesen, dono do Grupo Ultragás, que seria o responsável pela arrecadação dos fundos que manteriam o funcionamento da OBAN e, segundo denúncias de ex-presos políticos participaria de sessões de tortura. Por sua participação no financiamento da repressão, Boilesen foi morto por militantes que lutavam contra a ditadura no dia 15 de abril de 1971. No manifesto deixado junto ao seu corpo estava escrito: “HENNING ALBERT BOILESEN, foi justiçado, não pode mais fiscalizar PESSOALMENTE as torturas e assassinatos na OBAN, nem oferecer banquetes aos altos oficiais das forças armadas brasileiras, que comandam o terror e a opressão de que é vítima o povo brasileiro desde abril de 1964. Boilesen era apenas um dos responsáveis por este terror e opressão. Como ele existem muitos outros e sabemos quem são. Todos terão o mesmo fim, não importa o quanto demore; o que importa é que to-

 

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dos eles sentirão o REVOLUCIONÁRIA23”.

peso

da

JUSTIÇA

Como se percebe do manifesto outros havia além de Boilesen. Recentemente a Comissão da Verdade de São Paulo localizou seis livros de registros de visitantes do DOPS de SP no Arquivo Público do Estado de São Paulo, sendo que neles constava a assinatura de Geraldo Resende Matos (ou Mattos), identificado como FIESP, algumas vezes indicando a permanência no local por mais de 12 horas ou registros sem horário de saída ou saída somente no dia seguinte. Constatou-se também que no ano de 1971, Matos teria realizado aproximadamente 50 visitas ao DOPS24. Todos que fossem ao local em determinado horário poderiam saber da prática de torturas no prédio. Como alguém que visitava tanto não saberia disso? E por qual motivo um representante da FIESP frequentaria tanto o prédio? Que ligações isso pode indicar? Há também denúncias da existência de listas negras em determinadas empresas. Segundo o jornalista José Casado “grandes empresas recrutaram pessoal nas Forças Armadas e na polícia, mantiveram aparatos de expionagem dos empregados dentro das fábricas e nos sindicatos. A Volks e a Chrysler, por exemplo, repassaram listas de funcionários aos órgãos de segurança, às vezes com as respectivas fichas funcionais. (...)25”. 23

Manifesto “Ao povo brasileiro”. Documento nº 5483 do Inventário de Anexos do Brasil: Nunca Mais. Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), UNICAMP. Grifos do original. 24 SADA, Juliana. Indícios mostram ligação dos EUA e FIESP com tortura. Disponível em: . Acesso em 16 de abril de 2013. 25 CASADO, José. Repressão no pátio da fábrica. Disponível em: . Acesso em 17 de abril de 2013.

 

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É importante frisar também que nem todos os empresários contribuiam voluntariamente com os órgãos da repressão, sendo que a maior disposição de colaborar vinha da parte das multinacionais, já que em caso de perigo estes empresários poderiam ser transferidos para outro país, entretanto, os empresários brasileiros que se recusavam a colaborar eram vítimas de extorsão segundo relato de Kurt Mirow, diretor da Codima – Máquinas e Acessórios S/A26. José Mindlin, que na época dirigia a empresa Metal Leve narra ter sido procurado por uma pessoa que lhe pediu uma contribuição financeira para a OBAN pois o órgão estaria se organizando para combater o terrorismo e precisava de equipamentos técnicos. Narra ainda que respondeu que achava que a OBAN tinha ações violentas e que não poderia contribuir sem conhecer exatamente o seu modo de funcionamento27. A empresa de Mindlin sofreu muitas perseguições durante o período ditatorial. Mas poucos tiveram a atitude de Mindlin se recusando a colaborar. Entretanto, é necessário frisar que na verdade, a instalação da OBAN não se deu exclusivamente devido a participação dos empresários. Que eles forneceram ajuda material para este órgão é verdadeiro, mas que a instalação da OBAN tenha sido possível única e exclusivamente porque eles financiaram não é verdade. Os carros usados na OBAN eram sim de empresas automobilísticas como a Ford, GM e Volkswagen, mas tinham sido fornecidos ao governo para o aparelhamento de suas tropas. Havia sim contribuição em 26

“Quem deu dinheiro para a tortura – Assessor de Delfim no esquema do dinheiro que financiou as torturas”. O Movimento, edição 192, 5 a 11/03/1979, p.11. Acervo de Periódicos do Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), UNICAMP. 27 Transcrição da entrevista de José Mindlin ao documentário Cidadão Boilesen de Chaim Litewski.

 

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espécie de empresários, mas a finalidade do dinheiro antes de ser a manutenção do órgão, era para premiar a captura dos militantes. Com isso não se quer negar que houve financiamento de empresários, que estes deram dinheiro, forneceram carros, mantimentos. Quer se dizer que mesmo que este dinheiro não tivesse sido dado, a OBAN teria existido da mesma forma. O que se deseja afirmar é que a criação deste órgão ocorreu num panorama de aumentar a repressão para combater principalmente a luta armada, já que órgãos como o DOPS não sabiam como reprimir esses movimentos. Com a união de esforços dos civis e militares, com o uso de informações, logo as organizações de luta armada foram atingidas fortemente.

3. A caracterização da cumplicidade por parte dos empresários na OBAN Como dissemos acima para caracterização da cumplicidade segundo o painel realizado pela Comissão Internacional de Juristas é possível a utilização de três critérios. O primeiro é o da causalidade. Portanto, é necessário verificar se a empresa contribuiu por meio de atitudes práticas para que violações a direitos humanos pudessem ser praticadas. No caso de várias empresas há suspeitas que indicam que carros teriam sido emprestados a OBAN, ex-presos narram que teriam sido conduzidos em carros de empresas para o órgão. Há também denúncias de fornecimentos de outros materias como cigarros, marmitex. Há ainda denúncias de listas negras nas empresas que eram fornecidas aos órgãos da repressão que causavam a prisão de empregados do local contrários ao regime militar. Portanto, este critério da causalidade é totalmente verificável no caso da OBAN, podendo assim haver uma responsabilização dos empresários.  

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O segundo critério como vimos é o conhecimento. O que deve-se verificar é se a empresa possui conhecimento ou tinha como saber sobre as violações aos direitos humanos praticadas. Ora, era impossível que alguém que frequentasse um local como o DOPS não soubesse das torturas praticadas no local. É impossível de se imaginar que o dono do Sítio 31 de março, o empresário Joaquim Rodrigues Fagundes, dono da Transportes Rimet Ltda na Móoca – que por sinal só tinha um cliente: a TELESP – não soubesse que seu sítio era utilizado como centro clandestino de tortura. Ele que foi um dos condecorados com a Medalha do Pacificador e também com uma comenda do Exército, tornando-se oficialmente comendador, e que reunia em churrascos Erasmo Dias (comandante da invasão da PUC-SP em 1977), Carlos Alberto Brilhante Ustra, Sérgio Paranhos Fleury28, como não saberia o que era feito em seu sítio e o que faziam os seus “amigos” no trabalho? Era totalmente possível ter o conhecimento das torturas que eram praticadas nos órgãos repressivos e nos centros clandestinos de torturas, assim, é totalmente viável caracterizar a responsabilidade desses empresários que colaboraram nesses órgãos. Até porque as palavras de José Mindlin provam que no meio isso era conhecido. O terceiro critério é a proximidade da empresa aos agentes da repressão e como foi visto esta proximidade era existente. Seja nas colunas sociais, seja na existência de fotos de empresários em companhia de militares, seja pelas medalhas de Pacificador que muitos empresários receberam, na presença de empresários participando da tortura como é o caso de Boilesen. Tu28

VIANA, Natalia Viana, CHASTINET, Tony e MALAVOLTA, Luiz. O sítio da tortura. Disponível em: . Acesso em 17 de abril de 2013.

 

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do isto comprova a proximidade empresas – órgãos da repressão e caracteriza perfeitamente a responsabilidade dos empresários como cúmplices em violações aos direitos humanos. Em vista do discutido no presente artigo acreditamos que é possível a responsabilização dos empresários por cumplicidade em violações aos direitos humanos, sendo necessário, assim, que esta faceta do regime seja discutida de maneira mais abrangente para que esta responsabilidade possa ser devidamente reconhecida.

Referências CASADO, José. Repressão no pátio da fábrica. Disponível em: . Acesso em 17 de abril de 2013. D’ARAUJO, Maria Celina, SOARES, Glaucio Ary Dillon e CASTRO, Celso (org.). Os anos de chumbo: a memória miitar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOE) de 17 de setembro de 1969 Diário Oficial do Estado de São Paulo de 03 de maio de 1969. “Creio num entendimento ainda maior entre civis e militares”, p. 1 e 2. Diário Oficial do Estado de São Paulo de 8 de novembro de 1969. “Estamos governando com os olhos voltados para o desenvolvimento do país” , p. 1 e 2. FERNANDES JÚNIOR, Ottoni. O Baú do Guerrilheiro. Rio de Janeiro: Record, 2004. FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.  

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FON, Antonio Carlos. . Tortura – a história da repressão política no Brasil. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda., 1979. GASPARI, ELIO. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem. Os interrogatórios na Operação Bandeirantes e no DOI de São Paulo (1969 – 1975). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), 2008. Jornal da Tarde de 28 de junho de 1969, p. 2. Arquivo do Estado de São Paulo. Jornal da Tarde de 30 de junho de 1969, p. 2. Arquivo do Estado de São Paulo. LUCA, Derlei Catarina. No corpo e na alma. Criciúma: Editora do Autor, 2002. Manifesto “Ao povo brasileiro”. Documento nº 5483 do Inventário de Anexos do Brasil: Nunca Mais. Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), UNICAMP. MINDLIN, José. Transcrição da entrevista de José Mindlin ao documentário Cidadão Boilesen de Chaim Litewski. NITAHARA, Akemi. Caso Panair abre debate sobre perseguição a empresas durante o regime militar. Disponível em: . Acesso em 13 de abril de 2013. Principles of International Law Recognized in the Charter of the Nuremberg Tribunal and in the Judgment of the Tribunal. Adopted by the International Law Commission of the United Nations, 1950. Disponível em:

 

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. Acesso em 13 de abril de 2013. “Quem deu dinheiro para a tortura – Assessor de Delfim no esquema do dinheiro que financiou as torturas”. O Movimento, edição 192, 5 a 11/03/1979, p.11. Acervo de Periódicos do Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), UNICAMP. SADA, Juliana. Indícios mostram ligação dos EUA e FIESP com tortura. Disponível em:. Acesso em 16 de abril de 2013. SECRETARIA GERAL DO EXÉRCITO. Condecorados com a Medalha do Pacificador. Disponível em: . Acesso em 17 de abril de 2013. UNITED NATIONS. Norms on the Responsibilities of Transnational Corporations and Other Business Enterprises with Regard to Human Rights, U.N. Doc. E/CN.4/Sub.2/2003/12/Rev.2 (2003). Disponível em: < http://www1.umn.edu/humanrts/links/normsAug2003.html>. Acesso em 13 de abril de 2013. USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça. 4ª edição. Brasília: Editora Ser, 2007. VIANA, Natalia Viana, CHASTINET, Tony e MALAVOLTA, Luiz. O sítio da tortura. Disponível em: . Acesso em 17 de abril de 2013. WEICHERT, Marlon Alberto. O financiamento de atos de violação de direitos humanos por empresas durante a ditadura brasileira. Acervo: revista do Arquivo Nacional. —v. 21 n. 2(jul./dez. 2008). — Rio de Janeiro:Arquivo Nacional, 2008.  

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Marlon  Alberto  Weichert2  

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Este artigo se originou da conferência "Visão Crítica dos Óbices à Promoção da Justiça no Brasil", proferida no Seminário "Justiça de Transição: análises comparadas Brasil Alemanha“ (“Transitional Justice": Vergleichende Einblicke in Transitionsprozesse aus Brasilien und Deutschland"), na Universidade Goethe, em Frankfurt, Alemanha, no dia 17/7/2012, realizado sob os auspícios da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça do Brasil e da Universidade Goethe de Frankfurt. O texto não é reprodução exata do apresentado na conferência, pois alguns argumentos foram aprofundados neste artigo. Foram aproveitados elementos de trabalhos anteriores do autor, sobretudo Suprema impunidade no julgamento da ADPF 153. In SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 955-979, e A Obrigação constitucional de punir graves violações aos direitos humanos. In: Direito à verdade e à justiça. SOARES, Inês Virgínia Prado; PIOVESAN, Flávia (coord.), Editora Fórum, prelo. 2 Procurador Regional da República. Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Perito em justiça de transição indicado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Funcionou como testemunha no processo Gomes Lund, na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Coordenador do Grupo de Trabalho em Memória e Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Autor de diversos artigos sobre justiça de transição e coautor de iniciativas civis e criminais de responsabilização de perpetradores de violações aos direitos humanos durante a ditadura militar brasileira, bem como de promoção da verdade em relação a esse período autoritário.

 

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1. Introdução Este artigo tem por objeto imediato a análise dos dois principais óbices invocados por parte do Poder Judiciário brasileiro para negar a promoção da justiça criminal em relação às graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil durante a ditadura militar brasileira: a existência de uma lei de anistia e o transcurso do prazo da prescrição. Porém, os fundamentos utilizados contribuem para uma reflexão mais ampla sobre o papel do direito penal como instrumento de garantia de direitos humanos, assim como os limites da atividade legislativa quando produtora de normas de impunidade. Trabalharei o tema à luz de princípios do direito constitucional democrático e também do direito internacional dos direitos humanos. Antes, porém, farei um breve resumo do desenvolvimento da transição no Brasil, para contextualizar aspectos fáticos e jurídicos da edição da Lei de Anistia.

2. A transição política A ditadura militar brasileira teve início em 1964, no contexto da guerra fria. O País tinha um governo democrático que desenvolvia algumas políticas sociais, as quais foram consideradas – por segmentos conservadores – como de influência socialista. Juridicamente, o País era regido pela Constituição democrática de 1946, promulgada por uma Assembleia Nacional Constituinte convocada com o fim da ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945). O golpe militar de 1º de abril de 1964 manteve a vigência (meramente formal) da Constituição de 1946. Para fundamentar a quebra dos preceitos constitucionais foram editados Atos Institucionais e Atos Complementares, outorgados pelo Poder Executivo, ou seja, decretos presidenciais aos quais os militares atribuíram  

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força constitucional. Em 1967, com a edição do quarto Ato Institucional, o Congresso Nacional foi convocado para votar e promulgar um novo projeto de Constituição, ou seja, formalmente referendar o texto outorgado pelo governo. E, com efeito, nesse ano se formalizou a Constituição autoritária, ditada pelo regime militar, que revogou o texto de 1946. Não obstante a outorga de uma Constituição autoritária, o governo manteve a edição paralela de Atos Institucionais e Complementares, os quais – inclusive – eram usados para alterar a carta "constitucional" por ele mesmo imposta.3 No plano da repressão, desde os primeiros dias do golpe houve prisões em larga escala e atos de repressão. Todavia, foi a partir de 1968 que a perseguição sistemática e generalizada ganhou força e passou a ser extremamente violenta. Nesse ano o governo editou o Ato Institucional nº 5, com o qual restringiu ainda mais os direitos e as garantias fundamentais, inclusive abolindo o habeas corpus nos casos de crimes políticos e contra a segurança nacional. Em 1969, com o Ato Institucional nº 14, foi instituída a pena de morte, a prisão perpétua e o banimento nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva. Ainda em 1969, com o Congresso em recesso, foi decretada a Emenda Constitucional nº 1, que alterou substancialmente a Carta outorgada em 1967 e consolidou a previsão das penas de morte, prisão perpétua e banimento introduzidas no AI-14. Estes atos deram o sinal verde para a instituição do terrorismo de Estado e a perpetração em larga escala da violação aos direitos humanos, tais como prisões arbitrárias, torturas, execuções sumárias, desaparecimento forçado de pessoas e violências sexuais. Os organismos policiais e militares responsáveis pela segu3

 

No total, foram 17 atos institucionais e 104 atos complementares.

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rança política receberam a orientação de tratar qualquer dissidente como um inimigo (em conformidade com a doutrina da segurança nacional). Em meados dos anos setenta praticamente todos os movimentos de resistência haviam sido aniquilados. Estima-se que a repressão produziu um saldo de ao menos 30 mil pessoas presas ilegalmente e torturadas. Milhares de brasileiros foram para o exílio. A maior parte em auto-exílio, para fugir do risco de ser preso e torturado. O número de mortos e desaparecidos é da ordem de 500 pessoas4, considerados os dissidentes políticos perseguidos pelo regime militar. Mas pode chegar a número bem mais expressivo, se forem acrescidas as vítimas que não eram militantes políticas, mas de alguma forma se opuseram ao modelo do regime autoritário, sobretudo nas áreas rurais e nas populações vulneráveis, tais como os indígenas. Em 1978 um movimento da sociedade civil em favor da anistia a presos políticos ganhou força no país. Em decorrência dessa pressão da sociedade civil e da perda de popularidade do regime militar (fruto, sobretudo, da crise econômica e social, mas também do esgotamento do modelo de privação das liberdades), assim como da vitória que este já tinha obtido sobre qualquer resistência organizada, o governo militar concordou em 1979 com uma anistia limitada aos crimes políticos. Foram excluídos os autores já condenados por crimes de terrorismo, assalto, sequestro ou atentado pessoal. A Lei de Anistia estabeleceu que os crimes conexos aos crimes políticos estavam igualmente anistiados. Entretanto, um dos seus preceitos legais definia que essa conexão incluiria quaisquer crimes praticados com motivação política (§ 1º, do artigo 1º). A intenção 4 Apesar da instituição da pena de morte pelo Ato Institucional nº 14, ninguém foi morto seguindo o devido processo legal. Todos os casos foram de execução ilegal.

 

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do governo militar foi, com essa redifinição (alargamento) do conceito de crimes conexos, conceder uma autoanistia disfarçada a seus agentes.5 A anistia de 1979 foi, portanto, anunciada como bilateral, pois concedeu perdão aos perseguidos políticos e, também, aos agentes públicos.6 O governo militar somente deixou o poder em 1985, após um movimento popular que reuniu nas praças públicas milhões de brasileiros em defesa da eleição direta para presidente e o fim da ditadura. Embora o movimento não tenha conseguido implantar a imediata eleição direta para presidente, foi fundamental para a escolha de um civil da oposição na eleição indireta pelo Congresso Nacional. Sob esse novo governo civil, de moderada oposição aos militares, uma Assembleia Constituinte foi convocada, mediante a Emenda Constitucional nº 26, de 1985. Essa mesma Emenda Constitucional previu anistia “aos autores de crimes políticos ou conexos” (§ 1º, art. 4º), praticados entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 (§ 2º)7. Portanto, trata-se de norma 5

Dispõe a Lei nº 6.683/79: “Art. 1º. É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, (...) § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. § 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.” 6 Na nossa interpretação, apesar da intenção do legislador, o texto da Lei nº 6.683/79 foi mal elaborado e não veiculou norma que pudesse ser interpretada como instituidora da anistia aos agentes públicos da repressão à dissidência política. Os crimes por eles praticados não podem ser considerados políticos em sentido próprio ou impróprio e, tampouco, conexos a crimes políticos. (WEICHERT; FÁVERO, 2009). 7 O teor completo do dispositivo é o seguinte:

 

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parcialmente semelhante à da anistia de 1979. Diferentemente da anterior, o preceito da nova anistia omitiu a extensão dos benefícios aos crimes de qualquer natureza praticados por motivação política ou relacionados com crimes políticos, constante do § 1º, do artigo 1º, da Lei nº 6.683/79 . Uma nova Constituição foi finalmente promulgada em 1988. Nela não há referência à anistia de 1979. Como se pode notar, a ditadura se socorreu formalmente do direito como instrumento de legitimação de seus atos. Houve a preocupação em outorgar duas constituições e reiterados atos institucionais e complementares, positivando o autoritarismo. Mesmo assim, a repressão funcionou também à margem desse aparato normativo, o qual, aliás, vedava o emprego da tortura, conforme o § 34, do artigo 153, do texto outorgado em 1969: "[i]mpõe-se a tôdas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário". Finalmente, preparando a sua retirada, o governo editou norma de anistia para seus agentes e seus opositores. A diferença essencial é que estes já haviam sido perseguidos e punidos, enquanto os agentes da repressão eram desconhecidos e seus atos não haviam sido investigados.

“Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares. § 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais. § 2º A anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos imputáveis previstos no 'caput' deste artigo, praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979."

 

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3. A discussão jurídica Conforme mencionado, a Lei de Anistia de 1979 foi explícita sobre o perdão penal aos autores de crimes praticados contra o Estado, por motivação política, tais como os praticados pelos dissidentes políticos e resistentes ao regime ditatorial instaurado em 1964. Entretanto, não foi clara para instituir o perdão aos agentes do Estado que, no bojo das atividades de repressão à dissidência política, cometeram graves violações aos direitos humanos. Até 2008 prevalecia a afirmação política de que a anistia era bilateral. Os poucos julgados sobre o tema simplesmente afirmavam, sem qualquer apreciação técnica do conteúdo da norma, que a anistia impedia a persecução penal dos agentes públicos, numa repetição da interpretação oficial fixada durante a própria ditadura. No mencionado ano de 2008, o Ministério Público Federal em São Paulo iniciou investigações e ações judiciais contra agentes da repressão. Essas medidas se baseavam em estudo que elaboramos, no qual defendemos ser inaplicável a anistia aos autores de graves violações aos direitos humanos e, da mesma forma, a imprescritibilidade desses delitos. O tema ganhou projeção política a partir de audiência pública realizada no Ministério da Justiça em julho de 2008, oportunidade em que os Ministros da Justiça e da Secretaria Especial de Direitos Humanos manifestaram concordância com a tese da Procuradoria da República em São Paulo. Nesse mesmo ano o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs uma ação constitucional denominada "Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF" no Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de ser conferida “uma interpretação conforme a Constituição, de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anis  

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tia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar”. Em abril de 2010 o Supremo Tribunal Federal julgou, por maioria, improcedente a ADPF. A Corte utilizou vários argumentos, dos quais destacamos os seguintes: (a) a Lei de Anistia abrangeu quaisquer crimes praticados com motivação política, o que inclui os delitos praticados pelos agentes do Estado na repressão; (b) a anistia foi, portanto, bilateral; (c) a lei teve efeitos instantâneos, não sendo possível rever sua aplicação após 30 anos; (d) deve ser privilegiada uma interpretação compatível com o momento histórico, que leve em consideração a intenção do legislador da época; (e) houve um pacto político entre o governo militar e entidades da sociedade civil, que teriam anuído com a anistia aos agentes estatais para viabilizar a liberdade de presos políticos e o retorno do exílio de milhares de perseguidos do regime; (f) não seria legítimo rever esse acordo, especialmente por decisão judicial; (g) o Brasil tem tradição de conceder anistias dessa natureza, após conflitos políticos; (h) não houve autoanistia, dada a bilateralidade do benefício penal, sendo inaplicável a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos que reputa inválidas normas legais instituidoras de anistia dessa natureza; e (i) a edição e a aplicação da Lei nº 6.683/79 não se sujeitam à Corte Interamericana por serem anteriores ao reconhecimento, pelo Brasil, de sua jurisdição, válida apenas para fatos ocorridos após dezembro de 19988. Portanto, o Supre-

8 Ao manifestar a aceitação como obrigatória da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o governo brasileiro ressalvou o reconhecimento dessa jurisdição para apreciar fatos ocorridos até 10 de dezembro de 1998 (Decreto Legislativo nº 89/98 e Decreto Presidencial nº 4.463, de 8 de novembro de 2002).

 

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mo Tribunal Federal não precisava temer uma condenação internacional9. O Supremo Tribunal Federal, parece-me, enveredou por caminho inadequado na avaliação da validade da anistia a perpetradores de graves violações aos direitos humanos. Primeiro, no que diz respeito ao juízo de constitucionalidade originária. A Corte apenas tratou dos fundamentos históricos da lei e dos reflexos decorrentes de sua suposta reinterpretação. Assim, não houve o indispensável juízo de constitucionalidade da norma editada pela Lei nº 6.683/79 em face do parâmetro constitucional que vinculava a atividade legislativa no momento do seu exercício. Ou seja, é preciso analisar se o legislador podia, em 1979, editar uma lei de anistia que tornasse impunes os crimes relacionados à execução sumária, desaparecimento forçado, tortura e violências sexuais de cidadãos brasileiros por agentes do Estado. Insisto que essa avaliação não foi ainda efetuada pelo Supremo Tribunal Federal. Em segundo lugar, houve equívoco na avaliação do efeito, para o direito interno, das obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro. Antes, porém, de analisar essa decisão da Suprema Corte brasileira, é importante destacar que outro grande óbice para a promoção da justiça está no prazo prescricional. De acordo com a lei penal brasileira, o prazo mais amplo de prescrição é de 20 anos, o qual se conta, em regra, da data da consumação do crime. Por esses postulados, desde meados dos anos noventa a

9

Voto do Min. Eros Grau, relator, pág. 50. Note-se que o julgamento da ADPF foi anterior à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund. A CIDH reconheceu a sua competência para analisar a falta de investigação e punição das graves violações aos direitos humanos durante a ditadura brasileira, pois esta omissão persiste mesmo após o reconhecimento da jurisdição da CIDH pelo Brasil.

 

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persecução penal já não mais seria possível para a maior parte dos delitos aqui mencionados. As normas de prescrição, portanto, são causa autônoma de impunidade e também devem ser objeto de reflexão para fins de definição da possibilidade jurídica de responsabilização criminal dos autores de violações aos direitos humanos durante a ditadura brasileira.

4. Controle de constitucionalidade da Lei de Anistia: parâmetro O primeiro aspecto que se destaca diz respeito à definição de qual ordem constitucional deve ser adotada para o parâmetro de constitucionalidade. A própria Constituição outorgada pelo regime autoritário, com seus acessórios arbitrários (refiro-me aos atos institucionais e complementares), ou o último texto constitucional democrático? Em outras palavras, o controle de constitucionalidade da Lei nº 6.683/79 deve ser realizado em relação à Constituição de 1967, emendada em 1969 e remendada por atos institucionais, ou com prestígio à Constituição de 1946 e os valores de um Estado Democrático de Direito? A resposta me parece irremediavelmente no sentido da desconsideração da ordem jurídica arbitrária, ou seja, das constituições outorgadas e seus acessórios. É incompreensível que se pretenda avaliar a validade constitucional de uma norma legal sobre proteção de direitos fundamentais com a utilização de um parâmetro decorrente de uma ordem jurídicoconstitucional outorgada por ditadores. Não advogo a desconsideração integral das normas jurídicas editadas durante o arbítrio, pois isso equivaleria a instituir o caos, na medida em que as relações sociais evidentemente prosseguem durante o  

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estado de exceção. Pessoas nasceram, casaram, morreram, compraram, venderam e praticaram todos os atos da vida social durante os 21 anos da ditadura. O princípio da segurança jurídica impõe que se reconheça validade às normas que regularam tais atos, ainda que provenientes de fonte legislativa ilegítima. Ademais, a continuidade das relações sociais, e dos negócios públicos, impede qualquer arroubo de excluir do sistema jurídico, de modo acrítico, toda e qualquer norma oriunda das fontes arbitrárias. Não se pode "infirmar todas as numerosas leis produzidas no período da ditadura militar, que disciplinam os aspectos mais comuns do quotidiano e que provavelmente não seriam muito diferentes se o contexto político fosse outro. Não assim, todavia, com as normas que tratam de assuntos diretamente ligados à sustentação do regime de força e, com ainda mais evidência, aquelas que pretendem blindá-lo de crítica para o futuro. Estas padecem irremediavelmente da falta de legitimidade", conforme indica WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG (2012, p. 350). Toda norma emanada do autoritarismo deve passar por um crivo de valoração material, não só de recepção pela Constituição posterior, como também de sua compatibilidade com os valores constitucionais de um Estado de Direito. E, em se tratando de preceitos legais que se referem direta ou indiretamente com a promoção ou defesa de direitos fundamentais, o rigor no exame deve ser ainda mais elevado. A ilegitimidade da fonte normativa impõe um alto grau de severidade na aceitação do valor material de leis que regulem direitos fundamentais editadas durante o autoritarismo. Ademais, em se tratando da promoção e garantia de direitos fundamentais, há de se reconhecer uma contradição interna na adoção de uma ordem constitucional arbitrária como parâmetro de controle de constitucionalidade. A falta de legitimidade do ordenamento positivo chamado de constitucional por um regime de exce  

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ção impõe ao jurista o dever de se socorrer do ordenamento do Estado de Direito antecedente. Essa regra deve ser aplicada, inclusive, para normas penais editadas pelo regime autoritário que protegem deficientemente direitos fundamentais violados pelos seus agentes, ou que estabelecem penas excessivas para delitos de opinião, resistência política ou outras manifestações da liberdade. Ou seja, para o uso abusivo e desproporcional (excessivo ou deficitário, positivo ou negativo) do direito penal, como medida de repressão indevida ou favorecimento irrazoável. Isso significa que a discussão sobre a validade de normas relacionadas direta ou indiretamente com o exercício de direitos e garantias fundamentais deve ser feita à luz de uma ordem constitucional de um Estado democrático de direito. O parâmetro deve ser o direito constitucional anterior ao período de exceção, especialmente se retomado na ordem jurídica subsequente ao arbítrio. Portanto, o intérprete constitucional não pode adotar como critério de valor para aferição da validade material de uma norma infralegal de direitos fundamentais o ordenamento constitucional outorgado pelos ditadores, inclusive em matéria penal. Ele deve buscar na Constituição anterior o parâmetro de avaliação, respeitando – obviamente – outros princípios e regras de direitos fundamentais. Portanto, no que diz respeito à anistia outorgada em 1979, sua aceitação após a restauração do regime democrático (1988) pressupõe um exame da sua constitucionalidade originária. Podia o Estado brasileiro editar em 1979, à luz dos princípios constitucionais de um Estado democrático de direito, uma lei que garantia a impunidade a autores de crimes contra a humanidade? Ressalto que não se poderia aceitar um juízo de constitucionalidade da Lei de Anistia apenas em relação à ordem constitucional posterior ao regime autoritário. As normas relativas ao direito penal não podem ser interpretadas indiscriminadamente com base em  

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ordem constitucional superveniente. Um parâmetro de constitucionalidade ulterior não pode agravar situações de responsabilização criminal, salvo quando a norma legal já padecia – à luz do direito supralegal então vigente – de vícios originários de validade. O princípio da irretroatividade da lei mais gravosa obriga que o parâmetro seja o núcleo material constitucional anterior ao golpe de Estado que deu origem ao regime de exceção.

5. Inconstitucionalidade da Lei de Anistia A pauta axiológica de uma Constituição de um Estado Democrático de Direito aponta para a impossibilidade de serem criados ou mantidos obstáculos normativos ou materiais para a investigação e responsabilização de graves crimes atentatórios aos direitos humanos. O primeiro elemento constitucional a invalidar qualquer pretensão de considerar anistiáveis atos de tortura ou outras graves violações aos direitos humanos reside no princípio da dignidade da pessoa humana. A razão existencial do Estado é, antes de tudo, a promoção dos direitos fundamentais dos seus cidadãos. Ainda que muitas vezes seja discutida a existência de um rol mínimo desses direitos fundamentais ou humanos, está acima de qualquer outra cogitação a certeza de que a proteção da dignidade da pessoa humana paira sobranceira em qualquer Estado de Direito democrático. Reportamo-nos ao que diz CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO: "Será difícil encontrar algo mais agressivo à dignidade da pessoa humana e à cidadania e, pois, mais agressivo a dois dos fundamentos da República, do que a tortura. (...) Eis, pois, que não pode padecer a mais remota, a mais insignificante dúvida de

 

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que a tortura representa a antítese dos valores básicos que a Constituição Brasileira professa enfaticamente. Donde, prestigiar a impunidade de torturadores é uma contradição radical e óbvia aos princípios essenciais do Estado Brasileiro". (2009, p. 135-136)

O reconhecimento da anistia aos crimes dos agentes da repressão é também incompatível com os princípios republicano e do Estado de Direito. Esses preceitos – umbilicalmente imbricados e caracterizadores do Estado brasileiro desde ao menos 193410 – trazem como corolários o compromisso do Estado com o império da Lei, a responsabilidade dos agentes públicos pelos atos que praticam e a impessoalidade na gestão dos interesses públicos. Manter imunes à lei penal os autores estatais de graves violações aos direitos humanos fere a autoridade do Estado de Direito, pois indica à sociedade que o Poder Público pode violar a integridade física e moral de seus cidadãos, persegui-los, sequestrá-los e matálos. Não se trata aqui de mero exercício de enquadramento dos crimes à norma abstrata da lei, mas sim, de admitir a possibilidade do legislador ordinário afrontar o conteúdo material (os valores) do conjunto normativo do País, o qual é vinculado à promoção dos direitos fundamentais e ao respeito do cidadão. Lembre-se que o Estado detém o monopólio do uso da violência, vinculado à promoção da segurança pública. O emprego 10

Em 1934 teve início a república nova, com a edição de uma Constituição. Todavia, desde 1891 encontramos em todos os textos constitucionais (mesmos os ditatoriais e outorgados) a previsão do Brasil como um república e um Estado de Direito. Ou seja, ainda que formalmente, todas as leis fundamentais do período republicano reafirmaram esses princípios como valores essenciais, inclusive aquelas outorgadas por governos que não praticavam tais valores (constituições de 1937, 1967 e 1969). Vide CF/88: arts. 1º, caput e parágrafo único, 5º, XXXIII; EC 1/69: art. 1º, caput e parágrafo único; CF/46: art. 1º; CF/37, art. 1º; CF/34, art. 1º e CF/1891, art. 1º.

 

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ilegítimo e desvirtuado desse poder estatal não recebe acolhida no Estado de Direito. A concessão de anistia "para os que se encontram fora do poder é ato compreensível, já que se trata de indulgência penal, por parte do Estado, aos que se encontram agindo fora dos limites da legalidade. No entanto, o Estado não pode ser indulgente, com o escopo de promover a paz social, na mesma proporção, com os que detém o poder", aponta MARCUS ORIONE CORREIA. "A razão é óbvia: fazê-lo implicaria a admissão da violência por aquele que, originariamente, é posto à disposição de seu combate e da manutenção da ordem existente. A única violência admitida ao agente estatal é aquela juridicamente autorizada – já que, ao suprimir parte da vontade privada, o direito em si representa uma limitação ao agir individual. A violência permitida ao Estado é decorrente do Direito" (2009, p. 144). Nem mesmo a alegação de prática do terrorismo pelos dissidentes do regime poderia dar suporte às condutas de torturar, sequestrar e assassinar esses militantes ou quaisquer outros suspeitos. Os agentes da segurança pública estão sempre adstritos à lei e esta – nem mesmo durante o regime de exceção – previu o uso dessas práticas. O já mencionado § 34, do artigo 153, da carta outorgada de 1969 (anterior artigo 150 da carta de 1967) era taxativo ao determinar que "[i]mpõese a tôdas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário". O Estado de Direito é quem fornece os instrumentos para o combate à criminalidade. Fora desses limites, é o agente público quem envereda pelo caminho do crime, praticando a violência arbitrária. Por outro lado, admitir uma lei de autoperdão – outorgada pelo Estado autoritário em favor de seus agentes – é desconsiderar a essência do princípio republicano, que repousa sobre a responsabilidade dos administradores públicos pelos seus atos e pelo dever de impessoalidade.  

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As autoanistias são artifícios de impunidade, mediante os quais os perpetradores de violações aos direitos humanos se concedem imunidade penal pelos atos que cometeram. Ora, é evidente que ao próprio regime que pratica – ou praticava – a violação não cabe a iniciativa de se autoperdoar. Essa conduta atenta contra os prefalados princípios da responsabilidade e da impessoalidade, pois implicaria admitir que o Estado pode conferir a seus servidores um regime de proteção e impunidade, em razão da defesa pessoal que fizeram do governo e de seus ideais. Estar-se-ia adotando parâmetros de um regime absolutista, com a irresponsabilidade dos agentes públicos e a confusão dos interesses estatais com os pessoais. Ainda que o Estado autoritário tenha perdoado alguns delitos dos opositores políticos, isso não o investia de competência para conceder igual benefício aos seus agentes. As situações jurídicas e o desvalor constitucional das condutas de uns e de outros são flagrantemente distintos. O Poder Público em um Estado de Direito não detinha e não detém autorização constitucional para se autoanistiar. Oportuno lembrar que a Lei nº 6.683/79 não é fruto de um debate ou acordo democrático. Não se pode afirmar que foi fruto de um pacto político democrático. Essa linha de argumentação não sobrevive à constatação de que inexistia correlação de forças no processo legislativo, tampouco liberdade política e civil para a formação de um debate legítimo e um acordo de vontades. Nem mesmo a livre manifestação do pensamento e a circulação de ideias era tolerada. Embora o início do processo de anistia tenha sido fruto de pressão popular – capitaneado sobretudo pelas mulheres e familiares de perseguidos políticos –, é indiscutível que Lei de Anistia foi um “produto” unilateral e exclusivo do governo militar. A sociedade não tinha voz nem voto. Para as vítimas e a sociedade civil, em virtude da grave situação das famílias que tinham parentes  

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exilados, banidos ou presos, não havia alternativa senão o acolhimento do concomitante perdão aos carrascos da repressão. Sem poder repudiar a autoanistia, a sociedade civil garantiu uma anistia parcial aos perseguidos políticos. Era “pegar ou largar”. Ou se aderia à chantagem estatal ou se manteria a situação de profunda injustiça com os perseguidos políticos. Não havia escolha. Sem a concessão do benefício aos agentes do Estado não haveria anistia alguma para os presos e perseguidos políticos. À oposição e à sociedade civil coube apenas aceitar (ainda que sob protestos) essa cláusula, como condição inicial para livrar da prisão e do exílio milhares de brasileiros. Não é legítimo, pois, alegar a existência de um acordo, quando sabidamente o que houve foi uma imposição por parte dos detentores do poder estatal de que qualquer Lei de Anistia deveria garantir proteção aos agentes do Estado. Também é incompreensível a tese de constitucionalização da anistia, pela Emenda Constitucional que convocou a Assembleia Nacional Constituinte em 1985. Primeiro, porque essa emenda não reproduziu integralmente a lei de 1979. Há diferenças substanciais. A emenda constitucional de 1985 não repetiu a fórmula de previsão de uma conexão sui generis, ou seja, de que qualquer crime praticado com motivação política seria conexo a crime político, constante do § 1º, do artigo 1º, da Lei de 1979. Não há como omitir que toda a tese da bilateralidade está fundada na dicção semântica e sintática desse preceito, o qual, de forma confusa, afirma que "[c]onsideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política." Desse preceito tirou o STF a norma legal que instituiria anistia a cri-

 

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mes comuns "[i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política."11 Em outras palavras, a interpretação em favor dos agentes repressores parte da premissa de que a Lei nº 6.683/79 trouxe duas normas anistiantes. No caput do artigo 1º encontra-se o benefício em favor dos autores de crimes políticos e conexos, no seu conceito tradicional do direito processual penal. Ou seja, a norma decorrente alcançaria exclusivamente aqueles que agiram em face do Estado ou praticaram delitos relacionados com a motivação de atacar o Poder Público. Foi necessária a edição do preceito específico do § 1º para ampliar o conceito de conexão, criando conteúdo sui generis desse instituto, para abarcar os agentes do Estado que praticaram crimes na repressão à dissidência. Temos, pois, dois preceitos (caput e § 1º) e duas normas (anistia a crimes políticos e conexos em sentido estrito, de um lado, e anistia a crimes comuns com conexão sui generis, de outro), respectivamente relacionados. Ora, o artigo 4º, § 1º, da Emenda Constitucional nº 26/85 reproduziu apenas o comando do caput do artigo 1º da Lei de 1979, pois estipula que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos,...". Não há uma única referência à definição ampliativa de conexão ventilada em 1979 no mencionado § 1º (crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados com motivação política) e, nem mesmo, alusão à Lei nº 6.683/79. Assim, longe de se poder presumir que houve a constitucionalização integral das duas normas anistiantes de 1979, o que se depreende é a previsão na Emenda Constitucional tão somente da norma favorável aos autores de crimes políticos e conexos stricto sensu. O silêncio do legislador da Emenda Constitucional nº 26 nos parece eloquente quanto ao objetivo de absorver a 11

 

Voto do relator, Min. Eros Grau, p. 25, item 26.

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anistia aos delitos políticos e excluir os praticados fora desse âmbito. Nem mesmo a tese de que a interpretação da anistia de 1979 deve ser feita sem apego ao texto normativo (item 28 do voto do Relator)12, mas sim com ênfase no momento histórico, aproveita ao argumento da constitucionalização. Isso porque o "momento histórico" em 1985 era, evidentemente, distinto daquele de 1979. A ditadura militar havia terminado e, embora de modo frágil, havia se iniciado a "nova república". Assim, a interpretação do texto normativo da EC 26/85 deve ser feita – se adotarmos com coerência a visão do próprio Ministro Relator – sob os valores do novo "momento histórico" de 1985, ou seja, sob os parâmetros de reinstituição de um Estado Democrático de Direito, o qual – como será visto – é incompatível com a impunidade de violações aos direitos humanos. Não se pode simplesmente presumir que a Emenda Constitucional nº 26/85 reproduziu na sua inteireza as normas e a interpretação da anistia de 1979. Não há nada no texto normativo que permita essa leitura. Ao contrário, a absorção de apenas um dos preceitos do artigo 1º da Lei nº 6.683 e o contexto de edição dessa Emenda levam a interpretação diametralmente oposta. Em segundo lugar, o argumento nos soa frágil por dar valor a uma Emenda Constitucional também oriunda de um Poder Legislativo ilegítimo e de uma ordem jurídica autoritária. Terceiro, porque a Emenda Constitucional convocatória da Assembleia Nacional Constituinte foi revogada com o próprio advento da nova Constituição, em 1988, ou "provavelmente mesmo antes, quando a 12 Esse argumento, usado pelo Supremo Tribunal Federal, contraria o princípio de hermenêutica no sentido de que a interpretação das normas jurídicas deve ser realizada a partir do texto legal, e não da intenção subjetiva do legislador.

 

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Constituinte definiu seus rumos em sentido parcialmente divergente e autônomo" em relação aos limites impostos na ordem jurídica anterior (ROTHENBURG, 2012, p. 350). A nova Constituição "representou uma autêntica ruptura do ponto de vista jurídico, seu processo de elaboração tendo-se desvinculado do ato convocatório", não sendo possível considerar que o ato convocatório implicitamente se insere no corpo do novo texto constitucional. No exercício do poder constituinte originário, o produto (Constituição) não é subordinado à ordem constitucional anterior, mesmo quando esta foi a sua origem formal (ato convocatório da Assembleia Constituinte). A interpretação de que a Constituição de 1988 obrigatoriamente incorporou a anistia de 1979 (ou de 1985), por força do seu ato convocatório, navega em sentido oposto à compreensão de que uma das principais limitações à Assembleia Constituinte advém da obrigação de respeito aos direitos fundamentais (TAVARES, 2002, p. 37, 41-42), verdadeiro pilar do conceito material de Constituição. No caso, a tese do Supremo Tribunal Federal advoga que o poder constituinte originário estaria vinculado ao valor oposto, ou seja, a impunidade de graves violações aos direitos humanos. Evidente, pois, que não se sustenta.

6. Anistia e prescrição diante do direito internacional Também o direito internacional impedia o Estado brasileiro de conceder anistia a graves violações de direitos humanos. O Brasil, ao menos desde a promulgação das Convenções de Haia, em 1907 (ratificadas em 1914), e especialmente com a subscrição da Carta de São Francisco (1945) de constituição das Nações Unidas, assumiu na comunidade internacional o papel de corresponsável pela promoção dos direitos humanos.  

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O País participou da promulgação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ambas de 1948, as quais consagraram os princípios do direito à vida, ao devido processo legal e de não ser submetido a tortura, tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante (Declaração Americana, artigos I, XXV e XXVI; Declaração Universal, artigos III e V). E, mais recentemente, ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Brasil está vinculado a essa ordem internacional de proteção aos direitos humanos por força de decisão de sua própria Constituição, que determina a prevalência desses interesses em suas relações internacionais (art. 4º, II). Esse preceito é reforçado pelas normas ampliativas do rol de direitos fundamentais constantes dos §§ 2º a 4º do artigo 5º. Nesse contexto de vinculação constitucional ao direito internacional dos direitos humanos, o Estado brasileiro está jungido à norma que lhe impõe a responsabilização de graves violações aos direitos da pessoa humana. A comunidade internacional – com a participação do Brasil – firmou desde o Tribunal de Nüremberg (1945), cujos princípios foram ratificados na primeira sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas (Resolução nº 95, 194613), que em relação a crimes de guerra, contra a paz e contra a humanidade, a promoção da persecução penal é um imperativo inafastável. 13

Resolução nº 95 (I), 55ª reunião plenária de 11 de dezembro de 1946. Disponível em: .

 

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Há, portanto, preceito de jus cogens (norma internacional imperativa), geradora de uma obrigação erga omnes internacional, que retira da alçada do Estado o perdão de crimes contra a humanidade, caracterizados pela prática de atos desumanos, como o homicídio, a tortura, as execuções sumárias, extralegais ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados, cometidos em um contexto de ataque generalizado e sistemático contra uma população civil, em tempo de guerra ou de paz.14 Assim, em decorrência das obrigações internacionais do Estado brasileiro, não poderia o direito interno veicular norma garantidora de anistia a esses delitos. Quando membros das Forças Armadas e da polícia no Brasil praticavam, nos anos sessenta e setenta, o sequestro, a tortura, o homicídio e a ocultação de cadáveres, dentro de um padrão de perseguição a qualquer suspeita de dissidência política, cometiam delitos reputados – já então – como crimes contra a humanidade, independentemente do contexto de uma guerra. É particularmente importante que não se tenha dúvidas quanto à existência de um regime jurídico específico sobre crimes contra a humanidade, vigente antes da perpetração por agentes do governo brasileiro dos graves crimes aqui tratados. A antijuridicidade da conduta de matar e torturar em larga escala era evidente a qualquer um, mormente após

14

Cf. Caso “Almonacid Arellano y otros Vs. Chile”. “Excepciones Preliminares, Fondo Reparaciones y Costas”. Sentença de 26 de setembro de 2006. Série C, nº 154. Par. 96. Disponível em: .

