APONTAMENTOS SOBRE O FENÔMENO POLISSÊMICO DA TRADUÇÃO

June 15, 2017 | Autor: A. Jardim Filho | Categoria: Translation Studies, Visual Arts, Translation
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APONTAMENTOS SOBRE O FENÔMENO POLISSÊMICO DA TRADUÇÃO Sandra Ramalho e Oliveira (UDESC)1 Airton Jordani Jardim Filho (UDESC) 2 Resumo. Neste artigo retomamos um capítulo inédito de uma tese de doutorado dos anos noventa, em cuja fundamentação são apresentados pressupostos de distintos autores acerca do fenômenos linguístico polissêmico denominado tradução. Dele selecionamos alguns aspectos ainda atuais para destacar, dentre os quais a tradução intratextual, intertextual e intersemiótica, sempre observando as diferentes proposições de transposição de sentidos. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica que foi retomada cerca de quinze anos depois, trazendo novos autores e diferentes modos de ser da intertextualidade. Além de concordar que todo leitor é um tradutor, questionamos se todo tradutor é autor, bem como qual o melhor conceito para denominar a transposição de sentidos. Palavras-chave. Tradução, Intertextualidade, Transposição de Sentidos.

REFLECTIONS ON TRANSLATION, A POLISSEMIC PHENOMENA Abstract. In this article, we resume an unpublished chapter of a doctoral thesis from the nineties, which in the theoretical foundation we present different assumptions of distinct authors about the polysemic linguistic phenomena called translation. We selected from this chapter some still current aspects to highlight, among which the translation intratextual, intertextual and intersemiotic, always observing the different propositions of the transposition of senses. A bibliographical research that was taken about fifteen years later, bringing new authors and different ways of being of the intertextuality. In addition to agreeing that every reader is a translator, we question whether every translator is the author, and what is the best concept to name the transposition of senses. 1

Ministra aulas e orienta pesquisas no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC. É Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, com pós-doutoramento na França. Autora, coautora e organizadora de diversos livros e artigos, entre eles Imagem também se lê (2009, 2. reimpr.). Presidiu a ANPAP entre 2007 e 2008. Presta consultoria a diversas entidades, entre elas, a CAPES. Atua no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/PPGAV da UDESC, o qual coordenou de 2009 a 2011. E-mail: [email protected] 2

Doutorando em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - Centro de Artes, da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGAV/CEART/UDESC). Mestre em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design (PPGDesign)/UDESC. Membro do grupo de pesquisa CNPq Núcleo de Estudos Semióticos e Transdisciplinares - (NEST/UDESC). Especialista em Artes Visuais: Cultura e criação pelo SENAC EAD/RS. Graduado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Keywords. Translation, Intertextuality, Transposition of Senses.

1. Considerações iniciais

Diz o linguista Jean Cristtus Portela (2007), introduzindo o livro denominado em português de Semiótica do Discurso, do francês Jacques Fontanille, “falar que o semioticista é tradutor é redundância pois a tradução implica a transposição de sentidos, que é inerente ao fazer do semioticista”. Estudando semiótica e praticando semiótica na pesquisa, vemos a tradução não apenas como fazer inerente ao semioticista, mas inerente a todo ser capaz de proceder à transposição dos sentidos de uma manifestação textual à outra. Os mais distintos textos presentes no mundo natural – sejam eles parte da própria natureza ou produto da cultura, pertencentes aos mais diversos sistemas e linguagens, singulares ou sincréticos, perenes ou efêmeros, voláteis como os dos odores ou sólidos como os de esculturas em blocos de pedra, simbólicos ou semi-simbólicos – possuem, na sua composição, elementos que podem ser relacionados, de modo que a percepção e apreensão dos fenômenos de significação e de sentido em um determinada manifestação possa levar à compreensão de fenômenos análogos em outra, embora tenham características distintas, uma vez que cada uma delas está inserido na lógica da sua linguagem respectiva e do seu contexto. Mas as possibilidades de existência de fenômenos de articulações entre textos estendem-se, de outro modo, àqueles pertencentes aos sistemas chamados sincréticos, híbridos ou miscigenados. Trata-se de textos fruto geralmente de múltiplas autorias, compostos por linguagens que se entrelaçam; e menos raro ocorre um dos autores traduzir para outra linguagem uma composição já pronta do que as situações nas quais poeta e compositor, juntos, compõem versos e melodia de uma música. Trilhas sonoras de filmes, vídeos ou peças de teatro, letras criadas para músicas ou, ao contrário,