 

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os horrores da Segunda Guerra Mundial e a condenação internacional dos responsáveis15. Ressalte-se que não há a necessidade de consumação de um genocídio. É suficiente que se verifique a prática de apenas um ato ilícito no contexto da perseguição ampla para que consume um crime contra a humanidade: “um só ato cometido por um agente no contexto de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil traz consigo responsabilidade penal e individual, e o agente não necessita cometer numerosas ofensas para ser considerado responsável.”, fixou o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia.16 É norma internacional cogente a punição dos autores de crimes contra a humanidade. Trata-se de um princípio de respeito obrigatório por todos os países por força do costume internacional. Esse preceito afasta qualquer possibilidade de, por ato interno, o País conceder anistia aos autores desses delitos. Embora as normas que tratam do conceito e regime jurídico dos crimes contra a humanidade fos15 Outros Estatutos recentes confirmaram o conceito do crime contra a humanidade: Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a Iugoslávia, artigo 5, e do Tribunal Penal para Ruanda, artigo 3 e, especialmente, o artigo 7 do Estatuto de Roma (17 de julho de 1998), que criou o Tribunal Penal Internacional – ratificado e promulgado pelo Brasil em 2002 (Decreto nº 4388, de 25 de setembro de 2002). 16 Tradução livre do texto. Cf. Caso “Prosecutor v. Dusko Tadic”. IT94-1-T. “Opinion and Judgement”. 7 de maio de 1997. Par. 649. Disponível em: . Acesso em 25 set. 2007. Igual entendimento foi posteriormente firmado pelo Tribunal em “Prosecutor v. Kupreskic”. IT-95-16-T. “Judgement”. 14 de Janeiro de 2000. Pár. 550, Disponível em: ; e “Prosecutor v. Kordic and Cerkez” 9. IT-95-14/2-T. “Judgement”. 26 de fevereiro de 2001. Par. 178. Disponível em: .

 

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sem costumeiras nos anos sessenta e setenta, elas devem ser, nos termos constitucionais, aplicadas internamente, em conjunto com o direito legislado brasileiro. O costume é “a mais antiga e original fonte do direito internacional” (STEINER; ALSTON, 2000, p. 69). A própria Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, em seu artigo 38, reconhece que regras de um tratado podem obrigar Estados não firmatários da avença quando for “regra consuetudinária de Direito Internacional, reconhecida como tal”17. E mais, que nem mesmo um tratado pode derrogar norma consuetudinária imperativa (jus cogens consuetudinário), conforme seu artigo 53. Portanto, as normas do direito internacional costumeiro relativas ao crime contra a humanidade obrigam o Estado brasileiro e interagem com as normas domésticas de direito penal. O Brasil, por força de seus compromissos internacionais e da admissão constitucional da prevalência dos direitos humanos, não pode anistiar seus agentes públicos que perpetraram crimes de lesa humanidade. O mesmo ocorre em relação à prescrição. O direito internacional determina que graves violações aos direitos humanos e crimes contra a humanidade são imprescritíveis. Essa norma do jus cogens precisa ser aplicada em conjunto com o direito penal interno, para afastar a contagem do prazo de prescrição nos crimes que recebem essa qualificação. Essa conjugação do direito internacional com o direito penal interno não afeta garantias penais, 17

Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 26 de maio de 1969. Disponível em: .

 

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pois respeita tanto a tipificação legal específica dos crimes pelo Código Penal, como também o princípio da irretroatividade, na medida em que são princípios em vigor desde meados dos anos quarenta. A proibição da prescrição é norma de extrema importância para a justiça transicional. Isso porque o tempo de aplicar o direito em face de violações aos direitos humanos perpetrados pelo Estado não é o mesmo dos crimes ordinários. A responsabilização dessas autoridades estatais demanda prévias alterações políticas, administrativas e legislativas no Estado em transição. Tome-se como exemplo o caso brasileiro. A ditadura demorou 21 anos, prazo – por si só – superior ao maior lapso de prescrição fixado no Código Penal. Ademais, a saída dos militares do poder, no processo lento e gradual acima mencionado, foi realizada com a garantia da impunidade. Assim, foram necessários mais 20 anos após a edição da Constituição para que se reconhecessem condições políticas para esse debate. O fato de se sobreporem no Estado a titularidade da ação penal e a autoria dos crimes é suficiente para demonstrar a impossibilidade de se admitir a prescrição penal, nos moldes ordinários, dada a sua contrariedade interna. A prescrição penal é o direito ao esquecimento em face da atividade persecutória ou punitiva do Estado. Não é para operar a seu favor. Esse, aliás, um dos grandes méritos das Nações Unidas ao formalizar os princípios do Tribunal de Nüremberg, fixando que os crimes contra a humanidade são, ontologicamente, imprescritíveis.

 

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7. Anistia como direito extremamente injusto Como afirmado, a promoção da impunidade – via anistia – a graves violações aos direitos humanos, tanto quanto a própria promoção da violação, são incompatíveis com princípios estruturantes de um Estado republicano e democrático de direito. Por esse motivo, uma lei que estipule tal benefício deve ser reputada inválida, pois materialmente inconstitucional. Somente uma visão estritamente positivista e acrítica do direito poderia lhe reconhecer validade. A proposta de aceitação cega de uma norma apenas por estar positivada legalmente nos remete, nesse particular, ao juízo elaborado por GUSTAV RADBRUCH, conhecido como Fórmula de Radbruch, que impõe um limite axiológico para o direito positivo: "El conflicto entre la justicia y la seguridad jurídica podría solucionarse bien en el sentido de que el derecho positivo estatuido y asegurado por el poder tiene preeminencia aun cuando por su contenido sea injusto e inconveniente, bien en el de que el conflicto de la ley positiva con la justicia alcance una medida tan insorpotable que la ley, como derecho injusto, deba ceder su lugar a la justicia. Es imposible trazar una línea más exacta entre los casos de arbitrariedad legal y de las leyes válidas aún a pesar de su contenido injusto. Empero se puede efectuar otra delimitación con toda exactitud: donde ni siquiera una vez se pretende alcanzar la justicia, donde la igualdad que constituye la médula de la justicia es negada claramente por el derecho positivo, allí la ley no solamente es derecho injusto sino que carece más bien de toda naturaleza jurídica." (1962, p. 37-38)

RADBRUCH reconhece a primazia do direito positivo. Porém, essa prevalência não é absoluta, devendo a lei escrita ceder diante do valor da justiça, quando for insuportável a contrariedade entre ambos.  

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Nesse caso, a lei seria um caso de direito injusto e, portanto, inválido. Assim, a Fórmula de Radbruch afirma que se for insuportável uma medida legal em face do conceito de justiça, essa seria inválida. Ou, como bem refere ROBERT ALEXY (2000, p. 204-205), define que "direito extremamente injusto não é direito". "La Fórmula de Radbruch es expresión de un concepto no positivista del derecho. Según este concepto, lo que sea el derecho viene determinado no sólo por la positividad válida y formalmente establecida y por la eficacia social, sino también por su contenido [de justicia material]. Lo que tiene de especial la Fórmula de Radbruch es que postula una conexión necesaria entre derecho y moral, pero sin pretender un solapamiento total entre ambos. Así, por razones de seguridad jurídica, el derecho positivizado y eficaz no deja de ser derecho aunque tenga contenidos desproporcionados o injustos. La Fórmula introduce únicamente un límite excepcional en el [concepto de] derecho."

Curioso notar que RADBRUCH em seus escritos anteriores ao nazismo defendia a segurança jurídica (principal virtude do direito positivo) como valor superior em qualquer hipótese, quanto cotejado com o conceito de justiça (1959, p. 11018, apud VIGO, 2006, p. 9). Todavia, após os terrores impostos pelo nacionalsocialismo à população alemã e mundial, RADBRUCH percebeu a insuficiência da visão absolutista do direito positivo para fazer face ao autoritarismo e ao arbítrio. Retomando, pois, o conceito de KANT sobre a ideia de humanidade (VIGO, 2006, p. 12) – o professor germânico adota uma postura de presunção da validade da norma positiva, como meio de garantir a segurança jurídica, a qual – todavia – deve ceder se insuporta18 RADBRUCH, Gustav. Filosofia del Derecho, Madrid: Ed. Revista de Derecho Privado, 1959.

 

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velmente conflitante com o direito supralegal relativo à dignidade humana e os valores democráticos perenes. Como aponta LUIS ROBERTO VIGO: "Entonces para saber si estamos o no frente al derecho no bastan las respuestas iuspositivistas que lo identifiquen a través de criterios estructurales o formales, sino que hay que somertelo a un test de contenido dado 'que hay leyes que no son Derecho y hay Derecho por encima de las leyes'. Precisamente, Radbruch se encargó de pone en práctica esta teoría del 'derecho supralegal' analizando distintos casos jurídicos acaecidos durante la vigencia del derecho nazi y con posterioridad al mismo, para llegar a la conclusión de que 'carecen asimismo de juridicidad todas esas leyes que aplicaban un trato infrahumano o les negaban los derechos humanos a ciertos hombres'." (2006, p.13)

A Fórmula de Radbruch não é dependente do jusnaturalismo. O direito constitucional material democrático e outras fontes supralegais, tal como o direito internacional, fornecem parâmetros suficientes para se chegar à conclusão do extremo grau de injustiça de normas, especialmente no campo da proteção dos direitos humanos. Aplicar a Fórmula de Radbruch não implica um compromisso com o direito natural, mas sim a aceitação de normas consagradas pela humanidade, e pela própria nação brasileira, que devem ser adotadas como parâmetro de validade de quaisquer leis. A identificação de um direito “extremamente injusto” é possível com o confronto da norma legal e os princípios gerais do direito constitucional democrático moderno e os princípios do direito internacional. Na matéria sob exame neste artigo, percebe-se a absoluta incompatibilidade entre o estímulo e a tolerância à prática reiterada da violação de direitos humanos (presentes numa lei de anistia que protege os autores desses atos) com o conceito de democracia,  

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república e Estado de Direito (rule of Law), bem como o jus cogens do direito internacional. Ao afirmarmos que uma autoanista a delitos como tortura, desaparecimento forçado, execução sumária e estupro é inconciliável com o princípio republicano e com a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, assim como atentatória ao conceito de direito democrático, nada mais fazemos do que reconhecer que a lei de anistia instituiu um direito extremamente injusto, não em face de preceitos do direito natural, mas sim da pauta axiológica constitucional e internacional de direitos humanos. Desde as Convenções de Genebra, passando pelo Estatuto do Tribunal de Nüremberg, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, até as Constituições brasileiras de 1934 e 1946, é fácil identificar que antes da edição da Lei nº 6.683/79 havia um conjunto de normas e valores jurídicos incompatíveis com aqueles atos violentos e com quaisquer atos estatais (materiais ou legislativos) que estimulassem, tolerassem ou protegessem tais condutas. Essa discussão, aliás, norteou os precedentes do Poder Judiciário alemão relativamente ao sancionamento penal dos sentinelas do muro de Berlim, da antiga República Democrática da Alemanha (RDA), que no exercício de suas funções atiraram – e mataram – cidadãos que fugiam da RDA para a República Federal da Alemanha (RFA). O Tribunal Supremo Federal (pós reunificação) afirmou a punibilidade dos guardas de fronteira e também de seus comandantes pelos homicídios cometidos, ainda que o direito interno positivo da RDA fosse compatível com esses atos. O Tribunal Supremo Federal alemão afastou a justificativa outorgada na lei da RDA (autorização para os sentinelas da fronteira atirarem e eventualmente matar fugitivos) por reputá-la incompatível com um direito supralegal, nos termos da Fórmula de Radbruch.  

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As decisões do Tribunal Supremo Federal – e a aplicação da Fórmula de Radbruch – foram confirmadas pelo Tribunal Constitucional Federal, no exato sentido que ora defendemos, ou seja, de que a definição de um direito extremamente injusto – e inválido – não demanda recurso ao direito natural, mas sim princípios gerais e o direito internacional. Afirmou a Corte germânica: "La relación entre los así vinculados criterios de la fórmula de Radbruch y de los derechos humanos protegidos por el Derecho de Gentes ha sido precisada por la Corte Suprema Federal en el sentido de que a los criterios de la fórmula de Radbruch, difíciles de operar a causa de su indeterminación, se les habrían añadido pautas de evaluación más concretas, dado que los pactos internacionales sobre derechos humanos ofrecerían puntos de apoyo para ello, cuando un Estado lesiona derechos humanos según la convicción de la comunidad jurídica universal. Esta valoración se ajusta a la Ley Fundamental."19

De enfatizar que o Tribunal Constitucional Federal alemão acrescentou que a aplicação dessa interpretação, e o decorrente afastamento das normas legais da RDA que excluíam a culpabilidade nesses casos, não atentava contra a regra da irretroatividade, pois o "direito extremamente injusto" editado num estado autoritário (ou seja, à margem dos princípios democráticos, de divisão de poderes e de promoção dos direitos fundamentais) não está sob essa proteção [da irretroatividade]. Conforme expõe ALEXY (2000, p. 213), o Tribunal Constitucional entendeu que:

19 Decisão disponível em VIGO, Rodolfo Luis, La Injusticia Extrema no es Derecho. Buenos Aires: Facultad de Derecho UBA – La Ley, 2006, p. 73-99.

 

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"'la protección estricta de la confianza mediante el 103.2 de la Ley Fundamental [o qual veicula o princípio da irretroatividade da lei penal gravosa] debe inaplicarse' cuando, en primer lugar, ni la democracia ni la división de poderes ni los derechos fundamentales sean respetados (verwicklicht) y, en segundo lugar, cuando bajo esta circunstancias se prevean causas de justificación que amparen derecho extremadamente injusto, sin olvidar el hecho de que el Estado 'incite, por encima de las normas escritas, a un derecho injusto semejante, favoreciéndolo',…".20

No caso brasileiro, a solução é ainda mais simples. Não se trata de argumentar que os atos de graves violações aos direitos humanos encontravam causas de justificação (autorização para agir contrariamente à lei). Está acima de dúvidas de que esses atos eram criminosos (típicos21) e que os autores agiram com dolo e culpabilidade, ainda que a motivação fosse a defesa do Estado. Eles atuaram à margem do próprio regime jurídico autoritário (nem mesmo a tortura era admitida no regime jurídico formal), ainda que implementando diretrizes do alto escalão governamental. O que se discute é uma lei posterior aos fatos e que os torna impunes, mediante a concessão de anistia. Uma norma que subverte a obrigação estatal de punir diante da constatação de crimes gravíssimos, concedida em benefício próprio pelos detentores do poder. Assim, diferentemente da Alemanha, onde a matéria passava pela discussão da validade de uma lei anterior aos fatos que previa uma justificadora para a conduta (descaracterizando a ocorrência do crime), no caso brasileiro estamos discutindo o valor jurídico de 20 21

Para conferir o texto original: VIGO, 2006, p. 93.

Lembramos que o crime de tortura não era tipificado à época no Brasil. Todavia, é possível a persecução penal pelo crime de lesões corporais ou, quando o caso, dos crimes contra a liberdade sexual.

 

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uma norma posterior ao fato, que isentou de punibilidade o que antes era punível. A aplicação de critérios de (in)constitucionalidade originária elimina a necessidade de reflexões sobre uma suposta alteração retroativa do direito por via interpretativa. Ainda que todos os requisitos invocados pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha para afastar a regra da irretroatividade estejam presentes no caso da lei de anistia brasileira (lei extremamente injusta, violadora de direitos fundamentais, antidemocrática e emanada de um regime autoritário) parece-nos que a devida leitura da validade inicial dessa norma de extinção da punibilidade (ainda que realizada mais de 30 anos após a sua edição) é causa suficiente para reconhecer a invalidade da interpretação favorável aos perpetradores de violações aos direitos humanos. Podemos, então, concluir que a norma contida na Lei nº 6.683/79 que outorgaria anistia aos autores de graves violações aos direitos humanos é um direito positivo extremamente injusto e sua manutenção formal no sistema jurídico brasileiro é insuportável, não sobrevivendo aos critérios da Fórmula de Radbruch, quando aplicada com os parâmetros do direito constitucional republicano e democrático brasileiro antecedente ao arbítrio, bem como aos princípios do direito internacional dos direitos humanos.

8. Vedação à proteção insuficiente A anistia a graves violações de direitos fundamentais não resiste, finalmente, ao crivo da proporcionalidade. O Estado, na produção normativa penal, está vinculado a critérios de proporção que o impedem de instituir punição excessiva ou proteção insuficiente. A atividade legislativa está adstrita a estabelecer punições justas e proporcionais aos autores de delitos. As  

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sim, não pode a lei ser excessiva na sanção e, tampouco, insuficiente. "A proporcionalidade da atuação estatal na defesa de direitos fundamentais deve ser sindicada não apenas para evitar medidas gravosas e evitáveis – a proibição do excesso, Übermassverbot – mas, também, no sentido de proibir a proteção subdimensionada ou insuficiente, Untermassverbot", adverte LUIZ CARLOS GONÇALVES (2007, p. 57). Essa construção doutrinária ganhou relevo com sua aplicação também pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, sobretudo quando julgou a validade de leis sobre o aborto22 e considerou que normas excessivamente favoráveis à liberdade de interrupção da gravidez acarretariam uma proteção insuficiente (Untermassverboten) em relação ao direito à vida. Como refere LENIO LUIS STRECK, "Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental (nas suas diversas dimensões), como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como consequência a sensível diminuição da discricionarie-

22 Caso Aborto II. Vide MARTINS, Leonardo (Org.). Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. SCHWABE, Jürgen (Coletânea original); Berlim: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 273.

 

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dade (liberdade de conformação) do legislador." (2007).

De fato, o direito penal está a serviço da sociedade e, dentre seus vários objetivos, destacam-se a prevenção geral e a retribuição individual. Especialmente o campo dos direitos fundamentais é carente da proteção penal, não só pela insuficiência dos demais mecanismos sancionatórios disponíveis no direito civil e administrativo, como também pela percepção de que a linguagem da impunidade é um dos grandes estímulos à perpetração desses atos. Não por menos as Nações Unidas reconhecem uma obrigação de punir os autores de crimes contra a humanidade e de guerra, conforme a Resolução nº 3074, de 1973 (“Princípios de Cooperação Internacional na Identificação, Detenção, Extradição e Castigo por Crimes de Guerra ou Crimes de Lesa-Humanidade”): "8. Os Estados não adotarão disposições legislativas nem tomarão medidas de outra espécie que possam menosprezar as obrigações internacionais que tenham acordado no tocante à identificação, à prisão, à extradição e ao castigo dos culpáveis de crimes de guerra ou de crimes contra a humanidade."23

Nesse contexto, a inserção na legislação penal de comandos que provocam a desproteção de bens jurídicos está condenada pelo vício da inconstitucionalidade por desproporção, ou vedação à proteção insuficiente. Sejam normas de supressão de tipos penais, de abrandamento excessivo de penas ou instituidoras de causas de extinção da punibilidade.

23 Tradução livre do texto. Disponível em: . Acesso em 25 de set. 2007.

 

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O Supremo Tribunal Federal brasileiro já aplicou esse princípio em 2006, quando afastou a possibilidade de se aceitar a extinção da punibilidade de um crime de estupro de uma criança de nove anos de idade pelo posterior casamento da vítima e seu algoz.24 Naquela ocasião, apontou o Min. Gilmar Mendes: "De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de norma penal benéfica, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico. Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental."

É exatamente esse o fenômeno que provoca a anistia a crimes contra os direitos humanos. A norma penal anistiante acarreta uma desproteção de direitos fundamentais, os quais estavam, anteriormente, protegidos. E, como adverte LUIZ GONÇALVES: "A existência de norma penal criminalizadora, fundada em obrigação constitucional tácita funciona como óbice à eventual descriminalização ou redução da esfera de proteção, em nome da proibi24 RE 418.376-5/MS, Rel. para o acórdão Min. Joaquim Barbosa. Pleno, maioria, j. 9/2/2006, DJ 23/3/2007.

 

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ção de retrocesso. Uma vez assegurada a proteção penal, sua supressão ou redução poderão implicar em desproporcionalidade." (2007, p. 138)

Assim, a lei de anistia é uma causa de indisfarçável retrocesso na proteção das vítimas e da sociedade relativamente à pauta de direitos fundamentais, o que encontra barreira no princípio da proporcionalidade, na sua vertente da vedação à proteção insuficiente. Há, portanto, mais essa óbice à sua admissão num sistema jurídico democrático.

9. A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos O último aspecto a ser analisado refere-se aos efeitos da condenação que o Brasil sofreu em 2010 na Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, no caso Gomes Lund, e a divergência de enfoques entre essa Corte e o Supremo Tribunal Federal no que se refere à validade da anistia aos perpetradores de graves violações aos direitos humanos25. Com efeito, é indispensável, antes de tudo, compreender que a adesão à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o reconhecimento da jurisdi25

Esse tema é objeto de análise detida em CARVALHO RAMOS, André de. Crimes da ditadura militar: a ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. E também WEICHERT, Marlon Alberto. A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a obrigação de instituir uma Comissão da Verdade. Ambos in GOMES, Luiz Flavio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Org.). Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. E, ainda, ROTHENBURG, Walter Claudius. Controle de constitucionalidade e controle de convencionalidade: o caso brasileiro da Lei de Anistia. In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (Coord.). Direito constitucional e internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 333359.

 

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ção obrigatória da CIDH foram atos soberanos e voluntários do Estado brasileiro. Portanto, foi o Brasil, por suas autoridades constitucionalmente competentes (Presidência da República e Congresso Nacional), que decidiu integrar o sistema interamericano de direitos humanos. Não se identifica nenhuma mácula no processo de ratificação da Convenção, ou de sua aprovação em âmbito interno. Outrossim, nenhum Estado estrangeiro compeliu o País a tomar parte desses atos e organismos internacionais. Pouco importa, nesse particular, a discussão sobre a estatura constitucional da Convenção. O relevante é compreender que a aceitação da jurisdição e da competência da CIDH concretiza preceitos constitucionais. Destaca-se, dentre outros26, o artigo 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, no qual se define que “[o] Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos”. Assim, a aceitação pelo Estado brasileiro da jurisdição de um tribunal interamericano de direitos humanos previsto em Convenção Internacional encontra pleno e direto apoio na Constituição. Portanto, o ato do Presidente da República de ratificar a Convenção e a decisão do Congresso Nacional de aprová-la, longe de afrontar a Constituição, concretizam mandamentos nela inseridos. Para recusar a autoridade da CIDH seria necessário existir algum vício de inconstitucionalidade – formal ou material – nos atos de ratificação, aprovação e promulgação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou de aceitação da jurisdição da CIDH. 26

Vide o artigo 4º, inciso II (“A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) II prevalência dos direitos humanos;”) e o § 2º, do artigo 5º (§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”).

 

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Em especial, para sustentar a não aplicação de uma sentença da CIDH proferida contra o Brasil, o Supremo Tribunal Federal terá que declarar inconstitucional a promulgação da cláusula do artigo 68.1 da Convenção: “Os Estados-Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes.” Porém, é necessário lembrar que o Brasil – se sustentar que a jurisdição da CIDH não é obrigatória para os órgãos internos – terá que denunciar integralmente a Convenção, conforme dispõe o artigo 44.1 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Essa situação, porém, é inimaginável e representaria um retrocesso sem precedente nas relações internacionais do Brasil e um duro golpe na democracia e na promoção dos direitos humanos. Aliás, por si só seria uma autônoma violação à Constituição, pois sofreria impedimento pela cláusula da vedação ao retrocesso. No que diz respeito ao aparente conflito entre a decisão do STF na ADPF nº 153 e a sentença da CIDH no caso Gomes Lund, os órgãos internos de persecução penal, para discernirem qual delas seguirão, devem observar os limites da competência de cada um dos Tribunais. Primeiro, de entender que ambas decisões convivem juridicamente. O Supremo Tribunal Federal é a corte final no julgamento de constitucionalidade, enquanto a Corte Interamericana realiza controle de convencionalidade. A lei de anistia teria passado pelo crivo da constitucionalidade aplicado pelo STF, mas não da convencionalidade, realizado pela CIDH. Assim, se os crimes estiverem vinculados a “violações aos direitos humanos”, deverão ser examinados sob o pálio da decisão da CIDH, pois se vinculam à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nessa situação, não prevalecerá a decisão do STF. Porém, nos delitos que não se refiram a “violações aos direitos humanos”, remanesce com exclusividade o  

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efeito do julgamento da ADPF. Há, pois, uma relação de especialidade da sentença da CIDH em relação ao Supremo Tribunal Federal. Em suma, a CIDH não é uma instância adicional ao processo interno e não reformou a decisão da Suprema Corte brasileira na ADPF nº 153. Sua sentença navega no estrito espaço de sua competência e somente ali prevalece em relação às decisões dos órgãos jurisdicionais internos. Logo, toda autoridade que participa da persecução penal (membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Judiciária) está adstrita a respeitar ambas as decisões, nos limites de suas respectivas aplicabilidades.

Conclusão Os valores materiais de um Estado constitucional, republicano, democrático e de direito são incompatíveis com a tolerância e o incentivo à tortura, o desaparecimento forçado, o estupro, a execução sumária e outros atos violentos de agentes do Estado contra seus cidadãos, quaisquer que sejam os motivos dessas condutas. É função do direito penal proteger direitos fundamentais e, portanto, é inarredável seu emprego em face dos autores dessas graves violações aos direitos humanos. A estatura constitucional da proteção aos direitos humanos não admite que o legislador possa enfraquecer ou desautorizar a responsabilidade penal por sua violação. Há um mandado geral implícito de criminalização e, em alguns casos, expresso e específico (v.g., na CF/88, tortura e racismo) que impõe sejam essas lesões sancionadas criminalmente. E, logicamente, esses mandados impedem a descriminalização (ou seja, a impunidade), tornando inconstitucionais quaisquer leis que gerem uma proteção insuficiente, vale dizer, retrocedam de um grau razoável de punição.  

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Assim, normas instituidoras de causas de extinção da punibilidade de graves violações aos direitos humanos são extremamente injustas (RADBRUCH) e incompatíveis com a Constituição. A edição de leis dessa natureza, inclusive de anistia, colide com a proibição da proteção insuficiente. Para reconhecer uma norma penal negativamente desproporcional não é necessário recorrer ao direito natural, ou supra jurídico. A sociedade nacional e a comunidade internacional possuem normas jurídicas que, ao menos desde os anos quarenta, afirmam a obrigação de promover e proteger os direitos humanos, inclusive com a sanção penal. Essas normas são parâmetros suficientes para invalidar a pretensão de extinção da punibilidade de graves violações aos direitos humanos mediante anistia. Há de se dedicar especial atenção às pretensões de emprestar a normas jurídicas gestadas durante o arbítrio o manto da constitucionalidade material, mediante a invocação de sua compatibilidade com preceitos das cartas outorgadas pelo próprio regime autoritário. O intérprete constitucional não pode ser vítima de uma armadilha que é verdadeira petição de princípio: avaliar a validade material de uma norma legal de um regime autoritário adotando como parâmetro o próprio ordenamento jurídico e político ditatorial. O sentido e o conceito dos direitos fundamentais, sobretudo civis e políticos, são ontologicamente antagônicos ao arbítrio e ao regime de exceção. É um menoscabo à sua posição no sistema jurídico submetê-los a juízos de constitucionalidade com constituições outorgadas. É preciso desconsiderar os ordenamentos impostos pelo arbítrio e substituí-los por aqueles em vigor antes do golpe de Estado, especialmente quando reconfirmados pelo poder constituinte superveniente ao período ditatorial. A interpretação dada à Lei nº 6.683/79 – no sentido de ter instituído uma anistia penal a atos de grave violação aos direitos humanos – insere-se nesse contexto de exame de validade e não sobrevive a um juízo de  

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compatibilidade com a Constituição brasileira de 1946 e os princípios que lhe estruturam. Da mesma forma, a pauta axiológica da Constituição de 1988 é incompatível com tais preceitos de impunidade, o que confirma a incompatibilidade material das normas de autoanistia.

Não se trata de revogar uma anistia que já teria operado seus efeitos, mas sim de reconhecer que ela nunca teve o condão de produzir o benefício alardeado, em decorrência da incompatibilidade dessa interpretação com preceitos fundamentais das Constituições brasileiras e do direito internacional incorporado ao sistema jurídico pátrio. Antes mesmo da instauração da ditadura militar vigoravam causas jurídicas que impediam o Estado de deixar impunes e esquecidos os bárbaros atentados que seus agentes aplicaram à dignidade humana. Portanto, em que pese a decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, pontos essenciais ainda pendem de apreciação e discussão. O aprofundamento dessa reflexão é essencial para o processo de afirmação histórica do direitos humanos no Brasil.

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Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação de punir os perpetradores de violações aos direitos humanos Fundamentos e análise de casos

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Resumo: O artigo tem por foco os fatores fundantes da Justiça Transicional (responsabilidade, justiça e reconciliação), especialmente à luz do posicionamento dos órgãos das Nações Unidas sobre as leis de autoanistia, a destacar a Comissão de Direitos Humanos, a Assembleia Geral e os Comitês interpretativos de tratados de direitos humanos de abrangência universal. A busca por significados e parâmetros perpassou, conjuntamente, a jurisprudência dos tribunais internacionais no tocante ao direito penal internacional (Tribunal ad hoc para a ex-Iugoslávia) e à proteção regional dos direitos 1 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Membro do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição (IDEJUST); Membro do Grupo de Pesquisa "Justiça de Transição" da Universidade de Brasília (UnB); Membro da International Law Association (ILA); Associado da Sociedad Latinoamericana de Derecho Internacional (LASIL-SLADI) e Integrante de seu Grupo de Estudios sobre Responsabilidad Internacional; Pesquisador Bolsista do Max-Planck-Institut für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht (Heidelberg, 2008); Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Bahia (OAB/BA).

 

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humanos (Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos). Nesse ponto, determinados casos-chave da Corte Interamericana foram analisados (Velásquez Rodríguez, Barrios Altos, Almonacid Arellano e Gelman), de modo a evidenciar a linha de coerência da respectiva jurisprudência, a par de suas repercussões na prática subsequente dos Estados denunciados. Palavras-chave: Leis de Anistia. Nações Unidas. Tribunais Internacionais. Abstract: The article focuses on the founding elements of Transitional Justice (responsibility, justice and reconciliation), on the light of the United Nations' position about Amnesty Laws, specially the Human Rights Commission, the General Assembly and universal Human Rights Treaties' Committees. The search for meaning and parameters has crossed through precedents of international tribunals, with regard to International Criminal Law (International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia) and the regional protection of human rights (European and Inter-American Courts of Human Rights). In this aspect, factors connected to Transitional Justice were analyzed and key cases judged by the Inter-American Court of Human Rights have been considered (Velásquez Rodríguez, Barrios Altos, Almonacid Arellano and Gelman), in association with its subsequent impact on the practices of the respondent States. Keywords: Amnesty Laws. United Nations. International Courts.

Introdução Durante os seminários discentes desenvolvidos no ambiente instigante da disciplina “Teoria Geral dos Direitos Humanos”, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Eneá de Stutz e Almeida perante o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, o eixo central  

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da “Justiça de Transição” foi enfrentado em suas diversas vertentes (verdade, reparação, justiça e reforma), mas, de imediato, chamou a atenção do autor do presente paper a problemática residente na persecução penal dos perpetradores de violações aos direitos humanos, em face das leis de autoanistia. ·∙. Onde se situaria o fundamento obrigacional para investigar, processar, julgar e punir os autores de violações graves de direitos humanos na ambiência de um regime de exceção? Em que contexto órgãos judiciais internacionais enfrentaram a questão das autoanistias? Foram esses alguns tópicos investigativos enfrentados e que, no presente trabalho preliminar, para eles buscou-se possíveis respostas.

1. Elementos de Realização da Justiça Transicional Em momentos históricos decorrentes de processos de paz ou da superação de autoritarismos, exsurge o desafio da abordagem jurídica da ocorrência de crimes internacionais cometidos na ambiência do regime político pretérito. Nesse contexto, destaca-se a função a ser exercida pela chamada “Justiça de Transição” (Jardim, 2006, p. 1-2). Seu papel decorre do elemento comum às transições políticas experienciadas nas mais diversificadas partes do globo, qual seja: o largo acervo de violações a normas protetivas fundamentais de direitos humanos pela ação do Estado, ou de grandes grupos organizados em seu território, durante o período de exceção ou de prática autoritária que se busca superar (Almeida; Torelly, 2010, p. 38). A partir de certo consenso internacional, a noção de “Justiça Transicional” pode ser compreendida por toda a gama de processos e mecanismos associados aos esforços da sociedade em lidar com um legado de violações ocorridas em larga escala, no sentido de as  

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segurar a responsabilização, proporcionar justiça e promover a reconciliação. Tais medidas podem abranger mecanismos judiciais e não judiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), dirigidos à persecução penal individualizada, reparação das vítimas e seus familiares, busca da verdade, reforma institucional, vedações de acesso e dispensas do serviço público, consoante externado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas (UN, 2004, p. 4). Entretanto, o trinômio “Responsabilidade - Justiça - Reconciliação” não deve ser vislumbrado com a preponderância do último elemento sobre os demais, na medida em que são bastante comuns os riscos de uma política de reconciliação nacional voltada estritamente para o futuro e dirigida a uma suposta estabilização das relações sociais presentes. Com base em ramificações conservadoras, marcadas pelo esquecimento esquizofrênico do passado, tal caminho pode gerar consequências negativas em longo prazo, a citar o retardamento de reformas políticas de maior amplitude e a fragilização da democracia (Teitel, 2011, p. 156-157). A concepção de Justiça focada em processar e julgar os perpetradores que cometeram violações aos direitos humanos configura-se parte fundamental para a confrontação de referido legado de abusos, tendo em vista que tais julgamentos poderão servir para evitar que crimes dessa magnitude se repitam, dar consolo às vítimas, estimular o debate sobre um novo grupo de normas estruturais e impulsionar reformas de instituições governamentais, com a agregação de uma maior carga de confiança pública (Zyl, 2009, p. 34). O direito à verdade, também inserido na amplitude da Justiça, vincula-se ao dever iniludível do Estado de realizar uma investigação séria e efetiva acerca dos fatos que geraram as violações aos direitos humanos, ao qual acompanha a obrigação de identificar, julgar e punir seus responsáveis, tendo por uma das prin  

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cipais finalidades almejadas a de promover garantias de não recorrência (Cançado Trindade, 2011, p. 284). Diversas instâncias das Nações Unidas e cortes internacionais manifestaram-se em prol da efetividade da persecução penal dos perpetradores de graves violações aos direitos humanos e de direitos de caráter humanitário, especialmente nas hipóteses de tortura, maus-tratos, desaparecimentos forçados e homicídio, no seio de uma concepção de combate à impunidade, à luz de abordagens mais amplas a serem vislumbradas a partir do próprio reconhecimento da condição humana das vítimas e de sua posição indelével de sujeitos de direito.

2. Posição das Instâncias NormativoInterpretativas das Nações Unidas Ao editar seu General Comment n.º 20/1992 acerca do que dispõe o art. 7.º, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (“ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes”), o Comitê de Direitos Humanos2 registrou, expressamente, que as anistias são em geral incompatíveis com o dever dos Estados de investigar atos de tortura (UN, 2008a, p. 202). Uma dúvida foi levantada acerca da obrigação do Estado em levar os perpetradores de violações aos direitos humanos à justiça, ou seja, se atingiria até o momento da persecução penal e, subsequentemente,

2 O Comitê de Direitos Humanos é o órgão de expertos independentes que monitora a implementação do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) por seus Estados Partes. Conjuntamente, o Comitê publica suas interpretações sobre o conteúdo de normas de direitos humanos, conhecidas como comentários gerais (General Comments) acerca de questões temáticas e seus métodos de trabalho (OHCHR, 2013a).

 

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avançaria para o instante da sua efetiva condenação judicial. O dever de punir os violadores foi explicitamente registrado pelo Comitê de Direitos Humanos em diversos casos, especialmente com referência a execuções sumárias e extrajudiciais, desaparecimentos forçados, tortura, maus-tratos e detenções arbitrárias. No entanto, em seus comentários de 1994 sobre a situação em El Salvador, o Órgão deu um passo além e considerou que todas as violações passadas de direitos humanos devem ser cuidadosamente investigadas e seus perpetradores punidos (Seibert-Fohr, 2002, p. 319, 321). O problema da impunidade vinculada a referidas violações pode configurar-se um importante elemento contributivo para a recorrência de tais abusos no futuro, razão pela qual, de acordo com o estabelecido pelo Comitê em seu General Comment n.º 31/2004, a concessão de anistias, imunidades ou outras vedações legais não são admissíveis na condição de fatores excludentes ou preclusivos da responsabilidade pessoal dos perpetradores de violações aos direitos humanos, destacadamente quando envolvidos agentes públicos de qualquer nível hierárquico (UN, 2008a, p. 247). Cumpre salientar a existência de posições divergentes, como a externada por Louise Mallinder (2007, p. 214), ao considerar que, mesmo diante da clareza de um dever de persecução penal, para o direito internacional não seria exigível do Estado que efetivasse tais persecuções contra todo e qualquer perpetrador, sendo admissível a adoção de uma sistemática seletiva de punição dos “mais responsáveis” e a aplicação da anistia aos ofensores de menor potencial, desde que tais medidas sigam acompanhadas de mecanismos de asseguramento dos direitos das vítimas. É necessário registrar contra essa posição, que o ato internacionalmente ilícito será atribuído ao Estado em nome do qual agiu o autor do ato ou do comportamento ilícito e, nesse tocante, pode tratar-se de um órgão individualmente considerado, com abrangência  

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desde os governantes e os mais altos funcionários até o agente mais subalterno (Dinh et al., 2003, p. 788). O Comitê contra Tortura3 fez registrar em seu General Comment n.º 2/2007 que anistias ou outros impedimentos à pronta e justa persecução penal e punição dos perpetradores de tortura ou maus-tratos violam a norma ius cogens de proibição absoluta da tortura, em consonância com o princípio da “inderrogabilidade” (UN, 2008b, p. 377). A obrigação geral de prover a reparação das vítimas e a punição de seus torturadores pode, efetivamente, configurar-se um fator proibitivo para anistias dirigidas a isentar pessoas que tenham afligido diretamente outras com tratamentos desumanos ou degradantes (Joseph et al., 2004, p. 206), quais sejam: os agentes executores da prática da tortura que, na maioria dos casos, situam-se na base da pirâmide da hierarquia estatal ou organizacional. Dentre os princípios diretores do combate à impunidade elencados pela experta Diane Orentlicher (2005) perante a Comissão de Direitos Humanos,4 consta que os Estados devem adotar e reforçar medidas de salvaguarda contra manifestos abusos de direito que beneficiem os perpetradores de violações aos direitos humanos, tais quais: prescrição, anistia, direito de asilo, recusa à extradição, aplicação do princípio non bis in idem, escusa do dever de obediência e imunidades oficiais.

3 O Comitê contra Tortura está para a Convenção contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), em equivalência ao explicitado na nota supra sobre o Comitê de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966). 4 Na condição de órgão das Nações Unidas direcionado à promoção e proteção dos direitos humanos em nível global, a Comissão de Direitos Humanos foi restruturada e convertida em 2006 no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (OHCHR, 2013b).

 

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Cerca de 8 (oito) anos antes, o Special Rapporteur Louis Joinet (1997) já havia registrado em seu relatório apresentado à Subcomissão sobre Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias da Comissão de Direitos Humanos, que as mesmas restrições configuram-se medidas abusivas destinadas a beneficiar a impunidade e conflitam diretamente com o direito das vítimas à verdade, justiça e reparação. A par disso, há de que se considerar dentre as garantias de não recorrência, a necessidade imperiosa de destituição do serviço público dos agentes estatais de maior hierarquia que tenham envolvimento comprovado com violações graves de direitos humanos, os quais permanecem oficialmente ativos sob o manto protetor da autoanistia impeditiva dos respectivos procedimentos investigatórios (judiciais ou administrativos). Com base em tais premissas, a Comissão de Direitos Humanos optou por editar a Resolução n.º 2005/81, em 21 de abril de 2005 (UN, 2005),5 onde deixou claro o seu reconhecimento de que as anistias não devem configurar garantia de impunidade para os perpetradores de violações aos direitos humanos e humanitários que constituam crimes. Portanto, os Estados devem pautar sua atuação em acordo com suas obrigações de direito internacional, no sentido de promoverem a sustação, renúncia ou nulidade de anistias e de outras imunidades. Estatuiu a Comissão, ainda, que os acordos de paz endossados pelas Nações Unidas jamais poderão comprometer-se com a concessão de anistias a genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou violações graves de direitos humanos.

5

Antecederam-lhe as Resoluções n.º 2002/79, de 25 de abril de 2002; n.º 2003/72, de 25 de abril de 2003; e n.º 2004/72, de 21 de abril de 2004, com textos menos amplos.

 

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A Assembleia Geral das Nações Unidas, em sede da Resolução n.º 60/147 (UN, 2006, p. 5), deixou expresso que os Estados possuem a obrigação de investigar e, em caso de prova suficiente, a conjunta obrigação de submeter à persecução penal as pessoas alegadamente responsáveis por violações massivas de direito internacional dos direitos humanos e de violações graves de direito internacional humanitário. Na hipótese de esses indivíduos serem considerados culpados por referidos crimes, os Estados permanecem titulares da subsequente obrigação de aplicar concretamente as correspondentes medidas punitivas. No prisma da reparação das vítimas de vulnerações de direitos humanos, incluem-se aspectos de natureza não monetária dentre os quais se destaca o conceito de satisfação. Em seu relatório comentado sobre o direito da responsabilidade dos Estados (ILC, 2001, p. 90), a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas6 considerou que proporcionar garantias de não recorrência da violação pode ser vislumbrado como uma forma de satisfação, exemplificativamente, por intermédio da adoção de medidas preventivas concretas e de caráter normativo geral direcionadas a que a violação não torne a ocorrer. Não foi outra a conclusão da Assembleia Geral, ao haver inserido a aplicação de sanções judiciais e administrativas contra pessoas responsáveis por Violações aos Direitos Humanos e de direitos de caráter humanitário na qualidade de medida de satisfação e essa, por sua vez, inserida dentro do princípio norteador da reparação de danos sofridos pelas vítimas (UN, 2006, p. 7-8).

6 A Comissão de Direito Internacional possui a atribuição primordial de promover o desenvolvimento progressivo do direito internacional e sua codificação, consoante disposto no art. 1.1 de seu Estatuto e em harmonia com o art. 13.1 da Carta das Nações Unidas.

 

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A vasta gama de normas produzidas e interpretadas no âmbito das Nações Unidas deixa clara a teleologia da sanção penal derivada de graves Violações aos Direitos Humanos no resgate da dignidade humana das vítimas e, conjuntamente, na proteção do tecido social circundante, de modo a criar um ambiente desfavorável à repetição de tais ocorrências.

3. Posição do Tribunal Internacional ad hoc para a ex-Iugoslávia: Caso Prosecutor v. Anto Furundžija (1998) Competente para processar e julgar os perpetradores de graves violações de direito internacional humanitário ocorridas no território da ex-Iugoslávia a partir de 1991, criado sob os auspícios das Nações Unidas, o Tribunal Internacional ad hoc para a exIugoslávia apreciou o caso Prosecutor v. Anto Furundžija por intermédio de sua Câmara Julgadora em 1998, momento em que algumas questões fundamentais vinculadas ao dever de persecução penal foram abordadas (ICTY, 1998). Trata o case a respeito da participação de Anto Furundžija na posição de comandante local dos Jokers, unidade militar especial do Conselho de Defesa Croata durante o conflito armado nos Bálcãs, com relação a ocorrências verificadas e comprovadas de maio de 1993, dentro do Quartel-General do grupo situado na cidade de Nadioci, atual Bósnia-Herzegóvina. Durante a instrução probatória do processo penal internacional, restaram, claramente, atestadas violações de tortura mediante tratamento cruel, desumano e degradante, além de estupros e severos abusos físicos e psicológicos infligidos a pessoas ilegalmente detidas, tudo sob a presença, supervisão e atuação direta e efe-

 

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tiva do acusado.7 Entretanto, mesmo que não houvesse prova da participação direta do acusado nas violações sob análise, sua condenação penal internacional encontrou bases de sustentação bastante sólidas. As jurisprudências dos Tribunais Internacionais ad hoc para Ruanda e para a ex-Iugoslávia demonstram-se consonantes com a premissa, segundo a qual, não é necessário que os superiores pertençam ao grupo de comando militar ou civil da mais alta posição hierárquica, visto que conjuntamente punível o chefe de uma pequena unidade militar ou uma pessoa com autoridade civil em uma zona delimitada (Ambos, 2005, p. 80). O que interessa para o direito penal internacional, é que o controle efetivo sobre os subordinados esteja acompanhado da possibilidade de adotar medidas preventivas ou contramedidas repressivas às violações. Ao tratar a respeito da natureza normativohierárquica ius cogens da proibição da tortura na ambiência do direito internacional, o Tribunal Internacional para ex-Iugoslávia registrou no caso concreto que tal vedação possui efeitos jurídicos marcantes nos níveis interestatal e individual (ICTY, 1998). Na seara interestatal, o caráter peremptório da norma atua no sentido de deslegitimar internacionalmente todo e qualquer ato legislativo, administrativo ou judicial que autorize a tortura. Se, de um lado, incidem os arts. 53 e 64, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados,8 que tornam nulos e sem efeito 7

Não foi identificada prova de que Anto Furundžija teria praticado atos de violência sexual, apesar de evidenciada a sua presença e a continuidade dos interrogatórios durante tais violações. 8 Artigo 53 Tratado em Conflito com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens) É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da

 

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jurídico qualquer tratado ou norma costumeira que permita tal prática, de outro, não se admite que o Estado adote medidas internas direcionadas a autorizar ou aceitar a tortura ou no sentido de absolver seus perpetradores mediante leis de anistia. O Tribunal Internacional considerou, conjuntamente, que processos poderão ser inaugurados por iniciativa das potenciais vítimas perante órgãos judiciais nacionais ou internacionais, com vistas a que as medidas internas legitimantes da prática da tortura sejam declaradas atos internacionalmente ilícitos. Da mesma forma, viabiliza-se que a vítima possa deduzir uma pretensão indenizatória por danos sofridos perante um tribunal estrangeiro, o qual poderá ser demandado para decidir a respeito da (in)validade jurídica da medida estatal autorizadora ou incentivadora da tortura. Independentemente de qualquer autorização outorgada pelas instâncias legislativas ou judiciais com vistas a violar o preceito imperativo de banimento absoluto da tortura, os indivíduos permanecem obrigados a agir em conformidade com a norma cogente. Consoante estabeleceu o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, os indivíduos possuem deveres internacionais que transcendem às suas obrigações de obediência nacional impostas pelo Estado (ICTY, 1998).

presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza. Artigo 64 Superveniência de uma Nova Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens) Se sobrevier uma nova norma imperativa de Direito Internacional geral, qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa norma torna-se nulo e extingue-se (Brasil, 2009).

 

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4. Posição da Corte Europeia de Direitos Humanos Chama atenção que a Corte Europeia de Direitos Humanos também possua jurisprudência acerca da insustentabilidade jurídica das anistias concedidas na seara do ordenamento jurídico interno dos Estados Partes da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais. Entretanto, na abordagem constante em seus precedentes, normalmente, a questão da autoanistia é vislumbrada na posição de fundamento argumentativo do requerente, ou seja, dirigido a afastar as condenações criminais que tenham sido impostas pelo Estado requerido aos perpetradores de Violações aos Direitos Humanos.

4.1. Caso Ould Dah v. France (2009) Ao decidir o caso Ould Dah v. France (ECHR, 2009), a Corte Europeia tratou a situação apresentada pelo mauritano Ely Ould Dah, que fora detido, processado e condenado na França em decorrência da prática de tortura na condição de oficial da inteligência e investigador ativo durante o conflito armado de natureza étnica ocorrido na Mauritânia entre 1990 e 1991. O caso tratou, preliminarmente, acerca do exercício da jurisdição universal para processar e julgar o acusado na condição de perpetrador de tortura, processo esse iniciado com a detenção do requerente quando se encontrava em território francês para treinamento em uma academia militar. Em 14 de junho de 1993, foi editada uma lei de anistia pelo Estado mauritano, mediante a qual todos os membros das forças armadas e das forças de segurança foram beneficiados pela inviabilidade de instauração de quaisquer procedimentos investigativos e penais, por fatos ocorridos entre 1.º de janeiro de 1989 e  

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18 de abril de 1992 que estivessem em conexão com conflitos armados ou ações de violência. Apoiada expressamente nas posições do Comitê de Direitos Humanos e do Tribunal Internacional para a ex-Iugoslávia já explanadas acima, a Corte Europeia assumiu a premissa de que anistias são, de uma forma geral, incompatíveis com o dever dos Estados de investigar atos de tortura, motivo pelo qual a lei sob crítica foi considerada juridicamente incapaz de comprometer o processamento e a condenação criminal de Ould Dah pelo Estado francês.

4.2. Caso Marguš v. Croatia (2012) Outro julgamento bem mais recente e digno de nota reporta-se ao caso Marguš v. Croatia (ECHR, 2012), no qual Fred Marguš denunciou à Corte Europeia o segundo processamento penal que culminou na sua condenação pelo Judiciário da Croácia em decorrência da prática de crimes de guerra contra a população civil, a citar: produção de ferimentos graves em criança, roubo, sequestro, detenção arbitrária, tortura e homicídio, na posição de membro do exército croata em novembro de 1991. No âmbito do primeiro processo criminal iniciado em 1993, o requerente chegou a ser indiciado perante a Corte do Condado de Osijek, mas teve o procedimento extinto por força da prevalência da lei geral de anistia editada pelo Estado croata em 25 de setembro de 1992, o que foi posteriormente confirmado pela Suprema Corte Nacional. Para tanto, referido órgão judiciário superior justificou que as ações do indiciado estavam em clara conexão com atos de agressão, rebelião e conflitos armados cometidos entre 17 de agosto de 1990 e 23 de agosto de 1996 no território atual da Croácia, as quais se encontravam imunizadas pela autoanistia.  

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Na segunda denúncia apresentada contra o requerente em 2006, basicamente pelos mesmos atos violatórios evidenciados no primeiro processo, foi exarada sentença condenatória com a imposição da pena de 14 (catorze) anos de prisão, ulteriormente majorada para 15 (quinze) anos, e a rejeição da alegada excludente de responsabilidade de anistia por todas as instâncias judiciais, inclusive pela Suprema Corte. A Corte Europeia de Direitos Humanos, ao apoiar-se em sua jurisprudência reiterada especialmente a partir do caso Abdülsamet Yaman v. Turkey (ECHR, 2004), destacou que quando o agente estatal haja sido acusado da prática de crimes envolvendo tortura ou maus-tratos, é de fundamental importância que o processo criminal e sua sentença não sejam protelados, com a garantia de que não se permita a concessão de anistia ou perdão. Considerou-se que, particularmente em tais casos, as autoridades nacionais processantes não transmitam a impressão de que pretendem deixar fatos dessa gravidade impunes. A outorga de anistia com relação a crimes internacionais, categoria em que se incluem crimes de lesahumanidade, guerra e genocídio, é progressivamente proibida pelo direito internacional. Tal entendimento, segundo a Corte Europeia (2012, p. 27), deriva de normas costumeiras de direito internacional humanitário e de tratados de direitos humanos, tanto quanto de decisões de tribunais regionais e internacionais e da prática desenvolvida pelos próprios Estados, a ponto de ser possível identificar o crescimento de uma tendência de nulificação das anistias gerais pelas instâncias judiciais nacionais, regionais e internacionais. Essa tendência pode ser atestada na esfera do Tribunal Especial para Serra Leoa, criado por força de tratado firmado entre as Nações Unidas e o Estado de Serra Leoa, em cujo Estatuto - que possui primazia sobre as jurisdições internas - restou expressa a inadmissibilidade das anistias previstas no Acordo de Paz de Lomé aos crimes internacionais submetidos à sua com  

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petência, ou seja, crimes de guerra e outras violações graves de direito internacional humanitário (Frulli, 2004, p. 315). Nesse aspecto, referido Tribunal Especial registrou em sua jurisprudência que a concessão de anistia para crimes internacionais não configura apenas uma violação isolada ao direito internacional, mas a quebra de uma obrigação do Estado perante a Comunidade Internacional como um todo (Meisenberg, 2004, p. 842). De igual modo, com referência ao plano jurídico-nacional, Antonio Cassese (2005, p. 208) relata sucessivos julgamentos em que tribunais espanhóis (casos Scilingo e Pinochet) manifestaram sua posição acerca de leis de anistia, ao considerá-las inaplicáveis quando contrárias a normas internacionais de caráter ius cogens. Nessa mesma linha filiaram-se os tribunais argentinos (caso Simon Julio, Del Cerro Juan Antonio), na mesma linha do governo suíço quanto ao crime de genocídio.

5. Posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos Com vistas a compatibilizar a presente explanação com as dimensões do paper, optou-se por restringir a análise dos precedentes específicos da Corte Interamericana de Direitos Humanos a 4 (quatro) casoschave julgados em 1988, 2001, 2006 e 2011, respectivamente, caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, caso Barrios Altos vs. Peru, caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile e caso Gelman vs. Uruguay, espaçados temporalmente de modo a evidenciar a linha de coerência da jurisprudência do Tribunal Interamericano sobre o tema da autoanistia, além de suas subsequentes reverberações nos Estados demandados, especialmente nos três últimos casos.

 

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5.1. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras (1988) Em seu histórico primeiro julgamento de mérito, prolatado no caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras (CorteIDH, 1988), a Corte Interamericana de Direitos Humanos apreciou a ocorrência do desaparecimento forçado em 12 de setembro de 1981 de Manfredo Velásquez, estudante, sequestrado em um estacionamento no centro de Tegucigalpa por vários homens fortemente armados, no contexto de uma prática sistemática do Estado hondurenho que, entre 1981 e 1984, protagonizou cerca de 150 (cento e cinquenta) desaparecimentos forçados à época identificados. A participação direta de agentes militares, policiais ou de pessoas sob sua direção era considerado fato público e notório pela população civil. Com referência à apuração interna dos fatos, verificaram-se as sucessivas negativas das autoridades das forças armadas, a par de suas costumeiras omissões e do próprio governo de Honduras em investigar e informar sobre o paradeiro do desaparecido. Paralelamente, as instâncias judiciais tiveram sua atuação marcada pela completa ineficácia nos 3 (três) pedidos de exibição de pessoas apresentados e nas 2 (duas) denúncias criminais ajuizadas. A subsequente sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos fundou-se na qualificação do desaparecimento forçado como crime contra a humanidade e na condição de procedimento cruel e desumano praticado com o propósito de evadir-se à aplicação da lei, em detrimento de normas que garantam a proteção do indivíduo contra a detenção arbitrária e o direito à segurança e à integridade pessoal, na esteira do posicionamento da Assembleia da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ao condenar Honduras, a Corte Interamericana deixou registrado que o Estado possui o dever jurídico de prevenir razoavelmente as violações aos direitos  

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humanos e, concomitantemente, a obrigação de investigar com seriedade as vulnerações que tenham sido cometidas no âmbito de sua jurisdição, com o fito de identificar os responsáveis e impor-lhes as sanções pertinentes. Para a Corte Interamericana, o dever de prevenir comporta uma qualificação que extrapola a mera orientação política para os Estados, face aos contornos deontológicos vinculativos equivalentes à obrigação jurídica de prevenir. Nesse sentido, tal obrigação abarca todas as medidas que promovam a salvaguarda dos direitos humanos e assegurem que eventuais violações sejam efetivamente qualificadas e tratadas na condição de ato ilícito, suscetíveis, portanto, de gerar sanções aos respectivos perpetradores. Na hipótese em que o aparato estatal atua de forma a que violações dessa natureza permaneçam impunes, e não se restabeleça às vítimas a plenitude de seus direitos, considera-se que foi descumprido o preceito referente à garantia do livre e pleno exercício das faculdades jurídicas fundamentais previstas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O mesmo é válido quando se tolera que particulares ou grupos privados atuem livre e impunemente com desprezo aos direitos humanos (CorteIDH, 1988, p. 37).

5.2. Caso Barrios Altos vs. Peru (2001) No âmbito do caso Barrios Altos vs. Peru (CorteIDH, 2001), a Corte Interamericana apreciou a ocorrência do assassinato coletivo de 15 (quinze) pessoas e a produção de ferimentos graves em outras 4 (quatro), enquanto participavam de uma festa de arrecadação de fundos para a reforma de um prédio, na localidade de Barrios Altos, periferia de Lima, em 3 de novembro de 1991. A ação foi executada pelo grupo de extermínio denominado “Grupo Colina”, integrado por membros  

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da inteligência militar e do exército peruano, durante a fase mais repressiva do governo do então Presidente Alberto Fujimori. Iniciada a investigação judicial pelo Estado peruano apenas em abril de 1995, ou seja, quase três anos e meio após a ocorrência, diversos impedimentos legais intervieram no processo, com destaque para o conflito de competência suscitado perante a Suprema Corte do Peru entre o juízo criminal comum e o tribunal militar. E antes mesmo que a Corte Suprema decidisse o incidente sob trato, foi promulgada a Ley de Amnistía (n.º 26.479), mediante a qual foram exonerados de responsabilidade geral militares, policiais e civis por atos violadores aos direitos humanos ocorridos entre 1980 e 1995. Em face da postura desafiadora do juízo criminal comum que continuava a investigar e processar o caso Barrios Altos, na medida em que considerou a Ley de Amnistía inconstitucional e contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, foi promulgada uma segunda lei de anistia (n.º 26.492) que, interpretando a norma anterior, explicitou a sua aplicação para todos os processos em curso e para os demais casos ainda não denunciados, além de vedar qualquer revisão judicial a seu respeito. Seguiu-se, então, a ordem de arquivamento do respectivo processo penal pela Corte Superior de Justicia peruana com forte fundamento no princípio da separação dos poderes, além de haver sido determinada a investigação disciplinar do juiz de primeira instância processante da causa. Ao apreciar o caso, a Corte Interamericana considerou que são inadmissíveis as disposições de autoanistia, de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e a sanção dos responsáveis por violações graves de direitos humanos, a citar: tortura, execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias e desaparecimentos forçados, todas elas proibidas por vulnerar direitos  

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inderrogáveis reconhecidos pelo direito internacional dos direitos humanos (CorteIDH, 2001, p. 15). O Tribunal Internacional registrou, então, a manifesta incompatibilidade entre as leis de autoanistia e o Pacto de San José de Costa Rica, em vista da qual tais normas internas careciam de efeitos jurídicos e não poderiam configurar um obstáculo para a investigação dos fatos, nem para a identificação e punição dos responsáveis (CorteIDH, 2001, p. 16). Ao final, a Corte decretou que o Estado peruano deve, conjuntamente, divulgar publicamente os resultados de todas as investigações e subsequentes medidas punitivas aplicadas aos perpetradores de ditas violações. Quase 10 (dez) anos após o advento da sentença meritória da Corte Interamericana, em 1.º de outubro de 2010, a Câmara Penal Especial da Corte Suprema de Justicia do Peru condenou Vladimiro Montesinos, exassessor do então Presidente Fujimori, e os membros do “Grupo Colina” pela execução extrajudicial ocorrida em Barrios Altos (1991) e, conjuntamente, pelo desaparecimento forçado de 9 (nove) moradores do Valle de Santa (1992) e do jornalista Pedro Yauri (CEJIL, 2010). A Corte Suprema peruana registrou que os fatos ocorridos no caso Barrios Altos constituíram crimes de lesa-humanidade, qualificados pelo uso perverso das posições de poder dos acusados para dirigir e participar das atuações do “Grupo Colina”, a partir da estrutura do próprio exército, com a finalidade de eliminar os líderes do Sendero Luminoso e todas as pessoas suspeitas de pertencer a esse grupo rebelde. Em face de tais conclusões, foi possível precisar a relação direta entre o citado grupo de extermínio e o Servicio de Inteligencia Nacional (SIN), sob as ordens diretas de Vladimiro Montesinos e do Chefe do SIN, Julio Salazar Monroe.

 

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5.3. Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile (2006) Trata o caso do assassinato a tiros de Almonacid Arellano por Carabineros9 na porta de sua residência e na frente de sua família, logo após ser retirado à força de casa em 17 de setembro de 1973 (CorteIDH, 2006). A vítima não teria resistido aos ferimentos e falecera no dia seguinte em uma instituição hospitalar. Chama atenção a posição social e política da vítima: professor primário e dirigente sindical vinculado ao Partido Comunista, em claro confronto com as forças sustentadoras do então recente golpe de Estado no Chile. A investigação judicial iniciou-se ainda em outubro de 1973, mas foi suspensa em diversas ocasiões processuais, até a sua “suspensão definitiva” em setembro de 1974. Cumpre notar a nítida contradição do instituto empregado pelo Judiciário chileno, tendo em vista que, por sua própria natureza jurídica, a suspensão do processo possui caráter inequivocamente temporário e sem qualquer grau de definitividade (Chiovenda, 1998, p. 210). Alguns anos mais tarde, no entanto, veio à luz a anistia concedida pela Junta de Governo mediante o Decreto Ley n.º 2.191, de 18 de abril de 1978, que estabelecera: Artículo 1° - Concédese amnistía a todas las personas que, en calidad de autores, cómplices o encubridores hayan incurrido en hechos delictuosos, durante la vigencia de la situación de Estado de Sitio, comprendida entre el 11 de Septiembre de 1973 y el 10 de Marzo de 1978, siempre que no se encuentren actualmente sometidas a proceso o condenadas (CorteIDH, 2006, p. 30).

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Agentes policiais vinculados ao Ministério do Interior do Chile.

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Em novembro de 1992, adveio o requerimento judicial da viúva de Almonacid Arellano solicitando o fim do sobrestamento do processo penal, o que foi acatado pelo Juízo com a posterior oitiva dos suspeitos do homicídio. Entretanto, após diversas idas e vindas processuais, a Corte Suprema do Chile declarou a competência do Juízo Militar para processar e julgar o feito. Sobreveio, então, a decisão da Corte Marcial que extinguiu o processo penal e, em seus fundamentos, reproduziu precedentes jurisprudenciais da própria Suprema Corte do Chile em prol da prevalência da lei de anistia no caso concreto: la amnistía [es] una causal objetiva de extinción de responsabilidad criminal [y] sus efectos se producen de pleno derecho a partir del momento establecido por la ley, sin que puedan ser rehusados por sus beneficiarios […], pues se trata de leyes de derecho público, que miran al interés general de la sociedad. [Grifou-se] (CorteIDH, 2006, p. 34).

Inspirada na interlocução necessária entre o direito penal internacional e o direito internacional dos direitos humanos, ao julgar o caso Almonacid Arellano a Corte Interamericana reconheceu que os crimes contra a humanidade incluem a comissão de atos desumanos, tais quais assassinatos cometidos em um contexto de ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil. Nesse sentido, basta que um único ato ilícito seja praticado sob tais condições para que se produza um crime de lesa-humanidade, consoante decidido pelo Tribunal Internacional ad hoc para a ex-Iugoslávia no caso Prosecutor v. Dusko Tadic (CorteIDH, 2006, p. 45). Foi determinado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, então, que a investigação sobre a morte da vítima fosse realizada por todos os meios legais disponíveis e orientada para a determinação da verdade e para a persecução, captura, processamento e punição de todos os responsáveis intelectuais e materi  

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ais pelos atos sob trato, especialmente se estiverem envolvidos agentes públicos. Outro dado importante ressaltado pelo Tribunal Interamericano refere-se à aplicação do princípio da efetividade, na medida em que, para a Corte, não podem ser considerados efetivos os recursos (legal remedies) que resultarem ilusórios, seja em virtude das condições gerais do país, seja em razão das circunstâncias especiais do caso concreto (CorteIDH, 2006, p. 50). Via de consequência, concluiu-se que os Estados não podem subtrair-se ao dever de investigar, identificar e punir os responsáveis por crimes de lesahumanidade, sob a justificativa da aplicação de leis de anistia ou de outro tipo de norma interna excludente de responsabilidade. Em dezembro de 2006, a Suprema Corte do Chile referiu-se expressamente à jurisprudência da Corte Interamericana nos casos Barrios Altos e Almonacid Arellano, para estatuir que as normas estatais internas não possam ser utilizadas como obstáculos para a persecução penal dos perpetradores de graves Violações aos Direitos Humanos (Binder, 2011, p. 1221). Apesar dessa louvável decisão da Suprema Corte nacional, a Corte Interamericana emitiu a Resolução de 18 de novembro de 2010, na qual identificou vários pontos de sua sentença internacional ainda pendentes de implementação pelo Estado chileno, sempre inspirada no princípio da efetividade, a citar: a) investigar, identificar, juzgar y, en su caso, sancionar a los responsables por la ejecución extrajudicial del señor Almonacid Arellano y el deber de asegurar que el Decreto Ley No. 2.191 no siga representando un obstáculo para la continuación de las investigaciones […]; y b) asegurar que el Decreto Ley No. 2.191 no siga representando un obstáculo para la investigación, juzgamiento y, en su caso, sanción de los responsables de otras violaciones similares acontecidas en Chile […]. (CorteIDH, 2010, p. 11-12).

 

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Em 14 de janeiro de 2013, a Corte de Apelaciones de Rancagua (Chile) prolatou decisão unânime na investigação sobre o homicídio de Luis Almonacid Arellano, por intermédio da qual foi ratificada a sentença de primeira instância que havia condenado Raúl Neveu Cortesi à pena de 5 (cinco) anos de prisão, na qualidade de autor do crime sob trato, mas concedendo ao condenado o benefício da liberdade vigiada (PJCH, 2013). 5.4. Caso Gelman vs. Uruguay (2011) Os fatos do caso Gelman vs. Uruguay (CorteIDH, 2011) remontam ao contexto das trocas de informações e operações repressivas transnacionais denominadas “Operação Condor”, envolvendo Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile e Bolívia. Chama atenção o caráter oficial do conjunto de ações concertadas, inclusive com a lavratura formal de uma ata de fundação. Segundo a Corte Interamericana, foram três as grandes áreas de atuação da “Operação Condor: a) Vigilância dos dissidentes exilados ou refugiados; b) Operações secretas de contrainteligência; c) Ações conjuntas de extermínio, com atuação de grupos específicos que operavam dentro e fora das fronteiras nacionais, inclusive nos Estados Unidos e Europa.

Na amplitude dessas ações repressivas conjugadas, ocorreu a detenção em Buenos Aires de María Claudia García Casinelli em 24 de agosto de 1976. De nacionalidade argentina e então com 19 anos, a vítima era estudante da Universidade de Buenos Aires e estava grávida de 7 (sete) meses quando foi sequestrada juntamente com seu esposo Marcelo Gelman (torturado e morto separadamente). Transferida para Montevideo e alojada no Servicio de Información de Defensa uruguaio, Maria Claudia García deu à luz sua filha em um hospital militar. Em dezembro de 1976, porém, foi-lhe retirada a guarda da filha recém-nascida, tendo sido a criança entregue à  

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família de um policial uruguaio, portando apenas um bilhete com a sua data de nascimento e a informação de que a genitora não possuía condições para criá-la. Em sequência, María Claudia García (mãe) foi executada no Uruguai ou na Argentina (dúvida que ainda permanece). Após longas e difíceis investigações privadas de Juan Gelman, pai de Marcelo Gelman e sogro de María Claudia García, foi possível localizar sua neta Maria Macarena Tauriño Vivian (nome dado pela família de criação), então com 23 anos. Por intermédio de exames de DNA, foi possível atestar a ascendência, sua vinculação direta com as famílias Gelman e Casinelli e, portanto, a filiação biológica. Como sói acontecer nas ditaduras latinoamericanas, também no Uruguai foi editada uma norma de isenção de responsabilidade penal dos perpetradores, materializada na denominada Ley de Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado (n.º 15.848), de 22 de dezembro de 1986, que dispunha: Artículo 1º.- Reconócese que, como consecuencia de la lógica de los hechos originados por el acuerdo celebrado entre partidos políticos y las Fuerzas Armadas en agosto de 1984 y a efecto de concluir la transición hacia la plena vigencia del orden constitucional, ha caducado el ejercicio de la pretensión punitiva del Estado respecto de los delitos cometidos hasta el 1º de marzo de 1985 por funcionarios militares y policiales, equiparados y asimilados por móviles políticos o en ocasión del cumplimiento de sus funciones y en ocasión de acciones ordenadas por los mandos que actuaron durante el período de facto (CorteIDH, 2011, p. 46).

Ainda no ano de 1988, a Suprema Corte de Justicia uruguaia declarou que o supracitado dispositivo legal configurava-se plenamente constitucional e que, apesar de não se referir textualmente à palavra “anistia”, a intenção do legislador teria sido conferir uma “autênti  

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ca anistia” às forças nacionais de segurança (Abraham; Mattei, 2012, p. 98). Interessante destacar que a mesma Ley de Caducidad sob trato foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte do Uruguai em 2009, o que merece alguns esclarecimentos. Restaurada a validade da Constituição da República de 1967 a partir de 1.º de março de 1985, ocorreram no Uruguai reformas constitucionais parciais plebiscitárias de menor impacto normativo nos anos de 1989, 1994 e 2004 acerca de temas pontuais, a citar: aposentadorias e pensões, reajuste monetário de proventos e acesso à água potável e ao saneamento básico. Entretanto, uma reforma parcialmente estrutural foi feita em 1996, com a reformulação de disposições sobre eleições, partidos políticos, processo legislativo, atribuições presidenciais e matérias governativas outras (Espiell; Gallicchio, 2008). Tais premissas indicam que não teria havido alterações textuais na estrutura dos direitos fundamentais positivados na Carta Magna uruguaia entre as duas declarações aparentemente conflitantes da Suprema Corte de Justicia, com referência à testagem de constitucionalidade da Ley de Caducidad (1988 e 2009), o que pode indicar a ocorrência do fenômeno da mutação constitucional.10 No julgamento do caso Gelman, além de manter a mesma linha da jurisprudência externada nos casos Barrios Altos e Almonacid Arellano, a Corte Interameri10

A mutação constitucional, vinculada à mudança do conteúdo e do significado das normas constitucionais pela via informal (sem alteração do texto), guarda relação com a atualização e a modificação da constituição em virtude do câmbio na esfera da realidade fática (social, econômica, cultural etc.) e, em razão disso, diferente da reforma constitucional (textual), não representa em geral um acontecimento específico, na medida em que resulta de um processo maturado ao longo de um interstício temporal mais ou menos dilatado (Sarlet, 2012, p. 146, 148).

 

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cana considerou que a incompatibilidade do Pacto de San José de Costa Rica com as anistias de graves violações aos direitos humanos abrange, além da premissa procedimental e de legitimidade da própria autoridade que tenha emitido a lei de anistia, a sua própria ratio legis, centrada em assegurar a impunidade dos perpetradores (CorteIDH, 2011, p. 67). Surpreendentemente, em outubro de 2011 foi noticiado o processamento e a detenção de 5 (cinco) acusados pelo homicídio de María Claudia García, sendo deles 4 (quatro) militares aposentados e 1 (um) ex-policial, todos na condição de coautores. Conjuntamente, foi requerida pelo juízo criminal uruguaio processante a extradição de um coronel militar fora da ativa detido na Argentina, supostamente envolvido nos crimes em questão (El País, 2011). Na sessão aberta do Parlamento de 22 de março de 2012, marcada pela honrosa presença de Juan Gelman (sogro) e María Macarena Gelman11 (filha), o Estado do Uruguai assumiu publicamente a responsabilidade pelo desaparecimento de María Claudia García. Com a mesa composta pelo Presidente da Suprema Corte de Justicia, do Presidente e do Vice-Presidente da República, deu-se cumprimento a uma parte significativa da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em prol de proporcionar a mais ampla divulgação acerca do cumprimento da sentença da Corte Interamericana pelo Estado uruguaio, a disponibilização do vídeo da sessão do Parlamento no site Youtube (2012) pode ser considerada medida combinante com a atualização do princípio da publicidade no âmbito do processo internacional de direitos humanos. 11 Decidida a “corrigir” seu nome para vinculá-lo a seus pais biológicos, María Macarena Tauriño Vivian conseguiu registrar-se oficialmente como María Macarena Gelman García Iruretagoyena (CorteIDH, 2011, p. 35).

 

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Pouco após esses acontecimentos, uma lamentável surpresa foi o posicionamento da Suprema Corte de Justicia do Uruguai (SCJ, 2013), ao decidir em 8 de março de 2013 em prol da inconstitucionalidade da lei uruguaia que havia estabelecido a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade praticados durante o período de exceção. O que mais impressionou no julgado foi o fundamento adotado pela maioria dos juízes do Tribunal, centrado no princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, ou seja, na impossibilidade de aplicar de maneira retroativa os artigos da lei nacional que haviam firmado a imprescritibilidade de tais crimes. Na prática, a decisão judicial da Suprema Corte de Justicia servirá de base para o arquivamento de uma série de processos criminais instaurados perante os juízos ordinários contra perpetradores de graves Violações aos Direitos Humanos, tornando a Ley de Caducidad tão válida quanto eficaz perante a ordem interna uruguaia, em flagrante contrariedade ao Pacto de San José de Costa Rica e, especialmente, à sentença da Corte Interamericana prolatada no caso Gelman.

Considerações Finais No processo político de tomada do poder institucional por intermédio do uso das forças repressivas disponíveis, a primeira providência adotada foi, coincidentemente, a suspensão de direitos e liberdades ou a grave restrição à sua fruição com o uso das mais diversas nomenclaturas político-jurídicas, mas estruturalmente sob a mesma fórmula padrão: Estado de exceção, suspensão da condição humana de sujeito de direito e violação massiva de direitos humanos sob a titularidade do Estado. A indicar a conjuntura geral dos Estados em que ocorridas as violações apreciadas pela Corte Interame  

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ricana de Direitos Humanos com foco na temática da autoanistia, insta registrar com destaque: a) Caso Barrios Altos vs. Peru (CorteIDH, 2001): atuação de grupo de extermínio composto por membros do exército e dirigido por membros do governo, que culminou na morte por tiros de 15 (quinze) pessoas e no ferimento grave de outras 4 (quatro) em 3 de novembro de 1991, inserida na violência estatal recrudescida na ambiência preparatória do golpe intitulado “Gobierno de Emergencia y Reconstrucción Nacional” (5 de abril de 1992), que dissolveu o Congresso e interveio arbitrariamente no Poder Judiciário; b) Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile (CorteIDH, 2006): homicídio de Luis Arellano por forças policiais em 17 de setembro de 1973, inserido no contexto do Golpe de Estado, que culminou na morte do então Presidente Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, e do Estado de Sítio formalmente decretado no dia 22 seguinte; c) Caso Gelman vs. Uruguay (CorteIDH, 2011): detenção arbitrária de María Claudia García no dia 24 de agosto de 1976 em Buenos Aires, seguido do sequestro de sua filha recém-nascida (Montevideo) e posterior desaparecimento forçado da genitora, por intermédio do aparato transnacional da “Operação Condor” e sustentado pelos Atos Institucionais editados no Uruguai a partir de junho de 1976. Nesse contexto, a percepção do caráter antijurídico das leis de autoanistia na ambiência do direito internacional dos direitos humanos é assumida explicitamente em manifestações de órgãos das Nações Unidas, sentenças de tribunais internacionais e pela doutrina publicista prevalecente. Em contrapartida, a prática dos Estados sob análise (Peru, Chile e Uruguai) tem buscado acompanhar o progressivo desenvolvimento da matéria, ainda que sem a adoção de uma perspectiva necessariamente coerente, a confirmar a tese de Walter Benjamin (1992, p. 150), para quem as concepções de linearidade, ho  

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mogeneidade e evolução em história ainda se configuram insustentáveis.

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Justiça de transição, reformas institucionais e consolidação do Estado Democrático de Direito O caso brasileiro

Flávia  Piovesan1  

1. Introdução Como enfrentar as graves violações de direitos humanos perpetradas no passado? Como ritualizar a passagem de um regime militar ditatorial a um regime democrático? Como compreender o impacto do sistema interamericano o processo de justiça de transição no contexto sul-americano? Como interpretar as leis de anistia em face das obrigações jurídicas assumidas na esfera internacional? Qual é o alcance dos deveres in1 Professora Doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha); visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005), visiting fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007 e 2008), sendo desde 2009 Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max Planck Institute; procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.

 

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ternacionais contraídos pelos Estados relativamente ao direito à verdade, à justiça, à reparação e a reformas institucionais? Quais são os principais desafios e perspectivas concernentes às reformas institucionais e à consolidação do Estado Democrático de Direito sob o prisma da justiça transicional considerando a experiência brasileira? São estas as questões centrais a inspirar este artigo, que tem como objetivo maior enfocar o direito à verdade, o direito à justiça e reformas institucionais no marco da justiça de transição sul-americana, considerando o especial impacto do sistema interamericano. Sob esta perspectiva, emerge o desafio de assegurar o fortalecimento do Estado de Direito, da democracia e dos direitos humanos, aliando a luta por justiça e paz na experiência brasileira.

2. Proteção do Direito à Verdade, à Justiça e Reformas Institucionais: Impacto do Sistema Interamericano no contexto sul-americano Dois períodos demarcam o contexto latinoamericano: o período dos regimes ditatoriais; e o período da transição política aos regimes democráticos, marcado pelo fim das ditaduras militares na década de 80, na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Brasil. Em 1978, quando a Convenção Americana de Direitos Humanos entrou em vigor, muitos dos Estados da América Central e do Sul eram governados por ditaduras. Dos 11 Estados-partes da Convenção à época, menos que a metade tinha governos eleitos democraticamente, ao passo que hoje quase a totalidade dos Estados latino-americanos na região tem governos eleitos democraticamente2. Diversamente do sistema regi2 Como observa Thomas Buergenthal: “O fato de hoje quase a totalidade dos Estados latino-americanos na região, com exceção de

 

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onal europeu que teve como fonte inspiradora a tríade indissociável Estado de Direito, Democracia e Direitos Humanos3, o sistema regional interamericano tem em sua origem o paradoxo de nascer em um ambiente acentuadamente autoritário, que não permitia qualquer associação direta e imediata entre Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos. Ademais, neste contexto, os direitos humanos eram tradicionalmente concebidos como uma agenda contra o Estado. Diversamente do sistema europeu, que surge como fruto do processo de integração européia e tem servido como relevante instrumento para fortalecer este processo de integração, no caso interamericano havia tão somente um movimento ainda embrionário de integração regional. A região latino-americana tem sido caracterizada por elevado grau de exclusão e desigualdade social ao qual se somam democracias em fase de consolidação. A região ainda convive com as reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais, com uma cultura de violência e de impunidade, com a baixa densidade de Estados de Direitos e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos no âmbito doméstico. A América Latina tem o mais alto índice de desigualdade do mundo, no campo da distribuição de renda4. No que se refere à densidade democrática, seCuba, terem governos eleitos democraticamente tem produzido significativos avanços na situação dos direitos humanos nesses Estados. Estes Estados ratificaram a Convenção e reconheceram a competência jurisdicional da Corte”. (Prefácio de Thomas Buergenthal, Jo M. Pasqualucci, The Practice and Procedure of the Inter-American Court on Human Rights, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. XV). 3 A respeito, ver Clare Ovey e Robin White, European Convention on Human Rights, 3a ed., Oxford, Oxford University Press, 2002, p.1 e Flavia Piovesan, Direitos Humanos e Justiça Internacional, 3ª edição, São Paulo, ed. Saraiva, 2012. 4 De acordo com o ECLAC: “Latin America’s highly inequitable and inflexible income distribution has historically been one of its most prominent traits. Latin American inequality is not only greater than

 

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gundo a pesquisa Latinobarômetro, no Brasil apenas 47% da população reconhece ser a democracia o regime preferível de governo; ao passo que no Peru este universo é ainda menor correspondendo a 45% e no México a 43%5. É neste cenário que o sistema interamericano se legitima como importante e eficaz instrumento para a proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas. Com a atuação da sociedade civil, a partir de articuladas e competentes estratégias de litigância, o sistema interamericano tem a força catalizadora de promover avanços no regime de direitos humanos. Permitiu a desestabilização dos regimes ditatoriais; exigiu justiça e o fim da impunidade nas transições democráticas; e agora demanda o fortalecimento das instituições democráticas that seen in other world regions, but it also remained unchanged in the 1990s, then took a turn for the worse at the start of the current decade.” (ECLAC, Social Panorama of Latin America - 2006, chapter I, page 84. Available at http://www.eclac.org/cgibin/getProd.asp?xml=/publicaciones/xml /4/27484/P27484.xml&xsl=/dds/tpli/p9f.xsl&base=/tpl-i/topbottom.xslt (access on July 30, 2007). No mesmo sentido, afirmam Cesar P. Bouillon e Mayra Buvinic: “(…) In terms of income, the countries in the region are among the most inequitable in the world. In the late 1990s, the wealthiest 20 percent of the population received some 60 percent of the income, while the poorest 20 percent only received about 3 percent. Income inequality deepened somewhat during the 1990s (…) Underlying income inequality, there are huge inequities in the distribution of assets, including education, land and credit. According to recent studies, the average length of schooling for the poorest 20 percent is only four years, while for the richest 20 percent is 10 years.” (Cesar P. Bouillon e Mayra Buvinic, Inequality, Exclusion and Poverty in Latin America and the Caribbean: Implications for Development, Background document for EC/IADB “Seminar on Social Cohesion in Latin America,” Brussels, June 5-6, 2003, p. 3-4, par. 2.8). Acessar: http://www.iadb.org/sds/doc/soc-idb-socialcohesion-e.pdf, Julho 2007. Consultar ainda ECLAC, Social Panorama of Latin America 2000-2001, Santiago de Chile: Economic Commission for Latin America and the Caribbean, 2002. 5 Ver Democracy and the downturn: The latinobarometro poll, The Economist, 13 de novembro de 2008.

 

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com o necessário combate às violações de direitos humanos e proteção aos grupos mais vulneráveis. Considerando a atuação da Corte Interamericana no processo de justiça de transição no contexto sulamericano, destaca-se, como caso emblemático, o caso Barrios Altos versus Peru6 – massacre que envolveu a execução de catorze pessoas por agentes policiais. Em virtude da promulgação e aplicação de leis de anistia (uma que concede anistia geral aos militares, policiais e civis, e outra que dispõe sobre a interpretação e alcance da anistia), o Peru foi condenado a reabrir investigações judiciais sobre os fatos em questão, relativos ao “massacre de Barrios Altos”, de forma a derrogar ou a tornar sem efeito as leis de anistia mencionadas. O Peru foi condenado, ainda, à reparação integral e adequada dos danos materiais e morais sofridos pelos familiares das vítimas7. A Corte Interamericana realçou que, ao estabelecer excludentes de responsabilidade e impedir investigações e punições de violações de direitos humanos como tortura, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados, leis de anistia são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos. No entender da Corte: “La Corte, conforme a lo alegado por la Comisión y no controvertido por el Estado, considera que las leyes de amnistía adoptadas por el Perú impidieron que los familiares de las víctimas y las víctimas sobrevivientes en el presente caso fueran oídas por un juez, conforme a lo señalado en el artículo 8.1 de la Convención; violaron el derecho a la protección judicial consagrado en el artículo 25 de la Convención; impidieron la investigación, persecución, captura, enjuiciamiento y sanción de los responsables de los hechos 6

Caso Barrios Altos vs Peru. Fondo. Sentencia de 14 de marzo de 2001. Serie C No. 75. http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_75_esp.pdf 7 Barrios Altos case (Chumbipuma Aguirre and others vs. Peru). Judgment of 14 March 2001.

 

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ocurridos en Barrios Altos, incumpliendo el artículo 1.1 de la Convención, y obstruyeron el esclarecimiento de los hechos del caso.Finalmente, la adopción de las leyes de autoamnistía incompatibles con la Convención incumplió la obligación de adecuar el derecho interno consagrada en el artículo 2 de la misma”. Conclui a Corte que as leis de “auto-anistia” perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que constituiria uma manifesta afronta à Convenção Americana. As leis de anistiam configurariam, assim, um ilícito internacional e sua revogação uma forma de reparação não pecuniária. Esta decisão apresentou um elevado impacto na anulação de leis de anistia e na consolidação do direito à verdade, pelo qual os familiares das vítimas e a sociedade como um todo devem ser informados das violações, realçando o dever do Estado de investigar, processar, punir e reparar violações aos direitos humanos. Foi a primeira vez, no Direito Internacional contemporâneo, que um Tribunal internacional determinou que leis de anistia eram incompatíveis com tratados de direitos humanos, carecendo de efeitos jurídicos. No mesmo sentido, destaca-se o caso Almonacid Arellano versus Chile8 cujo objeto era a validade do 8

Ver caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile. Sentencia de 26 de septiembre de 2006. Serie C n. 154. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf (acesso em 27/12/08). Ver ainda as sentenças proferidas nos seguintes casos: a) caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Fondo. Sentencia de 29 de julio de 1988. Serie C No. 4- disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_04_esp.pdf; b) caso Bámaca Velásquez Vs. Guatemala. Fondo. Sentencia de 25 de noviembre de 2000. Serie C No. 70. http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_70_esp.pdf; c) caso La Cantuta Vs. Peru. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de noviembre de 2006. Serie C No.

 

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decreto-lei 2191/78 -- que perdoava os crimes cometidos entre 1973 e 1978 durante o regime Pinochet -- à luz das obrigações decorrentes da Convenção Americana de Direitos Humanos. Para a Corte Interamericana: “La adopción y aplicación de leyes que otorgan amnistía por crímenes de lesa humanidad impide el cumplimiento de las obligaciones señaladas. El Secretario General de las Naciones Unidas, en su informe sobre el establecimiento del Tribunal Especial para Sierra Leona, afirmó que [a]unque reconocen que la amnistía es un concepto jurídico aceptado y una muestra de paz y reconciliación al final de una guerra civil o de un conflicto armado interno, las Naciones Unidas mantienen sistemáticamente la posición de que la amnistía no puede concederse respecto de crímenes internacionales como el genocidio, los crímenes de lesa humanidad o las infracciones graves del derecho internacional humanitário. (...) Leyes de amnistía con las características descritas conducen a la indefensión de las víctimas y a la perpetuación de la impunidad de los crímenes de lesa humanidad, por lo que son manifiestamente incompatibles con la letra y el espíritu de la Convención Americana e indudablemente afectan derechos consagrados en ella. Ello constituye per se una violación de la Convención y genera responsabilidad.” Acrescenta a Corte: “En consecuencia, dada su naturaleza, el Decreto Ley N. 2.191/78 carece de efectos jurídicos y no puede seguir representando un obstáculo para la investigación de los hechos que constituyen este caso, ni para la identificación y el castigo de los responsables, ni puede tener igual o similar impacto respecto de otros casos de violación de los derechos

162.http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_162_esp. pdf; d) caso de la Comunidad Moiwana Vs. Suriname. Excepciones Preliminares, Fondo, reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de junio de 2005. http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_124_esp1.pd f; e) caso Castillo Páez Vs. Peru. Reparaciones y Costas. Sentencia de 27 de noviembre de 1998. http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_43_esp.pdf

 

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consagrados en la Convención Americana acontecidos en Chile”. Por fim, por unanimidade, concluiu a Corte pela invalidade do mencionado decreto lei de “autoanistia”, por implicar denegação de justiça às vítimas, bem como por afrontar os deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes de lesa humanidade. Em direção similar, adicione-se o caso La Cantuta versus Peru9, referente à execução sumária de um professor e nove estudantes da Universidade de La Cantuta, em 1992, perpetrada por um “esquadrão da morte” denominado “Grupo Colina”, também responsável pelo assassinato de catorze vítimas no caso Barrios Altos, em 1991. Neste caso, sustentou a Corte Interamericana que “o aparto estatal foi indevidamente utilizado para cometer crimes de Estado, constituindo inadmissível violação ao jus cogens, para, depois, encobrir tais crimes e manter seus agentes impunes. (...) O jus cogens resiste aos crimes de Estado, impondo-lhe sanções.” Como será enfocado por este estudo, em 2010, no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, a Corte Interamericana condenou o Brasil em virtude do desaparecimento de integrantes da guerrilha do Araguaia durante as operações militares ocorridas na década de 7010. A Corte realçou que as disposições da lei de anistia de 1979 são manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e punição dos responsáveis. Enfatizou que leis de anistia relativas a graves viola9

Caso La Cantuta versus Peru, sentença de 29 de novembro de 2006.

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Caso Gomes Lund and others versus Brasil, Judgment of 24 November 2010.

 

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ções de direitos humanos são incompatíveis com o Direito Internacional e as obrigações jurídicas internacionais contraídas pelos Estados. Respaldou sua argumentação em vasta e sólida jurisprudência produzida por órgãos das Nações Unidas e do sistema interamericano, destacando também decisões judiciais emblemáticas invalidando leis de anistia na Argentina, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Colômbia. Concluiu, uma vez mais, que as leis de anistia violam o dever internacional do Estado de investigar e punir graves violações a direitos humanos. Ao compartilhar do mesmo entendimento, em 2011, no caso Gelman versus Uruguai11, a Corte Interamericana decidiu que a “Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva” carecia de efeitos jurídicos por sua incompatibilidade com a Convenção Americana e com a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, não podendo impedir ou obstar a investigação dos fatos, a identificação e eventual sanção dos responsáveis por graves violações a direitos humanos. À luz dos parâmetros protetivos mínimos estabelecidos pelo sistema interamericano, destacam-se cinco direitos: a) o direito a não ser submetido à tortura nem a desaparecimento forçado; b) o direito à justiça (o direito à proteção judicial); c) o direito à verdade; d) o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese de violação a direitos (direito a remédios efetivos); e e) garantias de não repetição decorrentes do dever do Estado de prevenir violações a direitos huma-

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Caso Gelman versus Uruguai, Judgment of 24 February 2011.

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nos, mediante reformas institucionais (sobretudo no aparato da segurança e da justiça). A racionalidade adotada pela Corte Interamericana é clara: as leis de anistia violam parâmetros protetivos internacionais; constituem um ilícito internacional; e não obstam o dever do Estado de investigar, julgar e reparar as graves violações cometidas, assegurando às vítimas os direitos à justiça e à verdade. Acrescente-se, ainda, o dever do Estado de prevenir violações a direitos humanos, mediante garantias de não repetição – o que demanda reformas institucionais, especialmente no aparato da segurança e da justiça. Frise-se que os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos estabelecem um núcleo inderrogável de direitos, a serem respeitados seja em tempos de guerra, instabilidade, comoção pública ou calamidade pública, como atestam o artigo 4º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o artigo 27 da Convenção Americana de Direitos Humanos e o artigo 15 da Convenção Européia de Direitos Humanos12.Este núcleo inderrogável consagra o direito a não ser submetido à tortura. A Convenção contra a Tortura, de igual modo, no artigo 2 , consagra a cláusula da inderrogabilidade da proibição da tortura, ou seja, nada pode justificar a prática da tortura (seja ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública).Todos estes tratados convergem ao endossar a absoluta proibição da tortura. Isto é, o direito a não ser submetido à tortura é um direito absoluto, que não permite qualquer exceção, suspensão ou derrogação. No que se refere ao direito a não ser submetido a desaparecimento forçado, em 23 de dezembro de 2010, entrou em vigor a Convenção Internacional para o

12 Ver também a Recomendação Geral n.29 do Comitê de Direitos Humanos, que esclareceu acerca dos direitos inderrogáveis e identificou os elementos que não podem ser sujeitos à suspensão.