melodias compostas para poemas, cenários e coreografias para espetáculos, ilustrações de textos verbais, capas de livros ou CD’s são exemplos de manifestações componentes de textos sincréticos que, para adquirir sua integridade final, demandam que um ou mais de seus coautores pratiquem o exercício de tradução. Uma terceira alternativa diz respeito à tradução que se dá quando o destinatário da manifestação, o enunciatário, diante de uma imagem visual, verbal, sonora, cênica ou mesmo das sincréticas, dispõe-se operacionalizar a transposição de sentidos, da linguagem respectiva e específica diante de si para imagens mentais, fluxos verbais imaginados, sinestesias, sensações, sentidos os mais diversos. Isto porque concebe-se o enunciatário conforme Greimas & Courtés (1989), ou seja, como um leitor que difere do conceito usualmente adotado pelo senso comum: mais do que um mero receptor ou destinatário, o leitor de imagens aqui considerado é, da mesma maneira que o criador, um produtor de significações e sentidos, pois a leitura é também um ato de linguagem. Assim, o leitor de imagens é entendido como um enunciatário, um tradutor, um leitor criativo. Oportuno se faz então apresentar algumas opções conceituais que regem as reflexões que se seguem. Inicialmente, o conceito de texto adotado é aquele proposto por Greimas & Courtés (1989), referindo-se à possibilidade de uso do termo texto e de seu conceito nas semióticas verbais e não-verbais, texto não apenas como unidade vinculada ao sistema e às linguagens verbais: “um ritual, um balé podem ser considerados como textos”. Como pode ser aplicado às manifestações das linguagens não-verbais, o conceito de texto pode ser aplicado à imagem. Por sua vez, o conceito de imagem, passível de ser considerado texto, pode também ter seu entendimento ampliado para além do campo da visualidade. Como imagens podem ser aceitas as construções formais pertencentes a outros sistemas, e agora é Santaella (1993) quem o defende. Com base em um estudo de S. M. Kosslyn, diz a autora: “imagem é um tipo especial de representação (quase pictórica) que descreve a informação e ocorre num meio espacial”. Segundo ela,

o fato do tipo especial de representação ser quase e não inteiramente pictórica salva a definição do exclusivismo de se conceber a imagem como um processo estritamente visual, pois há imagens sonoras, auditivas, assim como há imagens puramente táteis (Santaella, 1993, p. 38-39).

Portanto, percebemos que tanto texto quanto imagem têm a ampliação de seus respectivos conceitos autorizados pela semiótica: textos não são apenas os verbais e imagens não são apenas as visuais. E ambos, textos e imagens, sejam eles textos verbais ou sonoros, sejam elas imagens cênicas e ou fílmicas, todas essas manifestações e seus colaterais podem ser consideradas unidades de análise, para efeito de pesquisa. Assim, dada a diversidade de imagens e seu pertencimento a classes comunicacionais distintas, quando falamos de linguagens, as categorias devem ser previamente anunciadas, para que se possa situar o universo ou a amostragem sob análise, pois a linguagem em questão tratar-se-á, sempre, de uma categoria, ao passo que o texto ou a imagem em particular é que serão as unidades de análise. A palavra “linguagem” vem sendo aqui utilizada como um termo que substitui, com vantagens, o termo “código”, conforme concebido por Greimas & Courtés (1989, p. 49-50): segundo eles, código é considerado o conjunto das unidades morfológicas e dos “procedimentos de seu arranjo (sua organização sintática), sendo que a articulação desses dois componentes permite a produção de mensagens”. Defendemos que a substituição do vocábulo “código” se dá com vantagens tendo em vista que a noção de “código” gera inúmeras incompreensões, dados os seus usos, ao menos em português, que remetem à ideia de linguagem cifrada, linguagem secreta ou linguagem estritamente simbólica. Em síntese, as mais distintas manifestações podem ser organizadas sob o paradigma linguagem, as quais, por sua vez, podem ser ordenadas segundo suas características, como pertencentes a sistemas distintos e respectivos. Se é possível comparar sistemas, linguagens e textos, está aí admitida a possibilidade da tradução entre estas categorias. Antecipamos nossa crença de que se pode partir de um texto e criar outro. E esta partida de um texto inicial para outro pode ter destinos distintos, senão vejamos: quando