 

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a Proteção de todas as pessoas contra o Desaparecimento Forçado, contando, até junho de 2012, com 33 Estados-partes, incluindo o Estado Brasileiro que a ratificou em 29 de novembro de 2010. A Convenção estabelece o direito a não ser submetido a desaparecimento forçado, bem como o direito da vítima à justiça e à reparação. Esclarece que nenhuma circunstância excepcional – seja estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública – poderá ser invocada como justificativa para o desaparecimento forçado. Adiciona também o direito da vítima de conhecer a verdade sobre as circunstâncias do desaparecimento forçado e o destino das pessoas desaparecidas, enunciando o direito à liberdade de buscar, receber e difundir tais informações13. Prescreve a Convenção que, por sua extrema gravidade, a prática generalizada ou sistemática de desaparecimento forçado constitui crime contra a hu13 Recentes decisões do STF autorizaram a extradição de militares argentinos acusados de crime de sequestro durante a ditadura naquele país, entendendo que “nos delitos de sequestro, quando os corpos não foram encontrados, (...) está-se diante de um delito de caráter permanente” (STF, Extradição n.1.150). A lei de anistia explicitamente estabelece que “excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Em 18 de setembro de 2012, o STF acolheu outro pedido de extradição de militar argentino acusado da prática de crimes durante a ditadura militar naquele país. Reiterou o Supremo que “nos delitos de seqüestro, quando os corpos não forem encontrados, em que pese o fato do crime ter sido cometido há décadas, está-se diante de um delito de caráter permanente, com relação ao qual não há como assentar-se a prescrição”. Em 30 de agosto de 2012, o Tribunal Regional Federal do Pará recebeu denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra militares acusados da prática do crime de seqüestro na guerrilha do Araguaia. O coronel reformado Sebastião Rodrigues de Moura (mais conhecido como major Curió) e o major reformado Lício Augusto Maciel tornaram-se os primeiros réus por crimes da ditadura na Justiça brasileira. Acrescente-se que, em 14 de agosto de 2012, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo confirmou, por decisão unânime, sentença que reconheceu a prática de tortura pelo coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra em face de integrantes da família Teles.

 

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manidade. Impõe, ainda, aos Estados-partes o dever de prevenir e punir a prática de desaparecimento forçado, instituindo um Comitê próprio (“Comitê contra Desaparecimentos Forçados”, nos termos do art.26 da Convenção) com a competência de apreciar relatórios periódicos submetidos pelos Estados-partes, petições individuais e comunicações inter-estatais (arts. 29, 31 e 32 da Convenção, respectivamente). É previsto, ademais, o poder do Comitê de realizar investigações in loco, em conformidade com o art. 33 da Convenção. No sistema global de proteção, cabe ainda menção à Recomendação Geral n. 20, de abril de 1992, adotada pelo Comitê de Direitos Humanos, a respeito do artigo 7º do Pacto de Direitos Civis e Políticos, concernente à proibição da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, que ressalta: “As anistias são geralmente incompatíveis com o dever dos Estados de investigar tais atos; para garantir a não ocorrência de tais atos dentro de sua jurisdição; e para assegurar que não ocorram no futuro. Os Estados não podem privar os indivíduos de seu direito a um recurso eficaz, inclusive a possibilidade de compensação e plena reabilitação.”14 No mesmo sentido, destaca-se a Recomendação Geral n. 31, adotada pelo Comitê de Direitos Humanos, em 2004, ao afirmar: “O artigo 2, parágrafo 3, requer que os Estados partes proporcionem a reparação aos indivíduos cujos direitos do Pacto forem violados. Sem reparação aos indivíduos cujo direito foi violado, a obrigação de fornecer um recurso eficaz, que é central à eficácia do artigo 2, parágrafo 3, não é preenchida. (...) O Comitê ressalta que, quando apropriada, a reparação deve abranger a restituição, a reabilitação e as medidas de satisfação, tais como pedidos de descul14 Recomendação Geral n. 20, do Comitê de Direitos Humanos da ONU, sobre o artigo 7 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, disponível em: http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/6924291970754969c125 63ed004c8ae5?Opendocument

 

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pas em público, monumentos públicos, garantia de nãorepetição e mudanças em leis e em práticas relevantes, assim como conduzir à justiça os agentes de violações dos direitos humanos. (...) Os Estados partes devem assegurar que os responsáveis por violações de direitos determinados no Pacto, quando as investigações assim revelarem, sejam conduzidos aos tribunais. Como fracasso na investigação, o fracasso em trazer os agentes violadores à justiça poderia causar uma ruptura do Pacto. (...) Dessa forma, onde os agentes públicos ou estatais cometeram violações dos direitos do Pacto, os Estados partes envolvidos não podem aliviar os agressores da responsabilidade pessoal, como ocorreram com determinadas anistias e as imunidades e indenizações legais prévias. Além disso, nenhuma posição oficial justifica que pessoas que poderiam ser acusadas pela responsabilidade por tais violações permaneçam imunes de sua responsabilidade legal. Outros impedimentos à determinação da responsabilidade legal também devem ser removidos, como a defesa por devido cumprimento do dever legal ou aos períodos absurdamente curtos da limitação estatutária nos casos onde tais limitações são aplicáveis. Os Estados partes devem também ajudar a conduzir à justiça os suspeitos de cometimento de atos de violação ao Pacto, os quais são puníveis sob a legislação doméstica ou internacional.”15 Ressalte-se, por fim, que à luz da jurisprudência do sistema interamericano e do sistema global de proteção, fundamental é o dever do Estado de prevenir graves violações a direitos humanos, mediante garantias de não repetição. Isto realça a relevância das reformas institucionais visando alcançar um objetivo central para uma justiça transicional legítima e eficaz: a pre-

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Recomendação Geral n. 31, do Comitê de Direitos Humanos da ONU, sobre a natureza da obrigação geral imposta aos Estados partes do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, disponível em: http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/CCPR.C.21.Rev.1.Add. 13.En?Opendocument.

 

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venção de ocorrências de abusos e violações a direitos humanos. Para o Comitê de Direitos Humanos da ONU, como medida de prevenção, faz-se fundamental a exclusão de serviços públicos de agentes diretamente envolvidos em violações de direitos humanos do passado (mecanismo do “vetting”). Na mesma direção, a Corte Interamericana de Direitos Humanos endossa que: “a impunidade dos perpetradores da prática de tortura em regimes repressivos significa uma violação ao dever de prevenção”. Os Princípios das Nações Unidas no Combate à Impunidade frisam a natureza preventiva do “vetting” – por meio da remoção de servidores públicos responsáveis por sérios abusos de direitos humanos – como uma medida central no campo das reformas institucionais visando à prevenção de violações a direitos humanos.Além disso, o mecanismo do “vetting” pode exercer um importante impacto em assegurar a legitimidade de instituições públicas16 Logo o instituto do “vetting” apresenta três impactos relevantes: a) sanção dos perpetradores de graves violações; b) a prevenção de ocorrência de futuras violações; e c) reformas institucionais. O “vetting” -como um elemento da reforma institucional e da justiça de transição -- deve ser considerado como uma medida para reformar instituições responsáveis por violações a direitos humanos, atribuindo responsabilização individual àqueles envolvidos em abusos de direitos humanos perpetrados no passado. Como uma medida central para as reformas institucionais, o “vetting”, em larga medida, afeta o funcionamento de instituições a se-

16 Recomendação Geral n. 20, do Comitê de Direitos Humanos da ONU, sobre o artigo 7 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, disponível em: http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/6924291970754969c125 63ed004c8ae5?Opendocument

 

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rem reformadas, influenciando ainda o processo de reforma de outras instituições.17

3. Proteção do Direito à Verdade e à Justiça e Reformas Institucionais: impacto do Sistema Interamericano no caso brasileiro Acenando a um isolamento no contexto da justiça de transição sul-americano – marcado pelas sucessivas anulações de leis de anistia -- em 29 de abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.153, manteve a interpretação de que a lei de anistia de 1979 (Lei n. 6683/79) teria assegurado anistia ampla, geral e irrestrita, alcançando tanto as vítimas como os algozes. O argumento central é que lei de anistia teria sido expressão de um acordo político, de uma conciliação nacional, envolvendo “diversos atores sociais, anseios de diversas classes e instituições políticas”. Acrescentou o Supremo Tribunal Federal que não caberia ao Poder Judiciário “reescrever leis de anistia”, não devendo o Supremo “avançar sobre a competência constitucional do Poder Legislativo”, tendo em vista que “a revisão da lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá de ser feita pelo Poder Legislativo e não pelo Poder Judiciário”. Observou, contudo, a necessidade de assegurar “a possibilidade de acesso aos documentos históricos, como forma de exercício fundamental à verdade, para que, atento às lições do passado, possa o Brasil prosseguir na construção madura do futuro democrático”. Concluiu afirmando que “é necessário não esquecermos, para que

17

Ver Maja Kova, Vetting as an Element of Institutional Reform and Transitional Justice, Institute of Criminological and Sociological Research, Belgrado, 2007.

 

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nunca mais as coisas voltem a ser como foram no passado.” Com esta decisão, o Supremo Tribunal Federal denegou às vítimas o direito à justiça – ainda que tenha antecipado seu endosso ao direito à verdade. Não apenas denegou o direito à justiça, como também reescreveu a história brasileira mediante uma lente específica, ao atribuir legitimidade político-social à lei de anistia em nome de um acordo político e de uma reconciliação nacional. Contudo, como realça Paulo Sergio Pinheiro, prevaleceu uma contrafação histórica, eis que a “a lei de anistia não foi produto de acordo, pacto, negociação alguma, pois o projeto não correspondia àquele pelo qual a sociedade civil, o movimento de anistia, a OAB e a heróica oposição parlamentar haviam lutado. Houve o Dia Nacional de Repúdio ao projeto de Anistia do governo e manifestações e atos públicos contrários à lei – que, ao final, foi aprovada por 206 votos da Arena (partido da ditadura) contra 201 votos do MDB (oposição)”  18. Em 24 de novembro de 2010, no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, como já destacado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil em virtude do desaparecimento de integrantes da guerrilha do Araguaia durante as operações militares ocorridas na década de 70. O caso foi submetido à Corte pela Comissão Interamericana, ao reconhecer que o caso “representava uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre leis de anistia em relação aos desaparecimentos forçados e às execuções extrajudiciais, com a consequente obrigação dos Estados de assegurar o conhecimento da verdade, bem como de investigar, processar e punir graves violações de direitos humanos”. 18 Paulo Sérgio Pinheiro, O STF de costas para a humanidade, Folha de São Paulo, 30 de abril de 2010.

 

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Em sua histórica sentença, a Corte realçou que as disposições da lei de anistia de 1979 são manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e punição dos responsáveis. Enfatizou a Corte que leis de anistia relativas a graves violações de direitos humanos são incompatíveis com o Direito Internacional e as obrigações jurídicas internacionais contraídas pelos Estados. Respaldou sua argumentação em vasta e sólida jurisprudência produzida por órgãos das Nações Unidas e do sistema interamericano, destacando também decisões judiciais emblemáticas invalidando leis de anistia na Argentina, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Colômbia. A conclusão é uma só: as leis de anistia violam o dever internacional do Estado de investigar e punir graves violações a direitos humanos. A respeito da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, entendeu a Corte que “afeta o dever internacional do Estado de investigar e punir graves violações a direitos humanos”, afrontando, ainda, o dever de harmonizar a ordem interna à luz dos parâmetros da Convenção Americana. Adicionou a Corte Interamericana: “Quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes, como parte do aparato do Estado, também estão submetidos a ela, o que lhes obriga a zelar para que os efeitos dos dispositivos da Convenção não se vejam mitigados pela aplicação de leis contrárias ao seu objeto, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. (...) o poder Judiciário deve exercer uma espécie de “controle da convencionalidade das leis” entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somente o tratado, mas também a interpretação quedo mesmo tem feito a Corte Interamericana, intérprete última  

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da Convenção Americana”19. Concluiu a Corte que “não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado brasileiro”, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da lei de anistia sem considerar as obrigações internacionais do Brasil decorrentes do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 1, 2, 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos No que se refere ao direito à verdade, até então, estava em vigor aLei n.11.111/05, ao prever que o acesso aos documentos públicos classificados “no mais alto grau de sigilo" poderia ser restringido por tempo indeterminado, ou até permanecer em eterno segredo, em defesa da soberania nacional. Esta lei violava os princípios constitucionais da publicidade e da transparência democrática, negando às vítimas o direito à memória e às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas20. Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é fundamental respeitar e garantir o direito à verdade para o fim da impunidade e para a proteção dos direitos humanos. Acentua a Comissão: “Toda sociedad tiene el irrenunciable derecho de conocer la verdad de lo ocurrido, así como las razones y circunstancias en la que aberrantes delitos llegaram a cometerse, a fin de evitar que esses echos vuelvam a ocurrir em el futuro”. É, assim, dever do Estado assegurar o direito à verdade, em sua dupla dimensão -- individual e coletiva – em prol do direito da vítima e de seus familiares (o que compreende o direito ao luto) e em prol do di-

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Este entendimento já havia sido firmado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile, sentença de 26 setembro de 2006. 20 A respeito, ver parecer que, na qualidade de perita, elaborei sobre a inconstitucionalidade da Lei n.11.111/05, no caso Gomes Lund e outros versus Brasil (abril de 2010).

 

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reito da sociedade à construção da memória e identidade coletivas. Para o Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas: “O direito à verdade abrange o direito de ter um conhecimento pleno e completo dos fatos ocorridos, das pessoas que deles participaram, das circunstâncias específicas, e, em particular, das violações perpetradas e sua motivação. O direito à verdade é um direito individual que assiste tanto às vítimas, com aos seus familiares, apresentando ainda uma dimensão coletiva e social. No último sentido, o direito à verdade está estritamente relacionado ao Estado de Direito e aos princípios de transparência, responsabilidade e boa gestão dos assuntos públicos em uma sociedade democrática. Constitui, com a justiça, a memória e a reparação, um dos pilares da luta contra a impunidade das violações graves aos direitos humanos e das infrações ao Direito Internacional Humanitário”.21 Atente-se que, em 21 de dezembro de 2009, foi lançado o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, que, dentre suas metas, ineditamente estabeleceu a criação de uma Comissão Nacional de Verdade, com o objetivo de resgatar as informações relativas ao período da repressão militar. Tal proposta foi causa de elevada tensão política entre o Ministério da Defesa (que acusou a proposta de revanchista) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça (que defenderam a proposta em nome do direito à memória e à verdade), culminando, inclusive, com exoneração do general chefe do departamento do Exército, por ter se referido à “comissão da calúnia”. À luz da experiência brasileira, até final de 2011, concluí-se que: a) não havia incorporação da jurisprudência da Corte Interamericana e dos parâmetros pro21 Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, El Derecho a la verdad, Conselho de Direitos Humanos, quinto período de sessões, A/HRC/5/7, 7 de junho de 2007.

 

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tetivos internacionais pelo Supremo Tribunal Federal22; b) havia uma tensão intra-governamental a respeito da política de Estado em prol da memória, verdade e justiça; e c) havia a afronta aos direitos à verdade e à justiça. Finalmente, em 18 de novembro de 2011, foram adotadas duas leis de profunda relevância para a justiça transicional brasileira: a) a Lei n.12.527, que regula o acesso à informação; e b) a Lei n. 12.528, que cria a Comissão Nacional da Verdade. É evidente o elevado impacto da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (no caso Gomes Lund versus Brasil) para o advento destes dois avanços democráticos. 22

Escassa ainda é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que implementa a jurisprudência da Corte Interamericana, destacando-se até março de 2010 apenas e tão somente dois casos: a) um relativo ao direito do estrangeiro detido de ser informado sobre a assistência consultar como parte do devido processo legal criminal, com base na Opinião Consultiva da Corte Interamericana n.16 de 1999 (ver decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 2006, na Extradição n.954/2006); e b) outro caso relativo ao fim da exigência de diploma para a profissão de jornalista, com fundamento no direito à informação e na liberdade de expressão, à luz da Opinião Consultiva da Corte Interamericana n.5 de 1985 (ver decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, no RE 511961).Levantamento realizado acerca das decisões do Supremo Tribunal Federal baseadas em precedentes judiciais de órgãos internacionais e estrangeiros constata que 80 casos aludem à jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, ao passo que 58 casos aludem à jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha – enquanto que, reitere-se, apenas 2 casos amparam-se na jurisprudência da Corte Interamericana. Nesse sentido, Virgilio Afonso da Silva, Integração e Diálogo Constitucional na América do Sul, In: Armin Von Bogdandy, Flavia Piovesan e Mariela Morales Antoniazzi (coord.), Direitos Humanos, Democracia e Integração Jurídica na América do Sul, Rio de Janeiro, ed. Lúmen Júris, 2010, p.529. Apenas são localizados julgados que remetem à incidência de dispositivos da Convenção Americana – nesta direção, foram localizados 79 acórdãos versando sobre: prisão do depositário infiel; duplo grau de jurisdição; uso de algemas; individualização da pena; presunção de inocência; direito de recorrer em liberdade; razoável duração do processo; dentre outros temas especialmente afetos ao garantismo penal.

 

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A Lei n.12.527, que regula o acesso à informação, limita o prazo de sigilo de documentos classificados como “ultra-secretos”. Inova ao estabelecer que tais documentos sejam mantidos em segredo até 25 anos, renováveis por, no máximo, mais 25 anos. A proposta sofreu forte resistência de parlamentares que defendem o sigilo eterno destes documentos. Com efeito, a questão central atinha-se aos documentos considerados “ultra-secretos” e ao poder da autoridade pública de decidir o que é “ultra-secreto”, impondo tal classificação, com a prerrogativa de prorrogar e estender o sigilo de informações eternamente. O ato de classificar permite à autoridade pública atribuir o grau de sigilo a documento, culminando, na prática, com a delegação ao Executivo do poder de definir o núcleo essencial do direito constitucional à informação. O risco é que tal sistemática fomentasse a discricionariedade e o arbítrio do Estado no ímpeto abusivo de classificar como “ultra-secretos” documentos públicos, privando-os do acesso à sociedade, sobretudo quando referem-se a graves violações a direitos humanos. À luz dos parâmetros constitucionais e internacionais, ao direito à informação corresponde o dever do Estado de prestá-las de forma ampla e efetiva, sob pena de responsabilidade. No regime democrático a regra é assegurar a disponibilidade das informações com base no princípio da máxima divulgação das informações; a exceção é o sigilo e o segredo. As limitações ao direito de acesso à informação devem se mostrar necessárias em uma sociedade democrática para satisfazer um interesse público imperativo. No atual contexto brasileiro, o interesse público imperativo não é o sigilo eterno de documentos públicos, mas, ao contrário, o amplo e livre acesso aos arquivos. O direito ao acesso à informação é condição para o exercício de demais direitos humanos, como o direito à verdade e o direito à justiça, sobretudo em casos de graves violações de direitos humanos perpetradas em regimes autoritários do passado.  

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Não há como conciliar o direito à verdade com o sigilo eterno. A luta pelo dever de lembrar merece prevalecer em detrimento daqueles que insistem em esquecer. Não há como conciliar os princípios constitucionais da publicidade e da transparência com o sigilo eterno. Para Norberto Bobbio, a opacidade do poder é a negação da democracia, que é idealmente o governo do poder visível, ou o governo cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle democrático da opinião pública. O sigilo eterno afrontava o direito à informação, o direito à verdade, bem como os princípios da publicidade e da transparência essenciais à consolidação do Estado Democrático de Direito. Na mesmo 18 de novembro de 2011, foi adotada a Lei n. 12.528, que cria a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de elucidar as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 a 1988. Caberá à Comissão promover o esclarecimento circunstanciado de casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, identificando e tornando públicos as estruturas, os locais e as instituições envolvidas. A proposta contou com o apoio do Ministério da Defesa, tendo o aval dos comandantes das três Forças. Em julho de 2011, o Ministério da Justiça há havia garantido a um grupo de 12 familiares de mortos e desaparecidos políticos o acesso irrestrito a todos os documentos do Arquivo Nacional. A esta conjuntura nacional adicione-se a histórica condenação do Brasil pela Corte Interamericana no caso Gomes Lund. Reitere-se: para a Corte as disposições da lei de anistia de 1979 são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e punição dos responsáveis. Em 16 de maio de 2012 foram empossados os sete integrantes da Comissão Nacional da Verdade, em  

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cerimônia que contou com a presença de todos os exPresidentes da República vivos. Neste contexto, a instituição da Comissão da Verdade simboliza um extraordinário avanço na experiência brasileira, ao consagrar o direito à memória e à verdade, permitindo a reconstrução histórica de graves casos de violações de direitos humanos.

4. Desafios e perspectivas da justiça de transição no contexto brasileiro A justiça de transição lança o delicado desafio de como romper com o passado autoritário e viabilizar o ritual de passagem à ordem democrática. Nas lições de Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling23, a justiça de transição compreende: o direito à verdade; o direito à justiça; o direito à reparação; e reformas institucionais24. Como evidenciado por este artigo, a jurisprudência do sistema interamericano e do sistema global de proteção reconhece que leis de anistia violam obrigações jurídicas internacionais no campo dos direitos humanos, adotando como perspectiva a proteção aos direitos das vítimas (“victim centric approach”). Estudos demonstram que justiça de transição tem sido capaz de fortalecer o Estado de Direito, a democracia e o regime de direitos humanos, não representando qualquer ameaça ou instabilidade democrática, tendo, ainda, um valor pedagógico para as futuras gerações. Como atentam Kathryn Sikkink e Carrie Bo23

Ver o artigo “The Effect of Trials on Human Rights in Latin America” de Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling. 24 As reformas institucionais devem ser sobretudo endereçadas ao aparato de segurança e Forças Armadas, sendo inaceitável que perpetradores de atrocidades no passado permaneçam com o monopólio das armas no país.

 

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oth Walling: “O julgamento de violações de direitos humanos pode também contribuir para reforçar o Estado de Direito, como ocorreu na Argentina. (...) os cidadãos comuns passam a perceber o sistema legal como mais viável e legítimo se a lei é capaz de alcançar os mais poderosos antigos líderes do país, responsabilizando-os pelas violações de direitos humanos do passado. O mais relevante componente do Estado de Direito é a idéia de que ninguém está acima da lei. Deste modo, é difícil construir um Estado de Direito ignorando graves violações a direitos civis e políticos e fracassando ao responsabilizar agentes governamentais do passado e do presente. (...) Os mecanismos de justiça de transição não são apenas produto de idealistas que não compreendem a realidade política, mas instrumentos capazes de transformar a dinâmica de poder dos atores sociais”.  25 Constata-se na experiência de transição brasileira um processo aberto e incompleto, na medida em que – até maio de 2012 -- tão somente havia sido contemplado o direito à reparação, com o pagamento de indenização aos familiares dos desaparecidos políticos, mediante a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos pela Lei n. 9.140 de 1995 e da Comissão de Anistia pela Lei n.10.559 de 2002. Em 2010, concluia Anthony Pereira que, diversamente dos demais países da região, “a justiça de transição no Brasil foi mínima. Nenhuma Comissão de Verdade até o momento foi instalada, nenhum dirigente do regime mili-

25

Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling, The Emergence and Impact of Human Rights Trials, p.20-21. A reduzida densidade do Estado de Direito no Brasil é evidenciada pela pesquisa Latinobarômetro (2009), quando 44% dos brasileiros concordam que, em face de uma situação difícil, seria justificável ao Governo não respeitar as leis, o Parlamento e as instituições – na Argentina este universo é de 18%.

 

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tar foi levado a julgamento e não houve reformas significativas nas Forças Armadas ou no poder Judiciário”26. Este quadro começa a se transformar no final de 2011, em decorrência do impacto da sentença da Corte Interamericana no caso Gomes Lund versus Brasil. Ao endossar a relevante jurisprudência internacional sobre a matéria, esta inédita decisão da Corte Interamericana irradia extraordinário impacto na experiência brasileira. Traduz a força catalizadora de avançar na garantia dos direitos à verdade e à justiça. De um lado, contribui para o fortalecimento da Comissão Nacional de Verdade, com a finalidade de resgatar as informações relativas ao período da repressão militar, em defesa do direito à memória coletiva. Por outro lado, contribui para o direito à justiça, combatendo a impunidade de graves violações de direitos humanos, que alimenta um continuísmo autoritário na arena democrática. Com efeito, em resposta à condenação sofrida pela Corte Interamericana, são aprovadas pelo Estado brasileiro dois marcos normativos essenciais à luta pela justiça de transição: a Lei n.12.527, que regula o acesso à informação; e a Lei n. 12.528, que cria a Comissão Nacional da Verdade (ambas adotadas em 18 de novembro de 2011). Um dos desafios centrais da justiça de transição no Brasil é assegurar o direito à verdade em sua dupla dimensão individual e coletiva – o que, em muito, está condicionado ao êxito do trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Outro desafio será como lidar com a verdade e em que medida a efetivação deste direito demandará a luta pelo direito à justiça e por reformas institucionais. Reformas institucionais devem assegurar o desenvolvimento sustentável de uma ordem pautada na paz, na justiça, na estabilidade democrática e no Estado 26

Anthony Pereira, Political (In)justice: Authoritarianism and the Rule of Law in Brazil, Chile, and Argentina, 2010, p.172.

 

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de Direito. Fundamental é fortalecer o rule of law; assegurar a accountability (com a remoção dos perpetradores de violação a direitos humanos do aparato da segurança); densificar a efetividade normativa; construir a confiabilidade e credibilidade no aparato da justiça; prevenir violações a direitos humanos; e pavimentar com integridade e legitimidade as instituições democráticas. No campo das reformas institucionais, especial atenção deve ser confiada aos aparatos da segurança e da justiça, reestruturando as relações entre indivíduos e o Estado. A justiça de transição deve implicar em um desenvolvimento institucional sustentável na esfera democrática, na busca de restaurar o rule of law, fortalecendo mecanismos de prevenção e reparação de violações de direitos humanos e aprimorando mecanismos de responsabilização individual aos perpetradores de abusos de direitos humanos. Neste desafio, destaca-se o mencionado instituto do “vetting”, a implicar a remoção de um significativo número de agentes públicos violadores de direitos humanos por ausência de integridade, o que estaria a afeta a credibilidade institucional. A fim de fortalecer o rule of law é fundamental remover agentes estatais envolvidos com violações direitos humanos. A mais importante ideia do rule of law é que “power is constrained by means of law”27. Reformas institucionais devem focar sobretudo nos aparatos da 27

Consultar “Promotion of truth, justice, reparation and guarantees of nonrecurrence”, UN, General Assembly, 13 de setembro de 2012. O rule of law é definido como: “A principle of governance in which all persons, institutions and entities, public and private, including the State itself, are accountable to laws that are publicly promulgated, equally enforced and independently adjudicated, and which are consistent with international human rights norms and standards. It requires, as well, measures to ensure adherence to the principles of supremacy of law, equality before the law, accountability to the law, fairness in the application of the law, separation of powers, participation in decision making, legal certainty, avoidance of arbitrariness and procedural and legal transparency.” (report of the Secretary-General to the Security Council on the rule of law and transitional justice, S/2004/616, para.6).

 

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segurança e da justiça. Observe-se que a independência judicial é fundamental ao rule of law, que requer o estabelecimento de um complexo de instituições e procedimentos, destacando um poder Judiciário independente e imparcial. O rule of law enfatiza a importância das Cortes não apenas pela sua capacidade decisória (pautada no primado do Direito), mas por “institucionalizar a cultura do argumento”, como medida de respeito ao ser humano. No âmbito das reformas institucionais essencial é remover agentes públicos comprometidos com o regime autoritário e perpetradores de violações a direitos; desenvolver uma detida análise das falhas do aparato de segurança e justiça visando à sua reforma; ampliar e promover o acesso à justiça; fomentar reformas para fortalecer a independência judicial; fortalecer a institucionalidade democrática; visibilizar as vítimas, ampliando os mecanismos de participação; e fomentar a conscientização pública sobre a importância do rule of law. Daí a necessidade de compreender a justiça de transição sob uma perspectiva integral e holística capaz de assegurar uma política de justiça de transição legítima, eficaz e sustentável, propiciadora do desenvolvimento humano. Emergencial é fortalecer a relação entre justiça de transição e desenvolvimento humano, mediante a consolidação de uma ordem justa e inclusiva, pautada no Estado de Direito, na estabilidade democrática e no respeito aos direitos humanos. Sob a ótica republicana e democrática, considerando ainda as obrigações internacionais do Estado brasileiro em matéria de direitos humanos, implementar os mecanismos da justiça de transição é condição para romper com uma injustiça permanente e continuada, que compromete e debilita a construção democrática. Endossa-se a obrigação jurídica internacional do Estado brasileiro de prevenir, investigar e punir graves violações a direitos humanos decorrente dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil – com des  

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taque à Convenção Americana de Direitos Humanos (ratificada em 1992), à Convenção contra a Tortura (ratificada em 1989) e à Convenção Internacional para a Proteção de todas as pessoas contra o Desaparecimento Forçado (ratificada em 2010). Inaceitável moral e juridicamente é a indiferença à prática sistemática de tortura e de desaparecimento forçado que maculam o passado brasileiro. Fundamental é assegurar os direitos à verdade e à justiça e reformas institucionais, sob pena de se fomentar uma violência institucional a agravar a violência do arbítrio responsável pelo desaparecimento forçado e pela tortura generalizada durante o regime militar brasileiro. Honrar esta responsabilidade é condição essencial para fortalecer o Estado de Direito, a democracia e o regime de direitos humanos no Brasil.

 

Ampliando as lentes Experiências de Justiça Restaurativa em Minas Gerais

Giselle  Fernandes  Corrêa  da  Cruz1    

Resumo: O presente trabalho consiste no estudo de duas experiências mineiras de acesso à justiça e resolução de conflitos em contextos de exclusão social, à luz da teoria de Justiça Restaurativa. O Projeto Núcleos de Mediação e Cidadania do Programa Pólos e o Programa Mediação de Conflitos da SEDS foram analisados a partir dos princípios e valores da Teoria de Justiça Restaurativa que, por sua vez, tem sido entendida como um novo modelo de justiça. A partir da teoria sobre o tema e de práticas restaurativas inovadoras, concluiuse que os princípios da Justiça Restaurativa podem ser desenvolvidos tanto dentro do sistema de justiça quanto em espaços extrajudiciais. A partir de então, foi possível investigar se as duas experiências podem ou não serem consideradas como Justiça Restaurativa em âmbito comunitário, e se são efetivas e de aplicação viável para o contexto sócio-político brasileiro. Realizou-se, para tanto, pesquisa de campo e utilizou-se da técnica 1 Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atuou como supervisora de metodologia do Programa Mediação de Conflitos da Secretaria de Estado de Defesa Social. Mediadora de Conflitos pelo IMAB – Brasil. Trabalho extraído do relatório final de pesquisa de dissertação concluída e defendida em 2012 com financiamento pelo CNPQ.

 

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de pesquisa estudo de caso. As duas experiências citadas acima foram tomadas como casos em análise. Os procedimentos utilizados de levantamento de dados permitiram a confirmação da presença de princípios e características que, à luz dos critérios propostos para a verificação do grau de restauratividade das práticas, permitiram a conclusão de que Minas Gerais já tem desenvolvido metodologia e ações restaurativas. Não somente a metodologia, mas também as práticas de mediação coletiva são imbuídas de alto grau de restauratividade e também são efetivas e viáveis quanto à sua implementação. Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Acesso à justiça. Comunidades. Abstract: The following dissertation consists in the study of two experiences, from Minas Gerais, concerning the access to justice and conflicts resolution in contexts of social exclusion, at the light of the Restorative Justice theory. The Mediation and Citizenship Project of the Polos Program and the Conflict Mediation Program were analyzed from the principles and values of the Restorative Justice theory, which, in turn, has been understood as a new model of justice. From the theory about the theme and from innovative restorative practices, we have concluded that the principles of Restorative Justice may be developed inside the justice system as much as in extra-judicial spaces. From then, it was possible to investigate if both experiences could or could not be considered as of Restorative Justice in a community scope, if they were effective, and of viable application on the socio-political Brazilian context. For such an end, field studies were performed and the case study type of research was applied. Both experiences mentioned were studied as case analysis. The procedures performed of data collection allowed the identification of principles and characteristics that, at the light of the criteria proposed to the verification of the degree of restorativity of these practices, lead to the  

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conclusion that Minas Gerais has been developing both restorative methodology and practices. Not only the methodology, but also the conference mediation practices express a high degree of restorativity and are also effective and viable in their implementation. Keywords : Restorative Justice. Access to justice. Communities.

1. Introdução O Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística – IBOPE realizou em 2011, pesquisa que aponta o índice de confiança social2 do brasileiro em dezoito instituições, dentre estas o judiciário, e em quatro grupos sociais. O resultado revela o índice de satisfação de 49% com o Judiciário, menor em relação à confiança nos bancos (57%), nas empresas (59%), nos meios de comunicação (65%) e nas igrejas (72%). O índice de satisfação com o judiciário é menor também em comparação com os quatro grupos sociais pesquisados: família: 90%, amigos: 68%, outros cidadãos: 60% e vizinhos: 59%. Muitas são as indagações que podem ser feitas com base nesse dado e em tantas outras evidências que demonstram a insatisfação dos cidadãos com o modelo de justiça disponível para a resolução de seus conflitos cotidianos. Múltiplas são também as tentativas de respostas para a questão da efetividade e adequações do modelo adotado aos anseios de justiça dos brasileiros. Seria uma questão de ampliação de acesso material? Celeridade processual? Melhor distribuição territorial dos serviços judiciais? Um maior investimen2 O Índice de Confiança Social (ICS) é realizado anualmente pelo IBOPE Inteligência, desde 2009. Tem por objetivo o acompanhamento da relação de confiança da população com as instituições e também com as pessoas de seu convívio social. Além do Brasil, o ICS é medido em Porto Rico e na Argentina desde 2009 e a partir de 2011 também no Chile.

 

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to nos métodos alternativos de resolução de conflitos? As hipóteses se multiplicam e cada uma delas tem sido alvo de estudos, na tentativa de elucidar os caminhos possíveis para a melhoria de nosso sistema de justiça. A insatisfação relativa ao sistema judicial pode ter origem, também, na insuficiência do modelo vigente, diante da pluralidade social e jurídica das sociedades contemporâneas. Boaventura de Sousa Santos (2007) entende que, do ponto de vista sociológico, vários sistemas jurídicos e judiciais coexistem e circulam e que nem sempre o sistema jurídico estatal é o mais utilizado na gestão normativa do dia a dia dos cidadãos. Para que as necessidades de justiça sejam compreendidas e acolhidas, é necessária a ampliação das lentes utilizadas para enxergar o fenômeno jurídico e sua expressão nas relações sociais. Também se tornam essenciais as reformulações nos conceitos adotados até então e a admissão de novas formas de realização da justiça. Nesse sentido, o presente trabalho tem por objetivo demonstrar a efetividade e a viabilidade da utilização de práticas restaurativas em contextos comunitários em Minas Gerais, assim como o significado que produzem quanto à realização de justiça para as pessoas e grupos que as utilizam. Para tanto, investiga a efetividade de tal modelo de justiça no Projeto de Mediação e Cidadania do Programa Pólos, que atua por meio dos Núcleos de Mediação e Cidadania – NMC e o Programa Mediação de Conflitos – PMC, desenvolvido pela Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais – SEDS. À luz da Teoria da Justiça Restaurativa aplicada em contextos comunitários, as duas experiências mineiras são analisadas para a verificação de elementos restaurativos em sua atuação. Parte-se da hipótese de que tais experiências mineiras possuem as quatro características das práticas restaurativas comunitárias, propostas por Froestad e  

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Shearing (2005): a ampliação da inclusão dos interessados na resolução dos conflitos; a ampliação da agenda e dos objetivos dos programas a partir da abordagem de problemas estruturais; a alocação de responsabilidades na comunidade, e a tomada de decisões com base no conhecimento e capacidade locais. Sendo assim, com base neste marco teórico, as experiências mineiras poderiam ser reconhecidas como práticas de Justiça Restaurativa comunitária. Apresenta-se o novo modelo de justiça proposto pela Justiça Restaurativa, ressaltando-se suas bases conceituais nos valores de horizontalidade, diálogo, escuta e equilíbrio de poder. A atuação da Justiça Restaurativa dá-se na administração de conflitos interpessoais e intergrupais, considera as estruturas normativas formais e as informais e traz para o cenário comunitário local a realização da justiça por meio da inclusão de novos atores e esferas de juridicidade. A investigação realizada considera as quatro características restaurativas como critérios de análises dos dois casos já citados, tomando-se como unidade de análise a parte prescritiva ou o conteúdo programático do projeto de Mediação do Programa Pólos de Cidadania e do programa Mediação de Conflitos, chamada também de metodologia de atuação. Sobre a ordem de apresentação dos capítulos, o trabalho inicia-se com uma parte dedicada ao tema do acesso à justiça. Baseando-se no entendimento de Boaventura de Sousa Santos (2007) sobre a revolução democrática da justiça, aplicada ao caso brasileiro, questiona-se sobre a justiça a que se tem acesso e a justiça a que se quer acesso, admitindo-se, na resposta, novas formas mais democráticas e participativas de práticas jurídicas. O terceiro capítulo dedica-se à teoria de Justiça Restaurativa. São abordadas algumas origens históricas do modelo, as tentativas de alguns teóricos em sua conceituação, baseada em princípios e valores; as principais práticas restaurativas no cenário internacional e  

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os recentes projetos iniciados no Brasil após o ano de 2005. No quarto capítulo é abordada a questão da ampliação das lentes restaurativas, qual seja a ampliação de contextos e casos passíveis de serem abordados por práticas restaurativas. Com base em Froestad e Shearing (2005), são expostos os critérios utilizados para a investigação do potencial restaurativo das ações, segundo essa visão mais ampliada de Justiça Restaurativa. Os quatro critérios (já citados anteriormente) são explanados e, em seguida, de acordo com cada critério, procede-se à análise de conteúdo das metodologias do Projeto Mediação do Pólos e do PMC. O presente trabalho realiza, portanto, uma releitura dos conteúdos programáticos das duas experiências mineiras. Contribui assim para reflexões, revisões das metodologias e identificação de aspectos que podem responder a alguns de seus entraves e limites no alcance dos próprios objetivos propostos pelas experiências. Trata-se, portanto, de um estudo que contribui para as discussões que têm se realizado no país sobre a implementação de práticas restaurativas adequadas ao contexto brasileiro.

2. Considerações sobre o acesso à justiça A seguir abordam-se as principais discussões sobre a questão do acesso à justiça e as propostas de inovações nas perspectivas da ampliação do acesso a partir da incorporação de novas experiências jurídicas.

2.1 Acesso a qual Justiça? O tema acesso à justiça tem estado em evidência nos últimos anos no Brasil e tem sido colocado na pauta de reformas legislativas, processuais e administrativas; de debates acadêmicos, produções teóricas, con  

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gressos jurídicos, agendas de políticas públicas para a efetivação de direitos, dentre tantas outras ações que apontam para a atualidade e importância do assunto. No caso brasileiro, tal temática tem se apresentado no movimento de Reforma do Judiciário, que, na opinião de Boaventura de Sousa Santos (2007) foi inaugurado com o marco institucional da Emenda Constitucional n. 45, do ano de 2004. Tal ato normativo produziu várias alterações, tais como: um judiciário mais acessível, a garantia de autonomia das defensorias públicas, a consagração da súmula vinculante e do efeito vinculante, que colaborou para a celeridade e o descongestionamento dos processos nos tribunais. Para o autor, o segundo momento dessa reforma judicial é traduzido nas mudanças de natureza processual, alterações na execução civil, sistema de recursos e processos e na modernização administrativa da justiça com a implantação do processo eletrônico. Ao analisar o movimento da reforma do judiciário, o autor pontua que ela tem sido orientada quase que exclusivamente pela idéia de rapidez, pela necessidade de uma justiça célere. Porém, apesar da celeridade da justiça ser um componente essencial de sua qualidade, do ponto de vista das transformações democráticas da justiça, não basta somente celeridade. É necessário que a Justiça seja cidadã. Apesar de todas as alterações do primeiro e segundo momentos terem possibilitado maior acesso e qualidade na prestação jurisdicional, existe ainda a necessidade de um terceiro momento de reforma judicial, centrado na promoção do acesso à justiça. Uma nova cultura jurídica democrática, novos mecanismos e novos protagonismos seriam fundamentais para uma verdadeira transformação neste acesso. Deveriam ser fomentadas outras experiências de práticas jurídicas mais politizadas e atentas aos conflitos estruturais, com intervenções mais solidárias, propagadoras de valores e princípios que incentivam o intercâmbio de saberes, as relações horizontais e propagadoras da emancipação social, e não  

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dependência e subalternidade. Isso significaria não somente uma mudança no acesso ao que já existe, mas uma mudança ao quê se tem acesso. A revolução democrática da justiça ensejaria, nas palavras de Santos (2007), a consideração de outras possibilidades, a oferta de caminhos alternativos à realização da justiça “sob um novo equilíbrio da tensão entre regulação e emancipação, favorecendo esta última”. Para exemplificar a proposta, Santos (2007) faz referências a algumas experiências que são realizadas fora do Sistema Judicial: as promotoras legais populares, experiência desenvolvida em Porto Alegre e em várias cidades de São Paulo, cuja metodologia consiste em socializar, articular e capacitar mulheres nas áreas do direito, justiça e gênero. As Assessorias Jurídicas universitárias populares com enfoques em ações de defesa de direitos coletivos, através de atuações mais politizadas, utilizando-se de métodos alternativos para a administração de conflitos. Como exemplos de inovações dentro do Sistema Judicial, o autor registra os avanços alcançados por meio das experiências de justiça itinerante, da justiça comunitária, dos juizados de conciliação judicial e extrajudicial, dos juizados especiais, da utilização dos meios alternativos de resolução de conflitos e da Justiça Restaurativa, cujos tema e prática são abordados neste trabalho. Nesta linha de pensamento é que a pesquisa localiza as duas experiências mineiras que serão analisadas, assim como a teoria de Justiça Restaurativa em âmbito comunitário, a partir da qual serão feitos os estudos dos casos e a verificação da ocorrência de aspectos restaurativos em tais práticas.

2.2 A questão da procura suprimida Antes da descrição dos casos em estudo nesta pesquisa, é de essencial importância a compreensão do  

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contexto em que tais experiências se desenvolvem. Para tal tarefa, será abordada a questão da procura suprimida, desenvolvida por Santos (2007). O autor identifica as últimas décadas no Brasil como marcadas por um forte protagonismo do sistema judicial. Todavia, não se trata do protagonismo do tipo político, mas sim da idéia de que “as sociedades assentam no primado do Direito, de que não funcionam eficazmente sem um sistema judicial eficiente, eficaz, justo e independente” (SANTOS, 2007, p. 15). Tal fato justifica a necessidade de grandes investimentos, como o que tem sido visto, na dignificação das profissões jurídicas, na modernização de modelos de organização que tornem o sistema mais eficiente, nas reformas processuais e na formação de juízes e funcionários. Para o autor, o protagonismo ou a evidência do poder judiciário emerge, no caso de países semiperiféricos como o Brasil, de mudanças políticas compreendidas em duas principais vias. Uma delas é o modelo de desenvolvimento econômico, assentado nas regras de mercado, contratos privados e negócios, que para serem cumpridos e terem estabilidade, exigem um judiciário eficaz, rápido e independente. A outra via refere-se à precarização dos direitos econômicos e sociais e ao consequente impacto no grande aumento da procura do judiciário. O autor identifica que muitos litígios judiciais decorrem do desmantelamento do Estado social, resultando em um número crescente de demandas de direito trabalhista, previdenciário, de saúde e educação. A alta taxa de litigação, além de estar atrelada à cultura jurídica e política de uma sociedade, tem a ver também com o “nível de efetividade da aplicação dos direitos e com a existência de estruturas administrativas que sustentem essa aplicação” (idem, p. 17). O autor afirma que no caso brasileiro, assim como em outros países periféricos e semi-periféricos, ocorreu um curto-circuito histórico na passagem de regimes autoritários para regimes democráticos. Assim sendo, muitos direitos que foram conquistados nos  

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países centrais após longos processos históricos, no caso brasileiro foram meramente consagrados num ato constitucional. Depara-se, então, com um conjunto extenso de direitos, sem respaldo de políticas públicas e sociais que possibilitem e garantam seu exercício. A situação se agrava quando é considerada, baseado em Santos (2005), a situação do acesso à justiça nas regiões periféricas, caracterizadas por serem alvo de alocação de poucos recursos institucionais, em que a população se depara com a justiça formal inacessível, a assistência judiciária de baixa qualidade, o acesso a advogados mal preparados, e igualmente, poucos recursos simbólicos. Se por um lado, as alterações constitucionais e infraconstitucionais e as reformas processuais no Brasil conseguiram alcançar boa parte da demanda e da procura potencial, por outro, existe outra demanda, a que o autor chama de procura suprimida: É a procura daqueles cidadãos que têm consciência dos seus direitos, mas que se sentem totalmente impotentes para os reivindicar quando são violados. (...) Ficam totalmente desalentados sempre que entram no sistema judicial, sempre que contactam com as autoridades, que os esmagam pela sua linguagem esotérica, pela sua presença arrogante, pela sua maneira cerimonial de vestir, pelos seus edifícios esmagadores, pelas suas labirínticas secretarias etc. (SANTOS, 2007, p. 31).

Para Santos (2007), grande parte das demandas dos cidadãos das classes populares localiza-se na procura suprimida, e, a partir de tais considerações, podese caracterizar o contexto e a abordagem proposta pelo Projeto de Mediação de Conflitos do Programa Pólos de Cidadania e pelo Programa Mediação de Conflitos, da Secretaria de Estado de Defesa Social.

 

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2.3 Uma proposta mineira: constituição de capital social e humano, redes sociais mistas e mediação de conflitos Minas Gerais tem apresentado ao Brasil uma das metodologias mais completas de resolução de conflitos, prevenção à violência e acesso à justiça. A metodologia do Programa Pólos de Cidadania3, em especial para o objeto deste trabalho, aquela utilizada nos Núcleos de Mediação e Cidadania – NMC, é desenvolvida para atuação em contextos comunitários de exclusão sócio-econômica e de precário acesso a bens e serviços públicos e é implementada em vilas e favelas de Belo Horizonte. Atualmente, o Pólos possui dois Núcleos de Mediação e Cidadania, localizados no aglomerado da Serra e no aglomerado Santa Lúcia, ambos na região centro-sul da cidade. Sobre a idealização e a implementação do NMC, Silva (2010, p. 184) afirma que se originou da necessidade de revisar as formas utilizadas pelo Estado em relação às questões da exclusão social, da violência e do estímulo ao exercício da cidadania, em comunidades marcadas pelo acesso precário aos serviços sociais básicos e por violações recorrentes aos direitos fundamentais. Os núcleos utilizam a técnica de mediação como um meio não-adversarial de resolução de conflitos para a abordagem dos mais variados tipos de situações levadas pela população aos núcleos. Demandas interpessoais, entre o cidadão e as prestadoras de serviços pú3 O Programa Pólos de Cidadania é um programa interinstitucional e de extensão da faculdade de Direito da UFMG. Foi criado em 1995 por professores, pesquisadores e alunos da faculdade, com a proposta de atuarem em contextos de exclusão social e econômica por meio de ações e serviços jurídicos e sociais. Tais ações são desenvolvidas por equipes interdisciplinares, formadas por profissionais graduados e por estagiários das áreas das ciências sociais e humanas, que se orientam por teorias e metodologias específicas, com vistas à construção de cidadania e efetivação de Direitos Humanos.