a transmutação se dá entre textos pertencentes a linguagens distintas ou não, temos a tradução intertextual. Há também a tradução intratextual, quando as relações entre os componentes estiverem articulados dentro de um todo, no interior de um mesmo texto, sincrético ou não. Do mesmo modo, podemos chegar a uma operação de tradução ao decodificar, ainda que para si mesmo, um dado texto. Este seria o fazer do destinatário, também criador de sentidos, e que recebe vários nomes: fruição, apreciação, interpretação, leitura, desleitura. Adotamos ainda, outro princípio, o de que a tradução é diacrônica, ou seja, de que há um distanciamento cronológico entre os textos que são articulados, ainda que mínimo, entre o texto inicial e sua tradução, mesmo que essa tradução seja apenas reflexões pessoais, pensamentos germinados na mente de cada um. Nesta diacronia acaba acontecendo também o distanciamento no espaço, além do tempo. Calabrese (2008) é o autor de um trabalho intitulado “o estranho caso da equivalência imperfeita: modestas observações sobre a tradução intersemiótica”, e este título, ao qual voltaremos posteriormente, já nos diz muitas coisas, pois trata da estranheza, da imperfeição e mesmo da humildade do estudioso, todos os três aspectos, em relação ao fenômeno da tradução. É deste fenômeno de equivalências imperfeitas que se quer tratar aqui: de analogias, que se prestam tanto para descobrir similaridades quanto para evidenciar diferenças. E neste exercício, que antes de transpositivo é comparativo, esperamos que se evidenciem possibilidades para a ampliação do campo de percepção dos fenômenos estéticos, no tempo entre passado, presente e futuro; no espaço, ou seja, entre culturas, entre sistemas e entre linguagens. E esta afirmativa, por si só, já encerra um convite à discussão.

2. Tradução intertextual

Plaza (1987, p. 40), ao analisar os processos de tradução, estabelece relações entre tradução e invenção que, para ele, se retroalimentam, e diz, inspirando-se em Octavio Paz: traduzir é colocar esse cristal de seleções em movimento, para voltar a fixá-lo num sistema de escolhas outro e, no entanto, análogo. Traduzir é, nessa medida, repensar a configuração de escolhas do original, transmutando-a numa outra configuração seletiva e sintética.

Importante é ressaltar que, mesmo havendo alteração na configuração, isto não significa haver a total desvinculação em relação ao texto estético que pode ser chamado de inicial, uma vez que dele pode permanecer alguns aspectos do plano da expressão, os quais podem manter o conteúdo quanto aos aspectos semânticos. P. Rónai (1981, p. 16) oferece outras reflexões sobre o processo de tradução, com base nas linguagens do sistema verbal, as quais podem se prestar para se estabelecer analogias com outras linguagens. Para ele, a tradução interlingual é “a reformulação de uma mensagem num idioma diferente daquele em que foi concebida”. Assim sendo, quando se trata de uma tradução de um texto para outro, mas ambos pertencentes ao mesmo sistema, a linguagem verbal, como no caso da linguagem poética ou do teatral, “o essencial não é a reconstituição da mensagem, mas a reconstituição do sistema de signos em que está incorporada esta mensagem, da informação estética e não da informação meramente semântica” (Campos, 1977, p. 93). Pode-se considerar como a essência a ser mantida nos processos de tradução citada por Rónai, o que Campos denomina de informação estética, que aqui se considera mais do que mera informação, no sentido comum da palavra. Trata-se informar, de colocar em nova forma, já que a manifestação passa a se subordinar às regras da nova linguagem, ou do novo texto para o qual foi traduzida. O semântico do novo texto surge com uma roupagem reciclada, na qual o prioritário são os princípios

estéticos do novo texto, os quais atualizarão seu conteúdo, regendo os elementos constitutivos e sua sintaxe em uma nova configuração. A este respeito, Plaza (1987, p. 1) assim se manifesta:

a operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre os seus diversos momentos, ou seja, entre passado-presente-futuro, lugar onde se processa o movimento de transformação de estruturas e eventos.

Fica assim caracterizada a possibilidade de transmutação de conteúdos de um texto para outro, em linguagens idênticas, como na pintura, no teatro, mas igualmente entre linguagens distintas, como as traduções da Santa Ceia do texto verbal bíblico para as centenas de versões visuais, além de algumas manifestações em outras linguagens, como na fílmica, conforme apresentada por Ana Cláudia de Oliveira em Fala Gestual (1998). Ressalte-se, a partir desse exemplo, que nos processos de tradução criativa há uma busca de equivalência e não a tentativa de encontrar uma simples – e impossível igualdade. Sempre atento à impossibilidade de tradução ao pé da letra em textos estéticos, Campos também afirma que nesta operacionalização se está no “avesso da chamada tradução literal”, restando ao conteúdo semântico “a função balizadora do trabalho a recriar” (1992, p. 35). A possibilidade de se comparar, para melhor compreender, manifestações de linguagens diferentes são assim tratadas por Jakobson (1990, p. 119): “por mais irrisória que possa parecer a Ilíada e a Odisseia transformadas em histórias em quadrinhos, certos traços estruturais de seu enredo são preservados, malgrado o desaparecimento de sua configuração verbal”. Em seguida, o autor apresenta outro exemplo: “o fato de discutir-se se as ilustrações de Blake para a Divina Comédia são ou não adequadas, é prova de que as diferentes artes são comparáveis” (Idem). Em ambos os casos citados por Jakobson, há a diferenciação de produtos estéticos em termos de linguagem, mas há a coincidência das temáticas. São transposições de um mesmo tema, de uma linguagem

para outra, que mostram a possibilidade de se analisar comparativamente textos pertencentes a linguagens diferentes entre si. O trânsito entre sistemas, a intercomunicação entre eles é considerada, portanto, por diversos estudiosos. Plaza (1987, p. 11-14), lembra o fenômeno e exemplifica citando Känge, o poema de Kandinsky, “onde o artista vislumbra sistemas de harmonias entre sons, cores e formas”. Ora, sons são elementos próprios dos sistemas musical e audiovisual; cores e formas são elementos característicos dos sistemas visual e audiovisual. Ao perceber relações de harmonia entre esses elementos, Kandinsky faz um exercício de comparação entre elementos, como sons e formas, que são de natureza diferenciada: compara-os, tendo como parâmetro um procedimento, uma regra de articulação que é a harmonia. Embora a harmonia se dê de forma diversa na música e no visual, as postulações de Kandinsky mostram que ao se cotejar elementos diferentes, já que pertencem a sistemas distintos, pode-se perceber entre eles um modo de organização com base em um princípio comum, uma regra de articulação inclusive homônima, neste caso, a harmonia, a qual produz efeitos que podem ser considerados análogos. São fenômenos como esse que Jakobson chama de transposição intersemiótica. Para ele, trata-se de uma das dimensões da transposição criativa, “a transposição de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura” (Jakobson, 1990, p. 119). Isto se torna possível porque, ainda de acordo com Jakobson, “numerosos traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, mas a toda a teoria dos signos”, ou seja, para todas as linguagens, inclusive os não verbais ou híbridos. Continua Jakobson, mais adiante, explicitando sua proposição, afirmando que isto vale “tanto para a arte verbal como para todas as variedades da linguagem, de vez que a linguagem compartilha muitas propriedades com alguns outros sistemas de signos ou mesmo com todos eles” (Idem).