 

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blicos, entre organizações comunitárias, entre estas e órgãos do Estado e entre estes e os cidadãos, são exemplos de situações de conflitos trabalhados nos NMC. Segundo Gustin (2005) a metodologia da mediação alia-se a outras duas: constituição de capital social e humano e formação de redes sociais mistas, com vistas a uma atuação efetiva em tais contextos marcados por complexas características de exclusão, precariedades e riscos sociais. O capital social e humano é entendido como a “existência de relações de solidariedade e de confiabilidade entre os indivíduos, grupos e coletivos, inclusive a capacidade de mobilização e de organização comunitárias, (...), a inserção de cada um no todo” (GUSTIN, 2005, p. 20, grifo do autor). Para que o capital social e humano de uma comunidade seja fomentado, é necessário que o processo de animação de redes sociais mistas seja desencadeado. Essa proposta estrutura-se a partir de outros três temas: cidadania, subjetividade de emancipação. Tal aparato conceitual se desdobra na prática dos NMC por meio de equipes compostas por estagiários e profissionais de diversas áreas das ciências humanas e sociais. Tais equipes acolhem as demandas levadas pelos moradores que, dependendo do objeto do problema, serão trabalhadas como demandas individuais (ou interindividuais) ou demandas comunitárias. Os atendimentos individuais e os encontros conjuntos entre as partes são conduzidos pelos mediadores, no sentido de lhes possibilitar a oportunidade de decidirem sobre a melhor solução para a questão. Caso a mediação termine com um acordo, este pode ser pactuado verbalmente ou por escrito. O importante é que seja legítimo, ou seja, que as partes consigam se identificar naquela construção. A outra vertente de mediação ofertada pelos núcleos refere-se às demandas comunitárias, ou seja, situações que versam sobre um interesse da coletividade e em que há uma ampliação do número de pessoas envolvidas. Geralmente são questões que envolvem  

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órgãos do poder público ou prestadores de serviços públicos. Um aspecto fundamental dessa metodologia desenvolvida e aplicada pelo Pólos é a sua relação com a prevenção de violências. Considerando-se o contexto em que é aplicada, várias são as situações de violações de direitos e inúmeras são as condições de desvantagens sociais que expõem quotidianamente os cidadãos às situações de conflitos, em muitos casos caracterizadas por violências. A proposta de fortalecimento dos vínculos sociais de solidariedade e confiança, o incentivo e a apresentação de alternativas para a organização de indivíduos e grupos no empoderamento para a solução de questões que lhes dizem respeito, são aspectos que podem produzir grandes efeitos no enfrentamento de fatores de riscos sociais. Pode-se concluir que, quanto maior o estoque de capital social e humano e quanto mais colaborativo o trabalho em rede, maiores são as possibilidades de abordagem e solução de problemas individuais e coletivos e menores são as situações que expõem pessoas e grupos a riscos e violências. As características de tal proposta culminaram na implantação dessa metodologia, no ano de 2005, na política de prevenção à criminalidade da Secretaria de Estado de Defesa Social do Governo de Minas Gerais – SEDS. A Coordenadoria de Prevenção à Criminalidade – Cepec é o órgão responsável pelo estabelecimento dos Centros de Prevenção à Criminalidade. Estes são equipamentos públicos de base comunitária, inaugurados em 24 locais que apresentam altos índices de criminalidade violenta do Estado, regiões que coincidem com aglomerados, vilas e favelas, além de bairros localizados na periferia de Belo Horizonte e região metropolitana. O Programa Mediação de Conflitos tem sua origem, portanto, no Programa Pólos de Cidadania, e implementa nas localidades abrangidas pela Política de Prevenção a metodologia antes descrita. Por isso, pode  

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se falar em uma proposta mineira de acesso à justiça com tais características, uma vez que apesar de serem experiências executadas por instituições diversas, possuem a mesma base conceitual e prática. Como se pode perceber, são atuações coerentes com o que Boaventura de Sousa Santos chama de terceira fase da revolução democrática da Justiça: experiências mais democráticas e emancipadoras e que se utilizam de caminhos alternativos para a realização da Justiça. Apesar da boa qualidade de tal metodologia, da importância das iniciativas e da amplitude dos resultados, entende-se a importância de uma constante revisão de sua proposta. O objeto desta pesquisa é investigar esses dois aspectos, à luz da Teoria de Justiça Restaurativa. A tarefa permite um novo olhar e o conhecimento de novas ferramentas para a execução das ações.

3. Justiça Restaurativa Esta parte do trabalho aborda os principais aspectos teóricos e práticos da Justiça Restaurativa, pertinentes à proposta da pesquisa. Salienta-se a definição baseada em princípios e valores restaurativos assim como as principais experiências internacionais e nacionais. A Justiça Restaurativa é um movimento recente, ainda em construção e que tem atraído os olhares de estudiosos e cidadãos em todo o mundo. Em alguns países as discussões sobre o tema, a utilização das práticas restaurativas e até mesmo as avaliações das mesmas estão muito avançadas. Em outros, como é o caso do Brasil, ainda está se iniciando o contato e a experimentação desse novo modelo de Justiça.

 

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3.1 Aproximações teóricas Jaccoud (2005) afirma que, devido ao seu modelo de organização social, as sociedades comunais (sociedades pré-estatais européias e as coletividades nativas) privilegiavam as práticas de regulamento social centradas na manutenção da coesão do grupo. Tais sociedades eram caracterizadas pela supremacia dos interesses coletivos em relação aos interesses individuais, o que significava que a transgressão de uma norma causava reações orientadas para o restabelecimento do equilíbrio rompido e para a busca de uma solução rápida para o problema. A autora destaca que, embora as formas punitivas (vingança ou morte) também fossem aplicadas, as sociedades comunais tinham tendência a utilizar alguns mecanismos capazes de conter a desestabilização do grupo social. Dupont-Bouchât citado por Jaccoud (2005) afirma que o nascimento do Estado coincide com o afastamento da vítima no processo criminal e com a quase extinção das formas de reintegração social nas práticas de justiça habitual. Quanto aos países que sofreram processos de colonização, tornou-se necessária a criação de nações-estado pelos colonizadores em vista da neutralização e substituição das práticas habituais nativas, por meio da imposição de um sistema de direito único e unificador. Porém, apesar desta imposição, as práticas tradicionais de resolução dos conflitos destas sociedades não foram completamente extintas. Tal fato pode ser observado com o ressurgimento contemporâneo dos modelos restaurativos nos Estados formados durante o processo de colonização. Jaccoud destaca que este ressurgimento está, em parte, ligado aos movimentos reivindicatórios dos povos nativos, como por exemplo, na Nova Zelândia e no Canadá. Nestes dois países houve demandas dos povos nativos para que a administração da justiça estatal respeitasse suas concepções de justiça, além da constatação crítica dos pro  

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blemas endêmicos de superpopulação dos nativos nos estabelecimentos penais e sócio-protetivos. Na opinião da autora, seria errôneo afirmar que a justiça restaurativa tenha se originado exclusivamente das práticas tradicionais dos povos nativos. Ela argumenta que os vestígios de uma justiça direcionada para o reparo não são exclusivos dos povos nativos, mas sim das sociedades comunais em geral.

3.2 Um Conceito de Justiça Restaurativa Froestad e Shearing (2005) relatam que a partir da década de 90 a Justiça Restaurativa tornou-se o movimento social emergente para as reformas da Justiça Criminal, tendo sido concebida como uma tentativa de olhar o crime e a Justiça através de novas concepções. Estas concepções, chamadas de lentes por Zehr (2005) apresentaram novas abordagens e intervenções no âmbito criminal. Froestad e Shearing (2005) alegam que um argumento frequentemente utilizado a respeito da Justiça Restaurativa é o de que não há nenhuma definição única e consensual a respeito do tema. Segundo os autores, exames da literatura específica revelam uma tensão entre a necessidade do desenvolvimento de visões claras para a Justiça Restaurativa e, ao mesmo tempo, a relutância em se formular definições universais que enrijeceriam ou poderiam limitar o seu desenvolvimento. Tal contexto torna difícil a tarefa de conceituála. Van Ness e Johnstone (2007) afirmam que existem concepções diferentes, porém complementares de Justiça Restaurativa. Para os autores, é preferível o exercício de manter o conceito aberto, flexibilizado por constantes discussões em torno de seus princípios e valores. Este movimento social e global possui larga diversidade interna. Objetiva modificar nossos sistemas altamente profissionalizados de justiça punitiva e controle para um modelo de justiça baseada em comuni  

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dades. Não há concordância sobre a natureza de fato da transformação buscada pelo movimento de Justiça Restaurativa. Alguns a vêem como uma nova tecnologia social ou programa que possa ser implementado no sistema de justiça criminal. Outros a vêem com o objetivo de abolição dos modelos de punição estatais e de realocação da abordagem do crime e da ofensa no âmbito comunitário. Este seria o espaço ideal para o ensino, o tratamento, a reparação e restauração de vítimas, ofensores e das próprias comunidades envolvidos no crime. Outros ainda concordam com a visão de tratamento e restauração para todos os tipos de conflitos. De fato, o objetivo último e primordial, sugerem os autores, deve ser a mudança na forma como vemos a nós mesmos e nos relacionamos com os outros na vida cotidiana. Apesar da atual imprecisão conceitual, Van Ness e Johnstone (2007, p. 7) esclarecem que, para uma ação ser considerada como uma prática de Justiça Restaurativa, deve conter um ou mais dos seguintes elementos não descritos em ordem de importância: 1 - Deve existir um processo relativamente informal que objetive envolver vítimas, ofensores e outros que sejam próximos a estes ou à situação ou crime em discussão. 2 - Deve haver uma ênfase no empoderamento de pessoas comuns cujas vidas estão afetadas pelo crime ou ato de ofensa. 3 - Algum esforço deve ser feito pelos tomadores de decisão ou pelos facilitadores para promover uma responsabilização que gere menos estigmatização ou punição ao ofensor e maior reconhecimento e responsabilização deste. 4 - Os tomadores de decisão ou os facilitadores deste processo devem certificar-se de que tal procedimento seja guiado por certos princípios e valores como: respeito deve ser demonstrado pelos ou-

 

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tros, violência e coerção devem ser evitados ou minimizados se for o caso, e inclusão é preferida à exclusão. 5 - Os tomadores de decisão ou os facilitadores do processo devem devotar atenção significativa à ofensa sofrida pelas vítimas, às necessidades resultantes dela e às formas tangíveis, possíveis destas serem resolvidas e encaminhadas. 6 - Deve haver alguma ênfase no fortalecimento ou reparação das relações entre as pessoas. (JOHNSTONE; VAN NESS, 2007, p. 7, tradução nossa).

Como podem ser observados, os elementos destacados pelos autores contém referências a princípios, valores, procedimentos e até mesmo alguns resultados almejados pelo modelo de Justiça Restaurativa. Adota-se neste trabalho o entendimento de que os valores restaurativos orientam processos restaurativos que, por sua vez, para serem efetivos, resultam em decisões ou soluções restaurativas. Deve-se ter em mente que a participação nos processos restaurativos é voluntária e que tal característica é de essencial importância no alcance do resultado restaurativo, uma vez que o reconhecimento de responsabilidade enseja uma atitude voluntária de implicação e engajamento em relação ao resultado pactuado entre os participantes.

3.3 Os principais modelos de Justiça Restaurativa As práticas e políticas envolvendo a Justiça Restaurativa assumem diferentes formas, se as analisamos tanto dentro de um país como em países diferentes. Para Froestad e Shearing (2005, p. 81) as formas contemporâneas ou modelos mais debatidas de justiça restaurativa são os programas de mediação vítimainfrator, os encontros restaurativos com grupos de familiares e os círculos de emissão de sentenças. Eles re  

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latam que no Reino Unido, nos EUA e na maior parte da Europa, a Justiça Restaurativa foi associada a formas de mediação entre as vítimas e os infratores. O primeiro programa de reconciliação vítimainfrator foi estabelecido em 1974 em Ontario, EUA, pela comunidade Mennonite. O modelo é descrito como baseado na mediação direta entre vítima e ofensor, focalizando o tratamento dos traumas relacionados ao crime ou ofensa sofrida e a assistência às vítimas. O modelo também objetiva a mudança de vida dos infratores e o restabelecimento das relações entre os envolvidos. Froestad e Shearing (2005) afirmam que a necessidade de humanizar o sistema de justiça criminal foi uma das motivações para o programa. Na Nova Zelândia, após a segunda metade da década de 80 foram realizadas reformas no Sistema de Justiça, no qual era visível um pano de fundo de violência política contra os Maori. Tais reformas basearam-se na necessidade de uma resposta da justiça criminal apropriada para os jovens de tal origem. Assim, os encontros restaurativos com grupos de familiares foram introduzidos como parte do programa nacional, com a intenção de evocar e utilizar as tradições dos nativos para a resolução de problemas. Essas reuniões foram introduzidas tanto como uma alternativa aos tribunais, como na forma de um guia para as sentenças. Já na Austrália, o modelo dos encontros restaurativos ganhou espaço na política e na legislação por iniciativas de administradores de nível médio e profissionais, e não como conseqüência de um desejo de se engajar em políticas raciais construtivas (CRAWFORD e NEWBURN apud FROESTAD; SHEARING, 2005). Um dos modelos mais conhecidos desenvolvidos na Austrália, iniciado em New South Wales, é o modelo Wagga Wagga. Em resumo, é aplicado em processos de encontros restaurativos conduzidos pela polícia para casos de menor gravidade como uma forma de “advertência restaurativa”. As reuniões conduzidas pela polícia foram introduzidas em Sidney em 1995.  

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Outra prática restaurativa muito utilizada nos EUA e Canadá são os círculos de emissão de sentenças. Esta prática relaciona-se diretamente ao reaparecimento da soberania dos povos indígenas nas reservas norte-americanas e alguns projetos adotam práticas oriundas dos povos indígenas da América do Norte. No Canadá, à semelhança da Nova Zelândia, um dos objetivos primários foi a redução do número de jovens aborígines em prisões. Os autores afirmam que, apesar dos círculos de emissão de sentenças não serem previstos em nenhuma legislação, eles se baseiam no arbítrio jurídico. Assim, não são realizados como forma de encaminhamento alternativo, mas fazem parte do processo formal de emissão de sentenças. Para decidir o caso o juiz considera a participação consensual das partes envolvidas na demanda, incluindo a comunidade na qual elas estão inseridas.

3.4 A Justiça Restaurativa no Brasil No Brasil, as práticas de Justiça Restaurativa são muito recentes e têm ganhado um espaço crescente. No ano de 2005, por meio da parceria entre o Ministério da Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, deu-se início a um projeto: “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro” (SLAKMON; DE VITTO; GOMES PINTO, 2005). Nesta ocasião, três projetos-piloto foram implantados com financiamento pelas citadas instituições, nas cidades de Brasília - DF, Porto Alegre - RS e São Caetano do Sul - SP. O projeto implementado em São Caetano do Sul é desenvolvido por iniciativa da Vara da Infância e da Juventude e conta com apoio institucional no Tribunal de Justiça de São Paulo. Melo, Ednir e Yasbek (2008) relatam que o projeto pauta-se pela busca de promoção de responsabilidade ativa e cidadã das comunidades e  

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escolas onde é aplicado. Para tanto, tal projeto baseiase na parceria entre justiça e educação com vistas à criação de espaços de resolução de conflitos e de “sinergias de ação” em âmbito comunitário, escolar e forense. O projeto é desenvolvido nas Varas da Infância e Juventude, nas escolas e nas comunidades, por meio da utilização dos círculos restaurativos para a abordagem de atos infracionais e conflitos diversos. O projeto desenvolvido em Porto Alegre é o mais conhecido no Brasil. Chama-se “Justiça para o século 21” e recebeu grande impulso no ano de 2005, assim como os dois outros projetos-piloto. O projeto tem o objetivo de divulgar e aplicar as práticas da Justiça Restaurativa na resolução de conflitos nas escolas, ONGs, comunidades e no Sistema de Justiça da Infância e da Juventude. Sobre a aplicação no Sistema de Justiça, além das práticas aplicadas na 3ª Vara da Infância e da Juventude, são também desenvolvidas no Sistema Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul e nas escolas. O Projeto defende que tais ações consistem em estratégias de enfrentamento e prevenção à violência em Porto Alegre. Os encontros promovidos pela Central de Práticas do Juizado são chamados de círculos restaurativos nos quais são reunidas as pessoas diretamente envolvidas nos atos infracionais: o adolescente, a vítima, amigos e familiares. Os encontros restaurativos são voluntários e só ocorrem se o infrator, a vítima e seus pais concordarem em participar do procedimento. São conduzidos por um coordenador que tem o objetivo de auxiliar os participantes na definição de um plano de ações para resolverem o problema. O projeto desenvolvido em Brasília no Núcleo Bandeirante, cidade satélite do Distrito Federal, denomina-se “Justiça Restaurativa”. Foi criado em 2006 e é aplicado no Juizado Especial Criminal, para os crimes de menor potencial ofensivo. As partes devem concordar com a participação no processo restaurativo sendo que, ao que tudo indica, trata-se de procedimento apli  

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cado entre autor e vítima, podendo participar também o Ministério Público. Além dos três projetos-piloto, uma quarta experiência, novíssima, está surgindo no cenário nacional. Trata-se da implantação da Justiça Restaurativa no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. As práticas restaurativas estão sendo disponibilizadas no Juizado Especial Criminal e no CIA/BH, ou seja, adultos e adolescentes poderão passar pelos círculos restaurativos, modalidade de prática escolhida, e experimentar essa abordagem para os delitos e infrações em que incorreram. Percebe-se que os programas restaurativos brasileiros utilizam-se do modelo chamado círculo restaurativo, também chamado por alguns autores de encontro restaurativo que, por sua vez, não se destina a apontar culpados ou vítimas, nem a buscar perdão e conciliação. O foco é o fomento à percepção de que nossas ações nos afetam e afetam aos outros, e que somos responsáveis por seus efeitos.

4. Ampliando as lentes: a necessidade de novos projetos restaurativos Segundo Melo, Ednir e Yasbek (2008) há uma grande controvérsia na literatura em relação aos fundamentos da Justiça Restaurativa, mas algo comumente aceito pelos teóricos é a forte tendência a considerála em torno de seus valores, processos e resultados. Os autores fazem menção de um movimento mais amplo da Justiça Restaurativa que aumentou suas possibilidades de aplicação para além do Sistema de Justiça Criminal. Esse movimento amplificador considera que tais valores, processos e resultados podem ser aplicados aos mais diferentes tipos de conflitos e contextos. Os autores fazem referências a documentos oficiais que norteiam e embasam o que chamam de “estruturação

 

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alargada” de Justiça Restaurativa. Como exemplo, são citadas as Diretrizes de Riad4 e as Regras de Beijing5 que apontam claras conexões entre os princípios restaurativos e ações voltadas à prevenção de violências. Tais documentos, ao incentivarem a criação de espaços de resolução de conflitos utilizando-se práticas restaurativas em ambientes de trabalho, escolas e comunidades, reforçam o desenvolvimento de ações restaurativas fora do âmbito judicial, descentralizando as abordagens das mesmas e realocando-as nos espaços onde ocorre a maioria dos conflitos.

4.1 Investigando o potencial restaurativo Froestad e Shearing (2005) afirmam a necessidade de novos projetos restaurativos, inovadores, com base no potencial dessa metodologia. Os autores entendem que a capacidade de realização de valores restaurativos por meio dos programas e metodologias varia de acordo com a forma como os processos restaurativos são organizados e administrados. Isso significa que, dependendo da qualidade dos processos restaurativos, teremos ou não a produção de valores da Justiça Restaurativa. Os autores oferecem quatro dimensões, consideradas “um modo mais frutífero e prático de avaliar a capacidade restaurativa das práticas restaurativas” (Idem).

4.1.1 O grau de inclusão dos interessados Trata-se de perspectiva desenvolvida por McCold (apud FROESTAD; SHEARING, 2005), utili4 5

Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinquência.

Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude.

 

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zada para medir o potencial restaurativo de diferentes práticas. Os programas que “ampliam o círculo”, permitindo uma pluralidade de vozes serem ouvidas, normalmente terão capacidade de restauração e de solução de problemas maior do que os programas que limitam a participação. A partir da análise de trechos extraídos dos registros das metodologias do Programa Pólos (Projeto Mediação) e do Programa Mediação de Conflitos – PMC, pode-se observar que o capital social e humano é uma das bases conceituais do projeto de mediação do Programa Pólos e também do PMC. O mesmo é definido nas relações de solidariedade e confiabilidade entre indivíduos e grupos. Ao que parece, na parte prescritiva (metodologias) dos programas, o fomento e o aprimoramento das relações interpessoais e coletivas dão tônica aos serviços e intervenções disponibilizados aos cidadãos e grupos que os acionam. Tal ênfase sugere a constituição de oportunidades para a inclusão dos interessados nas questões trabalhadas pelos programas, o que pode ser entendido também como ampliação do círculo de envolvidos nas demandas e na escuta de uma pluralidade de vozes. Outros trechos extraídos de documento do Programa Pólos de Cidadania, que também são aplicados ao PMC, relatam uma metodologia que se realiza por meio de atuação coletiva e que prioriza ações, decisões e discussões da rede local. Os dois programas realizam o diagnóstico organizacional comunitário, com o intuito de promover conhecimento e reconhecimento de/e entre os atores locais, o que também pode ser visto como expressão da inclusão dos interessados nas questões, não só pelo catálogo de entidades que se forma, mas principalmente devido ao processo de mobilização que pode ser fomentado com a aplicação dessa ferramenta específica. Pode-se identificar a característica de ampliação do círculo de interessados diante dos procedimentos de  

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mediação, que envolvem processos de interação dialógico-argumentativos entre pessoas e grupos.

4.1.2 Ampliação da agenda ou dos objetivos dos programas Froestad e Shearing (2005) extraíram esta dimensão de avaliação de Dignan e Van Ness e afirmam que, segundo esses autores, alguns programas definem suas metas de forma muito específica; por exemplo, na reparação do dano específico, causado por crimes específicos. Já outras práticas apresentam metas mais ampliadas; consideram, por sua vez, a reintegração dos infratores de volta à comunidade, abordam problemas estruturais e desigualdades sociais que geram contextos de dominação e a eclosão de conflitos, ou objetivam empoderar a própria comunidade, aumentando sua capacidade de gerenciamento dos conflitos. Froestad e Shearing afirmam que os programas que ampliam sua agenda ou objetivos podem ter maior potencial restaurativo, uma vez que atuam além da “intervenção de crise”, em direção a uma governança legítima dos conflitos e das suas causas. Ao analisar as metodologias dos Programas com base neste segundo critério, referente à ampliação do foco de atuação de ações restaurativas, observa-se que o Programa Pólos estabelece em sua metodologia as estratégias de constituição do capital social e humano, formação de redes sociais mistas e resolução de conflitos pela mediação como as alternativas mais adequadas “(...) para a minimização ou superação dos riscos e danos que acometem esses segmentos sociais diuturnamente, além das inúmeras violências que conturbam a tranqüilidade das famílias, grupos sociais e indivíduos dessas localidades” (p. 18). O Programa Mediação de Conflitos, seguindo a mesma linha, utiliza-se de tal tecnologia, porém inserida dentro de uma política de prevenção às violências e crimes. Segundo a política de segurança pública do Governo de Minas Gerais, a pre  

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venção às violências deve ser situacional e social. Isso só é possível quando a violência e o crime não são vistos como os únicos problemas em pauta, mas somamse a outras formas de desvantagens sociais. Por isso, pode-se afirmar que ambas as experiências ampliam suas agendas e os seus objetivos, ao atuarem na prevenção de violências e crimes.

4.1.3 Alocação de responsabilidades, recursos e o controle dos serviços investidos na comunidade local De acordo com este critério os autores entendem que o potencial restaurativo também varia conforme suas localizações de base de poder e controle. Assim, programas que alocam responsabilidades, recursos e o próprio controle dos serviços investidos na comunidade local, mesmo que sejam instituídos e administrados pelo Estado, tendem a ter maior potencial restaurativo. Segundo tal entendimento, o movimento de redução de intervenções do sistema formal instituído e o de aumento das intervenções da comunidade geram um maior protagonismo da sociedade civil, redistribuem o poder e dispersam os processos de tomada de decisões privilegiando o âmbito comunitário. Os autores também entendem que os programas baseados localmente e dirigidos por entidades não governamentais tendem a ter um potencial restaurativo maior que os programas administrados pelo Estado. Sobre este terceiro critério de análise das metodologias, afirma-se que um dos conceitos trabalhados nos programas é o de subjetividade, entendida como a capacidade de autocompreensão e de percepção do senso de responsabilidade do indivíduo e da própria população sobre seu contexto e seus rumos. As ações dos programas, ao voltarem-se para o fomento e constituição de capital social e humano, compreendido dentro das relações e de redes locais que visam transformações e melhorias, tornam-se expressão da alocação  

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de poder, recursos e serviços na localidade e, por isso, alocam também responsabilidades. Em relação ao controle dos serviços prestados, Mika e Zher citados por Froestad e Shearing (2005) afirmam que o controle do serviço deve ser investido na comunidade local e em seus cidadãos. O trecho destacado de Gustin (2005, p. 22), referente ao Programa Pólos, prevê que os resultados devem ser processados nas e pelas comunidades, proporcionando a revisão das práticas sociais de mobilização e de organização popular. Esses pontos selecionados já demonstram que as metodologias prevêem a alocação nas comunidades dos serviços, recursos e que o controle dos serviços volta-se também para a comunidade.

4.1.4 Tomada de decisão com base no conhecimento e na capacidade local Com base nas identificações de Braithwaite, Froestad e Shearing (2005) o diálogo respeitoso e a não dominação devem ser considerados como valores restaurativos centrais. Os autores sugerem que o respeito a tais valores significa que não apenas as vozes dos envolvidos no conflito sejam ouvidas, mas que a resolução dos problemas deva ser baseada principalmente em relatos de como os interessados locais experimentam e concebem os conflitos. À medida que os profissionais dominam as reuniões restaurativas, os envolvidos no conflito perdem parte de seu senso de pertencimento do problema. Assim, os programas que priorizam a tomada de decisão com base no conhecimento e na capacidade local têm maior potencial restaurativo do que programas nos quais a resolução de problemas está circunscrita por definições e categorias formuladas em outras instâncias. O procedimento adotado pelos programas para a abordagem dos conflitos baseia-se no método de me  

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diação de conflitos. Com base na análise das metodologias pode-se destacar as seguintes características do procedimento de mediação adotado: a) é um processo dialógico que atribui às partes o poder de decisão sobre a situação; b) tal poder de decisão baseia-se no convencimento e não na persuasão; c) o procedimento valoriza os pontos positivos do problema e da argumentação dos envolvidos, baseia-se na comunicação colaborativa, busca a preservação da igualdade quanto às condições de diálogo e enfatiza a consciência de que o problema tem solução e de que esta deve ser proposta por eles mesmos. Nota-se que as características de tal procedimento de mediação, atende ao quarto critério de avaliação do potencial restaurativo dos programas. O diálogo respeitoso e a não-dominação, identificados por Braithwaite (apud FROESTAD; SHEARING, 2005), como valores restaurativos centrais, são elementos encontrados nos casos em análise. Destes valores restaurativos decorrem, segundo o referido autor, que a resolução dos problemas deve ser baseada em como os envolvidos experimentam e concebem os conflitos. Observa-se também que o conhecimento e capacidade local são elementos previstos nas metodologias como aspectos que devem ser valorizados e determinantes nos processos de tomadas de decisões. As duas práticas mineiras de resolução de conflitos em âmbito comunitário foram avaliadas, até aqui, quanto aos seus aspectos prescritivos. Como se pode depreender da exposição feita pelos autores, o potencial restaurativo de ações e programas pode ser mensurado ao avaliarem-se os processos utilizados para as tomadas de decisões ou alcance de soluções. Com base nas análises expostas acima, é possível identificar os quatro critérios do potencial restaurativo no que se refere à parte prescritiva, ou conteúdo  

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programático dos programas. Desse modo, os aspectos encontrados nas metodologias apontam para a constatação de que os casos em análise são imbuídos de alto potencial restaurativo e que se constituem em práticas de Justiça Restaurativa em contextos comunitários.

Conclusão As discussões sobre o tema do acesso à Justiça no Brasil têm sido feitas, geralmente, segundo a ótica da reforma do sistema judicial, traduzidas na busca pela celeridade, mudanças na legislação processual, utilização de métodos autocompositivos, ampliação do acesso material e a modernização administrativa. Apesar das melhorias alcançadas, deve-se reconhecer que algumas limitações no acesso não serão sanadas somente com tais medidas. Esta constatação coincide com o entendimento de Santos (2007) quando afirma que a questão do acesso à justiça diz respeito também à mudança ao quê se tem acesso. No rol de caminhos alternativos à realização de Justiça estão inseridas as práticas de Justiça Restaurativa, que, neste trabalho, foi conceituada a partir de seus princípios e valores. Estes permitem que as concepções e práticas restaurativas sejam ampliadas e possibilitam a identificação de novas experiências assim consideradas. Com base no entendimento de Froestad e Shearing (2005) sobre a necessidade de novos projetos restaurativos e as investigações de potencial restaurativo de programas ou ações, analisaram-se as duas experiências mineiras: o Projeto de Mediação do Programa Pólos de Cidadania e o Programa Mediação de Conflitos da SEDS. Os resultados encontrados a partir das análises de conteúdo das metodologias foram: Em relação ao conteúdo programático ou à metodologia adotada pelas experiências, verificou-se a presença dos quatro critérios restaurativos, propostos  

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pelos autores citados, de forma expressiva, o que aponta para o elevado grau de restauratividade do Projeto de Mediação do Programa Pólos e do Programa Mediação de Conflitos da SEDS. Constituem-se assim em experiências, cujas previsões de atuação, as caracterizam como práticas de Justiça Restaurativa em contextos comunitários. É recomendável, porém, que as metodologias do NMC do Pólos e do PMC estabeleçam mecanismos mais efetivos para a abordagem de aspectos estruturais e ampliação da participação dos envolvidos nas questões interindividuais. Como visto na apresentação das metodologias, os mecanismos utilizados neste sentido, colocam na pauta da comunidade os temas mais emblemáticos trabalhados nos atendimentos interindividuais, por meio da coletivização de demandas (projetos, palestras, ações na comunidade). Porém, tais ações não asseguram o alcance de tais propostas e efeitos nos casos de mediação individual, para as pessoas neles envolvidas. Sugere-se, pois, o envolvimento mais ativo do PMC e NMC com as redes locais, por meio de discussões de casos, encaminhamentos e chamamento de tais atores para participarem da solução das demandas. Isso ensejaria a perda de certo grau de “neutralidade” ou “imparcialidade”, típica dos processos de mediação de conflitos, em prol da ampliação de aspectos restaurativos nas abordagens. Quanto à efetividade das experiências mineiras, conclui-se que quanto mais restaurativa a abordagem do problema, mais efetiva ela será. Uma vez demonstrada que as expectativas do projeto e do programa, expressas em seu conteúdo programático (metodologia), condizem integralmente com a proposta restaurativa, resta considerar que os quatro critérios caracterizadores da restauratividade das ações são capazes de assegurar que as necessidades dos usuários do PMC e do NMC do Programa Pólos sejam atendidas. Isto porque os processos restaurativos pressupõem participa  

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ção, acolhida das necessidades e a responsabilização dos envolvidos nos problemas. Com base nos resultados expostos, pode-se confirmar a hipótese inicialmente proposta. As experiências mineiras de mediação de conflitos interindividuais e coletivos, desenvolvidas em contextos comunitários, utilizam-se de princípios e valores restaurativos, e prevêem processos restaurativos em seus conteúdos programáticos. Na prática dos programas, constata-se que os processos utilizados nos casos coletivos identificamse com práticas restaurativas, pois concretizam valores e princípios restaurativos. Produzem assim resultados restaurativos, principalmente entre os participantes das comunidades. Em relação aos casos interindividuais, porém, há menor potencial restaurativo, devido, principalmente, à ausência de participação da rede social local no desenvolvimento da questão. Pode-se concluir que tais experiências mineiras apresentam em suas bases metodológicas princípios de Justiça Restaurativa comunitária e desenvolvem processos de mediações coletivas com alto grau de restauratividade, característica também dos seus resultados. Quanto à mediação interindividual, tanto processo quanto o resultado são parcialmente restaurativos. A pesquisa também demonstrou a efetividade de tais práticas, o que permite a conclusão de que significam realização de justiça para pessoas e grupos que delas se utilizam, sendo também viáveis quanto a sua aplicação em contextos comunitários.

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Os desafios da Justiça de Transição ante a consolidação do Estado Democrático De Direito As dificuldades enfrentadas pelo processo transicional brasileiro expressas nas reformas institucionais para a implementação da democracia

Henrique  Ratton  Monteiro  de  Andrade1     Jessica  Holl2  

Resumo: Este artigo visa analisar os desafios para a efetivação do Estado Democrático de Direito em um contexto pós ditadura. Para isso, em sua primeira parte é feita uma abordagem conceitual acerca das peculiaridades do Estado Democrático e do Estado ditatorial; em seguida, parte-se para uma análise da importância da Justiça de Transição no contexto de mudanças e dos seus elementos basilares. Por fim, é feita uma reflexão acerca das heranças ditatoriais e das conquistas democráticas, com especial enfoque no caso brasileiro. Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Justiça de Transição. Brasil. 1 2

Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista do programa Jovens Talentos para a Ciência – CAPES, membro do Grupo de Estudos de Direito Internacional CIJ – GEDI CIJ da UFMG

 

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Abstract: This article aims to analyze the challenges to the effectiveness of the Democratic Rule-of-Law State in a post dictatorship context. For that, in its first part, a conceptual approach about the Democratic State’s and the dictatorial State’s peculiarities is carried on; this is followed by an analysis about the basic elements and the importance of Transitional Justice in such context. Lastly a reflection on dictatorial’s heritage and democratic’s achievements is presented, with special focus in the Brazilian case. Keywords: Democratic Rule of Law State. Transitional Justice. Brazil.

1. Introdução Conhecer a verdade não é simplesmente saber de fatos ou dados, é um conhecimento mais interiorizado, mais profundo; é fazer jus a uma memória, a um passado que não deve e não pode ser ignorado. Verdade vem do grego aletheia, em que o prefixo a indica negação e lethe significa esquecimento. Modernamente essa palavra assume um significado mais importante: segundo o pensamento de Heidegger, aletheia quer dizer desvelamento. Logo, verdade pressupõe o não esquecimento – isto é, a memória3 – e o desvelamento de circunstâncias e eventos passados cujo entendimento ainda permanece obscuro para a história e para a sociedade como um todo. Desvelar a verdade é, simultaneamente necessário e perigoso. É necessário por consistir um direito de todos o acesso a qualquer fato que ajude a construir a história de seu povo. Entretanto, é perigoso, pois o 3

Com relação ao conceito de memória, é possível análisá-lo sob três perspectivas: memória impedida, manipulada e obrigada (RICOUER, 2007, p. 82-104).

 

Os desafios da Justiça de Transição...

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modo como essa história vai ser contada ao longo dos anos deve ser pensado a fim de se evitar que alguns de seus aspectos sejam deliberadamente omitidos enquanto outros sejam excessivamente exaltados. Sistemas autoritários geralmente possuem versões oficiais que são distantes da realidade por eles vivenciada. Muitos acontecimentos são abafados no intuito de promover seu esquecimento e outros são manipulados, de modo que a nova versão favoreça o governo. Quando esses regimes são desfeitos e intenta-se instaurar um Estado Democrático de Direito, é necessário que haja um período transicional de reforma das instituições – sociais e políticas –, de sorte que os legados autoritários não minem as chances de (re)democratização do país. É nesse ponto que entra a chamada justiça de transição, que objetiva proporcionar as condições mais favoráveis para o desenvolvimento dos elementos principais do novo modelo de Estado. Assim, a justiça transicional exerce um papel constante de memória e de desvelamento, posto que só é possível consumar a passagem de regimes quando se tem conhecimento dos eventos ocorridos anteriormente. Nesse sentido, todo e qualquer abuso cometido deve ser apurado, de forma a assegurar sua não recorrência. Contudo, são muitos os resquícios que ficam de um regime totalitário. São muitas as instituições que ainda trabalham conforme o modelo ditatorial. Elas estão mascaradas em nosso sistema, e, mesmo que veladamente, ainda representam os perigos do retorno ao modelo autoritário. São claros os exemplos observados no contexto brasileiro: a insistência na adoção da nomenclatura Revolução de 64, de modo a negar o uso do termo golpe; a eleição de expoentes do poder coercitivo Estatal, como o coronel Telhada da Rota, o que estabelece uma ligação inadequada entre política e segurança policial; e, ainda, declarações como a do então governador de São Paulo, Geraldo Alckimin – sobre a desas    

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trosa operação da Rota que resultou em nove mortes – que afirmou que “Quem não reagiu está vivo”4. Perpetuar a existência dessas instituições é manter acesa a brasa do autoritarismo que é passível de se incendiar novamente a qualquer momento – que pode ser incendiada por qualquer ator político a qualquer momento. A justiça de transição se faz presente, então, como forma de garantir que não haja impunidade, revanchismo e muito menos esquecimento. Nesse caso, recordar é necessário; é garantir a vida e o respeito a todos os direitos fundamentais que ela traz consigo.

2. Do autoritarismo à democracia, período de transição Desde a Grécia Antiga, percebe-se a preocupação do homem com as formas de governo presentes em sua própria sociedade. A definição dessas formas segue diferentes parâmetros, sendo o mais comum deles a existência ou não das liberdades individuais e políticas. Isso posto, tem-se a estruturação de dois modelos governamentais básicos e diametralmente opostos: o autoritarismo e a democracia. A priori, é mister pontuar os diferentes sistemas autoritários a fim de se evitar incorrer em erros de classificação corriqueiros. Ditadura, autocracia, monarquia e despotismo são todas formas autoritárias de governo (BOBBIO, 1997, p. 94), que, apesar de guardarem muitas semelhanças, possuem diferenças fundamentais no tocante à maneira com que o Estado lida com seu povo. Em todos esses regimes há a sujeição das massas a uma elite política, caracterizada ou não pela presença de um chefe, uma vez que o voto, bem como a maioria dos direitos e liberdades políticos e indiviuais são abolidos 4 Entrevista postada no site http://g1.globo.com/ atualizado em 12/09/2012 17h04.

 

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ou limitados pelo regime, de sorte que somente persistem aqueles direitos que são de interesse para a manutenção do Estado (BADÍA, 1989, p. 285). Cria-se, então, pseudo-direitos que têm sua validade limitada à vontade estatal. É importante destacar, nesse sentido, o papel dos regimes totalitários, que são o expoente máximo do controle da vida do cidadão. Regimes como o facismo e o nazismo encontraram vasta base ideológica entre o povo e chegaram a desfrutar de enorme aceitação social. Conquanto, também exerceram um controle descomunal sobre a vida de seus subjugados, de modo a garantir a manutenção do poder: Porque o líder totalitário enfrenta duas tarefas que a princípio parecem absurdamente contraditórias: tem de estabelecer o mundo fictício do movimento como realidade operante da vida de cada dia, e tem, por outro lado, de evitar que esse novo mundo adquira nova estabilidade; pois a estabilização de suas leis e instituições certamente liquidaria o próprio movimento. (ARENDT, 1989. p.441)

Por intermédio dessa breve explanação é possível perceber que o contexto brasileiro de outrora diferencia-se da forma popularmente considerada totalitária. Muitas pessoas se confundem ao tentar caracterizar o período militar brasileiro. A nomenclatura correta é ditadura, entretanto não podemos considerá-lo um governo totalitário, mas sim, autoritário. Destarte, torna-se conveniente frisarmos que a ditadura brasileira teve sua instauração apoiada por vários setores da sociedade. Movimentos de toda elite burguesa contribuíram para a derrocada do presidente João Goulart. “O golpe de Estado militar de 1964 foi o instrumento que permitiu aos setores da burguesia mais claramente (aliados) ao capital internacional e aos grandes proprietários de terra descartar o ‘perigo de uma república sindicalista’” (OLIVEIRA, 1980. p.108). Após a entrada dos militares no poder, as classes que outrora apoiaram a “substituição presidencial”    

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foram sistematicamente perdendo influência, na mesma medida em que as liberdades democráticas passaram a ser consecutivamente cerceadas, até o ápice da afronta aos direitos humanos ser atingido por meio do Ato Institucional nº 5. São notórios os casos de tortura e restrição de direitos fundamentais, que por uma questão prática não serão aqui pormenorizadas5. Contudo, o fim do regime militar, trouxe consigo nova adversidade: a temida transição eficaz para um regime novamente democrático. As más lembranças e as desconfianças permaneceram, o que poderia levar a uma transição conturbada. Entrementes, nesse momento podem ser feitos diversos questionamentos: a que se destinaria essa transição? Estaríamos indo de um regime ditatorial para qual novo modelo? Para uma democracia? E em que consiste essa democracia? Em que ela se diferenciaria do antigo modelo? Para darmos início a essas explicações, é preciso que voltemos à Grécia antiga, mais especificamente a Atenas, ao chamado “berço da democracia”. A democracia, como imaginada na Grécia antiga, propunha um vínculo entre sujeito e objeto do poder político, sem aventar qualquer possibilidade de representatividade. Dessa forma, o poder político deveria ser exercido diretamente (GARCYA PELAYO, 1993, p. 175). Ela abarcava uma noção de poder construído de baixo para cima, priorizando sempre a soberania popular (SOARES, 2001, p. 313). Mormente, cumpre ressaltar, que a condição de cidadão nas pólis 5 Para mais detalhes acerca das violações aos direitos humanos perpetradas durante o regime ditatorial brasileiro, ver: Direito à Memória e à Verdade, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2007; 68 a geração que queria mudar o mundo: relatos. Organização: Eliete Ferrer. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia, 2011.

 

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gregas era limitada a apenas alguns homens gregos, pois excluía a grande maioria do contingente populacional representado por mulheres, escravos, crianças e estrangeiros (não gregos). Ademais, a inexistência de uma esfera privada individual também era um fato significativo, presente nesse regime. O sujeito somente possuía significado no contexto público da pólis. Modernamente, esse conceito é impraticável, seja pela enorme densidade demográfica, seja pelo conflito de interesses entre o público e o privado expresso de forma mais agravada no jogo político atual. Sob a égide do paradigma do Estado Democrático de Direito6, a democracia funciona de forma indireta através do princípio da representatividade. O indivíduo exerce seu poder democrático periodicamente (no caso brasileiro a cada quatro anos) e indiretamente7 (não toma as resoluções públicas, apenas elege alguém para fazê-lo). 6

Para fins desse artigo é adotada a definição de Estado de Direito presente no Relatório do Secretário Geral das Nações Unidas ao Conselho de Segurança S/2004/616 de 23 de agosto de 2004: “ ‘Estado de Direito’ [...] refere-se a um princípio de governança segundo o qual todas as pessoas, instituições e entidades, públicas e privadas, incluindo o próprio Estado, estão submetidas às leis que se promulgam publicamente, sendo igualmente impostas e independentemente aplicadas, e que são compatíveis com as normas e princípios internacionais de direitos humanos.”. Do inglês: “The ‘rule of law’ is a concept […] [that] refers to a principle of governance in which all persons, institutions and entities, public and private, including the State itself, are accountable to laws that are publicly promulgated, equally enforced and independently adjudicated, and which are consistent with international human rights norms and standards.” (Tradução livre). Disponível em inglês em: http://www.unrol.org/files/2004%20report.pdf 7 É importante destacar a presença, cada dia mais acentuda, dos canais de participação da sociedade na administração pública. Como exemplo podem ser mencionados os conselhos políticos – Conselho Tutelar, Conselho do Idoso - as audiências públicas e o orçamento participativo. Entrementes, esse movimento de crescente atuação direta da população nas questões governamentais não muda o fato de que, nas democracias modernas, a participação popular se dá, via de regra, de modo indireto.

   

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Não obstante, como bem definiu Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e David Gomes (2011, p. 225) a democracia é um processo infindável e hiperbólico cuja completude nunca será plena. Representa sempre um porvir aberto a transformações e receptivo a uma infinita pluralidade. Sem embargo, o mero rompimento, abrupto ou gradual, com um regime autocrático, não implica a vivência de um regime democrático reafirmado pela autonomia e autodeterminação por parte do povo, da nação e do Estado – que são os sujeitos da transição (GOMES, REZENDE. 2012, p. 116). Qualquer mudança resoluta e irrevogável corre o risco de assumir uma máscara autoritária semelhante à que se quer findar. Assim sendo, o exercício pleno da democracia e a instauração do Estado Democrático de Direito demandam doses homeopáticas, tendo em mente que esse é um processo sempre passível de novas transformações, que deve transcorrer-se paulatinamente: “Pensar a transição na justiça de transição como transição para um modelo pronto de democracia a ser consolidado é um risco perigoso ao qual não se pode ceder. A transição não termina, porque a democracia não se completa, não se esgota.” (CATTONI DE OLIVEIRA, GOMES. 2011. p.225)

O processo de democratização na América Latina ainda engatinha perante outras consolidadas democracias difusas pelo globo terrestre. A experiência redemocratizante vivenciada pelos latino-americanos trouxe consigo melhorias, mas também frustrações com os ditos governos “populares” e igualmente com as próprias instituições democráticas (D'ARAÚJO, 2008, p. 323). A justiça de transição, por conseguinte, ocupa ofício garantidor de uma profunda e profícua reforma, de modo a se preocupar com a efetivação dos princípios do Estado Democrático de Direito – constitucionalidade, defesa dos direitos fundamentais, legalidade da administração, segurança jurídica, proteção jurídica  

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e das garantias processuais e divisão dos poderes (SOARES, 2001, 304-305) – sem olvidar dos desafios oriundos das transformações que ainda porvirão.