3. Intersemioses em textos sincréticos: a tradução intratextual

No que se refere aos textos sincréticos, mesmo que sendo construídos a partir de uma linguagem predominante, sua hibridação, decorrente das articulações entre universos semióticos distintos, consiste em campo privilegiado de relações intersemióticas. Neste caso específico, trata-se de relações intratextuais, uma vez que se dão dentro de uma moldura delineada por um único texto, sincrético. Falando a respeito da quebra das demarcações entre o que chama de categorias artísticas, Plaza (1987) ilustra com a poesia visual, campo próprio das inter-relações entre os códigos visual e verbal. Mais adiante o autor destaca as múltiplas possibilidades intertextuais abertas e as que se abrem a partir do desenvolvimento de novas tecnologias para os meios eletrônicos. Se na pintura ou em outras linguagens visuais se pode encontrar relações intertextuais entre o pictórico e o verbal ou entre o pictórico e o gestual e se a poesia visual é o campo mesmo das inter-relações entre o visual e o verbal, há outros códigos onde a diversidade e o número de subcódigos que se hibridam faz com que proliferem as relações intertextuais. Este sincretismo é o que Anspach (1988) denomina de promiscuidade de signos, referindo-se ao teatro, caracterizado pela multiplicidade de códigos - a palavra, o gesto, a iluminação, o cenário, a música, entre outros que, correlacionados em uma espécie de mistura homogênea, geram um outro código. Segundo ela, no ambiente intertextual da cena, cada código como que adquire nova personalidade ao se acasalar, constituindo processos de hibridação, que é mais do que uma simples complementaridade, fazendo surgir uma nova gramática, específica do código teatral e liberta do código verbal. De acordo com Vieira (1995), é no trabalho artístico que se dão no espaço e no tempo, como o teatro, o cinema, a música e a dança, que a intertextualidade encontra “sua melhor maneira de atuação”; quanto às artes que se dão apenas no espaço, ainda assim, segundo o autor, seu grau de complexidade é construído pela “intertextualidade

geradora de intersemiose”. No caso dos textos estáticos, ainda que congelada, “a gramaticidade é rica, é eloquente, na interação de todos os sistemas sígnicos usados na elaboração da obra, na interação da mesma com o todo e o meio ambiente”. Segundo sua visão sistêmica, é assim que Vieira (Idem) registra que “o domínio da arte é o domínio da intersemiose”:

a obra de arte é uma emergência sistêmica que envolve vários níveis de textualidade, que envolve a confluência de vários textos - diversos subsistemas sígnicos, de naturezas muitas vezes bastante diversificadas, partilham um mesmo espaço histórico, através de conectividade e coesão e cada um exibindo propriedades ou funções partilhadas, funções essas que só ganham sentido na coerência do todo sistêmico.

A essa altura, cumpre ressaltar que as relações textuais, presentes em cada linguagem que se miscigenando, gera outra linguagem, são uma espécie de pré-requisito para que o tradutor da imagem se lance na tarefa de analisar, simultânea e articuladamente, o entrelaçamento de linguagens em um texto sincrético.

4. Todo leitor é tradutor

Campos (1977, p. 35), em suas reflexões sobre a tradução, reforça a sua argumentação aqui defendida a respeito do papel do tradutor: “...para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma, porém recíproca”. Mas essa afirmação se presta para caracterizar também o processo vivenciado pelo outro tipo de tradutor, o tradutor/leitor, aquele que não produz um novo texto concreto. Esta noção de leitor que transcende a condição de mero receptor passivo, fica claramente definida através do conceito de enunciatário proposto por Greimas & Courtés (1989). Mais do que um simples receptor ou espectador, o enunciatário é também, segundo os autores, um produtor do discurso, pois como destinatário do

enunciado, ele pratica um ato de significar idêntico ao ato que o produtor do discurso pratica. O processo de tradução, em si, pode ser tomado como um procedimento constante na vida de cada um, uma vez que qualquer pensamento é necessariamente tradução, pois segundo Plaza (1987, p. 18), “quando pensamos, traduzimos aquilo que temos presente à consciência, sejam imagens, sentimentos ou concepções”. Assim entendida a tradução, pode-se reafirmar que não só o produtor de textos, mas o leitor, também ele, pode - e deve - ser um tradutor. E quando se trata de arte, algo ainda há para ser acrescido: se se considerar que a obra de arte não está acabada, pois ela se completa com o fazer do enunciatário, estando, assim, aberta a múltiplas leituras, “visto que a ambiguidade é a característica intrínseca, inalienável, do objeto estético” (Plaza, 1987, p. 26), pode-se aceitar que o leitor seja um parceiro do autor da obra pois, ao traduzi-la, ele a recria. Deste modo, o processo de re-operacionalização de textos estéticos se dá de maneira semelhante no produtor e no leitor. A diferença se estabelece quanto aos objetivos de cada um; enquanto que no criador há a intenção da materialização de uma nova obra, evento ou objeto estético, no leitor, o objetivo é a criação de sentidos, a descoberta para si dos efeitos que o texto estético gera, ser traduzido em ideias, novas imagens mentais, quando do encontro entre o autor e o destinatário potencial, o leitor tradutor por meio do trabalho artístico.