3. Justiça da transição A expressão justiça de transição, empregada primeiramente por Ruti Teitel na década de 1990, trás o desafio de amalgamar dois termos que, a princípio, podem parecer inconciliáveis: transição e justiça. Transição, remete ao latin transitiō, que se refere à ação de passar, de ir de um lugar a outro, de passar de um lado para outro (GOMES, REZENDE, 2012, p. 108). Assim, transmite a ideia de fluidez, de mudança paradigmática. Entretanto, uma mudança a que não cabe esquematizações ou roteiros predefinidos, que – conforme será exposto adiante – depende das peculiariedades de cada contexto. Por outro lado, tem-se que a justiça é um fim em si mesma, que ela não deve ser praticada com o objetivo de se alcançar a felicidade, ou como meio para qualquer outro fim, mas que ela está diretamente relacionada com o princípio da equidade – um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito – e, por isso, apresenta um valor intrínseco. Historicamente, a sociedade ocidental, de acordo com Chaïm Perelman, desenvolveu seis principais parâmetros para a definição do justo: a distribuição segundo o mérito individual, segundo as obras de cada pessoa, segundo as necessidades específicas de cada um, segundo a posição na hierarquia social e de acordo com as atribuições legalmente estabelecidas (NUNES, 2003, p. 1). Para efeitos desse artigo, no intuito de nos determos mais especificamente no encontro da justiça com a transição, adotaremos a visão que correlaciona o ideal de justiça com o equilíbrio necessário para se evitar a impunidade dos    

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atos cometidos em desacordância com o Direito8, bem como para que não se caia na aplicação do direito apenas por revanchismos. Dentro desse panorama, é importante, ainda, dar o devido destaque à materialidade da justiça, que fornecerá a matiz interpretativa do que se enquadra no que é Direito. Justiça, então, analisada como “ideal de responsabilidade e equidade na proteção e defesa dos direitos e prevenção e punição dos crimes” (CSNU, 2004, p. 4)9. Dessa forma, uma justiça de transição estaria ancorada na necessidade de uma mudança de lado, de uma mudança do paradigma político no sentido de uma (re)democratização e de uma (re)estruturação dos institutos que garantem a defesa dos direitos humanos, da igualdade e da liberdade. Quando colocados em paralelo, os termos justiça e transição remetem à tentativa de um acordo na sociedade no tocante aos abusos e violações de direitos fundamentais cometidos no passado, com o intuito de que haja a responsabilização dos perpretadores (CSNU, 2004, p. 4) e que seja assegurado o direito à verdade, de modo que se caminhe em direção à justiça. Quando mencionado o direito à verdade, seria até mais adequado referirmo-nos a um direito às verdades, pois o que não se pode buscar nesse momento é a implementação de uma verdade oficial, inquestionável. O processo transicional genuíno requer múltiplas possibilidades de verdade, diferentes visões e versões. Isso, pois a historiografia contemporânea tem cada vez 8 Com relação às normas de direito, aqui é preciso ter em mente a Fórmula de Hardbruch, segundo a qual todo o direito vigente é válido, desde que ele não seja extremamente injusto. Portanto, não se objetiva legitimar absolutamente qualquer norma jurídica apenas por ela estar positivada; seria ainda necessário que ela não violasse os preceitos fundamentais de direitos humanos nem as normas de jus cogens. 9 Do inglês: “‘justice’ is an ideal of accountability and fairness in the protection and vindication of rights and the prevention and punishment of wrongs”. (Tradução livre). (CSNU, 2004, p. 4).

 

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mais se distanciado da tradição marxista, em que havia a busca por uma história plena e objetiva, como se os fatos estivessem prontos e fechados, aguardando para serem encontrados pelo historiador, que transmitiria ao público a verdade (CATTONI, GOMES, 2011, p. 218). Esse novo paradigma da historiografia, naturalmente, abre-se para o risco de que qualquer versão ou narração seja considerada como história, de modo a colocar em xeque a autenticidade e a veracidade de todos os estudos, na medida em que eles poderiam, deliberadamente, ser manipulados. Entrementes, esse é um risco que não pode ser eliminado sem que se caia na concepção, ainda mais perigosa, de uma história oficial – na verdade, aqui o risco de manipulações seria ainda maior, pois é vedado qualquer tipo de contestação da versão apresentada como correta. Como forma de minimizar esse risco há de se garantir que a construção histórica ocorra de modo a seguir critérios mínimos de cientificidade e que se dê em espaço público (CATTONI, GOMES, 2011, p. 226). Essa demanda por publicidade manifesta-se até como um impositivo constitucional do Estado brasileiro para com os cidadãos, que, de acordo com o art. 5º, XXXIII, C.F. de 1988, “têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescidível à segurança da sociedade e do Estado”. Nesse ponto, em específico, é preciso destacar a importância para o processo de construção histórica no Brasil que teria a publicidade dos materiais10 coletados e produzidos pelos militares durante a ditadura, mas que permanecem em sigilo de Estado. É um tanto 10 Esses materiais talvez não sejam ainda considerados como documentos, propriamente, por ainda não terem passado pelo crivo de uma crítica que os eleve à condição documental estrita (CATTONI, GOMES. 2011, p. 219).

   

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quanto questionável a imprescindibilidade do sigilo desses papéis para a segurança da sociedade brasileira. A única justificativa para a necessidade desse sigilo seria a alegação de que a divulgação dos materiais em questão poderia colocar em risco o frágil equilíbrio da democracia do Brasil. Contudo, essa seria uma justificativa válida em 1988, quando a Constituição Democrática acabava de ser promulgada. Hoje, quando são comemorados os 25 anos desse texto constitucional, não há mais motivos racionais que corroborem a teoria de que o sigilo desses papéis constitui requisito para a segurança nacional. A verdade é exatamente o contrário: o que compromete os institutos democráticos brasileiros é esse sigilo. A publicidade dos arquivos atenderia a uma demanda do povo, a quem interessaria diretamente dispor de mais de uma visão, de mais de um panorama acerca dos acontecimentos do período ditatorial. Com relação à justiça da transição, ela é uma justiça a ser efetivada sempre em um tempo posterior ao devido, ao necessário (GOMES, REZENDE, 2012, p. 223-224). É uma justiça em nome de pessoas que tiveram suas liberdades violentadas, seus direitos aviltados, mas que não mais estão aqui para manifestarem seus clamores por justiça, para terem suas perdas indenizadas. Para esse grupo cabe à memória o papel do reconhecimento de suas lutas em prol de um Estado Democrático de Direito. Entrementes, essa também é um justiça para as gerações vindouras, que têm o direito de receberem um Estado cada vez mais democrático, de sorte que sua própria liberdade, que os seus próprios direitos individuais não sejam tolidos como foram os de seus antepassados. Assim, essa dialética entre passado e futuro, entre memória e projeto (RICOEUR, 2007, p. 101) torna a justiça de transição uma demanda do presente e para o presente, de modo que não se postergue ainda mais a sua execução, no sentido de tornar cada vez mais viável o caminhar em direção ao Estado Democrático de Direito.  

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Nesse diálogo entre passado, presente e futuro, nota-se que cada nação apresenta uma história pregressa, vive um momento presente e que todas estão abertas a seus futuros. Posto isso, observa-se ainda que as demandas de cada sociedade perante seu passado são diferentes, que cada uma delas está inserida em um contexto próprio e que esse não deve, e não pode, ser desconsiderado no processo transicional. É com base nessa diferença contextual e de percepção dos fatos por parte das diferentes comunidades, que Teitel explica como em uma dada circunstância o Estado Democrático de Direito pode fundamentar tanto a reafirmação da legalidade e anterioridade da lei, quanto à negação dessa legalidade e a refutação de defesas nela baseadas (GOMES, REZENDE. 2012, 109-110). Assim, cada processo de transição de um regime autocrático deve seguir seus próprios padrões, sem importar fórmulas padronizadas no estrangeiro (CSNU, 2004, p. 3), de sorte a atentar para suas próprias peculiariedades e necessidades, afinal, nem toda ditadura se deu nos mesmos moldes e nem todo povo reagiu da mesma forma às situações que foram colocadas para ele.

4. Justiça de transição Após sistemáticas violências aos direitos humanos, a justiça transicional tem como tarefa primordial fazer erigir no nascente Estado Democrático de Direito um ambiente de paz sustentável (ZYL, 2009, p. 32). Para tanto devem ser adotadas diferentes medidas, que dependem necessariamente da história pregressa da nação. Contudo essas políticas públicas seguem os pilares básicos de todo processo de transição, que manifestar-se-ão de forma própria em cada Estado. O tripé fundamental da justiça de transição consiste na verdade e memória, na justiça e na reparação; além desses, também é interessante acrescentar a (re)construção das instituições democráticas. Cada um desses elementos contri    

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buiu para a execução de um projeto que nenhum deles seria capaz de cumprir isoladamente: o de construir um corpo estatal, com base no reconhecimento de um passado de graves violações à dignidade inerente à pessoa humana, que progrida continuamente no sentido da efetivação dos princípios democráticos.

4.1. Verdade e memória O direito à memória fundamenta-se no reconhecimento por parte do governo, que corroborou com – e até promoveu – graves violações aos direitos fundamentais do homem, dos erros cometidos. Aqui, é extremamente importante que não haja a negação do passado autoritário, nem a tentativa de minimizar suas consequências para todo o rol de vítimas, sejam elas diretas ou indiretas. Isso, pois para que seja concretamente possível caminhar rumo a um Estado Democrático de Direito, é preciso que seja incorporado à história nacional o passado ditatorial, de sorte que ele constitua um exemplo, sempre presente na memória de toda a nação, de um modelo de governo a ser constantemente evitado. Nesse sentido, faz-se necessário remetermo-nos a Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e a David Francisco Lopes Gomes (2012, p. 229), quando eles afirmam a irrevogabilidade e a irrecuperabilidade do passado em toda a sua complexidade, logo somente um olhar crítico de reatribuição de sentido é que nos poderia salvar dessas características e, a partir de então, possibilitar um aprendizado genuíno com base no que já foi vivido pela nação. Dessa forma, fica evidente que é necessária uma real introjeção das experiências passadas do povo, para que, somente a partir de então, seja possível (re)construir um ambiente democrático, que vá na direção oposta da experiência autoritária, prevenindo assim a possibilidade de haver uma (re)instauração de um novo regime de exceção.  

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O próprio jusfilósofo Hans Kelsen (2006, p.15) já mencionava a imutabilidade dos fatos acontecidos, mas a possiblidade de sua (re)interpretação à luz de um novo parâmetro – no caso, normativo. Segundo o austríaco, seria efetivamente impossível transformar fatos acontecidos em não acontecidos, entretanto, uma nova interpretação acerca desses mesmos acontecimentos seria possível à luz de normas postas em vigor após o evento a ser interpretado. Trazendo essa análise para o caso do processo transicional, observa-se que, quando já instalados os primeiros sustentáculos do novo Estado democrático, é possível (para não dizer necessário) que nos voltemos para uma nova análise do momento político anterior e, aqui, sem os entraves de uma historiografia oficial, possamos (re)interpretar os fatos ocorridos, agora, tendo como parâmetro os princípios do Estado Democrático de Direito. Se, por outro lado, é feita a opção pelo esquecimento, tem-se três principais consequências: o impedimento de investigações acerca das violações aos direitos humanos, o comprometimento da compreenção crítica da história nacional – compreenção essa que favoreceria a consecução de mudanças estruturais na sociedade –e a consolidação da impressão, na sociedade como um todo, de que, mesmo com o passar do tempo, não houve significativas mudanças nas instituições políticas herdadas da ditadura (PETRUS, 2010, p. 275). Portanto, evidencia-se a importância de preservar o direito à verdade e à memória como uma garantia fundamental no autêntico Estado Democrático de Direito. Isso, posto a necessidade da sociedade ver reconhecidas as atrocidades cometidas no passado, a importância delas serem investigadas e, quando possível, também serem punidas.

   

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4.2. Justiça Mais do que uma proposta revanchista de punir os algozes daqueles que se revoltaram contra o sistema ditatorial, a justiça precisa ser vista como mecanismo de efetivação dos direitos humanos, que constituem o norte do Estado Democrático de Direito, e não uma nova violação a eles. Assim, os processos judiciais aparecem como uma conclusão das investigações acerca dos envolvidos nas violações aos direitos humanos e sua responsabilização por suas próprias ações e unicamente por essas. Não será justiça se for ignorado o princípio da proporcionalidade entre o crime cometido e a pena aplicada, no intuito de tornar as incriminações exemplares para a comunidade. Também não será justiça se o réu já chegar em seu julgamento previamente condenado pela sociedade e esse fator constituir-se como determinante para sua condenação penal. Dessa forma, a principal função dos julgamentos consiste na reafirmação política das normas e dos valores da sociedade democrática (ZYL, 2009, p. 35). Os processos judiciais demonstram à sociedade que as violações aos direitos fundamentais não são aceitáveis e que a comunidade jurídica não é – e nem pode ser – conivente com elas. Assim, é dado mais um passo em direção à reestruturação da confiança entre a sociedade civil e o governo, confiança essa que havia sido desconstruida quando aqueles que tinham a obrigação prima facie de representar o povo e assegurar a proteção dos direitos dos cidadãos foram os que violaram esses direitos. Assim, pode-se observar que algumas decisões políticas adquirem extrema importância para o desenrolar desse processo, são elas: a definição dos critérios de acusação e de punição dos perpretadores; a análise da oportunidade das sanções penais ou políticas; e a expulção dos cargos da administração pública dos envolvidos com as violações aos direitos humanos  

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(MEYER, 2012, p. 231). Essas seriam medidas preliminares, que permitiriam a consecução de uma justiça transicional realmente preocupada com a legalidade e a justiça das ações a serem tomadas; que não desconsideraria as emoções dos envolvidos, mas que nem por isso se curvaria às paixões. Que, portanto, almeja a estruturação de bases sociais realmente democráticas, isto é, que respeitem as opiniões e os interesses da comunidade, e que estão ancoradas nos princípios do Estado de Direito. Contudo, na maioria dos processos de transição ocorridos na América Latina, incuindo o brasileiro, o direito das vítimas foi apresentado como uma variável menor, que deveria ser contraposta ao ideal de conciliação nacional (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010). Assim, com o intuito de evitar uma revolta nacional e proporcionar uma maior aceitação das violações perpetradas no passado, optou-se, no caso do Brasil em específico, pela incorporação de uma lei de anistia – de autoanistia – ao novo ordenamento inaugurado em 1988, que a princípio deveria ser considerado democrático. Nesse momento, não se observou que exatamente a incorporação dessa herança normativa claramente antidemocrática é que impediria a reconciliação nacional com o passado autoritário. A Lei 6683/79 configurou-se como uma tentativa de impedir, em um primeiro momento, os debates públicos acerca das violações aos direitos basilares do homem ocorridas durante o período ditatorial e culminou na impunidade dos perpetradores bem como daqueles que se aproveitaram do regime, para cometer crimes supostamente em nome de uma ideologia11. Esses fatores constituem 11 É importante relembrar Aristóteles, quando ele afirma que não se deve cometer uma injustiça no intuito de reparar uma outra injustiça, pois não é a primeira injustiça que tornará a segunda uma justiça, ambas permanecerão como injustiças. (ARISTÓTELES, 1973)

   

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um entrave para a aceitação e compreenção pela nação do período autoritário, pois para que se possa virar a página da ditadura primeiro é necessário que essa página seja lida e interpretada (CATTONI DE OLIVEIRA, GOMES, 2011, p. 220).

4.3. Reparação No que concerne às reparações, conforme identificado por Paul Van Zyl (2009, p. 36-37), primeiramente faz-se necessário definir qual será o conceito de vítima adotado. Pode-se entender como vítima aqueles que sofreram diretamente com as violações aos direitos humanos, como por exemplo, os que foram alvos de torturas, desaparecimentos ou assassinatos; mas, por uma outra perspectiva, é possível adotar uma compreenção mais ampla, uma que considera como vítima também aqueles que sofreram de forma mais indireta as consequências do sistema, como os que foram alvo de preconceito, perderam suas terras ou seus cargos públicos. Entretanto, independente da concepção adotada, é imprescindível que o Estado arque com a reparação das vítimas, visto ser essa uma demanda do direito internacional (ZYL, 2009, p. 36). Importante ainda, ressaltar que essa reparação não necessariamente adquirirá caráter pecuniário, também pode dar-se por meio de medidas simbólicas (como a construção de monumentos ou homenagens prestadas através de nomes de ruas ou praças) ou de ajuda psicológica para os envolvidos em situações traumáticas. A reparação monetária é apenas mais uma opção e, se implantada, será apenas de caráter simbólico, pois é inviável um cálculo preciso de todas as possíveis perdas financeiras tidas pelas vítimas em decorrência das medidas adotadas pelos regimes autoritários, bem como valorar bens infungíveis como a vida e as integridades física e moral.  

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Desse modo, as reparações, em suas mais variadas formas, apresentarão, necessariamente, um caráter simbólico, em que o objetivo central é demonstrar que o Estado reconhece sua culpa mediante as violações dos direitos fundamentais. Logo, é importante que, quando da implementação das reparações, haja sempre um equilíbrio entre o demandado pela vítima e o que o Estado pode arcar ou implementar, de sorte a seguir os princípios da equidade e proporcionalidade.

4.4. (Re)construção das instituições democráticas A (re)construção das instituições democráticas aprece na “dimensão de futuro a ser problematizada” (GOMES, REZENDE, 2012, p. 112) da justiça de transição. É aqui que o olhar ao passado conflui com a construção do presente e do futuro, na medida em que o exemplo das estruturas ditatoriais passa a ser compreendido como um exemplo do que não deve ser seguido ou buscado na estruturação do Estado Democrático de Direito. Quando as investigações acerca das violações aos direitos humanos demonstram que esses eventos não foram esporádicos (ZYL, 2009, p. 34-35), é possível compreendê-los como uma política de Estado e, apartir de então responsabilizar as instituições estatais – e não apenas os indivíduos – pelas perpetrações ocorridas. Com isso, espera-se que essas instituições sejam fortemente reformadas ou completamente extintas no Estado Democrático de Direito, pois somente assim, ele poderá obter a legitimidade necessária para o seu pleno desenvolvimento. Se, por outro lado, houver a manutenção dessas instituições corre-se o risco de que a nova democracia já seja tolhida em seu nascimento, visto não estar propriamente ancorada em um sistema reconhecido por garantir a defesa dos direitos humanos. Assim, ela já nascerá com descrédito e desapontamento por parte da    

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comunidade, que almejava um novo governo, com novas instiuções, com novas políticas, que rompessem com o passado de abusos, ao invéz corroborar com a sua manutenção. Portanto, o necessário é que ocorra um desligamento das instituições responsáveis pelas práticas que violavam os direitos básicos dos indivíduos, para, então, ser possível o nascimento de novas instituições que não tenham a marca do autoritarismo em seu passado, nem em seu presente.

5. Justiça, Transição, Brasil A instituição do Estado Democrático de Direito após um período autoritário fundamenta-se necessariamente nas heranças desse período. As marcas de uma ditadura na sociedade que a vivenciou não são simplesmente apagadas de um momento para o outro. Elas persistem, ainda que, de forma mais velada. Quando a sociedade se opôs de forma mais branda, ou aceitou quase que pacificamente o regime ditatorial, há a tendência da nova democracia ser guiada pelas antigas forças politicas, apenas “cosmeticamente renovadas”. Se, por outro lado, a sociedade civil herdou um forte engajamento político e um genuíno comprometimento com os direitos humanos, pode-se evitar o esquecimento forçado dos crimes ocorridos o que levaria à responsabilização dos envolvidos e a mudanças contundentes na estruturação das instituições políticas (BRITO, 2009, 66-67). Naturalmente, a conformação da ditadura em um Estado não determina necessariamente como estruturar-se-á seu novo regime político, entretanto, constitui um forte indicativo de como esse regime tende a ser moldado. Nesse ponto é que a justiça de transição adquire fundamental importância, por constituir o momento de reorganização institucional, político, jurídico e social do nascente Estado Democrático de Direito. Seria uma utopia crer que instantaneamente todos os institutos  

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autoritários seriam extintos e que os alicerces democráticos surgiriam automaticamente. Na verdade, o que se tem é um longo e gradual processo de contínua substituição das heranças ditatoriais por novos elementos democráticos. Um claro exemplo desse processo é o caso brasileiro, em que coexistem justiça militar, possibilidade de pena de morte, instituições policiais que não respeitam o devido processo legal, flagrantes violações aos direitos humanos dos presos e uma lei de autoanistia com comissões da verdade, da anistia, dos mortos e desaparecidos políticos e com uma Constituição Federal que busca reconhecer e proteger as minorias. Heranças autoritárias ao lado de perspectivas democráticas. Passado convivendo com o futuro. E, no presente, um processo transicional em andamento, que já obteve diversas vitórias, mas que ainda tem muitos desafios a enfrentar. No que concerne à Justiça Militar sua estruturação pode ser criticada por constituir um privilégio dos militares e um mecanismo que favorece práticas corporativistas que podem levar à impunidade dos indiciados (OLIVEIRA, 2012, p. 1). Exemplos dessa situação podem ser facilmente encontrados na jurisprudência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos12, que já considerou admissíveis diversos casos em que o Estado brasileiro, na figura de seus órgãos de polícia (no caso, polícia militar e o próprio exército) não assegurou a proteção aos direitos humanos. Em dezembro de 2004, foi levada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma petição em que se argumentava que um cadete da Primeira Companhia do Curso de Treinamento de Oficiais da Academia Militar das Agulhas Negras do Exército Brasileiro havia morrido em outubro de 1990 em virtude de 12

A partir de agora tratada como CIDH.

   

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tratamento desumano por parte de seus superiores. O inquérito policial instaurado não havia chegado a nenhuma conclusão, e havia sido inócuo, assim como a ação civil de indenização por danos. Em 2005 a Comissão também recebeu uma petição contra o Estado Brasileiro, proposta por representantes da sociedade civil que se apresentavam em defesa de 10 ciranças que deveriam cumprir medidas sócio-educativas e foram levadas ao Centro de Triagem e Recepção do Rio de Janeiro, onde deveriam ser redirecionadas para as unidades em que cumpririam as medidas cabíveis. Em maio de 2002, as referidas crianças teriam sido vítimas de abusos e até de torturas no Centro em que estavam detidas. Os inquéritos abertos não chegaram a qualquer conclusão e configurou-se uma condição de impunidade.13 A descrição desses eventos seria mais condizente com a realidade de um Estado autoritário, em que são notórias as violações aos direitos humanos, em especial os casos de tortura. Entrementes, um Estado Democrático de Direito deveria ter como fundamento precípuo o respeito à integridade física e moral de seus cidadãos e ao devido processo legal. Logo, medidas de abuso de poder por parte de qualquer funcionário público não poderiam ser acobertadas pelo sistema judiciário, mas deveriam ser devidamente esclarecidas e, caso verificada a culpabilidade de algum dos envolvidos, esse deveria receber as sanções proporcionais ao seu ilícito.

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Dados referentes ao relatório nº 72/08. Petição 1342-04. Admissibilidade. Márcio Lapoente da Silveira. Brasil. 16 de outubro de 2008; e ao relatório nº 40/07. Petição 665-05. Admissibilidade. Alan Felipe da Silva, Leonardo Santos da Silva, Rodrigo da Guia Martins Figueiredo Tavares e outros. Brasil. 23 de julho de 2007. Disponíveis em: http://www.justica.sp.gov.br/novo_site/paginas/tabela_comissao.ht ml

 

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Contudo, o advendo de uma justiça especial militar abre brechas legais para que muitos processos ligados a oficiais do exército e da polícia militar, por exemplo, tenham sua solução postergada o máximo possível, isso, quando não culminam simplesmente na total absolvição dos envolvidos. Esse corporativismo, herdado das práticas militares do período da ditadura brasileira, constitui-se como um entrave para a maximização dos ideais democrárticos, que têm como uma de suas exigências a publicidade dos atos cometidos por agentes públicos quando atuando em nome do Estado. Outro fator que também limita a efetivação da democracia brasileira consiste na previsão legal da pena de morte. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, XLVII, alínea a define que “Não haverá penas: de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”. Esse ponto em específico representou um atraso da Constituição brasileira em relação ao seu tempo, em que o direito internacional dos direitos humanos rechaça qualquer possibilidade de pena de morte. A própria Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 – Pacto San José da Costa Rica14 – ao tratar dos direitos civis e políticos, condena a pena de morte em seu art. 4º. Todo o movimento internacional vai na direção de se extirpar qualquer possibilidade da pena capital, visto ser essa de impossível reparação em caso de erro do judiciário e ser contrária ao princípio da reeducação do indivíduo para o convívio em sociedade, como um dos objetivos da sanção penal. A incorporação da Lei 6683/1979 ao ordenamento pós 1988, também é mais um exemplo das heranças autoritárias ainda presentes no Brasil. A própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos já con14

Disponível em: http://www.aidpbrasil.org.br/arquivos/anexos/conv_idh.pdf

   

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denou as leis de autoanistia promulgadas pelos regimes ditatoriais no intuito de livrarem seus agentes das condenações por práticas que violem os direitos fundamentais. O caso Gomes Lund e outros v. Brasil ilustra como a Comissão rechaça a incorporação dessa lei pelo Estado brasileiro e exige desse medidas concretas de reparação às vítimas do regime. Contudo, a não aceitação do governo brasileiro da decisão da CIDH configura-se como mais uma tentativa de se conter os movimentos em prol da memória e da verdade relativas ao regime autoritário. Podemos, então, enumerar três principais fatores que contribuíram para a aceitação dessa lei de anistia na realidade brasileira: primeiro, o contexto histórico da transição vivenciada pelo Brasil, que foi controlado pelo antigo regime ditatorial e influenciado pelas lutas pela anistia; em seguida, o papel de legalização da ditadura exercido pelo poder judiciário; e os movimentos sociais que ocorreram após 1988, que se voltaram mais para a crítica aos déficits institucionais do que para a proposição de soluções para as questões políticas concretas (PIRES JÚNIOR, TORELLY. 2010, p. 196-206). Entretanto, atermo-nos apenas aos resquícios ditatoriais proporcionaria uma análise incompleta da comunidade política brasileira. O passado recente do país demonstra uma preocupação de atores estatais e privados em promover a ampliação do respeito aos direitos humanos, o incremento dos estudos acerca do período ditatorial e a expansão do direito à memória e à verdade. Em dezembro de 1995, por meio da Lei 9140/1995, foi instituída a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS, 2007, p. 17). Seu objetivo era solucionar os casos de desaparecimentos forçados e mortes de opositores políticos perpetrados por agentes estatais entre os anos de 1961 e 1988. Essa Comissão permitiu que o governo brasileiro assumisse sua responsabilidade pela  

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integridade dos presos e pelo destino dado a eles, em virtude da elucidação das circunstâncias em que ocorream as prisões, mortes e torturas. Em agosto de 2001, a Medida Provisória nº 2151 criou a Comissão da Anistia, que tem como função analisar os requerimentos de indenização formulados pelas vítimas da ditadura que se viram impedidas de exercer atividades econômicas, unicamente em virtude do regime político, no período entre 18 de setembro de 1946 e 05 de outubro de 198815. Também com o intuito de elucidar os fatos ocorridos durante o período ditatorial, foi criada a Comissão Nacional da Verdade (Lei 12528/2011) cujo foco está na apuração de graves violações aos direitos humanos16. Vale ressaltar que sistematicamente estão sendo criadas comissões da verdade a níveis mais locais, como a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB, A Comissão da Verdade da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e as Comissões da Verdade da OAB de São Paulo e do Rio de Janeiro. Esse intenso movimento social no sentido de promover um estudo mais detalhado dos acontecimentos do período ditatorial e a consequente recriminação das práticas que violam os direitos humanos indicam que o Brasil está caminhando em direção à efetivação do Estado Democrático. Isso, pois uma das demandas primárias desse processo é o reconhecimento das violações cometidas no passado e de seu peso para a história nacional, para que, então, possa-se buscar um Estado livre dessas práticas. Portanto, o exemplo brasileiro ilustra como fragmentos autoritários convivem com projetos democrá15

Mais informações disponíveis em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ20BF8FDBITEMIDDB66A119 72EE4432A7654440E32B2B6CPTBRNN.htm Acesso em: 23 de março de 2013. 16 Mais informações disponíveis em: http://www.cnv.gov.br/ Acesso em: 23 de março de 2013.

   

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ticos. É aqui que entra a Justiça de Transição: na promoção dos princípios democráticos e na minimização dos institutos herdados dos regimes ditatoriais. Esse é um processo contínuo, sempre por fazer, visto que a democracia constitui-se como um ideal a ser sempre buscado, mas impossível de ser plenamente concretizado. Logo, a justiça transicional não tem data certa para terminar, na verdade, o que ela não tem é fim, pois sempre surgem novos desafios, novas metas, no sentido de se promover a máxima democratização possível do Estado.

Conclusão As experiências boas e também as ruins devem ser lembradas sempre. Ambas passam e, ou deixam marcas gratificantes, ou eventos que, apesar de duros e cruéis, servem para manter a memória em alerta, no sentido de se evitar sua recorrência. O esquecimento desses eventos, quando forçado, é um meio de manipular as memórias, de conformá-las com base em um molde artificial, ou simplesmente de sufocá-las, na esperança de que elas nunca voltem à tona. Entretanto, além de não ser saudável, isso não é possível. Por mais que um governo, que um grupo político ou social, ou que qualquer entidade almeje silenciar forçadamente as memórias, elas sempre ressurgirão. Elas não serão simplesmente afogadas no Rio Letes de Dante Alighieri. Isso, pois o rio da Divina Comédia não tem o intuito de sufocar o passado, de evitar sua discussão ou sua superação. Ele apenas recebe as memórias que já foram trabalhadas e interpretadas, que já cumpriram seu papel de ensinar às gerações futuras os males das experiências desastrosas. Essas memórias é que já podem ser calmamente acolhidas pelo fluxo das águas. As outras ainda precisam cumprir o seu papel social de assegurar um futuro livre dos erros do passado.  

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A tentativa incauta de reprimir as lembranças adquire um peso ainda maior quando considerada a longo prazo. Impor uma memória predeterminada é impedir a construção de documentos com valor histórico e, mais do que isso, atentar contra um direito fundamental do homem. Conhecer o passado é determinante para a escrita de um futuro promissor e seguro. A memória é um processo contínuo, e como tal deve ser construída paulatinamente. Assim como um joalheiro lapida uma pedra bruta, os fatos são trabalhados e vão ganhando significado ao longo dos anos. Esse é um processo lento, cuidadoso e contínuo. Antes de adentrar no Letes é preciso acertar as contas com o passado. É preciso compreender o que foi esse passado e o que são essas memórias. Afinal, como esquecer algo que não é plenamente conhecido? Como se libertar de um passado, cuja não compreensão – e consequente não superação – está enraizada nos mais simples institutos da nação? Primeiro é preciso que ocorra uma transição do passado para o futuro, do autoritarismo para a democracia, da memória para o projeto. Assim temos o presente: a conjugação de opostos, a transição das realidades. Aqui é o momento da recordação em nome da efetivação do regime democrático. Assim, a promoção efetiva dessa transição, através do cultivo da memória, da defesa da justiça, da proposição de indenizações às vítimas e da (re)construção das instituições sociais é que viabiliza o projeto de democratização. Portanto, enquanto houver de pé um instituto que represente as atrocidades do passado autoritário, a justiça de transição tem sua existência requerida e validada. O caminho em direção ao pleno Estado Democrático de Direito é longo e tortuoso, mas a justiça de transição apresentase altiva e vigilante, de modo a impedir que novos abusos sejam cometidos, assegurando que a memória seja resguardada e que o amanhã seja vindouro.    

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A justiça diante das armas e os mecanismos eleitorais contramajoritários A experiência do regime de exceção brasileiro

Maria  Celina  Monteiro  Gordilho1  

Resumo: O presente trabalho se destina a apresentar uma pesquisa em andamento no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. A finalidade principal da pesquisa é investigar o papel do Tribunal Superior Eleitoral na ditadura militar, mais especificamente no período médio da ditadura, a partir de 1970. O corte temporal foi feito nessa época para englobar a promulgação da Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar n. 5/70), cuja análise será o fio condutor da pesquisa, a partir de uma pesquisa elaborada pelo professor David Fleischer. Foi escolhida essa lei, pois análises históricas, jurídicas e políticas da LC n. 5/70 indicam que a lei pode ter sido usada com viés político, para atingir opositores do regime militar. A partir do estudo da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral acerca da Lei de Inelegibilidades, propõe-se a reconstrução histórica do papel desse tribunal nesse período de exceção da história constitucional brasileira.

1

 

Mestranda em Direito na Universidade de Brasília – UnB. Advogada.

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Maria Celina Monteiro Gordilho

Palavras-chave: ditadura militar – justiça eleitoral – direito à memória e à verdade. Abstract: This paper aims to introduce a research being held at the Programa de Pós-Graduação em Direito of the Universidade de Brasília. Its main finality is to investigate the role of the Electoral Supreme Court during the military dictatorship in Brazil, specifically during de mid-1970s. This decade was chosen to encompass the publication of the Ineligibility Law (LC n. 5/70), whose analysis will be the conductor of this research, as from a research held by Professor David Fleischer on the subject. This law was chosen, because historical, juridical and political analysis of the LC n. 5/70 indicate that it ma have been used with a political bias, aiming opponents of the military dictatorship. Departing from the study of the jurisprudence of the Electoral Supreme court on the Ineligibility Law, it is proposed the historical reconstruction of the role of the Court during this exceptional time being of the Brazilian constitutional history. Keywords: military dictatorship – electoral law – right to memory and truth.

Introdução A justiça de transição é um período que ocorre posteriormente a um regime autoritário, onde ocorreram numerosas e sistemáticas violações a direitos humanos, no qual a sociedade procura reparar os danos cometidos pelo governo anterior, buscar a verdade sobre os fatos, reformar o direito e as instituições que violaram direitos humanos e possibilitar a eficácia da democracia e a paz, além de identificar as vítimas. Conforme definição do International Center for Transitional Justice, a justiça de transição é a resposta a uma sistemática violação de direitos humanos, um tipo de justi  

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ça adaptado a uma sociedade que se reconstrói após um período de abuso dos direitos humanos. O termo pode ser mais bem definido como “o grupo de processos designados para se dirigir a violações de direitos humanos que se seguiram após períodos de turbulência política, repressão estatal ou conflito armado" (OLSEN, 2010a, fl. 11), sendo notado que o termo “justiça de transição” foi cunhado para descrever procedimentos e mecanismos adotados em relação à violência ocorrida no passado, que buscam a reconciliação da sociedade com seu passado e a promoção da paz social. Ruti Teitel, professora de Direito Comparado na New York Law School que cunhou o termo "justiça de transição", define-o como "a concepção de justiça associada com períodos de mudança política, caracterizados pelo confronto com os erros do anterior regime político repressor" (TEITEL, 2003, p. 69). Teitel afirma que se identifica a justiça de transição desde o final da Primeira Guerra Mundial, mas seu auge acontece com o fim das ditaduras e dos conflitos armados ao redor do mundo, na segunda metade do século XX, quando, então, torna-se rotineiro (TEITEL, 2003, p. 71). Várias medidas podem ser adotadas para se chegar aos objetivos da justiça de transição, as quais são implantadas de maneira diferente em cada país. Podem-se ter, em resumo, programas de reparação às vítimas, políticas de memória, reforma das instituições, julgamentos e comissões da verdade. Cada uma dessas medidas tem um foco diferente. A reparação às vítimas se relaciona com a responsabilização do Estado; com a admissão, pelo Estado, de que ocorreram violações de direitos humanos, e busca reparar pecuniariamente as perdas físicas, laborais e psicológicas que as vítimas e seus familiares tiveram em decorrência do período de exceção. Os julgamentos, por sua vez, procuram igualmente responsabilizar o Estado pelas violações, pela via do Judiciário, que irá julgar e condenar quem    

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deve ser punido. É um tipo de resposta direta à população, uma promoção da paz social por intermédio do Judiciário. A reforma das instituições procura readaptar o sistema jurídico e alterar as leis e normas que foram elaboradas e promulgadas no período de exceção, inclusive pelo fim do regime constitucional anterior. Por fim, o objetivo das comissões da verdade é resgatar a memória e apresentar uma história ideológica e politicamente neutra do período. Nem todas essas abordagens são utilizadas no sistema de justiça de transição. Pode-se escolher apenas uma delas, ou algumas, embora seja sugerido que a melhor estratégia é adotar uma mistura de medidas, como reparação, responsabilização e comissão da verdade, na chamada abordagem holística (OLSEN, 2010a, p. 24). No Brasil, essas medidas foram implementadas em várias etapas, ao longo de três décadas, tendo como início a Lei de Anistia, de 1979, e como ato mais recente a criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012. Nota-se (ABRÃO, 2011, p. 215) que muitas dessas e outras medidas foram adotadas tardiamente em relação a outros países da América Latina que também passaram por períodos de ditadura, nos quais a justiça de transição operou mais rapidamente após o fim dos regimes de exceção. Considera-se como início da justiça de transição brasileira a publicação, ainda sob a égide do regime autoritário, no ano de 1979, da Lei n. 6.683, também chamada de Lei da Anistia, concedida a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e

 

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representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (art. 1º, caput).

Em recente decisão na ADPF 153, o Supremo Tribunal Federal declarou que essa Lei é aplicável inclusive aos violadores de direitos humanos, ampliando a interpretação do § 1º da Lei citada. Considerando as peculiaridades da transição do regime militar para a democracia brasileira, a anistia foi um primeiro e grande passo que possibilitou a volta de exilados políticos, mas também protegeu aqueles que violaram direitos humanos. A Lei de Anistia foi um passo essencial e relevante para a transição lenta e gradual para a democracia no Brasil, tendo se originado de pactos políticos que possibilitaram o fim da ditadura. Outras medidas transicionais brasileiras têm caráter reparatório. Há, por exemplo, duas Comissões instaladas no âmbito do Ministério da Justiça: a Comissão de Anistia e a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. A primeira analisa os pedidos de indenização formulados por pessoas impedidas de exercer atividades econômicas por motivos políticos da época da ditadura até a redemocratização, tais como funcionários aposentados, congressistas cassados e outras hipótese. A segunda, por sua vez, deve proceder ao reconhecimento de vítimas e buscar a localização dos corpos dos desaparecidos, para dar respostas aos familiares das vítimas da ditadura e, assim, possibilitar a responsabilização do Estado por essas mortes e desaparecimentos, de acordo com a Lei n. 10.536/2002. Além dessas comissões, foi instalado um grupo de trabalho que deve proceder a investigações e buscas pelos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia (19721975). Esse grupo de trabalho é a resposta a uma das condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil sobre a Guerrilha do Araguaia, tendo a sentença determinado que o Brasil, entre outras medidas,    

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publique a sentença, proceda às investigações, puna os responsáveis e revise a Lei de Anistia. Esses são exemplos de medidas transicionais que mostram que a justiça de transição no Brasil é atual e ainda está acontecendo. A condenação do Brasil na CIDH se deu em novembro de 2010. As comissões foram instaladas nos anos 1990 e ainda estão em atividade. Além disso, recentemente a justiça de transição tem ganhado apoio de magistrados de primeiro grau, que, instados por familiares de vítimas notórias da ditadura militar, determinam retificações nas certidões de óbito, para colocar como causa mortis a tortura promovida pela ditadura. Porém, apenas essas comissões e medidas não foram suficientes para atender as demandas da sociedade civil e dos grupos brasileiros que atuam em favor dos direitos humanos por justiça. Nem a condenação do Brasil na CIDH foi suficiente para atender a essas demandas, apesar dos esforços empreendidos para tanto. Por esse motivo, foi criada recentemente a Comissão Nacional da Verdade, que busca resgatar a memória do período militar. A criação dessa comissão, juntamente com a existência de outras comissões e outras medidas transicionais, atende a abordagem moderada estudada por Tricia Olsen, a qual traz a comissão da verdade como meio eficaz para estabelecer responsabilização e condenação de violações de direitos humanos, enquanto ao mesmo tempo evita julgamentos tendenciosos que podem mobilizar forças antidemocráticas. Para tanto, deve-se cumprir três condições: a verdade deve ser completa, deve ser proclamada oficialmente, e deve ser exposta publicamente (OLSEN, 2010a, p. 21). A partir dessas perspectivas, é possível considerar que o Brasil vive, atualmente, uma nova fase em sua justiça de transição, esse período pós-ditadura militar em que o país que teve um regime repressivo tenta estabilizar suas instituições democráticas e se recon  

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ciliar com o passado. Esse novo momento transicional atual tem na Comissão Nacional da Verdade sua principal representante. Criada pela Lei n. 12.528/2012, a Comissão da Verdade foi instalada e teve seus integrantes nomeados em maio deste ano, com o objetivo de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (art. 1°, caput). Sua instalação não foi feita sem críticas e questionamentos da imprensa e dos meios acadêmicos. Há quem afirme que é um passo para futuras punições2, outros defendem que a Comissão apure os crimes cometidos por militares e também por militantes3, e há, por fim, aqueles que simplesmente não querem abrir a “caixa de Pandora” da ditadura militar4. Não se pode esquecer que já existem duas comissões instaladas no Ministério da Justiça com o objetivo colateral de apurar a verdade: a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei n. 9.140/95) e Comissão de Anistia (Lei n. 10.559/02). Essas comissões, no entanto, têm objeto de pesquisa mais restrito e prestam outros serviços à justiça de transição, buscando outras respostas para os questionamentos das vítimas. A Comissão da Verdade, por sua vez, é direcionada para a apuração da verdade, esclarecimento das circunstâncias e identificação dos partícipes quanto às violações de direitos humanos ocorridas em um período de tempo que engloba a ditadura militar brasileira (1964-1985), com o objetivo de promover a reconstru2

Entrevista de Frei Betto à Globo, disponível em http://oglobo.globo.com/pais/frei-betto-diz-que-comissao-daverdade-passo-para-punicoes-4992280, acesso em 17 ago 2012. 3 “Braga defende investigação de militares e de militantes”, disponível em http://oglobo.globo.com/pais/frei-betto-diz-que-comissao-daverdade-passo-para-punicoes-4992280, acesso em 17 ago 2012. 4 “Comissão da Verdade é ‘moeda falsa’, diz general”, disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,comissao-da-verdadee-moeda-falsa-diz-general,874634,0.htm, acesso em 17 ago 2012.

   

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ção da história nesse período (art. 3°, VII, Lei n. 12.528/12). Todo país tem seus segredos, e as ditaduras militares da América Latina do séc. XX produziram muitas caixas de Pandora. A ditadura brasileira, então, pelo caráter documental da administração brasileira, pode ter produzido ainda mais caixas do que o normal. O que muda é como o país irá lidar com a abertura dessa caixa, com a memória e a sua história recente. A pesquisa histórico-jurídica sobre o período de exceção brasileiro pode auxiliar na reconstrução da memória jurídica e política do regime militar. Nesse aspecto, é importante que a sociedade brasileira conheça seu passado, para evitar os riscos das verdades institucionais e dos desvios históricos comumente feitos por quem deixa um governo de exceção, de modo a evitar que arbitrariedades ocorram novamente. Além disso, apreender o passado é relevante também no aspecto social, pois uma das finalidades da justiça transicional é promover o fechamento (closure) desse período, atentando para o aspecto de luto que existe após o fim de um tempo de exceção, para que a sociedade ultrapasse psicologicamente esse período e possa, enfim, seguir adiante, sem que as reminiscências do passado continuem a assombrar o presente. Com a instalação da Comissão Nacional da Verdade, dá-se novo fôlego à justiça de transição brasileira, e, igualmente, uma importância à dimensão da memória e da verdade, o que leva à curiosidade e necessidade de investigar aquele período, procurando, além disso, pesquisar a ditadura militar brasileira sob variados enfoques, no que se insere a presente pesquisa.