5. Tradução como possibilidade para a leitura comparada

Por que realizar leituras comparadas? Como cotejar textos distintos? Adotamos a ideia de que, no universo imagético, cada texto possui duas dimensões, o plano da expressão e o plano do conteúdo. E que o plano da expressão é constituído pelos elementos morfológicos e os procedimentos sintáticos que evidenciam um plano de

conteúdo. Isto é comum a todos os textos, independentemente do sistema a que pertença. É uma síntese, uma matriz que possibilita ser aplicada a qualquer texto. No entanto, cada sistema apresenta elementos próprios; cada linguagem tem sua sintaxe peculiar; e cada texto tem sua maneira particular de ser texto. Por isso são relevantes as análises comparativas. Em cada uma delas pode-se perceber o que é comum ao sistema, o que é comum à linguagem e o que é comum ao texto. Do mesmo modo, com mais clareza evidenciam-se as diferenças nas comparações entre sistemas, linguagens ou textos, se se partir de um mesmo modelo de análise. Elementos morfológicos, regras sintáticas e significados estão articulados em qualquer texto. Mas quais são os elementos morfológicos ou constitutivos de um determinado sistema? Como estes elementos são organizados em um e em outro texto de um mesmo sistema? Quais são as particularidades de um texto individual? É através das comparações que as diferenças e as similaridades melhor se evidenciam. Alguns exemplos podem ser tomados no sentido de examinar a concepção de tradução que defende a manutenção da essência estética, o que é radicalmente diferenciado de verossimilhança ou de reprodução fiel do original: o que há de comum entre a Ópera dos Mendigos, de John Gay, a Ópera dos Três Vinténs, de Brecht e a Ópera do Malandro, de Chico Buarque? E onde estão as diferenças? Mesmo que não se conheçam as três obras, através da comparação das traduções dos títulos das duas primeiras com o título da última já se pode antever as leituras que sofreu a primeira, a que é tida como a original neste código e sobre este tema. No campo das artes visuais, quais as diferenças e similaridades entre As Três Graças de Botticelli e o desenho homônimo de Picasso? E no campo intersistemas, o que há em comum entre a tela Enterro na Rede, de Portinari, a peça Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto e uma de suas músicas, Funeral de um lavrador, de Chico Buarque? O fato é que existem componentes que chamamos de elementos constitutivos e procedimentos relacionais comuns às diferentes linguagens. São componentes com

certas características semelhantes, ou de natureza análoga, ou homônimos, ou esquemas que guardam, entre si, alguma similitude. Em síntese, textos verbais, sonoros, visuais ou sincréticos quaisquer mostram que existem elementos, procedimentos e conteúdos comuns a manifestações de uma mesma linguagem ou de linguagens diferentes, perceptíveis por meio de comparações entre elas. É capaz de facilitar, simultaneamente, a percepção das similaridades tanto quanto das diferenças existentes entre textos, tanto em termos formais (plano de expressão), quanto em termos de efeitos de sentido (plano de conteúdo).