Proposta de pesquisa Já se disse que a diferença do regime de exceção brasileiro em relação aos seus congêneres latino  

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americanos reside no fato de sua legalidade autoritária ser mais baseada na constituição e na criação de leis que lhe oferecesse sustentabilidade, sem, no entanto, afastar o poder da centralização no Executivo militar, nem deixar o caráter ditatorial do regime. Nesse aspecto, o regime militar necessitava de mecanismos para se manter no poder e dar uma aura de legalidade a seu governo, por meio da criação de novas leis, enfraquecimento das demais instituições e fortalecimento do Executivo. Assim, houve a promulgação de uma Constituição em 1967, alterada por uma emenda constitucional em 1969. Outrossim, as instituições que normalmente são fechadas em regimes ditatoriais, tais como o Congresso, mantiveram-se em atividade, com raros momentos de suspensão das atividades. Em matéria eleitoral, foram realizadas várias alterações no corpo legislativo, com a edição de atos institucionais, emendas constitucionais e outras normas, permitindo, dessa forma, que o próprio regime conduzisse as eleições para adequá-las aos seus interesses, procurando obter uma maioria favorável ao governo. Essas novas regras eleitorais eram diuturnamente analisadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, o órgão de cúpula da Justiça Eleitoral. A função primordial do TSE é dar efetivação às garantias que constituem o ethos da operação eleitoral. O Tribunal tem, entre suas atribuições, a decisão das arguições de inelegibilidade. Sobre esse tribunal, já se disse que: “E, no Tribunal Superior Eleitoral essa função se mostra em extenso campo de exercício, quer pela sua posição de cúpula da organização judiciária eleitora, quer pela razão sobremodo relevante de que, cabendo ao Tribunal Superior Eleitoral zelar pela neutralidade ou isenção das autoridades incumbidas da direção do processo eleitoral, já agora atingindo sua culminância, impõe-se-lhe ainda editar resoluções normativas de cumprimento obrigatório pelos jurisdicionados, poder que, é for-

   

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çoso convir, somado às suas atribuições constitucionais e legais, confere a imponência da Corte no cipoal do denso sistema judiciário brasileiro.” (GORDILHO, 2009, p. 11)

Nessa pesquisa, portanto, é proposta a reconstrução da memória do regime militar brasileiro a partir do estudo do Tribunal Superior Eleitoral no período, e de seu papel institucional quanto ao regime de inelegibilidades criado pela Lei Complementar 5/70 e o impacto que a lei teve nos anos que se seguiram à sua promulgação. Embora o governo Castelo Branco tivesse feito modificações expressivas na legislação eleitoral, seja em inelegibilidades, eleições indiretas ou fidelidade partidária, propõe-se, na pesquisa, o recorte temporal de 1969 a 1985. Como se colocou acima, em 1969 a Emenda Constitucional 1 apresentou uma nova Constituição, e em 1970 veio a Lei Complementar 5 para alterar o regime de inelegibilidades. Logo depois, começou a época mais autoritária da ditadura militar, sendo esse período relevante para a pesquisa, pois será possível analisar a questão do TSE no auge da ditadura militar brasileira. Elegibilidade é o direito subjetivo público (ius honorum) de disputar um cargo eletivo de representação política. Inelegibilidade, como conceito negativo, é o que impede o cidadão que não preenche os requisitos de elegibilidade de disputar o cargo, é o “estado jurídico de ausência ou perda de elegibilidade” (COSTA, 2006, p. 217). Assim é o sistema brasileiro, que limita o direito de ser votado às pessoas que cumpram determinadas condições fixadas na Constituição e na legislação infraconstitucional (COSTA, 2006, p. 220), caracterizando a inelegibilidade como efeito jurídico contrário à elegibilidade. Ressalte-se que as inelegibilidades constituem mecanismo contramajoritário de controle das eleições. Esse tipo de mecanismo funciona como exceção ao  

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princípio majoritário, pois busca impedir que a maioria se exceda pela via democrática, distorça os valores constitucionais e oprima as minorias. Na época da ditadura militar, o regime legislativo de inelegibilidades encontrava-se na Lei Complementar 5/70, editada para dar eficácia ao artigo 151 da Constituição de 1967, alterado pela Emenda Constitucional 1/69. Essa emenda constitucional foi promulgada pela junta militar, com o Congresso em recesso, no período entre o governo Costa e Silva e a eleição de Médici (FLEISCHER, p. 19), e trouxe outras alterações na legislação eleitoral, como voto vinculado, a proporcionalidade de congressistas em relação ao eleitorado, a nomeação de prefeitos das capitais estaduais e outras cidades pelos governadores e a fixação do mandato do Presidente da República em cinco anos (FLEISCHER, p. 21). O artigo 151 da Constituição foi alterado algumas vezes durante o período de regime militar. Na sua redação original, determinava que lei complementar estabeleceria os casos de inelegibilidade e os prazos de sua duração, com vistas a preservar: I - o regime democrático; II - a probidade administrativa; III - a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego públicos da administração direta ou indireta, ou do poder econômico; e IV - a moralidade para o exercício do mandato, levada em consideração a vida pregressa do candidato. A lei prometida que veio estabelecer os casos de inelegibilidade foi a Lei Complementar 5/70, editada no governo do presidente Médici. Foi posteriormente revogada pela Lei Complementar 64/90, que é a lei que está em vigor, atualmente, sendo sua mais recente alteração a chamada Lei da Ficha Limpa, uma lei de iniciativa popular cujo objetivo é tornar mais rígidos os critérios de inelegibilidade. Ressalte-se que a Emenda Constitucional 1/69, que estava em vigor quando foi promulgada a Lei    

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Complementar 5/70, ao tratar das inelegibilidades, apresentava normas abertas que deveriam ser preservadas por esse mecanismo, tais como “moralidade” e “vida pregressa”. A interpretação desse tipo de norma constitucional deve ser feita segundo princípios clássicos e modernos de hermenêutica constitucional. Os principais intérpretes da Constituição são os juízes, quando aplicam a lei. São eles que vão criando jurisprudência para melhor compreender as normas que vêm do legislativo, em especial as normas abertas, cuja interpretação demanda mais atuação do juiz. A partir dessas considerações, propõe-se uma pesquisa que investigue o papel do Tribunal Superior Eleitoral durante o período da ditadura militar. Para delimitar essa pesquisa, propõ-se o exame, com base na sua jurisprudência, do papel do Tribunal Superior Eleitoral no controle dos mecanismos eleitorais contramajoritários durante o governo militar. Destacam-se para o estudo dois dispositivos que é possível que tenham criado inelegibilidades casuísticas, feitas para atingir desafetos políticos da junta militar: as alíneas b e n do artigo 1º, inciso I, da Lei Complementar 5/70. O problema central da pesquisa gira em torno da seguinte indagação: como a atuação do Tribunal Superior Eleitoral nos anos de chumbo da ditadura, em relação ao sistema de inelegibilidades, impactou a própria história constitucional brasileira? Para chegar a essa indagação, é necessário, previamente, percorrer outros problemas, secundários. Acredita-se que a resposta a esses problemas possa complementar e auxiliar na busca da resposta da indagação primária. Os problemas secundários, portanto, são os seguintes: a) qual foi o impacto sobre o judiciário brasileiro do sistema de exceção instaurado após 1964, considerando a independência judicial? b) Como o TSE interpretou nesse período as novas inelegibilidades propostas na Lei Complementar 5/70, considerando as cláusulas abertas da EC 1/69, tais como “vida pregressa” e “moralidade”? c) Como era a relação entre o TSE  

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e o regime militar e como isso afetou o sistema eleitoral brasileiro no regime de exceção? d) Como foram utilizados os mecanismos contramajoritários de controle das eleições no estado de exceção brasileiro? e) Como o TSE interpretou as inelegibilidades do artigo 1º, inciso I, alíneas b e n da Lei Complementar 5/70? Pode-se partir de algumas hipóteses, as quais poderão ser confirmadas ou refutadas na conclusão final da pesquisa. Algumas hipóteses iniciais, pensadas a partir dos dados colhidos até agora, podem ser resumidas nos seguintes itens: a) considerando a composição singular5 do TSE, formado por ministros com judicaturas curtas e advindos de outros tribunais superiores e da sociedade civil, o Tribunal conseguiu manter sua independência do regime; b) o TSE contribuiu para evitar arbitrariedades do regime militar no campo eleitoral; c) os mecanismos contramajoritários de controle das eleições acabaram por se voltar contra a própria ditadura militar. A pesquisa tem objetivos nítidos, que mostram seu comprometimento com a ideia transicional de buscar a verdade do período da ditadura militar, de pesquisar esse passado que ainda não passou, de modo a possibilitar alguma contribuição para a dimensão transicional da memória e da verdade, que hoje está presente na justiça brasileira. O objetivo geral da presente pesquisa é realizar um estudo histórico-jurídico acerca do tema das inelegibilidades em direito eleitoral na 5

O Tribunal Superior Eleitoral compor-se-á, no mínimo, de sete membros, escolhidos: I – mediante eleição, pelo voto secreto: a) três juízes dentre os Ministros do Supremo Tribunal Federal; b) dois juízes dentre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça; II - por nomeação do Presidente da República, dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Supremo Tribunal Federal. Parágrafo único. O Tribunal Superior Eleitoral elegerá seu Presidente e o Vice-Presidente dentre os Ministros do Supremo Tribunal Federal, e o Corregedor Eleitoral dentre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça.

   

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época de ditadura militar, com foco na Lei Complementar n. 5/70 e nas implicações sociais, políticas e jurídicas nos 10 anos seguintes à sua promulgação, período que engloba os governos Médici (“anos de chumbo”) e Geisel, levando em conta a atuação do Tribunal Superior Eleitoral na elaboração de jurisprudência a respeito do tema e de seu papel no tocante à ditadura. Dentre os objetivos específicos da pesquisa, pode-se elencar: a) examinar a jurisprudência do TSE no período de regime militar para compreender a interpretação do Tribunal no tocante às cláusulas abertas em matéria de inelegibilidades; b) avaliar o papel institucional do Tribunal Superior Eleitoral do período de ditadura militar – a partir do perfil de seus membros, da sua jurisprudência dominante e dos debates nas sessões de julgamento – na manutenção da ordem democrática e no equilíbrio das eleições feitas durante o regime de exceção; c) analisar a postura de ministros do TSE da época estudada sobre combate à ditadura e a atuação do TSE no período de exceção; d) correlacionar a lei de inelegibilidades, um mecanismo contramajoritário de controle das eleições, e o regime de exceção brasileiro. Investigar o TSE no período da ditadura militar requer, além de uma análise histórica do período, o estudo da configuração do regime militar brasileiro e a correlação existente entre poder judiciário e estado de exceção. Assim, é preciso definir o estado de exceção, para compreender o papel do TSE nessa configuração política. O estado de exceção é uma situação temporária de restrição de direitos fundamentais e de concentração de poderes nas mãos do Poder Executivo, principalmente. Seu perigo reside em se afastar do estado de direito de tal maneira a se tornar um estado totalitário. Para analisar o estado de exceção, três autores são necessários: Carl Schmitt, Walter Benjamin e Giorgio Agamben. São autores que dialogam entre si  

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(SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 213), e da análise de suas teorias é possível apresentar um estrutura do estado de exceção. Além desses autores, recorrer-se-á a outros autores que estudaram o fenômeno, especialmente Hannah Arendt. Ainda nessa perspectiva, propõe-se analisar o regime militar brasileiro e sua institucionalização. É sabido que a ditadura militar brasileira se diferenciou de suas congêneres latino-americanas por não ser uma total suspensão de direitos, eis que suas instituições, tais como o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral e mesmo o Congresso Nacional continuaram funcionando, ainda que com a liberdade tolhida. Dessa forma, é importante analisar a configuração política e jurídica do estado de exceção brasileiro, o que vai contribuir para o melhor entendimento do papel do TSE e a promulgação das leis das inelegibilidades no período (PAIXÃO E BARBOSA, 2008, passim). Quanto à história eleitoral do período da ditadura, o projeto será guiado por uma pesquisa feita pelo cientista político David Fleischer, que escreveu sobre as manipulações casuísticas do sistema eleitoral no período militar, e cuja análise delineou o tema dessa pesquisa. Não se esquecerá da análise histórica feita por autores clássicos do direito eleitoral (COSTA, 2006; PORTO, 1989; FERREIRA, 2005). Ainda sobre direito eleitoral, é necessário tecer considerações sobre inelegibilidades (COSTA, 2006; VELLOSO E ROCHA, 2006; BOTELHO, 1998), com pesquisa em monografias e demais textos, de modo a demonstrar a importância e função do instituto para o sistema eleitoral e para a democracia. Reconstruir a história da ditadura militar brasileira é estudar a história do tempo presente, aquela na qual o passado ainda não foi estabelecido como passado (PEREIRA, 2008, passim). O regime militar brasileiro ainda está presente, nas leis que ainda estão em vigência, nas instituições administrativas ainda existentes, nas dúvidas históricas que ainda não foram soluciona    

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das. Narrar esse passado é buscar dar-lhe um sentido, de modo a possibilitar novos usos políticos desse passado (LEVI, 2001, passim). Portanto, a pesquisa levará em consideração o dever cívico do historiador de propor essas narrativas, para evitar a imposição da memória sobre a história, recorrendo a Paul Ricoeur, Giovanni Levi, entre outros autores que escreveram sobre a relação memória e história. Por fim, considerando que a escrita da história é uma revisão da escrita da história, serão adotados os textos de Carlos Fico, Elio Gaspari, Maria Helena Moreira Alves e outros pesquisadores para compor, na pesquisa, a narrativa histórica da época da ditadura militar. "O passado que não quer passar" é uma expressão do historiador alemão Ernst Nolte, em artigo sobre revisionismo do extermínio judeu. Ele averiguou que o passado -- especialmente o período da 2ª Guerra – tornava-se cada vez mais vivo e ativo para o povo alemão. A expectativa de Nolte, segundo o autor, é que esse passado passe, para que o povo alemão possa dele se apropriar historicamente, levando a Alemanha a uma identidade mais positiva (p. 3). Habermas, em contraposição, afirma que os historiadores devem se apropriar criticamente do passado, fazendo um bom uso da memória, "ante uma aceitação cega das tradições" (p. 4). O passado não é imutável. Sempre pode ser estudado e revisto. Novas fontes surgem, possibilitando novas visões sobre acontecimentos passados. Há negacionistas do holocausto. Também há negacionistas da ditadura militar brasileira, ou os que abrandam essa ditadura. Embora não seja possível comparar os dois fatos históricos, dada a singularidade do evento nazista (p. 4), o debate histórico sobre a verdade e a prova e o princípio da realidade em história se assemelha (p. 5). Se os historiadores buscam cada vez mais provas do que ocorreu, é para rebater os negacio  

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nistas, que se apegam às faltas de vestígios para corroborar sua negação dos fatos. A singularidade de alguns eventos históricos, como os crimes contra a humanidade, interroga a tarefa do historiador diante desses acontecimentos (p. 7). Para o autor, os historiadores precisam de novas técnicas de fora do mundo acadêmico para estudar os acontecimentos singulares (p. 10), como filmes, artes ou músicas. Essas modalidades podem se sair melhor na luta entre memória e esquecimento. Em texto para a revista Humanidades, Mateus Henrique traz a relação entre história do tempo presente e presentismo, termo cunhado pelo historiador François Hartog para denominar o tempo histórico onipresente, e dilatado. A história do tempo presente teria surgido na França, como uma resposta às teorias do séc. XIX que delimitavam o passado e o presente. Assim, a história do tempo presente seria o estudo do contemporâneo, centrado na memória e recorrendo aos testemunhos orais. A dilatação do tempo presente poderia gerar confusão entre passado e presente. Mateus cita Ricoeur, para quem é necessário delimitar a diferença entre história e os dias atuais (p. 59). Além disso, o presente não pode se tornar prisioneiro do passado, mas, ao contrario, citando Todorov, memória e esquecimento devem se colocar a serviço da justiça. Mateus apoia-se em Paul Ricoeur para dividir o tempo presente em duas categorias: tempo terminado (história do passado próximo) e tempo inacabado (história contemporânea). Começa, então, a relacionar história do tempo presente face ao presentismo. O problema do presentismo seria nos colocar como contemporâneos dos nossos contemporâneos e a falta de divisão entre passado e presente. O lado positivo, ao contrário, seria dialogar o esquecimento com a memória e a discussão sobre traumas da história -- como, por exemplo, a ditadura --,    

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o que daria espaço para as dimensões cívica e social do historiador. Mateus afirma que quase não se estuda, no Brasil, o período dos últimos 25 anos de história, que ele denomina de história imediata. Ele coloca a ditadura militar, que aqui nos interessa, como um passado que ainda afeta o presente, um passado que continua atual (p. 62). O historiador, para Mateus, teria dificuldade em historicizar o presente. Isso não seria um sintoma do presentismo, pois ainda falta ao presente uma análise histórica que lhe coloque limites definidos, para evitar colocar no presente períodos do passado como as guerras mundiais do século XX (p. 63). Ele finaliza seu texto dizendo que um dos desafios da história do tempo presente é produzir uma história com novas narrativas, novas visões sobre o passado, o presente e mesmo o futuro. É talvez isso o que a Comissão da Verdade venha trazer. Ao analisar e reavaliar a história do período da ditadura militar, que pode ser considerado um passado que ainda não passou, que ainda influencia o tempo presente, a Comissão poderá propor novas narrativas, novos olhares sobe a experiência, que -- espera-se – extrapolem o que já se sabe e o que é ensinado em sala de aula. Essas novas narrativas, além de mudarem nosso olhar para o passado, podem alterar nosso presente e a maneira como enxergamos o futuro. A pesquisa é eminentemente documental e bibliográfica. Propõe-se fazer pesquisas em bases bibliográficas, no acervo do Tribunal Superior Eleitoral, no Arquivo Nacional, em bibliotecas, em jornais e na internet, de modo a juntar e organizar um acervo documental que embase a pesquisa e os objetivos. Assim, procedimentalmente, procurar-se-á fazer pesquisa bibliográfica e documental. A pesquisa é, também, qualitativa, ao propor o estudo e descrição de fenômenos históricos, afastando, portanto, a análise de dados estatísticos. É uma pesquisa exploratória, que busca construir hipóteses e tornar  

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explícito o problema. Procedimentalmente, sugere-se a utilização de entrevistas semiestruturadas com alguns dos Ministros do TSE da época estudada, para que transmitam suas experiências em relação ao tema abordado e expliquem situações e histórias que sejam relevantes para os objetivos da pesquisa. Outro levantamento possível é a entrevista de pessoas que tenham sofrido uma cominação de inelegibilidade pelo TSE, para investigar como avaliaram aquele momento, dentro do contexto histórico da época.

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Os desafios da Justiça de Transição no Brasil O Estado, a legitimidade de suas ações e os reflexos da legalidade autoritária no Poder Judiciário

Natália  de  Souza  Lisbôa1  

Resumo: O presente trabalho propõe-se a analisar a efetividade da Justiça de Transição no Brasil, sob o enfoque do direito à memória e à verdade e identidade constitucional, partindo da análise da Constituição da República de 1988 e da realidade enfrentada atualmente pelo Estado Brasileiro. Tem por objetivo realizar considerações principalmente acerca do problema da legitimidade para atingir as previsões constitucionais, bem como as eventuais falhas que restaram perpetuadas em seu texto, e como a atuação a partir da legalidade autoritária, especialmente em relação ao Poder Judiciário, dificulta a concretização da Justiça de Transição brasileira. Palavras-chave: Justiça de Transição; Constituição da República de 1988; Legalidade Autoritária. 1

Mestre em Direito e Garantias Fundamentais pela FDV/ES, Professora Assistente no Departamento de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, Coordenadora do Projeto Assessoria Jurídica Comunitária do Núcleo de Direitos Humanos da UFOP, Professora Orientadora no Núcleo de Assistência Jurídica da UFOP – NAJOP.

 

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Natália de Souza Lisbôa

Abstract: This study intends to analyze the effectiveness of Transitional Justice in Brazil with a main focus on the right to memory and truth and constitutional identity, based on an analysis of the 1988 Constitution and the reality faced today by the Brazilian State. It aims to make considerations mainly about the problem of legitimacy implement constitutional provisions, as well as about any remaining faults still present in its text, and how the action from the authoritarian legality, especially in relation to the Judiciary, hinders the achievement of Transitional Justice in Brazil. Keywords: Transitional Justice; 1988 Constitution of the Federative Republic of Brazil; Authoritarian Legality.

Introdução “Quem for contra a abertura democrática, eu prendo e arrebento2”. General Figueiredo

A Constituição de um Estado é considerada o estatuto do governo, indicada como documento fundamental de escolhas axiológicas para certo povo em determinado tempo e lugar. É a síntese da diversidade de valores culturais e sociais, devendo buscar uma homogeneidade entre eles. Além disso, é ela quem define as relações de poder e garante direitos fundamentais de todos, uma vez que não há como garantir a liberdade individual sem que exista a liberdade do grupo.

2 Declaração dada a jornalistas que, no início de seu governo, perguntaram como ele enfrentaria os radicais contrários à abertura. COLEÇÃO CAROS AMIGOS. A ditadura militar no Brasil: a história em cima dos fatos. São Paulo: Caros Amigos Editora, (?). p. 363.

 

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A Justiça de Transição deve estar pautada na legitimação da democracia, garantindo que os direitos sejam protegidos e as necessidades das vítimas supridas, uma vez que se compõe de quatro dimensões fundamentais: “(i) a reparação, (ii) o fornecimento da verdade e a construção da memória, (iii) a regularização da justiça e o restabelecimento da igualdade perante a lei e (iv) a reforma das instituições perpetradoras de violações contra os direitos humanos3”. A democratização pressupõe três fases4: a liberalização, a transição e a consolidação democrática. O conceito de legalidade autoritária deve ser compreendido dentro de um contexto político mais extenso no qual ela realmente encontra-se inserida. Um exemplo prático que pode ser dado é a promulgação de diversos atos institucionais no período da ditadura militar brasileira, quando a interpretação e a aplicação das leis pelo “uso dos tribunais militares como instrumentos de ação judicial contra dissidentes e opositores manteve o regime militar brasileiro numa trajetória legalista, embora não constitucional.5” Verifica-se, assim, que o princípio da legalidade não pode, por si só, garantir o cumprimento da Constituição pelo simples argumento de estar preservando a segurança jurídica, e, especificamente na época supra3

ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. As dimensões da Justiça de Transição no Brasil, a eficácia da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiça. In: A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford University, Latin American Centre, 2011. p. 215. 4 ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988 In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 66. 5 PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 142

   

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citada, a segurança nacional, uma vez que, “como princípio, a legalidade de todo e qualquer Estado está ligada à sua capacidade de criar estruturas institucionais que realizem a experiência social da liberdade6”. Desse modo, a legalidade autoritária no Brasil pode ser resumida nas seguintes características7: não houve declaração de estado de sítio à época do golpe; suspensão de partes da antiga Constituição e promulgação de uma nova em momento posterior; tribunais militares usados para processar um grande número de opositores e dissidentes civis e não totalmente segregados do Judiciário civil; expurgos na Suprema Corte com algumas remoções e aumento do número de juízes, havendo expurgos limitados no restante do Judiciário; e revogação da inamovibilidade dos juízes.

A Constituição e a realidade do Estado brasileiro A Constituição de um país é sempre a imagem dos ideais de um povo que está localizado em um território estabelecido em uma determinada época, tendo significado de unidade. É na busca de homogeneidade que a Constituição traz em seu texto a síntese da diversidade entre valores sociais, culturais e políticos do Estado. A Constituição da República de 1988 surgiu em um momento de abertura democrática, sendo vista como a solução para que fossem efetivados todos os direitos e garantias fundamentais que por tantos anos foram tolhidos dos cidadãos durante a ditadura mili-

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SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 246. 7 PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 58

 

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tar, e também na proteção de novos direitos, como, por exemplo, a previsão da função social da propriedade. Ocorre que, hoje, o Estado brasileiro se encontra cada vez mais em declínio em relação aos seus fundamentos ideológicos. A concentração do Estado em sua forma mínima é uma exigência do neoliberalismo que pode ser sentida principalmente pelos países mais pobres e sua população, uma vez que eles ainda dependem de prestações básicas do Estado. Tal situação ainda é agravada porque, por muitas vezes, o Estado é o único provedor a quem eles podem recorrer. A atual estrutura da sociedade e a maneira que os indivíduos estão vivendo hoje revelam diversas mudanças, refletidas diretamente no aparelho estatal. As pessoas estão mais preocupadas com o papel que devem representar na sociedade, de acordo com sua riqueza, prestígio ou poder, do que com a resolução dos conflitos que as cercam. A sociedade, marcada pela violência, abandona os instrumentos de solidariedade social, preocupando-se apenas com o indivíduo e desconfiando das ações coletivas, ainda como reflexo do individualismo possessivo do início da era moderna. Alguns conflitos da modernidade ainda estão pendentes, como conflitos entre raças, religiões e etnias, e parece que o Estado brasileiro, em todos seus poderes e órgãos, não está tomando nenhuma decisão plausível de efetividade na tentativa de solucioná-los. A relação entre os indivíduos é de competição, de poder. Seduzidos por uma segurança vendida pelo mercado, somente são considerados socialmente incluídos os que são consumidores em potencial. Com isso, cresce a sensação de individualização, o que acaba por conduzir a uma perda das referências da conduta social, sendo o público cada vez mais dominado pelo privado. Sendo assim, as crises de instabilidade podem facilmente ser percebidas em vários âmbitos, pois elas são generalizadas, atingindo, por exemplo, o campo da    

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moral, da política, do conhecimento, das instituições de vida social e do Estado indistintamente. É certo que quanto mais Direito, mais liberdade; e dessa forma mais perto estamos de uma sociedade racional. Mas surge com isso um problema: como chegamos a uma sociedade cheia de Direitos, mas sem justiça? A perda da autonomia do Estado soa como uma ameaça à sobrevivência do Direito, pois este também fica sem efetividade frente à comunidade política na qual está inserido. Assevera Eduardo Bittar: O Estado encontra-se desafiado em sua concepção de matriz, em sua determinação de estrutural, bem como em sua capacidade de agir. A capacidade de agir de um Estado pode ser medida, entre outros instrumentos, pela sua capacidade de gerar o atendimento de expectativas sociais. Não se duvida de que o Estado tenha regras e normas para si, o que se põe em questão é a capacidade destas regras e normas se tornarem presentes, beneficamente, na condução das políticas públicas, sobretudo considerando-se os limites auto-impostos pelo Estado de direito a si mesmo (o que significa agir respeitando direitos fundamentais, punindo dentro dos limites legais etc.)8

O Direito é monopólio do Estado, resultado da organização da força social de um tempo e lugar determinados. Hoje o Direito não é mais exclusivamente dependente da religião, mas é fruto de um processo de aquisição dos anseios de justiça de uma sociedade, da mesma forma que de anseios morais sob a ótica de uma determinada ética social, como forma de evitar conflitos sociais. O grande debate da pós-modernidade gira em torno do discurso do erro da modernidade durante o século XX, que foi marcado por profundas contradi8

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 384/385

 

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ções. Foi um século de assinaturas de tratados de paz, lutas pela defesa da dignidade da pessoa humana, mas, por outro lado, junto com o fracasso da modernidade vieram grandes guerras e a ampliação de desigualdades. A pós-modernidade encontra-se cercada por incerteza, insegurança e falta de garantia que podem ser sentidas por toda a sociedade, bem como são reflexos do comportamento dos Estados. A questão é que, por diversas vezes, a Constituição da República de 1988 tem força apenas formal, como documento, mas se apresenta vazia de conteúdo sociológico capaz de trazer eficácia ao que nela está determinado. Tal documento, uma vez que se mostra sem valores identificáveis socialmente, está a um passo de ser arbitrário, o que pode gerar violência e agravar a luta de todos contra todos. Para sobrecarregar a situação da realidade do Estado brasileiro frente à Constituição em vigor, vê-se que “a ‘constitucionalização’ de interesses momentâneos ou particulares exige, em contrapartida, uma constante revisão constitucional, com a inevitável desvalorização da força normativa da Constituição”9. Assim, os interesses de uma parte da sociedade prevalecem sobre todos, impedindo que a Constituição, guiada pela sua força normativa – construída a partir de pressupostos de conteúdo e práxis –, seja o verdadeiro reflexo de sua sociedade e seu tempo. No que tange à Justiça de Transição, a Constituição de 1988 ainda apresenta resquícios do poder ditatorial comandado pelas Forças Armadas10, como 9

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 21. 10 Nossos constituintes não conseguiram se desprender do regime autoritário recém-findo e terminaram por constitucionalizar a atuação de organizações militares em atividades de polícia (Polícia Militar) e defesa civil (Corpo de Bombeiros), ao lado das polícias civis. As polícias continuaram constitucionalmente, mesmo em menor grau, a

   

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pode ser verificado no art. 14211, que determina que os militares podem, constitucionalmente, não respeitar ordens do Presidente da República com o pretexto de manutenção da lei e da ordem: A Constituição não define quem, nem quando a lei e a ordem foram violadas. Na prática, termina cabendo às Forças Armadas decidir quando houve violação da lei e da ordem. E quem as violou. E o que é mais grave: basta determinada ordem do Executivo ser considerada ofensiva à lei e à ordem, para que os militares possam constitucionalmente não respeitá-la. Mesmo sendo o presidente da República o comandante chefe das Forças Armadas. Ou seja, a Constituição de 1988, tal como a anterior, tornou constitucional do golpe de Estado, desde que liderado pelas Forças Armadas. Isso sim é falta de lei e ordem12.

Com isso, conceitos extremamente vagos e de difícil delimitação – lei e ordem, podem prejudicar o alcance dos objetivos para manter a paz almejada pela Justiça de Transição após um período tão grande de conflitos, bem como instaurar novamente um período ditatorial, mais uma vez forjando a legitimidade e a defender mais o Estado que o cidadão. ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 55. 11 “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” Disponível em http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05. 10.1988/CON1988.pdf. 12 ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 49.

 

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proteção da lei e da ordem como interesse de toda sociedade.

O problema da legitimidade As transformações do Direito realizadas por mudanças principalmente nos fundamentos políticos e econômicos do Estado têm suas consequências refletidas diretamente na sociedade. Os limites impostos pelo positivismo normativista não mais se encaixam com o universo jurídico influenciado diretamente pela perspectiva liberal. Na tentativa de ampliar os paradigmas, de um lado, esse pensamento não abre mão da racionalidade formal, considerando-a um pilar fundamental para a institucionalização da liberdade e das garantias individuais no âmbito das sociedades de classe. De outro lado, contudo, está consciente das limitações do positivismo como ideologia – aquela que considera o direito justo independentemente de seu conteúdo, apenas e exclusivamente porque ele permite a consecução de certos fins considerados desejáveis a partir de determinados procedimentos formais13.

Dessa forma, o Direito não pode ser legitimamente usado unicamente como instrumento para levar à prática, por meio de providências concretas, as estratégias requeridas quando esvaziadas de conteúdo sociológico. A questão que se coloca é que legitimidade e justiça não são acopladas com muita facilidade. Tem-se um elevado índice de corrupção, favoritismo, nepotismo e tráfico de influências no Estado brasileiro, conflu-

13 FARIA, José Eduardo. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.p. 94.

   

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indo na desigualdade social, como alerta Celso Fernandes Campilongo: A desigualdade do contexto social transfere para os “direitos” extra-estatais a violência que a caracteriza. Ao lado da legalidade estatal passam a conviver, em perigosa simbiose, as “legalidades” dos morros controlados por traficantes, dos grupos de extermínio e de outras máfias de uma sociedade em crise.14

Pelo emprego do Direito e a associação entre técnica, saber e poder, o Estado tem tido mais controle e dado menos liberdade aos indivíduos. Disso decorre o problema do direito não ser realizado por um poder legítimo15 ou atribuir simbolicamente efeitos diversos do que os necessários para a resolução das crises atravessadas pelos cidadãos em um determinado momento histórico. Dentro dessa perspectiva, Habermas indica a utilização do poder para a realização dos pressupostos jurídicos, uma vez que: Com muita freqüência [sic] o direito confere a aparência de legitimidade ao poder ilegítimo. À primeira vista, ele não denota se as realizações de integração jurídica estão apoiadas no assentimento dos cidadãos associados, ou se resultam de mera autoprogramação do Estado e do poder estrutural da sociedade; tampouco revela se elas, apoiadas

14

CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 60 15 “Um aspecto peculiar no pensamento de Hannah Arendt, a esse respeito, é que o conceito de poder não admite a adjetivação, a expressão poder legítimo é redundante, pois que o ‘poder’ ilegítimo não é poder mas comumente quer referir-se a fenômenos completamente diversos: são eles a força individual ou vigor (strength), a força (force) e a violência (violence).” ADEODATO, João Maurício Leitão. O Problema da Legitimidade – No Rastro de Hannah Arendt. São Paulo: Forense Universitária, 1989. p. 172.

 

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neste substrato material, produzem por si mesmas a necessária lealdade das massas16.

A crise do Estado de Direito, principalmente na sua esfera política e social, é refletida na crise de legitimidade que acaba por ser reconhecida socialmente mais pela utilização reiterada de determinados procedimentos do que propriamente pelo exercício legítimo das atividades constitucionalmente previstas para os poderes que genuinamente têm o ônus da realização jurídica de acordo com as aspirações sociais. Por meio disso, a legitimidade garantida somente pelo procedimento, sem ter um alicerce socialmente construído, resultará somente no atendimento dos interesses das classes política e economicamente dominantes, pela colocação de um caráter simbolicamente legítimo para uma manobra jurídica que é vazia de legitimidade nos seus desígnios. Com isso, corrobora-se a lição de Bourdieu, para quem: A legitimidade, que se acha praticamente conferida ao direito e aos agentes jurídicos pela rotina dos usos que dela fazem, não pode ser compreendida nem como efeito do reconhecimento universal concedido pelos ‘justiciáveis’ a uma jurisdição que, como que a ideologia profissional do campo dos juristas, seria o enunciado de valores universais e eternos, portanto, transcendentes aos interesses particulares, nem, pelo contrario, como efeito da adesão inevitavelmente obtida por aquilo que não passaria de um registro do estado dos costumes,

16

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. vol. I. p. 62.

   

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das relações de força ou, mais precisamente, dos interesses dos dominantes17.

O poder não consegue atingir legitimamente os objetivos que são constitucionalmente designados para que possam ser por ele cumpridos, criando novas realidades por intermédio da manifestação simbólica e velada dos interesses escusos que teimam em circundar o campo jurídico para que este seja destituído de sua função eficaz. O cumprimento da força normativa atual e a superação do significado simbólico que perpassa o esquecimento sobre os fatos ocorridos no período da ditadura militar brasileira, se dará pela efetivação do direito à verdade e memória a partir da organização do processo da Justiça de Transição pelo Estado, precipuamente pelo Poder Judiciário. Numa palavra, legados estruturais à parte, a exceção brasileira de hoje não só não é mero decalque da anterior, mas a excede em esferas inéditas de tutela, embora sua genealogia remonte àquela matriz do novo tempo brasileiro. Um capítulo inédito, portanto, das afinidades eletivas entre capitalismo e exceção.18

Portanto, verifica-se que a legitimidade continua tentando manter suas bases na legalidade autoritária, no conceito de poder, e “levemos em conta uma das características mais decisivas da ditadura brasileira: sua legalidade aparente ou, para ser mais preciso, sua

17

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz (português de Portugal). 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p. 242. 18 ARANTES, Paulo Eduardo. 1964, o ano que não terminou. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 224.

 

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capacidade de reduzir a legalidade à dimensão da aparência19”. Com isso, está impedindo que as ações de reconhecimento da verdade e da memória sejam levadas a frente, para evitar atuais e futuros danos àqueles que não se encontram protegidos pela ordem constitucional e legal imposta, demonstrando expressa falta de comprometimento histórico.

Poder Judiciário O Poder Judiciário encontra-se não só vinculado à Constituição da República ao cumprimento de suas determinações, bem como é ele quem é competente para realizar o controle de constitucionalidade dos atos de outros poderes. O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, deve prezar também pelo desenvolvimento da Constituição da República do Brasil para garantir a eficácia dos direitos, aqueles cujo reconhecimento a sociedade tanto almeja. Segundo Celso Fernandes Campilongo, Há quem veja no Judiciário uma importante instância de reconhecimento e legitimação dos novos movimentos sociais e critique esse desprezo. Há, de outra parte, quem, sem abandonar por completo a esfera institucional, a entenda limitada e incorrigivelmente viciada.20

O Poder Judiciário está à frente do que deve ser feito para que as escolhas determinadas na Constituição sejam concretizadas. Foi esperada por muitos anos 19

SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 251. (grifos do autor) 20 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 64.

   

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a reforma do Poder Judiciário, mas que no final restou demonstrado que trouxe poucos avanços, ainda existindo restrições à democracia nos tribunais brasileiros. É pela realização do controle de constitucionalidade que o Poder Judiciário analisa se uma norma infraconstitucional está de acordo com o texto constitucional. Assim, é mediante o exercício da jurisdição constitucional que será realizada a interpretação das normas constitucionais de maneira definitiva, sempre em busca da garantia da supremacia da Constituição, pois: A jurisdição constitucional é, como qualquer jurisdição, execução de normas. (...) Tem os seus limites onde já não podem ser aplicadas normas jurídicas. A jurisprudência ultrapassa os seus limites quando queira ir, sem autorização especial, além da interpretação e aplicação do direito vigente.21

O controle de constitucionalidade brasileiro é realizado de forma mista, uma vez que o Poder Judiciário pode ser provocado por via de ação ou por via de exceção. Dessa maneira, além do Supremo Tribunal Federal, todos os órgãos do Poder Judiciário exercem a jurisdição constitucional, decidindo acerca da constitucionalidade de determinados atos jurídicos. A primeira forma de controle de constitucionalidade, por via de ação no controle concentrado, pode ser efetuada por meio de ações movidas por autoridades com legitimidade determinada pela Constituição ou nas leis que tratam especificamente do assunto. A competência para o processamento e julgamento das ações de controle de constitucionalidade também está fixada pela Constituição e nas leis, cabendo ao Supremo Tribunal Federal julgar nas hipóteses de contrariedade à Constituição da República, e, aos Tribunais de

21 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 2008. p. 28.

 

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Justiça dos estados, as respectivas ações contra leis que não obedeçam ao disposto nas Constituições estaduais. Cada ação do controle concentrado tem um objeto diferenciado: Ação Direta de Inconstitucionalidade Federal, em sua forma comissiva ou omissiva, trata da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual em relação à Constituição Federal, sendo que a Ação Direta de Inconstitucionalidade Estadual é relativa à lei ou ato normativo estadual ou municipal contra a Constituição Estadual; Ação Declaratória de Constitucionalidade decide sobre lei ou ato normativo federal em contrariedade com a Constituição Federal; Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva Federal examina decreto interventivo da União nos Estados, e a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva Estadual, por sua vez, analisa a constitucionalidade de decreto interventivo dos Estados nos Municípios; e, por fim, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental analisa lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal em face da Constituição Federal. Por seu turno, no controle difuso a constitucionalidade é analisada incidentalmente dentro de uma ação que não tem como objetivo principal a realização do controle de constitucionalidade, e sim a resolução de um conflito de direito material entre as partes a partir de um caso concreto. A declaração de inconstitucionalidade realizada pelo controle difuso terá efeito somente entre as partes. Dessa forma, ao intérprete da Constituição cabe assegurar a efetividade do processo de criação democrática do direito. A função do tribunal constitucional não é garantir direitos (liberais) nem definir uma ordem de valores (comunitária), mas é especificamente zelar para que a criação do direito, em primeiro lugar, se realize segundo os critérios estabelecidos pela co-

   

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munidade e, em segundo lugar, ocorra de modo democrático22.

O próprio tribunal criado para ser o guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, descumpriu seu papel institucional de protetor no julgamento da ADPF 153/DF, uma tentativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, para identificar o conteúdo da interpretação a ser dada ao disposto no § 1º do artigo 1º da Lei de Anistia, que determina a concessão de anistia a todos que, em determinado período, cometeram crimes políticos, seria estendida, segundo esse preceito, aos crimes conexos – crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política pelos agentes públicos responsáveis, entre outros crimes, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores políticos ao regime militar, podendo ser entendida como aqueles “de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Às vezes, perdemos a capacidade de enxergar o caráter absurdo de exceção que sela o destino do nosso país. Como se não bastasse o fato do Brasil ser o único país da América Latina onde a Lei de Anistia vale para acobertar crimes contra a humanidade, como o terrorismo de Estado, a tortura e a ocultação de cadáveres, o único país onde as Forças Armadas não fizeram um mea-culpa sobre o regime militar, onde os corpos de desaparecidos ainda não foram identificados porque o Exército

22 LEITE, Roberto Basilone. Hermenêutica Constitucional como processo político comunicativo: a crítica de Jürgen Habermas às concepções liberal e comunitarista. In: LOIS, Cecília Caballero (org). Justiça e Democracia: entre o universalismo e o comunitarismo: a contribuição de Rawls, Dworkin, Ackerman, Raz, Walzer e Habermas para a moderna teoria da justiça. São Paulo: Landy Editora, 2006. p.220

 

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teima em não dar tais informações, descobrimos que, caso a anistia contra tais carrascos seja suspensa, ministros do STF estariam dispostos a condenar também militantes da luta armada contra o regime militar por assassinato e tortura23.

A função do controle de constitucionalidade não trata da assunção pelo Poder Judiciário de um posto de legislação concorrente, mesmo que ele seja assim assumido tacitamente. Importa em fraude quando não são devidamente justificadas a todos os cidadãos quais foram as posições tomadas em nome do interesse público, garantindo o direito à verdade e à memória. Numa perspectiva ainda mais ampla, partindo da internacionalização da proteção dos direitos humanos e a atuação do Poder Judiciário, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal apresentou-se, na decisão supracitada, como um óbice ao atendimento das dimensões fundamentais da Justiça de Transição, devendo ser analisado que: Não se deve pelo apego ao litígio defender posições contrárias aos Direitos Humanos pelo simples fato de paixão ou apego a estrita legalidade ou formação ideológica, o compromisso de todos os agentes estatais é para com o interesse público, interesse este que somente pode ser conhecido quando se ouve de fato o próprio público e que coincida com o atendimento à efetividade da dignidade humana, ao se ter em conta tais premissas, quem sabe se possa almejar uma atividade estatal

23 SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 243/244.

   

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comprometida com a concretização dos direitos humanos24.

Ainda nessa ótica da internacionalização, é importante ressaltar o Sistema Interamericano de Proteção, que em nenhum momento tenta ser superior à soberania dos Estados signatários de sua Convenção, apenas tenta proteger de forma mais ampla; como no caso 11.552, Julia Gomes Lund vs. República Federativa do Brasil, demanda apresentada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Guerrilha do Araguaia, que contava com os requerimentos no sentido de que se declarasse a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação dos direitos estabelecidos nos artigos 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (garantias judiciais), 13 (liberdade de pensamento e expressão) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conexão com as obrigações previstas nos artigos 1.1 (obrigação geral de respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) da mesma Convenção. Ainda solicitou à Corte que ordenasse ao Estado a adoção de determinadas medidas de reparação, compensação e de não repetição pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre militantes do PCdoB e camponeses da região do Araguaia, ocorridos durante os anos de 1972 a 1975 no contexto da ditadura militar implantada no país entre 1964 e 1985. Dessa forma, entende-se que

24 SANTOS, Alberto Silva. A internacionalização dos Direitos Humanos e o Sistema Interamericano de Proteção. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. p. 152.

 

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O Sistema Interamericano não se situa em face da Soberania Estatal, mas ao lado desta, numa interseção com ela. Resta o Sistema Interamericano legitimado pela nobreza do fim ao qual se destina, reconhecido historicamente. Sua adesão pelos Estados revela o exercício de um dos mais importantes atributos da Soberania e que a justificam, inclusive, ou seja, a adesão ao Sistema Interamericano demonstra a preocupação do Estado em promover o fim ao qual se destina, qual seja a dignidade da pessoa humana25.

A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos dada em 24 de novembro de 2010, com o prazo de cumprimento dos pagamentos ordenado de um ano, apesar de reconhecer a importância das medidas tomadas pelo Estado brasileiro, declarou que estas não eram suficientes para reparar os danos sofridos pelas vítimas da Guerrilha do Araguaia. É preciso sedimentar o entendimento que a judicialização da repressão por intermédio de um Poder Judiciário confiável foi utilizada para garantir a perpetuação, nos regimes ditatoriais, da aparência externa, mesmo que simbólica, da legalidade almejada. Assim, “sem ignorar o fato de que a mudança de um regime político para outro é algo extremamente complexo, caracterizado por déficits entre normas, princípios e realidade e frequentemente marcado por inúmeras dificuldades – o sistema judicial existente, por exemplo, costuma ser fraco, corrupto ou ineficiente26”, tem-se que a atuação do Poder Judiciário brasilei25 SANTOS, Alberto Silva. A internacionalização dos Direitos Humanos e o Sistema Interamericano de Proteção. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. p. 155. 26 MEZZAROBBA, Glenda. O que é justiça de transição? Uma análise do conceito a partir do caso brasileiro. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.) Memória e verdade: a justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009. P. 41.

   

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ro durante a ditadura militar foi muito mais eficaz – partindo da premissa de eficácia como face da legalidade autoritária para garantia do cumprimento das necessidades do período ditatorial – em comparação com seu desempenho atual para cumprir as dimensões da Justiça de Transição, por causa dos reflexos da legalidade autoritária ainda existentes.

Busca da identidade constitucional Destarte, o grande desafio é conseguir uma integração social legítima com o Direito, e não só ter um ordenamento jurídico pronto para atender as exigências estruturais do sistema econômico. Para que isso ocorra, o sistema de direitos deve ter em sua origem uma estrutura normativa legítima. O problema reside em como examinar a legitimidade dessas pretensões de validade no âmbito do Direito, uma vez que ele está localizado entre a validade das normas e a facticidade, que é a coação de sanções exteriores27: Enquanto, no sentido de validade de convicções ligadas à autoridade, a facticidade e a validade se fundem, na validade jurídica ambos os momentos se separam um do outro – a aceitação da ordem jurídica é distinta da aceitabilidade dos argumentos sobre os quais ela apóia a sua pretensão de legitimidade28.

27

JUSEFOVICZ, Eliseu. Democracia e Legitimidade à luz da teoria habermasiana In: LOIS, Cecília Caballero (org). Justiça e Democracia: entre o universalismo e o comunitarismo: a contribuição de Rawls, Dworkin, Ackerman, Raz, Walzer e Habermas para a moderna teoria da justiça. São Paulo: Landy Editora, 2006. p. 153. 28 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. I, p. 59.

 

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Dessa forma, os destinatários das normas não podem indagar sobre a validade delas para que possam ser obedecidas, cabendo à facticidade a realização da integração entre a sociedade e o Direito. O direito positivo ainda carrega a característica de modificabilidade, pela qual as normas têm duração até que venham a ser declaradas sem efeito. Essa característica justifica-se para evitar que as normas sejam apenas frutos de decisões arbitrárias com duração eterna, perdendo assim a possibilidade de integração material. Outrossim, a positividade do direito deve ser reflexo de uma vontade legítima, manifestada por cidadãos politicamente autônomos, sem estar carregada de qualquer tipo de arbitrariedade nessa declaração. A liberdade comunicativa dos cidadãos não pode ser totalmente substituída por um direito coercitivo, devendo ser mediada por procedimentos jurídicos para a prática dessa autodeterminação organizada.

Considerações finais Neste contexto de sociedade, todas as normas jurídicas devem ser elaboradas baseadas na democracia como forma de garantir a liberdade, executada por meio de um processo político fundamentado na formação da vontade comum de todos os cidadãos. A partir da opção pelo exercício efetivo da cidadania, observando o projeto democrático elaborado além dos conceitos e buscando sua efetividade real, serão realizados os sustentáculos do Estado brasileiro, baseados na soberania popular e nos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos. Assim, uma vez que os instrumentos normativos expedidos pelo Poder Executivo – com poderes extraordinários conferidos pelos já citados Atos Institucionais, e também pelo Poder Legislativo – para garantir a aparência de legalidade a seus atos, alcançassem o objetivo maior de controle durante o período ditatorial,    

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fez-se imperiosa uma grande colaboração por parte do Poder Judiciário29. Tal fato é reforçado com o entendimento de que as forças armadas, isoladamente, não conseguiriam perpetrar a repressão30 e realizar a coleta de informações que estivessem em desacordo com o pensamento do governo à época. Para a formação da consciência e proteção da dignidade da pessoa humana é indispensável o conhecimento dos erros praticados durante a ditadura militar. Apesar disso, verifica-se que a grande resistência em lidar com os problemas do passado encontra-se no funcionamento geral das instituições, do Judiciário e do sistema político como um todo, estando o país muito atrasado na concretização da Justiça de Transição.