5. Considerações Finais

Nossa opção, no contexto do campo da arte, é a do seu ensino, posição que pode parecer presunçosa em relação a quem o assume e exerce, pois refere-se a ensinar arte para alguém; porém, demanda responsabilidade capital, já que ensinar implica deter conhecimentos desconhecidos pelos ensinados, se não para ensinar, propriamente, ao menos para colocar em questão, problematizando-os. Entretanto, na visão de pessoas dos demais campos da arte, o do ensino é visto, mesmo que veladamente, como um campo menor, onde a atuação dos profissionais é tida por vezes como limitada, em termos de profundidade teórica e mesmo de trânsito, nem sempre atualizada e, até mesmo, distanciada do próprio objeto de estudo. A consequência, para os profissionais que atuam na área de ensino de arte, é que eles nem sempre têm suas proposições trazidas para o debate, ou nem sempre são reconhecidas no campo maior da arte. Um exemplo é o conceito de enunciatário, dado teórico já apresentado há décadas, não diretamente pelos ensinadores de arte, mas pelos semioticistas e, é certo, por aqueles com o respaldo destes. Isto porque, Greimas & Courtés, no seu Dicionário de Semiótica (1989), quanto ao verbete enunciatário afirmam que ele é “o destinatário implícito da enunciação”; “não é apenas um

destinatário da comunicação, mas também sujeito produtor do discurso, por ser a ‘leitura’ um ato de linguagem (um ato de significar) da mesma maneira que o discurso propriamente dito”. Ou seja, a participação do suposto destinatário da manifestação na dialogia da obra, ou a interação com o público, a complementação do trabalho artístico pelo destinatário, o enunciatário, já era considerada há cerca de três décadas, no mínimo, no âmbito da semiótica discursiva. A temática deste evento é outro exemplo de que se desconhece o que se produz no próprio campo da arte, no âmbito de um mesmo Programa: tradução. Alguns dos fragmentos deste trabalho são recortes de uma tese de doutorado de 1998, aqui apresentado numa curadoria e reformatação do coautor deste texto. Retomados por nós há cerca de três anos, esses estudos foram acrescidos de teorias de intertextualidade, de Bakhtin a Kristeva, passando por Plaza, Barthes, Genette e Rabeau, entre outros, com a adição das recentes proposições do italiano Omar Calabrese, focados especificamente no conceito de tradução. Em seu trabalho O estranho caso da equivalência imperfeita (modestas observações sobre tradução), (2008 - Trad. nossa) texto inédito em português, objeto de uma publicação nossa na revista DAPesquisa, com Julia Pelachini Farias, intitulada O fenômeno semiótico da tradução em Omar Calabrese: uma Resenha (2014), encerra uma síntese de seus pressupostos, além de evidenciar o trato cuidadoso que dá ao fenômeno, já expresso no título. Esta resenha é um dos frutos dos desenvolvimentos atuais sobre tradução, levados a efeito por nós com a participação de colegas e orientandos, além dos debates e publicações, sob o título de tradução ou de intertextualidades, resultado dos esforços do Núcleo de Estudos Semióticos Transdisciplinares/NEST. Assim, aqui apresentamos alguns apontamentos da década de noventa atualizados e mesclados com estudos recentes, um texto talvez em alguns momentos um pouco árduo, apenas lembrando que toda a prática advém de teorias. Isto porque seria muito mais agradável trazermos estudos aplicados, exemplos, como as diversas

traduções de Picasso sobre as Meninas de Velázquez, ou a centena de expressões das cenas bíblicas, como a Natividade, a Via Crucis, a Santa Ceia, onde se incluem trabalhos contemporâneos. Ou sobre temas míticos, sempre objeto de recriações. Ou sobre as infindáveis Mona Lisas. O fato é que o que se coloca em questão são dois conceitos: autoria, por parte do artista; e originalidade, em relação à imagem, seja ela artística ou estética, enfim, às múltiplas reapresentações de temas e imagens revisitadas, ao longo da história. Todo leitor é tradutor e todo tradutor é autor? E as obras objetos de transposição de sentidos, o que são? Recriação? Adaptação? Paráfrase? Metáfora? Inspiração? Cópia? Sugestão? Base? Releitura? Metalinguagem? Polifonia? Repetição? Citação? Imitação? Paródia? Plágio? Dialogismo? Tradução? Enfim, nós, que vimos há tanto tempo estudando este tema, recebemos com um misto de surpresa e admiração o conceito polissêmico de tradução ser adotado como tema para o Ciclo de Investigações 2015 do PPGAV. Parafraseando CALABRESE (2008), trata-se de um fenômeno imperfeito, que causa estranheza e que propõe humildade ao pesquisador que o adota como objeto, sugerindo que seus estudos se perpetuem, per omnia saecula saeculorum.

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