Referências ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. As dimensões da Justiça de Transição no Brasil, a eficácia da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiça. In: A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford University, Latin American Centre, 2011. ADEODATO, João Maurício Leitão. O Problema da Legitimidade – No Rastro de Hannah Arendt. São Paulo: Forense Universitária, 1989.

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“Apesar de um grande número de promotores e juízes civis ter participado dos julgamentos por crimes políticos, o Judiciário brasileiro, durante a transição para a democracia, raras vezes foi culpado por seu desempenho durante o governo autoritário.” (PEREIRA, 2010. p. 241) 30 “Segundo uma estimativa citada com frequência, 50 mil pessoas foram presas por motivos políticos em algum momento do regime, e 20 mil delas talvez tenham sido torturadas. Um número aproximado de 10 mil pessoas partiu para o exílio, a maioria tendo retornado após a aprovação da anistia, em 1979”. PEREIRA, 2010. p. 118.

 

Os desafios da Justiça de Transição no Brasil

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ARANTES, Paulo Eduardo. 1964, o ano que não terminou. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 2008. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pósmodernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz (português de Portugal). 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000. COLEÇÃO CAROS AMIGOS. A ditadura militar no Brasil: a história em cima dos fatos. São Paulo: Caros Amigos Editora, (?). FARIA, José Eduardo. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. vol. I. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. JUSEFOVICZ, Eliseu. Democracia e Legitimidade à luz da teoria habermasiana In: LOIS, Cecília Caballero (org). Justiça e Democracia: entre o universalismo e o comunitarismo: a contribuição de Rawls, Dworkin, Ackerman, Raz, Walzer e Habermas para a moderna teoria da justiça. São Paulo: Landy Editora, 2006. LEITE, Roberto Basilone. Hermenêutica Constitucional como processo político comunicativo: a crítica de Jürgen Habermas às concepções liberal e comunitarista. In: LOIS,    

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Cecília Caballero (org). Justiça e Democracia: entre o universalismo e o comunitarismo: a contribuição de Rawls, Dworkin, Ackerman, Raz, Walzer e Habermas para a moderna teoria da justiça. São Paulo: Landy Editora, 2006. MEZZAROBBA, Glenda. O que é justiça de transição? Uma análise do conceito a partir do caso brasileiro. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.) Memória e verdade: a justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009. PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. SANTOS, Alberto Silva. A internacionalização dos Direitos Humanos e o Sistema Interamericano de Proteção. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988 In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

 

Simbolismo democrático vs. realidade autoritária Notas sobre a política criminal brasileira

Thayara  Castelo  Branco1  

Resumo: Trata-se de uma análise sobre a política criminal brasileira frente ao Estado Democrático de Direito (formal e simbólico?). Problematizou-se a transição entre a Ditadura Militar (com sua Política de Segurança Nacional) e a Democracia (com seu sistema de segurança pública e a política de tolerância zero). Palavras-chave: Democracia; política criminal; ditadura militar Resumen: Este es un análisis acerca de la política criminal brasileña contra el Estado Democrático (formal y simbólico?). Aquí, se ha problematizado la transición entre la dictadura militar (con su Política de Seguridad Nacional) y la democracia (con su sistema de seguridad pública y la política de tolerancia cero). Palabras-clave: Democracia; política criminal; dictadura militar;

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Advogada. Mestra e doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS. Bolsista CAPES/FAPERGS.

 

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1. A ditadura militar brasileira e a política de Segurança Nacional No século XX o Brasil enfrentou dois períodos autoritários: o Estado Novo e o Regime Militar, propriamente dito. Aquele foi marcado por uma ditadura centralizada em Getúlio Vargas, que estimulava a mobilização plena das massas. Com o governo de Vargas (1950/1954), o golpe militar de 1964 começa a ser consolidado. O mandato foi de defesa do nacionalismo econômico, aumentando a indisposição com setores mais conservadores ligados aos capitais internacionais, já em íntima aliança com a doutrina que se forjava na Escola Superior de Guerra. Sem apoio da esquerda, essa política abriu a porta para ações golpistas, que tiveram êxito somente em 19642. De 1956 até 1964, o País viveu ainda a “democracia” com ameaças constantes dos setores golpistas aglomerados em torno da Escola de Guerra. Enfim, em 1964, instaura-se o regime militar pleno, hierarquicamente controlado pela própria organização militar. Tanto o Estado Novo quanto o regime militar tinham como focos a supressão das liberdades individuais bem como as perseguições políticas3. Foram vinte anos de avanços e retrocessos: de 1964 a 1967, o presidente Castelo Branco exerceu uma ditadura temporária; de 1967 a 1968, o Marechal Costa e Silva tentou governar dentro de um sistema constitucional; de 1968 a 1974, o país esteve assolado por um regime

2 COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Doutrina de segurança nacional e subjetividade. In:_. Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Te corá, 2002. p. 26. 3 AMBOS, Kai; ZILLI, Marcos; MONTECONRADO, Fabíola Girão; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Anistia, justiça e impunidade: reflexões sobre a justiça de transição no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 135.

 

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ditatorial severo; de 1974 a 1979, o movimento começa a perder força e a declinar4. O ano de 1968 foi marcado pela supressão de direitos e liberdades civis. Com a edição do Ato Institucional n°5, estava estabelecida a “linha dura” ditatorial: o terrorismo de Estado. Este se fortaleceu com um aparato repressivo altamente rigoroso, seguindo a linha da política de Segurança Nacional5. O foco era garantir o desenvolvimento econômico - com a internacionalização da economia brasileira – e eliminar todas as formas de oposições internas que tentassem atrapalhar o andamento das coisas. O cenário social desse período era de perseguições, torturas, mortes e desaparecimentos de opositores políticos, tendo como centro a Escola Superior de Guerra. Foi firmado um novo conceito de defesa nacional: a luta contra o inimigo interno!6 A ideia do extermínio era clara, combatendo o mal social e as forças internas de agitação em nome da “segurança nacional”. “Todo este aparato visava a disseminação do medo, a imobilização e o silenciamento de toda a sociedade. Demonizar os inimigos do regime e convertê-los em inimigos da pátria, da família e da propriedade servia a dois objetivos: isolá-los e justificar o rigor da repressão”  7.

4 AMBOS, Kai ... Anistia, justiça e impunidade: reflexões sobre a justiça de transição no Brasil. p. 144.   5 COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Doutrina de segurança nacional e subjetividade. p. 29. 6 COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Doutrina de segurança nacional e subjetividade. p. 31. 7 KOLKER, Tania. A tortura e o processo de democratização brasileiro. In:_. Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Te corá, 2002. p. 39.  

   

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2. A política de Tolerância Zero no Brasil: Made in USA Se antes os inimigos eram as “forças internas de agitação”, passada a ditadura, estabelecido o Estado Democrático de Direito, pergunta-se: quem são os inimigos atuais? Qual(is) a(s) ideologia(s) de controle? A partir da década de 70, diante da crise social/econômica do capitalismo pós-industrial, surgiu nos Estados Unidos a “Teoria das janelas quebradas”, desenvolvida pela direita punitiva norte-americana. A justificativa do movimento era deter os “suspeitos de sempre” para não cometerem algo mais sério, combatendo rigorosamente as condutas anti-sociais (vagabundagem, mendicância, prostituição). Nesse contexto de “Lei e Ordem”, em Nova Iorque, Rudolph Giuliani trabalhou uma lógica belicista de guerra à delinquência de rua, à pichação, etc; varrendo as ruas de pequenos delinquentes e fortalecendo uma nova criminalização da marginalidade e da pobreza. A política de “Tolerância Zero” foi e é vista como "incarceration mania", a mudança do welfare state para o penal state8. O discurso penal dos EUA a partir de 1980 é simplista: mais penas para prover mais segurança; os delinquentes não merecem garantias; guerra à criminalidade. Fica evidente a identidade do poder bélico com o poder punitivo na busca do inimigo9. O discurso do autoritarismo norte-americano é o mais difundido no mundo. Seu “simplismo popularesco” é facilmente propagado, rentável, satisfatório para as classes médias e absolutamente eleitoreiro. A ideologia instala-se no resto da América, porém sua 8 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008. 9 ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. Pp. 64-65.

 

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funcionalidade é diferente. Enquanto os EUA fazem dele uma empresa, desviando recursos da assistência social para o sistema penal e contribuindo para amenizar o desemprego, na América Latina, o sistema penal controla precariamente desempregados, torna-se brutalmente violento e as polícias autonomizadas sitiam os poderes políticos10. O Brasil, então, absorveu completamente os ideais da política criminal norte-americana e estruturou sua guerra nacional contra o(s) inimigo(s). Fortalecemos o discurso da emergência dos riscos. É essa insegurança social e mental, difusa e multiforme, que o novo discurso dos políticos e da mídia fisgou. Sob o amparo do medo, todos os tipos de lesão acabam sendo abarcados pelo controle penal. É fomentada a expansão penal à criminalidade de rua e de sangue, em decorrência da legitimidade que os meios de comunicação de massa fornecem aos movimentos de lei e ordem e às políticas de tolerância zero, como também ao controle repressivo é auferido o papel de tutela de bens transindividuais afetados pelos riscos catastróficos11. Verdadeira caça às bruxas!

3. O Estado Democrático de Exceção Parece que o sonho da real consolidação do Estado Democrático de Direito após a ditadura e da “suposta” transição democrática foi adiado. Cada vez mais se aumenta a tensão entre a maximização do Estado Penal e a minimização do Estado Social numa lógica de eficientismo que se sobrepõe à democracia. Essa visão salvacionista leva a um fundamenta10

ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. p. 73.  

11

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (a onda punitiva). Rio de Janeiro: revan, 2003. P. 30.

   

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lismo punitivo (como o religioso, político), que agudiza significativamente os déficits de construção da cidadania. O que chama atenção é que este Estado criminalizador é socialmente sustentado não só por setores conservadores, mas por setores progressistas (por exemplo, movimentos feministas), vez que todos parecem seduzidos pelas promessas ilusionistas do aparato punitivo e repressor12. Estamos diante de uma situação esquizofrênica: de um lado, vigência de uma democracia (simbolicamente reconhecida), com discursos de fortalecimento do Estado Democrático de Direito, de exaltação dos Direitos Humanos e garantias fundamentais; do outro, um agigantamento do Estado Penal militarizado, que se encaminha para um Estado de Exceção, justificado para proteger a sociedade de bem e defender a democracia. Deslocam-se todas as responsabilidades para o âmbito penal, estabelecendo o paradigma de segurança como técnica normal de governo. Um dos pontos mais complexos é a aceitação e a legitimação da sociedade. O Estado violento, que durante a ditadura foi amplamente rechaçado, é visto hoje como bom e necessário. A sensação de insegurança provoca um movimento apoiador do Estado neoautoritário, ou seja, todas as formas de neutralização e controle do “inimigo” são válidas para garantir a “segurança”. Aqui sim, tem-se um grande problema a ser enfrentado: os microssistemas penais (individuais) que (re)legitimam e fortalecem o Estado de Exceção. Importa aqui expor, resumidamente, os esclarecimentos de Rui Cunha Martins13, que alerta que tanto o eixo ditatorial quanto o democrático designam um 12

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X cidadania mínima – códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. P. 26 13 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – the brazilian lessons. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. pp. 105-114.

 

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sistema complexo, plural, de mecanismos de ação, funções ideológicas e experiências históricas concretas, agregando-se de forma dinâmica, rompendo com a lógica temporal da linearidade e com a ideia de transição. A historicidade desse relacionamento incorpora a possibilidade de aquisição de elementos de um pelo outro, entendendo a ditadura e a democracia como patrimônio em que ficam em cada época disponíveis para uso. O fato de um sistema democrático fazer uso de mecanismos constantes da ditadura quer dizer que ele se dispõe a trabalhar com formas ditatoriais, não podendo dizer que estas se democratizaram, mas entendendo que existem fascismos (punitivos, sociais, informativos) em ambientes democráticos. Enfim, a fronteira da ditadura e democracia não é dada pela sucessividade do tempo histórico, mas pelas decisões políticas. Os Estados estão cada vez mais incapazes de prover reformas estruturais; a comunicação de massa está empenhada em propagandas escandalosas; e para culminar, “o poder planetário fabrica inimigos e emergências – com os consequentes Estados de Exceção – em série e em alta velocidade”14. Bravamente insiste Vera Andrade15: é preciso dizer não ao genocídio em marcha e perceber que a violência visível é apenas a sintomatologia das invisíveis. Trata-se de deslocar a lupa da rota punitiva e de ressaltar a importância da construção de um espaço público politizado pela via social, sustentado pelas Declarações Internacionais de Direitos Humanos e conducente a uma construção positiva da cidadania.

14

ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Pp. 15-16.

15

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X cidadania mínima. pp. 28-29.

   

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4. Angústias “finais” que permanecem... As angústias só aumentaram. Diante das estruturas evidentes, tenho profundo receio dos discursos velados e das violências “não-visíveis”, internas, silenciadas e, ao mesmo tempo, absolutamente escancaradas. Estou convencida de que estamos vivendo uma época de discursos acalorados sobre Direitos Humanos, mas também, uma época de sociedade violenta, senão genocida. O Estado que antes matava era deveras combatido. Hoje o Estado que não aniquila, ou que ao menos não neutraliza o indesejável socialmente reconhecido, não serve. Isso fomenta discursos políticos e sociais, uma mídia espetaculosa e cruel e, sobretudo, práticas de controle social absolutamente abusivas e negadoras do Estado de Direito. Concordo com Rui Cunha Martins sobre a contaminação e o diálogo – inevitável entre os dois regimes (patrimônios) políticos - só não sei se realmente ainda vivemos numa Democracia, e que só tenha “pulsões” autoritárias. Grande dúvida!

Referências AMBOS, Kai; ZILLI, Marcos; MONTECONRADO, Fabíola Girão; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Anistia, justiça e impunidade: reflexões sobre a justiça de transição no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2010. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X cidadania mínima – códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Doutrina de segurança nacional e subjetividade. In:_. Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Te corá, 2002.  

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GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008. MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – the brazilian lessons. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (a onda punitiva). Rio de Janeiro: revan, 2003.

   

A reparação como elemento constitutivo da Justiça Transicional Reparações simbólicas e econômicas em um contexto de Justiça de Transição pós-ditadura de 1964 no Brasil

Cristiane  dos  Santos  Silveira1   Daniel  Vianna  Maricato2   Débora  Karina  Gonçalves  Vaserino3  

Resumo: Este artigo busca analisar as medidas concernentes à reparação no Brasil após a Ditadura civilmilitar de 1964 a 1985, em um contexto de Justiça de Transição. A análise compreende os principais temas e iniciativas governamentais relacionadas à reparação, tais como as Caravanas da Anistia e questões como a mudança de nomes de ruas. Esta análise dá-se através de uma explanação histórica acerca do tema, aliada às mais recentes medidas adotadas para conceder reparações às vítimas e à sociedade brasileira em geral. Palavras-chave: Justiça de Transição, reparações simbólicas, reparações econômicas.

1

Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista da CAPES pelo Programa Jovens Talentos. 2 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. 3

 

Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto.

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Abstract: This article aims to verify the measures concerning the reparation in Brazil after the civil military Regime of 1964 to 1985, in a context of Transitional Justice. The analysis comprises the themes and the governmental initiatives concerning to reparation, as the Caravanas da Anistia and issues as changing street names. This analysis is done through a historical explanation about the subject combined the most recent measures adopted to give reparations to victims and to the Brazilian society in general. Keywords: Transitional Justice, symbolic reparation, economic reparation. “[...] Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Repara: ermas de melodia e conceito, elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.” (ANDRADE, Carlos Drummond de. Em A Rosa do Povo, página 12, ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012)

Introdução Após um período de sistemática violação dos direitos humanos, decorrente do regime ditatorial implantado em 1964 no Brasil, a reabertura à democracia, consagrada pela Constituição de 1988, gera a necessidade de reestruturar a sociedade e a cidadania, além de reformar as instituições até então autoritárias, com a promoção de justiça. E essa construção de um futuro mais justo e democrático dependem essencialmente do desenvolvimento dos pilares da Justiça de Transição.    

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Justiça de Transição é o nome dado ao conjunto de mecanismos necessários para lidar com um legado histórico de violência e violação sistemática aos direitos humanos promovidos por um Estado ditatorial. Ela tem como objetivo fortalecer o comprometimento do poder público com as garantias e direitos fundamentais no novo regime democrático e compreende vários eixos – justiça, memória, verdade, reforma das instituições, reparações. Embora esses elementos sejam necessariamente vinculados e interdependentes, o escopo do presente artigo é analisar mais detidamente a dimensão da Reparação. Frisa-se que a Justiça de Transição compreende bem mais do que a concessão de reparações, e a construção de uma sociedade justa perpassa pela aplicação de todos os mecanismos de transição. O presente trabalho focar-se-á no âmbito das reparações, principalmente as simbólicas, e desta forma tratará também de políticas de memória e busca da verdade, uma vez que reparar os danos sofridos pela sociedade é também construir espaços de memória e homenagear àqueles que lutaram contra o regime; é reviver a história do país, construindo uma consciência nacional para a não repetição de violações aos direitos humanos; é buscar a verdade sobre os abusos perpetrados contra os dissidentes políticos, que o regime tão grosseiramente escamoteou. O artigo não entrará nos campos da responsabilização civil e criminal de agentes públicos e reforma das instituições repressoras herdadas da ditadura, apesar desses dois aspectos também comporem o âmbito das reparações simbólicas coletivas. As reparações simbólicas são importantes no contexto de transição porque levam ao reconhecimento da importância política e da dignidade humana daqueles que foram vítimas de um regime ilegítimo, autoritário e violento, além de gerarem a diminuição de tensões e o estreitamento de laços entre cidadãos e Estado, e entre os próprios cidadãos, o que é essencial para a  

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consolidação da democracia, que só pode existir pautada na confiança cívica.

1. Breve explanação histórica acerca dos fatores influenciadores do Golpe Militar de 1964 Compreender o golpe militar ocorrido em 1964 depende da contextualização dos fenômenos políticos, sociais e econômicos, presentes tanto no âmbito interno da vacilante democracia brasileira da época, quanto num aspecto político internacional, em que tensões político-ideológicas transformaram o mundo em dois blocos notadamente distintos. No aspecto interno, é preciso destacar a forte crise econômica decorrente do esgotamento do modelo econômico datado da década de 30, assim como as articulações políticas conservadoras, que, desde a ascensão dos regimes populistas, planejaram sua subida ao poder por meio de um golpe. Além disso, havia a instabilidade política da democracia brasileira, que se agravou após a crise de sucessão do Governo Jânio Quadros (IGLESIAS, 1993, p. 283). João Goulart, vice de Jânio, iniciou uma campanha pela realização de Reformas de Base, que erigiam conquistas para as classes pobres e marginalizadas e incluíam alterações bancárias, urbanas, administrativas, agrárias e universitárias, entre elas a reforma agrária e o voto para analfabetos. Essa posição de Jango foi encarada pelas classes altas e conservadoras do país como ameaça a seus interesses e o risco de uma revolução comunista. No aspecto internacional, destacam-se as tensões entre os dois grandes blocos políticos vencedores da Segunda Guerra Mundial, econômica e ideologicamente distintos entre si: as democracias capitalistas ocidentais, de um lado, e os estados socialistas, de outro (HOBSBAWN, 1995, p. 235). Com o crescimento das tensões e a ameaça iminente de início de uma nova    

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grande guerra, foi exigido do restante dos países do mundo, estrategicamente importantes para as potências dominantes, um alinhamento político claro (HOBSBAWN, 1995, pag. 225). Dessa forma, o Brasil, tradicional zona de influência de países ocidentais, principalmente do Reino Unido e dos Estados Unidos a partir da segunda metade do século XIX, foi pressionado a alinhar-se ao Ocidente, liberal e capitalista (REIS, 2012). Nesse sentido observa-se a influência direta dos Estados Unidos no contexto político brasileiro para a saída de Jango e a instalação de um governo militar, que garantiria a preservação dos interesses econômicos norte-americanos no país. Pode-se dizer que tanto os aspectos internos quanto os externos citados acima foram fundamentais para o sucesso do Golpe de 1964, dada a clara interferência de países estrangeiros, principalmente os Estados Unidos, em assuntos políticos brasileiros (FERREIRA, 2012) e também devido à organização interna de um movimento civil, contrário ao governo de Jango e favorável a um golpe de Estado (REIS, 2012). Dessa forma, o contexto político da época tornou favorável a ascensão de um governo autoritário, apoiado por setores conservadores da sociedade civil (REIS, 2012) e despreocupado com a construção e a afirmação da cidadania, da democracia e de avanços sociais. Os novos líderes do governo, na intenção de eliminar a suposta ameaça comunista e abafar os movimentos que lutavam por direitos sociais, como os sindicais, implantaram aparelhos de estado extremamente repressivos.

2. Justiça de Transição: um panorama geral De acordo com os critérios adotados pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), até 2012 a estimativa de pessoas mortas vítimas da ditadura civil-militar brasileira era de 457 pes  

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soas; porém, há indícios de que esse número possa ser muito maior. Através de um trabalho desenvolvido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que envolveu a análise de 858 mortes e desaparecimentos forçados de camponeses, concluiu-se que pelo menos mais 370 pessoas foram mortas entre 1961 a 1988 (AMADO, 2012). Contudo, o número de vítimas da repressão é muito maior quando observados todos os tipos de perseguições cometidas no estado de exceção. Nesse sentido já foram realizadas sessenta e sete Caravanas da Anistia pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, onde foram concedidas anistias políticas e reparação econômica a mais de 50 mil pedidos, sendo que novos requerimentos são enviados todos os dias. Deve-se ressaltar que critérios quantitativos não são os mais adequados para avaliar o impacto das violações de direitos humanos no período ditatorial brasileiro, pois abrem margem para comparações equivocadas com outros países latino-americanos, como a feita pela Folha de São Paulo em 2009, que classificou a ditadura brasileira como “ditabranda”. Ora, as consequências da ditadura brasileira não são apenas números de mortos ou perseguidos. A violação sistemática de garantias fundamentais, marcada por torturas, desaparecimentos forçados, impedimento à liberdade de expressão, censura aos meios de comunicação, demissões arbitrárias, entre outros atos de exceção, se mostram como crimes inenarráveis (SOARES; KISHI, 2009 p.77), e seus efeitos permeiam a sociedade brasileira até os dias atuais, o que evidencia a necessidade de concretização da Justiça de Transição. As raízes históricas da Justiça de Transição remontam à Grécia Antiga, onde já estavam presentes elementos que permitem percebê-la (MEYER, 2012, p.245); mas foi na contemporaneidade que essa expressão ganhou força normativa, sendo o termo “justice in times of transition” utilizado pela primeira vez em 1991    

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em uma conferência proferida pela argentina Ruti Teitel (TEITEL, 2002 Apud MEYER, 2012, p. 243). A Justiça de Transição compreende elementos e iniciativas aplicadas a sociedades pós-conflito com o objetivo de reconstrução da paz social e afastamento da insegurança do período anterior, por meio de procedimentos que têm a finalidade de compensar abusos cometidos contra direitos humanos em regimes ditatoriais (SOARES; KISHI, 2009 p.71). A Justiça de Transição é pautada por princípios que decorrem de um Estado democrático constitucional. Através da análise de fatos ocorridos no passado e com um olhar para o futuro, é possível a promoção da paz após um período de violação sistemática de direitos humanos e garantias fundamentais. São elementos essenciais da Justiça Transicional: a) processar perpetradores e julgar os responsáveis pela violação de direitos humanos e garantias fundamentais; b) revelar a verdade sobre crimes passados, construindo uma memória nacional; c) conceder reparações compensatórias, restauradoras, reabilitadoras e simbólicas às vítimas e seus familiares; d) reformar as instituições perpetradoras de abusos; e) promover a reconciliação – que não se confunde com perdão obrigatório, impunidade ou esquecimento. Observa-se que justiça transicional não deve ser confundida com um juízo de exceção. A Justiça de Transição tem o intuito de promover um cenário adequado para estabilização de um Estado Democrático de Direito pautado em ideais democráticos; e assim, novas arbitrariedades, mesmo que busquem uma pretensa justiça, afastam a legitimidade do processo e fazem a insegurança persistir. Desta sorte, é preciso definir os critérios para acusação dos perpetradores, bem como as formas de punição, obedecendo ao princípio do devido processo legal e os termos da lei. A Justiça de Transição também não se confunde com uma justiça reparadora; esta faz parte daquela, que compreende outros elementos essenciais à consoli  

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dação de uma sociedade democrática. A justiça transicional estabelece procedimentos a serem adotados pelo novo regime em relação ao regime antecedente, e isso inclui mais que medidas reparatórias. A reparação é uma característica específica e fundamental da Justiça de Transição e consiste na retratação por parte do Estado em relação às vítimas e aos familiares destas, bem como à sociedade em geral. Significa a restauração, se possível, de uma situação de paz, uma forma de colocar em bom estado novamente aquilo comprometido ou arruinado, no caso, pela ditadura brasileira.

3. O uso do termo “Reparações” Pablo de Greiff (2010), em seu artigo “Justiça e Reparações”, distingue dois contextos para o uso do termo “reparações”. O primeiro é o judicial, usado nas discussões do Direito Internacional “para referir-se a todas aquelas medidas que podem ser adotadas para ressarcir os diversos tipos de danos que possam ter sofrido as vítimas como consequência de certos crimes”, incluindo as seguintes esferas: restituição; compensação; reabilitação e satisfação; e garantias de não repetição (DE GREIFF, 2010, p.43). A restituição visa estabelecer o status quo ante das vítimas, com restauração de direitos políticos, empregos, benefícios, propriedades; a compensação busca contrabalançar, por meio de indenizações, perdas econômicas e lesões físicas, mentais e morais; a reabilitação visa assistir as vítimas com atenção social, médica, psicológica e até legal; a satisfação e medidas de não repetição incluem medidas amplas, como: [...] afastamento das violações, verificação dos fatos, desculpas oficiais, sentenças judiciais que restabelecem a dignidade e a reputação das vítimas, plena revelação pública da verdade, busca, identi-

   

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ficação e entrega dos restos mortais de pessoas falecidas ou desaparecidas, junto com a aplicação de sanções judiciais ou administrativas aos autores dos crimes, e reformas institucionais (DE GREIFF, 2010, p.44).

O segundo conceito de “reparações” é o usado no desenho de programas que atingem um maior número de casos, em um conjunto mais ordenado de medidas de indenização. Nesse sentido, o tema é tratado de forma mais restrita, não incluindo outras formas de obtenção de justiça, como a reforma institucional, a punição de perpetradores de violações de direitos humanos, e o estabelecimento da verdade, apesar de poder relacionar-se em muitos pontos com tais pilares da Justiça de Transição. Nesse contexto, as reparações se classificam como individuais ou coletivas e em materiais ou simbólicas (DE GREIFF, 2010, p.44). As reparações individuais são as dirigidas às vítimas em particular, enquanto as coletivas são reparações a toda a sociedade. As reparações materiais buscam a compensação por meio do pagamento em dinheiro ou a oferta de benefícios às vítimas de violações de direitos humanos; já as reparações simbólicas incluem desculpas oficiais, reconhecimento do direito à resistência, valorização da luta política dos perseguidos, construção de espaços de memória, mudança de nomes de espaços públicos (DE GREIFF, 2010, p.46). Diante desse quadro, observa-se como a Comissão de Anistia, que será caracterizada mais à frente, incorporou esse segundo sentido de reparação a partir de 2007 ao estabelecer as Caravanas de Anistia. Isso pode ser afirmado devido ao fato de que uma das preocupações da Comissão nesse momento foi promover a rearticulação de causas antes esparsas sobre o tema da anistia. Ao contrário da justiça caso a caso, que fragmenta o processo reparatório, a reparação enquanto desenho de políticas públicas permite uma conjugação da luta das diferentes vítimas e o estabelecimento de  

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objetivos a serem alcançados, objetivos esses que, na visão de Pablo de Greiff (2010), seriam: o reconhecimento das vítimas enquanto seres humanos insubstituíveis e cidadãos com direitos iguais aos demais; a restauração da confiança cívica, que permite aos perseguidos políticos perceberem o compromisso do Estado, assim como de seus concidadãos, com o respeito e a valorização de suas lutas políticas (DE GREIFF, 2010, p.58); e a solidificação da solidariedade, que é a empatia entre os cidadãos, quando aqueles que não viveram a resistência política nos anos autoritários, principalmente os jovens, podem, por meio de relatos, vídeos, imagens, compreender afetivamente a dor impingida aos perseguidos pelo governo (DE GREIFF, 2010, p.62).

4. As Reparações no Brasil A dimensão da Reparação no Brasil é integrada por duas comissões, a Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a Comissão de Anistia (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.122). A Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos foi criada pela Lei nº 9.140/1995, alterada pelas leis 10.536/2002 e 10.875/2004. Ela foi implantada no Ministério da Justiça e, posteriormente, deslocada para a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. A Comissão [...] focou-se primeiro na apreciação das circunstâncias das mortes, para examinar exclusivamente se as pessoas foram ou não mortas pelos agentes do Estado no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988 e como isso aconteceu, afastando-se da apreciação dos atos dos envolvidos na atividade de repressão política (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.122).

   

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Após o prazo final para o envio de requerimentos à CEMDP ter-se esgotado em 2004, a Comissão concentrou seus esforços na localização de restos mortais dos desaparecidos, e ainda na “sistematização de um acervo de depoimentos de familiares e companheiros dos desaparecidos[...] na busca e na organização de diligências que forem necessárias para a localização dos restos mortais” (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.122). A CEMDP também forneceu contribuições no campo da Memória e da Verdade quando publicou, em 2007, o livro “Direito à Verdade e à Memória”, que constitui um importante documento oficial sobre o período ditatorial e que detalha pormenorizadamente a promoção de 357 reparações (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.122). Por outro lado, a Comissão de Anistia foi criada em 2001, por meio de medida provisória, convertida na lei nº 10.559/2002, que regula o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988. Tal Comissão, instalada no Ministério da Justiça, investiga todas as formas de perseguição política realizadas entre 1946 a 1988, tais como “as prisões arbitrárias, as torturas, os monitoramentos das vidas das pessoas, os exílios, as clandestinidades, as demissões arbitrárias de postos de trabalho, os expurgos estudantis e docentes nas universidades e escolas [...]” (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.122) entre outros atos de exceção. Além das vítimas de perseguição, podem enviar requerimentos à Comissão de Anistia os familiares de mortos e desaparecidos, concorrendo dessa forma aos dois tipos de indenização. A partir de 2007 processou-se uma “virada hermenêutica” na Comissão de Anistia (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.124), em que as leituras comumente dadas à lei nº 10.559/2002, que a percebiam apenas como reparação econômica, passaram a considerar dois aspectos: o primeiro é que a anistia é concedida aos perseguidos, e não aos perseguidores, resgatando o significado histórico de “anistia”, que se opõe a seu  

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sentido etimológico de perdão e esquecimento e resgata a luta da sociedade civil pela redemocratização do país na década de 1970. O segundo aspecto é que a anistia concedida aos perseguidos é o ato de reconhecimento de seu [...] direito legítimo de resistência a uma ordem legal ilegítima: antes de serem vítimas são, portanto, resistentes. Os perseguidos políticos não se envergonham da condição de ‘anistiado político’, ao contrário, isso simboliza toda a sua histórica contribuição política pessoal para com a derrubada do regime autoritário e a consequente abertura democrática (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.122).

Dessa forma, a partir do ano de 2007 a Comissão iniciou um processo de pedido público de desculpas em nome do Estado aos perseguidos políticos, e apenas após tal reparação moral é que é analisada a possibilidade de reparação econômica. Assim não cabem mais leituras da Anistia que a colocam como um esquecimento imposto, um “cala a boca” (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.127), um perdão por parte de um Estado ilegal e ilegítimo àqueles que ele mesmo perseguiu e estigmatizou na alcunha de “terroristas”.

4.1 Reparações econômicas Segundo a lei 9.140/1995, que instituiu a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos, a indenização para os familiares de mortos e desaparecidos políticos no período de 1961 a 1988 consistiria no pagamento de um valor único igual a três mil reais multiplicado pelo número de anos correspondentes à expectativa de vida do desaparecido, levando-se em conta sua idade à época do desaparecimento. O teto da indenização é de cem mil reais e o prazo para envio de requerimentos extinguiu-se em 2004.    

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Os familiares dos mortos e desaparecidos podem pleitear dupla indenização, uma através da Comissão de Mortos e Desaparecidos e outra pela Comissão de Anistia, no que se refere à perda de vínculos laborais ocorridos previamente às suas mortes e desaparecimentos ou a anos de perseguições em vida (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.114). No caso da Comissão de Anistia, os critérios adotados para o pagamento de indenizações a perseguidos políticos estão previstos Lei n 10.559/2002, que institui duas modalidades de reparação econômica, uma em prestação única e outra em prestação mensal. A prestação única é devida aos anistiados políticos que não puderem comprovar vínculos com a atividade laboral, e chega a trinta salários mínimos por ano de perseguição política e em não pode ser superior a cem mil reais. A prestação mensal, permanente e continuada, é assegurada aos anistiados políticos que comprovarem vínculos laborais e seu valor é o

[...] igual ao da remuneração que o anistiado político receberia se na ativa estivesse, considerada a graduação a que teria direito, obedecidos os prazos para promoção previstos nas leis e regulamentos vigentes, e asseguradas as promoções ao oficialato. Artigo 6º da lei n 10.559/2002). o

Observa-se para a estimativa da indenização mensal, portanto, a situação dos pares ou colegas contemporâneos do anistiado, que apresentavam a mesma posição no cargo, emprego ou posto quando da punição. A crítica que se faz a esse sistema reparatório é que pessoas submetidas à tortura, desaparecimento ou morte, mas que não tiveram perda de vínculos laborais receberiam valores indenizatórios menores que as pessoas que tivessem como forma de perseguição a perda de um emprego. Porém, segundo Paulo Abrão e Marcelo D. Torelly (2010), a maioria dos “presos e torturados que sobreviveram concomitantemente também  

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perderam seus empregos ou foram compelidos ao afastamento de suas atividades profissionais formais” e esses “casos de duplicidade de situações persecutórias são a maioria e [...] não cabe sustentar a tese de subvalorização dos direitos da pessoa humana frente aos direitos trabalhistas em termos de efetivos”. Porém, os autores atentam para o fato de que no caso de pessoas que não tiverem nem a possibilidade de se inserirem no mercado de trabalho devido às perseguições, como ocorreu com estudantes expulsos de universidades e escolas [...] que tiveram que se exilar ou entrar na clandestinidade e o das crianças que foram presas e torturadas com os pais ou familiares [...] a legislação efetivamente não oferece uma alternativa reparatória razoável, a despeito dos esforços da Comissão de Anistia (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.114).

4.2 Reparações simbólicas: As Caravanas da Anistia As caravanas da Anistia são sessões itinerantes de apreciação de requerimentos de anistia política, realizadas em diversos estados brasileiros, acompanhadas de atividades culturais e educativas relacionadas ao período ditatorial brasileiro (ABRÃO et al., 2009, p.114). A Comissão da Anistia, órgão que promove as sessões, é a responsável pelo reconhecimento oficial de cometimento de atos de exceção por meio de perseguições políticas e que garantem às vítimas o direito de reparação. Como aponta Abrão et al. (2009), o caráter itinerante das Caravanas leva a uma maior participação da sociedade civil, em contraposição às sessões exclusivas em Brasília e permite que as violações de direitos humanos sejam reparadas no local onde foram perpetradas. Além disso, seu caráter educativo, com apresentações culturais e relatos pessoais dos perseguidos, resgata a reflexão sobre o passado autoritário brasileiro,    

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principalmente para os jovens, permitindo um resgate da Memória e a construção de discursos de não repetição das arbitrariedades. Os requerimentos enviados à Comissão são apreciados por conselheiros, que analisam os pedidos, relatam os fatos e documentos constantes no processo e formam um juízo sobre o conjunto comprobatório da perseguição. Após a interpelação e escuta do experseguido, há o debate entre os conselheiros e a concessão ou não do reconhecimento da condição de anistiado político. Tal condição de anistiado se figura como reparação moral, cabendo posteriormente, se pertinente, a reparação econômica (ABRÃO et al., 2009, p.114). Segundo Paulo Abrão e Marcelo D. Torelly (2010), as Caravanas de Anistia promovem dois tipos de reparações simbólicas: reparações individuais com efeitos coletivos e reparações coletivas com efeitos individuais. As reparações individuais são concretizadas no momento em que há homenagem às vítimas das perseguições, seus testemunhos são ouvidos, o Estado reconhece que estava errado ao violar o direito legítimo do cidadão à resistência, e os concidadãos do perseguido reconhecem sua luta política como fundamental na construção do Estado de Direito Democrático contemporâneo. Nas sessões da Comissão há um importante espaço para que o período ditatorial brasileiro seja recontado sob o ponto de vista dos perseguidos, agregando à documentação oficial a narrativa dos que viveram os fatos (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.131). Tais relatos chegam a um grande número de pessoas, seja porque as sessões são em várias partes do país, em espaços públicos e com ampla divulgação, seja porque elas viram notícia de destaque nos principais jornais brasileiros. Assim, [...] por meio do compartilhamento dessas experiências, um duplo movimento é desencadeado: por

 

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um lado, possibilita-se transformar a dor em conhecimento e, por outro, permite-se um processamento adequado da dor, necessário à superação de uma tragédia: a elaboração do luto e dos traumas, em vez do silenciamento (SOUZA, 2006, apud ABRÃO, TORELLY, 2010, p.114).

Os vídeos especialmente produzidos para a ocasião, com sessões de memória e homenagem às vítimas, assim como os relatos dos perseguidos representam um marco simbólico relevante para a democracia, uma vez que é indispensável mostrar aos jovens a história autoritária de seu país e o valor da democracia. Após os relatos, há o julgamento dos pedidos e posteriormente, se procedente, o pedido de desculpas oficiais e o reconhecimento aos perseguidos do status de “anistiado político”. Esses dois atos são importantes no reconhecimento do direito legítimo à resistência e geram a reincorporação do anistiado à sociedade brasileira, uma vez que sua luta foi reconhecida como essencial no processo de construção democrática do país (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.134). Nesse momento, a reparação moral individual ganha um inegável aspecto coletivo, pois ao anistiar publicamente ao perseguido, pedir-lhe desculpas e dar-lhe a palavra, o Estado brasileiro permite que toda uma nova geração se integre ao processo de construção democrática e comprometa-se com os valores que sustentam esta nova fase da República (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.134).

Essa dimensão coletiva das reparações individuais é essencial na restauração da dignidade dos perseguidos, pois “se um prejuízo é reparado, [...] uma identidade negada exige ser reconstruída, reiterada por um ato de justiça, inédito aos olhos de muitos: o reconhecimento” (GARAPON, 2002, apud ABRÃO, TORELLY, 2010, p.128). A reparação econômica estabelecida posteriormente é secundária, uma vez que a reparação moral é a    

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enfatizada pela sessão, o que desacredita as críticas de que o processo reparatório brasileiro privilegia uma visão material da reparação. As reparações coletivas com efeitos individuais ocorrem no momento em que são devolvidos ao povo seus heróis nacionais e aos jovens, a história de seu país. São atos que restauram a identidade coletiva nacional e recompõem as múltiplas narrativas de um importante período da história por meio de uma abertura afetiva, pessoal e testemunhal, que somente a memória viva proporciona (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.136). Dessa forma as políticas de memória se mostram como um mecanismo essencial no âmbito das reparações simbólicas coletivas. Devido à necessidade de comprovação das perseguições políticas por meio de documentos e testemunhos, avolumou-se, gradualmente, o acervo do Ministério da Justiça, com “milhares de dossiês e de arquivos de áudio e vídeo que retratam não apenas as perseguições individualmente impingidas a cada um dos perseguidos, mas também a história do Brasil” (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.137). E então, a partir de 2007, iniciaram-se estudos para a criação do Memorial da Anistia, que constitui um espaço público de pedido de desculpas do Estado frente à sociedade pelos erros cometidos na ditadura militar. Esse é também um lugar de reconhecimento do direito legítimo à resistência e de preservação da memória (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.138). É assim que, a um só tempo, promove-se uma ampla reparação coletiva, com o pedido de desculpas difuso a toda a sociedade, igualmente gerando efeitos reparatórios para cada um dos perseguidos políticos, uma vez que foram perseguidos por pertencerem a grupos e coletividades cujas ideias foram proibidas pelo Estado autoritário. O resgate dessas ideias e de seus protagonistas compõe a estrutura temática do Memorial, que busca resgatar a capacidade do Estado de conviver com o pluralismo político, reafirmando a reparação moral ínsi-

 

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ta aos pedidos de desculpas individuais que reconhecem o direito individual que todos possuem de resistir ao autoritarismo.

O Memorial da Anistia será um espaço de preservação e resgate da memória da ditadura civil-militar que está sendo construído em Belo Horizonte, no antigo prédio da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no bairro Santo Antônio. O memorial será inaugurado em 2014 e contará no seu acervo com todo o material referente aos setenta mil processos de indenização que foram apresentados na Comissão de Anistia, além de dossiês administrativos, relatos, testemunhos, livros, áudios e vídeos recebidos pela Comissão de Anistia por campanhas de doação e cerca de 10 mil fotos e 400 filmes preservados pela própria UFMG. Outra forma de reparação simbólica coletiva realizada pela Comissão de Anistia foi a disponibilização na internet de documentos do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP) no ano de 2013. A Comissão, por meio de seu projeto Marcas da Memória, em que seleciona projetos culturais, artísticos e científicos na temática “justiça de transição: reparação, memória e verdade”, contemplou em 2011 o projeto da Associação de Amigos do Arquivo Público do Estado de São Paulo, sendo repassadas verbas para digitalização de cerca de um milhão de páginas de arquivos e prontuários do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo, o DEOPS. Dessa forma, a partir do dia 1º de abril de 2013, tais documentos estarão disponíveis na internet para consulta de qualquer cidadão. Tal ato, além de consolidar a busca da Verdade e Memória, ajudará nos trabalhos de reparação da Comissão de Anistia no sentido de acesso às provas de perseguições.

   

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4.3 Reparações Simbólicas: Projeto de Lei nº 380/2010 – SP A reparação simbólica às vítimas da repressão e à sociedade em geral também pode assumir a forma de desconstrução de homenagens àqueles que foram perpetradores de abusos aos direitos humanos e crimes de lesa-humanidade. É o caso de monumentos, ruas e viadutos com nomes de militares, que fazem parte do cotidiano brasileiro e distorcem o que significou a ditadura no Brasil: um período brutal, ilegítimo e vergonhoso na história do país. Quem passa todos os dias por tais edificações é forçado a conviver com uma homenagem para aqueles que além de não serem julgados por seus crimes, ainda são relembrados como se heróis nacionais fossem. Tal fato reflete um desrespeito à memória das vítimas e à consciência política nacional. Há algumas iniciativas no sentido de mudanças de nomes de edificações públicas, como o Projeto de Lei n 380/2010 – SP, proposto pelo vereador Jamil Murad, em trâmite na Câmara Municipal de São Paulo. Segundo o próprio autor do projeto de lei: o

O nome das ruas de uma cidade representa a herança cultural de um povo dirigida às gerações futuras como referências históricas. Devem representar, portanto, personagens significativos no desenvolvimento do país merecedores de ter sua memória perpetuada no tempo (MURAD, apud LOBREGATTE 2013).

Nesse sentido, o então prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, aprovou em 12 de julho de 2012 a mudança de nome do viaduto General Milton Tavares para Desembargador Domingos Franciulli Netto. Milton Tavares de Souza foi diretor do Centro de Informações do Exército durante o Governo de Médici, comandando a eliminação física dos opositores do regime. Foi ainda responsável pela organização dos DOI-CODI em todo o Brasil e das operações Bandeirantes e Marajoara, que visavam destruir a Guerrilha do Araguaia.  

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Não é apenas importante como essencial na construção da justiça de transição essa mudança de nomes de ruas, vias, viadutos, e ainda, renomeações em homenagem a vítimas do regime. Tais atos reconstroem a memória do período autoritário brasileiro e ainda evitam o revisionismo histórico, que ocorre quando os fatos históricos são interpretados por leituras conservadoras a favor do regime ditatorial, atribuindo a esse período características como paz social, diminuição da criminalidade, avanço econômico, afastamento da ameaça comunista e por isso uma época a se orgulhar.

Conclusão Este artigo se propôs a analisar e delimitar a estrutura de um importante instituto da Justiça de Transição, a Reparação, ressaltando sua dimensão simbólica, cuja importância é crescente no Brasil por meio da atuação da Comissão da Anistia, no que tange às Caravanas da Anistia. Embora as tentativas de reparação econômica às vítimas da ditadura tenham surtido efeitos positivos para a transição política do Brasil, é notável que ainda há um caminho longo a se percorrer no campo de consolidação da consciência nacional sobre os fatos ocorridos no período do regime civil-militar. Nesse sentido, é vital a importância o desenvolvimento das reparações em seu sentido econômico e simbólico, no intuito de guiar ações civis e governamentais que visem garantir uma transição política justa em uma nação afetada por um passado autoritário e violento, que ainda perdura até hoje, como é o caso do Brasil.

Referências Bibliográficas ABRÃO, P. et al. As caravanas da Anistia um mecanismo privilegiado da Justiça de Transição brasileira. Comissão    

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Intelectuais lançam manifesto contra a 'ditabranda' da Folha de S. Paulo. Disponível em: < http://www.direitoacomunicacao.org.br/content.php?o ption=com_content&task=view&id=4762 > Acesso em: 16/03/2013. LOBREGATTE, P. Aprovado PL que tira homenagem a violadores dos Direitos Humanos. Disponível em:
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